Você está na página 1de 282
“Hoje sabemos que a, igualdade formal dos direitos e 2 liberdade politi- ca mascaram relagdes de farya, em vez ce suprimi-las, E, assim, 0 proble- ma politico consiste em instituir estru- turas saciais @ relagoes reais entre os. homens tais que a liberdade, a jgualda- dee o direlto tormem-se efetivos. A fra- queza do pensamento democraitics re side no fate de ser menos uma politica € mais uma moral, visto que nav colo~ ca qualquer problema de estrutura so- cial @ considera as condigdes do exer- cicio da liberdade como dadas com a humanidade,” M, MERLEAU-PONTY: Em lore do snaexismo (Sens et Non-Sens) UNO hé dialética sem opasigio 6 sem liberdadie; nda hd por muito tem. pe oponicio ¢ iberdade em uma evo: lucio, A degeneracio de todas as revo. lucdes conhecidas nia é fruto do ac so: Como regime institurda nunca po. em ser 0 que foram como movimento ue, justamente, por ter sido um suces- 50, chegou 9 insiituigda; 9 movimento historico [4 nao 6 mais ele mesmo, fa- zendosse, ‘trai-se’ e ‘desfigurase’. As revalugdes sio verdadeiras como movie Mentos ¢ falsas conio regimes.” M, MERLEAU-PONTY: As aventuras ei diatética “Uma filosefta concreta nda & uma filosofia feliz. E preciso que se mantenha perto da experiéncia ¢, no entanto, nao se limita a0 empltica, res: titua em cada experitncia a cifra onto- ldgica Cam que esta marcada interior mente. Por mais dificil que seja, nes- sep condigdes, imaginar o futuro da fie losafia, duas coisas parecem seguras: nunca encontrard a convicgao de de- [ef, COM seus Conceitas, as chaves da natureza e da historia, © nao renuncia- ria seu radicalism, a investigacdo dos pressupastas ¢ dos fundamentas, que produziu as grandes filasofias.’” M. MERLEAU-PONTY: Em foda © ent Aenhume parte (Signes) Os Pensadorés CIP-Brasil, Catalogacio-na-Publieagao Chmara Brasilein do Livro, SP Merieau-Ponty, Mutirice, 1908-1961, Textos cscolhidos / Maurice Merleau-Ponty ; selegio de textos de Marilena de Souza Chau ; tradugdes e notay de Marlena de Souza Chaui, Nelson Alfredo Aguilar, Pedro de Souza Morees, — 2. cd. — ‘Sao Paulo; Abrit Cultural, 1984. (Qs pensadores) Inelui vida © obra de Merlenu-Ponty. Bibliografia. 1, Ane ofia 2. Exteoturalismo 3, Fenomenologia 4. Filosofia frances §. Linguagem - Filosofia 6. Omologia 7 . Politia Filosofia I. Chaul, Marites de Sousa, U1, Titolo, Hl, Serie, COD- 15, ~OULA2 “a A827 320.91 indices pura catdloge sistemdtico: 1, Ante : Filosofia 701 2, Estruturalisme : Metodologit 001.42 3. Fenomenologia ; Filosofia 162.7 4. Filosofia francesa 194 3. Linguagem : Filosofia 401 6. Ontologia : Filosofia 11 7, Politica ; Filosofia 321,01 MAURICE MERLEAU-PONTY TEXTOS SELECIONADOS Selegliv de tentos Uy Maritena de Souze Chaui Tradugoes © notas de Nelson Alfredo Aguilar (A divida de Céanr Pedro de Souza Meraes (A linguagen indireta ¢ as yozes do siléncio) Be 1984 EDITOR: VICTOR CIVITA ‘Tittlos originais: “Auioar da Mansisme” “Le Doute de Cézanne" ¢ "Le Métaphysigue dans |'Homne'', de Sem et Now Sens. “La Crise de Fnvensioment’” = "Les Aventures de li Diilectique (epiloges)', de Les Aventures de ler Dialeciigne. ~'Sur In Phénomdnolagie dh Langage”, “Le Langa Indirect et les Voix du Silence", “De Mauss 4 Claude LavisStrauss'", “Paout et Nuile Pat", € “Le Phikosapine et som Ombre, de Signes L-Oeit er L'Exprit © Copyright AbWitS.A. Cultura, Siu Pubs, 1980, = 2 edigao, 1984. “Texqos publirados sob licenga de Les ditions Nagel, Pars (“Em Tommi do Marxisaio™, "Davida de Cézanne" © “0 Metafsico 29 Homem". de Sens ¢ Nao Sen); tle Baltions Gallina, Paris (A Crise do Ehtendianwo" © Ax Aventuens do Dislsisn cep, de As Avennuras de Dialética: "Sobre Penomenaogia de {inpusgen" "A Linugem Indes eas Wore da Sie De Mauss # Cue L6vi- Stra "Toda ecm Nentarn Pat, 70 Filsole Sun Sermbra’", de Signo 0 OMe eo Expiriv) rauiuyau publicics oul |ivenye Ue Crary Datans Barre, ‘ie de aneito (2 tha ea Eggi viata oxclusivos sabre a& denis tridupties deste vulurme, ‘Abnl S.A. Cultural, Sig Pauls Dios eastusiys wn: Merk Pomis — Vida ¢ Oba", Abni S.A. Culurl, S80 Papi. MERLEAU-PONTY VIDA E OBRA Consultovia: Maritena de Souza Chaut Mists: Merleau-Panty nasceu a4 de marco de 1908 em Ro- chefort-sur-Mer. Fez 0 curso secundario nos ficeus parision- ses Janson-le-Sally @ Louis-le-Grand. De 1926 a 1930 foi aluno da Ecole Normale Supérieure, ocasiaa em que conheceu aqueles que com ele formariam a “'geracao existencialisia’’ dos anos 40 e 50. De 1930 a 1935, Morleau-Ponty Iecionou no curso secundariv. Acabou sua tese complementar, La Structure du Comportement (A. Es trutura do Compartamentoi, em 1938. Entre 1939-1940 foi mobi do como oficial do 5." Regimemo de Infamtaria, De 1940 a 1945, par- ticipando da Resisténcia, volta a lecionar no secundario, Em 1945 ab- tém o titulo de dautor em filasofia, apés a defesa de sua “tese de Esta- do”, Phénoménologie de li Perception (Fenomenolagia da Percep= gfo). Ce 1948 turna-se jarelessor da Universidade de Lyon, Nessa epoca, divide com Sartre a diregdn da revista Les Temps Madermes, criada logo apés a Libertagio, De |949 a 1952 ecupa v cargo de pro- fessor-titular da cadeira de Psicologia Infantil, na Sorbonne. Em 1952 € eleito para a catedra de Filosofia do Collage de France, pronuncian- do como aula inaugural 0 ensaio loge de la Philosophie (Elogio da Fi- losafia), Nessa ocasido a amizade com Sartre e com Simone de Beau- voir passa por uma crise, ocasionada pela anilise da posigdo de Sar- tre como “ultrabolchevista” en Les Aventures de la Dialectique (As Aventuras da Dialética,, A andlise de Merleay-Ponty provocou uma polémica que nao cessou até a morte da fildsate, ocorrida subitamens tea 3. de maiv de 1961, vitima de embolia. © retorno as origens da reflexio Ao mesmo tempo que se dedicava ao ensino da filosolia, Mer leau-Ponty publicava livros de ensaios. Humanisaw e¢ Terreur (Huma- nismo e Terror] cantém a andlise dos processos. de Moscau, o coniron- to entre stalinismo ¢ trotskismo, a critica da guerra-fria ¢ de suas impli- cagdes, Les Aventures de fa Dialectique faz 0 balance critica das dife- rentes linhas leéricas € politicas assumidas pelo marxismo apds a re- valugio de 1917; confronta Weber e& Luckacs; analisa as posicces de Moscou expressas através de Pravda; critica 6 voluntarismo de Sartre; problematiza a propasta de Trdtski da necessidade de uma revolucio permanente, O livia, em tlima instancia, coloca os problemas tedri- Vill MERLEAU-PUNTY cos para a constituigac de uma filosofia 4 Juz dos problemas praticos da politica, Sens et Nan-Sens (Sentido © Nao-Sentide) é uma ¢olet- nea de ensaios sobre arte (romance, cinema, pintura e literatura); so- bre as ciéncias humanas (significado da nogao de estrutura come pos sibilidade de uma revolucao cientifica que destrua a pasitivisme cien- tificistal: sobre as relaches entre a filosofia existencialista, o hegelia- nisme 2 o marxismo; e, por fim, alguns ensaios politicos sobre 0 pds guerra, analisande a posicao dos faeces franceses, da igreja e dos herdis de guerra. Signes (Sinais) é a obra que marca a passagem gra sual do filgsoio de uma perspectiva fenomenoldgica para uma investi- gacdo omoldgica. £ também uma coletinea de ensaios sobre a arte, a histéria da filosofia, a nova vpistemotagia, que reflete sobre a cantri- buigao do esteuturalisme nas ciéncias € sobre a “crise da razao” de- corrente da teoria da relatividade. © live contém ainda ensaios mo- nggraficos sobre Husserl, Bergson @ Maquiavel, um conjunto de pro- pos sobre a atualidade politica européia. © prefécio de Signes pode ser lida como uma autebiagratia inte- lectual © politica, come verdadeiro balango que o filésofo apresenta de seu itinerdria toric e pratico. Aparece af a afirmagao de que a fi- losofia precisa recuperar alguns truismos fundamentais, como: 0 olha olha, a fala fala eo pensamento pensa. Essa afirmagaa marca o inicia de nova trajetoria do. pensamento de Merleau-Ponty. Suas prieiciras obras estavam nitidamente vinculadas a fenomenologia husserliana, embora procurasse a cada passo minimizar o papel constituinte dé consciéncia © outorgar 4 relagao Corpo sensivel-munde. sensivel 0 po- der doader de significades que Husserl atribuira ao Sujeite Transeen- dental. A partir de Signes, Merleau-Ponty encaminha-se para a ontolo- gia como regido pré-reflexiva, selvagem e bruta, de onde emergem as Categorias reflexivas. A filasofia — reflexio — deve voltar as origons da prépria reflexdo ¢ descobrir seu salo anterior a atividade reflexiva € responsdvel por ela. Essa regio é 0 “logos do mundo estético”, isto &, do mundo sensivel, unidade indivisa do corpa e tas coisas, unida- de que desconhece a ruptura reflexiva entre sujeito e objeta, Por ou- tro lado, as reflexdes nascidas na rogida origindria da aesthesis pos- suem dinamismo e simbolismo préprios, que se desenvolvem histeri- camente, Constituindy a regida do “logos do mundo cultural’”, isto 6, da pratica inter-humana mediada pela trabalho e, portanto, pelas rela- GGeS sociais.¢ pelas cofsas af produzidas. Merleau-Ponty, Sartre, Nizam © prefacio de. Signes segue também outra vertente: a da posigho politica dos filésofos. Merleau-Ponty acusa a “mania politica dos fild~ sofos", uma certa maneira de fazer filosafia ¢ de pensar a politic: que € mi filosofia © mé politica. Essa “mania” 6 a expressdo da conscién- cia infeliz filoséfica, que obriga o filésofe a assumir 0 papel insignifi- cante de “politico honordrio” por honra da firma & para o bem da causa humana. © que acontece entao ¢ que a filosofia se dugmatiza © a politica se voluntariza: consequencias desastrosas para ambas, acattelantio a impossibilidade real de uma filocofia da histéria e de uma pritica politica eletiva, No percursa autobiogrélico Merleau- VIDAEOBRA = IX Ponty preocupa-se com o problema da “rebeldia’’, atitude juvenil que pode ser um motor histdrica, mas freqdentemente se transforma em obstéculo politico. Essa andlise é fcita como pano de funda de uma rememorizagao cujo centro & a figura de Paul Nizam, amigo co- mum de Sartre ¢ de Merleau-Ponty. A morte prematura de Nizam uniu 0s dois sobreviventes auma amizade fortificada pelos anos de Re- ncia e dilacerada, afinal, pela divergéncia profunda quanto aos principios filoséficos concementes ao hamem ¢ a historia, © que mais importa nessa reaproximacdo de Merleau-Ponty ¢ Sartre através do amigo morto é a redescoberta de um ponte de canta- to que ambos supunham perdido: o reconhecimento de que a idéia de uma juventude revoltade ¢ uma quimera porque a revolta nao po- de permanecer indelinidamente como revolta, e nao pode, também, chegar 3 revolugdo, E ainda © amigo perdido que leva os dois sobrevi- ventes a medlitacaa sobre a morte e sobre a fragilidade humana, en- carnadas nos dois gestos fundamentais de Nizam: a ruptura do filho com a familia e, mais tarde, a ruptura do militante com o partido. Por ocasido de sua morte, Merleau-Ponty preparava um fivra sa- bre a ontologia pré-reflexiva, mundo do ser brulo ou selvagem. © li- vro inicialmente deveria intitular-se L’Origine de la Verit (A Origem da Verdade), Nos manuscritos, porém, comecou a surgir um navo ti- tulo, Le Visible et I'Invisible (O Visivel e 0 Invisivel). Sera com este nome que o amigo de Merleau-Fonty, Claude Lefart, prepararé a edi- ¢o péstuma, contendo capitulos semi-acabados © as notas de traba- the, Tambarn se deve a Lefort a publicagdo pastuma dos Résmes de Cours, ministrados na Sorbonne @ na Collége de France, @ La Prose dy Monde (A Prose do Mundo), coletinea de ensaios sobre prable- mas de linguagem. 0 pensamento de sobrevéo Em suas linhas gerais, a filosofia de Merleau-Ponty earacteriza-se pela critica radical do humanisme, Este tem origem na mumento em que 0 pensamento reflexive, colocads diante dos enigmas do realis- mo ingénuo — presente na sensagio © na percepgio —, procura re~ solver os paradoxos perceptivos recorrendo 2 separagdo entre a cons- ciéncia e o mundo, e reduzindo © real 4 dicotomia sujeito-objeto, A consciéncia, res cogitans, sujoito transcendental ou espirita, é& defini- da pela interioridade absoluta © pela identidade absoluta consigo mes: ma. A coisa, res extensa ou objeto, é definida pela exterioridade abso- luta @ pela impossibilidade de deter em sie por sia identidade consi- go mesma, @ Mao ser que se COnvera numa representagdo, numa idéia. © pensamento ocidental, “pensamento de sobrevio", procura dominar e controlar totalmente a si mesmo e estender a dominacdo & ‘controle 4 realidate exterior. A dicotomia sujéito-objero, inaugura- da pela metafisica idealista de Descartes, criou @ espaco no qual é possivel definir ¢ determinar 0 ato do conhecimento e © contedda des- Se alo. Ese espaco poe © respeita a cisio Consciéncia-mundo, cisio que funda os dots enganos complementares que canstituem aquile que Merleau-Ponty denomina humanismoa: osubjetivismo filosdfico eo abjetivisma cientifico. Em outros termas: dada a cisao, a filosofia ou x MERLEAU-PONTY torga oo sujeite cognoseente o poder de se apropriar da realidade ex: terior e heterogénea a ele, As coisas se convertem em representagoes constituidas pelo sujeito. O pensamento sobrevoa o mundo, transfor, mando-o em idéia ou conceito do munde, No péle opasta, a ciéncia Quiorga ao objeto o poder de recriar a relagao com & sujeito, exercen- do sobre este Gltimo uma influéncia de tipo causal, cujo resultado 6 a presenga do exterior na consciéncia por melo das sensagoes. O subje- tivisma encaminha a filsofia para a idealismo: pouco a pouca as cai. sas_exteriores. vido se convertendo em realidades cada vey menos reais, vo se tornando sombras da verdadelra realidade, © esta se te duz; finalmente, a realidade clo sujeito cognoscente ¢ de suas opera- Gées, O objetivismo cientifico, por sua vez, scguinds 9 caminhe ine verso, wai reduzinde a consciéncia a uma realidade cada vez mais fu- Baz, até que se converta num mera epifendmeno de acontecimentos fisico-fisioldgices abservaveis © objetivos. O pensamento de sobrevio ha filesofia converte o munda em representacao do mundo. O. pensa- mento de sobrevdo na cidncia converte a consciéncia num resultado aparente de “fendmenos na terceita pessoa’, sto é, de acontecimen- tos que perience a esfera dos objetos naturais, Seria erréneo, cantuda, julgar que a tendéncia idealista se confi- na & filosofia ¢ que tendéncia empitista se confina a ciéncia. Essa primeira diregao, examinada por Merleau-Ponty em sua obra ta Struc ture du Comportement, encontra uma contrapartida inversa © recipro- cat idealism cigntifico ¢ empitismo filosifico. Essa contrapartida é examinada na Phénoménologie de la Perception, ande o problema da relacao consciéncia-mundo é analisado primeira do ponte de vista do empirismo cientitice, mas, em seauida, também deo ponto de vista do intelectualismo cientifico. Além dessas duas abordagens, Merleau- Ponty apresenta ainda as duas restantes: © empirismo © 0 idealismo fi- loséficos. Assim, subjetivismo ¢ objetivismy, idealisma e empirismo, Melafisica @ pasitivismo S80 dicotomias cjue possuem a mesma fonte: 8 scparagdo sujeito-objeto, considerados come realidades heteroge- neas, distinias © agambarcedoras, que wenden a reduzir seu oposte a uma aparéncia ilusoria, As dicotomias sao, partanta, as faces comple mentares cle um engand comum e origindrio, O corpo: 0 visivel que se ve A separacao sujeito-objeto, origem da filosofia eda cincia mo- dernas, desemboca na necessidade de reunir os dois termos, © a rede nid Operada consistirs sempre em tornar os dois termos absalutamen- te coextensivos pela redugao de um deles ao ovtre: ou tudo & cons- citncia, ou tudo é 0 objeto — ¢ a consciéneia se reduz entdo a um epifendmeno de acontecimentos objetivas. A grande preocupagio de Merleau-Ponty consiste em oxigir que a ciéncia ¢ a filosofia s¢ questionem, questionando seus conceitos fun- damentais (sujeito-objeto, fato-esséncia. ser-consciéncia, real-aparén- ¢ia), Conceitos usadas sem que se perceba que jd carregam uma inter- pretacdo da realidade, da experiéncia © do sentido, F preciso interro- ger a ciéncia e@ 2 filosofia @ propor-lhes um nova panto de partida: a compreensiio de suas origens. Isso significa, sobretudo, revelar que a VIDA EOBRA xt vida representativa da consciéncia nao € primeira, nem Gnica, iste 6, n3o é fundante nem definidora do que sejam a consciéncia & o mun- do. Essa revelaco, porém, segue uma trajetéria peculiar no pensa- mento de Merleau-Ponty. No capitulo final de La Structure du Com- Portement, apds ter te © critica do objetivisme behaviorsta e a do realismo gestaltista, o fildsofo indaga qual a relacdo entre a consci¢n- cia percepliva a conscitncia representativa, e se a segunda nao ten- de @ anular a primeira. A resposta encontrada 6 a de que a conscién- cia perceptiva é fundante com relagao 4 representativa, de sorte que esta continua, no nivel puramente intelectual, um conhecimente arigi- nado no nivel sensivel, Essa resposta é desenvolvida na Phénoménolo gic de la Perception, desembocando pouco a pouce na nacdo de uma consciéncia perceptiva soliddria cam o corpo, enquanto, como. pedprio ou vivido, maneira pela qual nos instalamos no mundo, ga- nhando e doando ‘significagdo. A partir de Signes, porém, a nogdo de consciéncia perceptiva comeca a aparecer como “um rei em sua ilha deserta”’, uma “semiverdade" que passa a ser substituida pola de cor- po, de carne, iste &, por uma interioridade que ndo se reduz a imanén- cia da consciéncia, mas que nao se explica pela exterioridade de mocanismas fisico-fisioligicos. © corpo apresenta aquila que scmpre foi © apandgio da consciéneia: a reflexividade, Mas apresenta lam~ bém aquilo que sempre foi apanagio do objeto: a visibilidade. O cor- pa 6 o visivel que se vé, um tocado que se toca, um sentido que se sente, Quando a mao direita toca a mao esquerda, ha um aconteci- mento observivel cuja peculiaridade a ambigtidade: cama determi- nar quem toca e quem ¢ tocado? Como colocar uma das maos como sujeito € a Gutra Como abjeto? A descoberta do corpo reflexive e ab< servavel leva Merleau-Ponty a mostrar que a experiéncia inicial do ‘corpo consigo mesmo ¢ uma experiencia em propayagde © que se re- pete na felagao com as coisas e na relacdo com os outros, A ciéncia & a filosofia nao podem dar conta da relagao peculiar de sujeito com o mundo sem destruir um dos termos; a mesma incapacidade surge tam- ‘bém no wocante a felagao com os outros. A intersubjetividade @ impos sivel para a filosotia da conscidncia porque nesta a propria subjetivi- dade é descartada, de moda que a relaggo inter-humana pode ser ex- plicada apenas em rermos de convencao, de candicionamento e de arbitrariedade. Ao tomar a experi¢neia corporal como origindria, Mor- leau-Ponty redescobre a unidade fundamental do munde come aun do sensivel. © logos do mundo estético “Eis o enigma: meu corpo ¢ simulaneamente vidente © visivel. Ele, que olha todas as coisas, também pade olhar-se e reconhecer na- que entio vé o ‘outro lade’ de sua poténcia vidente, Ele se ve vendo, ele se toca tocando, é visivel @ sensivel para si mesmo. £ um si’ do por transparencia, coma © pensamento, que pensa tudo assi- milando-0, constituinde-e em pensamento — mas um ‘si’ por canfu- 589, narcisismo, ineréncia daquele que vé naquilo que ve, daquele que toca naquilo que toca, daquele que sente naquilo que é sentido (2.1. Esse primeire paradoxo nao cessaré de produzir outros. Visivel e x MERLEAU-PONTY mavel, meu corpo esta no niimero das coisas, ¢ uma delas, etd prese no tecido da mundo e sua coasio & a dé uma coisa, Mas, porque vé se move, maniém as coisas em circulo a sua volta, a5 coisas sao. um anexo ou um prolongamento dele, estzo incrustadas em sua came, f2- zem parte de sua definigac plena ¢ © munde ¢ feito do mesmo estofe que o Corpo, Essay reviravolias, essas antinomias sao maneiras dileren- tes de dizer que a visao é tomada ou feita 14 no meie das coisas, ali onde persiste, como a dgua-mae no cristal, a indivisao do senciente & do sentido” (L’Oeil et Espri¢). A telacao corpo-mundo @ estesiclégica: h4 a carne do corpo e a do mundo; hi em cada um deles uma inlerioridade que se propaga para @ outro numa reversibilidade permanente. ““O mundo esta tode dentro e eu estou todo fora”, escreve Merleau-Ponty em Signes. Cor- po e mundo sao um “campo de presenga”’ onde emergem todas as re- lagoes da vida perceptiva e do mundo sensivel, Ha um. loges do mun- do estética, um campo de significagdes sensiveis constituintes do cor- po e do mundo. £ esse logos do mundo estético que torna possivel a intersubjetividade como intercorporeidade, e que, através da manifes. lage corporal na linguagem, permite.o surgimento do loges cultural, isto é, do mundo humane da cultura e da historia, Para Merleau-Ponty, a ciéncia ¢ a filosofia da cansciéncia sio ins capazes de demonstrar a possibilidade da relagao intersubjetiva, na medida em que para a primeira cada um € um “amontoado de ossos, carne, Sangue e pele’ que se iguala a um autémata, a uma “coisa” ‘ou A matéria inerte, enquanta, para a segunda, é um “eu penso”’ ini- coe total, ndo havendo como sair de sie encontrar 0 outro. “Come o ‘eu pens’ poderia emigrar pata fora de mim, se 0. outro sou eu mes« mo?” (La Prose chr Monde.) A linguagem como ato de significar Segunda Merleau-Ponty, a ciéncia e a filosofia, vitimas do objeti- vismo ¢ do subjetivismo, nunca foram capazes de prestar contas da especificidade da linguagem e de seu modo de dar origem a comuni- dade cultural. Para a ciéncia, a linguagem se reduz a cmissio de sons, objetos de uma cidncia natural, a acustica. Assim, a linguagem se reduz a um sistema convencignal ¢ econdmice de sinais que permi- Jem aos homens uma cera coexisténcia. Para a filosofia, a linguagem sempre foi uma tradugo imperfeita do pensamento e a5 filesafas som pre se preocuparam em purificd-la para que pudessem ‘“vestir” mais corretamente as idléias mudas ¢ verdadeieas. Filosofia ¢ ciéneia nunca alcangaram a dimensio expressiva da finguagem. A palavra nao € tra- dugao de um sentido mudo, mas criagéo de sentido. A linguagem nSo “veste”” idéias — encama significacdes, estabelece a mediagaa entre © eu ¢ G oulro ¢ sedimenta os signiflcados que constituem uma cultura, A palavra é a modulagao de uma certa maneira ce existir, que ¢ originariamente sensivel. “A linguagem nao & mais a seiva das significagées, mas 0 proprio ato de significar, © o homem falante ou a escritor nao pode governé-la voluntariamente, assim como o hamem vivente nao pode premeditar o detalhe © os meios das seus gests, A Unica maneira para compreender a linguagem € inslalar-se ela e exercé-la’” (Signes), MIDAEOBRA XII Corpo, mundo, linguagem intersubjetividade encarnada levam Metleau-Fanty a critica fundamental do “pensamente de sobrevdo" na filosofia ¢ na ciéncia. Corpo, mundo, linguagem, intercorpareida- de revelam que o real transborda sempre, que seu sentido ultrapassa os “dadas” ¢ os “conceitas”, A percepcao revela 0 mundo como la- téncia, como transcendéncia. A pintura e a linguayem surgem como experiéncias reveladoras dese laténcia © dessa transcendéncia do real, de um ser selvagem pré-refiexivo, sempre além @ aquém das fa- tas e das idéias, Qual o enigma da pintura? Quando contemplamos as figuras pintadas nas cavernas, © que contemplamos? As figuras nda 840 as cores ali fixadas; nao sao as marces no caledrio; nao £40 C6- pias de animais © homens que jé deixaram de existi; nd 330 0 mate- tial usado para crid-las, Os animais pintados nas paredes das caver has sao pintados porque s6 exisiem sob a condicdo expressa de nao se confundirom com a materialidadle que os cristalizou nas paredes. © enigma da pintura coriste em fazer com que oy objctas estcjam na tela sob a condi¢ao expressa de ndo estarem ali, de transcenderem @ materialidade, sem a qual, entretanta, 30 existiriam, e rumarem pa- ro spo, sem 0 ae nao seriam pintura. Qual o enigma da lingua- gem? £ o de que nela a sianificacio. sempre ultrapassa o significante, e este sempre engendra nowas significagées, de sorte que entre signifi- cago e significante nunca existe equilibrio, mas ultrapassamento de um pela outro gragas ao outro, Esse ultrapassamento € 0 sentide: “A i linguagem ¢, pols, este aparelho singular guc, como nosso corpo, nos dé mais do que pusemos nela, seja porque apreendemos nossos prdprios pensamontos quanda falamos, saja porque os aproendemos quando escutamas os outros. Quando escuto ou leio, as palavras nao vim sempre tocar significagdes preexistentes em mim. Tém o pader de langar-me fora de meus pensamentos, criam no meu universe pri- vado cesuras por onde outros pensamentos podem iramper" (Sig- nes). Em diregao a ontologia selvagem A trajetoria merleau-pontyana ruma para a ontologia selvagem ou pré-reflexiva. Le Visible et Iavisible procura © ser bruto, indiviso, latente, transcendent, anterior a todas as separacées © fixagdes que © pensamento filosdfico ou cientifico Ihe impde. E essa ontologia que, partindo dos referenciais ja explicitadas, exigira a radicalidade da interrogagdo filoséfica. Radicalidade em duplo sentida: por um la- du, como exiéncia de levantamento critico de todos os conceites fi- losdficos ¢ cientificos, como preconceitos que escandem uma metafi- sica dualista; por outro lado, como exigéncia da busca da raiz, da orl- gem das relagées corpo-mundo, corpo-linguagem, mundo sensivel- mundo cultural, Essa cadicalidade visa criticar as protensties dos st mas Conceituais, que aspiram a fechar aquelas relagdes num circulo, determinado de pressupostos ¢ absolutos. A descaberta do ser selva- gem 6 adescoberta de um “ser de abismo”, que nao pode ficar-encer- rada, mas que se manifesta ¢ se ultrapassa numa modificacao infinita- mente aberta e nova A tiltima nota de trabalho de Le Visible et I"Invisible indica o pla- no que @ livro deveria seguir: “Meu plang; lo Visivel; Ia Natureze, xIV MERLEAUPONTY II] © Logos. Deve ser apresentado sem nenhum compromise com o humanisme, nem, além disso, como naturclismo, nem, enfim, com a teologia...’" A filosofia nde se compromete com um sistema canceitual que fa- ga do homem, da materia ou de Deus 6 cnone e 0 fundamento do Teal e de seu conhecimento. Nem antropologia, nem naturalismo, nem teologia, mas ontologia do Ser Brulo, pré-reflexiva, que se mani- festa através do homem ¢ das coisas, mas que ndo se cristaliza neles, A filosofia deve combater os absolutos rivais: homem-natureza, Deus-Natureza, Naturoza-Histérla, Histéria-Deus. Nesse combate contra as absolutos, a filosofia recupera o valor da contingéncia e do acontecimento ¢, dessa maneira, 0 tildsofo aparece como um homem entre outros homens © nde came © detemor do Saber Absolute. “Sua dialética ou sua ambigdidace ¢ apenas uma maneira de por em pala- yras aquilo que todo hamem sabe muito bem: o valor dos mamentos nos quais sua vida se fenova continuando-se, se retoma e@ se can preende, passando além, ali onde seu mundo privado torna-se mun- do comum’” (éioge ae fa Philosophie), A Gnica diferenca entre os ho- mens ¢ a filésofo reside na atengaa que este dedica ao surgimenio das coisas, dos homens © de suas relacdes reciprocas como surgimen- to de um sentido latente © neve que preexistia como possibilidade ¢ que chegou a ser explicitado. A ontolagia de um mundo selvagem € a afirmagao de que “este mundo barroco nao @ uma concession do espl- Fito a natureza, pois, se em toda parte o sentido esté figurado, em to- da parte s¢ trata de sentido. A renovagao do mundo é tambem renova- Gao do espirito, redescoberta do espirite bruto que nao esté aprisiona- do por nenhuma éulturae ac qual se pede que crie novamente a cul tura. O irrelative, doravante, nao € a natureza em si, nem o sistema das apreensbes da consciéncia absoluta, nem muito menos o hoe mem, mas a “teleologia’ de que fala Husser! — escrita ¢ pensada en- (re aspas —, juntura ¢ membrana du Ser que se realiza atraves do ho- mem’’ (Le Philosophie et Son Ombre), Cronologia 1908 — A 4 die marge, em Rochelort-surMer, nasce Maurice Merletue Ponty 1917 — Os revoluciondrios comunistas tamam a poder na RGssia. More Duikheirn. 1919 — Publicacdo de LFnemwie Spirituelie, de Bergson, 1926-1930. — ivierleau-Fomiy estucla na kcole Nermale Supérieure 1927 — Hoidenger publica a primeira parte de Ser 0 Tome. 1929 — Thomas Mann recebe o Prémio Nobel de literatura, 1932 — Jaspers publica Filosofia. 1937 — Morre Antonio Gramsci. 1938 — Publicado de A Niiusea, de Sartie 1939-1940 — MerloauPoniy. ¢ mobilizado como ofieial do 5. Regimente de Inkavtarin, 1941 — Arthur Koestler publica Darkness at Noon 1942 — fublice-se La Syucture du Comipariement, dé MerleausPoniy. Ca- mus publica {) Estrangeiro © O Mito de Sisito, 1945 — Medleau-Ponly dautora-se om filosatia ‘com Phénaménologie de ta

Você também pode gostar