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O CONTEXTO SOCIAL E ECONÔMICO DA AGROECOLOGIA E DO COOPERATIVISMO:

AS MUDANÇAS NA PRODUÇÃO, DISTRIBUIÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO NA SOCIEDADE DO CONSUMO

Para compreender a agricultura ecológica e o trabalho


coletivo é fundamental prestar atenção aos aspectos sociais,
econômicos e políticos que influenciam o contexto em que se
desenvolvem essas atividades. Este contexto está determinado
pelas relações entre diferentes setores dentro dos sistemas de
produção e consumo, onde se relacionam a agricultura, a
indústria de agroquímicos, a indústria de transformação
alimentar, a distribuição comercial e as políticas públicas. Esse
texto analisa a evolução dos sistemas agroalimentares para
compreender as relações entre produção e consumo, e a
problemática atual que vivemos na sociedade do consumo,
problemática esta que a agroecologia e o cooperativismo
tratam de dar resposta.
Este texto é baseado nos estudos de Marta Soler Montiel,
docente da Universidade de Sevilla – do Mestrado em Agroecologia – e
da Universidade Internacional de Andalucía, Espanha. É pesquisadora
do Instituto de Estudos Campesinos da Universidade de Córdoba e
trabalha em linhas de pesquisa relacionadas com a Análise de sistemas
agroalimentares, Economia agrária, Economia ecológica e Indicadores
de Sustentabilidade.

A ALIMENTAÇÃO NAS SOCIEDADES HUMANAS


A alimentação é a
necessidade mais básica e
primária que toda a sociedade
tem que atender, e um direito
social garantido pela
Constituição Federal do Brasil
(artigo 6°, emenda
constitucional n.64 de 04/02/2010). Por isso, é importante analisar como a
sociedade organiza a produção, distribuição e o consumo de alimentos de
sua população. Esta organização é influenciada por aspectos que são físicos,
como o ambiente natural, o clima ou o tamanho da sua população, mas
também culturais e políticos, como as necessidades simbólicas e culturais,
as relações de poder, a divisão do trabalho ou as tecnologias disponíveis.
Por isso, cada cultura, em cada lugar e em cada época apresenta
necessidades alimentares diferentes. Esta mesma lógica vale não só para a
alimentação, mas para um conjunto de valores éticos e estéticos que
definem um padrão único, imposto, de como nós devemos ser.

A humanidade para saciar suas necessidades alimentares precisa respeitar os ciclos da natureza. Por isso, a
produção de alimentos é diferente de qualquer outra produção, por causa de sua base biológica.

Desde o início da agricultura no Período Neolítico (cerca de 10 mil anos atrás), os diferentes povos e culturas
desenvolveram diversas formas de se relacionar com a natureza para satisfazer suas necessidades de alimentação,
aplicando seu trabalho ao cultivo e à criação de animais. Ao longo da história, a natureza e a sociedade evoluem
juntas, ou seja, uma transforma a outra.
Durante séculos, as agricultoras e agricultores aprenderam como funciona a natureza e como interagir com
ela para obter a melhor e mais abundante colheita. Assim, as agricultoras e agricultores inventaram técnicas e
instrumentos de lavoura, a rotação e combinação favoráveis de cultivos, técnicas de manejo de insetos e doenças,
domesticação e criação de animais ou a seleção e melhoria de sementes adequadas ao seu meio e às suas
necessidades. Por sua vez, a natureza foi provendo a humanidade de sementes cada vez mais adaptadas às condições
de cada ecossistema e deu os frutos para a alimentação da humanidade. Assim, foram definidos calendários agrícolas
de acordo com a natureza e a divisão do trabalho humano, como pode ser observado no calendário agrícola de
Nijiang, Yunnan, China.
Depois da Segunda Guerra mundial, a
produção de alimentos se torna cada vez mais
dependente de novos setores industriais como a
indústria química de agrotóxicos, a indústria de
maquinário, a indústria de aditivos alimentares
(conservantes, corantes, etc.) e a indústria de
transformação agroalimentar. Por estes motivos,
ao estudar como satisfazemos nossas necessidades
de alimentação na atualidade não se pode analisar
um setor isoladamente como a agricultura ou a
indústria de transformação alimentar ou o
supermercado.

O sistema agroalimentar é entendido como “o conjunto das atividades desenvolvidas para


a produção e distribuição dos produtos agroalimentares e, em conseqüência, ao cumprimento da
função da alimentação humana numa sociedade determinada”. A idéia central do conceito de
sistema agroalimentar é a interdependência existente entre as diferentes atividades e setores
que desenvolvem a função alimentar. Já que “os diferentes setores devem ser entendidos não
simplesmente isolados, senão no contexto de suas inter-relações dentro de uma organização
econômica e social mais ampla do sistema agroalimentar”.

Podemos identificar diferentes sistemas agroalimentares, segundo o produto (o sistema agroalimentar do


leite ou da farinha de mandioca) ou segundo o espaço que nos referimos (o sistema agroalimentar acreano ou da
região Norte). No entanto, quando falamos de forma geral do sistema agroalimentar, estamos nos referindo ao
conjunto de setores econômicos e das instituições presentes em todos os casos. De fato, podemos identificar os
seguintes setores:
1 . O Setor Agrário: É onde está a agricultura. É onde se
produz alimentos frescos ou perecíveis para a alimentação
humana ou animal e como insumo para a indústria de
transformação alimentar. A maior parte da produção agrária se
destina à transformação e só uma parte muito reduzida é
consumida diretamente pela população. Um exemplo de
consumo direto pela população é a feira livre que acontece no
mercado municipal em Sena Madureira.
2 . O Conjunto de Setores de Insumos Agrários: Atualmente,
a agricultura é uma atividade muito industrializada que depende
de produtos industriais adicionais como os pesticidas, herbicidas
e fertilizantes (indústria química), sementes melhoradas (indústria de sementes e biotecnologia) ou maquinário
(indústria mecânica), além de aditivos alimentares (conservantes, colorantes, cheiros e sabores artificiais, etc.), e
embalagens, tudo isso chamamos de insumos. Muitos destes insumos são até patenteados, ou seja, não podem ser
usados ou copiados sem o pagamento a quem inventou, inclusive algumas sementes!
3. A indústria de transformação alimentar: Na indústria se
convertem os produtos agrários em alimentos não perecíveis que
podem ser armazenados, e ao mesmo tempo, são mais rentáveis para o
empresário. Algumas destas atividades, as denominadas de primeira
transformação, estão muito próximas às atividades agrárias e contam
com uma grande tradição. É o caso da embalagem da farinha, da
produção de coloral e dos doces, etc. Outras indústrias implicam um
maior grau de transformação do produto e se encontram muito
afastadas dos produtos agrários, como é o caso das comidas prontas
congeladas, os refrescos em pó ou os refrigerantes. Estas são as
denominadas atividades de segunda transformação.
4. O setor da distribuição
alimentar: É o que engloba o
conjunto de atividades comerciais
que ligam os produtos alimentares
e os consumidores e
consumidoras, ou seja, ligam a
produção e a demanda alimentar
(o que se consome). Em muitas cidades no mundo este setor está dominado por
grandes transportadoras e pelas “grandes superfícies comerciais”, que são os
hipermercados e shoppings. O mercado de Sena Madureira faz parte deste setor.
5. O setor de restaurantes e hotéis: Atualmente, as pessoas se alimentam
cada vez mais fora do lar. Por isso, este setor tem uma crescente importância na
explicação do funcionamento do sistema agroalimentar.
6. As agências de regulação: Órgãos públicos e privados que elaboram normas e leis de regulação, realizam
avaliação de conformidade da produção dos produtos para garantir sua qualidade perante padrões estabelecidos
nacional e internacionalmente. Funcionam muitas vezes como uma estratégia de propaganda para as empresas.

À medida que os mercados regionais,


nacionais e internacionais se desenvolvem e se
integram, impulsionados pelo desenvolvimento
dos novos meios de transporte, como o
transporte ferroviário e a navegação, os
sistemas agroalimentares se transformam.
Mais do que o abastecimento das necessidades
alimentares das populações locais, se procura o
máximo benefício empresarial, e a produção
agrícola se destina crescentemente à
exportação.

A INDUSTRIALIZAÇÃO AGRÁRIA:
A REVOLUÇÃO VERDE
A modernização ou industrialização da produção de alimentos foi baseada em uma mudança radical na
organização do trabalho e da produção na zona rural. Tecnologias foram desenvolvidas e utilizadas durante a segunda
guerra mundial (e em outras guerras com participação dos Estados Unidos), e passaram a ser utilizadas na
agricultura, em um período que foi chamado Revolução Verde:
• A mecanização das tarefas agrícolas: O aumento do custo da mão de obra (devido ao êxodo rural) incentivou a
substituição de mão de obra humana por máquinas, impulsionando a mecanização das tarefas agrícolas. A
mecanização dava lucro principalmente nas grandes explorações em monocultura, que ganhavam a competição com
a produção familiar, que não teve acesso a esta tecnologia. Este processo de mecanização agrária impulsionou o
desenvolvimento da indústria de maquinário agrícola.
• A substituição das sementes locais pelas sementes “melhoradas”: A aplicação
das descobertas científicas da biologia em cruzamentos entre espécies de plantas
criaram novas variedades produzidas de forma industrial, o que significava um
negócio empresarial. Nas décadas de 1940 e 1950 iniciou a produção industrial de
sementes (ou variedades) que tinham alta resposta aos fertilizantes agroquímicos,
que geravam fortes aumentos de produtividade; a resistência a determinadas
pragas e determinados herbicidas, a adaptação à mecanização, a adaptação a
diferentes solos e climas
e a homogeneidade e
uniformidade da produção.
• O consumo de agroquímicos: O crescente consumo de
agroquímicos foi muito unido à difusão das sementes
“melhoradas”, que se caracterizam por sua alta resposta a
estes produtos. No entanto, a combinação de fertilizantes
e irrigação não só estimulava o crescimento das colheitas
senão também o das doenças, por isso as necessidades de
herbicidas também aumentaram de forma acelerada. A
isso se unia que as pragas eram atraídas pelos
monocultivos.

As sementes modificadas fazem parte de um pacote tecnológico inseparável no que se incluem a


fertilização química, o uso de herbicidas e inseticidas químicos, a mecanização e a irrigação. Tecnologias todas
produzidas de forma industrial e externas ao setor agrícola, às quais não têm igual acesso todos os agricultores e
agricultoras. Por causa do alto custo desta tecnologia quem teve mais acesso e mais benefício foram os grandes
proprietários. Acelerou-se assim o processo de êxodo rural das famílias de pequenas propriedades.

A DIVERSIDADE COMEÇA NAS NOSSAS MENTES


A INDUSTRIALIZAÇÃO DA PRODUÇÃO DE ALIMENTOS
A chegada da energia elétrica e das
geladeiras aos lares, junto com outros
eletrodomésticos, contribuiu para a industrialização
alimentar, sobretudo a partir da crescente
incorporação das mulheres ao mundo do trabalho. A
mudança no trabalho das mulheres aumentou o
consumo de alimentos industriais não perecíveis,
enlatados, congelados e embalados de rápido
preparo. Assim foram criados novos ingredientes e
aditivos industriais produzidos em massa
(conservantes, estabilizantes, espessantes, corantes,
sabores artificiais, etc.). Assim, na industrialização
alimentar houve uma criação de alimentos
“fabricados”.
Desta forma, a industrialização alimentar
transformou radicalmente o conteúdo e o
significado da alimentação, separando-a da
“natureza”. Houve uma mudança da alimentação
muito regional e baseada na transformação diária
de produtos frescos, para uma alimentação
crescentemente industrializada com uma presença cada vez maior de novos alimentos e alimentos mais elaborados,
como produtos enlatados, congelados ou pré-cozidos. A indústria alimentar se converte assim neste período no
setor dominante na organização dos sistemas agroalimentares, pondo de lado o setor agrário, que ocupa uma
situação cada vez mais submissa. Em 1973, em países como a Inglaterra e Estados Unidos, entre o 64 e 65% do valor
adicionado no preço do alimento estava concentrado nas indústrias de transformação e as atividades de
comercialização.
A indústria alimentar no mundo começa a se concentrar em poucas empresas multinacionais. Um exemplo
do crescente poder destas empresas sobre o sistema agroalimentar é o caso da Unilever, que em meados dos anos
oitenta controlava um terço do mercado mundial de óleo e gorduras vegetais e era proprietária de mais de 90.000
hectares de plantações em seis países. A alimentação deixou definitivamente de ser uma atividade desenvolvida no
âmbito do lar, para se transformar em um “um setor alimentar crescentemente industrializado e capitalizado que
utiliza insumos para a produção de bens não perecíveis”. Veja algumas das marcas de produtos da empresa
multinacional Unilever:

A partir deste momento, os alimentos se convertem num produto industrial não perecível voltado para o
lucro e o consumismo. Os alimentos se separam de seu valor de uso, satisfazer a necessidade biológica da
alimentação, para transformar-se numa mercadoria.
Vale a pena ressaltar que o consumo de alimentos tem um limite biológico, não se pode comer mais do que o
corpo aguenta, o que marca um claro limite às possibilidades de expansão dos mercados alimentares.
Esta situação estimula a partir dos anos oitenta a mudança
da produção para alimentos menos nutritivos, mas mais
apetecíveis no ponto de vista do consumo. Claros exemplos são os
refrigerantes, os biscoitos, os aperitivos, ou a comida rápida,
também denominada “comida lixo”. Nos países pobres, onde as
possibilidades de acesso a uma alimentação sadia não estão
garantidas para toda a população, aumentam as diferenças entre
as pessoas que passam fome e as que têm acesso a uma
alimentação industrial.
A partir da década de 1980 se produz uma importante
modificação na organização do sistema agroalimentar, onde as
novas tecnologias da informação vão desempenhar um papel
central. Por exemplo, o supermercado controla o que é mais
vendido, e depois de analisar esta informação, a transmite aos
centros de produção. Este papel estratégico da distribuição
comercial se reforça, já que são os distribuidores e, sobretudo os
supermercados, que decidem que produtos chegam ao consumo.

A IMPORTÂNCIA ESTRATÉGICA DA DISTRIBUIÇÃO COMERCIAL

As novas condições dos mercados obrigam as empresas


industriais a conhecer perfeitamente as mudanças e as tendências na
demanda de consumo, uma função que só a distribuição comercial
pode realizar, pois é a que se relaciona diretamente com o consumidor.

Outro fator que explica o crescente poder da distribuição


comercial é que é a distribuição comercial que controla o acesso ao
mercado. Assim, de uma oferta de muitos produtos possíveis de se
vender, um supermercado seleciona aqueles que vai colocar na sua
prateleira. Assim, a escolha entre uma marca e outra na verdade é uma
ilusão, pois não temos poder de decidir o que consumimos. Além disso,
as vezes consumimos determinado produto apenas por estar na
promoção ou por uma propaganda chamativa, ou seja, o supermercado
além de conhecer de perto a demanda de consumo, também é capaz de
criar uma nova demanda, uma necessidade simbólica.

Estas novas funções estratégicas da distribuição comercial


causam uma profunda reestruturação desta atividade nos países
industrializados onde se concentra a capacidade de compra e, por tanto,
o consumo. Desde princípios da década de 1980 até a atualidade se
fortalecem um número reduzido de grupos empresariais multinacionais que desenvolvem as novas e grandes formas
comerciais como hipermercados, shoppings ou franquias. Estas novas formas comerciais implicam uma
transformação radical na atividade comercial que agora se caracteriza pelo uso das novas tecnologias da informação,
pelo funcionamento em rede, pela articulação com a indústria de produzir conforme se vende, pela minimização dos
custos de armazenamento, desfrutando das possibilidades de rentabilidade que isso oferece.

Faz poucos anos, na Índia se cultivavam milhares de variedades locais de arroz adaptadas às condições de
cada vale. Atualmente pouco mais de uma dúzia de variedades ocupam 75% das terras. Desde Malásia a Ruanda os
camponeses semeiam soja Dalmetto, no Oriente Médio a metade da colheita é de cevada Beecher e OP25 e 70% do
trigo é das variedades Mexipak e Sonalike. Tradicionalmente, a família camponesa semeava em seus campos
diferentes variedades locais de cultivo de
forma que tinha assim uma garantia de
produção mínima em caso que uma
praga ou doença atacasse a uma
variedade. A perda dessa diversidade
genética se traduz em maiores riscos de
destruição da colheita em caso de pragas
ou doenças específicas.

Existe um grave problema:


quando se extinguem variedades
tradicionais, as comunidades perdem
um fragmento de sua história e sua
cultura. As espécies vegetais perdem um
fragmento de sua diversidade genética.

As gerações futuras perdem algumas opções e a


geração presente perde confiança em si mesma. O tipo de
semente que semeia a família camponesa determina em
grande parte suas necessidades de fertilizantes e pesticidas.
A semente influi na necessidade de maquinário e com
freqüência opina qual é o mercado da colheita, e qual é o
consumidor final. As comunidades que perdem variedades
tradicionais, que durante séculos foram adaptando às suas
necessidades, perdem controle e se fazem dependentes, para
sempre, de fontes externas de sementes e dos produtos
químicos necessários para cultivá-las e protegê-las. E você
lembra de ter visto na merenda escolar de Sena Madureira o
óleo de soja transgênica da Bunge?

EXERCÍCIOS

1. Durante a leitura, sublinhe as palavras que você desconhece o significado. A seguir, escolha 10 palavras e
elabore o seu dicionário do texto.

2. Responda:

a. Por que é importante estudar como uma sociedade organiza a produção, a distribuição e o consumo de
alimentos?

b. O que é um sistema agroalimentar?

c. Quais as atividades desenvolvidas na distribuição alimentar?

d. Como é a produção de alimentos segundo o modelo da “Revolução Verde”?

e. A frase “Sorria! Você está sendo manipulado” se refere a que assunto abordado no texto?

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