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emancipadora.
A
escola pública (estatal)1 dessa instituição é fundamental para a com-
universal, laica, obriga- preensão e defesa de uma escola pública
tória, gratuita, inclusiva capaz de realizar a função formadora como
e plural que almejamos um direito inalienável e cuja concretização
e defendemos, é um pro- decorreu da ascensão política da burguesia
duto histórico da socie- ao poder nos Estados nacionais.
dade ocidental. Carrega A escola pública, portanto, corresponde
as marcas das contradi- às lutas que marcaram a sua produção his-
ções inerentes ao desen- tórica e seus diferentes contextos. Da mul-
volvimento das forças tiplicidade de escolas concretas, buscamos
produtivas e das relações uma definição suficientemente ampla para
sociais que se estabelece- representar as diversas formas de escolas
ram ao longo do tempo e que nos desafiam a pensar sua complexi-
em diferentes locais. Não advém de ideali- dade e a afirmar que não há uma escola
zações concebidas por inspiração sobrena- idealizada, perfeita, imutável. Há escolas de
tural, mas, assim como outras instituições vários tipos e correspondentes a diferentes
sociais, é resultado da objetivação histórica projetos societários.
da atividade humana. Conhecer a história A palavra “escola” vem do grego scholé,
que significa “lugar do ócio”, concebida na
Antiguidade clássica, cerca de cinco séculos ava sendo a formação do fiel, do cristão,
antes de Cristo, resultante de uma socie- porém, com caráter mais secular, nacional.
dade já dividida em classes, tendo, de um A segunda corresponde ao processo de secu-
lado, os escravos (desprovidos dos meios larização do Estado, no qual a educação
de produção, subjugados) e, de outro, os passou a ser organizada para seus próprios
proprietários das terras (cuja origem havia fins, culminando no século XVIII, época da
sido na base de saques, guerras ou outras “ilustração” e do “despotismo esclarecido”,
formas de apropriação). Na Grécia clássica, com a educação pública estatal. Passou a
cerca de 70% da população era composta objetivar a formação do súdito, em particu-
de escravos, obrigados a trabalhar, possibili- lar a do militar e do funcionário, tendo um
tando o não trabalho e o ócio aos “homens caráter eminentemente disciplinar e intelec-
livres”. Esse “lugar de ócio” destinava-se a tual. Em fins do século XVIII, com a Revo-
uma pequena parte da sociedade e era vol- lução Francesa, os representantes do povo
tado ao aprendizado da arte da oratória, à construíram a educação pública nacional,
reflexão sobre os processos de dominação correspondente à terceira fase, que passou
e à preparação política. a ter por objetivo a formação do cidadão,
Somente na França revolucionária é que a educação cívica e patriótica do indivíduo,
ocorreram os movimentos e propostas para tendo um caráter essencialmente popular,
a consolidação da escola como instituição elementar, primário. A última e quarta
formadora da sociedade, também correspon- fase ocorre com o avanço da participação
dendo à consolidação do modo de produção do povo no governo da nação, surgindo a
capitalista2. Importante assinalar que não há educação pública democrática, caracterís-
uma única construção historiográfica sobre o tica do nosso tempo, cujo objetivo em tese
assunto. Sem preocupação tipológica com a é formar o homem completo, no máximo
periodização, mas apenas a título de exemplo, de suas possibilidades, independentemente
tomemos Luzuriaga e Cambi para entender da posição econômica e social. Em outras
os caminhos historiográficos seguidos em palavras, propiciar o maior grau possível de
diferentes tempos. cultura ao maior número de integrantes da
Luzuriaga (1959) destaca quatro fases que nação (Luzuriaga, 1959, p. 2).
caracterizam o desenvolvimento da educação Outra interpretação do mesmo processo,
pública. Situa a primeira a partir do século sem a preocupação tipológica de Luzuriaga,
XVI e a denomina de educação pública reli- foi realizada por Franco Cambi, argumen-
giosa. Diferentemente da educação medieval, tando que o fim do Quatrocentos fecha um
organizada ao amparo da Igreja, os refor- longo ciclo histórico – a “época medieval”
madores buscaram nas autoridades oficiais – e inicia-se outro, talvez ainda inconcluso,
sustentação e desenvolvimento de suas ideias e designado como “época moderna” ou
e crenças. O objetivo da educação continu- simplesmente modernidade (Cambi, 1999,
p. 195). Estimulada pelas transformações
em curso, também a educação foi se reno-
2 A análise sobre a educação na França revolucionária
vando, adquirindo as características da escola
foi baseada em Lombardi (2020). moderna: minuciosamente organizada, admi-
a missão catequética e educacional. Para observa Norbert Elias, pela qual se conquis-
tanto, Nóbrega elaborou um plano de ensino tava terras, mas também pessoas, integradas
dirigido tanto aos filhos dos colonos por- ao projeto colonizador como trabalhadores e
tugueses quanto aos indígenas. Posterior- consumidores (Elias, 1993, p. 259). Marx e
mente, tal plano foi suplantado pelo Ratio Engels, no Manifesto comunista, apresentam
Studiorum (Plano de Estudos), com o que se uma síntese lapidar do propósito “civilizador”
privilegiou a formação das elites, centrada burguês, de imposição de padrões e costu-
nas chamadas “humanidades”, ensinadas mes: “Numa palavra, a burguesia cria para
nos colégios e seminários que foram sendo si um mundo à sua imagem e semelhança”
criados nos principais povoados (Saviani, (Marx & Engels, 1982, pp. 110-11).
2007). O ensino jesuíta então implantado Não há dúvidas que no Brasil Colônia
contava com subsídio da Coroa portuguesa, o colonizador usou de todos os meios para
constituindo assim uma versão nacional da anular quaisquer formas de organização
“educação pública religiosa”. e de comportamento contrários aos seus
A fase inicial de nossa história coincide interesses. Era necessário para os fins da
com o início do modo de produção capita- colonização que buscassem formas de apro-
lista e sua ideologia correspondente, deno- ximação que resultassem na colaboração
minado como de acumulação primitiva de – espontânea ou forçada – do habitante
capital; é a pré-história do capital e do modo nativo. Para tanto era necessário quebrar
de produção que lhe corresponde (Marx, a organização econômica, social e cultu-
2013, cap. 24). Entre os vários instrumentos ral autônoma, impondo através da educa-
da acumulação primitiva, o sistema colo- ção, da tradição e do costume as regras
nial amadureceu o comércio e a navegação da dominação do colonizador que, sob as
como plantas numa estufa. Nesse sistema, condições locais, tinha as condições do
as empresas comerciais monopolistas atua- modo de produção capitalista como natu-
ram como poderosas alavancas da concen- rais e evidentes (Marx, 2013). Esse foi o
tração de capital e, para as manufaturas que objetivo de um processo educativo que, de
então floresciam nas metrópoles, as colônias modo geral, se confundia com a catequese
garantiam um mercado consumidor e uma (Paiva, 2006). “Catequese” é uma palavra
acumulação espetacular, assegurada pelo de origem grega (do verbo katechein) e
monopólio do mercado. É preciso destacar significa ensinar, educar. O termo adquiriu
que os tesouros espoliados dos continentes o sentido de instrução religiosa no início
e terras descobertos, mediante o saque, a do cristianismo, referindo-se ao processo
escravização e o roubo, eram encaminha- de doutrinação na fé. Na colonização, a
dos à metrópole, onde se transformavam em catequese era um mecanismo para demo-
capital (Marx, 2013, cap. 24). ver os nativos de suas crenças e costumes,
O projeto civilizatório burguês, sob Portu- ensinando-os a rezar e a falar a língua
gal, encontrou no Brasil Colônia um ambiente portuguesa, devotando obediência à Coroa
propício para sua implantação. Estado e através das autoridades civis e militares,
Igreja juntos na empreitada. A colonização incorporando-os lentamente ao contingente
adquiriu uma justificativa civilizadora, como de despossuídos, num processo paralelo
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