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Escola pública, projeto civilizatório

burguês versus práxis emancipadora


José Claudinei Lombardi
Anselmo Alencar Colares
Guilhermo Del Olmo Pintado/123RF
resumo abstract

A escola é uma instituição social produzida The school is a historically produced


historicamente, contemporânea ao social institution, contemporary to the
surgimento da divisão de classes. As rise of class division. Contradictions
contradições atravessam as sociedades run through class societies and affect
de classes e também atingem a escola the school. Thus, their development
e, desta forma, seu desenvolvimento indicates advances resulting from claim
aponta avanços resultantes de lutas struggles and counter-hegemonic societal
reivindicatórias e de projetos societários projects. Knowing the school’s history is
contra-hegemônicos. Conhecer a fundamental to understand and defend a
história da escola é fundamental public school qualitatively superior to the
para a compreensão e defesa de one left to us. This article seeks to generally
uma escola pública qualitativamente and contextually identify and analyze
superior à que nos foi legada. O artigo the development of public education in
busca na historiografia educacional educational historiography to expand
identificar e analisar, em linhas gerais, o the capitalist mode of production and its
desenvolvimento da educação pública “civilizatory” wave. Concomitantly, the
de forma contextual à expansão do article demonstrates the contradictions,
modo de produção capitalista e sua struggles, advances, and obstacles to
onda “civilizatória”. Concomitantemente, constructing a public school that effectively
aponta para as contradições, lutas, avanços contributes to human emancipation.
e obstáculos para a construção de uma
escola pública que contribua efetivamente Keywords: public school; bourgeois
para a emancipação humana. civilizatory project; emancipatory
education.
Palavras- chave: escola pública;
projeto civilizatório burguês; educação
Viperfzk/123RF

emancipadora.
A
escola pública (estatal)1 dessa instituição é fundamental para a com-
universal, laica, obriga- preensão e defesa de uma escola pública
tória, gratuita, inclusiva capaz de realizar a função formadora como
e plural que almejamos um direito inalienável e cuja concretização
e defendemos, é um pro- decorreu da ascensão política da burguesia
duto histórico da socie- ao poder nos Estados nacionais.
dade ocidental. Carrega A escola pública, portanto, corresponde
as marcas das contradi- às lutas que marcaram a sua produção his-
ções inerentes ao desen- tórica e seus diferentes contextos. Da mul-
volvimento das forças tiplicidade de escolas concretas, buscamos
produtivas e das relações uma definição suficientemente ampla para
sociais que se estabelece- representar as diversas formas de escolas
ram ao longo do tempo e que nos desafiam a pensar sua complexi-
em diferentes locais. Não advém de ideali- dade e a afirmar que não há uma escola
zações concebidas por inspiração sobrena- idealizada, perfeita, imutável. Há escolas de
tural, mas, assim como outras instituições vários tipos e correspondentes a diferentes
sociais, é resultado da objetivação histórica projetos societários.
da atividade humana. Conhecer a história A palavra “escola” vem do grego scholé,
que significa “lugar do ócio”, concebida na

1 O conceito de educação ou ensino público produzido


na modernidade, ou sob o capitalismo, se refere àque-
le oferecido pelo Estado e financiado por meio de JOSÉ CLAUDINEI LOMBARDI é professor
impostos. Guarda relação, portanto, com seu sentido
titular de História da Educação da
etimológico (do latim publĭcus, relativo a povo, per-
tencente a todas as pessoas), mas sob as condições do Faculdade de Educação da Unicamp.
moderno Estado nacional. Desse modo, o conceito de
educação pública que iremos usar ao longo do artigo ANSELMO ALENCAR COLARES é professor
é no sentido de estatal (Sanfelice, 2005; Lombardi, titular do Instituto de Ciências da Educação
Saviani & Nascimento, 2005). da Universidade Federal do Oeste do Pará.

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Antiguidade clássica, cerca de cinco séculos ava sendo a formação do fiel, do cristão,
antes de Cristo, resultante de uma socie- porém, com caráter mais secular, nacional.
dade já dividida em classes, tendo, de um A segunda corresponde ao processo de secu-
lado, os escravos (desprovidos dos meios larização do Estado, no qual a educação
de produção, subjugados) e, de outro, os passou a ser organizada para seus próprios
proprietários das terras (cuja origem havia fins, culminando no século XVIII, época da
sido na base de saques, guerras ou outras “ilustração” e do “despotismo esclarecido”,
formas de apropriação). Na Grécia clássica, com a educação pública estatal. Passou a
cerca de 70% da população era composta objetivar a formação do súdito, em particu-
de escravos, obrigados a trabalhar, possibili- lar a do militar e do funcionário, tendo um
tando o não trabalho e o ócio aos “homens caráter eminentemente disciplinar e intelec-
livres”. Esse “lugar de ócio” destinava-se a tual. Em fins do século XVIII, com a Revo-
uma pequena parte da sociedade e era vol- lução Francesa, os representantes do povo
tado ao aprendizado da arte da oratória, à construíram a educação pública nacional,
reflexão sobre os processos de dominação correspondente à terceira fase, que passou
e à preparação política. a ter por objetivo a formação do cidadão,
Somente na França revolucionária é que a educação cívica e patriótica do indivíduo,
ocorreram os movimentos e propostas para tendo um caráter essencialmente popular,
a consolidação da escola como instituição elementar, primário. A última e quarta
formadora da sociedade, também correspon- fase ocorre com o avanço da participação
dendo à consolidação do modo de produção do povo no governo da nação, surgindo a
capitalista2. Importante assinalar que não há educação pública democrática, caracterís-
uma única construção historiográfica sobre o tica do nosso tempo, cujo objetivo em tese
assunto. Sem preocupação tipológica com a é formar o homem completo, no máximo
periodização, mas apenas a título de exemplo, de suas possibilidades, independentemente
tomemos Luzuriaga e Cambi para entender da posição econômica e social. Em outras
os caminhos historiográficos seguidos em palavras, propiciar o maior grau possível de
diferentes tempos. cultura ao maior número de integrantes da
Luzuriaga (1959) destaca quatro fases que nação (Luzuriaga, 1959, p. 2).
caracterizam o desenvolvimento da educação Outra interpretação do mesmo processo,
pública. Situa a primeira a partir do século sem a preocupação tipológica de Luzuriaga,
XVI e a denomina de educação pública reli- foi realizada por Franco Cambi, argumen-
giosa. Diferentemente da educação medieval, tando que o fim do Quatrocentos fecha um
organizada ao amparo da Igreja, os refor- longo ciclo histórico – a “época medieval”
madores buscaram nas autoridades oficiais – e inicia-se outro, talvez ainda inconcluso,
sustentação e desenvolvimento de suas ideias e designado como “época moderna” ou
e crenças. O objetivo da educação continu- simplesmente modernidade (Cambi, 1999,
p. 195). Estimulada pelas transformações
em curso, também a educação foi se reno-
2 A análise sobre a educação na França revolucionária
vando, adquirindo as características da escola
foi baseada em Lombardi (2020). moderna: minuciosamente organizada, admi-

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nistrada pelo Estado e voltada à formação Mello (2002, p. 112), em suas análises
do homem-cidadão. Nas palavras do autor: acerca do longo processo de desenvolvi-
mento do modo de produção capitalista,
“[...] Na França, entre a Revolução e o Impé- observa que “a civilização do capital inter-
rio, nasce um sistema educativo moderno e ligou o mundo, criando em todos os pontos
orgânico, que permanecerá longamente como do globo idênticas vontades e necessidades,
um exemplo a imitar para a Europa inteira e iniciativas e impasses, soluções e proble-
que fornecerá os fundamentos para a escola mas, semelhante tecido social”. Mesmo não
contemporânea, com seu caráter estatal, cen- tratando da história da escola pública, o
tralizado, organicamente articulado, unificado artigo traz apontamentos gerais sobre sua
por horários, programas e livros de texto” gênese e os avanços resultantes das lutas
(Cambi, 1999, p. 365). de classe e de projetos societários contra-
-hegemônicos, tomando como referência o
A análise de Cambi é de que a escola desenvolvimento da educação pública na
moderna teve seu nascimento no transcorrer França e alguns aspectos gerais do que se
do século XVII, processo que se aprofundou efetivou no Brasil. Com base na historiogra-
ao longo do século XVIII e que culminou fia educacional, buscamos identificar e ana-
na Revolução Francesa, a partir de 1789, lisar, em linhas gerais, o desenvolvimento da
com a criação de um sistema de educação instituição escolar como uma decorrência da
nacional e pública. Esse sistema educacional expansão do modo de produção capitalista e
constituiu-se modelo para todos os demais sua onda “civilizatória”. Concomitantemente,
países e portal para a escola contemporânea. apontamos as contradições, lutas, avanços e
As diferenças teórico-metodológicas e de obstáculos para a construção de uma escola
periodização entre Luzuriaga e Cambi não pública que contribua efetivamente para a
constituem obstáculo para a análise, uma emancipação humana.
vez que ambos identificam um processo
de construção da educação pública e que ANTECEDENTES: COLONIZAÇÃO,
este coincide, em suas linhas gerais, com
ESTADO E IGREJA E A EDUCAÇÃO
a emergência e com as transformações da
sociedade moderna, que optamos denomi- COMO PROCESSO CIVILIZATÓRIO
nar de modo capitalista de produção. Esse
processo não foi marcado por um desenvol- O Brasil entrou para a história com o
vimento linear da educação pública, mas século XVI. Sua história coincide, por um
acompanhou e materializou, em linhas gerais, lado, com o processo de expansão comercial
o contraditório processo de organização e europeu e, por outro, com o período carac-
lutas sociais e políticas entre as classes e terizado pelo surgimento e desenvolvimento
frações de classe. Para ambos a Revolução da educação pública. Quando os primeiros
Francesa, ao expressar o rompimento político jesuítas aqui chegaram em 1549, chefiados
com o Ancien Régime, instaurou um novo pelo Padre Manoel da Nóbrega, cumpriam
processo de transformação da educação e mandato do Rei de Portugal, D. João III,
que marcou época. e, baseados nos “Regimentos”, assumiram

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a missão catequética e educacional. Para observa Norbert Elias, pela qual se conquis-
tanto, Nóbrega elaborou um plano de ensino tava terras, mas também pessoas, integradas
dirigido tanto aos filhos dos colonos por- ao projeto colonizador como trabalhadores e
tugueses quanto aos indígenas. Posterior- consumidores (Elias, 1993, p. 259). Marx e
mente, tal plano foi suplantado pelo Ratio Engels, no Manifesto comunista, apresentam
Studiorum (Plano de Estudos), com o que se uma síntese lapidar do propósito “civilizador”
privilegiou a formação das elites, centrada burguês, de imposição de padrões e costu-
nas chamadas “humanidades”, ensinadas mes: “Numa palavra, a burguesia cria para
nos colégios e seminários que foram sendo si um mundo à sua imagem e semelhança”
criados nos principais povoados (Saviani, (Marx & Engels, 1982, pp. 110-11).
2007). O ensino jesuíta então implantado Não há dúvidas que no Brasil Colônia
contava com subsídio da Coroa portuguesa, o colonizador usou de todos os meios para
constituindo assim uma versão nacional da anular quaisquer formas de organização
“educação pública religiosa”. e de comportamento contrários aos seus
A fase inicial de nossa história coincide interesses. Era necessário para os fins da
com o início do modo de produção capita- colonização que buscassem formas de apro-
lista e sua ideologia correspondente, deno- ximação que resultassem na colaboração
minado como de acumulação primitiva de – espontânea ou forçada – do habitante
capital; é a pré-história do capital e do modo nativo. Para tanto era necessário quebrar
de produção que lhe corresponde (Marx, a organização econômica, social e cultu-
2013, cap. 24). Entre os vários instrumentos ral autônoma, impondo através da educa-
da acumulação primitiva, o sistema colo- ção, da tradição e do costume as regras
nial amadureceu o comércio e a navegação da dominação do colonizador que, sob as
como plantas numa estufa. Nesse sistema, condições locais, tinha as condições do
as empresas comerciais monopolistas atua- modo de produção capitalista como natu-
ram como poderosas alavancas da concen- rais e evidentes (Marx, 2013). Esse foi o
tração de capital e, para as manufaturas que objetivo de um processo educativo que, de
então floresciam nas metrópoles, as colônias modo geral, se confundia com a catequese
garantiam um mercado consumidor e uma (Paiva, 2006). “Catequese” é uma palavra
acumulação espetacular, assegurada pelo de origem grega (do verbo katechein) e
monopólio do mercado. É preciso destacar significa ensinar, educar. O termo adquiriu
que os tesouros espoliados dos continentes o sentido de instrução religiosa no início
e terras descobertos, mediante o saque, a do cristianismo, referindo-se ao processo
escravização e o roubo, eram encaminha- de doutrinação na fé. Na colonização, a
dos à metrópole, onde se transformavam em catequese era um mecanismo para demo-
capital (Marx, 2013, cap. 24). ver os nativos de suas crenças e costumes,
O projeto civilizatório burguês, sob Portu- ensinando-os a rezar e a falar a língua
gal, encontrou no Brasil Colônia um ambiente portuguesa, devotando obediência à Coroa
propício para sua implantação. Estado e através das autoridades civis e militares,
Igreja juntos na empreitada. A colonização incorporando-os lentamente ao contingente
adquiriu uma justificativa civilizadora, como de despossuídos, num processo paralelo

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ao que ocorria na Europa com a transfor- das ideias iluministas em meados do século
mação dos servos em proletários “livres”. XVIII propiciava a influência das ideias
Após a expulsão dos jesuítas do Brasil, a liberais europeias em países americanos,
catequese e a educação, em sentido amplo, alimentando os desejos e os movimentos
continuaram sob a orientação do projeto colo- que visavam à autonomia política das várias
nizador e em sintonia com seus objetivos colônias no continente.
gerais. As “reformas pombalinas da instru-
ção pública” (Carvalho, 1978) se inserem no A EDUCAÇÃO PÚBLICA NA FRANÇA
quadro das reformas modernizadoras levadas
a efeito por Pombal, visando a colocar Por-
E SUA EXPANSÃO PARA O MUNDO
tugal “à altura do século” (século XVIII),
caracterizado pelo Iluminismo. Através do Como assinalamos anteriormente, tanto
Alvará de 28 de junho de 1759, determi- Luzuriaga quanto Cambi, dois autores ligados
nou-se o fechamento dos colégios jesuítas, a tradições historiográficas diferentes, apon-
introduzindo “aulas régias” mantidas pela taram que somente o rompimento político
Coroa, através do “subsídio literário”, ins- com o Ancien Régime instaurou um novo
tituído em 1772. processo de transformação da educação e a
O ensino ficou entregue a outras ordens defesa de uma educação nacional pública,
religiosas e a leigos formados na concepção gratuita, laica e obrigatória.
educacional então hegemônica. As reformas Luzuriaga foi enfático ao afirmar que
pombalinas se contrapuseram ao predomínio somente com a Revolução Francesa teve
das ideias religiosas e, com base nas ideias início uma educação propriamente pública
laicas inspiradas no Iluminismo, instituíram (estatal) e nacional, ficando assentadas as
o privilégio do Estado em matéria de instru- bases para seu posterior desenvolvimento.
ção. Surgiu, assim, a nossa versão da “edu- Nas discussões, projetos e decretos levados a
cação pública estatal”, que, entretanto, não cabo no processo revolucionário, encontra-se
se efetivou por diversas razões: a escassez a substância da educação do ponto de vista
de mestres em condições de imprimir nova nacional. Destaca o autor o importante papel
orientação pedagógica às aulas régias, uma da educação em todas as grandes fases do
vez que sua formação estava marcada pela processo revolucionário francês – Estados
ação pedagógica dos jesuítas; a insuficiên- Gerais, Constituinte, Assembleia Legislativa e
cia de recursos financeiros, pois a colônia Convenção –, com aprimoramento da legisla-
não contava com uma estrutura arrecadadora ção revolucionária e que estabeleceu três dos
capaz de garantir a obtenção do “subsídio caracteres essenciais da educação pública:
literário” para financiar as “aulas régias”; estatal, universal e gratuita.
o retrocesso do projeto iluminista, conhe- Na Constituição francesa de 1791 –
cido como “viradeira de Dona Maria I”, em atentemos a esta data, comparativamente
decorrência da morte de D. José I, em 1777; ao Brasil – a educação foi proclamada
e, principalmente, o temor de que, através pela primeira vez como assunto nacional.
do ensino, proliferassem na colônia ideias Também ficou para a história o conhecido
emancipacionistas. Com efeito, a circulação Relatório e projeto de decreto, elaborado

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por Condorcet (1743-1794) e apresentado à em prol de uma educação pública, gratuita,


Assembleia Legislativa (1791-1792), que se obrigatória, igualitária, universal e laica,
seguiu à Constituinte. Seu famoso Rapport introduziu mudanças substantivas na orga-
foi apresentado à Assembleia em abril de nização escolar com a criação das escolas
1792 e não chegou a ser discutido, porém normais, das escolas centrais, da Escola Poli-
se tornou referência a todos os projetos e técnica, do Conservatório de Artes e Ofícios,
reformas posteriores. O Rapport de Con- do Instituto Nacional de Música etc.
dorcet condensa a concepção pedagógica Ainda que a educação pública nacional
da Revolução Francesa: a universalidade, tenha começado na França com a Revo-
a igualdade, a oficialização da educação. lução de 1789, sua efetivação ficou reser-
Todavia, nem a Assembleia Constituinte vada para o século XIX, com os sistemas
nem a Assembleia Legislativa foram sufi- nacionais de educação e as grandes leis da
cientes para implementar transformações na instrução pública de quase todos os países
educação pública francesa. Essa tarefa coube europeus e americanos, levando a escola
à Convenção, que, apesar do caos em que primária aos últimos confins do planeta,
viveu, deu os primeiros passos nessa dire- fazendo-a universal, gratuita, obrigatória e,
ção. A Declaração dos direitos do homem na maior parte, leiga ou extraconfessional.
e do cidadão incluiu a instrução como um Pode-se dizer que a educação pública, no
direito universal. Em sua redação de 29 de grau elementar, ficou estabelecida, com o
junho de 1793 consolidou que: “A instrução acréscimo de dois novos elementos: escolas
é necessidade de todos. A sociedade deve da primeira infância e escolas normais para
favorecer com todas as forças os progres- preparação do magistério.
sos da razão pública e pôr a instrução ao Passado o período revolucionário da
alcance de todos os cidadãos” (Luzuriaga, formação capitalista e da viabilização das
1959, pp. 40-8). Foi ainda durante a Conven- condições de acumulação, a burguesia pas-
ção (1792-1795) que foram aprovados vários sou a ser cada vez mais politicamente rea-
projetos e reformas para a educação nacional. cionária. Foi nesse contexto que se pode
Entre esses projetos, o mais conhecido foi entender a crise instaurada na sociedade
apresentado por Lepelletier de Saint-Fargeau francesa com a Guerra Franco-Prussiana
(1760-1793), entre julho e agosto de 1793, de 1870-1871, bem como a violenta luta
propondo instrução geral para todos, com popular contra a burguesia e os donos de
meninos e meninas educados em comum, à terra e que culminaram com a tomada
custa do Estado, devendo receber a mesma de Paris pelos trabalhadores e a instau-
roupa, o mesmo alimento, a mesma instrução, ração de um governo de caráter popular,
os mesmos cuidados. O projeto de Lepelletier democrático e participativo – a Comuna
não foi aprovado, mas passou à história por de Paris. Desse movimento resultaram
sua perspectiva revolucionária em defesa de avanços significativos para a compreen-
uma educação pública, gratuita, obrigatória, são e a luta em defesa da escola pública
igualitária, universal e laica. na França e no mundo.
Um balanço preliminar permite verificar Apesar dos limitados 72 dias de exis-
que a Revolução Francesa, além das ideias tência, a Comuna passou a ser referência

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necessária para todos os estudiosos e mili- porém, o quadro de precariedade caracte-
tantes que objetivam a superação revolu- rístico da educação básica.
cionária do modo capitalista de exploração. Com a independência política, formal-
Para seu entendimento são fundamentais mente proclamada em 1822, o Brasil se cons-
as observações feitas por Karl Marx tituiu como um Estado nacional que adotou o
sobre as grandes bandeiras educacionais regime monárquico, sob o nome de “Império
da Comuna, detalhadamente registradas do Brasil”. A oportunidade de configurar
no primeiro esboço de A guerra civil na institucionalmente o novo país, criada com
França (Marx, 1983, pp. 92-4). a instalação da Assembleia Constituinte de
No texto de Marx fica reafirmado o cará- 1823, foi abortada pelo golpe de Estado de
ter que a educação assumiu na Comuna: 12 de novembro do mesmo ano. D. Pedro
pública, gratuita, popular e voltada ao aten- I fechou a Assembleia Constituinte, outor-
dimento de todos; laica e totalmente livre gando, em 1824, a Constituição do Império.
da influência da religião, das classes e do Além disso, ainda em 1823, a lei de 20 de
Estado burguês; formativa e pautada exclusi- outubro declarou livre a instrução popular,
vamente no método experimental e científico. “eliminando o privilégio do Estado, esta-
Ademais, a educação é apontada como um belecido desde Pombal, e abrindo caminho
importante instrumento de desalienação do à iniciativa privada” (Paiva, 1973, p. 61).
proletariado. Ao contrário da educação ser Reaberto o Parlamento em 1826, em 15
meramente tratada de forma mecânica, ela de outubro de 1827 foi aprovada uma lei
é vista como uma importante ferramenta que estabelecia que “em todas as cidades,
de formação e, portanto, um instrumento vilas e lugares populosos haverá escolas
para a consolidação da revolução (Lombardi, de primeiras letras que forem necessárias”
2020, pp. 95-6). (Xavier, 1980). Pode-se dizer, entretanto,
que essa lei permaneceu letra-morta. E o
CONSEQUÊNCIAS DAS REVOLUÇÕES Ato Adicional à Constituição do Império,
promulgado em 1834, colocou o ensino pri-
BURGUESAS NO BRASIL mário sob a jurisdição das províncias, deso-
brigando o Estado nacional de cuidar desse
Retomando em linhas gerais os aconteci- nível de ensino. Considerando que as provín-
mentos no Brasil, no contexto do apogeu do cias não estavam equipadas nem financeira
modo de produção capitalista e suas grandes nem tecnicamente para promover a difusão
revoluções, como a Revolução Industrial do ensino, o Ato teve o efeito de retardar
e a Revolução Francesa, ocorreu a vinda seriamente o desenvolvimento da educação
de Dom João de Portugal para o Brasil, pública. Com efeito, as “escolas de primeiras
certamente uma consequência do bloqueio letras”, além de reduzidas em número, eram
continental decretado, em 1806, por Napo- também limitadas quanto à sua finalidade e
leão contra a Inglaterra, da qual Portugal conteúdo, como indica a própria denomina-
era “nação amiga”. Desse fato resultou a ção (Silva, 1969, p. 193). Sua precariedade é
criação de cursos superiores, antes vetados relatada pelos ministros da Instrução Pública
pela política metropolitana, não se alterando, da época, que destacaram, especialmente, a

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dificuldade de encontrar pessoal preparado entrou em vigor a Reforma Benjamin Cons-


para o magistério (Ribeiro, 1998). O ensino tant (Cartolano, 1994). Dentre as iniciativas
secundário era dominado por aulas avulsas estaduais do início da República destaca-se a
e pela instrução particular sem fiscalização “reforma da instrução pública paulista” pelo
dos órgãos públicos (Haydar, 1972). fato, em especial, de ter institucionalizado a
Enquanto o modo de produção capita- organização das classes na forma dos grupos
lista experimentava sua primeira grande crise escolares com a consequente seriação dos
estrutural, a década de 1870 no Brasil foi de estudos (Reis Filho, 1981).
grande efervescência política, social e ideo- A Proclamação da República significou,
lógica, a ponto de ser considerada a época ao menos no plano institucional, uma vitória
da “ilustração brasileira” (Barros, 1959) das ideias laicas. Decretou-se a separação
e caracterizada por “um bando de ideias entre Igreja e Estado e a abolição do ensino
novas” (Cruz Costa, 1967). É também nesse religioso nas escolas públicas. Entretanto, a
momento que teve início, de forma organi- educação popular não se tornou, ainda, um
zada, o movimento republicano (Viotti da problema do Estado nacional. Dado que no
Costa, 1979). Nesse contexto acentuou-se o Império, como regime político centralizado,
clamor pelas reformas educativas, com vários a instrução popular estava descentralizada,
projetos sendo apresentados à Assembleia considerou-se que, a fortiori, na República
Geral Legislativa visando a contornar a limi- Federativa, um regime político descentrali-
tação do Ato Adicional no sentido de que zado, a educação deveria permanecer des-
o Governo Central pudesse suplementar as centralizada. Com esse argumento se poster-
províncias na difusão da instrução (Paiva, gou, mais uma vez, a organização nacional
1973, p. 72). Destacam-se, nesse quadro, a da instrução popular, mantendo-se o ensino
Reforma Leôncio de Carvalho, promulgada primário sob a responsabilidade das antigas
em 1879, que pretendeu instituir o “ensino províncias, agora transformadas em Estados
livre” (Almeida Júnior, 1952) e o parecer- federados. Por sua vez, no plano federal,
-projeto de Rui Barbosa (Lourenço Filho, sob cuja alçada ficaram o ensino superior e
1966) caracterizado como uma proposta de o ensino dos graus inferiores na capital da
“modernização liberal conservadora” (Nas- República, sucederam-se várias reformas: em
cimento, 1997). 1901, o Código Epitácio Pessoa; em 1911,
A primeira grande crise conduziu à for- a Reforma Rivadávia Correa; em 1915, a
mação dos monopólios, ao domínio crescente Carlos Maximiliano; e, em 1925, a Reforma
do capital financeiro e a uma reorganização Luiz Alves/Rocha Vaz.
geopolítica sob a conformação do imperia- No período seguinte, enquanto o mundo
lismo. As transformações internacionais do vivia nova crise, com acirramento da disputa
capitalismo praticamente coincidiram com o imperialista, a Primeira Guerra Mundial
golpe de Estado que levou à chamada Pro- e as lutas dos trabalhadores aguçando um
clamação da República, em 1889, e à ins- período de lutas revolucionárias (das quais
talação de uma Assembleia Nacional Cons- resultou a Revolução Russa), no Brasil ocor-
tituinte – objeto de estudo minucioso de ria um processo de aceleração da indus-
Carlos Roberto Jamil Cury (1991). Em 1891 trialização e da urbanização, aumentando

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as pressões sociais em torno das políticas ao movimento da Escola Nova no Brasil
sociais, entre as quais a questão da instru- (Lourenço Filho, 1967), o que provocou a
ção pública se intensifica, difundindo-se o reação católica (Correia et al., 1931; Lima,
entendimento do analfabetismo como uma 1931); a Constituinte de 1933, da qual deri-
doença, uma vergonha nacional, que pre- vou a Constituição de 1934 (Cury, 1984), que
cisava ser urgentemente erradicada. Nesse colocava a exigência de fixação das diretrizes
contexto foram formuladas, ao longo da da educação nacional e elaboração de um
década de 1920, reformas do ensino em plano nacional de educação (Horta, 1982);
diversos Estados da federação, tendo em as leis orgânicas do ensino, um conjunto de
vista a expansão da oferta pública, ao reformas promulgadas entre 1942 e 1946 por
mesmo tempo em que a influência das Gustavo Capanema, ministro da Educação
ideias novas provocava o surgimento de do Estado Novo (Cunha, 1981).
movimentos organizados que levantaram Passada a Segunda Guerra Mundial (1937-
também questões relativas à qualidade da 45), ocorreu um novo golpe de Estado no
educação. O poder nacional, porém, perma- Brasil, adequando a política nacional à
neceu ainda à margem dessas discussões. onda democrática anunciada com o fim da
Uma segunda grande crise capitalista guerra imperialista. Essa opção significou
irrompeu no final da década de 1920 (a o perfilamento do Brasil ao bloco capita-
crise de 1929-30) que, no Brasil, acirrou a lista, num contexto de guerra fria e aguça-
disputa entre as oligarquias estaduais, com a mento da disputa imperialista. Esse novo
burguesia nacional inaugurando suas reivindi- período foi inaugurado com a Constituição
cações, levando ao golpe de Estado de 1930, de 1946, que estabeleceu a necessidade de
alcunhado como “revolução”. Efetivamente, uma Lei de Diretrizes e Bases da Educação
somente após a “Revolução de 1930” é que Nacional (Villalobos, 1969). Esta teve uma
se passou a enfrentar, no Brasil, os proble- longa tramitação marcada, na primeira fase,
mas próprios de uma sociedade burguesa pelo conflito centralização x descentraliza-
moderna, entre eles, o da instrução pública ção e, na segunda fase, pelo conflito escola
popular. Assim, em 1930, logo após a vitória particular x escola pública (Saviani, 1973).
da “revolução”, foi criado o Ministério da Acentuam-se as pressões sociais pelo acesso
Educação e Saúde, com a educação sendo ao ensino secundário (Sposito, 1984) e ao
reconhecida, inclusive no plano institucio- ensino superior (Cunha, 1980).
nal, como uma questão nacional (Cunha, Durante o regime militar decorrente do
1932). Foi então que tivemos uma série de golpe de 1964 (Cunha & Goes, 1985; Ger-
medidas relativas à educação, de alcance mano, 1993), novas reformas são encetadas
nacional: em 1931, as reformas do ministro começando-se pela universidade (Fernandes,
Francisco Campos (Romanelli, 1978); em 1975; Cunha, 1988), vencendo-se a resistência
1932, o “Manifesto dos Pioneiros da Edu- do movimento estudantil (Sanfelice, 1988).
cação Nova”, dirigido ao povo e ao governo, Na sequência, empreende-se a reformulação
que apontava na direção da construção de do ensino de primeiro e segundo graus (Cha-
um sistema nacional de educação (“Mani- gas, 1978). No conjunto, essas reformas pro-
festo...”, 1960), dando caráter programático curaram, pela via tecnocrática (Horta, 1997),

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ajustar a educação ao sistema de controle capital financeiro internacional. Para tanto,


social (Cunha, 1975) instaurado pelo regime várias reformas têm sido implementadas para
autoritário, que sentia a necessidade vicária ajustar o Estado brasileiro aos ordenamentos
de se autodenominar democrático, configu- do ideário neoliberal, tendo como foco a pri-
rando, assim, uma espécie de “democracia vatização e a desregulação. O novo ímpeto
excludente” já que, deliberada e sistemati- reformista ocorre num contexto marcado
camente, excluía significativas parcelas da pela redefinição do papel do Estado com
população do jogo político (Saviani, 1987). relação às políticas educacionais, havendo a
Com o advento da “Nova República”, substituição do Estado provedor pelo Estado
passou-se de uma visão tecnocrática, que indutor e avaliador de políticas educacionais
concentrava as decisões no vértice da pirâ- (Cabral Neto & Castro, 2005, p. 7).
mide, para o outro extremo de orientações Com isso, pretende-se que a educação
fragmentadas, justificadas pela descentra- deixe de ser uma responsabilidade do Estado,
lização, mas que acabavam sendo impostas passando a compor o comércio de serviços,
e mantidas por mecanismos também auto- com um amplo arco de negócios envolvidos:
ritários (Kuenzer, 1990). Assim, em nome construção de escolas, prestação de serviços
do combate ao autoritarismo, pretendeu-se educacionais, fornecimento de material peda-
introduzir na educação um planejamento gógico, equipamentos e mobiliário escolar
“democrático e descentralizado”, que aca- etc. Para Neves (2007) a educação escolar
bou gerando dispersão e descontrole de tem como finalidade difundir e sedimentar
recursos e justificando práticas clientelistas. nas atuais e futuras gerações a cultura empre-
Essa foi a tendência dominante no âmbito sarial, conformando a força de trabalho à
federal, devendo-se, porém, reconhecer o sociabilidade neoliberal (Neves, 2007, p. 212).
surgimento de experiências importantes Constata-se, assim, que o Estado brasileiro
de democratização em alguns estados e não se revelou, ainda, capaz de democratizar
municípios (Cunha, 1991). o ensino, estando distante da organização
A partir de 1990 até a atualidade, a de uma educação pública de âmbito nacio-
orientação neoliberal, assumida por Fer- nal. Transpusemos o limiar do século XXI
nando Collor e pelos governos posteriores, sem termos conseguido realizar aquilo que,
vem se caracterizando por políticas educa- segundo Luzuriaga, a sociedade moderna se
cionais ambíguas: no discurso reconhecem pôs como tarefa nos séculos XIX e XX: uma
a importância da educação, mas de fato pro- educação pública nacional e democrática. Ao
movem a redução dos investimentos na área contrário dessa promessa burguesa, as duas
e aplainam a ação dos negócios educacionais primeiras décadas do século XXI foram de
(e também nos demais campos sociais), o aprofundamento das políticas neoliberais na
que indica ser a “racionalidade financeira” educação. A redução do investimento público,
a via de realização de um programa de edu- a ampliação da mercadorização e da ação
cação, cujo vetor é o ajuste aos desígnios da dos grandes conglomerados financeiros nos
globalização, através da redução dos gastos diferentes níveis educacionais, e a desonera-
públicos e diminuição do tamanho do Estado, ção do Estado para com as políticas sociais
visando a tornar o país atraente ao fluxo do públicas se intensificaram com o golpe de

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Estado de 2016, o governo de Jair Bolso- ter se tornado a forma predominante e quase
naro e a pandemia do coronavírus em 2020. exclusiva de formação tanto para o trabalho
O distanciamento entre os mais ricos e os quanto para outros aspectos da manutenção
mais pobres é elucidativo do aumento das do próprio modo de produção capitalista”
desigualdades sociais, ao mesmo tempo em (Colares, 2020, pp. 285-6).
que o não enfrentamento de suas causas, do
contrário, a investida sobre as vítimas do A agenda de privatização, mercantiliza-
sistema que as gera, é revelador de como ção e empresariamento da educação já vinha
a questão é tratada no âmbito da política. ocorrendo nos governos progressistas de Lula
e Dilma, porém, após o golpe de 2016, se
“Em 2019, em plena crise econômica, que intensificou e, articulados com o neoconser-
foi utilizada pelo governo, pelos ricos e pela vadorismo, estão a colocar em risco todas
mídia golpistas, o que dá no mesmo, como as conquistas democráticas historicamente
justificativa para realizar reformas e mais obtidas por meio de lutas coletivas.
reformas e suprimir direitos dos trabalhado-
res, enquanto o patrimônio dos bilionários
brasileiros crescia 13%, atingindo US$ 549 CONCLUSÕES
bilhões, a fatia da renda dos 50% mais
pobres caía de 2,7% para 2%, aumentando Lembrando as observações de Marx e
ainda mais o fosso das desigualdades. Nesse Engels no Manifesto comunista a respeito de
mesmo ano, o número de milionários no a burguesia arrastar todas as nações para a
Brasil cresceu 19,35%, passou de 217 mil civilização, ou seja, para tornarem-se burgue-
para 259 mil, e o número de bilionários, sas, a instrução, levada a cabo pela escola,
que possuem mais de US$ 1 bilhão, passou foi o mecanismo por excelência do propósito
de 42, em 2018, para 58, em 2019” (Orso, civilizatório burguês.
2020, p. 19). Conhecendo e analisando os aconteci-
mentos na França, no Brasil e em outras
O avanço da acumulação de capitais, por nações, relativos à educação pública, nota-
um lado, alimentando o processo de finan- -se o caráter pendular ao longo da história,
ceirização do atual estágio do capitalismo, e acompanhando os vaivéns do contraditório
a pauperização das massas, por outro lado, processo das lutas entre as classes e fra-
atinge todos os setores da sociedade, produ- ções de classe, notadamente entre burgue-
zindo drásticas mudanças nas funções sociais sia e proletariado (Lombardi, 2020, p. 34).
do Estado, impelido a realizá-las como ser- Quando instauram-se processos revolucioná-
viços, mercadorias a serem comercializadas. rios, ampliando a participação e a presença
Dessa forma: social e política do proletariado e das fra-
ções de classe populares, igualmente avan-
“[...] o capital fictício e sua necessidade de çam as propostas pedagógicas e as formas
rotação em tempo cada vez mais curto viu organizadas do ensino, adquirindo um caráter
na educação uma grande oportunidade, dado público, gratuito e laico; quando, em seguida,
ser um campo em larga expansão e a escola reorganiza-se a burguesia e esta hegemoniza

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o poder do Estado, se intensifica o caráter nacional, da educação pública começam a


dual, com a defesa de uma educação pública ser nacionalmente formuladas e traduzidas
que deve coexistir com escolas privadas nos em projetos de política educacional a partir
diferentes níveis escolares, em que a gra- da década de 1870, mas só passam a ser
tuidade aparece como concessão do Estado objeto de realização prática através de medi-
aos que não podem pagar por seus estudos das institucionais após a Revolução de 1930.
e sinalizando outros pequenos benefícios Quais as determinações mais gerais, ligadas
para capitalizar apoio popular. ao contexto internacional, desse estado de
Vimos assim, em linhas gerais, como esse coisas? Qual o papel desempenhado pelas
processo se efetivou e quais as suas relações ideias pedagógicas nas vicissitudes da edu-
com a escola pública que foi sendo cons- cação pública em nosso país? Que entra-
truída e, contraditoriamente, também sendo ves têm dificultado a universalização de
desconstruída para corresponder aos inte- uma escola pública de qualidade ao longo
resses da maioria da população, nas lutas da história brasileira? Pela breve recensão
empreendidas para que a escola se tornasse acima apresentada, vê-se que os estudos
pública, universal, laica e gratuita. E nas disponíveis se centram, via de regra, nas
lutas que continuam sendo travadas para que reformas consideradas isoladamente ou
a escola pública, além das características dentro de períodos delimitados. Qual a
elencadas, seja também inclusiva, plural e razão do fascínio exercido pelas reformas
socialmente referenciada. educativas? Por que essa compulsão por
A retrospectiva traçada põe em evi- reformar o ensino no país e que sempre
dência o caráter da educação pública e a nos leva a recomeçar, sem jamais avançar
defesa da escola pública no Brasil como significativamente? Buscar respostas a estas
um problema que vem resistindo às ideias (e outras) questões é fundamental para a
e tentativas de solução. Qual a razão da compreensão e o fortalecimento da luta na
persistência histórica desse problema? As perspectiva da efetivação de uma educação
ideias relativas à organização, em âmbito verdadeiramente pública.

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