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SENETT, Richard.

A corrosão do caráter: as consequências pessoais do trabalho no novo


capitalismo. 21ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2019.

Na obra intitulada “A Corrosão do caráter- consequências pessoais do trabalho no


novo capitalismo”, o autor Richard Sennett, traz um texto fluido que aborda questões teóricas,
estatísticas e históricas, a respeito do trabalho no novo capitalismo e em como isso influencia
na construção do caráter e das narrativas pessoais.

Como bem esclarece já nas páginas iniciais, o autor faz uma abordagem empírica,
trazendo situações reais para demonstrar e analisar linhas de raciocínio teórico, não apenas
suas, mas de renomados teóricos como Weber, Adam Smith, Diderot, Rousseau, John Stuart
Mill, entre outros. A abordagem textual de Richard Sennet se parece com a de Michael
Sandell na obra “Justiça, o que é fazer a coisa certa?”, enquanto o conteúdo do livro, dialoga
bem com as obras e teorias do sociólogo Bauman e sua sociedade líquida.

O livro é dividido em 8 (oito) capítulos, e poderia ser chamado de “obra de uma


vida” em face de uma linha do tempo construída e desenvolvida num lapso de mais de 25
(vinte e cinco) anos, considerando os intervalos de tempo entre as entrevistas feitas,
conhecimentos e análises adquiridos; em adição, é possível afirmar que é uma obra atemporal,
já que o livro lançado originalmente em 1998 (mil novecentos e noventa oito), cujos
conceitos, provavelmente escritos em meados dos anos 90 (noventa), são aplicáveis a
realidade de muitos povos ainda no ano de 2020 (dois mil e vinte).

Nos primeiros capítulos do livro o autor aborda a questão de um novo capitalismo,


o capitalismo flexível, e traz alguns questionamentos iniciais a respeito do “eu” inserido nesse
novo modelo social, por exemplo, sobre como seria possível decidir o que tem valor
duradouro em nós numa sociedade impaciente e que se concentra no momento imediato.

A ideia de um novo capitalismo sugere uma mudança que é desmistificada pelo


autor ao longo do livro: não seria uma verdadeira mudança, mas apenas uma maneira um
pouco diferente e mais desvantajosa de fazer quase o mesmo, dá-se a ideia de que existe
menos poder e mais liberdade, bem como um fortalecimento do espírito de equipe, no entanto,
a verdade é que isso não acontece, há apenas a ilusão, pois as formas de poder e controle
passam a ser menos visíveis para o empregado, embora mais fortes para o alto escalão.
As estruturas de poder no novo capitalismo abandonam as estruturas piramidais e
passam a adotar as redes, ou seja, na estrutura piramidal, enquanto as empresas tinham
estruturas bem definidas de poder, e também de ascensão e funcionamento empregatício, no
novo capitalismo, a rede é um modelo que “não tem regras nítidas, fixas e as tarefas de
trabalho não são claramente definidas, a rede redefine constantemente sua estrutura” (pág.
23).

E o autor explica que “o sistema moderno de poder que se esconde nas modernas
formas de flexibilidade possui três elementos: a reinvenção descontínua de instituições, a
especialização de produção e a concentração de poder sem centralização” (pág.54), e assim é
possível ver empresas com objetivos que, além do lucro e da necessidade contínua de
mudança, são pouco definidos, principalmente para os funcionários e equipes de trabalho.

Nesse ponto do livro, há uma abordagem ordenada ao que é o objeto central da


obra, um foco nos efeitos desses modelos de trabalho do novo capitalismo para esses
funcionários e suas equipes, quais efeitos têm, o novo capitalismo e suas novas formas de
poder no campo de trabalho, dentro da vida dos indivíduos, observando especialmente sua
construção do caráter e suas narrativas pessoais?

O autor utiliza a história de alguns indivíduos para ilustrar os pensamentos a


respeito de tal problemática, e a maior angústia dos leitores provavelmente é ter acreditado
que a realidade descrita no livro funcionava perfeitamente bem em sua vida, e enfim
descobrir, que é na verdade uma prisão que traz uma série de dificuldades para toda a vida
pessoal.

Ao longo da leitura, o autor expõe quais seriam as principais consequências dos


modernos campos de trabalho, como dificuldade em construir laços fortes de amizade e
companheirismo, aspecto fugitivo da amizade e comunidade, dificuldade em construir uma
narrativa da própria vida e história, sensação de estar constantemente em teste e à deriva, falta
de confiança em si mesmo e nos outros, não encontrar razão que fundamente ou justifique a
própria existência, e mais um conjunto de coisas que desencadeiam no que o autor chama de
“corrosão do cárater”.

Há também a abordagem sobre duas diferentes formas conceituais de capitalismo


(anglo-americano e reno), automação das atividades econômicas e especialização da mão de
obra, e como os próprios indivíduos se enxergam dentro da sociedade considerando as
divisões de classes sociais. É constantemente reafirmado na obra que o ambiente de trabalho,
no contexto abordado, é um ambiente reinventado a todo momento, sem rota fixa ou pré-
determinada.

A partir disso, é possível visualizar que o trabalhador, seja especializado ou mera


força de trabalho braçal, se sente constantemente testado, e é incapaz de notar seu real valor
no trabalho. O autor destaca o fato de que a força de trabalho menos especializada sempre
conviveu com certa instabilidade, mas o problema se agravou para todos os níveis de força
trabalhista, e a compreensão do trabalho bem como a identidade de trabalhador passou a ser
superficial para a maior parte.

Há a convivência constante com o risco, não só das mudanças, mas da demissão,


da inserção em um meio de trabalho que não faz a força empregatícia se sentir necessária, de
forma que se encontram ausentes o senso de lealdade e de pertencimento ao local de trabalho.
O autor explica que isso interfere na construção da narrativa da vida, do eu e do caráter, pois
impede que haja continuidade nas histórias dos trabalhos, tanto porque as pessoas não ficam
muito tempo no mesmo trabalho, ou porque todos os dias ocorre uma reinvenção onde
trabalham.

O autor ainda afirma que “no capitalismo flexível, a desorientação envolvida no


marchar para a incerteza se dá de três formas específicas: por mudanças laterais ambíguas,
perdas retrospectivas, ou resultados salariais imprevisíveis” (pág. 100), em suma, o
empregado realiza pseudo-mudanças, perde mesmo quando crê que realizou uma mudança ou
só consegue notar as próprias perdas no futuro ao invés de prevê-las antes da tomada de
decisão e análise de riscos.

Até aqui, todas as palavras escritas na presente resenha, são desencorajadoras aos
trabalhadores e ingressantes do mercado de trabalho, e olhar para essa realidade pode parecer
uma cena de arrebatamento, onde se vende a narrativa do “eu” em troca do pão, do iphone e
de uma Eurotrip. Richard Sennett, explica então, que de fato é como se houvesse uma “venda
do eu”, pois as pessoas passam a ignorar a própria narrativa, ocupando um estado de “homem
irônico”, onde não enfrentam os problemas e os fracassos.

Esse não enfrentamento se dá porque as pessoas não levam a sério os problemas e


fracassos, e não veem razão para fazê-lo, porque vivem em uma mudança tão constante que
podem abandonar os erros ao invés de lidar com eles, e a própria experiência pode ser
descartada visto que é a novidade sempre algo a ser valorado. E em dado momento do livro o
autor afirma que “o regime flexível talvez pareça gerar uma estrutura de caráter
constantemente em recuperação”.

O contexto é de uma produção máxima e proatividade sempre, de maneira que


aqueles que demonstram fraquezas são vistos como “parasitas sociais”, principalmente com a
automação generalizada se aproximando. E assim, se constroem culturas e metas de
être(ser/estar) e faire (fazer) quase inatingíveis, retirando a possibilidade dos indivíduos se
construírem enquanto seres humanos e enquanto comunidade, pois estão a todo tempo
correndo, agindo, sendo, estando e fazendo, o gerúndio é constante, pois a preocupação é com
a narrativa do agora.

E apesar dos ambientes de trabalho parecerem solos hostis que apenas destroem
os caracteres dos indivíduos, existem os ditos “ganhadores”, aqueles que não apenas
sobrevivem as flexibilidades e mudanças, mas se sentem confortáveis nelas, sendo capazes de
explorá-las e desfrutarem-se delas; aqueles que habitam confortavelmente a desordem
econômica, mas que temem o confronto organizado e o ressurgimento dos sindicatos.

Num primeiro momento o leitor pode pensar que o professor Richard Sennett está
apenas construindo uma teoria crítica e apontando consequências do novo capitalismo, dos
novos modelos de trabalho, e das novas estruturas de poder, mas é mais do que isso. Ao fim
da obra fica claro que a abordagem dos diversos aspectos, dados e teorias, tem como
fundamento mostrar como isso tudo incide na qualidade de vida dos indivíduos, em suas
condições de seres humanos e seres sensíveis, enfatizando que tais regimes “não podem
preservar sua legitimidade por muito tempo” (pág.176).

A mensagem é clara: as mudanças propostas pelos novos modelos de trabalho


parecem pouco bruscas e pouco visíveis nos dados e estatísticas empresariais, mas são muito
visíveis no dia a dia, nos lares, e nas vidas das pessoas, interferindo não apenas em como se
sentem, mas em como passam a se comportar em suas vidas; as vivências de trabalho as
ensinam a adotar um comportamento X ou Y, e enfim, ilusoriamente sob falso preceito de
liberdade, as pessoas se tornam, a cada dia, um pouco menos corajosas e menos livres.

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