Você está na página 1de 238

Ou-Ou

Um Fragmento de Vida
(PRIMEIRA PARTE)

S0REN KIERKEGAARD

. ![
Relógio D' Água Editores Soren Kierkegaard
Rua Sylvio Rebelo, n," 15
1000-282 Lisboa
tel.: 218 474 450
fax: 218 470 775
rclogiodagua@rclogiodagua.pt
www.relogiodagua.pt

Título: Ou-Ou. Urn Fragmento de Vicia - Primcira Parte


Título original: E11te11 Eller. Et Livs-fragment. Ferste Deel (1844)
Ou-Ou
De acordó corn a edi91ío Seren Kierkegaards Skrifter. vols. 2 e K2-3
© S91re11 K ierkegaard Forxkningscenterct , Copen haga. 1994.
Um Fragmento de Vida
O S¡;¡re11 Kicrkegaard Forskningscenrcr é apoiado pela
Fundacñc Nacional Dinamarquesa para a tnvcstigacáo Primeira Parte
Autor: Sercn Kicrkcgaard
Traoucño do dinamarqués, introducño e notas: Elisabelc M. de Sousa
Coordcnacño editorial: Pia Sefolt. Pedro Calafate,
José Mi rancla Justo e Elisabctc M. de Sousa Traducáo do dinamarqués, lntroducáo e Notas de
Rcsponsabilidade científica: José Miranda Justo e Elisabctc M. de Sousa Elisabctc M. de Sousa
Revisño do texto: Anabela Pratcs Carvalho
Capa: Carlos César Vasconcelos (www.cvascoucelos.com)
sobre fragmento de Sophienliotm, de J. L. l.und

~ Rclógio l)' Água l:!ditorc~ . Janeiro de 2013

Edi9ao feita co111 o Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e com Seren


Kierkegaard Forskniugscerucret da Universidade ele Copenhaga. Por protocolo assinado
entre as duas insriruícócs. o SKrC ceden no Cf'Ul. os dircitos sobre a utilizucflo da
ecli91ío dos Seren Kierkegaards Skrifter e dos respectivos aparatos críticos.
O Centro de Filosofía da Uuivcrsidadc del .isboa é upoiado no ilrnbito do Programa
ele Financiamcnto Plurianuul das Unidades de l&D da Fundacño para a Ciencia e a
Tccnologia (fCT). que se cuquadra no Programa Operacional Ciencia, Tccnologia,
lnovacño (POCTI). Este Programa insere-se 110 111 Quadro Comunitário de Apoio e é

co-Iinanciudo pelo Governo Portugués e a Uniiio Europeia, através do Fundo Europeu


para o Desenvolvimento Regional (PEDER).
A presente traducáo Ioi financiada pelo Danish Arts Council (Statens Kunstrád og
Statens Kunstfond).
STATENSA
KUNSTR
<
IMNl\11
O :\l{'l'I OLN< 11

Encomendé os seus livros em:


www.relogtodagua.pt

ISBN 978-989-641-318-5

Composicño e paginacño: Relógio D'Água Editor~'


lmprc:-.•il11: Guide 1\r11:~ Grál icas, Lda.
Filo .ofia
~-
'/

Índice Gcral

introducño 9
Num liclitorial 17

ll ( l11 Ou. Urn Fragmento de Vida - Primeira Parte 2.1


INTRODU\:AO

Por ocasiño da traducáo portuguesa de Ou-Ou


Primeira Parte

(Ju 011. Um Fragmento de Vida é uma obra impar da literatura e da


/1111,w~//(/ ocidentais, a todos os ntveis e vista de todos os ángulos; ruio [osse
11 r l1<·1111s1a11cia de, na Europa de entáo, como na actual, a llngua dinamar-
1¡111•.w [irar submersa por outros idiomas dominantes, e cer1U11111.n1e que
/1•1 h¡ ,1id11 reconhecida universalmente como um ckissico da literatura e da
/1/11,w~/10 110 geraciio seguinte ao seu aparecimento, A consciencia plena por
¡1111 t1• do sen autor de que assini é constituí, aliás, um dos seus intuitos, se
11tlr1 1·011/( ssos, pelo menos explicados e demonstrados ao longo da obra.
1

\li.110 110 conjunto da produrlio de Kierkegaard, Ou-Ou. Um Fragmcn-


t11 d1· Vida introdu; a esnuigadora maioria dos conceitos e categorías que
o /i/11.1<d(, desenvolverá posteriormente e, para citar apenas alguns, encon-
f11111111,1 rtqui o estético e o ético, o ético e o religioso, o desespero e a espe­
' uuc«, o amor eni todas as suas fases e modalidades, os diferentes tipos e
ust» do peusamento, a possibilidade e a realidade, a escolha, a liberdade,
u lr'('Ot'fla('ÜO e o esquecimento, e o instante. A obra confere, além disso,
11111 110110 1w110 a outros conccitos e caiegorias já apresentados em obras
111111•1 iore», tais como a ironia e o interessante. Mas, sobretudo, desenha as
/11111/1•im.1· da problemática kierkegaardiana de uma maneira magistral.
/11 1•11</o cotn que, a partir da upresenuuuio de «um fragmento de vida» que
r vlvulo sob formas aparentemente exclusivas, irrompa a apresentacdo da
1•11sr1·11('ia humana com todos os seus cambiantes, passando assim a cons-
11111i1 o verdadeiro pano de fundo da discussiio dos conceitos e categorias
ntras mencionados, e de outros que sdo debatidos coma mesma intensida-
tk: lttosofico e literária; entre estes, contam-se o ácio e o tedio, o desejo, o
r1 rt>:ico. o cómico. o musical, a morte. o demoniaco, a par de um conjunto
i/1• 1'r•111i11w11to.1· que véeui agora reconhecido o seu papel determinante na
r/1•/111irr10 do que r! o humano, tais como a seducüo, a mágoa, o pesar, a dor,
11 dispol'i('(io; a c1111izc1rl!', o t111fi1Íl'lio. T11do isto é levado a cabo com urna
10 l 1111 otlu~·uo
l 111 Ot1, lJ111 hag111en10 de ida 11

qualidade literária primorosa que realce um movimento de peusamento


un • dr S. A ierkegaard. Do ttudo da segunda obra, Sobre o Conceito de
que ora surge centrípeto, ora surge centrifugo, o tuda que é afina! impres-
111111111 ~·111 'onsruntc Referencia a Sócrates, e obviamente do seu conteüdo,
cindivel para que Ou-Ou. Um Fragmento de Vida seja irrepetivel, exac-
111111/11 se f<•111 retirado, mas interessa-nos aqui reter apenas o movimento de
tamente urna das condiciies que seráo anunciadas no capiutlo do erótico-
¡11•11M11111•1110 que este IÍtulo encerra 110 fórmula «em constante referencia»,
-musical como decisivas para que a obra de arte possa ser considerada um
clássico, 111r> /ll"O¡J1·io de Kierkegaard em todas as fases da sua produciio como autor.
Ow, u partir de Ou-Ou. Urn Fragmento de Vida, a constante referencia
Olhemos entiio mais de perta esta obra, cuja primeira parte surge agora
¡/1• A ll'tkeRaurd passa decisiva e incisivamente a ser ele práprio, na sua
traduzida em língua portuguesa.
1¡1111/1(/(ld<' de autor de autores, na sua natureza multíplice, cuja unidade
As duas partes de Ou-Ou. Urn Fragmento ele Vida. publicadas a 20 de
/''' 11'11 por es/e tipo de auto-referencialidade, entre outros aspectos. Esses
Fevereiro de 1843 em Copenhaga, vieram a fume com um pseudánimo
1111111w11tos de refercncialidade concretizam-se, designadamente, no modo
como editor, Víctor Eremita. e outros dois como autores de cada uma das
1 1111·111o e exponencial como Kierkegaard concretiza a autoconsciéncia de
partes, o autor A na Primeira Parte, e o autor R na Segunda Parre. Quatro
11 tlo« románticos, [á que sente tudo de muitas maneiras. e sentiré aquí ver,
días antes, havia saldo um pequeno volume, Dois Discursos Edificantes,
11111•i1 e pensar, para partir rumo a urnaforma de pensamento que irá pro-
assinado «S. Klerkegaard», o pritneiro do conjunto de seis do mesmo teor
e com títulos semelhantes que acompanharam a publicacüo das obras as- i;11•1,111•0111e11te cw encontro dos caminhos de que é./eita a modem~dade. _
(11· doi.1· aspectos salientados nos t(rulos das d11as obras anterwre.1· dao
sinadas por pseudánimos nos anos de 1843 e 1844. Se lembrarmos agora
1i:1utl11w11re 11m novo contorno ao n.ome do ediwr. qua1110 mais nüo seja.
que Kierkegaard partiu para Berlim a 25 de Outubro de 1841, menos de
¡111/Y¡11e obrigam. a questionar o epÍle/o de eremita, já que .wzinho n.o mun­
um mes apás defendera sua dissenacüo para o grau de Magistcr (publica-
1/n 11i11g11é111 conquista viu5rias, e ninguém sai vitorioso sem ter derrot~do
da a 16 de Setembro, e defendidaa 29) e, ainda, que é conhecida a data de
11111 i11i11iifiO. Ou-Ou. Um rragmento de Vida é entüo o ponto de parrida
conclusüo do «Prefacio», tl saber. Novembro de 1842 (Pap. /JI B 189),
Kierkegaard parece nüo ter andado multo longe da verdade quando, em ¡1t110 aquí/o que Kierkegaard designou como «a minha actividade con'.o
o111or», 11111a afirma{:lio que desde logo nos leva a colocá-lo na comµanhia
1846, deixou anotado que Ou-Ouflcara pronto em onze meses (Pap, VII
¡/1• 011rros aut~res. nos qua is se englobamos múltiplos pseudón.imos kierke-
A 92). Escrever urna obra téio longa e tilo complexa como esta, a par dos
dois mencionados discursos, em rilo curto espaco de tempo, parece. por si J:"urdianos, mas também. todos os outro.1· de que eles se.fa.zem_ac01~1pan/Jar,
sá, justificar a escolha do nome de Yictor Eremita para pseudánimo do
11fl'llde11do a densidade e ahundtmciade alusties e de c1tac;oes directa.~ e
editor. Mas talve; a vitoria deste editor nao tenhu sido obtida de uma ma- 11ulin•c1as constantes da escrita kierkega.ardiana. Nao é, portan/o. por se
neira nem tiio fulgurante, nem táo sozinha. De facto, vários estudos tém c•11cr1111rar sozin.ho que Víctor vence; como concretizará entao esse deside-
1 (l/o df' a/canrar a vitória por si e para si? A1ravés da vislJo, enquanto
vindo a estabelecer a dataciio da génese dos escritos reunidos nas duas
ollwr. enquanto acto de ver em todas as suas vertentes e corn todas as suas
partes. apontando para a utilizacüo em cerca de metade deles de diversos
esbocos e de notas anteriores, que entretanto nüo chegaram até nás, Nesse im¡!licaroes: ver do ponto de vista sensível e do ponto de vista raci~na.l, e.
sentido. a entrada do diario de 1846 é tdo-somente uma meia-verdade; a 11('.l'la dualidade e dup/icidade, nüo deixar passar nada do que está a vista,
composicao da obra terá pois sido concluida nesse espaco de tempo, mas 11crificar, c0t1fror11ar.rnmellu.m<,:ase diferen<,:as, ver de perto e. ver de l~11ge,
,.,·crutinar, olhar de relance, trespassar com o olha1; espreitar - e esta
este período mio é necessariamente coincidente com a escrita dos diferen-
tes capítulos, ou de partes de capítulos, de Ou-Ou. aliú.1· uma das perdas inevitáveis na tradurilo portuguesa e, de um. modo
Rera/, em todas as outras, visto que o que acabou de ser enumerado é de-
Tendo isto ent conta, será sem dúvida mais razoável e produtivo olhar
110/ado em língua dinamarquesa, pelo verbo «at see», ou seja, «ver», e
Ou-Ou. Um Fragmento de Vida no conjunto da obra de Kierkegaard
.1·t 11s d;rivados;se a isto juntarmos um conjunto de termos da mesma área
como sendo um marco monumentalque, nessa sua monumentalidade, assi-
1

nata simultaneamente um ponto de chegada e um ponto de partida. Ponto semántica, profusamente ocorrentes na obra, tais como, «hl ik)>: i. e.,
de chegada de um. autor que deixou para trás duas obras publicadas, am- «olhar», e «0Íe», i. e .. <<olho», os quais, uma vez justapostos, formam
<<0ieblik», i. e., «instante», facilmente constatamos que estamos dian.te de
bas assinadas no seu proprio nome. O título da primeira, de 1838, sugere
que quem. a escreveu está nao sá moribundo, mas tambéni contrariado:
uma ohra em que tudo o que se diz depende do que está em jogo nos modos
e nos tempos de «ven> e de «observar» ( «at betragt.e»). A esta visii.o e a
Dos Papéis de Alguérn ainda cm Vicia, publicado contra a vontade do au-
este observa1; junta-se o ouvido e o escurar, que também se desdobram le-
12 l 111 roducflo 13

xicalmente, embora nao de maneira tilo pródiga, fazendo entdo com que 1111. ln¡ 11111rr1111os oí trotados quatro dos mais significativos fios condurares
Kierkegaard seja muito provavelmente o primeiro dos autores que, culmi- t/1• ( )11 Ou, o saber, o representacdo e o apresentacdo, a imediaticidade e
nando em Proust, investiriio no ouvido o magno atributo que estava reser- 1111•/fr.1rto. os quais sc7o [ulrrais, por exemplo, para a distinciio entre o Don
vado el visüo, designadamente, a certificaciio da verdade. 1111111 11111.1·ical e o protagonista de «Diário do Sedt;tor» e, no mito de Don
Assim, ao longo dos dois volumes de Ou-Ou. Um Fragmento de Vida. 1/11111, para o entcndimento das configuracées do herái don-juanesco, quer
sobressai progressivamente que nao se trata de expor fragmentos de vida 110 10111<111tis1110 quer posteriormente.
em antinomia; é o «Ou=Ou» que em si constitui umfragmento de vida; a 0,1 quatro capitulas que constituem a parte central da primeira parte de
vida é entiio apresentada ao leitor em duas partes narradas segundo a fo- ( >11 Ou. Um Fragmento de Vida perspectivam a critica de teatro e a aná-
catizacao de dais autores diferentes, urna estrategia que permite que seja 1/,\1' litcrária a partir de categorías elou conceitos filosáficos, relacionados
devolvida ao leitor a disjunciio que permanentemente habita a existencia 1//11(/o c·o111 dispostcoes e ambiéncias diferenciadas, com tres deles curiosa-
do homem face a muitos dos conceitos, categorías e sentimentos atrás 11w111c• dirigidos a uma irmandade de morfos. No capítulo «0 Reflexo do
mencionados, os quais constituem, mais do que o teor da obra, os setts fi'llJ.iirn A111ir:o 110 Trágico Moderno», debatem-se problemas da poética do
protagonistas; u disjuncáo, porém, oo ser devolvida, surge potenciada: /111¡.:wo. de Aristáteles a Hegel, estabelecendo-se a diferenca entre o herái
para o leitor, a obra constitui-se como um fragmento dama propria vida, t11í¡.:1co untigo e o herái trágico moderno através da análise da presenca
e esquecé-la equivalería inevitavelmente a esquecer umfragmento da s110 ''" do tutséncia de culpa, e da diferenca entre o pesar e a dor. No capítulo
propria vida. Sllhuett)«. Passatempo Psicológico». duas perso11agens de Goethe (Marie
Atentemos agora na estrutura capitular da primeira parte de Ou-Ou. l•1•t111111urc//(/i,,· de Clavigo e Marga rete de Faust), juntamente com Donna
Um Fragmento de Vida, na confessa ambicüo de conseguinnos ser sufi- I !Piro rft• Don Giovanni de Mozart, teslam o que se discule na seq:r7o ini-
cientemente sucintos paro que o leitor nao deixe de fruir integralmente a ('/(I/, i. <' ., o exequibilidade de uma representarüo estética do conjlito inte-
apresentacüo de Víctor Eremita no «Prefacio», o qua! é em si um extraor- 1 /111 t!u 1111J/fler seduzida e aba11do11ada,fazendo-o através da apresentar;iio
dinário cartiio-de-visita de Kierkegaard. Lago nasfrases introdutárias.fi- 1' 11•¡m•se11Wfii.O da sua dor e da sua mágoa, as q11ais, por sua vez, sc7o
ca claro como é parte integrante da obra: está em jogo, ao longo das duas 1h.11·111ida.1· na po.1·.l'ibilidade rejlectida e na possihilidade irrejler·tido. No
partes e também no «Pre/licio». a dicotomia entre o exterior e o interior, e m¡1ft11!0 «0 muis lnj'eliZ>>, estüo objecrivamente e111 jogo as rnusas do que
aquilo que se anuncia que vai ser dilo nao pode ser separado do modo 11•1 da 11wior infelicida.de, a par da rela~'iio da il1f'elicidade coma morte, e
como val ser dilo. O capítulo «Diapsalrnata» reúne cerca de noventa frag- i/(I 1·orrelaciio entre a .felicidade e a recorda<;éí.o, bem como o desenvolvi-
mentos, dirigidos ad se ipsurn, de extenstio acentuadamente diversa, sendo 1111•11w ria capacidade de observar senfim.entos, de os descrever, assim como
que neles se cruzum motivos filosoficos, literários, musicais, religiosos e rt q1w.11c70 de se ser, ou nao se ser, um observador participativo da vida,
psicológicos. de índole vária, desenvolvidos num acentuado movimento 111lu uq11i nos seus casos de in.(elicidade. Falemos agora de «0 Primeiro
auto-reflexivo centrado sobre o poeta e sobre a tarefa de poetar; esse mo- mor». cen.lrado sobre a pera de Eugene Scrihe de onde re lira o nome:
vimento auto-reflexivo percorre as disposicoes que marcaram os caminhos /l(tta 110 realidade de diversos «primeiros amores», afina! o título original
que levaram o poeta a ser o que ele é, ou melhor, que o conduziram a de- rlo ¡1cro comentada; a categoría de ocasiiio é introduzida no preümhulo, no
cisiio de ser quem é, nos dominios de aplicaciio dos motivos acima enume- r¡110/. oo amor el. pefa de Scribe, se juntam o amor declarado de A pela
rados, um percurso que é anunciado nofragmento inicial nunt tom de an- 1•.1·<Tito. as recorda9iJes das suas primeíras vivencias amorosas, e o papel
güsüa e revolta, para no fragmento conclusivo ceder terreno ao riso. O tl11 ocaso nestes dois tipos de «primeiro amor». O capítulo possibilita tam-
capítulo «Os Estados Eróticos lmediatos ou o Erótico-Musical» amplifica 1u:111 que Emmeline, a protagonista da pef'ª de Scribe. seja tipificada como
o movimento combiuatário entre seducdo e escrita que havia sido delinea- 11111 produto do amor roméin1ico, senda entiio a relafiiO amorosa analisada
do no «Prefacio», a vários niveis; um. deles está centrado sobre o desejo, rll' 1111w maneira acentuadamenle dijeren.te de outros casos comentados nos
em diversas vertentes, incluindo-se a{ a descriciio dos tres estádios do de- 1·apít11/os anteriores, designadamente, o de Antígona no capítulo do trági-
sejo que constituem. o cerne da teoría do erotico-musical. O capítulo é co. <:os da.1· diferentes situat;ñes em jogo n.o capítulo do erótico-musical e
bastante mais do que urna análise pormenorizada da ópera Don Giovanni e111 «Silhuetas». Adiante-se, aliús, que «0 Primeiro Amor» é imprescindível
de Mozart, embora essa análise, por sisó, tenha sido o suficiente para que ¡wro entender o primeiro capítulo da segunda parre de Ou-Ou. Um Frag-
se tornasse um marco incontornável na recepcdo da obra-prima mozartia- mento de Vida. O penúltimo capítulo da primeira parte, «A Rota9ii.o de
14 ()p ()u 1)111 hll~'llll'lllO dt \/id11 15
l 1111 Othu;uo

Culiu~as».,é.um ensaio sobre o tedio em que o argumento transforma aqui- r1l>M·11·111·" o ¡n O/JI io narrador r/(I .1'<'1<111ulu porte. por seu turno, es/e ta111-
lo que o tédio é, quando habitualmente considerado como a rai: do mal /11'111 nao exrlu! o <'.l'f<ftico do debate o que se propée, Assim, 11a primeira

na possibilidade de uma vida divina, na qua! é possivel .associar a recor~ 1 (11 tu, aprescuta-se o cost1111e1110 como a possibilidade de transfigurar o

da9~0 e afelicid~de. Sub~ capa de unta apologia, levado a cabo por um 1111u•1 < .\léli('O 110 r1111or ético. de/entiendo-se que o casamento cumpre ca-
1

narrador na esteira de Epicuro, a recordacáo e a esperance silo postas em /i(l/1t1<·111c o lado estético do amor defendido por A. Na segunda carta, a
contraste e na dependencia delas proprios e dos eventuais beneficios do h1/o.1e recaí 110 escolha e 110 desenvolvimento de usos da imaginaoio ao
esquectmento, 11•11•irr1 do ético presente 110 acto de esca/her, indo para além do que faz.A,
«Diário do Sedutor» é o mais longo capítulo da primeira parte de r/1· 111110 perspectivo estetizante, quando amplifica as possibilidades das
Ou-~)u. Um Fragmento de Vida e coloca-se a partido numo. posicüo sui 111us vivéucias 110 dominio do imediato, e indo também para além do que
generis: por um lado, possui uma unidade e uma coeréncia tais que levam /rt ¡\' de //(//(/ perspecliva .filo.w~fica. qucmdo, a partir da realidad e que ve
.frequentemente a que seja licio como unta novela autónoma; por outro, 1• o/Jservo. dú asas ao pen.mmento e avan{-·a pelo domfnio teórico. A tercei-

que~1 o fizer perderá a possihilidade de captar, sinndtaneamerue, 0 modo 111 <'Urfo é a mais breve e serve de introdurilo ao muito discutido sernuio
particular como condensa as temáticas que siio tratadas nos capítulos rlo w1s1or da Jutlrlndia, com que se encerra a obra. O 1ttulo do sermüo -
precedentes, modo esse que, por seu turno, se constituí como determinante ... () Q11e Há de F:d(/1cante no Pensamento de que aos Olhos de De11s F.sta-
para a ~esposta que B ensaia na segunda parte de Ou-Ou. Um Fragmen- 1110.1 S<'111pre F.rrado.P> - é discutido e analisado sob diversas premissas,
to de v.rda~ [ohunnes, o sedutor, prima pelo uso da linguagem verbal e 111<' ceder progressivame11te 1erreno ao campo das questoes ético-religiosas,
pela reflexdo no exercicio do amor psíquico, a antltese do amor sensual de a1 q11ois serao condensadas na epif?ramática frase com que se conclui o
Don Juan, que sá é exprimivel musicalmente, e exibe a verve de libertino 1·o¡>ft11/o, e portan/o a ser:unda parte. mas rambém tnda a obra: «Só a ver-
e a vervc literárla com que seduz Cordelia. A recordaciio de Motan está dnde <¡11e ed(fica é verdade para n<Í.I'.>>
presente, neste diário,. na ·!igura de um sedutor reflexivo, por oposicüo a No 1J1odo como se ve, observa e comen1a as modalidades de vida, no
~on Juan, o sedutor imediato por excelencia. Mas encontramos também 11 oto111e1110 ora poético-lilenírio, ora jllosójico, ora psicológico e existen-
(Joet~u: e Wcrther, Schlegel e Lucindc, lacios e Les Liaisons Dangereuses, ' iul. ora combinando todas estas ver/entes ao lonf?O de 10da a obra, resi-
Ovtdio co~n Arte de Amar e Amores, e também Arnlm e a novela Dolores, a
"'''" <t)i11al as d!jiculdades demasiadas vezes apontadas presellle obra.
num mov11nent<~ de re~eliféío e recordaciio Impar, que faz des/e capúulo l-.'.\.l'W d{/iculdades sao todavia superadas pelo fascínio, e este pelafrui9ao
un'.a o~ra clássica da literatura do género, e clássica, nos termos de A, ou /ifl'l'<írio e pelo movimento do pensar que advem de percorrer com o auwr
seja, }~rma e conteüdo interpenetram-s« a tal ponto, que se torna cabal- º·' <·0111i11hos por onde temas, ccmceitos e categorías se e11trelaram, recom-
mente iniposstvel distinguir ama coisa da outra. /1ilw11do-se em modalidades genéricas que <·ontinuamente se renovam, e
Sem pretender desenvolver a estrutura capitular da segunda parte de 1·111 rel{istos estil{sticos que de c:apftulo a capftulo nos surpreendem. Resta-
O~~Ou. Urn Fragmento de Vicia, que a seu tempo chegará aos olhos do 11m terminar, fazendo eco de Víctor Eremita no seu «Prefácio», corn a
pt~bltco, cabe todavía dizer algumas palavras que permitam auxiliar 0 1·1•rf1'-:.a de que, urna vez lida a obra, havendo quem queira recordá-la, será
leitor a estabelecer pontos de referencia para uma futura conclasiio da r·o¡1u-:, de ofazer sem esquecer esse conjunto de caixas chinesas que envol-
leitura de O.u-Ou. Vrn Fragmento de Vida. Os títulos das cartas-capitulos "'' u apreseniOf:GO e a representaf'OO de narradores, perso1w[!,ens, lemas,
que a const;t~4em - ;<~ validadeEstética do Matrim6nio» e «O Equilibrio c•pi.wídios. o qua/ constituí o artifício nece.uúrio para que seja poss{vel dar
entre o E.~teuco e º.F.tico» - sdo da responsabilidadede Eremita e, segun- /11gor a esperanra de que() leitor nüo queira ver pontos de vista resolvidns
do ele proprio confessa, poderla haver outros igualmente «felizes», Sao de ¡1or outros intervenientes que nao ele pr6prio.
algum modo reduiores eni relacdo a alguns aspectos debatidos pelo Juiz, 0
a~tor B, e pecam ta/vez por demasiado abrangenies.fa que podem condu- Cascais, Novembro de 2012
nr a ,que se pense qu:- o poruo de vista do Jui: é uniforme e, de facto,
f~1mbem ele =: d1vr;~·ws modalidades de vivéncia de um amor que
cu~1pra urna funciio estéttca, para além da ética. Na realidade, se, na pri-
metr~ parte de Ou-Ou. Urn Fragmento de Vida, a natureza estetizante dos
esenios ndo elimina de todo as implicacóes éticas dos mesmos, como aliás
NOTA EDITORIAL

Referencias bibliográficas, enquadramento institucional


da presente traducáo e agradecimentos

/\ presente traducáo segue o texto constan/e da quarta edicüo das obras,


S11rcn Kicrkegaards Skriítcr (Escritos de S. K.; abreviatura: SKS, com in-
1'111.wio do número do volume em árabes e da página em árabes), organiza-
do por Niels Jorgen Cappelern, .loakim Garf], Johnny Kondrup, Anne
Mett« Hansen, Tonny Aagaard Olesen e Steen Tullberg . A publicaciio desta
t'rliciio teve inicio em /'}97, na editora C. E. C. Gads Forlag de Copenhu-
J.:", e ficará concluida e111 20 I 3, ano do bicentenário do nasciniento do
autor. Reúne as obras em 16 volumes, numerados de / a 16, e os diários.
radcruos e canas ern J 2 volumes, numerados de 17 a 29; o aparato critico
t!I' rada volutne é publicado em separado cotn o título «Kornmcntarbi nd»,
.1<'1­:11ido do número do volume respectivo (abreviatura: SKS, co111 a identi-
/trn(·l7o do volume pela letra K seguida do número do volume em árabes e
do página em árabes). Entcn-Ellcr, F!(1rstc Deel é o volume 2. e o aparato
c1 frico está incluido no volume K2-3. pp. 85-242.
Nas notas e comentários, é referenciada em primeiro fugar a primeira
1't!irüo das obras, Seren Kierkegaards Sarnlede Vzerker (Obras completas
de S. K.; abreviatura: SVJ, seguida do número do volume em romanos e da
/HÍ¡.:ina em árabes), edioio etn 14 volutnes, organizada por A. B. Drach-
111011, J. L. Heiberg e H. O. Lange. publicada pela primeira vez em Cope-
nhaga pela casa editora Gyldendal, entre 1901 e 1906.
Nas notas e comentários a presente traducüo, as referenciasaos diarios
e cedernos de Kierkegaard silofeítas de acordo coma classificaciio e nu-
meraciio adoptada em SKS, indicando-se a referenciado diário ou cader-
110, seguida da numeracüo do fragmento adoptada em SKS, seguida do

11ú111ero do volume em árabes e da página em árabes. Nos casos de frag-


mentas nüo publicados nesta edicdo, utiliza-se a referenciatradicional dos
Papirer (Pap. seguida da respectiva identificaciio), de acordo coma edicüo
( 111 e Ju , 11111 h.1~·111~·1110 dl· itf.1 l 'J

Seren Kierkegaards Papircr, e111 11 volutnes, org . de P. A. Heiherx. V. Kuhr


e E. 1orsting, Copenlwxa 1909­1948. .\111'" AH'' J.. ewwrd.\ Fw.1J...11i11x.1 Crntcret do U11il•t•rsid~1d: ~e·c~(~~;1~:,~~
Procedeu-se ao confronto comas seguintes traducscs: . . I • I. I . i i para a ltngua poi tugues ' '
t¡111 'i'd<'u r1.1 dlreito« < e , ac "(.' '. . lrfi Id (MN t:UA). A tra-
- duas trad11r1Jes alemds: a de F:111011uelHirsch. Entweder-Oder - Tcil 1 ., .
ll.11 i/.,(•gmml l ibrarv no t. <!

01 j College e111 No1 t 1 te ·
.
·
D . I A -ts Council (Sto­
publicada em S. K., Gcsammclte Werke, org . de E. Hirsch e Hayo Gerdes, tf11p10 <1111• "µom .1e publiru [oi financiada pelo ants 1 ' .

1957, e reeditada em Gütersloh: Giitersloher Verlag, 1986; e a de Heiurich '' 111 K111111md og Statens Kunstfond), ·arf"c1·1~1ento aos dais anteriores
Fauiek, Entwcdcr-Odcr. Tcil I uncl II, inicialmente publicada em 1960, e I . · , r¡>rei·w1 o 111e11 ag1 •·• e "
(ht<'I<> aeixor aqu¡ t. :. d U. . .. 'dade <le Lisboa Professor
reeditada em Munique: Deutscher Taschenburh Verlag. 2005. (. I Filosofia a ntvet .H '
n111•1·1m e1 do entro! e . . 'J' . . l I Ribeiro dos Santos, bem
- duas lradllf<kr inglesas, Eirhcr-Or: a de Howani V. Hong e Edna H. I J , (' . Ferreira e Professot eone
flo11g, KW, vol. VI, Princeton, New Jersey: Princetou Universi¡» Press,
fl /111111<' OS<' ""'.10 . . .p
I Calafate e taml1ém ao Pmfessor
r o1110 rw <Wf11al Dll'.ector, P1ofesdsm_de<ár~',, d,, 'Evt<;ti1·a e Filosofía da Reli-
1987; e a de Alastair Hannay. Harnwndsworth: Penguin, 1992. 1 J ­ C .. 'W coordena 01 O 1 C<I " ·
( 111 o.1 oao . d, F, ·¡ ·o/io pe Io gran de ap<>t.''J
o11t
•~ • evt(mulo
· <' acompanlw-
a trad11rilo italiana de Alessandro Cortese, Enten-Ellcr, Milik»: Adel­ s.:111t1 do ( c111ro < t o.1 . .'. • , trabalho Expresso ig11olme11te agra-
phi, 1976­1989. em cinco vols., designadamenre, os trés orimeiros: Tomo 1111•1110 co111 q11e ·'·e111pre sef:Ullam este R' I ,.,¡ P.11rkartlw'er e René Rosjort,
1, 1976: Avvcr1c111;a di Víctor Eremita, editore; Diapsalmata; Gli stadi ero- · · <os
1 Profeuores 1c w ' 'J'
tln 11m•111os especwis • ·.
'd I . o <1mh110 do me11uo11a..
.· "i<> JJIYJ'}·ecto , ¡>elo ouxflio
tici immediarl, ovvcro il 111usicale-erotico; tomo 11. 1977: 11 riflcsso del t t11111.11m co111:1 ac os n ,. rl Ana Pinto Leite, por todo o en1pe11ho e
trágico antico sul lrugico moderno; Silhoucttcs; 11 pil1 infclicc: 11 primo ¡111·1tado: "º remando Silva ~ ,l 1horar;rio das nota.\ do presente
a more, comrncdia in un ano di Scrihe, tradotta in danesc da J. L. Heiberg; ill'rl1<·"<'ºº co111 que ~·o/ablorm~111­ iwlaet1~'1c/1woo ao longo da s110 elabora-
tomo 111, 1978: La rotazione dellc colturc: 11 diario del seduttore. , t• · a Jame (.Je a rev1sao < •· 1
1•tl1r<10: u ,)1/.\(1/I · • . . . ­ .11 ial e pelo acompw1hmue11to
- a traduciio francesa de Odette Prior, Ferdinand Prior e Marte- ( 1111: (' (/() Jo•\ (; Miranda Justo pe 1n 1evi.wo 1
-Uenriane Guignot, Ou bien ... Ou bien ... , París: Gallimard, 2008, puhlico­ 11~om.1o deste trabalho.
da ortginalmeute ent 1943.
- a traduciio portuguesa do capttulo «Diapsalmata», de Bárbara Silva, E.S.
M. Jorge' de Carl'al/w. Nuno Ferro e Sara Carval/wis, lisboa: Asstrio e
Alvitn, 2011.
Para refereuciar, com <:i1ar<70 integral, os verslculos da Btblia, aludi-
dos 011 citados indirecto 011 parcialmente, railizou-se a rradurcio de Jodo
Ferreira d'Almeida. Lisboa: Sociedade Bíblica de Portugal, 2001.
As no/as iuclutdasfornecem as eluddaroe.1· neces.wírias para que o
tniblico se possa situar dentro do contexto da obra e do autor,
procurando-se todavía incluir outra informacüo julguda pertinente que
possa auxiliar o leitor em futuras leituras do autor ou sobre o autor.
Utiliwu-se a informaf(io reunida em SKS, volume K2-3, e/a propria
fruto do trabalho da actual equipa editorial, e do saber acumulado nas
anteriores edir:oes dinamarquesas; recorreu-se igualmente ao aparato
critico das traduroes acima mencionadas.
A presente traducüo constituí a tarefa principal do pós-doutoramento da
tradutora, a decorrerem. paralelo como projecto de tradur;{io das obras do
.ftMsofó, ambos sob a égide do Centro de Filosofia da Universidade de
lisboa e como apoio da Fundacáo para a Ciencia e a Tecnología,e coor-
denados por José Miranda Justo. Tamo as tare/asdeste p6s-doutoramento,
como o projecto no seu todo, silo desenvolvidos em estreita colahoraf·iio
com os dois mais importantes centros de investigar;iio de Kierkegaard,
111

Ou-Ou
Um Fragmento de Vida
Primcira Parte

N. B. - As notas do autor váo indicadas com asterisco. As notas do tradutor


sao numeradas. Por razócs tipográficas, as notas do tradutor que dizcm respeito
a passagens situadas dentro das notas do autor víío assinaladas corn +, t-¡-, etc.
1<)1

Ou-Ou
U m Fragmento de Vida

publicado por
1
VICTOR EREMITA

Primeira Parte
Contcndo os Papéis de A

Será táo-sorncnte a razño baptizada,


Seráo as paixñcs pagas?
Young2

Copenhaga 1843

A venda na Livraria Universitaria C.A.


Reitzel
Impresso na Tipografía de Bianco Luno
1111

Prefácio

< 'aro lcitor, talvcz por vczcs te tivcsse até ocorrido duvidar urna migalha
dn cxactidáo da conhccida tese filosófica segundo a qual o exterior é o in-
ll'• ior e o interior o exterior'. Tal vez. tivcsscs guardado mesmo um segre-
é

do que te era demasiado querido, na alegria ou na dor que rrazia, para po-

\ Kierkcgnard prosscguc aquí a tliscussao da nao-rda41!10 entre o interior e o exterior,


miciada cm Sobre o Conceito de Ironia etn Constante Referencia a Sócrates. SV 1, vol.
XIII, pp. 108-109, e SKS, vol. 1, pp, 74-75. Em Hegel, o exterior e o interior siio_objce-
tn 1k rruramcnto cm duas circunstancias: (1) corno catcgoriax de reñexüo na lógica em
1 Segundo Judith Purver, a cscolha do nome de Víctor Ere111il11 explica-se pela influéu-
¡ >íe wissenschaf: dar Logik, Die objektive Logik: LA Ciencia da Légica. A Lógica Obj:e-
cía da Novel!e de Joscph K. B. f1. von Hichcndorff ( t 788-1857), Dictuer und ihre (Je-
tivu]. Segundo t.ivro, 3. C .. in Georg willielm Frtedricli Hegel's Werke. Vollsliindtg~?
sellen [Poetas e Scus Companhciros] de 1834, cujo protagonista, Viktor von Hohens-
/\11.1µabe [Obras de G. W. r. Hegel, Edi<;íio Completa 1, vols. 1-XVIIL edi~ao ele Phillip
tcin, assume diversas entidades, entre outras, a de eremita; vd. Judith Purver,
Murhciueke et al., Berlim, 1832-1845. doravante mencionado como Werke: aqui, vol.
«Eichcndorff Kierkcgaard's Reccprion of a Germán Romantic», in Kierkegaard and his
IV. 6. pp. 177-183: Sttmtliche Werke. Juhildumsausgahe [Obras Completas. Edil(aO
Germen Contcmporaries, vol. 6. 'Iome 11 l: Literaturc, cdi9!10 de Jon Stewart, Aldcrshot:
Comcmorativa], vols. l-XXVI,edil(ao Hermann Glockner,Estugarda, 1927-1940,dora-
Ashgatc. 2008, pp, 25·50; aquí, pp. 46 e segs. Víctor Eremita reaparece na qualidade <le
v:1111c mencionado como Jubil<lwns; aqui, vol. 1 V, pp. 655-661: e <;eorg Wilhelm Frie-
pcrsonagem, como um dos oradores 110 banquete ern «In. Vino ventas», o primciro ca-
rlrid1 Hegel: Werke in 20 Blinden mit Re11is1erband [G. r. 11.: Obras cm 20 Vlllunies
pítulo de Estádios 110 Caminho da Vida ele 1844; vd. SV 1, vol. VI. pp, 57-65. SKS, vol.
rnm VolunJc de fndjccs[, Suhrkamp, Frnnkl'url am Main, 1986, dorava11te Suhrkarnp;
6. pp. 57-66; cm lfugua portuguesa: In Vino \!erilas. tradui¡:iio, notas e posfácio de José
aqui. vol. v L. pp. 179-185: e (2) também em Ell':.yklopadieder philosophischen Wis­
Miranda Justo, Lisboa: Anrígona, 2005, pp. 105-'126.
.ve11sclta/ien im. Cmndrisse, /,(>f!.ik lfl.m;iclopédia das Cit!11cias Filosóficas em Epítome.
2 A epígrafe 6 a trndui;:i'in para dinamarqués de Kierkcgaard da lradw;;iio alemñ de um
Lógicaj, primeira parte.§§ 138-140. in Werke, vol. VJ, 6, pp. 275-28'1, Juhila111ns,
verso <lo poeta inglés Edward Young ( 1681-1765). extraído de The Complaint or Niglu-
vol. Vlll, pp. 313-319, e Suhrkamp, vol. VIII, pp. 274-279. Vd., em pormgues. G. W. F.
· Thoughts un Life. Deatn and lmmortality 10 Lamento ou Pensamentos Nocturnos so-
l legel, t:ncidopédiu da.v Ciencias Filosóficas em Epítome, tradw.;ao de Artur Morao,
bre a Vida, a Morte e a lmortalidade], livro IV. v. 629: publicada cm Londres cm 1790,
vols.1-UJ. Lisboa: F.<li¡;ócs 70, 1988-1992; vol. l, 1988. pp. 169-170. Também Johan
a obra fez de Young um dos poetas favoritos dos primordios do rornantismo, reflcctindo-
Ludvig Heiberg_ (l 791:1860), a pers.~malidadc dominante no CllJllJ)~ da lit~rat~lnl e <l.ª e
-sc a sua temática ern vários capítulos <la presente obra. em especial «Diapsalmata»,
filosofía no tempo de Kierkegaard e igualment~ um dos mentores do h~gehamsn~o d,1· (\; :i,
«Silhuetas» e <<0 mais Infeliz». No original, a ordein <las pcrguntas é a inversa: «Are
passions, then, tlie pagans of the soul? Rea.1·011 alone baptized?» Fonte do autor: \..Yol- namarq1._1e~, def~1der~ u.ma tcori~ ~fas apar~ncias na qual e:-;ti~~l~t~<~ a ,supr1:n~a~1~~ .d~) '"'..) ~
exterior sobre ti 1111~.nor con1Q.cntcno estél1co, sendo que o obJec_tno lllUCO d,1 cu,!Jc,1 .. ,
dentar (1779). romance de E 11. Jacobi (1743-1819) in Friedricli Heinricti Iacobi's
1>eria analisar a forma. enquanto factor determinante p<iJa o entemhmenl<.> <lo conteudo: ..~:"'
Werke [Obras de F. H . Jacobi], edicáo de F. Roth e F. Koppcn, vols.1-Vll, Leipzig.
vd .. en.t:rc outros escritos, Om l'hilo.wphiens Bezvdning jár den nuva~rende Tld. Et . .¡­ ­·,
1812-1825; vol. V. "1820, p. 114. onde se le: «Wohl einmal ubermiahig oder tmtzig,
Jndbydelses-Skr{ft til 1?n Rwkke af philosophiske Forehesninger LSnbre a h11porta'.1~ia da . ..!
fragen Sic mil Yo1111g: Ist denn die Vemuntt allein getauft, und xind die Leidenschaften
Filosofía para o Nosso Tempo. Anúncio de Urna Série de Coutcréncms C'ilosotrcasl, ,/
Heiden?» [«Urna vez ainda com <mojo e altivez, fazei a pcrgunta de Young: Será táo-
-somcnte a razfio baptizada, scrño as pai xócs pagñs?» l. Informacáo gentilmente cedida Copenhaga, 1833: vd. op. cit., vol. ll. pp. 129-215; sobre 1:sle assun~o. pp. _198-_199; /,'".
por R. Purkarrhofer, Adiante-se que a discussao das assimelrias e divergencias entl'e o cxtcnor e o mtcnor e
o tema da Nove/le Pe1er Schlemihls de Adclbert von Chamisso. Vd. nota seguinle.
26 Sor en K rcr 1.crmud 27

deres confia-Io a tercciros. Talvcz a vida te pusesse cm contacto com 1111 .p1'11Hh1 lnr111na. lJ11111 tkssa'> Iortunas inesperadas fe1 corn que, de um
pessoas ~as. quais presumías ser este o caso, sern que contudo o teu poder, 111rnln 1111111 hs1 mo curiovo, cu vicssc a encontrar-me na pO!-.sC dos papéis que
ou a tua insinuacáo, fosscm capazes de levar o oculto a manifestar-se. Tal- "' 1 h 11110 .t ltonw de 'uh111ctcr ao público lcitor. Encontrci nestes papéis a
vez nenhum destes casos se aplique a ti, ou a tua vida, e cssa dúvida nño te 111 •1111111111h1tk tk lan<;ar um olhar sobre a vida de duas pcssoas, fortale-
é todavia desconhecida; sentiste que passava de vez em quando pelo reu 1 1 111h1 ~l' 11 111111ha duvida de que o exterior nño é o interior. lsto é válido cm
pcusarnenro, pairando como urna figura fugaz. Scmclhantc dúvida vai e 1 ¡11 1 1111 p111u u111a delas. O scu exterior estava cm plena contradi9ao como

~cm. e ninguém sabe de onde veme para onde se dirige. Pela minha parte, 11111 r lot l '111 t'e1ta medida. também é válido para a ourra, tendo cm conta
tive sempre uma propensáo herética cm relacño a este ponto da filosofia e, 11111 •,11h 11111 nlcrior mais insignificante escondía um interior mais signifi-
por isso, habituci-rnc desde cedo, tanto quanro possfvcl, a ser eu a Iazcr 1 111\0
observac¡;oe~ e invcsti~a9ocs; procurci orientacño em autores" cuja intuic¡;ao N.10 ol)"tank, o.;cr;'.Í ccrtamcntc melhor que por uma questño de ordem eu
a este rcspcuo cu partilhava, em suma. fiz rudo o que esta va ao meu alcan- ~ 1111111 l' pot 1ta1 rar como cheguci a posse desscs papéis. l lá cerca de . ere

ce para compensar a lacuna deixada pelos escritos filosóficos. A pouco e 11111 1111rna lo1a de vclharias aqui da cidade, rcparei numa sccretária que
'\
po~1co, a audicño tornou-se, cntáo, para mirn no muis querido dos sentidos; 1Ir111un1 u .,1 a minha atcm;ño logo da primeirn vc7. que a vi. Nao cm de
pors que tal como a voz é a rnanifcstacño da inicrioridade que é incornen- 1 illt1• 1nodl'1110. estnva bastante usada e, contudo, cativou-mc. É.-mc impos-
surável com o exterior, tambérn o ouvido é o instrumento através do qual 1\ 1 1 npltt·ar o motivo dcsta impressao. mas mu ita gente j;í passou deccrto
se apr~cnde esta intcrioridadc, e a audicílo o sentido por rncio do qual nos
é
11111 .1li•o dt: parecido alguma vez na vida. A minha volea diária lcvava-mc a
a~ropnamos del.a. Scrnprc que deparava com urna contradicño entre o que 1•,111s111 pelo :111tiquário e pela sua sccretária, e nunca eu dcixava correr um
vra e o que ouvra, achava, cntño, que a minha dúvida ficava mais rortc. e 1111 tiras em que por lá passava scm cravar os olhos nela. A pouco e pouco.
que o ~cu dcscjo de observar se intcnsificava. Um confcssor está cparado 111111 l.1 sc.:c1ct:íria criou cm mim uma história: <;urgía-me a nccessidadc de a
do p~n1tentc por urna grelha; nao ve, limita-se a ouvir. A pouco e pouco, a 1 1 l' para cumprir tal l'irn, nem scqucr hesita va cm fazer um dcsvio por sua
medida qu:_ ouve , cria urn exterior cm corrcspondüncia corn o que ouvc; 11111'11, t1uando numa altura excepcional se tornava premcntc ve-la. Quanto
portante, nao entra cm contradicáo. Passa-: e outra coisa, ao invés, quando 111111\ a via. tanto rnais dcspertava o meu dcscjo de querer possuf-la. Hem
se ve e se ouvc cm simultaneo, vendo-se todavía uma grclha entre si e o 1 1111.i l'tr que este era um e<,tranho dcsejo. visto que nenhum uso faria des-

intcrlocutoré. Os meus esforcos 1121 para colocar obscrvacóes ncsse sentido " 1110H·I; adquiri-lo ~cria urna extravagancia da rninha parte. Ora o dc!.cjo,
lorarn bastante desiguais, no que diz rcspcito aos resultados. Urnas vczcs 1111110 e sabido, é muilo sofístico. Arranjei uns assuntos para tratar naquela
t.iv~ ~ felicidade .do mcu lado, curras vczes, nao tive, e é sernprc preciso ter lt1¡.i 1k vclharias, perguntci por outras coisas e. quando eslava para sair, fit.
felicidade para tirar algurn provcito dcstas andaricas. Entretanto, nunca to- d1 11<11 lll~<'lll urna oferta bastante baixa pela sccrctária. Pcni;ava eu que
davia p.ercli a vontadc de prosseguir comas minhas investigacñes. Se bcm 1111\'i1velmcn1c o antiquário haveria de aceitá-la. Tcria sido. cntao, uma ca-
q~e esuvcssc perro, urna única vez, de me arrcpcnder da minha persisten- 1,111111d:1dc a fa¿er com que a secrctária me vicsse parar as maos. Nao era de
era, tarnbérn os meus esforcos se viram corcados, urna única vec, por urna 11 r toa por causa do dinheiro que cu agia desse modo, mas por causa da
111111ha consciencia. 1131 Nao fui hcm-sucedido, o antiquário estava invul-
r1111111:111c determinado. Durante algum tempo. tornei a pas~ar por lá todoo.;
4 Como presumíveis autores consultados, para alérn ele Joscph K. B. F. von Eichendortf', 11"' dras. e contempla va a ~ccretária com olhos apaixonaclos. Tcns ele decidir-
a1ra:és da mcn~ionada Novelic Dichter 1111d ihre Gesellen, J. Purvcr aponta Ludwig 11, pcn~ei cu, ~up6e que é vendida, dcpois será tarde; mesmo que, numa
Achirn von Arnrm ( 1781-1831 ). corn outra Novelle de 181 O, Armut, Reic/111111111, Schuld
111111a vez, ven has a conseguir ficar com ela, contudo. nao mai. obterás esta
und Bujle der Griifin Dolores !Pobreza. Riqueza. Culpa e Penitencia dn Condessa Do-
lores 1: doravantc mencionada como Dolores; e também, Adclbcrt von Chamisso, cm 1111prcs't5o dela. Palpitava-me o cornc,;ao quando cntrei. cntao, na loja de
cspecral. com Peter Schletnihls wundersame Geschichte IA História Espantosa de P. S.I. Vl'llwria:-.. Comprei-a e paguei-a. Que seja esta a última vez em que és tiio
Vd. Judith Purvcr. «Without Authority: Kierkegaard's Pscudonymous Works as Roman- 1w1dul:írio. pensei cu; hem, é justamente uma felicidadc que a tenbas com-
1i~. arratives», in KierkegaardStudies. Yearbook2007, cdicño de iels J. Cappelern el p1.1do. visto que scmpre que a contemplares, haverás de pensar no quanto
alar. Berlim, Nova Iorque: 2007. pp, 401-423: aquí, pp, 405-406. 408. 412-415: dora- tt1 lo:--tc pcrdulário; corn a secretária. inaugurar-se-á um novo capítulo na
vantc mencionado por Purver, Auihority,
111:1 vida. Ai, o clesejo é rnuito eloquenre, e as boas intenc;ocs estao sempre
5 Este é um dos elementos presentes igualmente ern Dolores. a par do episodio da se-
crctária comentado na nota scguintc, ,1 mao.
:.rn S1-irc11 Klcrkcgaard 011 Ou UI.' Vldn
111 1'111¡'1111.'ll[U 29

Mandei, entáo, instalar a secretaria no rneu quarto e, tal corno nos pri- da e fechada ficou. Succdcu, ao invés , urna coisa diferente. Fosse porque o
meiros tempos de enarnoramento eu scntira alegria ao observá-Ia da rua, 111!.:u gorpc aiingira precisamente aquclc ponto, ou porque tocio o abalo
tarnbérn agora passava eu por ela em casa. A pouco e pouco, aprendí a co- produzido na cstrutura gcral da secretaria tal iivcsse ocasionado, é coisa
nheccr todo o seu abundante conteúdo, os seus muitos compartimentos e que nao sci, mas sci que saltou urna portinhola secreta na qual eu nunca
gavetas, e sentia-rne em todos os aspectos muito satisleiro com ela". Nao antes reparara. Fechava-sc sobr~ om esconderijo, o qual obviamente eu
haveria, porém, de assirn continuar. No Vcráo de 1836, os meus afazeres 1ambém nao havia desvendado. Para minha grande admira9ao, descobri aí
permitiram-me realizar urna pequcna digressáo pelo campo durante uns urna quantidade de papéis, os papéis que constituem o cooteúdo dos es_cri-
oito días. Mandci viro postilhño as
cinco. Na véspera, fizera as malas corn los ora submetidos. A minha decisfto manteve-se inabalável. Na primcira
as roupas que precisava de levar: rudo estava em ordem, Já acordara as eslayao, iria contrair um empréstimo. Na maior das pressas, csva:t.iei uma
quatro da manhñ, mas a imagem da beta paisagem que eu havia de visitar caixa ele mogno na qua! costumava estar guardado urn par de pistolas, e
produziu em m.im urn efeito tao inebriante que voltci a cair no sono ou em dcpositei nela os papéis. A alegria triunfara ganhando um inesperado incre-
sonhos. O meu criado nao quis presumivelmcnre privar-me de todo o sono mento; no íntimo do rneu cora~ao, pecli pcrdao a
sccretária pelo duro trala-
que cu conseguisse dormir, visto só me ter chamado as
seis e meia. Já soa- mcnto, enquanto o rneu pensamcnto via fortalecida a cltívida de que o exte-
va a rrornbera do postilhño e, apesar de habitualmente cu nao ser daoo a rior nao é todavia o interior, e comprovada a minha tese experimental de
cumprir ordens ele tercciros, scmprc abrí urna excepcáo para corn o posti- que é preciso ter fortuna para fozcr lais dcscobcrtas.
a
lháo e os scus motivos poéticos. Vcsri-rnc prcssa; já esta va i'i porta quando A meio da tarde chcguei a Hiller0d8, pus as minhas finan9as em orclem,
me ocorrcu o scguinte: será que tcns dinhciro suficiente na cartcira? Nao deixei que a magnífica paisagem procluzisse cm mirn uma impressao geral.
a
havia lá grande coisa. Abri a secretaria para ir gaveta do dinheiro, e retirar Logo na rnanha seguintc comecei as minhas cxcursocs, dotadas agora de
o que rivcsse cm casa. Mas vede, a gaveta ncm sequcr se movia: Tocios os 11111 carácter completamente diverso claqucle que cu inicialmente lhcs desti-
meios foram baldados. Nao podía haver maior fatalidade do que ter de nara. O meu criado scguia atrás de mim coma caixa de mogno. Proeurava,
enfrentar tais dificuldadcs precisamente no instante em que nos meus ouvi- cntao, um lugar ron1antico na lloresta, onde tanto quanto possível puclesse
dos rcssoavarn a inda os encantos dos sons do postilháo. Subiu-rnc o sangue 1cr a certeza ele evitar qualquer surpresa, e retira va os documentos da caixa.
a cabeca; Iiquci exasperado. Tal como Xcrxes mandara flagelar os marcs7, Ü CStaJajadeiro, que ficara UITI tanto atento as rninhas frequenleS deambu]a-
assim dccidi cu aplicar urna terríveJ vinganca. Mandei vir um maco. Usei-o \'OCS na companhia da caixa ele mogno, rnanil'cs1.ou-se dizendo que talvez
para dcsferir na secretaria urna pancada terrivelrncnte violenta. Quer tives- cu estivcssc a praticar o tiro de pistola. Mostrei-mc muito reconhecido pelo
se sido eu, na minha ira, a falhar o golpe, quer fosse porque a gaveta era tao ~cu reparo e dcixci-o ficar nessa cren9a.
casrnurra quanto cu, 1141 o efcito nao foi o previsto. A gaveta esta va fecha- Um olhar de relance aos papéis enconlraclos mostrou-me facilmente que
constiluíam duas forma9oes, cuja cliferenya esta va igualmente acentuada no
6 Encontram-sc neste parágrafo elementos narrativos inspirados na Novel/e Dicluer und exterior. Urna estava escrita muna espécie de papel velino de carta, in-quarto,
ihre Cese/len de Eichcndorff, designadamente. o arrombamento da secretaria e o toque do
com urna rnargem bastante larga. A caligrafía era legível, por vczes mesmo
postilhño, os quais, urna vez articulados com a inclusño ele urna caixa de pistolas no epi-
um pouco rebuscada, noutros passos esborratada. O outro esta va c:scrito cm
sodio, pcrmitcm a Purver concluir que Kierkegaarcl encerra neste momento um período de
criacño litcrária sob a influencia de Die Leiden des jungen Werthers LO Sofrimenro do rol has inteiras de papel ele ofício com col unas marcadas. tal como se escreve
Jovern Werthcr] de 1874, a Novel/e epistolar de Johann W. von Gocthc (1749-1832). cm documentos legais ou cm outros afins. A caligrafía era clara, um tanto
Kierkegaard seguiu assim o rumo trilhado por Eichendorff', e tambérn por Arnirn e Bren- distendida, uniforme e regular; parecia pertencer a um comerciante. Tarnbém
rano, os quais se dirigcm ao leitor apresentando proposias éticas e religiosas através de o contcúdo rnostrou desde logo que era diferente: uma das pa11es continha
urna crítica dos valores vciculados na sua época e da valorizacño das escolhas ele vida urna quantida<le <le ensaios estéticos. de dimensao maior ou menor, a outra
individua is aplicáveis a sua inscriv1io no tempo histórico; vd. Purvcr, Authoriry, pp. 22-23.
era composta por 1151 duas grandes pesquisas e uma menor. todas de conteú-
7 Trata-se da reaccáo de Xerxes ao saber que uma violenta tcrnpestade destruíra as pon-
tes sobre o estreito de Dardanelos. Narrado em Historias de Heródoto (c. 484-c. 420 a. do ético, aoque parece, e ern forma epistolar. Observando com maior por-
C.). livro VII. vv, 34-35; cdivao consultada pelo autor: Die Geschicluen des Ilerodotos menor, ficou a cliferen9a cabalmente refor9acla. A última forma<;ao ele papéis
11\s Historias de H.J. vols. 1-11, traducáo de Friedrich Lange. Bcrlirn: 1811; vol. 11. é designadamente constituída por cartas, dirigidas ao autor da primeira.
pp. 347-349. Vd. Herodotus, The Persian \Vctr.v IAs Guerras Persas], vols.T-JV, traducño
de A. D. Godley (Loeb). Nova Jorque: Pulnam, 1921-1924; vol. 111. pp. 347-349. 8 Pcguena cidade da Zclilndia. a no1te de Copenbaga.
\()
31

Torna-se todavía necessário encontrar urna exprcssáo mais cuita para


1111nlrn., e 1,¡11c n palnvra fora certamcnrc usada corn gesto pelo p~·ó~rio A
poder designar os dois autores, Percorri para esse cfeito os papéis com
todo o cuidado, mas nada ou quasc nada encontrei, t-12_gue diz respeiro
p111n o aforismo onde se cncontrava. Quanto a
ordenacáo dos aforismos,
111d1vidualmc11tc tornados, deixei reinar o casual. Achci até muito ccrto que
ao primeiro autor, o estético, nem scquer se encentra qualquer esclarecí-
u~ cxpressóes particulares se contradissessern com frequéncia, .pois isso
\
mento sobre quern seja. Quanto ao segundo, o redactor de cartas, fica a
prende-se csscncialrnente com a disposicño; achei que nao vaha a pena
saber-se que se chamavaJ&'.i/helm_ e havia sido juiz assess..Qr, sem ficar
(li,pO-l:ls entre si de molde a que as contradicñes se tornassem menos no-
todavía determinado e.m que tribunal. Fosse eu cingir-me escrupulosa-
t<Sria~. Fui atrás da casualidade, e também é urna casualidade, que me cha-
mente ao que é histórico, chamando-lhc Wilhclm e, cntáo, faltar-me-ia
.uou a atcncáo, o facto de o primeiro e o último aforismo responderern de
urna dcsignacáo corrcspondente para o primeiro autor; tcria pois de
t \'1 l<i mancira um ao outro, na medida cm que um como que percorre o que
arribuir-lhe um nome arbitrario. Por isso , preferí chamar ao prirneiro au-
ho de doloroso cm ser-se poeta, e o outro desfruta a satisfacáo que reside
tor A. e ao segundo B.
1•in ter scmprc o riso do scu lado. ·
Além dos ensaios maiorcs, encontrava-se entre esscs papéis urna quanti-
Qunnto aos opúsculos estéticos de A. nada tcnho a salicntar a seu rcspci-
dadc de pedacos de papel. nos quais haviam siclo escritos aforismos, dcsa-
to. l~ncontrav:un-se todos prontos para seguir para o prelo e, se bem que
batos líricos. reflexñes. A caligrafia já indicava que pcrtenciam a A, e o
conteúdo vcio confirma-lo. conrivcssern dificuldades, tenho de deixar que falern por si proprios. Pela
¡llll te que me toca, tenho a observar que acrescentei a traducáo das citacóes
Ora eu csforcei-mc por ordenar os papéis da melhor maneira. Quanto aos
1·111 grcgo que aqui e ali se encontram, retiradas de uma das melhores tra-
papéis de 8, foi coisa bastante fácil de fazer. Urna das cartas pressupóe a
dtu;oes alemas.
outra. Na segunda cana encentra-se uma ciracño da primeira, e a tcrceira
carta prcssupóe as duas anteriores. o último dos papéis de A é urna história intitulada «Diário do Sedutor».
Surge111 aqui novas di l'icuJdades, na medida cm que A nao se declara como
'\ -
Nao Ioi assirn tao rácil ordenar os papéis de A. Deixei, por ísso, que
11u1or, mas tao-somcnlc como editor. Trata-se de um vclho truque de ro-
fossc o acaso a determinar a ordern, ou seja. dcixei-os ficar pela orclem na
n1:rr1t:is1a, contra o qua! nada mais haveria cu de objectar, caso nao contri-
qua! cu prirneiro os encontrara, scm ser obviamente capaz de decidir se
hu ísse para tornar a minha posi9ao tao complicada. n~ medida em qu~ um
esta ordcm tinha um valor cronológico ou urna signiflcacño ideal. Os frag-
1n1tor acaba por ficar dentro de outro autor, como ca1xas de um conjunto
mentos de papel cstavarn sol tos no compartimento, por isso. vi-me forcado
de cnixa~ chinesas. Níi.o é este o local para adiantar mais sobre aquilo que
a atribuir-lhes um lugar. Dcixei que Iicassem Jogo no início, porque me
wro corroborar a minha opinifío, quero apenas observar que a disposi9ao
parcceu que consentiarn urna melhor considcracáo cnquanto amostra preli-
1 t:inante no preambulo de A, de certo modo, denuncia o poela. É real~ncn-
minar daquilo que as seccóes maiores desenvolviam com mais consisten-
ll' como se o próprio A houvesse tido receio da sua obra, a qual contmua-
cia. Ch~ei-lhes 6La·ipctA.~,.:u9 e acresccntei cm jeito de mote: ad se _
vu a angustiá-lo como um sonho agitado, também enquanto era narrada.
ipsum'". De certo modo, o título e o mote sao rneus e, cornudo, nao sao
Sl· l'osse um acontccimento vercladeiro, do qual ele tivesse sido testemu-
¡ meus. Sao meus, t:endo em conta que se refercm a coleccáo completa de
11lra, parccer-me-ia assim estranho que o preambulo nao t1~ouxes~e qual-
aforismos; em contrapartida, pertencem ao proprio A, pois num dos pape-
qticr marca da alcoria de A ao ver realizada a ideia que mu1to mais vezes
litos esta va escrita a palavra 6Lmjm/..µcn;a, e cm dois deles as palavras «ad
l lle pairara na me1~c. ~ ideia do scdutor cncontra-se sugerida. tanto. no 1171
se ipsum»: Tarnbém fiz imprimir no verso da página de rosto uns versi nhos
,11 tigo sobre o erótico-musical como em «Silhuetas>> e, aqu1, dcs1gnada-
em francés que encimavam 1161 um daquelcs aforismos, a
sernelhanca do
1, 1cnte por analogia com Don Juan 11, terá de tratar-se de um sedutor reflec-
que o próprio A arnitide fizera. Como o maior número destcs aforismos era
1 ido, inserido na categoría do interessante12, de modo nen.hum dando lugar
de carácter lírico, pensei assim que seria bastante adequado utilizar a pala-
vra 6Lmprú.µ.a como título principal. Haja o leitor de ciar esta cscolha por
1 J A personagem homónima da ópera Don Giovanni (1787) de WolfgangAmad~us Mo-
infeliz, e cabe-me agora confcssar, a bem da verdadc, que Ioi invencáo 1ar1 (1756-1791) é semprc referida como Don Ju~n. de acord~ ~om a ~1dapta9ao drna~
111arquesa da <>pera mo;c,artiana. Vd. nota l no capitulo «Üs Estadios Erotlcos lmedratos
011 o Erótico-Musical».
9 Em grcgo no original, entre outras dcnoracñes: «interhidio musical». Vd. nota 1 no
capítulo seguinte. 12 Na época, o interessante era objecto de reflexao no panorama .filosófico ~inamar-
10 Em latim no original: «para si mesmo». qucs e Kicrkegaard. ª~1.9.~·d~!;? já c~t!I ca~cgo,ria_est~t.1.caªº.discutir a ,centralrclade d.~
l ·ricdrich Schlegel ( 1772-1829) no conte>;to..da analise da 1rollla roma¡1t.lca em Sobl(:
32
Oo Ou. Uru ht11!n1~·1110 de Vidu J.1

a perguntas sobre quantas seduziu, mas corno seduziu. Nao encontrei ves- mino u cnguia de Motboc':'. E quando a river levado ao ponto que cu
tígios de semelhantc alegria no preámbulo, mas antes, como observado, ele qucro , scnl rninha.»
um trernor, de um cerro horror, que deceno encontra o respectivo funda- Mas já icrci porvcntura abusado da rninha posicño de editor para sobre-
mento na relacáo poética de A com esta ideia. E nao me espanta que assim currcgar os lcitores corn as minhas observacóes. Terá de ser a ocasiño a vir
tenha acontecido com A; pois até eu, que nada tenho que ver com esta dcsculpar-rne, pois foi por ocasiáo da minha precaria posicáo, causada pelo
historia, que estou mesmo distanciado do autor original através de dois lacto de A apenas se autodesignar como editor e nao como autor desta
planos, até eu também me sentí assim por vezes muitíssimo esquisito, história, que me deixei arrebatar.
quando na quietude da noitc me ocupava dos papéis. Para mirn, era como O que mais tenho a acrescentar sobre esta historia posso apenas fazé-lo
se o sedutor caminhasse como uma sombra pelo soalho, como se lancasse na qualidadc de editor. Crcio encontrar, designadamcntc ncsta história, urna
os olhos sobre os papéis, como se fixasse sobre mimo olhar demoníaco, e dctcrminacño temporal. No diário encentra-se aquí e acola urna dala, mas,
dissessc: «Com que entño, quereis publicar os rneus papéis! Que grande cm contrapartida, falla o ano. Sondo assirn, parece-me que nao haveria de
irresponsabilidade a vossal lreis dcveras inculcar urna angústia nas queri- ir mais longo; no entamo, ao observar eom maior pormenor as <latas em
das meninas. No enramo, comprecnde-sc que, em compcnsacño. facais de particular, creio 1181 ter encontrado urn indício. Se é cornprovadamenre
mime dos rncus pares inofensivos. E com isso. incorreis cm erro; porque vcrdadc que todos os anos tem um dia scte de Abril, um clia tres de Ju.lho,
basta-me mudar de método para que as minhas condicóes sejam ainda um dia dois de Agosto, etc., de modo algum daí resulta que o dia sete de
rnais vantajosas. E que corrupio de rapariguinhas Jogo nao acorrerá para Abril caía tocios os anos a segunda-feira. Fiz, cntao, uns cálculos, e desco-
cair nos nossos bracos, ao ouvir este atracnte norne: urn sedutor! Dai-me hri que esta clctennina9ao corresponde ao ano de 1834. Nao meé possívcl
mcio ano e cu componho urna história que virá a ser mais inrercssante do decidir se A pcnsou nisto, e inelinar-mc-ia a crer que nao; pois ncsse caso
que tudo aquilo que até agora viví. Imagino urna rapariga jovern, vigorosa nfo tcria tomado tanta prccau9ao como de resto tornou. No cliário tambérn
e genial, a ter a inusitada ideia de querer vingar ern mirn o seu sexo. Pen- nao está escrito: «Segunda-fcira, 7 de Abril». ele., mas simplesmentc «7 de
sa que havcria ele ser capaz de me obrigar a sentir o travo das dores do Ahrih>, e a própria entrada come<;a assim «Ora, na segunda-feirn», o que nos
amor infeliz. Vede como esta rapariga está ~1 minha altura. Caso cla nao se pode juslarnc.;ntc desviar a atcn9i.io; mas ao lcr novarncnlc a entrada que se
lance a fundo nisso, cntño, acorrerei em scu auxílio. Hei-dc contorcer-me c11<.:011tra por baixo clcssa dala, vé-se que tcm de ter acontecido numa
,cgu11da-f'cira. No que di:t respeito a esta histór.ia, tenho, entao. uma dcter-
111in:t\:aO temporal: ao invés, qualquer tentativa, por mim realizada com
o Concetto de Ironía e111 Constante Referéncia a Sácrates, SY J. vol. Xlll, pp. cs~a ajuda, para determinar temporalmente os restantes ensaios, nao teve
357-370, SKS. vol. 1. pp. 321-334. J. L. Heibcrg, pouco antes da publicacño de 011 ,uccsso. Poderia até de bom grado ter posto esta história em terceiro lugar;
Ou, adiantura que a natureza «moderna» da categoría nao encontrava urna dcsigna9iio por0m, tal como atrás afirmei, preferí entregar isso ao acaso, e deixar tuclo
nas línguas clássicas, mas que era aplicávcl, por exernplo. aoque a rragédia antiga tem 11a ordem cm que foi encontrado.
de «grande» e «colossal» e, simultancamems, ao modo como circunscreve esse mes- Quanto aos papéis de H, dcixaram-se ordenar com urna natural facilida-
mo aspecto. o que no seu entender explicarla o carácter menos dinámico das persona-
gens trágicas. Heiberg atribuí ainda um carácter plástico as pcrsonagcns da tragédia
dc. Procedí cm contrapartida a urna altcra9ao, na medida cm que me per-
ctassica, e um carácter pictóricoas da trugédia moderna; vd. «Dina», tnteltigensbtade mil i dar-lhes um título, dado que a forma epistolar havia impedido o autor
[Folha dos lntelectuais l. vol. 11. n .0 J 6- J 7. p. 80, 15 de Novernbro de 1842. Rele91- dt.: dar um título a essas investigas;oes. Se, depois de estar inteirado do con-
brc-se a reJevancia_do intercssantc corno categoría estética cm Über das Stutli~ler
grleciusctien Poesie [Sobre o Estudo da Poesía Gregal de Friedrich Schlegel, urn • l.\ Molboe, actualmente Mols. é uma pequena pe11ínsula a sul da Ojurslanu, na costa
ensaio de 1795-1796. Para urna génese da categoría, vd. Aage Henriksen, Kierkega- micnlal da Jutlanclia, entre Alborg e Arhus. Riclicularizados como gente pouco csperta,
ards romaner . Copcnhaga, Gyldendal, 1.969, pp. 33-36. Enquanto categorías estéJ_ic.11.!i 1>~ lwbitantes prolagonizam rnuitas anedotas, recolhidas no tempo de Kierkegaard na
de diferenciacño do modo como cada pessoa percepciona O. mundocxteríor, o interés-
rnlccl5nea Beretni11g 0111 de vidt bekje11dte Molboers vise Gja11inger og tapfre Bedrijier
sanie e o interessc sao abordados com incidencia variavel tamhém ern Tem~-
1 Notícia dos Sábios Feitos e;: Valentes Proezas dos Afarnados Habitantes de Molsj, Co-
mor, A Repeticiio, O Conceitp qe Angustia e Postscriptum Conclusivo Ncio;Cievt(fi._r;,~J pc11haga, 1827; aqui, pp. 3-5. Tcndo apanhado uma enguia gigante que acrcditav:m1 ter
ás Migalhas Filosóficas. Ao longo da presente obra, assinala-se em nota alguns dos
devorado a sua cultura de arenques. os habitantes de Mols concordaram em lanc;:a-la ao
usos de «intercssante» como categoría estética, em especial no capítulo «Diário do
Sedutor». lag.o convencidos de que se afogaria; ao ve-Ja contorcer-se na água. tomaram csscs
111ovimentos por espasmos da morte.
J4 1111 t )11 l lru 1 1,1r111l·11111 d~ Vida

teúdo. o leitor houver de considerar que os títulos nao sao urna cscolha 11 «-l.uo 1k B podiu precisar Je urna rcctificucao, porque níío se passa ele
feliz, estarcí sempre disposto a ficar com a dor que nos vem de termos 111d111..01110 ele aurma . ve bcrn que na /\ntiguidade houvesse alguma incer-
feito urna coisa errada. quando desejávamos fazer urna coisa bcrn feíta. 111,1 c111 dctcrmiuar quais scriam os sctc sabios; nao senti entretanto que
Em alguns passos. encontrava-se um comentario na margem. tendo eu \ .ill'''c a pena, parcccu-mc que o seu cornentário, apc. ar de nao ser rigoro-
transformado cada um dcstes em nota, de modo a que cu nao houvcsse de 1,11 do ponto de vista histórico, possuía um outro valor.
interferir e perturbar o texto. l la cinco anos, já cu esta va onde agora chcguei: ordenara os papéis da
Quanto ao manuscrito de B, nao me permití fazer qualqucr alteracáo, 111111u:ira como ainda esrño ordenados; tomara a decisño ele os ciar a cstarn-
antes os olhci rigorosamcruc como urn documento processual. Podcria ra- pu. ma;; fui todavía de opiniáo que seria melhor esperar algum tempo.
cilmcnte ter talvez eliminado urna ou outra imprecisáo, urna coisa bastante < ouvidcrci que cinco anos scriam um lapso adequado. Esgotados csscs
cornpreensfvel quando se pcnsa que se trata simplesmentc de alguérn que 1111l'O anos, comcco onde cntáo interrompera. Torna-se ctecerto desneces-
escrcve cartas. Nao quis fazé-lo, porque temia ir demasiado longe. Quando, ,111<1 .. ~..,egurar ao leitor que envidei todos os rncios para seguir uma pista
na opiniáo de B. entre cem jovens perdidos no mundo, se salvam noventa rloi- autores. O antiquário nao tinha livro de rcgistos, o que, como se sabe.
e nove por intcrvencño das rnulhcres, e um por intervcncño da graca divi- 11.10 e caso raro entre os antiquários, e nao sabia a quem havia comprado
na!", é fácil de ver que nao foi rigoroso nas contas que fez. visto que ncm 11q11l'lc móvcl; parccia-lhe que tinha sido comprado num leilflo geral. Nem
scqucr rcscrvou lugar algum para aquclcs que realmente acabararn por se llll" alrcvcrei a pur-mc a conlar ao leitor a multiplicidade de inl'rutfferos
perder. Ter-rnc-ia sido fácil introduzir urna pcqucna altcracáo nos números,
l ll,:110~ que muito tempo me tiraram e, muito menos ainda, porque tal re-
mas parece-me 1191 que há cortamente algo bastante rnais belo nos cálculos
( onlac;iio é para mim muito clesagradávcl. Do resultado, posso cu, cm
falhado · de D. Ern outro passo15• B menciona um sábio grego de nome
l 011trapartida. dar conta ao leitor com toda a hrevidadc. pois o resultado
Mf.1·01116, e con ta-nos como ele goza va da rara felicidaclc de estar contado
foi rigoro~amente nulo.
entre os sere sábios, quando o número destes sabios está definido como
()L;ando me aprontava para concretizar a decisao ele entregar os papéis
endo catorzc. Fiquci por um instante perplcxo. pois de onde podcria vira
pa1a publicac;üo, despcrtou cm mim um ci.cnípulo particular. Talve1. o
sabedoria de B. e rarnbérn quul podcria ser o autor grego por ele citado. As
1l•i111r me permita fa lar ele cora9üo abcrto. Ocorreu-me pensar ~e eu nüo me
minhas suspeitas cafram logo sobre Diágenes Laércio e. ao consultar
111a \Cntir culpado por cometer uma indi ·cri9ao pcrante os ignotos autores .
Jecher'! e Morért'", confirmei a respectiva referencia. Ora certarnente que
C.)11anto mais eu entretanto me rarni 1 iari1ava com os papéis, tanto mais
l'"c escrúpulo diminuía. Os papéis eram de urna naturez.a tal que. apesar
14 Mntcus, 18:12-13: «Que vos parece? Se algum homcrn tivcr ccm ovclhas. e urna d.1i- minhas aturadas ohscrva<;oc!.. nao adiantavam qualqucr csclarecimen-
delas se desgarrar. 11üo irtí pelos montes. deixando as noventa e nove ern busca da que to, menos ainda que um leitor houvcsse de encontrar algo de semelhante,
se dcsgarrou? 1 I!. se porvcnrura a acha, cm verdadc vos digo que maior prazcr tem por
atl' porque ouso certamentc medir-me com qualquer lcitor, nao quanto ao
uqucla do que pelas noventa e nove que nilo se desgarrarum.»
15 Vd. 011-011. Segunda Parte. SVJ. vol. [!J. p. 287. e SKS. vol. 3. p. 303. ¡!mio, a a a
simpatia e cornpreens5o. mas, sem dúvida. quanto aplicac;ao e
16 Míson. um do~ sete 1-ábios gregos de que nos fala Diógenes Laércio (séc, 111 d. C.) an 1.elo. Pressupondo que os ignotos autores ainda existiam, que 1201 vi-
cm vidas de Grandes Pil6sofos. livro 1, vv, 13 e 106-108: cdiyocs consultadas pelo v1am aquí na cidacle e chegavam a travar inesperado conhecimcnto comos
autor: Oioge11i1· Laertti de vitis philosophorum I Vida'> dos Filósofo» de D. L.j. vols. 1 11. '-l'US próprios papéis; se rossem, cntao. eles mesmos a manterem-se cala-
Lcipzig , 1933; vol. 1, pp. 6 e 51-53. e Diogen Laértses filosofiske lllstorie f História da do\. nada resultaría da publicac;ao. pois que a esses papéis aplicar-se-in. no
l-ilosofia de D. L.1. vots. 1-11. tradw,:ao de H¡1rge Riisbrigh. Copenhaga, J 812: vol. 1, pp,
111ai\ rigoroso ~entido. aquilo que é aliás costume cli1.cr-sc de todas asma-
5 e 48-50. Vd. Diogcncs Lacrtius. Lives of Emi11e111 Philosophers. traducño de R. O.
Hicks (Loeb), Cambridge. Massachussellf.: Harvard Universitv Prcss. 1991. vols, 1-11: tcnas escritas - calam-se.
vol. J, pp, J5e111-J13. · Fui acometido de um outro escrúpulo. em si e para ~¡ de menor signifi-
17 Christian Gottlieb Jocher ( 1694-1758). editor do Allge111ei11e1· Gelehrten-Lexicon l'a~·ao. ba ·tante ·imples de superar. e que acahou por ser superado de urna
1 Léxico Geral de Termos Eruditos 1, vols, 1-TV, Lcipzig, 1750-5 l ; sobre Míson, vd. vol. maneira ainda mais simples do que cu pensara. Ocorreu-me designada
ni. p. 798.
18 Louis Moréri ( 1643-1680), autor do Grand dictionnaire historique, 011 le 111é/011¡;:e
curieux de l'histoire sacrée el profane [Grande Dicionário Histórico ou a Curiosa Mis- lla~ileia de 17 31-1732. Sohre Míson. vd. vol. V. p. 449. e sobre o~ sábio!I grego\ com
tura da 1 listória do Sagrado e do Profano! de 1674: Kicrkcgaard possuta urna cdi~ao de mcn\:ªº de Diógencs Laércio. vtl. vol. VI, p. 230.
J7

mente que estos papéi« poderiam transformar-se em pecúlio. Achei que vulu t'Ol'11;11lc 1100 é de lodo passfvcl de ser exposta. Os papéis de B conti-
seria deccrto ajustado que eu rccebcsse uns pcquenos honorários pelo meu oluun 1111w visño ética da vida. Enquanto dcixava a minha alma sob o
esíorcado trabalho como editor; mas honorarios de autor, tinha de 1 ¡1 110 <k:sl<.::-. pcnsarncntos. tornou-se para mim claro que podcria dcixar
considerá-los demasiado elevados. Tal como os íntegros Iazendeiros de A fllll cs,cs pcnsumcnros me levassern a determinar o título. O título que
Dama Branca 19 clecidiram comprar a propriedade e cultivá-la para a ofe- 1,uilhi exprime precisamente isro. O que o leitor possivelmcntc perderá
rccerern depois aos Condes de Avenel/", se algurna vez eles houvessern de 1 l!ill este título nao pode ser grande coisa,já que durante a leitura pode até
rcgressar, assim dccidi eu por a render todos os honorarios por inteiro, 1111111o l>c111 csqucccr o título. Depois de ter lido o livro, talvez possa, entáo,
para que se algurna vez os ignotos autores houvessern de dar-se a conhe- pl ustu no rftulo. Ora isso libertá-lo-á de qualquer pergunta finita ~ara sa-
cer, cu pudesse dar-lhcs tudo como respectivo rendimenro e o rcndimento lil 1 :-.~·A ficou agora realmente convencido e se arrepcndcu, se H triunfou ,
do rcndirnento. Se por minha completa inépcia o lcitor nao se houver ain-
1111 se porvcntura aquilo acabou com Ha ceder a opiniáo de A. Quanto a
da certificado de que cu nao sou autor nenhurn, ncm sequer um literato que
1~111• os papéis nao térn designadamente qualquer conclusáo. Se. al.guém
faca de ser editor a sua profissáo, entáo, com certeza que a ingenuidadc
1,;i 1ilN1dcrar que isto nao está cerro, também nao se encentra no dire.Jt~ d.c
deste raciocínío acabará com todas as dúvidas. Portante, este escrúpulo Ioi
di1c1 que se trata de urn erro, pois que teria de chamar-se-lile urna inlcli-
superado de urna maneira bastante mais simples, visto que na Dinamarca
1 1ilndc. Pela parte que me toca, considero que é urna felicidacle. Deparamo-
os honorári.os de autor nao sao urna herdade, e os ignores autores teriam
110, por vczcs com novelas c1n que sao expostas cluas visoes da ~ida
de ficar alastados durante rnuiro tempo, antes que os seus honorários,
1 rn1lnidi16rias através de determinadas personagens. Costumam lcrrnmar
mesmo com o respectivo rendimento e o rendimcnto do rendimcnto, pu-
dcsscm transformar-se cm peculio. 1 ¡1111 11111 dos pontos ele vista a persuadir o outrn. Em vez de deixar que
Rcsrava agora dar simplesmcnrc um lítulo a éstes papéis. Poclcr-lhcs-ia l Jll c~sc ponto de vista a ralar por si' rornece-se ª? lcitor o resu~t~clo his-
chamar papéis, papéis póstumos, papéis encontrados, papéis perdidos. ln11rn: toi o outro quern ficou persuadido. Considero uma fehc1dade o
etc.; como é sabido, há urna multiplicidade de variantes, mas ncnhurn l.n lo de cstes papéis nada esclarecerem ncsse sentido. Se A é autor dos
destcs títulos iría satisfazer-rne. Ao determinar o título. concedí a rnim 1'i1:-. op1h.culos estéticos dcpois de ter rcccbido as carlas el~ ~- se ~ .sua

proprio urna liberdadc, urna impostura, da qua! me esforcarcí por dar con- 11111:1, passado esse tempo, continuou a revirar-se na sua.bravrn 111doc1.li~a-
la. Durante a minha ocupacño permanente com estes papéis, fez-se-me luz: cl1. 1111 ,e ela se aquietou, é eoisa sobre a qual nao me s1nto cm cond19ocs
podía ganhar-se urna nova perspectiva, considerando-os corno pertcnccn- tl1· p1l'Slar urn único esclarccimcnto, ciado que os papéis nenhum esclare-
tes a uru mesmo individuo. Sei muito bcm tudo quanto há para objeciar 1 i1m·1110 contcm. Também nao encerram qualquer indício sobre o que
contra esta obscrvacño: que nao é histórica, que inverosímil, que irra-
é é
lll OlllC<.:CU a IJ, se ele teve for9a para mantcr O SCU ponto de vista OU nao.

zoável que um mesmo indivíduo pudcsse ser o autor de ambas as partes e, l lina vez Jido o livro. esquece-se A e B, ficam só os pornos de vista dian-
isto, cmbora o Ieitor pudcsse ser facilmente tentado pelo trocadilho: quan- h 11111 do outro sem esperar por qualquer rcsolu9ao final de determinadas
do se diz A, também tem de dizer-se Il21• Entretanto, nao fui todavía capaz ¡111so11aliclades.
ele desistir. Trata va-se, cntño, de alguém que na sua vida havia 1211 efectu- Nada mais tenho a comentar. apenas me ocorreu que os honrados auto-
ado integralmente os dois movimentns, ou havia ponderado os dois movi- l\'' ·se.: estivessem ao corrente do meu cometimcnto, desejariam possivcl-
mentos. Os papéis ele A coruinham dcsignadarncnte urna tnultiplicidade de ltll'lltc f'azer acompanhar os seus papéis ele uma palavra ao leitor. Acrescen-
incursócs cm torno de urna visño estética da vida. Urna visño estética da 1111 ci, por isso, algumas palavras, com parcimónia. A certamente n~da teria
11 11hJc<..:tar contra a publica<;ao dos papéis, e seria provável que gn~asse ª?
19 l a dame blanche [A Dama Branca] ( J 825), ópera cómica <le Frani;ois-Adricn Boicl- lc.'itor: «Quer leias, quer nao leías, arrepen<ler-te-ás de ambas as co1sas.» E
dicu ( 1775-1834), extremamente popular cm París e rambém ern Copcnhaga, na adap- llllllS difícil determinar o que B diria. Talvcz me fizcssc 1221 uma ou outra
ta<;ao de 1826 de Thomax Overskou ( 1798-1873): o libreto 6 de Eugéne Scribc (J 791-
11dvc.:rtcncia, cm especial no que diz respeito a publicrn;:ao dos papéis de A:
-1861 ), bascado cm Tite Monastery [O Mosteiro] de .1820, romance de Walier Scou
(1771-1832). 1111 rnc-ia sentir que nada ele seu ali havia e que podia lavar daí as maos.
20 Personagcns <le La dame blanchc. l l111a vez isto feito, dirigir-se-ia talvez ao Jivro ncstes tc1mos: «Yai, cntao.
21 Trata-se do primciro ditado recolhido por N. F. S. Grundtvíg (1783-1872)
em Danske ¡wlo mundo fora, evita se possívcl a atcni;ao da crítica, visir~ em bo.a .hora
OrdJ1JTOfi og Mundheld [Proverbies e Adagios Dinamarqueses). Copenhaga. J 845. p. 1. 11111 lcilor singular»; e, houvesscs tu de deparar com urna lettora, cima eu
entáo: «Minha cstirnávcl lciiora. encontrarás ncstc livro algo que porvcnru-
ra nao deverias saber, e urna mitra coisa da qual tirarías proveito cm ficar a
saber; lé pois esse algo de modo a que. tu que o leste, possas ser como
aquclc que nao lcu, e a outra coisa, de modo a que, tu que o leste, possas
ser como aquelc que nao esqueceu o que leu.»22 Na qualidadc de editor,
quero apenas acrcsccntar o descjo de que o livro venha a encontrar o leitor
numa boa hora, e que a estimável leitora venha a ser bem-sucedida no es-
crupuloso cumprimenro do bem-intencionado consclho de H.

Novcmbro de 1842. Índice

O editor \1u 1¡1uA.µttTCL 41


, e)<; Est(ldios Eróticos (mediatos ou o Erótico-Musical 81
1 e) lh:t lcxo do Trágico Antigo no Trágico Moderno 173
1 \dhucta'> 203
~ 1l111ai-; Infeliz 251
,, < J ¡•1 imriro Amor. Urna Comédia em Um Acto de Scribe,
l uuluzida por J. L. Heibcrg 267
;\ Rotai;ao de Culturas 313
1 li.1110 do Scdutor 335

22 Ch termos corn que Víctor Eremita se dirige ao lcitor, e a leitora, aproxiuuun-xe das
considcracóes dirigidas ao leitor nox prcfácios, <to~ diversos livros de discursos edifican-
te.'. publicados, cm 184.1e1844. Vd. SYI. vol. lIL pp. lle 271. vol. IV, pp. 7, 73 e 121.
e vol. V. p. 79: e SKS. vol. 5. pp. 11. 63. 113. 183. 231 e 289.
ólA'PAAMATA
1

ad se ip5um2
1261
1171

Grandeur, savoir, renomée, O que é um poeta? Um homcm infeliz que esconde profundos tormentos
Amitié, plaisir el bien, 110 coracño, mas cujos lábios se moldarn de tal forma que suspiro ou grito
'lout 11 'est que ve111. que [umée: cpll' deles irrompa soa como urna bela música. Acontcce-lhe como aos in-
Pour mieux dire, 10111 n 'est rien.3 lt•li1.cs que dentro do touro ele Fálaris4 cram lentamente torturados cm turne
luundo; os scus gritos nao alcancavarn os ouvidos do tirano para o aterro-
111ar, soavam-lhe como urna música suave. E as pessoas aglomcram-sc a
voila do poeta e dizcm-lhe: canta logo curra vez! como qucm diz: oxalá
uovos sofrirncntos atormentcrn a tua alma e os teus láblos pcrrnanccam
moldados como antes, pois o grito havcria apenas de angustiar-nos, a rnú-
... it'a é porérn celestial. E os reccnseadores avancam e dizcm: está cerio, é

,1..,~im que eleve ser de acorde comas rcgras da estética. Ora é evidente que
11111 rccenseador tambérn se parece com urn poeta como duas gotas de agua,

so que nem no coracíío t.em tormentos, nern nos lábios tern música. Vede,
prcfiro por isso ser porqueiro cm Amagerbro5 e ser entendido por porccs,
d\\ que ser poeta e ser mal entendido pelos homens.

* *
1 ~m grego no. or~ginal; «diapsatmata», plural de «diapsalma», designa ern grego «in-
t.e.1v~lo no recuauvo de um cantar», «interlúdio musical», aplicado tambérn corn 0
*
scnt~do ele :<mudanr;a. de tom». No singular, foi usado para rraduzir o hebraico «Selah»
nar,Septuag11.
A primeira pergunta na prirneira e mais compendieuse'' li<;ao ministrada
¡ · lta, a · mais
· anuga das traducóes.,. dos· livros da Bfbliae hebraica ' '
p·ctr,1· grcgo.
2 ·~m aum no original: «para si próprio». :t urna crianca é, como sabido, a scguinte: o que quer o bebé? A resposta
é

3. E1~ francés no original: «Grandeza, saber. fama,/ Amizade , prazcr e bem,/ Tudo nao
p.iss.'t de vento, e de fumo: I d1zcnd? melhor. rudo nao passa de nada», citar;ao de Paul
~~U1s~on (1~2¡-1693).111 tEuvres diverses [Obras Diversas]. París, 1735, vol.I, p. 212. 1 Instrumento de tortura inventado por Falaris, tirano de Agrigento. na Sicília , no sécu-
eiIsos. pro'
. av el mente recolhidos em «Zerstreute · · ·Annierkungen
• ,, . 1· das
. 1·1· ·h<:' . E'·¡>·tgrmnm lo vt a. C.; a vítima era supliciada dentro do touro, colocado sobre uma togueira: ao
111'.' euug~ der vornehmsten Epigr~1r1111a1iste11.»1 «Anotacñes Dispersas sobre 0 Epigra-
aproximar-se da boca do touro para escapar ao sufocamento. os gritos da vftirna soavam
ma e sob1e A_lgu~s dos mars D_1st111tos Epigrarnistas»]. de Gottholtl Ephraim Les~ng como urna melodía harmoniosa, já que a boca do animal eslava talhada como um ins-
(1729-1781).111 Gouhold Ephraim Lessing'.s sümtlirhe Schriften 1 Escritos Completos de
G. ~- !-'·], Be~ilm. 1~25-1828, vol. XVII, p. 82: vd. Gouhold Ephrairn Lcssing , Werke
trumento de sopro.
'i Arnagcrbro, a parte norte da ilha de Arnager, onde habitava urna parte dos lavradores
[Obras],
, . Munique,
. Carl
. Hanser
. Verla«.,,, vols . !-VIII , ·1970
. · . V'. « Lit
- 1979· , \'OI 1 eratur · ík·
. ktnti que abasteciam os mercados de Copenhaga.
f oetik und Philologie» [«Literatura, Poética e Filologia»], 1973, p. 425. ' 6 Em francés no original: «sucinta».
44
45

é: tau-tau". E corn ob:-.crva<,:oes dcsta espécie corncca a vida e. no entant


Conselho aprovado? para autores
nc.ga-~e o pecado original. E a quem tem todavia a enanca ele agradecera
pnrncrra sova, a nao ser aos país.
Asscntu-sc negligentemente as suas proprias observacóes. manda-se
1111p1 irnir e, durante as diferentes rcvisóes de prevas, ocorre-nos cutáo a
* * )HlllCO e pouco urna quantidade ele boas ideias. Tende por isso coragern, vós
* qt1c ninda nao arriscastes ter algo no prelo; também as gralhas tipográficas
11110 sao de dcscurar, e ser-se espirituoso por via de urna gralha tipográfica
Prefiro.. fala_r ,~om .crianr;as. pois delas ainda podemos esperar que se
k16 de ser considerado como urna maneira legítima de o ser.
tornern seres racionars; mas Jaqueles que nisso se tornararn . · D
livre! . . e 'ai,. cus me
* *
*
* *
* E111 gcral , a irnpcrfeicáo em tudo o que é humano consiste apenas ern
1281 l)Dssu ir através do seu contrario aquilo que se deseja arden temen te 10. Nao
¡ 11 ctcndo talar da multipl icidade de Iorrnacóes que podcm bastar para dar
~ Os ~iomcn: sao 1~esmo irraz~ávcis. Nunca utilizam as libcrdades que
qt1l' f'al.cr aos psicólogos (o melancólico tem rnais sentido do cómico, o
tein, ~111es ex1gem aquelas que nao rém: térn Iibcrdadc de pcnsamcnto exi-
gern liberdadc de expressño, · exuberante tcm arniüdc mais sentido do idílico; o dissoluto tem amiúdc
111:11s sentido do moral; o duvidador tem amiúde mais sentido do religio-
~o): qucro táo-somcntc recordar que só se vislumbra a suprema felicida-
* * <11· urravés do pecado.
*
4 1 ( 'onxclho rnuito scmelhantc ao expresso por E. T. A. Hoffmann (\4mvort des I leraus-
Na~ me :1pctece mesmo nada. Nño me apetece montar, um movimento
é
~· brr« [Prefacio do Editor], in l.cbens-Ansichten des Katers M11rr nebst frugtnentaris-
demasiado. intenso: n~o me apetece andar, demasiado extenuante· nao me
é
' /11•1 Biographi« des Kapellmeisters Johaunes Krcisler in :.u/iifligenMukulaturhlduern
apetece ~e1tar-me, pors ou haveria de ficar deuado, e isso nao me 'apetece I V1(l:1 e Opiniñes do Galo Murr Apcnsas a Biografi« cm Frngmcnros clo Mestre Capela
<~u haverín de levantar-~ne outra vez, e tarnbém nao me apetece tazcr isso. Jnll:11111e~ Krcislcr em Folhas Sollas de Papel Maculatura] de J819. Vd. igualmente
Sununa Suntmarumr, nao me apetece fazer mesmo nada. q11<11Jn dos cinco prefacios de Pe ter Schlemihl ( 1814) de Adelbcrt von Chamisso. tal
rnnm sugerido por J. Purvcr em «Eichendorff: Kierkcgaard's Reception ora Gcrman
lt1u11;intic». in «Without Aurhority: Kicrkegaard's Pscudonyrnous Works as Romantic
* * Nu11 .uivcs», in KierkegaardStudies. Yearbook2007. edicño ele Niels J. Cappelern el al..
* lkili111, Nova Jorque: 2007, pp. 401-423: aqui, p. 412.
10 Aqui , «det Attraaede», Ao longo da presente obra, ocorrcm paralelamente dois ter-
... ~ s~b~do que há insectos que °'.orrem no instante da fecundac;ao; tambérn n10' airavés dos quais a língua dinamarquesa distingue duas modalidades de dcscjo, para
assun acontece ~om toda a alegria, o mais intenso e voluptuoso momento ••1' quais a lfngua portuguesa nao possui urna equivalencia rigorosa aplicável a todas as
de prazer é acolitado pela rnorte. vuléncias morfológicas em que csscs tennos sao usados; trata-se de «allraa». na grafia
lll'tual «attrch>.e de <<f)nske». O primeim C011'espondc ao dcscjo arden te, veeJllente, cúpi-
do e, cm determinados contextos. aproxima-se do fünbito sernantico de <<atrair», «atrne-
* * \':lo>> e «atraentc»: o segundo denota a significac.;ao gcral de «desejo». podendo todavía
* 11plic:1r-sc tarnbém ao domínio erótico. :\fo intuito de permitir ao leitor <1 distinc;ao entre
º' dois tennos, e principalmente porque n uso de «atlraa» e seus derivndos implü:a uma
111odalidade de desejo em resposta a um estimulo forte, predominantemente erótico.
7 Em di1~amar~ucs. a ono1.11at.opeia «da­da» rcproduz o balbuciar infantil, sendo igual-
optou-se por traduzir, ao longo de toda a obra, «attraa» por «descjo ;u·dente». e «at at­
mente utilizada corn um significado e urna intencáo equivalentes ao uso ern portugués
de «tau-tau». "' · 111""' por «descjar ardentemente» ou «dcscjar com ardor», procedendo-se a adaptni;ocs
8 Ern latim no original: «a soma das somas», «em suma». rnn~oante a morfo logia do termo no original, assinalando-sc cm nota, sempre que for
111lrado pertinente para o comexto do capítulo em questao, qual o termo no texto original.
46 1 'JI Ou. \)111 P111¡.:111e1110 de Vidn 47

* * , lu 11ulr1111e11 wlederltoltes Gefiihl des Sclunerzens» (cf. Flogcl, Geschichte


* 1!t 1 1·n1111.1·c!te11 Uueratur; Band I. pág. 50).14 E se tudo no mundo Iossc um
1111111 cntcndimcnto, e se o riso íossc realmente choro!
1291
Para além dos rneus restantes e numerosos conhecimentos, tenho ainda
um co~1fidente íntimo - a minha melancolía; no mcio da minha alegria. *
no mero do meu labor, acena-mc, chama-me ao lado, embota físicamente
e~ n~o saia ?º
lugar. A rninha melancolia é a amante mais fiel que conhe- 1111 ocasiñcs particulares em que ver alguérn completamente so no mun-
ct , nao admira cntáo que cu lhe retribua o amor. 1111 pode atingir urn indivíduo com urna dor tao infinita. Vi assim neutro dia
11111,1 rnpariga pobre, dirigindo-se completamente so para a igrcja para rece-
* * 111 1 11 con Iirmacáo.
*
* *
1 lá no raciocínlo um palavreado, que na sua infinitude está para 0 rcsul- *
tad~ ta~ ~orno as intermináveis listas dos reís egípcios estáo para 0 proven-
to h1stonco. l IOI
Con ta Cornclius Nepos15 que cerro general, rendo ficado prisionciro e
* * 11 l1do 110 interior ele urna fortaleza com um importante regimento de cava-
* 11111!1, maudava chicotear os cavalos tocios os días para que nao houvcsscm
dt• sotrcr danos dcvido i1 prolongada inaccáo - assim vivo eu nesta época
~ velhicc realiza os sonhos dajuventude11: é o que se observa cm Swift12; 1 llllHl urn sitiado; mas para nao sofrer danos devido a prolongada inaccáo,
na juvcntude construiu urn mnnicórnlo, na velhicc foi ele qucm para Já foi. t horo até a cxaustáo.

* * * *
* *
Quan_do se ve com que profondidade hipocondríaca os antigos ingleses
descobrirarn o equívoco que dá fundamento ao riso, tern de ficar-se angus-
tiado. O Dr. Hartley'- comentou o seguinte: «dq/3 wenn sicñ das Lachen 1 1 1 \111 alcrnño no original: «que quando o riso se manifesta pela primeira vez nas crian-
zuerst bei Kindern zeiget, so ist es ein entsteheudes Weinen, welches durcñ .,11~. e .:nliío um choro nascente provocado pelador, ou um scnrimcnro de dor, rcpcnti-
Schmer; erregt wird, oder ein plotlidi gehemmtes und in sehr kurzen Zwis- 1111111t·111c refrendo e repetido em intervalos de tempo rnuito curtos». Edi9lio consultada
1wl11 autor: Karl l-riedrich Plogel ( 1729-1788), Geschichte der komischen Litteratur
l l li.\lcíria da Literatura Cómica], vol. 1-IV, Liegnitz e Leipzig, 1784-87: vol. l. p. 50.
11 Ci~a9ao indirecta ..de urna formula9ao goetheana: «Was 111a11 in der Jugend wünsclu, hut l 'I Coruelius [Cornélio] Nepos (c. 99-c. 24 a. C.), historiador e biógrafo romano; as
man_ un Alter die Fiille» 1 «Aquilo que se rieseja na juventude, tcm-se crn abundancia na l1111i•ralias dos generais gregos pertencem ao livro De excellentibus ducibus exterarum
velhice» 1. Vd. Goethes Werke.HamburgerAusgab« 1 Obras de Goethe, Edicño de r Iarnbur- i¡1•111it1111 [Dos Excelentes Chefes dos Povos Estrangeiros¡ e as de Cato. o velho. e de
go l, vols. 1-XIV, l-lamburgo: Christian Wcgner, 1948-1960: vol. IX (Au1ohiographische A neo. ao livro De La1inis his1oricis LAcerca de Histórias Latinas]. Vd. «Eumenes», livro
Schriften, F:rster.Band [Escritos Autobiográficos. Primeiro Volumej), 1955. p. 217. V. <I 5. Obra disponível para consulta do autor: Comelii Nepotis vitae excel/en1i11m
12 ,J?natha11 Swift (1667-1745), escritor e ensaísta ingles, cujos textos marcadamente 1111¡11•ra1om111 LVidas dos Excelentes lmperadores de C. N.], París, s. d .. p. 99. Vd. The
sat~n~os assu1~e111 relevancia na tradicáo da sátira maniqucia; debilitado pela docnca de /11111Á of Comeliu.1· Nepos on the Great Genera Is of Foreign Natirms. X V 111,.ou Corne-
Me~1er~, dest1'.1ou os seus bens em testamento a construcño de um hospício, hoje SI. /111s Nepos, together with Lucius An11aeus Florus. traduc,:lio de John C. Rolfc (Loeb),
Patrick 's Hospital, ern Dubl in. · Nnva Jorque: Putuam, 1929, p. 583: e a 1radll(;ao portuguesa de Joao Felix Pereira:
13 Da.vid Hanley (1705-[757). filósofo ingles e fundador da correntc associacionista ( \H nclio Nepote. Vida dos Capit{les Ilustres. Lisboa: lmprensa de Lucas Evangelista
cm psicología. l'urrcs. 1888. pp. 125-127.
1 •11 < >11 U111 1 • ·•!•111l·11111 d\: \ 1d.1

Do rncu pesar!". digo o que o inglés diz da sua casa: o mcu pesar is 111v
111 ¡, ,,., < muo u111 paxa com trés rabo-, de cavalo-', cioso de mim mesmo e dos
casi/e. Muito · homens consideram que ter pesaré urna das comodidades 111 1" Jll.'11\amcmo-;. tal como o banco cioso do scu papel-moeda, e sobre-
desta vida.
é

t11d1111111 1cf lcctido cm mirn 1111.:smo como um pm110111en reflexivum, Mas, se


1 111klil·1dadc.., e nos pesares se aplicasse o que se aplica as obras conscien-
* * 1• 1111 11k boas que aquclcs que as fazern ficarn sern recompcnsa22 - • se
* 'ti ,\' upl1ctMc aos pesares, cu seria entño 1311 o mais feliz dos hornens, já
•1111 .uuccipo todas as prcocupacóes e, no entanto, fico com todas elas.
Sinto-rne como urna peca de um tabuleiro de xadrcz tem de sentir-se
quando um jogador diz a seu respeito: essa peca nao pode ser movida. '
* *
* * *
* l•11l1'l' outras coisas, exprime-se na literatura popular urna enorme forera
É por isso que Aladdin11 é tao revigoranrc - porque esta peca possui 1111t'l1r:1 a de ter vigor para cobicar. Em comparacáo com esta forca poética,
~ma audácia infantil e genial na maioria dos scus rnai extravagantes dese- , 1 nhh;a do nosso tempo é ao mesmo tempo pecaminosa e erucdiantc, por-

JOS. Ora quantos havcrá cortamente no nosso lempo que, na verdade ousern q1w cobica o que é do próximo. Essa literatura el>tá bem ciente de que o
dcscjar, ousern cobicar, ouscm dirigir-se ~t naturcza nem que seja com um I''°'""º possui tao pouco o que procura quanto ela própria. E se vier a
gracioso e infantil bine, bi11e1R, ou coma fúria do inclivíduo perdido? Quan- , 111lu;ar pccamino: amente. será de bradar tanto aos céu'> que terá de abalar
tos havcrá, no scntimcnto daquilo ele que tanto se fala no nosso tempo - 11 l111111cm. Nao se deixa depreciar pelo frio cálculo de probabilidades do

a
que o horncrn é criado imagcrn de Dcus - , que tcnharn a verdadeira voz 11, º'airn entendí mento. Don Juan ainda pisa o palco coma~ suas mil e tres
de comando? Ou nao estarnos ali todos como Nourcddin!", a fazcr vénias e 1111111111cs ''. Ningu6m ousa sorrir com deferencia diante da vencrabi 1 idadc da
reverencias. na angü tia de exigir a mais, ou de exigir a menos? Ou nao se 11ll(lu;fio. Se um poeta houvesse ousado tal coisa no nosso tempo, ter-se-iam
reduzirá a pouco e pouco qualquer exigencia grandiosa ao mórbido refle- 111111 dele a bom rir.
xionar sobre o eu, do exigir ao estar corn cxigéncias, como de facto lomos
para tal educados e instruidos.
* "'
*
* *
* e 'omo fico estranhamente nO'\táJgico s6 de ver um pobre coitado
1111 a-;tando-se pelas ruas vestindo um casaco verde-claro, bastante c~ado e
Sou ti~orato como um sheva. fraco e mudo como urn dagesch /ene20.
l om laivos de amarelo24• Tive pena dele: ma-; o que todavía mais me como-
como se fosse urna letra irnprcssa na linha ao contrário, e todavía sem rna-

16 «Sorg» urn tlos tennos muis rccorrcrucs cm 011-011, cm especial nos capftulos «Ü
é
11 Prov:ível alusao a um estandarte corn tres rabos-clc-cavalo ui.ado cm cerimoniais
Rcflcx.o do Trágico Antigo no Trágico Modemo» e «Silhuetav»: 110 primciro, é scrnprc du1,1111c o lmpério Otomano.
trad,u11do por «pesar»,ªº. paxso que 110 segundo a op9ao rccaiu sobre «míigoa». No
capítulo presente. é traduzído por «pesar».
>, /\pó~ o Sermao tia Mo11tanha. Cristo exorta os scus seguidores a dar esmola. a orar
l ,, 1cj11ar cm recolhimento sem buscar recompen~a. Cite-se. a título de excmplo. Ma-
17 J'e1:sonagem de Ataddin, eller Den forundertige' Lampe [Aladino, ou A Lampada lrni-. 6: 1: «Guardai-vos. nao fac;ais ai. vossas boas obras <liante dos homc11s. como fírn
Mara:llhosal ', de Adam Ochlcnschlager. Vd. Adam Oehlenschliiger» Poctiske Skrifter 1k ,crdes vistos por eles: de outr.i so11e nao tereis a recompensa da müo de vosso Pai
[Escritos Poéticos de A. 0.J, vols. 1-11, Copcnhaga, 1805; vol. ll. pp. 75-436. Entre J 839 <¡Ul' esuí nos céus.»
e 1842. a peca foi representada vintc e duas vezcs no Teatro Real de Copcnhaga. '\Vd. ária do catálogo,W. A. MoLart, Don Gim·a1111i. Acto l. cena 5. 11." 4.
l8 Em alemño no origiual: «por favor».
2•1 Vd. descrir,:üo sc111elha11te cm/\ RepNir<io, no momento em que Constantius conlir-
19 Nourt.'<.ltlin contraccna com Aladdin na mesma J>C\:ª de Oehlenschlager.
111a a impossibilidade de rcpetic¡:iío. descric¡:ao que por ~ua vez retira igualmente clemcn-
20 Na lín~ua hebraica. o sheva urna marca consonilnl ica cuja pronunciacño, como
é

n~ma sermvogal, eleve '>C.r v.o~~lica. ao passo que o dagesch lene indica urna pronuncia-
'º' figurativos do «diapsali11a)> sobre os violinistas cegos. adia111c. pp. 67-68. Vd. SV 1.
vol. 111. pp. 208-209. e SKS. vol. 4. p. 70: cm p<>rtugues: ~ Repeti¡:ao. tradu~ao. intro-
~ªº forte, oferecendo resrstencra á consoantc, em vez de a suavizar.
du¡;ao e notas tle José Miranda Justo. Lisboa: Relógio D'Agua. 2009. p. 76.
50
t )11 Ou, LJ 111 Frogn tí.!lllo de Vid u 'il

veu foi o facto de essa mesma cor do casaco me recordar, ele mancira tao
vívida, as primeiras criacóes da minha infancia na nobrc arte da pintura. * *
Esta cor era precisamente urna das minhas couleurer25 favoritas. Nao é
*
deveras de lastimar que estas misturas de cores, nas quais ainda penso corn
Ouño cstércis sao a minha alma e o mcu pensarnento e, cornudo, tao
tanta alegria, emparre algurna da vida se encontrern! O mundo intciro acha
i Ht'l:ssunlcmcntc atormentados por atrozes dores de parto, vazias e volup,\u,-
que sao bcrrantes e garridas, adequadas apenas para estampas de Nurem-
berga26. Uma única vez que esbarrernos com aquelas cores, e o encontro
1 "'"' S~r{i que o freio da língua do espírito nunca para mim se soltará?",
,1 1,1 que scmprc balbuciarei? Aquilo de que nccessito é de u.rna voz ~ene-
há-de ser tao desventurado quanto agora este. l Iá-de ser sempre urn pobre
11111111: como 0 olhar de Linccu-", aterrorizadora como o suspiro dos gigan-
de espírito ou urn aleijado, em suma, sempre alguém que se sentc como um
11·s '". persistente como um som da natureza31, troc:_ista com~2 um golpe de
estranho na vida, e que o mundo nao qucr reconhecer. E eu que sempre
vr-nto gélido, maldosa como o desprezo sem cora9ao do ceo· , de urna ~x-
pintei os mcus heróis com csres tons nos trajes, de urn verdc-amarelado
ll tt~ao entre 0 baixo mais profundo até aos mais requebrados. dós de.!)~t~~·
eternamente inesquecível ! Nao assim que acontece com todas as misturas
modulada desde um murmúrio suave e santo até a energia d~ luna-3.
é

de cores da infancia? Aos nossos olhos pardos, o brilho da vida de outrora


1~ disloque ncccssito para ter ar, para dar cxprcssño aoque me vaina. mcn-
torna-se gradualmente demasiado force, demasiado garrido!
11', para fazcr com que se agirem tanto as vísceras da ira c?mo as d.a s1 mpa-
1111. Mas a minha voz é unicarnente rouca como um gnro de gaivota, ou
* * dt•sralcce como a bcn9ao nos lábios de urn mudo.
*
1321 ***
Ai ! A porta da fortuna nao abre para dentro. de modo a poder escaneará-
-Ja ao entrar de rornpantc: abre antes para fora e, por isso, nada há a fazcr,
o que irá acontecer? O que trará o futur?? Na? sei , ~ada prcssinro.
Quando urna aranhu mcrgulha na consequéncia de st ~1 partir ele um ponto
* * a
l rxo, ve sernpre um cspaco vazio sua frente, onde nao é capa~ ele encon-
unr apoio firme, por mais que espcrncic. Assim acontece corrugo; sempre

Tenho coragern. crcio eu, para duvidar de tudo; tenho coragem, creio cu,
para lutar contra tudo; mas nao tenho coragern para reconheccr urna coisa: 'X Le-se na narracño da cura de um surdo e gago. em Marcos 7:35: «E lngo se abriram
nao tcnho coragern para possuir, para ficar na possc de alguma coisa. os scus ouvidos, e a prisáo da língua se dcsfcz, e falava perfeitamentc.» .
A rnaioria das pessoas qucixa-sc de que o mundo é tao prosaico que, na H) l lm dos Argonautas, conhccido pela sua visan apurada, decisiva para '.natar o Javali

vida, nao se passa como nos romances, nos quais a oportunidadc sempre é
de Calídou. Corn 0 innño Ida, assassinou Pólux e Castor, vingando assun o rapto de
tao vantajosa; queixo-rne de, na vida, o mundo nao ser como nos roman- é
h:be e Hilária, filhas de Lcucipo. .
\O Referencia aos gigantes da mitologia grcga, os quais, uma vez venctdos pelos deuses,
ces, nos quais tem de combarcr-se país de coracáo empedernido, an6es e fnram aprisionados no interior dos vulcoes, sendo as crup¡¡:ocs causadas pelos seus sus-
trolls27, e libertar princesas encantadas. O que sao Lodos éstes adversarios, piros e qucixumes. . . . •
comparados com as pálidas, exangues e tenazes figuras nocturnas que eu 11 Sobre a «ironia da naturcza». vd. Sobre o Concello de Iro111a em Cons/unle Referen-
combato, e as quais dou eu mesmo vida e existir. áa a Sócrates, SV 1. vol. XllL p. 329. e SKS, vol. 1, p. 292. . , , ....
12 Na mitología grcga, Narciso era amado por Eco. urna das n.mlas Oreade;. ReJc1t.1<la
r Narciso Eco <lesfez-se em água criando urna lagoa, ouvtndo-sc nas aguas o seu
melancólico ' murmúrio. Para castigar Narciso, a e1 cusa N cmcs1s
po , · fez cor n que ele. se.
25 Adaptacáo do termo francés «couleurs» («cores») a flexño do plural do substantivo
na língua dinamarquesa. apaixona.sse mortalmente pelo scu próprio rcflexo na lagoa de Eco. Na hora de ser 111c1-
26 Cidade alemü no Norte do estado da Baviera, grande centro de artes gráficas e de nerado. as ninfas viram que Narciso havia dado lugar a uma flor. .
industria diversa. 33 Quando Elias sobe ao monte l-lorcb. a passagem de Deus é dcscnl.a .ª~·ravés d~ c~t~~
27 Seres antropomórficos da cultura popular escandinava, habitualmente representados clismos mua manifosta<,:ao de sinal contrário a voz com que Deus se dinge ao p10tcta,
com enormes orelhas e narizes. que dearnbulam por montanhas. escarpas e cavernas. vd: 1 R;is, 19: 12: «E depois do tcrramoto. um fogo. porém, tambétn, o Senhor nao es-
lava no fogo, e dcpoi.s do fogo, urna voz mansa e delicada.»
52
S0n:11 1-: 1c1 i-cguard 53

um espaco vazio a frente, o que me empurra 1331 urna consequéncia xitu-


cm ca ... a, salvou a tenaz da lareira? Que mais pñcm eles devoras a salvo do
é

ada atrás de mirn. A vida está virada ao contrario e horrível, nao super- é
1•r11ndc incendio da vida?
é

tável.

* *
* * *
*
Falta-me acima de rudo paciencia para vivcr. Nao sou capaz de ver a
A prirneira fase do cnamoramento é certamente o tempo mais belo,
relva a crcsccr'", mas quando nao consigo fazé-lo. ncm scquer me dá para
quando em cada encentro, cm cada olhar, se leva para casa algo de novo
para alegria nossa. me pór a olhar. As minhas intuicócs sao observacóes passageiras ele L~m
«[ahrender 1341 Scholastikersí' que se precipita pela vida adentro na ~a1or
das prcssas. Diz-se que Nosso Scnhor sacia o estómago antes ~e saciar. os
* * olhos, coisa que nao consigo discernir: os meus olhos estáo saciados e lar-
* lo~ de ludo, e todavía tenho fome.

A rninha observacáo da vida inteiramcnre desprovida de sentido. Ad-


* *
é

mito que um espírito malévolo me tcnha colocado uns óculos no nariz, nos
quais uma das lentes aumenta numa escala monstruosa, e a outra diminui *
' de acordo com a mesma escala.
lucam-me perguntas sobre o que quiserern, só nao me tacam pcrguntas
sobre fundamentos. Pcrdoa-sc a urna jovem rapariga que nao scja capaz de
* * adiantar fundamentos, diz-se que vive de sentimento. Comigo é diferente.
* 'Icnho na gcncralidade tantos fundamentos, e na maior parte das vezcs re-
ciprocamente conrraditóriosl", que se torna para rnirn impossível. por isso
O duvidador um Me¡.uxoi:(yop.1wo~34; aguenta-sc, como um pifio, so-
é

bre urna extremidade, durante menos ou rnais tempo ern fun9ao das chico- 16 /\dapta~iio do adagio «at kunne /ipre graisset ¡.¡rv>>, literalmente, «poder ouvir a relva
radas, mas nao é capaz de ficar em pé. tao pouco quanto o piño. a crescer», usado para designar mu ita cspcrteza e múltiplos talentos. Na saga Elida (c.
1220) de Snorri Sturluson ( J 179-1241), o domé atribuído ao deus Heimd~I. .
* * n Em alemño no original: «viajante escolástico». correspondcntc ao latim «cle1:1rns
vugans», cm referencia as deambulacóes dos univcrsitários medievais entre as un1.ver-
* sidades e as abadías da Europa Central e Setentrional. A exprcssño pode estar associada
a out ro dos papéis assumidos por Víctor von Hohcnstcin, o protagonista da novela .Pe ter
Entre todas as coisas risfveis, parece-me que a mais risívcl de todas é Srhlemihl, de A. v. Chamisso: mas tambérn a Mefistófeles. quando aparece a Fausto
andar atarclado no mundo, ser hornern despachado a comer, e despachado trujado como «ein fahrender Scolast» («Scholas1ikus» na diclascália do v. 1322), ,na
nos scus actos. Por isso, quando vejo urna mosca pousar no instante decisi- cena do Gabinete de Trabalho; no v. 1324. é identificado através de urna palavra idén-
vo em cima do nariz de um comerciante, ou quando ele é salpicado por urna tica, «Skolast», Vd. J. W. Goethe, Fausto, na traducáo de Joño Barrento, Lisboa: Círcu-
carruagem que por ele passa corn urna prcssa ainda rnaior, ou quando a lo de Leitores, l 999. p. 89, «estudioso medieval vagante» e «bacharcl vagante», respec-
1 i vamcnte; e Goethes Werke. Hamburger Ausgabe [Obras de G. Edic,:ao de Hamhurgnl,
ponte Knippe135 se abre, ou quando Lhe cai cm cima urna telha que o deixa
vols.1-XlV. 1-Jamburgo: Christian Wegner. 1948-1960; vol. 111, Drnmati.vche Vicht11n-
mono, cntáo, rio-me do fundo do coracño. E qucm conseguiría mesmo ge11. F.rster Band [Poemas Dramáticos. Primciro Volumel, 1949, p. 46.
contero riso? O que levam a cabo éstes diligentes trabalhadorcs apressa- 38 Em vários diap.mlmata, a contradi~ao assume um papel operacional: era terna ~e
dos? Nao lhes acontece como a essa mulher que, no alvoroco de ha ver fogo gcneraliLado debate no meio filosófico conlem~oríln~o de Kierkcgaard .. c~1 resposla as
considerai;ües de Hegel sobre o proc.:esso dialéctico entre contrad1<¡ao e contra-
-contradii,:ao. que termina nao na superac,:ao da contrndic,:ao, ma~ na proposta ~e urna
3~ Em gre~o no original: «chicoteado». termo usado na rraducño grega, dita da Septua-
grnta. no Livro de Job. 15: 11. icleia absoluta livre de contradic,:oes; vcl. Wissenschaji der l,ogik !Ciencia da Lógica], m
Werke. vol. IV, pp. 57-73, Juhilüums, vol. IV. pp. 535-551, e Suhrkamp, vol. VI,
35 Ponte rnóvel que atravcssa o canal entre Copenhaga e a ilha de Amager.
pp. 64-80. Vd. igualmente os seguintes textos de vários dos nornes relevantes no hcgc-
54 55

mesmo, adiantar fundamentos. Parece-me rarnbérn que causa e efcito nao * *


se articulam cla maneira cena. Ora de causas enormes e poderosas se obiém *
urn cfeito bern pequeno e insignificante, por vezcs, ncnhurn; ora urna causa
pcquena e irrequieta gera um efeito colossal. o tempo passa, a vida é um rio'.39, dizem os homens, etc. Nao dou ¡~or
l'>so, 0 lempo está parado, e cu parei co~ ele. Todos os .pl~n~s. ~o~ mi~
* * ~·1'h<H,:ados voam Jogo de rcgresso para 1111m, quando 4uc10 cuspir, sou et
* 11u.:s1110 qucm se cospe no rosto.
1 \'il
E agora as inocentes alcgrias da vida. Tern de admitir-se que possucm
apenas um único deleito: sercm assim tao inocentes. Acrescente-se que * *
dcvem ser gozadas com rnoderacño. Quando o médico me prescreve urna *
dieta, tem de ser cumprida: abstcnho-me de cerros e determinados alimen-
tos durante um curto e determinado tempo; mas ser dietético enquanro se Quundo de manhá me levanto, volto logo novamentc para a cama: Sinto-
faz dicta - é realmente exigir demasiado. me rnclhor a noite, no instante em que apago a luz e puxo o ed1:edao para
~·i ma da cabeca. Soergo-rne na cama a inda mais t~ma vez, o.l~o a volta .d.o
quano com urna satisfacáo indcscritívcl: ora cntao boa-noitc, e ala para
* dchaixo do edredáo.

A vida toruou-sc para mirn urna bebida amarga e, nfto obstante. eleve ser * *
tornada as golas, lentamente, contando-as. *
* * ·
Pura que sirvo • · par ·a o que for40 · .f: um préstimo
eu? Para nac 1 a, ou seja
* 1 uro: será que na vida o apreciarño? Deus sa.be se as rapanga~ en·c.ontran:
um lugar cm que se procura a condicáo de criada para todo o serv190 ou, a
Ninguérn rcgrcssa dos morros, ninguém cntrou no mundo sem chorar: lulta disso , seja para o que for.
ninguém pcrgunta a alguém quando qucr chcgar, ninguérn pergunta quando
quer partir.
* *
*
lianismo dinarnarques: F. C. Sibberu, «Om den Maade, livorpaa Co111radic1io11sprinci-
pet hehandles i den ltegelske Skole» !«Sobre o Modo como o Princípio da Contradicño Deve ser-se insondável nao apenas para os outros, '1:1ªs também par~ _si
É Tratado na Escola Hegeliana» 1. in Muunedsskri]¡ for Litteratur 1 Mcnsário de Litera- nicsmo. Estudo-mc a mim próprio; quando me canso d1sso, fumo ~m c.~<1-
tura]. número 19, Copenhaga, J ll38. pp, 424-460; J. P. Mynster, «Rationalis111e. Supra- rulo para passar 0 tempo, e penso: sabe Deus o que Nosso Senh~1 tenc10-
11at11ralis111e» l«Racionaüsmo, Supranatural ismo» l. in Tidsskriftfor Litteratur og Kritik
11ava propriamente fazer comigo, ou o que Ele quer akan9ar co1111go.
[Periódico de Literatura e de Crft ica], n,? 1. Copcnhaga, 1839, pp. 249-268; J. L. Hei-
berg , «E11 /ogisk Benuer/...11ing i A11/edning af h. h. Hr. Biskop Dr. Mynsters Ajhandli11g
otn Rationalisme og Supranaturalisnie» f«Um Comentario Lógico por Ocasiáo do En- * *
saio de S. E. o Bíspo Mynster, sobre o Racionalismo e o Supranaturalisrno»J, ibid.. pp. *
441-456: 11. L. Martcnsen «Rarionalisme, Supranaturalisme og principium exclusi me-
dii i Anledning afh . h. Biskop Mynsters Afhandling» f «Racionalismo, Supranaturalismo Nao há parturiente que tenha dese jos mais estranh~)s e ma.is .in:i,pa~i~n..tes
e o principium exclusi medii no Ensaio de S. E. o Bispo Mynster»], ibid., pp. 456-473; <lo que eu. Tais <lescjos rccaem urnas vczcs sobre as co1sas ma1s rns1gn1f1c,m-
J. P. Mynstcr «Om de logiske Principper» f«Sobre os Principios Lógicos»], ibid., pp.
325-352; e A. F. Schiodrc, «El Par Ord ti/ nainnere Overveielse angaaende de tre sa- 19 Plat-ao Crálilo 402a. Vd. Platflo, Crátilo, vcrsao do grego, prcfácio e notas pelo P."
akaldte iogiske Principer» l «Algumas Palavras para Reflexáo mais Profunda 110 Que - ( ( . ' . . , . 2" d' - 56
D i·is Palmeira Lishoa: L1vrana Sa da Costa, 1994, . e 19ao. P· - · _ ..
Diz Respcito aos Tres Denominados Princípios da LógicaJ, in Tidsskriftfor Litteratur 40 '·«Hvadsomhelsl»,
' aqu1· traduz1do
· por «SeJa
· · p<1ta
· .. o que• fº.r>>, cxprcs··sao· utilizada para
og Kritik [Periódico de Literatura e de Crítica], n.? 2. Copenhaga, 1839, pp. 120-128. identificar a secc;:iio de an(incios a pedir servic;:os indiferenciados.
57
'i6 Ou 011. lJ m Prn~111tnto de Vid;1

tes, outras vezes sobre as mais sublimes. mas todos possucm no mesmo iniido para os céus: «Está a ver aqucle ciclone, é bastan~e r~ro obse~var tal
elevado gran a paixáo momentánea da alma. Desejo ncste instante um prato u)i ... a ncstas paragcns; por vczcs, arrasta corn ele casas inteuas,» A1, Deus
de papas de trigo sarraceno. Tcnho uma recordacáo dos mcus tempos de uos p.u:1 rdc, pcnsci eu. é um ciclone, e dei a perna o mais que eu pude. O que
escota, comíamos papas <le trígo sarraceno as quartas-feiras. Recordo como ll'' iu fcito cm mcu lugar Sua Reverencia, o Senhor Pastor Jesper Morten?
as papas eram macias e brancas, como a manteiga sorria para mirn, que
qucntes estavam as papas só de olhar, recordo a fome que eu tinha, como * *
ficava impaciente por rcccber liccnca para comecar. Um prato dcstes, de *
papas de trigo sarraceno! Daria por ele mais do que a minha primogenitura41.
Que sejarn os ourros a queixarem-se de que os tem~o: sao rnaus; queixo-
* * 1Hc UC que sao miseráveis, porque SaO tempos sem pruX~O. ?S ~ens~1me1~lOS
dos horncns sao finos e quebradicos como rendas, eles proprios tao dignos de
*
d() quanto as rcndeiras. Os pcnsamcntos que lhes váo no corac;a? sao tao
Virgílio, o mago42, fez com que o cortassem aos bocados e o puscsscm niiscr{ivcis, que nao chegam a ser pecaminosos. Talvez fosse possívcl, pa~a
a cozer num caldeiro durante oito días a fim de rejuvenescer por este pro- um verme, considerar como pecado alimentar tais pensarncn~os, mas nao
cesso. Pos alguérn a vigiar para que nenhum intruso espreitasse o caldeiro. para urn homern, que criado a imagern de Dcus. Os seus dcscjos voluptuo-
é

O vigia, entretanto, nao conseguiu resistir a tentacño; foi algo demasiado "ºs'~ sao comedidos e indolentes, as suas paixñes, sonolcnras; estas almas
prematuro 1361 e Virgílio era enanca pcquena, dcsaparcccu com um grito. mcrcantis cumprern os scus devercs. porém, tal como os judcus, da.o~~e toda-
Tarnbérn cu espreitci para o caldeiro demasiado cedo, o caldeiro da vida e vía ao dircito ele desbastar urna migalhinha da mocda; cm sua opuuao, em-
o do descnvolvimento da história, e nunca isto me levará a rnais do que hora osso Scnhor mantcnha as contas bastante ern ordcm, iambém é c~1ta-
continuar a ser urna enanca. incntc possf vel escapar, aldrabando-o um pouco. Desavergonhados! Por 1sso,
a minha alma regrcssa scmpre ao /\ntigo Testamento e a Shakespcare. Sent.e-
* * sc dcveras que sao homens que falam; e que aí, odeia-sc, e aí, ama-se, mata-
:>l: 0 inimigo, amaldi9oa-se a descendcnciu por todas as gera9oes, aí, peca-se.

1.171
«Nunca eleve perder-se a coragernl Quando as infelicidades se acurnulam
sobre um individuo da mais tcrrível mancira, ve-se cntáo nos céus urna máo * *
auxiliadora»; assirn falou Sua Reverencia Jesper Morten43 nas passadas *
vésperas. Estou habituado a deslocar-rne bastante sob céu aberto. mas nunca
observei tal coisa. Alguns dias atrás, presencici um fenómeno semclhante /\ssim divido 0 meu tempo. Dunno metade do tempo. e sonho. na outra
durante urn passcio a pé. Nao se trarava propriamente de urna máo, era mais nH.:tade; quando durmo. nunca sonho, seria pecado, porque donrnr é a su-
como se fosse urn braco a pender de urna nuvern. Mergulhei ern contempla- prl!ma gen iali<lade.
\:ªº: ocorreu-me que se Jesper Morten estivesse sirnplesmente ali presente,
poderia decidir se era o fenómeno a que ele aludía. Eslava eu no rneio destes * *
pensamentos quando fui abordado por um caminheiro que me disse, apon- *
Ser um homem perfeito é entretanto o que há de supremo. Apareceram-
41 Génesis, 25:31: «Eniño dissc Jacob: vende-me hojc a tua prirnogcnitura.» Na tradu-
c,;fío dinamarquesa da Bíblia, le-se: «direito de nascimento». m~ agora calos, coisa que entretanto semprc é urna grande ajucla.
42 Virgílio (70- t 9 a. C.), o poeta romano, era tido durante a ldadc Média nao só como
poeta. mas também como mago. profeta, teólogo e feiti'ceiro; foi protagonista de histórias * *
singulares e os seus poderes mágicos e divinatorios povoararn o imaginário medieval. *
43 Pcrsonagcm de um conto de Jens Immanuel Baggesen ( 1764-1826), Jeppe, el sjcellan-
dsk Eventyr [Jeppe, l Jm Contó da Zelándia], in Jens Baggesens danske Va!rker [Obras cm
Dinamarqués de J. B.], edicño dos filhos do autor e de C. J. Boye, vols, J-Xll, Copenhaga,
1827-1832; vol. 1, p. 201. Doravante, Vcerker, seguido de indicacáo de volumc e página. 44 Aqui. «Lysren>.
(}11 ()11 \]111 h(IF111Clll0 tll' Vid11
59
58

O resultado da minha vida nem sequer dá em nada, é urna disposicño, ¡l~·iHl , 1 LIZ· ( la<. L•1a
pÍS, hOUVC de ser banhuc 1 0 pe 1 <I ' •
A vaca
· e
que deu
~
a luz
pis houvc de ter sido iluminada pelo luar no instante da conccpcao.
uma cor singular. O meu resultado tern parccencas coma pintura45 claquele
artista incumbido de pintar os judeus na travessia do Mar Vermelbo'"; com
* f.;
tal firn. piruou toda a parede de vermclho, enquanto explicava que os judeus
haviam atravessado para o outro lado e que os egípcíos se haviam afogado. *
A prova que mclhor dernonstra a miscrávcl ~on~ic;~o da existencia
* * uqucla que se retira da considcracáo da sua magnificéncia.
é

*
A dignidade humana, entretanto, ainda é reconhecida na naturcza. pois * *
quando se quer manter os pássaros afastados das árvores, monta-se algo *
que vcnha a asscmelhar-sc a um homem, e basta até a remota parcccnca
com urn homcm, como a que tcm o espantalho, para incutir respcito. A rnatotta . .· el o.s homcns. corre tao vigorosamente atrás do
. .
prazer, que.· passa
..
. ele a correr Acontccc-lhes como a essc anño que vrgiava urna p1 mccsa
p(l1 .... 1.; , • • Q i · rdou
* * . t· da 1381 no scu castelo. Um dia, pós-se a dormir asesta. uan( o ,tco
1.ip <I.' • d'amen te as. SU'lS'.
* uma 11ora mats. , t·<trde , J·.<<1 ela' se fora embora. Cal9a apressa
• • f
holas das sete léguas; e com um só passo. fica-lhe mu110 ma1s a rente.
Quando o amor47 viera conter algo que signifique, tem de ter sido ilu-
minado pelo luar na hora do nascirnento, tal como Ápis48, para ser o verda- * *
45 Trata-se de uma historia de Till Eulenspicgcl narrada cm «Det gunstig« (J)iehlikfor
*
Maleren» l <<0 1 nstantc Oportuno do Pintor» l. in Kipbrnlwv11.1· Moerskabsblad indehol-
dendeAlvor og Skjemt l Folha Satírica de Copcnhaga Con rendo Coisas Sérias e para R ir], A minhn alma está t¡:¡o pesada que pensamento alg.um co,nsegue ~1<~~
número 84. edi\:íi'O e publica\:1íO <le J. C. Udtberg. Copcnhaga. 1831, p. :ns. lnforma\:iiO :>.llSIC-"
l a nen 11Ut 11 bacer
< u.1c asas
' conseoue
o elevá-la ma1s no cter. Caso el
gcntihncntc cedida por R. Purkurthofcr, . .
mova, apenas p
a
. , , . lana en tao rente terra, como o voo raso das aves quan o
, . d ser incuba uma
46 O episodio está narrado 110 Livro do éxodo 14:21-31. do qual se citam os versículos cre~cc 0 vento a gerar trovoada. Sobre o 111t1rno o meu
28 e 29: «Porque as águas. tornando. cobriram os carros e os cavalciros de todo o cxér-
opressao, uma angústia, que pressente um tremor de Lerra.
cito ele Faraó, que os havia seguido 110 mar; nem ainda um deles ficou. / Mas os filhos
de Israel foram pelo mcio do mar seco. r. as águus forarn-Ihcs como muro, a sua mño
direita e il sua esqucrda,» ~: *
47 Aqui e ao longo dcste fragmento, «Etskov», Ernbora corn incidencias bastante diferen-
ciadas, o autor recorre a dois leimos traduzfveis em Jíngua portuguesa por «amor», dcsig-
nadamente, «Elskov» e «Kjairlighed», O primeiro habitualmente usado no sentido do
e "da é oca< e v·a ,,'Ía de significar·ao! - Enterra-se um homem .·. é
é

grego «eros». por oposicño ao segundo termo, que te111 um sentido menos dcrcrminado,
próximo do grego «agape», Porém, na época de Kicrkegaard. os dois termos possuíam um
uso muito aproximado, designadamente porque o verbo «at elske», i. c., «amar», denota a
OlTIO a V l e ' y • ·
levado até a cova, lanc;am-se-lhe tres pás de Lcrra em cima; sai-se e ~~t
1
e n;~
agem re•~ressa-se a casa de carruagem; encontra-se consolo porque t11nc a
aq:iio de por cm prática qualqucr um dos tipos ele amor; na relayiio amorosa, o primeiro ~~ te~ u~rn .vida longa a frente. Quanto tempo é realmente se~e vez~s..de~
scntirnento despertado seria o de «Kjterlighed», seguindo-se um sentirnento de «Elskov»,
seudo, cornudo, que o senrimento que 110 final une os dois amantes é ainda o de «Kjasrli- . ., Mas por11ue nao se acaba tudo de urna vez, porque nao se fo.:a la
anos. " . , ber a qucm
glied», Assim sen do. «Elskov» nao <le tocio traduzfvel por «amor erótico», OJJ\:ªº utiliza-
é rora. e nao se desee também a sepultura. e se.tm1 a sortc' para.sa ·". ¡'.

da por 1 loward V. Hong e Edna Hong. Para cssc fon, Kicrkegaard utiliza o adjectivo caberá a infclicidade de ser o último dos vivos, o que lan((a tles pas de
«erotisk»; bcm como a sua forma substantiva, «det Erotiskt»; aJiás. o ambito do erótico
está implicado noutra área lexical , a de «attraa»; arnplamente explorada por Kierkcgaard tcrra sobre o último dos mortos?
ao caracterizar a sedu9iio, no capítulo do erótico-musical e em «Diário do Scdutor» (vd.
acirna nota 10). Dada a relevancia da temática do amor e a inda a da dicotomia «Kjterlighed * *
I Elskov» cm 011-0u, assinala-se ern nota as respectivas ocorréncias de forma clara. em-
a
bora de urna maneira variável. cingida incidencia dos tennos cm cada um dos capítulos.
*
48 Na religiáo cgípcia, o boi sagrado Ápis (Hapi-ankh) encarna va os deuses Osíris e Ptah.
• 111 1 >u ll11111.1prrn.11111 ti~ \ rd.1 61

A., raparigas nao me agradam. A bcleza dela', fenece como um sonho ou


¡, 1 r 1 111:111 unv dczussctc unos. cnfiudo num ensaco verde de calmuco'" com
como odia de ontcm quando pas. ou49. A fidclidade - sirn, cssa sua Iidc-
1 111dt•\ hotoc.., dc osso. O ensaco cstava-lhc demasiado grande. Scgurava o
lidadc! Ou sao in fiéis. e disso nao me ocupo eu, ou sao fiéis. Se cu cncon-
\ 11111110 f 11 mcmcnte dcbaixo do qucixo: o boné esta va enterrado até aos
trassc urna assim, cla iría agradar-me. rendo em consideracño que se trata va l•lh11 ;1 111ao eslava escondida por urna luva scm dedos. Os dedos cstavam
de urna raridade, e nüo me agradaría. tcndo cm consideracñn a exrcnsño de
~· 11m•lho!-. e azui« do trie. O outro era mais velho, vestía um balandrau.
tempo: porque ou se manteriu continuamente fiel, e eu acabaría por ser
1 1 1111 urnhos ccgos. Urna menina. que provavclrncnte lhes servia de guia,
vítima do meu zelo cxperlrncntama, já que tcria de suporta-ta, ou chegaria
'""" a trente deles com as mao~ dcbaixo <lo cachecol. Reunimo-nos, a
um momento do tempo em que ela dcixava de o ser. e lá volrava cu entáo
ii vclha historia. 1 .. 1111 o L' pouco, alguns admiradores destcs sons, um cartciro coma mal~ do
1111110,11111 rupazinho, uma criada de servir, alguns trabalhadores da estiva.
l o111 uagcns elegantes passavarn por nos. rolando com grande rufdo, os
* * u 111, de mercaderías abafavarn esscs sons que por entre eles crnergiarn
11111l¡¡11IL'<i. Sabci, infeliz duo de artistas, que estés sons escondcm cm si a
11111v11rlrcc11cin do mundo inteiro. - Nño é que isto foi como um encontro a
Miserável destino! Dcbaldc pintas o tcu rosto sulcado, como urna velha .¡, ,.,
prostituta. dcbaldc Iazcs barulho comos tcus guizos de bufño: cntedias-me:
1391 acaba por ser entretanto o mesmo, urn idem per idem'", Scm variar,
scmprc requemado. Vcnham, sono e mortc: tu nada prometes, tu tudo cum-
* *
pres, *
1;111 certn teatro. aconteceu ter deflagrado um incendio nos ba~tidorcs~5•
* .. 11 1rnlll:u,:o vcio avisar o público. Pen!>aram que se tratava de um dilO cspi-
* 1111111'0 e aplaudiram-no: ele repct iu o avi~o: rcjubilaram a inda mai-;. Tam-
1i, 111 l'll a-.sim penso que o mundo cairá por terra. sob o júbilo geral da
Esta-; duas conhecidas arcadas de violino! Estas duax conhccidns arcadas p 11tl' c-.;prrituosa que pensa tratar-se de um Wit~56.
de violino aquí oeste instante no mcio da rua. Terei perdido o entcndirnentn,
a
e por amor~' müsica de Mozart52, tcráo os rneus ouvidos deixado de ouvir,
ter rnc-ño os deuses enviado corno recompensa, a mim, infeliz, postado co-
* * /

{
a
mo urn mendigo porta do tcmplo53• um ouvido que debita para si proprio *
o que ele proprio ouve? Só esta'> duas conhccidas arcadas de violino; já que
1101
1~ais nao oico agora. Tal como nessa irnortal abertura clas irrompcm da pro-
<.)ual é. em suma. a sig11ifica9iío desta vida'? Oividi11do os homens cm
fundcza dos sons corais. tambérn assirn S<.! desprcndem do tumulto e do ruido
d1111o.; µrandes classcs, poder-se-á dizer que uma trabalha para vi ver. e qui.! a
da rua corn tocia a surprcsa ele urna manifo~tac,:Uo. - Térn todavía de estar
llllllil dtsso nao tem neces~idade. Mas trabalhar para vivcr nao pode cfecti-
por aquí perlo, porque oico agora os sons ligeiros da danca, - Sois portante
\ollllClllC ~cr a significa9ao da vida. visto ser cleveras uma contradic;fio que
vós. infeliz duo de artistas. a qucm cu fico a dever esta alegria. - Um deles
11 l.1r10 de estar scmprc a procluzir conclic;oes constitua a rcsposrn u pergun-

111 ~obre cssa ~ignificac;fio. a qual é estipulada rccorrcndo a cssa!-i condic;oe~.


49 Salmos, 90:4: «Porque mil anos aos rcus olhos siio como o día de 0111cm que passou, \ \ rda dos dcmais nao tem em geral qualquer outra significac;ao além da ele
e corno urna vigília da noite,»
50 Em latim no original: «O mesmo pelo mesmo». , 011>.umir as condi96cs. Vir di1.er que a significac,:ao da vicia é morrer parece
51 Neste Pª""º· «Kjwrlighed». 1 11l:lo voltar a ser uma contradic;ao.

52 A «música de Mozart» é aquí Don Giovanni, como cm toda a presente obra. com
especial relevo no capítulo seguinte,
'i 1 kt·itlo de la de qualidade grosscira.
53 Actos dos Apóstolos, 3:2: «F. era pura ali tra/ido um homern. coxo desde o ventre ele
~ lntcndio muito noticiado que vitimou seiccenlas pcssoa!. nu111 teatro de Sao Petcrs-
sua .rnae. o qual todos os días punham a porta do templo. chamada a Especiosa. para que
pedisse esmolas ao- quc cntravarn no tcmplo.» ht11µ0. a 14 de Feverciro de 1836.
'" l.m alcmao no original: «chiste».
()2
111 ( )11 U111 F1 Hflllt'11to d~ V1(1¡1 63

* * llll lll do occano. Grito (aprendí isso corn os Gregos, com quem é possível
* 'l'll'IHk·r o que é puramente humano). pois que 1411 tenho realmente urna
~t1Hlt1 ¡¡ volra <Ja cintura. mas nao vejo a vara que há-de suster-rne. É urna
O prazer propriarnenre dilo nao reside naquilo que se goza, mas na re-
prescntacáo. Tivesse eu ao meu servico um cspírito subserviente que me 1111111.·ini pavorosa de ganhar experiencia.
trouxesse os mais caros vinhos do mundo deliciosame111.e misturados num
cálice, reclamando-Ihe cu um copo de água, e té-lo-ia despedido, para que * *
ele aprendesse como o prazer nao reside no que eu gozo, mas cm que scja *
feíta a minha vonradc,
1• bastante csrranho que se obrenha urna representacáo da eternicla.de
111 uves das duas mais horrendas contradicóes. Se eu imaginar aquele 111-
* * lc 111 guarda-livros a quem fugiu o ent.endimen~~· clevido ao c~ese~pero de
11 1 levado 0 negocio a
falencia. porque contabilizou sete mars seis como
, lldo carorzc; se cu o imaginar, dia após dia, impcrturbávcl a tudo o
Nao sou eu quemé pois scnhor da minha vida, sou um dos fios com que
111111N. a repetir para si mesmo «setc e seis sao catorzc» , renho as~im.u~na
há-dc urdir-se o pano de chita da vicla57. Ora se bem que eu nao saiba teccr,
sei todavía corlar o fio. 11,111µem da crcrnidade. - Se cu imaginar urna opulenta bclcza lcm111111a
1111111 hurérn, rcpousando num sofá cm todo o scu encanto, sern se preocl~-
pi11' com nada deste mundo, volto assim a ter urna imagcm para a eterm-
* * rl.1dl'''1.

Tudo será adquirido cm tranquilidade e divinizado em silencio. Ao filho * *


esperado por Psique nao se aplica apenas que o seu futuro dependa do si- *
lencio dela:
Mit eiuem Ki11d. das xmt!ic/i, wenn Du scliweigs¡ - o que os filósofos dizern sobre a realidade é amiúde tao enganoso'v co-
Doch nienschlich, wenu Dudas Geheim11ijJ -;.eigst.58 1110 quundo se Jé no letreiro ele urna loja de velharias: aqui en?or~a-se. Quem
uouxcsse roupa para mandar engomar ver-sc-ia entáo ludibriado; porque
l'l':t meramente o lctrciro que cstava venda. a
* *
*
* *
Parece-me que estou destinado a ha ver de sofrcr profundamente todas as *
disposicóes possíveis, a haver ele ganhar experiencia ern todas as dircccócs.
Encentro-me a cada instante como uma crianca que vai aprender a nadar no
w Vd. Pap. 111 B J 79:58. referenciado corn omissño da indexacño em SKS, vol. ~2-3.'
57 A metáfora «livs Kattun» é retirada do poema de Jens Baggcsen, «Dausk pp. 103- 105, onde pode lcr-se urna outra. vcrsño da dc~cri9ao da odalisca; ª.lus1v¡~ a
Trwu¡vebar-Vise tned tnesopotamisk Omqvted» l«Cani;iio Dinamarquesa ele Tranquebur vi:ivura dezassete da edi91ío na posse ele K1erke~aarú de Tause~d 1111d eme1\ach~. A1a·
com Estribilho Mesopotárnico» l. Va'rker, vol. JI, p. 401. tnsclu: Erzdhlungen 1 Mil e Urna Noitcs. Conros Arabos], traducáo de G. Wcil , vols. T-IV.
58 Ern alernño no original: «Com urna crianya.clivina, se te calares - / Porém humana, htugarda, 1838-1841; vol. 1, p. 123. •
se revelares o scgredo.» Versos do episodio de Amor e Psique narrado por Apulcio ( 125- (,() Afirmacño coincidente com as imprcssócs de Kicrkcgaard so.brc ª.abordagcm a ca-
-c. 180 d. C.). F,di9ifo consultada pelo autor: Apttleius: Amor und Psyche fApuleio: rcgoria ele eternidade por parte de Frieclrich Wilhelm .Toseph Schellrng ( 1775-1854 ).
Amor e Psique], traducño de Joseph Kehrcin. Giessen. 1834, p. 40. Na tradu9ao portu- , 1mstante dos apontamentos das liyoes a que assistiu na estada cm Bcrlrm, entre Outu-
hr11 de J 841 e Mar~o ele 1842: vd. Pap. IIT A l 79, Not. 8:33, SKS, vol. 19. p. 235. bem
guesa de Delfim l .cáo: «Se conscguires guardar cm silencio este nosso segredo. terá
naturcza divina: se o profanares. será um simples mortal», in Apuleio, O burrode oura, romo passos <le cartas a Bmil Rocscn, nlÍmcr~s 62, 68 c.69, ~.euers and Docwrwnts,
Lisboa: Livros Corovia, 2007. p. 119. Acrkegaanl:\- Writings, vol. XXV, Princeton: Pnnceton Un1vers1ty Press, 1978. pp. 125,
1 ~6 e 139.
64
1111 ( 111. U1111ot11g1n<.:nlo1k· Vido 65

"\<' N¿ad para mim mais pcrigoso do que recordar?'. So rccordo tño-
'e
é
pllL'l•\·(J~s. Na minha juvcntudc, quando ia a um restaurante, dizia cntáo para
\ -sornente uma circunstancia da vida, essa circunstancia cessa por si. Diz-sc 11 ( 1111do: um naco bom, um naco rnuito bom, do lombo, sem ser demasiado
que a separacáo ajuda a reanimar o arnor62. É inteiramente verdade, mas 1·111 do. Tnlvcz o criado nem sequcr ouvisse o meu clamor, e menos ainda hou-
reanima-o de um modo puramente poético. Viver ern recordacño a mais
é
11esc de nclc ter atentado. e menos ainda houvesse a minha voz de conseguir
perfcita vida em que é possível pensar, a recorda~ífo sacia mais fartamente 1111 p111 1't cozinha e iníluenciar o cortador. e mesmo que tudo isto acontecesse,
do que.toda a :e~iclade. e rern urna seguranca que realidade alguma possui. 11lv1·'.I 11iío houvesse um bom naco cm todo o assado. Agorajá nao grito mais,
Urna circunstancia da vida que é recordada já cntrou na etcrnidade e nao
tern mais ncnhum interessc temporal. '
* *
*
* *
nspiracáo social e a bcla simpatía sua concomitante espalham-sc cada
\11 mais. Em Leipzig, fundararn urna cornissño que, ern simpatía com o
Houvcsse alguém de manter um diario, e cssc alguém haveria de ser cu ill''illl0\0 rim dos cavalos velhos, decidiu come-los.
para assirn prestar algum auxílio a minha memoria. Decorrido algum tem-
po, acontece-me rnuitas vezcs ter-me completamente esquecldo dos funda-
mentos que me levaram a fazer isro ou aquilo, niio se limitando a acontecer
* *
corn minudéncias, mas com os mais decisivos passos. Se cntño me ocorrc
*
?.fundamento, consegue por vczes 1421 ser tao cstranho, que ncm mesmo eu 'tcnho
apenas um único amigo, é o eco; e porque ele mcu amigo? Por-
é

fico ern crcr que foi esse o fundamento. esta dúvida ficaria arrecada, se cu os meus pesares e ele nao os leva de rnirn. Tenho apenas um único
q11l' 111110
ho~1vcsse escrito algo cm que me apoiassc. Um fundamento cm geral urna
é
11 11 couñdcnte, o silencio da noitc; e porque é ele meu confidente? Porque
é

corsa estranha; s~ eu o olhar com tocia a minha paixño , cresce até que se •I \'lila.
torna urna neccssidude monstruosa capaz de por o céu e a terra em moví-
mcnto; se cstiver scrn paixño, lanyo-lhe urn olhar superior ele desdém. -
f':ndo há bastante tempo a especular sobre o facto de ter propriarnente ha-
* *
~1do um fundamento que me levassc a abdicar do cargo de professor de
*
! 1c~u. Ora, quai~do rcflicto nisso. parece-me que urna posi9ao dessas era Tal como na lcnda sucedeu com Parrnenisco que na caverna de Trofó-
tnd1eadé~ para mrrn. l loje fez-se-me luz, o fundamento foi justamente eu ter 1110111 pcrdcu a capacidade de rir, recuperando-a na i lha de Del fos ao por os
de ~ons1derar-me como estando perfeirarnente talhado para esse Jugar. Se nlllos no cepo informe que supostamente represenrava a imagcrn da dcus.a
eu uvesse permanecido no meu cargo, havcria de ter rudo a perder, e nada 1 1·1061• também assirn suceden comigo. Quando era muito jovem, csquec1-
a ganhar. Por conscguinte, dou por acertado abdicar do rneu lugar, e procu- inL' de como rir na caverna de Trofónio, quando me tornei adulto, qumiclo
rar c~nt~ato muna cornpanhia de teatro itinerante, como fundamento de que 111111 os olhos e observei a realidadc, clei comigo a rir e nunca mais parci
eu nao tinha talento ncnhum, tendo portanto tudo a ganhar,

* * a
11 I /\ rderencia lcnda da passagcm de Pannenisco pela gruta de Trofónio cncontra-se
1 111 C. r. rtiigcl, Ge.\'chi<"hte der ko111isc/1e11Li11eratur11 listória da Literatura Cómica],
* vnls. 1 IV, Liegnitz e Lcipzig, 1784-1787; vol. l, pp. 35-36. Trofónio. rcsponsável pela
l1111sl1ll<;ao do Templo de Delfos, ficou célebre pelos oráculos proferidos na caverna
É preciso todavia urna grande ingcnuidade para crcr que gritar e bradar no 1111<k liii sepultado. Qucm consultasse o on1culo de Trofónio ficav'.1 melancólico para_o
mundo há-de auxiliar, como se dessa rnaneira o destino de um indivíduo se 11·,to da vida, o 4ue fundamenta a denota~lío de pcssoa grave e taciturna ern assocrn«ao
modificasse. Aceita-se cal como nos oferecido, e contorna-se todas as com-
é rn111 a <.:averna de Trofónio; aquclcs cujos oráculos eram interpretados pelo dem6n10
l 1l'av:1111 desfigurados. .. ._
¡,.¡ /\ deusa Leto para os gregos (Latona para os romanos) era hlha dos. litas.. Ceos e
61 Vd. A Repetictio, SVJ, vol. III, p. 175, SKS, vol. 4, p. Y; traducáo portuguesa, p. 32.
1 :die e irma de Astéria e Ortígia. Lcto dcu a luz. os gémeos Apolo e Artenusa. hfüos de
62 Aquí, «Kjcerlighed».
/t·u,. chamados Lctóides.
• 111 1 !11. lli11 "1ag111¡;1llo de V1(11i

desde essa ~1ltu~·a. Vi que a significa9ao da vicia consistía cm ganhar o pilo l11111il11v11·. Co1110 c'\0111e11 orriwn69, cscrcvi um cnsaio sobre a imortalidade
e ter por objectivo ser conselheiro do tribunal, que a rica volúpia do amor65 1, 11111111, com o qua! 14•11 obtive a classificacño de pra: ceteris'"; rnais tarde
era arranjar urna rapariga abastada, que na amizade a suprema feJiciclade ,11Ji1, 11 premio para urn cnsaio nesta materia, Qucm havcria de acreditar
era a ajuda recíproca nas diflculdades financeiras: vi que era sabedoria o ¡111 dt·imis de urn comeco táo sólido e prometedor, corn vinte e cinco a~~s
que a maioria a~nútia como tal; que era entusiasmo fazer urn discurso; que 1 rlni,, huvcria de chegar ao ponto de nao ser capaz de apresentar urna uru-
era corage1~1 arnsc;.~r ser multado em dez tálercs6('; que era gentileza desojar 1 p1ovu da imortalidade da alma. Recorclo-me ern especial de. nos rneus
bom proveito depois da refeicño; que era temor a Deus ir urna vez por ano 1 11i¡1m, de cscola, um dos meus ensaios sobre a imorralidade da alma ter
a cornunhño. Poi o que vi, e ri-rne.
11111 cxuuordinariamcntc elogiado, e licio cm voz alta pelo professor, tanto
1. 111 cxcclüncia do contcúdo como da linguagcm. Ai! Ai! Ai! Há quanto
* * , 111po nüo dcitci cu fora cssc cnsaio. Mas que infelicidadc! Tal vez a minha
* 11111.1 dubitat iva se dcixassc cativar por ele, tondo tanto cm conta a lingua-
1111 quaruo o conteúdo. Por isso , o mcu consclho a pais, tutores e profes-
Que coisa é essa que me amarra? De que era feíta a correntc com que 111,•r-. e que recomendem as
criancas a si confiadas para guardarem os en-
prcndcram o dio de fo'enr.is67? Fora forjada com o barulho que fazem as 1ilm de dinamarques que escreveram aos quinze anos. Dar este conselho é
patas do gato ao pisarcm o chao, com barba de mulhcr, com raízcs de rocha, 1 1111it:n coisa que posso fazer para o bem da humanidade.
com crva do urso, com fólcgo de pcixes e saliva de pássaros. Tarnbém eu
assim me encontro preso a urna corrente, fcira de escuras fantasías. de so-
nhos angustiantes, de pensamcnros intranquilos, de presscntimentos ame-
* *
droruados, de inexplicáveis angustias. A corrcnte «rnuitíssimo flexível
*
8:
é

a
suave como seda, resiste mais forre tcnsño, e nem se parte ou desgasta»<1 a
'J'alveL eu tenha <.:hegado ao conhecimento da ven.Jade; lcliciclade supre-
111ll, de certeza que nao71. Que hei-de eu fazer? Actuar no mundo. respondem
* * 11~ llomens. Haveria eu nesse caso de comunicar ao mundo o mcu pesar, de

* i1.11 111ais um contributo para demonstrar como rucio é pesaroso e meclíocre,


dl porvcntura descobrir uma nova mancha na vida humana que até aí penna-
É bastante cstranho que seja scmpre a mesma coisa a ocupar um indiví-
lll'n~ra desaperccbida? Poderia entao colher a rara recompensa de alcanc;ar
duo em todas as idadcs da vida.e que seja scrnpre a mesma distancia a ser
1l·110111e. tal como o horncm que descobriu as manchas de .lúpiter72. Prefiro
atcancada, ?u mclhor, que se volte atrás. Quando eu tinha quinzc anos,
l'111rctanto ficar calado.
escrevi no Iiceu, corn rnuita uncáo, sobre as prevas da existencia de Dcus e
sobre a imortalidacle da alma, sobre o conceito de te, sobre a significa9ao
e,•¡ 1 ;c\rmula latina para dc~ignar o ex ame linal do en sino secund<írio.
65 Nestc passo, «Elskov», !O l(m lalim no original, abreviado de «laudahilis prte ceteri.rn, i. e., «louvávcl peranle
66 No original, «Rbd »; i. e .. «ri¡¡shankdaler»: mocea introduzida após a reforma mo- º' oulros». f6nnula lalina 4ue designa a atribuii;:ao do nível superior ele aprovac;fío nes-
net~na ~e 1625 e que vigorou até 1873: dozc «penning» (corrcsponclendo a «vintém») w cxame.
equivaliam a 11m «skilliug» («xelim>>). dczasscis xelins a um «ntark» («marco»). seis / 1 E1ubora a alusao seja aquí a primeira epístola ele Paulo a Timótco, 2:4 («Que 4ucr
marcos a um «rigsdater» («t~lcr») e oito marcos a urna «krone» (ecoroa»), Silo frcqucn- •iuc tocios os homens se salvcm e vcnham ao conhccimento d¡1 vcrdaclc>>). Kic1:kcgaard
tes as rnetáfora» e as analog1as fiduciarias cm Kierkcgaard. mlt:rpcla directamente a tese de Johann Gottlicb Fichtc ( l762-1814) sobre a valrdade do
nmhccimcmo da vcnfodc paru atingir a bcm-avcnluraru;a divina. Vd. Die A11weis11ngen
67 O dio de_ Fenris (ou o lobo de Fenris) pcrtence a mitología nórdica; guardava as
11111 seligel! /,ehen oder au("h die Religionslehre l Conselhos para Urna Vicia ~em-
portas do Interno, e é filho de Loke, o deus que personifica o mal.
1\vc11lurada ou Doutrina da Religi1íoj: eclii;:ao consultada pelo autor: J. G. F1chte,
6,8 Fornes consultadas pelo autor para a presente citacño: J. B. Meinichen, Nordiske
Siimtlic·he Werke LObras Cornpletasj, vols. 1-XI, Berlím e Bona. 1834-1846: vol. 5. pp.
~~lks Overtroe: Guder, Fahler og He/te. indril Frode 7 Tider !Supcrsli((oes, Dcuses.
·110-412. Vd. igualmente J. G. Fichte, Gesamlausgabe der Bayerischen Akademie der
Fabulas e Heróis do Povo Nórdico até aos Tempos de Frode Vll], Copcnhaga. 1800: Wissensclwf1e11. ed. Reinhard Lauth e H<ms Gliwitzky. vols. 1-lV. Stuttgart-Bad Canns-
p. 101." Vd. tgu~lmen~e ~-F. S: Gnmdtvig, Nordens Mytholog¡ eller Siru:lbilled-.SiJrog lall: Priedrich Frommann Verlag, 1964: vol. l. p. 9.
1 M11o_s e Alegorías Nórdicas]. Copenhaga, 1832, pp. 518 e segs.: doravanre esta obra é
mencionada pelo nome do autor. 72 Giovann.i Domcnico Cassini ( 1625-1712), astrónomo italiano fundador do Observa-
11írio de París.
IJI'>
:-lp1('1i h ll.'1 kcg11a1cJ

* * '1nu tul e qual o porco de Luncburgo?". O mcu pensaré urna paixáo. Sci
* d1 cutcu ar na pcrfeicño trufas para os outros, mas eu próprio nao retiro
llf 11.¡o qualqucr alegria. Fico comos problemas no nariz, mas com eles nao
ta Co~110.a natu;eza. humana é igual a si propria! Com que genialidade ina- 11 1111.cr mai-, do que arrcrnessa-los para trás da minha cabeca.
.L~mct ~nanc;a e capaz d.e no: mostrar urna imagem vívida das relac;ocs dos
m,lJ,ores: Be.'~ que me divertí hoje corn o pequeno Ludvig. Estava sentado
na. sua cadeirinha; olhava cm redor corn visível . .. -1 M * *
. clgrclc o. .aren a ama das
enancas, passou entño pela sala. «Maren !» grirou ele· 8· ' . '
L ¡ · • · , «srm, meu pequeno
u~ .v'~>> res~on~eu ela na sua habitual bonornia, dirigindo-se ao pequeno. l-m vño dou luta. Escorrcga-mc o pé. A minha vida permanece todavía
Ele inclinou ligeiramenre a grande cabeca para um lado Ii l 1111111 ex isténcia de poeta. Pode algo de mais infeliz ser pensado? Estou pre-
'l'' u , ixou ne a os olhos
enormes com urna cerra malícia, dizendo-lhe com toda ·1 flc - 1 li -.t ruado; o destino ri-sc ele mim, quando de súbito me rnostra como .tudo
. M· ' ' urna: «nao era
esta aren, era a outra Maren»73. E que fazemos nós os adultos'} .B . 1 11¡i1ilo contra o qua! eu ajo se torna momento"? numa tal existencia. Consi-
mos ao m d . t .
. un° in erro e quando vem amistosamente
d tzcmos-lhe entáo: «nao era esta Muren».
, ' . . rc1c a-
ao nosso cncontro, 11 dcscrcvcr a esperarn~:a de rnaneira tiío vívida, que cada individualidade
1 pcrancosa reconbeccrá como sua a minha descricño; e trata-se, no cntan-
1451
111, de urna falsi ficacáo, porque enquanro a descrevo, pcnso na recorda9ao78.

* * * *
* *
. J\ . minha vicia é como uma noit' e e t er • na;• . quando cu urn dia. morrer pode- l l<í todavía ainda urna preva para a existencia de Deus que deixaram por
rct dizcr como Aquiles: · v1·1 até agora. É introduzida por um criado em Aristófanes, O Cuvaleiro, v.
IJu bis¡ vollbruchr, Nachtwache meiues Daseynsl+ 11 l' -;cg-;.79:

* *
* /11 < l porco de l .11neburgo traz também prosperidadc, e é por isso um símbolo de sorte.
11 No 'cntido cm que o «momento <.k uma forya» é na Física :1 grandc7a que rcpresen-
A rninha vida esta totalmente dcsprovida de sentido Quando obs lu 11 111agn it.ude da forya aplicada a um sistema roracional, colocado a urna determinada
· · d·~ · é · · ' servo as
suas ' erentcs pocas, sucede coma rninha vida como no dicionário com 1lh1:111cia de um eixo de rota<,¡iio, tornando-se l'undamental. por excmplo, para o funcio-
a palavra «Sclmurn75; ern prirneiro lugar sianifica , ·d J , 11111111.·1110 de alavanca~.
· º um «Coi e » e cm se-
/H /\' idcias aqui avani;adas sobre csperanga e rernrda9iio sao alvo de um trntamcnto
~~·nd~>. urna «nora». Só falta va que a palavra «Schnur» signific;tsse cm
cerro lugar um «camelo» c. em quarto, Lll11 «espanador». 11111" daborado no capítulo «Ü mais Jnfcliz». na presente obra. Posteriorrm:ntc. a cate-
~·Olla de rccordai;iio é aprofundada ern A Repe1i¡:üo, SVJ. vol. Ill. pp. 173-175, SKS.
'ºl. '-1, pp. 9-10; tradu<;iio portuguesa. pp. 31-33. Vd. igualmentc «In vino verifas». in
* * / 11adios 110 Caminlw da Vida. SV 1, vol. VI, pp. 15-21, SKS. vol. 6, pp. J 7-26; tradu<,¡iio
* p111111g11csa, pp. 11-32.
7<I O título da comédia de Arist<>ranes é Os Cavaleiros. Edii;ao consultada pelo autor: Aris-
tnlalll:~, Comoediw jComédias], vols. l-U. cdii;iio de Wilhclm Dindorf. Leipzig. l 830: vol.
73 Este nome proprio possui ·1 v· [' .· · 1 pp. 69-70. Em grego no original; na lraduy,'io de Maria de FátiJna de Sousa e Silva: «DE-
. . ' "e11crn e o uso equivalente em portu.,ues ·10 de M' M< >S rENES: O que? De urna estátua? Tu ainda vais ncssa treta dos deuses? i NÍCL'-\S: Ai
na», para nomc de criada. "' · ' «1 a-
111111. que 1150 vou! ! DEMÓSTENES: Mas corn que fundamento?! NfClAS: Como de que
~;. ~nd1 alemño no original: «Foste c~11nprida. i vigía nocturna da minha vida», verso idcn-
t 1 rc,i 0 corno sendo da autona de Esquil · . r ,. .- _ ,1111 um perseguido pela divindadc. iio é urna boa rnzao? I DEMÓSTENES: Sem dúvida.
Werke [Obr d , . . - - o. e< 19,10 consultada pelo autor: Des i11srhylos J •,111u plenamente convencido.>>, in Arist6fanes, Os Cavafeiros. introdui;iio, vcrsao do grego
- ., . rns, e Esqu1loJ, traducáo de Johann Gustav Droysen, Berlim 1842 498
7) lcrrno da lmgua ulerná. ' ·p. · t' notas de Maria de Fátima de Sousa e Silva. Coimbrn: l11stitu10 Nacional de Jnvestigar;ao
( '1c11tífica, Centro de fatudos Cl¡\s~icos e Humanísticos da Univcrsidadc, [985, pp. 31-32.
'/()
71

ó·qµoua10vl1i;.
1 , , , t1111 pcrdcu para mimo rcfrigério. Se me ofcreccsscrn tod~s as magni-
rroíov f~Qei:ui;: éreóv r1yei: YÚQ 1')eo1Ji;:
1, 111 lllN do mundo, ou todas as dores do mundo. afectar-rne-iam todas de
Nt.x.tai;.
11 d umnciru , nao me voltaria para o outro lado ncm para delas me apro-
1461 11111, 1;~·111 para delas fugir. Morro de morte83. E o que haveria de ser
,1111 de me distrair? Sirn, se eu acabasse por ver urna fidelidade que e•~=
.!lr¡µoo·f)evr1i;.
JWÍ(f)XQWµtvoi; TEX~L11QL(¡.);
, , 11111 1.,~· roela a provacño'", urn entusiasmo que tudo suportasse; u.ma le
1111 movcxsc monranhasf"; se eu vislurnbrasse um pensarnento que ligasse
NtxLai;.
1111110 corn o infinito. Mas a venenosa dúvida da minha alma tuclo con-
ów1 fh::ol.otv tx,')·0ói; eiu'. uux dxónoi;;
,1,11 A 111i11ha alma como o Mar Morto, sobre o qual ncnhum pássaro
Ll r1 µ.ou-O·Evlii;.
é

JS. cu
JT.{.)()Uf3t0á~e1,i; ue.
11 1 ~·11c voar; quando chcga a rucio carninho,

' 11r1 n11iquilac;ao86.


afunda-se exausta na mor-

* *
* * *
*
Como o tédio é francamente pavoroso - pavorosamente cniediante:
l~ro.ptHitoso! Com que angúsria equívoca, a ele perder e a ele conservar, o
ní'ío conheco ncnhuma curra expressáo mais forte, ncnhuma outra exprés-
11,111w111 se auarra todavía a esta vida. Pcnsci algumas vczcs em ciar um
sao muis vcrdadcira; pois só pelo scmclhanre é o scrnelhanro reconheci-
clo80. Oxalá houvessc urna cxpressño mais elevada, rnais Iortc, ainda havo- ¡1 '"º e , .
decisivo, face ao qual todos os mcus passos a.ntenores mais nao
-

11 ia111 do que infantilidadcs - crnprcendcr a grande viagcrn ele dcscobcr-


ria entretanto um movirncnto. Pico estirado, inerte; a única coisa que vejo
1 1 'l'¡d como urn barco ao sair do estaleiro é saudado com salvas ck ca-
é o vazio, a única coisa de que vivo o vazio, a única coisa em que me
é

ulit1t> também eu me saudaria a mim próprio. E afinal. Será que me !'alta


movirnento é o vazio. Ncm scquer sofro dores. O aburre debicou afinal o
, 1 nr~1gc111? Se urna pc<lra me alingissc e me matasse, seria tocia vi a urna
l'ígado de Promcteu'": sobre Loke, gotejou afinal o veneno continuarncn-
11fd:1.
te82: havia ainda assirn urna interrupcño, se bcrn que monocórdica. A pro-
11/1

80 O autor usa diversas variantes retiradas de urn corneuulrio u Empédoctcs em Aristó-


teles, Metafisir«. lOOOb: urna desxas variantes está rcgiMada como 11." 1630 in Gr11n-
* *
dtvig. p. 62. Vd. nota 10 no capítulo «0 Primeiro Amor» e nota 2l no capítulo «Os
*
Estádios Eróticos Imediatos 011 o Erótico-Mu~ical>>.
81 Por ter ouxudo roubar o fogo divino a Zcus para o conceder aos mortais, Prometcu
foi condenado a permanecer para sernprc agrilhoado a urna rocha, cxposto aos ara- 1( 1Ciénesis,2:17: «Mas nao comas do fruto da árvorc da ciencia do bcm e do mal; por4ue
qucs dos aburres: o fígado sarava durante a noitc para voltar a ser dilacerado 110 dia , 111 quaJ4uer dia que comeres dele, rnorrerás ele morte.» A i~leia de morrer ele m011c é
scguinte. 1 i'l·l;1borada em Doe11{'a para a Morte, SV 1. vol. XI, p. 132, S~S, ~ol. 11, P; 134. .
82 O deus Lokc é a pcrsonificacso do mal na mitología nórdica. Da sua ligai;:ao coma X 1 KierkcgaanJ dt:senvolvt: a ideia de fé corno promessa ele hdehdade r~c1proea cnuc
gigante Angrboda nasccrarn tres criaturas monstruosas: Fcnris (011 Fenrisulfr), o lobo. t kui. e 0 homem cm Temor e Tremar, a obra publicada seis meses dcpms de 011 011,
Jormungand, a scrpenrc de Midgard, e Hel, a deusa do mundo inferior. Como castigo ·m Outubro de J 843 J'tmlarnenle cmn A Repetir,:cio e 1'rf!s Discursos Edificantes.
i ' E
por rer mono Baldcr. o dcus da luz. Loke viu os scus umbros. a cintura e os calcanharcs K5 Marcos. 11:23: «Em vcrdade vos afirmo que todo o 4ue disser a esLe monte: rgue-
sercm amarrados comos intestinos de Narvi (filho de Loke e Sigyn) a tres gigantescas ll' e Jarn;a-te 110 mar, e isto sern hesitar no seu corairao. mas tendo fé de que tudo o que
rochas dentro de urna caverna, ficando dcbaixo da boca de urna scrpentc gigante gorc- d1s~er sucederá. ele o verá assim cumprir.» .
K(1 Vd. J. L. Hciherg. Formenlehre der diinischen Sprache [Morfología da Língua D1-
jaudo veneno. Sigyn, esposa del .oke, rccolhcu o veneno 1111111 recipiente, mas. ao tentar
despeja-lo, dcrrarnou-o sobre l .oke, que continuaría cm cativeiro até ao Ragnarok (o 11amarquesa], Altona, 1823, in Prosaiske Skrifter [Esc1.ilos ern Pros'.1¡, vol. Vlll, 18~:·
cumprimento do destino dos deuscs), momento cm que o dcsígnio de Loke se cumpriria, p J 92: «Das Ge.fiihrlichste aher Ruhe und Stillsta11d, dieses wahrhajl lod~e. Meer, WOl,"-
ao chefiar o cxérciro do mal na batalha final comos dcuses. na qua] é morro por Hci- hcr kein Vogel zu fliegen vermag» 1 «Ü mais perigoso, emhora de tranqu d1dacle e. qu1e-
mdal. tude. este verdadeiro Mar Morto, sobre o qual nenhuma ave consegue voan>l. Intorma-
1,'iío gentilmente cedida por R. Purka11hofor.
72
73

A tautologia é e continuará a ser o principio supremo, 0 principio supremo Ou-Ou


do pensamento87. Nao admira pois que a rnaioria dos homens a utilizc. Tam- Urna prclcccáo extática
bém nao é assim tao pobre, e é rnuito capaz de preencher a vicia intcira.
P?ss~i urna forma jocosa, espirituosa e que entretém. que sao os iuízos infi- < 'usa-te, e arrcpender-te-ás; nao te cases, e também te arrependerás; se te
nitos'". Esta espécic de tautología é a tautología paradoxal e transcendente. , 1"11111•s uu s0 nao te casares, arrepender-te-ás de ambas as coisas; ou te
A fo~na que toma séria, científica e edilicante. A fórmula respectiva é a
é , 11i.,11~. ou nao te casas, e arrependes-te de ambas as coisas'". Ri das loucuras
segumte: quando duas grandezas sao iguais a urna e a mesma tcrceira, sao d11 utundo. e arrepender-te-ás: chora sobre elas, e tarnbém te arrependerás;
nesse caso todas iguais entre si89. Trata-se de urna conclusáo quantitativa. 111111 tu das loucuras do inundo, ou chores tu sobre elas, e arrcpendcr-tc-ás
Esta espécie de tautología é usada especialmente cm cátedras e púlpitos onde d1 11r11hns as coisas; ou te ris das loucuras do mundo, ou choras sobre elas,
há muito para dizcr. 1 1111 cpcndcr-tc-as de ambas as coisas. Confía muna rapariga, e arrepcndcr-
11 lh; nao confíes nela, e tarnbém te arrependerás; confies tu numa rapari-
* * flll. ou ni'ío confíes tu nela, e arrepender-te-ás de ambas as coisas; ou confías
111111111 rupariga ou nao confías, e arrepender-te-ás de ambas as coisas,
1•11torca-tc, e arrepender-te-ás; nao te enforques, e também te arrepenelerás;
O desproporcionado na minha cornplcic,:ao reside no facto de as minhas 1• re entorcares ou se nao te enforcares, arrcpcnder-tc-ás ele ambas as coi-
patas dianreiras scrern demasiado pcquenas. Tal como a lebre da Nova Ho- ~1111, ou te enforcas, ou nao te enforcas, e arrcpcndcr-te-ás de ambas as
!ar~.d;~90, tenho urnas patas dianteiras muito pequcnas, mas patas traseiras 1 n'"ª"· Meus scnhorcs, esta é a 148l quinta-csséncia de tocia a sabedoria ele
rnl 1.n1tamente c~mpridas. Deixo-rnc em geral ficar completamente quieto; vldu. Nao é sirnplcsmcntc ern instantes específicos, como diz Espinosa'",
se faco um mov11~ento, é um salto monstruoso, para horror de todos aque- que considero tudo teterno modo93• estou antes continuamente ceterno mo-
les a quem cstou ligado por ternos Jacos ele parentesco e de arnizadc.

•11 111 a~c atribufda a Sócrates por l)iógcncs Laércio. Ecli9c'Ses consultadas pelo autor:
* * /110¡.:l'lli.v Laertii de vilis philosophorum lVitlas dos l-'il6sofos de D. L.I. vols. 1-IL Lei-
* 1111/.\. 1933; vol. 1, p. 76, e T)io¡.:e11 fnfrtses.filosojiske lfistnrie lllislória da Filosofía ele
1 l 1,.1. vols. I-H, tradui;:ao ele B~rge Riisbrigh. Copenhaga, 1812; vol. 1. p. 7 l. Vd. Dio-
¡11·11l'~ Laertius, l.iw·.v of F:minem Philo.iophers, 1radu9iio de R. D. Hieks. Cambridge:
11111 vard Universily Pre~~ (Loeb). 199 l; vol. l, p. 163 . .lens ~aggesen usa igualmente
87.Seguudo Estflpon de Mégara (c. 360-c. 280 a. C.), os conceitos universais nao teriam 1 ''" l'ita1;ao cm Ja og 11ein ISim e Naol, Vcerker, vol. T. p. 304. Em Estádios 110 Ca111i11ho
objecto. resultando dessc modo que apenas ex istern proposicñes idénticas entre si· obra rlo Vida. a réplica de Sócrates é discutida eom maior pormenor no capítulo «Reflexoos
eo1~sulrntla pelo autor: W. G. Tcnnernann, Geschichte der Philosophi»[História da' 1-ii [o- .nlnc o Ca.~amcnto», in SV 1, vol. VI, pp. 149-150, SKS, vol. 6, pp. 146-'147.
sofia], vols, l.~XI. 1798-18!9. vol. 11, pp, 160 e scgs. Para a discussao ele Hegel, vd. tp Alusao ao princípio ele Espinosa sub .vpedae aetemitati.v. i. e .. «sob o aspecto ele
'.,gualme.•He W1ssensC'/1aft der Logik [Ciéncia da Lógica] 1; in Werke. vol. IV, pp. 30, '.'12, 1·1rn1icla<le>>, Ética, Parte V, Prop. 29; na obra consuhada pelo autor: Be11edicti de Spi-
.>4; Juln.liiwn.~·· vol. IV, pp. 508, 510. 5 J 2; e Suhrkamp, vol. VI, pp, 38-39. 41-43. ""··" opera philosopflica om11ia [Obras Filosóficas Completas de 8. ele Spinoza]. edi9ao
88 A referéncwaos jufzos infinitos está relacionada comas obst:rvat,:ües efe Hegel sobre 1k A. Gfroerer, Estugarda, 1830, p. 424. In F,rhica, in Spinoza Opera, irn A11ftrag der
a mesma materia. Vd. Hegel. wissensonaf; der Logik [Ciencia da Lógica] ll; in Werke. 1 h.:iclclberger Akademie der Wissenschaften, edi9ao ele Carl Gebhardt, vols. 1-IV. Hei-
vol. V, pp. 90-91, Jubilüums, vol. V, pp. 89-91; e Suhrkanip; vol. VI, pp. 324-326. Vd. ddbcrg. Carl Winters Universitcctshuchhandlung, 1972; vol. 11. p. 298. Vtl. igualmente
igua!mt:nte .1. L. Hciberg, Gnmdtra:k ti/ Philosophiens Philosophie eller den speculative !lento ele Espinosa, É1ica, introdui;:ao e notas de Joaquim de Carvalho, tradur,:ao ele Joa-
Logik, ~om le__detraa~ ved Forelatsninger paa den kongelige militaire Hoisko!« [Elemen- quin1 de Carvalho, Joaquirn Ferrt:ira Gomes e António Sirnües. Lisboa: Relógio
tos de Filosofía da Fil.osofia ou Lózica "' .• • 1Ja, 1~" as
Especulativa , . Como Guia · C
on ferencras
• · I)' Água, 1992, pp. 468 e segs., ele que se transcreve a proposic;ao: «1~o ~que a !\_lma ,,.'.
na Escola Real M.ilitarl. Copcnhaga: Andreas Seidclin, 1832. § 144, nota 3. pp. 90 e segs. rnmpn:ende, do ponto de vista da elernidade, nao o cornpreende porque concebe a
89 ~~·Hegel. W1sse11schajl der Logik l Ciéncia da Lógica] JI; in Hhke, vol. v. p. 139. c>..i:-tencia present.;; actual do Corpo. mas poJque concebe a essencia do Corpo do ponto
Jubildums, vol. V, p. 139: e Suhrkamp ; vol. VI. pp. 371-372. de vista tla etemidade.»
90 Ou .lehre-canguru. macrópode de pequeno porte entretanto extinto. A Australia era 1)3 Em latim no original: <<de um modo eterno»; vd. Espinosa, ibid .. Parte V. Prop. 40,

conhecida nesta,épo~a por Nova Holanda. «Hollandia Nova», nome atribuído pelo ex- np. cit., p. 429: no presente passo, as duas fórmulas de Espinosa estao subsumidas.
plorador holandés Willem Jansz (c. 1570-c. 1630), de uso corrente até que James Cook articulando-se a apreensao do pensamento sub specite a'temitmis eom a estipulai;:iio do
( 1728-1779) lhe den o nomc de Nova Inglaterra. pcnsamento corno substancia divina aeterno modo.
74 • •11 1)11 l1111 h11g111c11lo de Vidn 75

do. Depois de terern feíto urna coisa ou a outra, muitos acrcditam que l ril q1tl' se algu6111vicsse a crcr que eu, na medida em.quc agora p~ro,
· também o sao, quando unem ou rncdeiarn esscs contrarios. Trata-se, no d111l iuc paro, dcmonslraria assim que nao tem conceito especulativo.
entanto, de um mal-entendido, pois que a vcrdadcira ctcrnidadc nao se situa ' ,, 1 ~ ll 11i10 paro propriarncnte; antes parci na altura em que comccei.
atrás do ou-ou, mas adiante. A eternidade deles será, tambérn por isso, 111wiio Iil o sofia tem por conseguintc a superna qualidade de ser breve e
urna dolorosa sucessáo ele tempo, pois que teráo de consumir nele o duplo 1. 1 1 li 1du1~ívcl,já que se alguém me contradisscr. ouso decerto cxercer o
arrepenclimento. A minha sabedoria é entáo fácil de apreender, visto que 1111 1111 de o declarar como 1491 doido. O filósofo é pois continuamente
icnho apenas um princípio fundamental, do qual eu nem sequer parto. Tem , 11 1110 modo e nao possui , como o abencoado Sintcnis95, meramente horas
de diferenciar-se entre a dialéctica subsequcnte ao ou-ou e a dialéctica ¡111 !linis que sao vividas para a ctcrnidadc.
eterna aqui aludida. Quando assim cu aqui digo que nao parto do mcu prin-
cípio fundamental, tal nao tcm como seu contrario urn partir-dal. é antes a * *
mera expressáo negativa do meu princípio fundamental, que por cssa via se *
apreende a si mesmo ern contradicáo com um partir-daí e com um nño-
-partir-daí. Nao parto do meu princípio fundamental, já que se eu dele 1\111', porque nao nasci eu em Nybodcrt", porque nao morri eu quando
partissc, arrcpcndcr-mc-ia, e se dele nao partisse, arrepender-rne-ia tarn- , 1 1 1 11an\·a'! O meu pai ter-rne-ia entáo deposto num pcqueno caixáo , le-
bém, Por conscguintc , se a um ou a outro dos meus honoráveis ouvintes a
11do dcbaixo do brayo. acompanhado até cova um domingo de rnanha,
houvcssc de parecer que havcria algo no que cu dizia, estaría pois cabal- , 1111 ele mesmo a lan9ar sobre mirn aterra, e a dizcr a meia-voz algumas
mente a demonstrar que nao tern a cabcca feíta para a filosofía; se lhc a
I' i111vn1s que só ele próprio entendería. Só feli:t Antiguidade podcria
houvesse de parecer que havia movirnento no que ficou dilo, cstaria pois a 111 1111 cr por as criancinhas a chorar no Eliseu97 por terem morrido tao
demonstrar o mesmo. Inversamente. para os ouvintes que cstáo cm condi- 11 do
y5es de seguir-me, apesar de eu nao fazer movimento algurn, irei agora
desenvolver a vcrdaclc eterna, por vía da qual a filosofía permanece em si * *
mesma, e nada de rnais elevado consente. Se eu, designadamente, partissc *
do meu princípio fundamental, entiío, nao conseguiría parar outra vez: por-
que se eu nao parasse, entáo , iria arrepender-rne; se eu parasse, entáo, iría N11111 ..:a fui alegre: e contudo, sempre pareceu que a alegria estivcsse entre
cu tambérn arrepcnder-rne disso, e assirn por diante. Ora, ao invés, como eu q111•11t 11tc seguía, como se os génios !estos da alegria dan9assem mjnha a
nunca parto. tambérn posso scmpre parar, dado que a minha eterna partida \111l11, invisíveis para os outros, mas nao para mim. comos seus olhos a
é a minha eterna paragcm. A experiencia comprovou que, para a filosofia. 111 ilharcm ele júbilo: quando assim p<1sso pelos homens, 1.ao feliz e alegre
nao de modo algum diffcil comecar'". Longe disso: comcca de facto corn
é 1111110 um deus, e me invcjam a folicidade, río-me cntao, pois que desprezo
nada e, portanto, pode comecar sempre. Ao invés, o que para a filosofia e 1111 llo111cns, e vingo-me. Nunca dcscjei f¡u,cr mal a homem nenhum, mas
para os filósofos se torna difícil é parar. Tambérn evitei esta dificuldade, a
,1•111prc deixci transparecer que cada um dos que minha bcira chegasse

94 A discussño de como e por onde corneen a filosofía percorre o idealismo alemño e o 11~ J\lu~ao ao título da obra de C<1rl Heinrich Sintenis (1750-1820), Su111denflir die
hegelianismo dinamarqués. Vd. Hegel na sua crítica a Descartes, scccño introdutória de / 11'1!{/...cit gelebt LHora.~ Vividas para a Etcrnidadel. Berlim, 1791-1792, l:Olll tradw;:ao
wissenschaft der logik (Ciencia da Lógica] 1; in Werke. vol. 111, pp. 59, 63. 66-67, 68; d111111narquesa, de Copenhaga, no ano de 1795.
Jubildums, vol. IV, pp. 69. 73. 76-77, 78; e Suhrkamp, vol. V, 65, 68-69, 71-76. E igual- •111 Zona da cidade de Copenhaga, onde se situa um conjunto de casas geminadas 111an-
mente Fichte, Über Gegensatz, Wendepwikt und Ziel heutiger Philosophie [Sobre a Opo- ih1das construir por Christian IV para as famílias dos marinheiros ao servii;o da marinha
slcño, o Ponlo de Viragem e o Objeetivo da Filosofia Contemporánea], Erster krltischer ll'ai. Em J 817. um inl:i\ndio dl:slruiu aí um orfanato. J\r1encionaclo por Luclvig llnlberg
Theil 1 Primeira Parte Crítica], Heidelberg, J. 1-1. B. Mohr, 1832, pp. 76-77. Por seu lado, ( 11184-1754) na comédia Den S111ndes/qise [O Cheio de Azáfamal corno local do nasci-
Heiberg assinou artigos de índole vária sobre o mesmo tópico no scu periódico Perseus, 111t·11to de 1.rinta e duas criani.;a.~ de uma só mae, nados-vivos, baptizados. mas imediata-
Journal [or den speculative Idee [Perseu, Jornal para o Pensarnento Especulativo], em 111t·111c falecidos.
especial «Del logiske System» L«O Sistema da Lógica»]. Perseus, n," 2. Agosto de 1838, 1¡¡ Cf. Virgílio, E11eida, Livro VI, vv. 426 e scgs. Vd. «Encida», in Virgílio, Obras de
§-§ 1-1 O. Kierkegaard prossegue esta discussño em Postscriptum Conclusivo Niio­ Vir!{flio: Bucólicas, Geórgicas, Eneida, tradll(;ao do latim de Agoslinho da Silva. Lis-
-Cienttfico ás Migalhas Filosóficas, SVl. vol. VH, pp. 91-96, SKS, vol. 7. pp. 108-1"13. hna: Temas e IJebatcs, 1999, 2." edii;ao, pp. 297 e segs.
76
• ••• e >11 IJ111 l·1<1r111( 1110 de\ 1d,1 11

acab~ria magoado e fcrido. Quando oico outros scrcrn elogiados pela sua 111il11 .t p.11 te cuconuundo conhccidov, por toda a parte apontando-rnc urna
fidelidade, pela sua rcctidáo, rio-rne cntáo. pois que dcxprczo os homcns. e a
"I 111111111d.idc Tal tomo um homcm ebrio reúne sua voila o bulício irre-
vingo-me. Nunca o meu coracáo se cndureccu contra horncrn algum, mas h 1111· du juvcntudc, asxirn confluíam cm mcu redor os elfos da alegria 100,
scmprc dcixci transparcccr, justamente quando esta va mais comovido, que 11 111u1 ,0111M) dirigia-sc-lhcs. A minha alma perdcu a possibilidade. Hou-
o rneu coracáo eslava fechado e era alheio a qualquer sentimento. Quundo \• 1·11 de dcscjar algo para mim, e nao descjaria cntño riqueza ou poder.
¡•
oico cutres ficarern com a fama de rcrem bom coracáo, quando os vejo 1111 pa1\5o tia possibilidadc, o olho que por tocia a parte. eternamente
11
serem amados pelos seus ricos e profundos sentimentos. rio-me entáo, pois 1 1 1 111 crcrnameruc ardcnre, ve a possibilidade. Ü gozo cnganador, a
é

que desprezo as pessoas, e vingo-me. Quando me vejo amaldicoado, exe- ji1I 1<tlnl1dadC lliÍO. (que vinho Será 11.íO eSpUITIOSO. IDO aromático e cmbria-
crado, odiado por ser frio e scm coracño, rio-mc cntáo, e logo fica saciada 1111\ 1
a rninha ira. Se, dcsignadamcntc, os hornens bons pudcsscm fazcr com que
cu realmente nao tivcssc razño, com que realmente cu proccdcssc mal _
cmño si 111, cu tcria perdido. * *
*
* * < >11de nao chcgam os ralos tic .ol, chcgarn porém os sons. O rncu quarro
* hl uro e sornbrio. um muro alto qual)C a fasta a lut: do clia. Devc ser no
11111111,il do vi1inho, é provável que seja um 1mísico ambulante. Oe que ins-
A rninha infelicidaclc é esta: um anjo da mortc ancla scmprc ao mcu lado, 1111111t•1110 se trata? Uma flauta de pastor? ... que oi~o eu - o minuete de
e nao sao as porta'> dos clcito: ª"
que cu aspirjo com sangue. cm sinal de 0111111111111 1• º
Lcvai-me logo, sons ricos e fortes, para fora daqui 0t11ra vez,
que 1501 ele há-dc passar-lhcs ao largo''X; nao, é exactamente pela porta ¡i111 .i a roda das raparigas, para a volúpia da dan9a. O farmaccutico bate no
deles que ele entra - pois sé o amor da rccordacño é feliz?", 1li1111l:1ri1.. a criada csfrcga o iacho, o m~o ele estrebaria escova o cavalo e
li111c c.:0111 a escova nas pcdras da cal9ada; cstcs sons dirigem-se só a mim,
11 •·11am só pnra mim. Oh. grac;as te sejam ciadas onde quer que estejas,
* 111111ta-; grnc,:as! Tao rica, sa e ébria de alegria está a niinha alma.
li 11
O vinho nao me deleita rnais o coracño: em pouca quantidade. deixa-me
~ostálgieo; em muita - melancólico. A minha alma está csgotada e sem
Iorcas: debakle sulco o seu flanco corn a espora da volúpia. já nño pode
mais, já nao se ergue mais no scu salto real. Perdi toda a minha ílusño.
*
lento em vño entregar-me a infinitude da alegria, já nao conscguc elevar- l .m si e para si, o salmao é um alimento muito delicado: mas quando
-me, ou melhor, sou eu qucm nao conscguc elevar-se. Outrora, mal cla me dele se abusa, é prejudicial a saúde, visto tratar-se de urna comida indigcs-
accnava, logo eu me erguia ligciro, sadio e nfoito. Quando cavalgava len- 1.1. Por isso, quanclo urna vez em Hamburgo houve urna grande pescaria de
tamente pela floresta, era como se voassc: quando agora o cavalo espuma, ,almiío. a polícia cstipulou que cada patrao apena-; dcsse salmao a rcspee-
pr~sles a cair, parece-me que 11ao saio do lugar. Estou sozinho como sempre 11va criadagem urna vez por semana. Seria de descjar que viesse a sair um
csuvc; abandonado. nao pelos homens, o que nao me causaría dor, mas 1..'dllo policiaJ parecido. que di. ses~e rcspeito ao sentimentalismo.
pelos génios Iclizes da alegria, que me rodeiarn em legióes incontáveis, por
* *
98 Exo<lo. 12:22-23: «Ensoput um molho de hissopo no snnguc que hñ-de estar no li- *
miar da porta e borrifai com ele a verga da porta e as <luas ornbreiras: ueuhum de vós
saia da porta ~a sua cuxa até pela manhft. /Porquc o Senhor passani fcrindo os ílgípcios; 100 O elfo é uma criatura <la mitologia 11órdica. um ser luminc.,cenlc com caraetcrísticas
e. logo que VU' o sangue sobre a verga da porta e sobre as duas ombrciras. passará a si:miuivinas e imortal; é um cleus menor da na1ureza e da fcrti)jdacle - daí a sua ligai;ao
porta da casa. e nao dcixará entrar ncla o cxtcrminado-, nem fazcr-vos algurn mal.» .t alegria - . habitando grutas subten-anea~. fontc.<> t: outros recantos <la naturcza.
99 Vd. acima nota 79.
101 Vd. Mozart. 0011 GiOl'n1111i. J\cto l. cena XX.
' 111 ( 111 1J111 h t11::>11H:11to 1k Vid u 79
78

O mcu pesaré o mcu castclo senhorial , erguido corno urn ninho ele 111 u lndo.» cm um único dos deuscs responden urna palavra, ao invés,
11H

águia no curne da rnontanha entre as nuvcns; ninguérn conscguc torná-lo t iodos a rir. Pcrantc isto, concluí que o rneu pedido fora cumprido,
11 v11111111
'' IJ¡•1 que os dcuses sabiarn exprimir-se com requinte; porque teria sido
ele assalio. Lanco-mc daí em voo sobre a realidadc e agarro a minha presa:
mas nao fico em baixo, trago a minha presa para casa, e é ela a imagern ,1 \1 '"' inapropriado responder com scriedade: «foi-tc concedido».

que eu entreteco nas tapecarias do meu castelo. Vivo entño como um de-
funto. Mergulho tudo o que vivido no baptismo do esquecimento até
é a
eternidade da recordacáo. Tudo o que é finito e casual esquecido e eli-
é

minado. Sento-me entáo pensativo, como um velho ele cabelos brancos, e


explico as imagcns cm vea. branda, quase cm murmúrio, e ao mcu lado
senta-sc urna enanca a
escura, ernbora de tuclo cla se lembrc, antes ele eu
o contar.

* *

O sol brilha com tanta beleza e vivaciclade pelo meu quarto adentro, a
janela está aberra no quarto contíguo: tudo na rua está calmo, é domingo a
tarde: oico distintamente urna cotovia que lanca o scu chilrcio , do lado de
fora da jancla de um dos quintáis vizinhos, onde vive aqucla bonita rapari-
ga; muito ao longo, vindo de urna rua distante, oico um horncm que aprcgoa
carnaráo; o ar está tao quente, e todavía a cidade inreira está como rnorta.
- Faz-me lembrar a minha juvcntudc e o rncu primciro amor102 - ansiavu
+ cntáo , agora sinto ansias apenas pelo rncu primciro anseio. O que é a juvcn-
{_ tudc? Um sonho. O que é o amor? O conteúdo do sonho.
I")

* *
*
Acontcccu-mc urna coisa prodigiosa. Fui arrebatado até ao sétimo céu.
Estavam lá reunidos todos os dcuses. Foi-rne concedido por especial graca
o favor de realizar um desejo. «Queres tu», disse-rne Mercurio 103, «queres
1521 tu ter juventude, ou beleza, ou poder, ou urna longa vida. ou a mais
bela rapariga, ou urna outra magnificencia das multas que ternos na arca
da quinquilharia - escolhe lá, mas só urna coisa.» Piquei baralhado por ·
um instante. mas dirigí-me aos deuses ern seguida: «Honoráveis contem-
poráneos, escolho urna única coisa - que possa sernpre contar como riso

!02 «Kjcerlighed» nas duas ocorréncias deste fragmento.


J 03 Na mitología romana. Mcrcúrio corresponde a Hcnnes na mitología grega. Dcus
romano do comércio, e da eloquéncia, dos viajantes. dos ladrñes e dos rebanhos: como
veloz cmissário de Júpiter, era facilmcnte Identificávcl através do elmo e das sandalias
aladas, bem como pela bolsa e pelo caduceo.
1 di

Os Estadios Eróticos Imediatos


ou

o Erótico-Musical
Introducáo Insipiente

/\ partir do instante em que pela prirneira vez a rninha alma ficou des-
ltuuhruda coma música de Mozart', e humildemente se prostrou em adrni-
111\110. cnrrcguei-me amiúde a urna ocupacáo dilecta e reparadora. a de re-
ll1·1'tir no modo como essa feliz ponderacáo dos gregos sobre o mundo, ao
i¡11nl por isso chamam xouµ.o~2 (porque se rnostra como um todo bem or-
tl1•1111do, como um adorno requintado e transparente para o cspfrito, que
1.ohn: ele actua e gcra ac<_,:flo), e no modo como cssa alegre pondcracño é
¡HtN'>Ívcl de ser repetida numa ordcm mais elevada das coisas, no mundo
do-. idea is, e no modo como volta aqui a encontrar-se urna sabcdoria provi-
tl1·111c, digna de admiracño porque, em particular, ligt1 um ao nutro o que
1l·111 de estar em conjunto. Axcl e Valborg", Homero e a Guerra ele Tróia,
l<111'acl e o catolicismo, Mozart e Don Juan. Há urna dcscrcnca mesquinha ·
que parece conter um grande remédio . Em sua opiniño. urna Liga<;ao dcstc
1 ipo é casual, e nada mais af ve que nao seja um encontró a dois, bastante
.rlortunado, das diferentes forcas do jogo da vida. Ern sua opiniño, é casual
dois amantes darern um com o outro, e casual arnarern-se um ao outro;
é

huvcria outras ccm raparigas comas quais ele poderia ter viudo a ser igual-
111c11te feliz. pelas quais podcria ter sentido um amor igualmente intenso.

1 Wolfgang Arnadcus Mozart cornpós em 1787 !l dissoluto punito ossia Don Giovan-
11i 10 Dissoluto Punido, ou Don Giovanni]. sobre o libreto de Lorenzo da Ponte (1749-
1838); doravantc a vcrsño original é rcfcrcnciada pelo nome original: IJ011 Giovunni,
Ao longo do presente capítulo, sao frequentes as rernissóes para a versño dinamarquesa,
d;1 auroria de l .aurids Kruse. Don Juan. Opera i tvende Akter bearbeidet ti/ Mozurts
Musik [Don Juan. Ópera em Dois Actos Arranjada para a Música de Mozart], Copcnha-
!!ª· 1807; doravanrc, esta vcrsáo referenciada pelo norne de Kruse.
é

2 Em grego no original: «cosmos».


1 Axcl e Valborg proragonizam o drama rornñnuco Axe/ og valborg de Adam Oeh-
lenschláger, in Oehlenschldgers Tragedier [Tragedias de 0.1, vols, 1-!X. Copenhaga.A.
F. Host, 1841-1849; vol. VI, pp. 5-108. Unidos por um amor profundo, nao recebem
autorizacño da Igreja para contraír rnatrimónio, visto scrcrn irrnáos de baptismo, ou
scja, reccbcram o baptismo no mesmo <lia e na mesma cerimónia.
84 1.~ ~
r >11 ( )11 l lm h11gnw11lo de Vidn 85
(i {)
Em sua opiniáo, já vivcram muitos poetas que havcriarn igualmente ele
ditln, se 0 mcu infantil desojo nao Ior cumprido, sairci cntáo da cornunida-
chegar a ser tao imortais quanto Hornero. se essa magnífica maréria nao
tll xepurnr-mc-ci dessa maneira de pensar. fundo entño urna seita que n~o
lhes houvesse sido usurpada por ele, muitos compositores haveriam igual-
, ll111i1n u colocar Mozart ern lugar cimeiro. mas que ncm scquer tcm mars
mente de vira ser tao imortais quanto Mozart, se lhes houvesse sido oferc-
11111¡.:,iK·ni alérn de Mozart; e quero pedir a Mozart que me per~l?e pelo .facto
cicla a oportunidacle. Ora esta sabedoria contérn um consolo grande e um
tlt• a Nu:i música nao me haver entusiasmado para alcancar feítos rnaiores,
bálsamo para todos os rneclíocrcs, que assirn se véem investidos da capaci-
111111.·-. ter teito de mim um tolo, que por sua causa perdeu a rnigalha de en-
,, cladc de imaginar, para si e para os que pensarn da mesma maneira, que é u-uuimcnro que tinha, csgorando eu agora o tempo na maioria das vezes
J urna confusáo do destino. um erro do mundo, nao tercrn sido eles a
,/ 1111111u calma nostalgia". a cantarolar aquilo que nao cnrendo , rondando em
notabilizar-so tanto guamo esses notávcis. Trata-se de um optimismo muito
f{tcil, o que assim é produzido. Para qualquer alma magnñnima, ao invés,
Mii 'llL'iO COlll() lllll fantasma, día C 110ÜC, avoila claquiJO Clll que nao SOU
11111111 de entrar. !mortal Mozart~ Tu, a qucrn cu ludo elevo, a quem elevo
,'para qualquer optimate4, para qucm nao é tao imperioso salvar-se a si pró-
l111vcr perdido o entendimento, ha ver-se a minha alma deslumbrad~, havcr
prio de modo tao mcsquinho quanro perder-se a si mesmo ao contemplar o
11, L·slrcmccido no 1571 mais íntimo do meu ser, tu, a quem devo nao havcr
grande.1561 obviamente trata-se de urna aborninacño, ao passo que é para a
ulnivcssaclo a vida sem que houvesse algo capaz de me emocionar'. tu,.~
sua aln~a urn júbilo, urna alegria sagrada. ver reunido o que tem de estar
qlll'll1 agrade90 nao morrer sem haver amado. se bem q.ue o r:ieu .tmor
junto. E isto o que há de feli:r., nao corn a signific:1yao do que casual.
é

ll'llha ~ido infcli7 .. Nao é pois de admirar que eu zele mu1to ma1s pela sua
prcssupondo por isso dois factores, ao passo que o casual reside nas ínter-
)d(lrifica<,:ao do que pelo instante mais feliz da mi1~ha própria. vida.' q~e ~u
jcicóes inarticuladas do destino. É isto o que há de feliz na historia, o divi-
~t'l:t mais cioso da sua imortalidadc <lo que da minha própna ex1stenc1a.
no jogo concertado das forcas históricas, a solcnidadc do tempo histórico.
Si.111, -,e ele tivesse sido eliminado, se o scu nomc tivcssc sido apagado, caía
O casual possui apenas um único factor: casual que 1 romero cncontrassc
é

por 1crra o único pilar que até agora impcdiu que ludo para rnim ruísse num
na hisrória da Guerra de Tróia a mais notável matéria épica que cabe ima-
111rnmcnsunível caos. num horroroso nada.
ginar. O que feliz tcm dois: é feliz que a rnais notávcJ matéria épica cou-
é

No cntanto nao neeessito certamente de temer que alguma época.yucira


besse em sorte a Homero; a énfase recaí aquí nomcadamenta tanto ern
ll~g:ir-lhe o lu~ar naquele reino de deuscs, mas ccrtament~ q~1e ~eccssit? de
Homero quanto na maréria. Nisso reside a profunda harmonía que ressoa
••slnr preparado para que alguém venha a pensar que é mlantil da m1nha
cm cada urna das produc;oes a que chamamos clásslcas. Ora assim que
parte po-lo em primeiro lugar. E apesar de eu nao tencionar de modo algu1~
é

acontece corn Mozart: é feliz que a única matéria que talvcz em sentido
t•nvcrnonhar-mc da minha infantilidade. apesar de, para mim, ele possuir
mais profundo seja musical haja sido ciada a - Mozart.
-,c111p~ rnaior significa9ao e maior valor do que qualquer outra consider~-
Como seu Don Juan, Mozarr entra no pequeno grupo irnortal ele homens
1,·ao cxaurívcl, exactamente por ser inexauríveL efectuarei agora um cnsa10
cujos nemes e obras o tempo nao esquccerá, visto que a etcmidade os re-
corda. E ernbora soja indiferente. quando nele se admitido pela primeira
a
para demonstrar os scus legítimos direitos rec?rrenclo via. d~ deliberas;a~.
o que há de fofü. na producriio clássica, aquilo que const1tu1 o seu class1-
é

vez. ficar cm lugar superior ou inferior. porque ern certo sentido se está ao
rismo e a sua imortalidade, é a absoluta jun¡;ao c~nju~1ta das dua~ for9a\
mesmo nível , urna vez que se Iica nurn lugar infinitamente elevado; ernbo-
l~ssa junc,:ao conjunta é tao abso.luta que urna posterior epoca reflex1onante
ra seja tao infantil lutar pelo lugar superior ou inferior quanto por urn Jugar
na igreja a caminho do altar durante urna confirmacño, ainda sou todavía
muito enanca, ou mclhor, sou como urna rapariguínha apaixonada por Mo- 'i A cdi9ao SKS rcgista «Veemod». o termo constante da primeira e<fo;:ao ~e t:nt.en-
zart , e tenho de o por no lugar cirneiro, custe o que custar, E irei ter corno Wler (SV J. vol. 1, p. 33), aqui traduzido por «nostalgia»; a segunc1:1 cd1i;;ao rcg1sta
sacristáo, com o pastor, com o vigário, corn o bispo e com todo o consistó- «Va11vid», i. c., <<loucurn».
(, Aqui. «Kjter!ighed». . .
rio, e hci-dc pedir e rogar que se dignern curnprir a rninha precc, e hei-de
7 O termo ut'ilizado é «reflekterende», do alemiio «reflectermde»; vd. § 81.' Ka~1t.
implorar o mesmo a toda a congregacño e, se a rninha prece nao for aten- /,ogik. Physische <ieographie, Piidagogik [Lógica. Gcografia física, ~cdagogial. Vd.
Kant.1• Werke !Obras de K.l, edi\;ÍÍO da Küniglich-Preussischen Akadenue der W1ssens-
chaflen, vols. I-lX, Berlim, G. Reimcr, 1907-1923; vol. IX.. pp. 131-132; dorava~le a
~Na organizacáo política da Roma Auriga. os «optimates» constituíarn urna torca polí-
cdi¡;ao será referida por AA, seguida pelo número do volume em questño. Kat~t d1st11~-
tica de cidadáos nobrcs e de tendencia mais conservadora, opondo-se aos «populares»;
Cícero considera va-os virtuosos e honestos. "Ue dois tipos da faculdade de julgar. a detennjnantc, por mcio da qual é poss1vel atri-
buir um universal a um parti¡;ular através do uso da razao, e a reflexionante. pela qual.
86 87

nem sequer será alguma vez capaz de separar em pensamento o que está tiío 1 onhccimcnj.o específico da sua estética asseguram que ele destaca muitís-
intimamente unido scm correr o perigo de provocar ou de incorrer num mau "i111n u :-:igni í"icac¡:a.o da matéria, particularmente de um ponlo de vista esté-
entendimento. Quando assim se diz que a felicidade de Homero foi ter en- 111'1). Ambas as partes tém entretanto de ser tidas em conjunto. e bastará
contrado a materia épica mais notável, entáo, é fácil vira dar ocasiáo a que umn única considcracáo para mostrar como semelhante fenómeno perma-
se esqucca que continuamos a ter essa materia épica arravés da concepcáo lll'CCU aliás inexplicável. É comum ser uma ú1úca obra, ou urúa única se-

de Homero, e que o facto de se mostrar corno a mais perfeita materia épica quG11cia de obras, a marcar um indíviduo singular enguanto poeta ou artista
fica para nós apenas claro na rransubstanciacáo, e coma transubstanciacáo, rl~s:-.ico. ere. A mesma individualidade pode ter produzido rnuitas coisas
que pcrtence a Hornero. Se, ao invés, se destacar o trabalho poético de Ho- tk'>iguais. as qua.is nao cstahelecem todavía qualquer rela9ao corn essa
mero no tocante ao penetrar a materia. fácil correr o pcrigo de esqueccr
é ol>ra. Assirn, l lomero escrcveu igualmente uma Batraclwmyomachi 11, mas
que o poema nunca se teria tornado aquilo que é, se o pcnsamento com que 11t10 foi através dela que se tornou imortal ou clássico. Dizer que isso havc-
Homero o pcnctrou nao fosse o próprio pensamento dele, se a forma nao 11u de ter por fundamento o facto de o assunto ser irrelevante é deveras urna
fosse a propria forma da materia. O poeta desoja a sua materia, mas, corno tolicc, visto que o clé.íssico reside no equilíbrio. Ora se aquilo que faz com
se costuma dizer, desejar nao urna arte, o que está inteirarncntc cerio e se
é que urna produc;ao cl:í.ssica seja uma produc;ao clássica asscntasse única e
aplica com grande verdadc a urna grande quantidade de impotentes dcsejós L~xclusivamente na individualiclade produtora, entao, ludo o que ele proclu-
de poetas. Desejar da mancira cerra é, ao invés, urna grande arte, ou melhor, 1issc teria de facto de ser clássico, em sentido idcntieo. se hcm que mais
é um dom. É o guc há de insondávcl e de misterioso no genio. tal como el.evado, ao que sucede corn as abelhas, as quais produz.cin semprc um
numa vara ele vcdor, ~1 qual nunca ocorrc 1581 desejar outra coisa a nao ser cerio tipo de favo. Ora se a rcsposta a tal coisa fosse que isso aconlcccra
aquilo que cleseja8. Dcsejar tem assirn urna significacño bcm mais profunda por ele ter t:ido 1uaior fortuna com urna do que com outra. nao se teria pro-
do que comum, surgindo até ao pcnsamento abstracto como urna ridícula-
é
priamente dado n.:sposta alguma. Por uro lado, é apenas uma tautología
ria, dado que este está mais perlo de pensar cm dcsejar em relacáo ao que l'lcgnnte que desfruta da honra de ser vista como resposra demasiadas vezes
' nao há, e ní'ío ern relacño aoque há. 11a vida; e por outro, considerada como resposta, responde dentro ele uma
Houve urna cscola de estéticos? que, ao destacar unilateralmente a signi- rclatividade diferente daquela em que foi pcrguntada. lsto nada esclarece,
ficacño da forma, nao fica isenta da culpa de ter ocasionado o corrcspon- designada.mente. no que diz respeilo a relac;ao entre a matéria e a forma e,
dente mau crucndimento contrário. Tem sido para mim multas vczcs notó- no máximo, poderia ser tido em considera<;í.io, quando se tratasse unica-
rio corno éstes estéticos se aliavarn, scm mais delongas, ~. filosofía 111c111.c de uma questflo acerca da activiclade formadora.
hegeliana. visto que tamo u m conheci mento geral de JI e gel 1 n quanro um Ora. passa-se com Mo1.art um caso identico, apenas urna única das suas
obras i'cl. dele um compositor clássico e absolutamente imort.al. F.ssa obra
é Don Juan. Tudo o mais que produziu pode encher de alegria ou de pn11.cr,
111na vez dado o particular. se chega a urn universal empírico e nño-lógico. possuindo
apenas validado subjectiva. Vd., cm portugués, lmmanucl Kant. Lógica, tradui¡;ao ele despertar a nossa admirac;í.io, cmiqueccr a alma, satisfazer o ouvido, delei-
Artur Morño, Lisboa: Edicóes Texto & Grafía. 2009, p. 125. Lar o cora<yao; mas 1591 nao se presta servic,:o nenhum a Mozart e sua a
8 «~mkerqvist>>,literalmentc «vurinha dos desejos», replicando as diferentes ocorréncias imortalidade misturando-as todas urnas com as outras, é tornando tudo
de «al onske», «desejar». e de «YJmke», «desojo». na seceso final dcstc parágrafo. igualment_e gnmde. Don Juan é a sua obra-prima12• Com Don Juan, Mozart
a
9 Alusáo ao filósofo alemño Christian Hermann Weissc ( 1801-1866) e sua obra System entra nessa eternidade que nao se situa forado tempo, mas sim no rneio do
der Aesthetik als wissenschafs 11011 der ldee der Schonheit [Sistema da Estética como
tempo, que nao fica oculta dos olhos dos homens atrás de nenhum.a cortina,
Ciencia da ldcia da Beleza], vols. 1-11, Leipzig, 1830; vd. nota l e111 «Prcfácio».
1 O 1 lcgcl, vorlesungen iiber die Aesthetik 11 .icócs sobre a Estética I, cdicño de Heinrich onde os .irnortais nao sao admitidos de urna vez por todas. mas sao antes
Gustav l-lotho (1802-1873), vols. 1-UI, Berlim, 1835; Werke. vol. X. PI;· J-3, e pp. 99-
-101, Jubtlüums, vol. XII., pp. Ll5-I 17, e Suhrkamp , vol. XIII, pp, 107-109. Vd. em a
11 Bm:gaxo.uvo¡uJ.xw[<iucrra cl:ls Ras e dos Ratos!, paródia epopeia homérica, cs-
portugués: O. W. Hegel. Estética, traducño de Álvaro Ribciro e Orlando Vitorino. intro- <.:rita soh.o nome de Homero. É possfrel que Kíerkegaard tivcssc conhecimentn da tra-
dueño de Pinharanda Gorncs, Lisboa: Guimarács Editores, J 993. pp. 49-50. Hotho é
du<¡i'ío de Poul Martin Mtlllcr (1794-1838). Frf>ernes og Musenes Krig [Guerra das Ras
frequentementc citado ao longo destc capítulo pela xua obra vorstudien fiir Leben und e dos Ratos], publicada postllmamente; vd. l:!Jterladte Skr(fter [Escritos P6slumos], 2."
Kunst [Estudos Prévios para a Vida e para a Arte]. Esrugarda e Tübingcu, 1835. cuja edi<;ao, vols. 1-Vl, Copenhaga, J 848; vol. l. pp. 254-264.
primeira parteé inteiramente dedicada a Don Giovanni (pp. 1-172): doravantc referida L2 Aqui. «Rec:eplion.sstykke», o trabalho cuja validai;:ao garantia ao artista ser admitido
pelo neme do autor, seguido de vorstudien, na Academia das Artes.

J
89
t h1 ( h1 l 1111 1:1t1fllll'lllil tk' Vida

continuamente admitidos, i1 medida que urna gcrai;ilo passa e para eles di- 11 .imus corno cl:ís~icas na arquitectura. na escultura, na músic~, na pi~-
111 1111
rige o olhar, feliz na conrcmplacüo dos imortais e, dcsccndo esta gcracño
é 1111,1, puncrpatmcntc nas trés primciras, de ta1 modo que, no que d.iz resp~1-
a sepultura, a geracáo seguintc passeia-se de novo por eles e deixa-sc trans- 111 1 prutura, conquaruo se possa falar de matéria, esta pode quando muito
figurar pela contcrnplacáo deles 13: com Don Juan, Mozart entra na galeria ipr11l icur «ser ocasiáo». O segundo aplica-se ~1 poe~ia, tomada esta pala~ra

daquelcs imortais, desses visivclmcnte transfigurados, os quais nuvem al- 1111 ~11a s1gnilicar,:5o mai vasta, arravés da qua! des1~~1a ~oda~ as ?roduyoc~
guma arrasta para longe dos olhos dos homens14; com Don Juan ocupa o 11t1,111:a\
que ,e baseiam na tinguagem e na consciencra h1st~nca. Em s1
lugar cirnciro entre eles. Esta última afirmacáo, como acima mencionado, 1111 , 111n, este comentario está inteiramente ccrto: mas ao querer l ~ndamcntar
foi aquilo que procurei demonstrar. 111 le u 1 1 1a classificacáo, cai-se cm erro, por vía de olhar para a falta de ma-
Todas as producñes clássicas se erguem a mesma altura, como foi acima 11 1111 ou para a sua prcscrn;a como urna vantagem, ou um. impedimento,
observado, porque cada uma delas se crguc infinitamente alto. Portante. se -;u jeito produtor. Estr1tamcntc tomado. chcga 1601'. des1gnadamcntc, a
11,11,1 0
mesmo assim se quiscr efectuar um ensaio para introduzir urna cena ordern 111..,1s1ir -.e no contrário daquilo que realmente se prelendra. tal como sempre
nestc cortejo. iria daí resultar que nao pode ser fundamentada ern algo de m ontccc quando alguém se move abstractamente em dct~rmina?oes dialée-
cssencial, dado que o resultado efectivo seria ha ver urna di fercnca csscn- 111 :1\, nas qua is nao importa meramente dizer-se uma co1~a, oyrnan~o u~a
cial, do qual resultaria de novo que a palavra «clássico» havia injustificada- 1111trn.
antes importa dizer a outra; o que se pensa que se dtz nao se d'.z, Jr~-
mente sido predicado de todas clas. Se assirn se qui. essc fundamentar urna M' antes o contrário. Assim acontece ao aplicar a matéria como pnncípro

classificacño na diferente qualidadc da materia. entño, ficar-se-ia enredado 111'


d1visao. Ao falar-se da matéria, c~tá a falar-sc de urna coi~a complcta-
num rnau cntendimcnto, o qual, na sua mais prolixa disseminacíío, acabarla 1111.:ntc diferente, de. ignadamentc, da aclividadc rormadora1<'. Se. ao in~é~,
por rclevar15 todo o conccito de clássico. A matéria é, dcsignadarncnte, urn .,1• quiscr sair da actividadc formadora. destacando unicamcntc ~sla ac1.1v1-
momento esscncial, porquanto é o único factor, nño scndo todavía o abso- d,itk, cntao, tcm-sc 0 me!.mO destino. N;i medida em que se quiser aplr~ar
luto, pois é apenas o único momento. Poder-sc-ia assirn chamar a atcncño ,1qui a difcrcnr;a. destacando de te modo que a actividade f~nnadora é cria-
para o facto de nao existir, de algurna maneira, qualquer matéria cm cerios dor a cm certas dircccroes, a ponto de criar neta a rnaténa. quando pelo
tipos de producóes clássicas. ao passo que, ao invés, a matéria desernpenha ro11trário em outras recebe a matéria, apcsar de 1;e julgar que :se Cala da ac-
um papel t~o significativo neutras obras. O prirneiro é o ca ·o das obras que t1vidadc formadora, voila aquí a falar-se da matéria propriamente dita,~ a
h1t1darncntar-se a classifica¡;ao propriamente dita na divisao da .~até1~a.
1\ actividade formadora como ponto de partida para uma tal class1f1car;ao,
13 No longo parágrafo introdutório de «Elogio tic Abruño», Joh;u1111.:s de silentio recupera ,1plica-se exactamente o mesmo que é aplicáve.l ~ matéria. Para fu~dam~ntar
e amplifica o tnuamenio da imortalidade consagrada na recorda!;iiO das succssivns gcra- hierarquía nunca é possfvel, portanto, utilizar um~ perspectiva ~.'~gu-
!;OCS: vd. SKS. vol. 4. pp, 112-113. SVI. vol. 111. pp. 68-69, Temor e Tremar, pp. 65-67. 11rna
iar. porque essa perspectiva é semprc demasiado cssencral para ser sul~crcn-
14 Vd. Actos dos Apóstolos, 1 :9: «E quaudo dizia isto. vendo-o eles. foi elevado as
alturas. e urna nuvern o receben. ocultando-o aos seus olhos.» teinente casual. e demasiado casual para fundamentar urna ordcmwao es-
15 «Ophaive» que corresponde ao ulcmño «aufheben»: traduzido sempre por «relevar» 'cncial. Mas essa absoluta pcnetrar;ao recíproca. :l qual fa1, (quando se qu~r
para manter a contacáo hegeliana. A «A11jlwb1111g» urn clemcruo-chavc na dialéctica
é !'alar clara e distintamente fica igualmente bcm di:ter-se) com que a maténa
hegeliana. e o couccito surge corn muita frcquñncia cm Kicrkegaard. Na Encicíopedío pciielrc na forma como a forma penetra na matéria, esse recípr:oco pei~etra~··
das Ciencias Filo.1óftca.v (* 96, Juhilütuns, vol. V 111. p. 229. Suhrkatnp, vol. 8. p. 203). cssc igual por igual na imortal amiz.ade do clássico pode servir para ilun~i-
1 legcl faz notar o duplo sentido que o verbo «aufheben» tern, mesmo na linguagern cor-
nar 0 clássico de uma nova perspectiva e circunscreve-lo de modo ª.qu~ nao
rente: «Por "aulhebcn" entendernos. por um lado. o mesmo que remover, negar - e
ncste sentido dizernos, por excrnplo. que urna lci. urna disposicño. etc .. sao "autgcho-
~e torne demasiado amplo. Os estéticos. designadarnentc os que t~s1stem
ben". Porém. para além disso. "auíhcben" significa também o mesmo que preservar. e unilateralmente na actividade poética, alargaram tanto csse concc1t~ que
ncste sentido dizemos que urna dada coisa é "aufgchobcn",» Derrida sugería que cm es..,c panteao se enriqueceu a tal ponto, atafulhando-s~ mesmo de hug1ga~-
francés o verbo «rrlever», no seu duplo sentido (que cm portugués o verbo «relevar» gas clá~sicas e de bagatelas, que a rcprcscnta9ao mais natural de um átno
tambérn tcrn), se aproximava razoavclmentc de poder cobrir este conceito de urna nega- glacial com cerlos e determinados grandes vultos dcsaparcccu por complc-
c;iío que nao suprime o seu objecto, antes o conserva no estadio subscqucnte. com um
outro valor: vd. «Le puits et la pvramide», exposicño pronunciada no Seminario de Jcan
Hyppolitc, no Collcge de Franco. ern l6 de Janciro de 1968. integrada posteriormente em 16 Alu,ao ao 8ild1111gMrieb (Nis11sformatil'lls), conccito criado pelo zoól~go e antropó~o-
J. Derrida, Murges de la Philosophie,Paris: Éditions de Minuit, 1972. pp. 79-127: p. 102. go Johann fricurich Blumenbach ( 1752-1840) para designar o impul~o vital de formai;ao.
90 t) t

to,_ lransfo~1nando-se antes esse panteáo num quarto de arrumes. Qualqucr ll'< 1p1ou1 u111 no outro , qualqucr obra clás~ica a possui, e vé se íacilrncntc
corsa gen~II, bcm trabalhada do ponto de vista artístico. seguramente para
é 11111111 qualqucr atentado U classificacáo das diferentes obras clássicas que
cssa estética urna obra clássica de absoluta imortalidadc; sirn, ncsta bal-
é 111111\' como ponto de partida urna scparacáo entre a matéria e a forma. ou
búrdia que na rnaior parte das vezcs se encontra Jugar para ninharias scmc- l 11111.• 11 «Icia e n íorma. c~l:í eo ipso errado.

lhantes; ernbora, aliás. se detestassc os paradoxos, nao se receou todavía 0 ( 'ontudo , podcr-sc-ia imaginar um outro carninho. Poder-sc-ia tornar o
paradoxo de a rnais pequena coisa ser a arte propriamcntc dita. O nao ver- 111l 10. utravé- do qual a ideia se torna visívcl, como objecto da observacño

dadeiro reside no facto de a actividadc formal ter siclo unilateralmente 1 , cnquunto se comenta va que um mcio era mais rico e o outro mais pobre,

destacada. Urna estética dcste tipo. portante, poder-se-ia apenas manrer 1<1 'l lundarncnrar-se-ia a divisáo , tornando a diferente pobreza ou a riqueza
durante um determinado tempo, desde que. designadamentc, nao se ficassc do mero como urna atenuante ou urna agravante. Mas o mcio rnaniém urna
atento ao facto de 1611 o tempo trocar dessa estética e das respectivas obras rdm,;:10 demasiado neccssária corn toda a producáo artística. para que a
classicas. No campo da estética, esta intuicyao era urna forma do radicalismo divi-.ao, assirn fundamentada no mcio, náo vcnha a envolver-se nas dificul-
que se exprirniu de maneira corre. pondente cm tantos domíniov, era urna d.tdc-; acima destacadas. por vía de alguns rO<leios do pensamento.
exteriorizacáo do sujcito licencioso na sua igualmente licenciosa inconsis- i\o invés. ercio que atrnvés das considcra~óes que se scgucm abro per<,
tencia. Bs~e esfor9?. como tantos ouiros, cncontrou entretanto em Hegel 0 IK'l'I i va-; panl uma divisao que terá vulidadc. justamente porque é inleira-
s~u conqu1stad?r. E cm gcral urna vcrdadc a lamentar. no que diz rcspeito a IHl'l1tc casual. Quanto rnais abstracta e, portanto, mai:-. pobre for a idcia,
filosofía hegeliana, nao ter de todo alcancado a significacáo, nem para o t.11110 mais ab!>tracto e. po11anto. mais pobre será o meio, tanto maior scr(i
lempo pas~ado, r~cm para o presente, que poderia ter alcancado, se o tempo também a probabilidadc de que nenhuma rcpeli9ao seja pensável, tanto
pass~do nao se tr.:essc dado tanto ao trabalho de intimidar as pcssoas para maior :-.er(i a probabifidade de que, quando a ideiu Livcr atingido a sua ex-
adcrircrn a cssa Iilosofla: mas se, ao invés, tivcssc ricio urn pouco mais de prc-. ... ao. o tcnha fcito de urna vez por todas. Ao invés. quanto mai-. concre-
calma presencial quando dela se apropriou. o presente nao tcria sido liío ta c. portanto. mais rica ror a ideia, assim como o meio. tanto maior a
~nfotig:welmente diligente a correr corn as pcssoas dela pura fora. Hegel prohabilidadc de urna rcpeti9ao. Ora, ao colocar todas a!. diferentes obras
ms~aurou de novo a materia, a ideia, nos respectivos direitox, e cxpulsou cf¡¡..,..,ica-; ao lado urnas da<, outra'\, sem pretender ordená-las, admiro-me
ass1111 cxsas obras clássicns efémeras. esses seres leves, cssus borbolcrus prccbamcntc porque toda<, ~e ergucm a mesma altura e. entao, é ríícil mo-.-
~·1octur~1as p~tra fora da cúpula da classicidadc. Nao é de modo algurn nossa lrar tnmbém como urna sec9ifo conta com mais obra" do que a outra e, se
mtencao retirar a e: sas obra. o rcconhccido valor, mas importa estar vigi- 1150 contar. h(i a possihilicladc de vira l'az.é-lo. ao passo que para a outra nüo
lante para que aqut como cm tantos outros lugares nño se confunda a lin- ..,e mostra tao facilmcnte alguma possibilidade.
guagcm, nao se enervemos couccitos. Pode atribuir-sc-lhes até mesmo urna Goslaria de desenvolver isto aqui um pouco mais. Quanto mais abstrae
cerca ctemidadc, e é isso que as enche de mérito; mas esta eteruidade limita- la é urna ideia. menor a probabilidade. Ma!> como se tornará a idcia concre-
-se, cornudo, a ser o instan le eterno. proprio de qualquer vcrclacleira produ- ta? Ao ::.cr penetrada pelo histórico. Quanto mais concreta a idcia. maior
9ao artfstica. e nño a plena eternidadc no mcio das inconstantes vicissitudcs -,crá a probabilidade. Quanto muis abstracto é o rneio, tanto menor será a
dos t~mpos. O que faltava a essas producñcs eram idcias e, quanto rnai probabilidadc. quanto mais concrelo, tanto maior. Mas o que signil'ica dizcr
pcrfeitarnente acabadas cstivessern, do ponto de vista formal. tanto mais se que o meio é concreto. a nao ser que ou é concreto, ou é viMo na sua apro-
consumiriam a si proprias, quanto mais descnvolvida estivesse a capacidade xima9iio a linguagcm, visto que a linguagem é o mais concreto de todos o~
técnica. até ao mais elevado grau de virtuosismo. tanto mais efémeras se meio~. A ideia que dcssa maneira alcaJl<;a 1nanifcstayiio na escullura é com-
tornariarn. e nao tcriam ncm animo. nem íorca OU atitude, para resistir a pletamente ab!>tracta e nao entra cm relacyao alguma como histórico: o meio
voragcrn do tempo, visto que continuavam a exercer ele maneira cada vez atravé~ do qual se dá a ver é igualmente abstracto e. portanto. maior é a
mais elegante a rnaior prctcnsáo de serem do mais refinado espirito!". Só probabiliclade de que a scc9ao das obras clássicas que engloba a escultura
quando a ideia é levada ao repouso e a transparencia numa forma determi- apenas vcnha a reunir poucas obras. Nestc aspe<.:to, conto plenamente com
nada. só entáo pode falar-se de urna obra clássica; mas tambérn reunirá o testemunho do tempo e coma concordancia da experiencia. Se, ao invés.
entáo condicóes para resistir aos tempos. Esta unidadc, esta interioridade eu tomar urna ideia concreta e um meio concreto, cntao. a questao mostra-
-se de mancira diferente. É assim certo que Homero é um poeta épico
17 No original, «Spiritus», termo que designa «espírito» e tambérn «bebida espirituosa». clássico. mas exactamente porque a ideia que se dá a ver no épico é uma
92 1111 011. lJ111 1•1w•111l:11to dí: Villa

idcia concreta. e porque o meio é a linguagern, entño , é possívcl imaginar < >rn os rucios abstraeros ~iio tanto a arquitectura quanto a escultura, a
várias obras na scccáo das obras clássicas que engloba o épico, as quais sao ¡111J!111·u e a música. Nao este o lugar para levar mais longe este estudo. A
é

todas igualmente clássicas, porque a historia continua a dispor de nova hh i11 mais abstracta, que pcnsávcl , é a da genialidade sensual 18• Mas atra-
é

matéria épica. Neste 1631 aspecto, conto rarnbém como testernunho da his- \1., de que mcio é ela aprcsentávcl? Única e exclusivamente através da
tória e o assentirnento da experiencia. 11111,1cn. Nao se deixa apresentar na escultura, visto que esta cm si mesma
é

Ora se cu fundamentar urna cornpartimentacáo neste cabalmente casual, 1111111 cspécie de deterrninacáo da interioridade; também nao se dcixa pintar,
entáo, nao me podcm propriamente vir negar que se trata de algo de casual. Vli'ilo que 1180 é possível captá-la com contornos definidos; a gcnialidade
Ao invés, se quiserern censurar-me, entño, respondo que cometem um erro, Hl'1hual é urna forca, um tempo, impaciencia, paixño. etc., em todo o seu
pois é justamente assim que deve ser. É casual que urna seccáo conte, ou lii is1110. de tal modo que nao ocorre todavía num único momento, mas numa
possa contar, com um maior número de obras do que a outra. Mas como .11•·1.:s,iio de momentos, pols se ocorresse num único instante podía ser re-
isto é casual, cntáo, é fácil de intcligir que era igualmente possívcl colocar ¡11 oduzida ou pintada. O facto de acorrer numa sucessáo de momentos ex-
outra vez em lugar cimciro a classe que conta ou pode contar coma maio- 111 i111c o scu carácter épico, mas nño é todavía épico cm sentido mais rigoro-
ria das obras. Ora eu poderia reiterar o que anteriormente dissc e rerorquir •.o, visto uño estar tao dilatado que se concretizo cm palavras; movc-sc
com toda a calma que, quanto a isso, tinha-se plenamente razño, mas que l ontinuurnente numa imediaticidadc. Na poesia, também nflo se dcixa pois
por essc motivo a minha conscquéncia era de louvar ainda rnais, dado eu Hprcsenrar. O único meio capaz de a apresentar é a música. A música Lern cm
ter pesto a seccño oposta cm lugar cimeiro intcirarnentc por acaso. Nao é •.i. dcsignadamcnte, um momento ele tempo, mas nao decorre no tempo, a
isto entretanto o que quero Iazer, ao invés, qucro invocar urna circunstancia 11.m ser cm sentido figurado. Nao pode exprimir o histórico dentro do tempo.
que fala em mcu favor, dcsignadamcnre, a circunstancia de as scccócs que /\ pcrf'cita unidadc entre esta idcia e a forma que lhe é corrcspondente
reúncm as ideias concretas nao sercm fechadas, e nao se deixarcrn assim l'1trn11lra1110-la agora cm Don J11a11 de Mozart. Mas precisamente porque a
fechar. É por isso rnais natural dispor primciro as outras e, no que diz res- 1<k'ia é t5o desmedidamente abstracta, cntao. o mcio também é abstracto e
pcito as últimas, rnantcr semprc as portas aberras de par em par. Quiscsse 1H:nhuma probabilidade existe de Mozart encontrar alguma vez un1 concor-
alguérn. por scu lado, dizcr que tal facto era urna irnperfeicáo, urna falta 1c111c. O que há de feliz para Mozart éter ele encontrado urna matéria que
para com essa prirneira clusse e. entáo, estaría a sair da esteira da minha 1.·rn si mesma é absolutamente musical, e houvesse um outro compositor ele
consideracáo. e nao posso atentar no que diz. por mais profundo que scja, 1 ivnlizar com Mo·tart c, cntao, nada mais lhc rcstaria fazer a nao ser compor
pois é ponto assente que tudo quanto é Lomado no essencial é igualmente 1)011 Juan outra vez.. Homero recebcu uma matéria épica pcrl'cita, mas é
pcrfeito. po-;sível imaginar diversos poemas épicos, porque a história ofcrccc mais
Ora qual a ideia rnais abstracta? Aqui, a pergunta obviamente apenas
é é
niatéria épica. Nao acontece assim com Don Juan. Talvcz o que cu qucira
acerca ele uma icleia que possa ser objecto de tratamento artístico, e nao propriamente opinar seja rnais inteligível se eu mostrar a diferenc,:a a pro-
acerca ele ideias que se prcstcrn a aprcsentacño científica. Qual dos meios é pósito de urna iclcia aparentada. O Fuust ele Goethe19 é. com tocia a proprie-
o rnais abstracto? Respondcrei primeiro a esta última. É o rneio que mais
afastado estiver cla linguagcm. 18 O termo é «sanliJl!ÍiM». cognato ao alcmuo «si11nlich»; corno este, designa aquilo
Entretanto, antes de prosseguir com a resposta a esta pergunta, recordarci que cm gcral é pertell(,;a dos sentidos e clo clomínio tia sensa~ao; assim, o seu uso reme-
que se mostra aquí urna circunstancia relativa ü solucáo final da minha tare- te 1.imultaneamente para o campo da scnsibilidadc e da ~cnsualidadc. Ao longo do pre-
-.cnlc capítulo, «Sa11dse/ighed», cognato do alemao «.%mlic/1keit», é traduziclo por
fa. Nem scmpre o mcio mais abstracto Loma assim como objecto a ideia
\ «sensualidade». Recorde-se que. parn Kant. a «Si1111/ichkei1>> é inclispcnsávcl ao conhe-
mais abstracta. Assim acontece com o mcio utilizado pela arquitectura, o cimento. porque lhe rornece o 1>eu objecto. masé «cega» sem o trabalho da razao. Vd.
qua! deceno o mais abstracto e, contudo, as ideias que alcancam manites-
é
Kant. Kritik de1~Rt~i11en Vermmji [Crítica da Razao Pura l. Logik, Einleitung, 1 [Lógica.
tacáo na arquitectura nao sao ele tocio as rnais abstractas. A arquitectura es- lnlrodu~ao. 11, AA 111, p. 75. Em portugués: «Sem a sensibilidade, nenhum objecto nos
tabelecc urna relacáo muito mais próxima com a história do que com a es- seria dacio: sem o cntendimento. ncnbum seria pensado. Pcnsamentos scm conteúdo sao
cultura, por exernplo. Voila aquí a mostrar-se a possibilidade de urna nova va.dos; intui\;oes sern conceitos sao cegas». in Crítica da Razüo Pura. tradu9ño de Ma-
nuela Pinto dos Santos e de Alcxandrc Fradique Morujao, introclu9ao e notas de Alexan-
escolha. Para a prirneira classe naquela hierarquía, posso escolhcr ou as
dre !"radique Morujao, Lisboa: Funcla9ao Calouste Gulbenkian. 1989. 2." cdi\;áo. p. 89.
obras cujo meio o 1641 muis abstracto. ou aquelas cuja ideia é mais abstrac-
é

L 9 Kicrkegaard utiliza abundamcntc citac;ocs directas e indirectas ele Goethe; ern Ou-
ta. No que a isto diz rcspeito, quero agora deter-rne na ideia e nao no meio. 011. além de Fa11st, também a pe9a Clavigo (com a protagonisu1 Maric Bcaumarchais)
94 95

dadc, urna obra clássica; mas urna ideia histórica e, por isso, coda época
é
1111t11, do que o pcnsamcnto poderia ciar. O pensamento tranquilizara-se, e
insigne da história terá o seu Faust. Faust tem como meio a linguagcm, e 11 ¡HH1-.ava alegre no seu reconhecimento; dirigi-me entáo até ele e pedi-Ihe
esta é um rneío muitíssimo mais concreto, e presta-se por este motivo a que l(lll' M' puscssc ern movirnento ainda urna vez mais para arriscar rudo por
se imagine várias obras do mesmo tipo. Don Juan, ao invés, é e permanece J111lo. nic sabia bern que era em váo; mas como tenho por hábito manter
o único no seu género, no mesmo sentido em que as obras clássicas da es- 1 tw1 ele 11111 bom cntcndirncnto, nao me ofereccu afinal recusa alguma. Os
cultura grega o sao. Mas sendo a ideia de Don Juan ainda 1651 mais abstrac- t'llN .novimcntos entretanto a nada conduziram; incitado por mim, conti-
ta do que aquela que serve de fundamento a
escultura, é fácil de intcligir 11l1011 scmprc a elevar-se e a voltar scmpre a cair 1661 cm si mesmo. Conti-
que, enguanto a escultura tcrn multas obras, na música cncontra-sc apenas 1111uvn a procurar manter semprc o pé e nao o conseguía. continuava a
urna única. Na música, é possível imaginar mu itas obras clássicas variadas, p1 ocurur o fundo, mas nem conseguía nadar, nem passar a vau20. Dava
mas resta apenas urna única obra, acerca da qua! se pode dizcr que contérn 1111110 para rir como para chorar. Fiz por isso ambas as coisas, e fiquei-lhe
urna idcia absolutamente musical, de tal modo que a música nao intervém ll••vcr~1s agradecido por nao me haver negado este servico. Ora apesar de eu
como acompanhamento. mas, na medida cm que rnanifesta a ideia, mani- •.ulH.:r pcrfcitamcnte que de nada serve, fui todavía muito capaz ele me lem-
festa a sua mais íntima esséncia específica. Por isso. como seu Don Juan, tunr de lhc pedir que jogassc ainda urna vez mais este jogo que é para mim
Mozart erguc-sc acirna ele todos aquclcs irnortais. 1111)(1 lontc incsgotávcl de alegria. Qualqucr lcitor que pcnsc que brincaré
Contudo, desisto de toda esta invcstigacño. Está escrita apenas para apai- 1111111 macada nao é obviamente cá dos rncus, nao lhc atribuí qualqucr signi-
xonados. t:: tal como urna enanca com pouco se alegra, também assirn l 1rar,;iio e, contudo, aplica-se aquí como ern toda a parte: as criancas pare-
acontece. como é sabido, que urna coisa amiúde rnuiussimo cstranha pode l'r<la.., brincarn melhor21. Para ele, tudo o que está dito atrás sao coisas su-
alegrar os apaixonados. É como urna calorosa disputa de amor sobre coisa pc1flu::1s, enquanro para mim tem tanta significac¡:ao que me pronuncio
ncnhurna, e nao dcixu, contudo, de ter o seu valor - para os amantes. ~obre isso através de Horácio:
Enquanto no precedente, através de todas as maneiras possíveis, fosscm
clas pensáveis ou impcnsáveis, se procurou Iazcr com que se reconheca que t?.xilis dn111us est, uhi 11n11et11111/ta .wper.1·1111122;
o Don Juan de Mozart ocupa o primeiro lugar entre todas as obras clássi-
cas, cm contrapartida, Ioi possível demonstrar, t5o bcm quanto qualquer pnra ele é uma loucura, para mimé sabecloria, para ele é tédio, para rnim é
outro cnsaio. que esta obra é realmente um clássico, dado que os indícios 1L·¡wí'.ijo e júbilo.
singulares, que aquí e ali se encontrarn, mostram exactamente, pelo facto Um leitor dcst.c Lipo nao iria po·is simpati:t.ar coma lírica do rncu pcnsa-
de só aparecerem como indfcios, que o propósito nao havia sido o de de- mcnto, que de tao extravasada ser extravasa o pcnsamcnto; em contraparti-
monstrar, mas apenas o de iluminar incidentalmente. Esta condura podcria da. lalvez fosse suricientememc benévolo para dii'.cr: «Ora nao nos canse-
parecer mais do que estranha. Demonstrar que Don Juan é urna obra clás- 111os com isto, eu salto esta parte, e ve tu agora como consegues chcgar ao
sica no mais cstrito sentido, urna tarefa para o pensarncnto; ao invés, o
é.
que é bem mais importante: demonstrar que Don Juan é urna obra clássi-
outro csforco, no que diz respeito ao domínio específico do pensarnento, é ca». pois confesso que esta constituiria urna introduc¡:ao deveras adequada
totalmente despropositado. O movimento do pensamcnto tranquiliza-se por para a investigayao propriamente dita. Deixarei por decidir até que ponto
ter reconhccido que se trata de urna obra clássica, bcm como por saber que
tocias as producñes clássicas sao igualmente pcrfeitas; o mais que se queira
lazer para o mal desse pensamcnto, Alias, todo o precedente está enreda-
é
:w Em Temor e 'J'remor, a deseric;ao do propósito de de sile11tio em imitar o duplo
movimcntodo cavalcimda fééfcita nos mesmos termos. Vd. SVI. vol.111. p. 88.SKS,
do numa autocontradicño, e fácilmente se dissolve em nada, o que entretan- vol. 4. pp. l32-133; na traduc;iio pottugucsa. p. 93.
to é inteirarnente ceno, estando tuna contradicáo destas profundamente 21 Vd. nota 10 no capítulo «O Primeiro Amor», para a referencia do ditaclo que inspira
fundamentada na naiurcza humana. A adrniracáo que há cm mim, a simpa- esta sentenc;a, a qual, por sua vez. faz eco da teorizac;iio de Fricdrich Schiller sobre o
tía, a piedade, a enanca que há em rnirn , a mulher que há cm mim, exigiarn jogo e sobre a rclevencia da actividade lúdica para a forrnac;ao do indivíduo.
22 Em latim no original: «pobre é a casa cm que nao sobra muito»; vd. Horácio, Epis-
10/arum, livro 1. 6, v. 45; edic;ao consultada pelo autor: Q. Horatii Flacci opera, Leipzig,
serve de fundamentacño 1t análise da mágoa no capítulo «Silhuetas». Para urna clcnca- 1828. p. 223; na traduc;ao de António Luiz de Scabra: «[ ... ] É pobre a casa I Onde mui-
gern exaustiva da utilizacño de Goethe em toda a producáo de Kierkegaard, vd. Car! ln nao ha>>, in Satyras e epistola.v por (J11into Horado Flacco, traduzidas e annotadas
Reos, Kierkegaard og Goethe, Copcnhaga: Gads Forlag. 1955. por António Luiz de Scabra, Porto: Casa de Cruz Couünho, J 846. p. 22.
i)7
1111 011 U111l1,1~•mc111111k \ ul.1

seria esta urna introducño adequuda. 111a'> fico de novo co111 a inlclicidadc ,111111>1 i;1.,, a mero da noitc, ao romper da aurora. o que montou connosco o
de nao poder aqui voltar a simpatizar corn ele, pois , por mais fácil que me 1rn ., 1110 cava lo. o que loi companheiro de carruagern, aquilo de que a casa
parccesse dernonstrá-lo, também assim jamáis me ocorrcria todavía de- l 1l uu unprcgnada. o que o quarto prescnciou, o que no ouvido ~e r~perc~1-
monstrá-lo. Na medida em que eu, ao invés. continuo a prcssupor que a IH1 o que na alma rcssoou, o que a alma entrctcceu na sua mais fina teia
coisa está decidida, o texto seguinte servirá para iluminar Don ./11011 mu itas a
nulo ivto ve rnosira agora no pcnsarncnto , sernclhanca dcsscs seres
vczes e de mu itas manciras sob esta perspectiva, tal como o texto preceden- t 111g111ali<.:os das histórias de tempos idos subindo do fundo ~o~ mares re-
te já contém alguns indícios. \c.,t1do., de algas. tudo isla emerge assim do mar da rccordacáo cntrancado
111111 lcmbrancas. A alma fica nostálgica e o coracáo embrandecido, pois é

1 rn110 se alguém se clcspedisse daquilo ele que se está separado para nunca

l 111,11., haver cncontro ncm no tempo, nem na etcrnidade. Parece que se lhe
Aquilo a que esta invcstigacño prirnciramente se propós é a iarefa de 1• 111l rcl , que se rornpcu o pacto, scnic-sc que nao se é mais o 1681 mesmo,
mostrar a significa9ao do erótico-musical e. com tal fim, evidenciar por seu 111.11, 1fio jovcm, ncm tifo infantil: teme-se por si mesmo, teme-se perder
turno os diferentes estadios, os quais, rendo em cornum scrern todos eles m¡tnlo que tomou um individue alegre. feliz e rico: teme-se pelo que !.C
eróticos e imedintos, concordam cm simultaneo coma circunsráncia de, por .i111a. terne-se que vcnha a sofrcr com esta transformacáo, mostrando-se
esséncia, scrern todos musicais. Dcvo única e simplcsmcnte a Mezan o que prn ventura menos perfeito. ficando sem respo'>I~~ para as muit<~s pcrgu1~tas.
tcnho a dizer sobre o assunto. Houvesse por isso um ou outro indivfduo de ,111. e tudo fica cntiío perdido, desaparece a magta e nunca mat~ podcra ser
ter a cortesía bastante para me dar razño 1671 naquilo que meu intento
é rn11vocada. Ora no que cli7, rcspeito a
música de Mozart, a minha alma
aprcscnrar, mas que cm contrapartida houvesse ele ter algurnas dúvidas so- nu:do 11cnhum conhcce. e a minha confian9a. limite nenhum. Em parte.
bre o facto de isso se encontrar na música de Mozart, ou de nao ter sido dl",1gnadamente, aquilo que a1é agora cu entendí; é apenas mui1í~simo pm~-
antes cu qucm neta pos tal coisa, cntüo, posso assegurar-Ihe que na música to. c resta sempre o bastante para se esconder nas sombras do presscn11-
de Mozart nao se encentra so a migulha que sou capaz de cxpor, mas infi- ml.'111o: e, cm parte. C\IOu convencido de que se. para mim, Mm.art o:;c tor-
nitamente multo rnais: sirn, posso a. segurar-lhe que é precisamente este 11as~l! alguma ve1, completamente conccbível para mim, torm1r-~e-ia ent5o
pensamcnto a dar-me a ousadia do atrevirncnto de querer tentar explicar para mim tlio-só perfci1a.mcnle inconcebível.
cenas coisas da música rnozartiana. O que se amou com cxaltacáo juvenil, Afirmar que o cri.,tianismo introdu1iu a !>ensua.lidade no mundo parece
o que se adrnirou com entusiasmo juvenil, o que se manteve na interiorida- ~cr um atrcvimento audaz. Mas como é costumc di1er-se, audácia e atrc-
de da alma ern misteriosa e enigmática companhia, o que se escondeu no viml'nto oarantem mcia vitória23• ent5o, trunbém aquí é aplicável. o que é
coracáo, ¡;~fo coisas de que nos acercamos sernprc corn urna cena timidez, 1111eligfvd quando se pondera que, ao supor urna coisa, supoe-se indir~c-
com seruirneruos mistos, quando se sabe que o propósito é querer com- 1a111c11tc uma outra que se excluí. Dacio que o !>ensual é geralmente aquilo
precndé-Ias. O que se aprcndcu a conheccr peca a peca, como um pássaro que há-de ser negado. só rica realmente a vista, só é suposto. atr~vés ~o
que para si recolhe qualquer tronquinho, mais contente com qualquer pe- acto que o cxclui por via de !>e supor o positivo contrário. Como pnncfp10,
quenina parte do que corn todo o resto do mundo. de coracño dividido, o wmo rorc,:a e como sistema cm si. a sensualidade é inicialmente suposta
que o ouvido enamorado ubsorvcu cm solidño, sozinho entre a grande rnul- pelo cristianismo. e nesta medida o cristianismo introdu:riu a scnsualidad_e
tidño, dcsaperccbido no seu esconderijo secreto. o que o ouvido insaciávcl no mundo. Quando entretanto se quer entender correctamente a proposi-
apreendeu, nunca saciado: o que o ouvido ávido, nunca confíame. cscon- \·5o «O cristianismo introduziu a sensualidade no mundo», esta tem de ser
dcu, aquilo cujo eco mais suave jamáis desiludiu a atencáo insone do ouvi- concebida ele modo iclcntico ao seu contrário. i. e .. o cristianismo expuhou
do perscnuador: o que se viveu durante odia e se rcviveu durante a noite, a sensualidade do mundo, excluiu a sensualidade do mundo. Como princí-
o que afugentou o sono e o tornou agitado, aquilo corn que se sonhou du- pio. como for9a e como sistema, a scnsualidadc é suposta só pelo cristia-
rante o sono, o que nos fez acordar para acordados voltarrnos a sonhar, o
que nos fez saltar da cama a meio da noitc 110 temor de o csqueccr, o que
23 Optou-se pela tradur;ao literal do ditado «ririsri¡¡ v<wer halvf fer/ vw1d~t>>." na t:1~n?i~
nos mais entusiasmados instantes se mostrou a qualquer um. o que se tem
la<;ao de N. r. S. Grundtvig. Ow1vke Orcl.\¡Jrog og Mundheld [Provérb1os e Ad~gms
sernpre ~1 rnáo como se fosse lavor íerninino; o que nos seguiu cm noites Dinamarqucsc l. Copcnhaga. 1845. n." 2941, p. 112; com 11~0 semelhante ao d11ado
iluminadas pela Lua, em florestas sclitárias nas rnargens do lago. nas ruas · portugues «quem mais alto sonha, mais airo voa».
98

nismo: eu poderla juntar a inda urna dctcrnunacao que tal ver movtre a trrn 1 undudo no vcnsual rambcm uño esta va suposto como princípio. O
minha opiniño com rnaior énfasc: a scnsualidade suposta pelo crixriauis
é 1111101 ·~ cstuva presente cm todo o lado como momento e. de um modo mo-
mo sob a determinacáo do espírito. Isto é inteiramcnte ébvio , j:í que o 11w11tanco. na individualidadc bcla. Os deuses, nao menos do que os ho-
cristianismo é espfrito e o espirito o princípio positivo que ele introduziu
é 11tL'n'>, conhcciam o xcu poder. os dcuses, nao menos do que os homens.
no mundo. Mas na medida cm que a scnsualidade vista soba determina-
é l n11ltcc¡¡1111 historias de amor felizes e inlclizes. Entretanto. cm nenhurna
9ao do cspírito, cntáo, a sua significacño é vista como senclo aquilo que dl'la.., csrcve o amor presente como principio e, conquanro nclas cstivesse
há-dc ser cxcluído: mas precisamente por isso, pelo facto ele havcr de ser prcxcntc, no indivíduo singular, era como se fosse urn momento da torca
excluida, c~tá determinada corno principio, como poder, pois aquilo que o universal do amor, o qual nao eslava entretanto presente em parte alguma e.
espirito, que é ele mesmo principio, há-de excluir tem de ser algo que se por convcguimc, ncrn scquer na imaginacáo grcga, ou na consciencia grega.
mostrc como princípio , ncm que apenas se mostrc como princípio no ins- /\lguém poderla levantar-me a objeccño de que Eros era ele facto o dcus do
tanto em que for cxcluíclo. Afirmar que a sensualidade já existía no mundo .1111or c. portante. tcria de imaginar-se nele a prcsenca do amor como princí-
antes do cristianismo seria obviamente 1691 urna objeccáo muitíssimo tola pro. Ora purtindo de que. no entamo, o amor nao voila a repousar aquí sobre
a minha idcia, dado que daí resultaría, com efcito. que aquilo que há-de ser o L'l'ÓI ico. como se esti vcsse unicamcnte baseado no sensual, antes rcpousan-
excluido existe scmprc antes daquilo que o excluí. se bern que neutro sen- do no anímico. cntao, há simultancamente uma outra circunstancia que
a
tido venha existcncia24 na medida cm que é cxcluído. Tal dccorrc nova- 1wrrnancce ainda por 170! assinalar. a qual irci agora destacar com maior
a
mente do facto de vir existencia num outro sentido c. por isso mesmo. pormenor. Ero'> era o dcus do amor. ma-; ele próprio nao estava apaixonado.
rarnbérn eu disse desde logo que audacia e atrcvimcnto garantern meia /\111da que os rcl.Wntcs dcuscs ou homcns encontras.,em vestígios do poder
vitoria. do amor cm si mesmos. atribuíam-no a Eros. imput:ivam-lho, mas Eros, ele
Portante. deceno que a sensualidade j{i antes existía no mundo, mas nao 1111.::-.mo, nao . e apaixonava; e a inda que tal lhc tenha acontecido uma vc1.•
esta va espiritualmente determinada. Como existía ela, cntáo? Existía deter- 1 ratara-sc. cntüo. de urna cxcep¡;ao e, embora fosse o deus do amor, licava
minada animicamcntc. Assim acontcccu no paganismo. e se se quiscr pro- lwm atrás do· outros dcuses e dos homcn'i quanto ao número de aventuras2".
curar a expressáo muis perfeita para tal, assim era a senxuulidadc na Grécia. ()11c ele se apaixonou. também pode nisso ficar muito bem cxpresso como
Mas a sensualidade determinada anirnicarnente nao é contradicño. cxclu- de \C curvou igualmente diante do poder universal do amor, o qual se tor-
sao, é antes harmonía e consonancia. Mas precisamente pelo facto de a 11ou, de algum modo. um poder fora dele próprio e. scndo dele agorn afasta-
scnsualidade ser suposia como estando harmoniosamcntc determinada. nao do, mal cncontrnva agora alg,um lugar onde pudcssc sl!r procurado. O amor
é suposta como princfpio, mas antes como urn enclitiron cónsono. de Eros também nao tcm por hase o :-.ensual. ma~ antes o anímico. É uma
Esla obscrvacño tcrá significacño para iluminar as diferentes figuras que idcia genuinamente grcga nao estar o próprio dcu~ do amor apaixonado. ao
o erótico assume cm varias etapas de dcscnvolvimcnto da consciencia do pa~so que todos oc; outros lhe dcvem o facto de estarcm apaixonados. Se cu
mundo, e conduzir-nos-á utravés delas 11 determinacño do erótico irncdiato 1111agina~se um dem, ou urna dcusa para o anseio. entao, i.eria urna idcia
como idéntico ao erótico-musical. No helenismo, a sensualidade esta va do- g.cnuinaml!ntc grcga que, enquanto todos aqueles que conhecessem o doce
minada na i nd ividual idacle bel a. ou rnelhor, nao era dom inada, j{i que nño se <.lesas os... cgo ou a dor do anseio imputá-lo-iam a e~se ser. esse me. mo ser
tratava efectivamente de um inimigo que houvcsse ele ser subjugado, ou de nada conhecessc do anseio. Nao conhe<,:o manl!ira mais próxima de designar
um pcrigoso insurrecto que houvc: se de ser mantido em respeito, era deixa- o que há de assinalávcl nesta rela9ao do que di1.cr que é o inver'io de urna
da cm libcrdadc para ter vida e alegria na indiviclualicladc bcla.A scnsuali- rcla<;ao representativa. Na rela<;:ao representativa, toda a for<,:a está reunida
dadc nao cstava assirn suposta como princípio: o anímico, constitutivo da num indivíduo singular, e os indivíduos singulares participam ncla, por-
individualidade befa, era impensável sem o sensual; por csse motivo, o eró- quanto participam nes. es movimentOf, ~ingulm·es. Também pocleria acres-
ccntar que esta rcla9ao é o inverso daquela que est(i no fundamento da in-
cama\:ao. Na incarna<rao. o individuo ~ingular contém em si toda a plenitudc
24 No original «.bli.1'<'1· til». O verbo «blive»: na construcáo com «til»; pode significar
«nascer», «consuunr-se» ou «devir (alguma coisa)»: na presente traducño, «blivo til» é

traduzido por «vir ii existencia». para denotar cxprcssarncntc a passagcm de nao-existir :?.5 Toda' a~ ocorrcncias de «amor». a partir <leste ponto. corrcspondcm no original a
ao existir. Para traduzir o substantivo «'11/blivelse» optou-se por utilizar o verbo na sua «l:.l~k01'». salvo indicac;ao cm contr:írio.
forma substantivada. i. C .. «O vira exi tcncia». 26 Eros apaixonou se por Pi-.iquc: vd. nota 58 no capítulo «Diapsalmata».
1 ()()
101

da vida, senclo que. para os demais indivfduos. é apenas aquilo .uruvés do , dcs~i.: modo estipula. Por curras palavras. a música é o demoníaco. Na
qua! contcmplam o indivícluo incarnado. Na relacáo grcga, passava-sc pois IH urulidadc erótico-musical. a música tcm o scu objecto absoluto. Ora é
de rnaneira inversa. O que consritui a forca dos deuscs nao se encentra nos uhvio que corn isto nao Iicará dito de modo algum que a música na.o pode
deuses, mas sim nos demais individuos, que lho irnputam: ele proprio fica , xprimir curras corsas. mas este é o seu objecto propriamente dito. A arte
como que desvigorado, impotente, porque comunica essa torca a todo o ¡;srult6rica pode assim representar muito mais do que a beleza humana,
resto do mundo. O indivíduo incarnado como que suga a forca de todos os 111111' para esta arte é este, contudo, o seu objecto absoluto: e a pintura pode
restantes e, assirn, a plcnitucle cnconrra-se pois ncste inclivícluo e, quando l l presentar muiro mais do que a beleza divina transfigurada, mas, para a
muito, apenas nos curros que a contemplarern ncsse indivíduo. lsto revestc- ~1111ura,
é este, contudo, o seu objecto absoluto. A este respcito, importa ver
1
-se de importancia no que diz respeito aoque adiante se dirá, tal como, cm 11 l onccito cm cada arte e nao ficar perturbado pelo que ela pode fazer para
si e para si, tern significacáo no que diz respeito as categorías que a consci- ult•111 disso. O conceito de homem é espirito e ninguém deve dcixar-se per-
encia universal utiliza ern diferentes épocas. Por conscguinte, no helenismo. 1111 bar lú porque ele, aliás, tarnbérn anda corn duas pernas. Q_ conceito da
nao encontramos a scnsualidade enguanto princípio, tambérn nao encontra- li11g11ag.cm é pcnsarnento, e ninguérn eleve deixar-se perturbar pelo facto de
mos o erótico como princípio bascado na scnsualidade como princípio, e 11lg11m:1s pessoas scnsíveis 1721 opinarcrn que a significacño mais profunda
mesmo que o tivésscrnos encontrado, vemos. no entamo. que da máxima
é
d11 linguagern é produzir sons inarticulados.
importancia para este cstudo que a consciencia grcga 17 J l nao tenha a torca Pcrrnitam-mc aquí novamente um pcqucno interlúdio insipiente; praite-
de concentrar o todo num único indivíduo. antes ra~a irradiar o todo de um 11•o ce11seo28, Motar! é o maior entre todos os autores clássicos e o scu Don
ponto. que nao o tcm, na direccáo de lodos os curros, de tal modo que essc .111011 merece o prirnciro lugar entre todas as producócs clássicas.
ponto consthuintc quase se torna reconhccívcl por ser o único que nao tcrn Ora no tocante a música como rncio. é óbvio que tal continua a ser sern-
aquilo que dá a todos os outros. pre urna questño muitíssimo inreressantc. Continua a ser urna ourra questño
A scnsualidade como principio foi, portante, suposta como princípio saber se eu reúno condicócs para dizer algurna coisa satisfatória sobre isso.
pelo cristianismo, tal como aconreccu com o erótico sensual como princí- l.ici muito bem que nao sou entendido em música, e de boa vontacle admito
pio: a ideia da rcprescuracño-" foi inrroduzida no mundo pelo cristianismo. (¡uc sou leigo, nao escondo que nao pcrten\(O a tribo escolhicla dos entendi-
Ora se eu imaginar o erótico-sensual corno princípio, como torca, como dos cm música, e sou no máximo um pros~lito junto ao po11iio29, tralido ele
domínio. determinado pelo espirito, ou seja, determinado ele tal modo que longc até aquí por um impulso estranhamcntc irresistívcl. porém, nao mais
o cspírito o cxclui, imagino-o concentrado num único indivícluo, e obtcnho para além clisso; mas apesar disso, era todavia possívcl que a migalha que
assim o conceito de genialidade erótico-sensual. Esta é urna ideia que o L'll tinha para dizer contivcsse um comentário singular. o qual, deparando
helenismo nao tinha, que só foi introduzida no mundo pelo cristianismo, se mm boa vontade e indulgencia. provasse conter alguma vcrclade, se bem
'1
1
bcrn que apenas cm sentido indirecto. que escondida debaixo de uma vestimenta pobre. Eu estou l'ora da música
Ora. se esta gcnialidadc erótico-sensual. corn toda a sua imediaucidadc, e observo-a a parür dest.e ponto ele vista. Admito de boa vontadc que este
exige urna exprcssáo, cntáo. cabe perguntar qual o mcio rnais apropriado
é
ponto de vista é muitíssimo impcrfcito; nao nego que consigo ver pouquís-
para o Iazer. O que aqui terá especialmente de se reter é o facto de a genia- simo cm comparar,:fío com os fclizcs que estao por dentro du música, mas
Iidadc exigir ser exprcssa e apresentada na sua imediaticidadc. Na sua conlinuo todavía a ter esperan<;a de ser capaz de comunicar um csclareci-
rnediatez e rcflexividade no outro, entra no dominio da linguagern e acaba menlo singular a partir do meu ponlo de vista, embora os iniciados pudcs-
por ficar sob determinacñcs éticas. Na sua irnediaticidade, a genialidade sem fazG-lo muito melhor. e até entender ainda muito melhor o que eu digo.
erótico-sensual só pode ser cxpressa na música. A este respcito. tenho de até certo ponto. melhor do que eu próprio. Se eu imaginasse dois reinos que
pedir ao lcitor que recordc o que Iicou dito sobre o assunto na introducño estabelecessem fronteira um como outro, e um deles me fosse conhecido e
insipiente. A significacño da música mostra-se aína sua plena validade e.
cm sentido mais estrilo. mostra-se como urna arte crista ou. dito melhor,
rnostra-sc como a arte que o cristianismo estipula ao excluí-la de si mesmo. 28 Em latim 110 original: «coni;idero além do mnis».
29 Na antiga Judeia. lrnvia dois tipos de prosélitos. o prosélito justo. que se convertera
na qualidade de meio para aquilo que o cristianismo expulsa ele si mesmo
ao judaísmo e observa va todos os seus prcccitos, e o prosélito do portiio. o qua! vivia
ainda como estrangeiro na Judcia, emhora observasse alguns dos scus costumes, poden-
27 Aqui. «Reprtrsentation», do seguir O ritual a distancia, 110 templo, junto a l)Ofta.
102 ( 111 Ou. lJ111 l•1'1\g11u.:1110 de id11 103

corn bastante rigor, mas o curro me fosse totalmente dcsconhccido e M~, por q11c• scjn aplicávcl, exige uru meio ele cxpressáo que estcja determinado~~-
mais que cu dcsejasse tal coisa, me tivesse sido vedada a entrada naquclc ¡111 nualmcntc: este mcio é a música. Mas um mero detennu~ado pelo .e~p111-
reino desconhccido, entño, eu seria todavia capaz ele produzir cm mim urna lt1 e por cssencia íinguagcm; ora como a música determinada espiritual-
é

representacáo desse reino. Ia andando até as fronteiras do reino mcu conhe- 11w111c é com tocio o direito chamada de linguagem.
cido, seguía sempre pela fronteira e, enquanto fazia isto, dcscrcvcria com Enquanto meio de cxpressáo, a linguagem considerada o meio e~piri-
é

este movirnento o contorno daquele país desconhecido, obtendo urna rcprc- 111111 mente determinado cm absoluto; por isso, a Iinguagem é o mero ele
sentacáo geral, apesar ele nunca lá ter poste os pés. Ora se este fossc um t•xprcs-;1ío das idcias propriamente dito. Nem da minha competencia, ncm
é

trabalho que me ocupassc bastante. se cu Iossc iuíatigavclmcntc mcticulo- do intercssc dcstc pequcno cstudo , aprofundar o dcscnvolvimcnto desea
so, também por vczes poderla até vir muito bem a acontecer, estando eu nuuéria. Encentra aqui lugar apenas um único comentário que me conduz
nostálgico na frontcira do mcu reino a lancar um olhar de anseio sobre di: voila a música. Na linguagem, o sensual. enqLtat1to meio. está assim rc-
aquele país dcsconhccido, o qual me era tilo próximo e, porém, tao distante, duí'ido a mero instrumento e é continuamente negado. Nao acontece assim
que me caíssc em serte urna pequena e singular 1731 manifestacáo. E se bem uim os outros rneios de expressao. Seja na escultura. seja na pintura, o
que eu sinra que a música é urna arte que exige experiencia cm alto gran i-.i.;nsual nao é 1741 um mero instnunento. é antes uma parte que pcrtencc ao
para que dela se chcguc a poder formar justificadamente urna opiniño, cn- t onjunto. e tamhém nao dcvc ser continuamente negad?· porque dev.c ser
tño. volto a consolar-me, como tantas vczcs, corn o paradoxo que consiste i-.i.;inprc visto conjuntarncntc. Seria uma observa9~0 particularmente ?1stor-
cm tambérn se conseguir obtcr urna cspécic de experiencia no prcssenti- cida acerca de uma escultura ou de uma pintura, se cu fosse observa-la de
mento e no dcsconhccimcnto: consolo-rne com o facto de Diana30, que ial forma que me desse ao trabalho ele por de parte o sensual: indo assim
nunca dcu a luz, ter vindo em socorro das parturientes, possuindo mesmo a11ulnr por completo a respectiva bele7.a. Na escultura, 1~a ~rqu~tcctura ~na
cssc dom inato de parteira desde enanca, visto haver sido ela quern ajudou pintura. a ideia está ligada ao meio, mas o facto ele a 1deia nao rcduzir o
Larona nas dores de parto, aquando do nascimento da propria Diana. 1ncio a mero instrumento. o facto de niío o negar continuamente. é como se
O reino rneu conheciclo. cujas frontciras mais extremas qucro explorar fos'>c uma cxpri.;ssao parn clizer que este meio nao é capuz de falar. Tarnbém
i \ para descobrir a música, a linguagern. Se se quisesse ordenar os diferentes
é ;1s~im acontece na narure1.a. Por isso se diz com todo o clireilo que a natu-
mcios segundo um determinado processo ele desenvolvimento, entáo, serí- rcza. e a arquitectura. e a escultura e a pintura sao mudas; di:t~c;e .isto eco~
amos obrigados a colocar a linguagern e a música rnais perro urna da outra, todo 0 direito, apesar ele todos os ouviclos apurados e sens1ve1s que sao
e por isso que tarnbém se diz que a música 6 urna linguagcrn. o que é
é 1.:apazes de as ouvir falar. Por isso, é uma tolice afirmar que a na~ureza é
multo mais cloque urna obscrvacáo plena de espíritu. Quando. designada- 11ma linguagern, e h:.í tanta vcrdade quanlo h{i inépcia, quand~ se d1z que o
mente, se tern dese jo de ser levado pela cspirituosidadc, en tao. podía dizcr- mudo fala, visto que nem scquer é urna linguagem no sentido em que a
-se que a escultura e a pintura sao urna espécie de Iinguagern, dado em linguagem gestual é. Ao invés, assim nao acontece com a linguagem. O
conta que qualqucr cxprcssño de urna ideia urna Iinguagem, sendo que a
é sensual é reduzido a mero instrumento e, como tal. relevado. Se um homcm
esséncia da ideia a linguagem. Por isso, as gentes espirituosas falam da
é falasse de modo a que se ouvissc o cstalar da língua. cte., entao. estaría a
linguagem da natureza e os padres piegas abrern por vezes o livro da natu- falar mal: se alguém ouvisse de rno<lo a ouvir vibra<¡:ües no ar: em vez de
reza e Iéem-nos qualquer coisa, que nem mesmo eles. nern os respectivos palavras, entao, estaria a ouvir mal; se um indiví<luo 1~,sse u1_n l1vro de m~-
ouvintes, entcndem. Se nao se obtivcssc mclhor resultado dcssc comentario do a fixar cada urna das letras, entao, estaría a ler mal . .E precmunentc cntao
a nao ser que a música é urna linguagcm, ncm scqucr me incomodaría corn que a linguagem é o meio perfeito, quando todo o sc1~sual é ncla negado.
ele. antes cleixava que ficasse cm claro e tossc lomado por aquilo que era. Tamhém assim acontece com a música: o que é propnamente para ser ou-
Mas nao assim que entretanto se passa. Só quando o espírito está suposto
é vido liberta-se continuamente do sensual. Que a música, enquanto meio de
a linguagcm investida nos seus direitos; porérn, quando o espírito está
é cxpressao, nao está a mesma altura da linguagcm, já foi an~eriorrnent.e re-
suposto, Lucio quanto nao espírito excluído. Mas esta exclusáo é deter-
é é cordado e, por isso, também eu clisse que a música era urna hnguagem num
minacáo do espirito e. portante, tendo em canta que a expulsáo fará com certo sentido.
A linguagem di.rige.~e ao • .QJlVido. Nenhum outro meio fa.z o 1~~smo.
30 Na mitologia romana, Diana era a densa da caca. Ja Lua e dos partos. tal como o ouvido é por seu turno o sentido que está determinado mais espintual-
Árternis na mitología grcga. mente. Estou em crer que a maioria das pessoas concordará comigo; se
104 (
105

alguérn deseja esclarecirnentos adiciona is. sugiro-lhc que consulte o prcfá- 1111111 cxprcssuo favorita usada pelos poetas para denotar que de certa forma
cio de «Karrikaturen des Heitigsren» de Srcffcns ". Além da Iinguagcrn, a rcuunciam a idcia, ;1 idcia desaparece diante deles, e lucio acaba em música.
música o único meio que se dirige ao ouvido. Reside aquí de novo urna
é l 'odcria aqui parecer que a música é urn meio ainda mais perfeito do que a
analogía e urna preva do sentido no qual a música é urna linguagcm. Há l111! uugem.
1 No cntanto. este é um desses rnaus entendimentos langorosos
mu ita coisa na natureza que se dirige ao ouvido, mas o que atingc o ouvido que '>Ó nascem de cabecas ocas. Que se trata ele urn rnau entendimento,
é aquilo que é puramente sensual e, portanto, a naturcza é muda; e urna é volta a ser adiante demonsrrado; limitar-me-ei aqui a chamar a atencáo
fantasía caricata ouvir-se algo, porque se ouve uma vaca a mugir ou, o que pnrn a ussinalávcl circunstancia de deparar outra vez coma música, dcsig-
tal vez fossc prerensáo maior, um rouxinol a cantar; urna fantasia ouvir-se
é uudamcntc através de um movirnento em sentido oposro, dcsignadarncnte
algo, é urna fanrasia urna coisa ter mais valor do que a curra, porque tanto qunudo deseo da prosa penetrada pelo conccito até chcgar as interjeicóes,
faz urna como a outra. u~ quais sao por scu turno musicais, tal como por sua vez os primeiros
1751 A linguagem tcm o seu elemento no tempo, todos os restantes mcios bnlbucios da enanca sao efectivamente 1761 musicais. No entanto, nao cabe
rérn o espaco como elemento. Portante, só a música progride no tempo: uqui ccrtarncntc discutir se a música é um meio rnais pcrfeito do que a
Mas o facto de progredir no tempo é por sua vez urna negacño do sensual. linguagern, ou se a música é um meio rnais rico do que a linguagem, a
O que as restantes artes produzcm deixa entrever a respectiva sensual idade 111c11os que se admita que dizer «uhm» tem mais valor do que um pensa-
justamente através do seu subsistir no cspaco. Ora há por seu turno muira 1nc1110 acabado. Mas concluir-se-á daqui que, onde quer que a linguagcm
coisa na naturcza que progride no tempo. Por excrnplo, quando um ribciro ccssa , cu encontro o musical? Entretanto, esta pode hem ser a cxprcssño
murmura, continuamente murmurando, parece existir aí urna dctcrminacáo muis perfeita para dizer que a música fa7. fronlcira com a linguagcm onde
temporal. No entamo, isso nífo é assim, e conquanro haja alguérn que acabe qucr que seja. Daqui se deprccnclc simultaneamcntc como isso se encadeia
por aceitar que dcvc estar aqui presente urna dctcrminacño do tempo. entáo l'11111 o mau cntenclimento que consiste cm fazcr da música uro mcio mais
devcrá dizer-se que ussirn é, sondo que é, contudo, determinada espacial- 1 ico do que a 1 inguagcm. Na medida cm que a linguagem cessa, a música
mente. A música náo existe para alérn do instante em que é exccutada, e <'omcc;a, nu medida em que ludo é musical, como é uso dizer-se, eorao, n?ío
mesmo que alguém até soubcssc lcr rnuito bern partituras e tivesse urna v:ii para a frente, mas sim para trás. Daqui se conclui que eu, e t.ulvez tam-
imaginacño suficientemente vívida, ncm sequcr poderla negar que a músi- bém os entendidos me dcem ra1ao ncstc ponto, nunca senli simpat.ia pela
ca, cnquanto licia. existe apenas cm sentido figurado. Existe propriamcn-
é música sublime da qual se opina nao t.t!r nt!cessidade da paJavra. Em regra,
te apenas quando é executada. Tal poderla parecer urna irnperfeicáo desta opina-se que é, designadamente, superior a palavra, embora seja inferior.
arte em comparacño como conjunto das outras artes, cujas producñes sub- Ora alguém podia decerto levantar-me a seguinte objecc;:ao: se é verdade
sistern de mancira permanente. porque tóm o seu subsistir no sensual. E que a linguagcm é um meio mais rico do que a música, entao. é inconcebí-
contudo, nao é assim. Trata-se antes de urna preva de que a música urna é vcl que esteja ligada a uma tao grande dificuldade para se discorrcr do
arte mais elevada, mais espiritual. ponto de vista estético sobre o musical: é inconcehível que a linguagem
Ora se eu partir da linguagem c. por intermedio de um rnovirnento ele aqui se mostre semprc como um meio rnais pobre do que a música. No
penetracüo, se eu cscutar de certo modo a música que dela sai, entño, o cntanto, nem isto é inconccbível, nem é inexplicávcl. A música exprime
assunto afigura-sc mais ou menos assirn. Se eu admitir que a prosa é a semprc, designadamcnte, o imcdiato na sua imcdiaticidade; conclui-se da-
forma da linguagem que mais afusrada está da música. cntáo, já observo no qui tambérn que, em rela<,:í.ío a linguagem, a música se mostrado princípio
discurso oratório, na construcáo sonora dos períodos, urna toada do musical ao fim, mas torna-se igualmente inteligível que é um mau entendimento
que emerge cada vez rnais forte através de patarnares diferentes no discurso dizer-se que a música é um meio mais perfeito. Na linguagem reside a re-
poético, na construcáo do verso, na rima, até que por íim o musical se de- 11exao e, por isso, a linguagem nao pode enunciar o imediato. A reflexao
senvolveu tanto que a linguagern ccssa e tudo passa a ser música. Esta.é, mata o imediato e, por isso, é impossível enunciar o imediato na linguagem,
mas·'esta aparente pobreza da linguagem é precisamente a sua riqueza. O
imediato é, designadamente, o indeterminável e, por isso, a linguagem nao
31 Caricaturendes Heiligsten [Caricatura do Sagrado]. vols. 1-11, Lcipzig, 1819-182 l.
obra de Heinrich Steffens (1773-1845). poeta e filósofo alernáo; vd. Einleitung [Intro- pode concebé-lo; mas o facto de ser isso o indetcnninável nao é perfei<;ao
dueño], vol. II, pp. 82-120, onde o autor analisa as Jiga~oes entre a música e a lingua- sua, é antes falta dela, o que é indirectamente reconhecível de muitas ma-
gern, considerando o ouvido como o sentido mais espiritual. neiras. Assim, e apenas p¡¡ra introduzir um exemplo, diz-se: «nao sei pro-
1 ()() 107

priarncnre adiantar porque Iaco cu isro ou aquilo tiesta ou duqucla mancira, 111111-icu. se coleen de 1:1c.:10 muito mai:-. peso na vibracño sensual do que na
faco-o de ouvido». Utiliza-se arniúdc, para coisav que 11:::ío térn rclacño al l 1111' ll!l!'C 111
guma com o mu ical, urna cxpressáo retirada da música, mas que designa \ pcmuhdadc sensual é pois o objecto absoluto da música. A genialidade
ao mesmo tempo o obscuro, o inexplicável, o imcdiato. t111 ..,l·n..,ual e absolutamente lírica e cxplodc na música corn toda a sua irn-
Ora se o imcdiato determinado espiritualmente é aquilo que propriumcn- ¡ 111t'1l·11ci:r lírica: está, dcsignadurncntc, determinada espiritualmente e por
te chega a ter cxpressño na música, cntño, pode voltar a pcrguntar-se mais ''"" e íorcu. vida. movirncnto, permanente dcsassosscgo, permanente su-
rigorosamcntc 1771 de que cspécie é o imediato que em esséncia. o objec-
é , 11.''·'º· max este dcsassovscgo. esta succssáo. nao a cnriqucccm, cla pcrma-
to da música. O imcdiaio determinado espirirualmente pode estar: ou deter- 111.·rc constantemente a mesma. nao se desdobra, antes irrompe explosiva-
minado de modo a cair sob a aleada do espírito12, poclcndo deceno encon- 1111.•1111.: como num só folcgo. Ora houvesse eu de designar este lirismo com
trar a sua expressáo no musical. mas esse imcdiato nao pode todavía ser o 11111 11111co predicado. entño, teria de dizer que rcssoa: e com isto regresso
objecto absoluto da música. visto que. quando e.;,tá determinado de modo a 1111\ amente a gcnialidadc sensual como sendo aquela que '>C mostra de ma-
cair na aleada do espirito. cntño. denota-se por essa vía que a música está 11111 <1 imcdiata e musical.
num domínio alheio, criando um prclúdio que é continuamente relevado; Sci qu!.: a respcito deslc ponto até cu podía clizer muito rnais, que será
uo invés, S\.: o imediato está determinado espiritualmente. determinado de 1111sa r:ícil para os entendidos 1781 deixar tudo csclarcciclo de uma maneira
modo a cair rora da aleada do espirito, cntño, a música tern aquí o seu ob- 1111nplc1ami.:ntc dikrcntc; estou convicto (visto que ninguém, 1anto quanto
jecto absoluto. Para o primeiro imcdiato, é incsscncial que csteja exprcsso 111 ,cr. efcctuou um cnsaio sobre is-;o. ou deu a cara por isso.j;í que continua
na música, no passo que lhc é csscncinl tornar-se cspírlto e, portante, estar 11 1q>ctir-sc, apenas e sempre. que a coroa entre as 6peras~4 é Oon ./11011 de
cxprcsso na linguagcm; para o segundo, é csscncial estar cxpresso na mú- l\l111ar1. scm desenvolver o que é a sua opinifío, apesar de tocios o dizerem
sica, só aí pode ser cxprcsso, nao pode ser cxprcsso na linguagem. visto que cl1• 11111 modo que dcmon.;,tra obviamente que queriam dessa forma di1er algo
c<.,tá determinado espiritualmente ele modo a ficar tora <lo espirito e. por 111:1..., do que «Don }11<111 é a melhor ópera») de que entre esta e todas as
conscguintc, lora da linguagem. Mas o irnediato que assirn rica cxclufdo do 1111tnis <Íperm, hú umu dil'cn.:n\:a qualitntiva, uma diferen<ru que nño será cer
cspíruo a irncdiaticidadc sensual. a qua! pcrtence ao cristianismo e tcrn na
é 1.1111c111e de procurar em outra coisa que nao seja a rela9i'io absoluta entre
música o seu mcio absoluto, e torna-se também assim cxplicável o facto de 1tk1a. forma. matéria e mcio35; como sou eu a dizer que se relacionam desta
na Aruiguidadc a música nño ter sido propriarnentc dcscnvolvida+'. pe11e11-
ccndo antes ao mundo cristño. t\ imcdiaticidadc entño o rneio para o
é 1.1 Vd. 0 scguintc come11tál'in atribuívcl a J. L. 1-lciool'g, na rubrica «Tlleatrel>> 10 teatro!.
irnediato. o qual, determinado espiritualmente. é determinado de modo a 1 >11n Juan» in Kjc!be11/um1.1j7yl'l!tldeP01f !Correio Yol:1111e de Copenhugal. 1827. nrímcro
•J 1 de Outubm (Edicao impressa. vol. l. pp. 325 e seg~.): «de1111e Kmll(' a/alfe Operaer»
ficar fora do espirito. É óbvio que a música pode exprimir rnuitas curras
1 1..,ta cnroa de tocias as úpcnl'»]. A exprcs),iio foi rcwrnada cm 1833 pelo poeta rrctlcrik
coisas, mas este o scu objecto absoluto. Tambérn
é simples de observar
é
J '¡¡l11tla11-MUl1er ( 1809-1876) no poema Dwul.1eri1ule11 lA Bailarina 1. 1 'J70. p. 8: 1 ." cdi<;ao
como a música é um mcio mais sensual do que a linguagcrn. dado que, na 1111 1833. 2." cm 1834, 3." cm 1837: «Pide <'r det / ! ll'Or o/le Ko11ster.1 Moder. llar111011i. I
1/ 'i111ii/ og 'foarer sine Krmul.wflettter. I Naar Hi111111el, liefred for 1•ort ~re Ha111{ I
32 Neste Pª·""º· os editores de SKS scgucrn o texto da segunda cdicño de Enten-Eller, em / Opera1•11\' Kmne. 0011 J11w1» l«IÉ o tempo! Em quc toda a matri1 das arte:-, a harmo-
detrimento de outra estrururacño sintáctica constante da primeira edicílo. na qual a disjun- 111.1, / tece11do grinaldas de sorTisos e lágrimas,/ quando ~oou infernal nos nossos ouvidos
t;iio está desde logo expressn no início do período: «0 imcdiato determinado espiritual- n 1.·cu /na coroti da ópera, Don Juan»¡. l11forma<;iío gcntil111enle cedidu por R. Purkarthofer.
mente pode estar determinado ou de modo a cair sob a aleada do cspfrito ou de modo a l'I L)epois uo elogio de Mozan. Kierl.egaard continua a cumprir 1extualmcnte os dita-
cair tora da aleada do espfrito. Quando o imcdiato determinado espiritualmente e!>UÍ de- 111c' de Roben Schumann ( 18 to 1856) para a elabon1<;ao de uma crítica mu~ical (itáli-
terminado de modo a cair sob a aleada do cspírito, pode 1 ... [»: vd. SV 1. vol. I. p. 52. ul\ no~sos): «( ... ) nac/1 den 1·ier Ge1ic/11sp1111kte11. unrer de11e11 1111111 ei11 Muri~werk
33 ldcia originalmente avancadn por E. T. A. l loffmaun ( 1776-1822) no seminal ensaio h1•tmf'hte11 kr11111, d.i.1uu·/1 der Form (des (iw1~e11. der ei11::.el11e11 Teife, der Periode. der
/:Je(!th01·e11.1 Instrumental-Musik 1 A Música Instrumenta I de Beethovcn], de 1813-1814, /'hrase i.je 1wch der 11111.1ikali.1c:/1en Komposilion (Jlamumie. Mefodie. Sarz. Ar!Jeit. Stil),
cuja vcrsño preliminar havia sido publicada cm 1810 como rcccnsño a Quinta Si11.J(111ia 111wlt der be.wmleren kh.:c. die der Kiinstler darstel/e11 wollte. wul llll('h dem Gei1·1e. der
de Beethovcn: Hoffmann provsegue este curso de idciax cm A/te 1111d 11e11e Kirche1111111si~ 111><'1' Form. Stoff. ldee waltl'I.» [«( ... l ~egundo quatro pontos de vi ... ta. de acordo comos
[Amiga e Moderna Música Sacra] de 1814; vd. E. T. A. Hoffmanns ausgewdhlte \Verke q11ai~ ~e pode examinar urna obra musirnl, i. e., a fonna (o todo. a~ partes isol:rda~, os
infiin] Bii11de11. cdicao de Martin Hürli11111n11. vols. 1-V, Zurique: Atlantis Verlag, 1956: períodos. as frases). a composi~ao musical (harmonin. melodia. frase. trabalho. cslllo),
vol. 1, Autobiographische,uuisikalische 1111d vermisclue Schrifteu [Esenios Autobiográ- .i ideia principal. que o <rrlista quis representar. e o espíri10. que regc a fonna. a rnatéria
ficos e Musicais e de Índole Véria], pp. 422-433. ,. a ideia»]: vd. Robert Schumarui. Gela111111elte Schrifte11 iiber Muvi~ und Muliker [Es-
108 109

maneira, entáo , fui eu qucm rornpeu o silencio. Tulvcz cu tcnha sido algo Orgc! [ür des Ieufols Dudelsack, womit er den Ernst der Betraclitung in
precipitado, talvcz viesse a conseguir dizé-lo melhor, tivcssc cu ainda aguar- S<'hl11111111ff wieg), so wie der Ta11::, die guten vorsar:e heléiuht.»39 lsto tem
dado algum lempo, tal vez. nao sei, mas sci que nao me precipitei para lera de ser considerado como urna réplica instar omnium40... Ora que motivo
alegria de vira falar. sei que nao me prccipitei por temer que um entendido pode ser invocado para excluir a música, fazendo assim da palavra o único
houvessc de fazer isso primeiro, mas por recear que, se tambérn eu rnanti- elemento dominante? Que a palavra pode confundir os cspíritos tanto quan-
vesse silencio, entáo, as pedras36 havcriam de comccar a falar cm honra de 10 a música, quando é mal usada, todas as seitas restauradas seguramente o
Mezan, para vergonha de tocios os homens a qucm foi concedido falar. udmitirño. Tcm pois de havcr urna dilcrcnca qualitativa entre etas. Mas
Admito que aquilo que até agora ficou dito relativamente suficiente·
é espirito é aquilo que o fervor religioso quer ver expresso, por isso exige a
rendo em conta esta pequena investigacáo, dado que há-de essencialrnenre linguagcm, que o meio específico do espírito, e rejeita a música que é
é

servir para abrir caminho a dcnominacáo dos estadios eróticos imcdiatos, para eles urn mcio sensual, sendo sempre, aliás, um meio imperfeito para
t.al como aprendemos a conhecé-los em Mozart37. Antes de passar entretan- exprimir o espírito. Se o fervor religioso tern razáo ao excluir a música, é
to a esse ponto, gostaria ainda de introduzir urna constaracño, a qual, par- urna outra questao, como j~í foi clito: em contrapartida, é possível que a
tindo de urna outra perspectiva, pode guiar o pcnsamenro na relacño abso- ob~ervac;ao que 'faz !;Obre a rela9ao entre a música e a linguagcm esteja
luta entre a genialidadc do sensual e o musical. Como sabido. a música
é completamente certa. A música nao necessita, designadamente, ele ser ele
foi scmpre objecto da desconfiada atencño do zelo religioso. Nao contitui todo excluícla, mas tcm de ver-se que, no domínio do espírito, é todavia um
ocupacáo nossa vir aqui saber se h}í ou nao há razño ncste ponto, pois que, rncio impc1fcito, e que nfio pode. portant.o, ter o scu objecto absoluto no
com cfeito, tal coisa teria apenas inrercssc religioso; cm contrapartida, nao c:-.piritual irnediato. determinado como cspírilo. lsto nao acarreta de modo
dcixa de ter significacáo atentar no que até aquí ñcou determinado. Se cu algum que scj<i 11cccssário considcrá-la como obra do diabo. mesmo quan-
seguir o fervor religioso a este respcito, entño, sou capaz de determinar o do os nossos tempos hajam <le ofcrecer muitas provas terrívcis do poder
rumo do movirnento assim, de urna rnaneira muito geral: quanio mais seve- di.!moníaco com que a música pode agarrar um inclivfduo, e esse indivíduo.
ra é a rcligiosidadc tanto mais se abdica da música e se destaca a palavra. por sua ve7., arrasta e prende a mullidfío, em especial as mulheres, na arma-
A este respcito, os diferentes estadios cstáo representados na historia mun- dilha scdutora da angústia, 1,;0111 todo o provocante poder da volúpia. Tsto
dial. O último estadio excluí por completo a música e apoia-se unicarncnte nño acarreta de todo que scja nccessário considerá-la como uma obra do
na palavra. Eu podia abrilhantar o que aqui disse corn urna rnultiplicidade diabo, mesmo quando se conslata com uma espécie de secreto horror que
de obscrvacñes singulares; nao quero entretanto fazé-lo, quero simples- esta arte. ma.is do que qualquer outra arte, arrebata muitas vezes os seus
mente introduzir urnas palavrus de um presbiteriano, tal corno aparecem seguidores de um modo assustador, um fenómeno que muito estranhamen-
num corito de Achim von Arnim38: «Wir 1791 Presbyterianer halten die te parece escapar a aten9ao dos psicólogos e das gentes, excepto quando
numa vez particular ficam alarmados corn o grito de angústia de um indi-
critos Reunidos sobre a Música e os Músicos] Lcipzig: 1854; Rcprini Ausgabc, Wies- víduo clcsespcraclo. Merece entretanto ser assinalado que nas len<las popu-
band: Breitkopf & Hartel, J 985. vol. 1, p. l 18. lares e, portanto, na consciGncia popular de que a lenda é expressao, o·
36 Vd. Lucas, J 9:40: «E respondcndo ele. disse-lhcs: Digo-vos que. se estes se cala- musical é semprc o demoníaco41• Como exemplo, recorro a Irische t:l-
rcm, as próprias pedras clamarño.»
femndrchen, de Grimm, 1826, pp. 25, 28, 29, 3042.
37 Para urna anrilisc pormenorizada do contexto musical que está na origern das obser-
vacóes e comentarios de Kicrkegaard a Mozart, designadamente, o sen conhecimcnto
da crítica musical contemporánea da autoría de Hcctor Berlioz (1803-1869), Robert 39 Em alemao no original: «Nós. os presbiterianos, considerarnos que o órgil'o é u
Schumann ( 1810-1856), Richard Wagner ( 1813-1883) e Franz Liszt ( 1811-1886), bem gaita-cle-foles do diabo. coma qual ele embala até dormir a sericdaclc da contcrnpla~áo.
como a sua panicipacáo na fundacño da primeira sociedade musical em Copenhaga, vd. lal como a daw;:a dcixa os bons propósitos atordoados.»
Elisabete M. de Sousa, Formas de Arte: A Prática Crítica de Berlior. Us-::.1, Kierkegaard 40 Em latim no original: «Crn ve1. de out ras».
e Schumann, Lisboa: Centro de Filosofía da Universiclade de Lisboa. 2008. 41 [l também no mundo musical: Niccolo Paganini ( l 782-1840) eullivava uma ima-
38 Retirado da Nove/le de Ludwig Achim von Arnim, Owen Tudor, de 1821; edi<;ao gem cénica so111bria e misteriosa que, uma vez aliada aus prodígios <le virtuoso. contri-
consultada pelo autor: Novellen, edicáo de W. Grirnm. vols. 1-VI. Berlim, 1839-1842: buiu para o atributo de demoníaca a sua música e a sua execu~ao.
vol. IL p. 260: cdicño moderna: Achim von Arnim, Siimtliche Romane und Erzdlilungen 42 lrische J::lfenmiirchen lContos de Elfos da Irlanda!, tradur;ao dos irmáos Grimm.
[Romances e Narrativas Completos], edíi;ao de Walther Migge , vols, I-111. Munique: J ,cipzig, 1826. da obra de Thomas Crofton Croker (1798-1854), Fairy Legends muí
Carl Hansen.1962-1965; vol. IU. 1965, p. 73. Traditiom of the Soutlz c~l /rela11d 1 Lendas de Fadas e Trndi~oes do Su! da Irlanda],
110 SC11t:11 1 lCI kcguru d 11 l

Ora no tocante aos cstádios crótico-imediatos+'. tudo o que sci dizcr a própriu ele !'acto c.:licguei a cssc conhecirncnto através da música. A dificul-
esse respeito fico a eleve-lo única e exclusivamente a Mozart, a quern eu ele dude co111 que a seccáo adiantc se detronta está mais perlo de ser a seguin-
urna mancira gcral tudo dcvo. Corno entretanto a classificacáo que eu que- re: aquilo que a música exprime. e que constitui aquí objecto de discussáo,
ría aquí cnsaiar só pode ser atribuida a Mozart indirectamente. em combi- é csscncialrnente o objecto da música propriamente dito, e a música expri-
nucáo com um terceiro, sujeitei-rne eu próprio a
prova. bem como classi- a me-o logo de urna maneira muito mais perfeita do que aqueta que possí- é

fica9ao, antes de me Juncar seriamente ao trabalho. 1801 nao fosse eu de a


vcl linguagem. a qual, junto daquela. assume para si um ~1specto muilo
algum modo privar-me a rnirn proprio. ou ao leitor, da alegria de admirar pobre. Claro que se cu aqui me ocupasse dos diferentes pata.mares de cons-
as obras imortais de Mozart. Quem quiscr ver Mozart na sua vcrdadcira ciencia, é óbvio que a vantagcm estaría en tao do meu lado e 1811 do lacio da
grandeza imortal tem ele tomar cm considcracáo o scu Don Juan; compara- li11guagem, mas nao é e.sse o ca.so aquí. Portanto, aqLtilo que se trata ele
, do com Don Iuan, tudo o mais é casual, incsscncial, Porém, observando desenvolver aqui s6 pode itkaru;:ar significar;ao para qucm ouviu e perma-
\ agora Do11 Juan. para ver conjuntamente nclc coisas particulares de outras nece continuamente ouvindo. Para ele, taJvcz possa conl.er um único sinal
I 1 óperas ele Mozart sob este ponto de vista. entño, fico convencido de que singular que possa move-lo a ouvir outrn vez.
...I ) ncm se rebaixa Mozart, nem ninguém se prejudica a si proprio, ou prejudi-
'-
1
ca o scu próximo. Tcr-se-á enrño oportunidade ele rejubilar como facto de
u propria potencia da música se esgotar na música ele Mozart. Primeiro Estádio44
De resto, quando acima utilizei, e continuo adiantc a utilizar, a cxprcssáo
«estadio», nao terá de ser assumido corno se cada um dcsscs estadios, iso- O primeiro estÍldio eslá sugerido no Pt~jem115 de Figttro46. Nao importa
lado, existisse autonomamente tora um do outro. Podcria talvcz ter usado obviamente ver aquí no pajem um indivíduo singular, coisa que se fica fa-
com maior propriedad e a cxprcssño «mctamcrfosc». Os diferentes estadios cilmente tentado a fazer, quando, em pensamcnlo <.)u na realidadc, se ve o
tomados no scu conjunto constitucm o estadio imcdiato, e tornar-se-á inte- pajem aprescntado por urna pessoa. É difícil, entao, evitar. o que cm parte
ligívcl a partir daqui que os estadios enquanto singulares sao mais urna ta1nbérn é o caso do pajcm na obra, que nada de casual. nenhurna idcia in-
manifestacño de um predicado, de molde a que lodos os predicados se pre- trusa venha imiscui.r-se, para que ele nao cheguc a ser mais do que aquilo
cipitern na riqueza do último estadio. pois este é o estadio propriamente que deve ser, pois em certo sentido passa insta.ntanearnente a ser tal coisa,
dito. Os outros estadios nao tém qualqucr existencia autónoma; para si assim que se torna inclivíduo. Porém, ao tomar-se mais, toma-se menos.
mesmos, siío apenas para a representacño, e daí chegar-se também a ver a ccssa de ser a ideia. Por isso, nao é possível atribuir-lhe réplicas, 1.ornando-
respectiva casualidade diante do último estadio. Como entretanto cncontra- -se antes a música a única exprcssao adequacla, e é por isso <le assinalar que
ram na música de Mozart urna expressño em separado. enráo, falarei deles tanto Fígaro como Don Juan., tal como saíram das maos de Mozart, perlen-
em separado. Acirna de tudo , nao terá, no entanto, de pensar-se crn di lcrcn-
tes patarnares de consciencia, pois ncm mesmo o último estadio alcancou 44 Das óperas de Mwarl no scu conjunlo. Kierkegaard. em tempo füil para a rcdacc;fio
a inda consciencia; estou scmprc a tratar do imcdiato na sua perfeita imedia- dcste capfüdo, viu as tres que cstfío na origcm dc~tes tres estúdios. e evc11tuah11e11le O
Rapto do Serrnlho, represen lado sete vezes entre J 829 e 1837. As norias de Fígaro
ticidade.
contou c:om scsscnta e cinco récitas enl.re '1821 e 1838: e Don Juan (Kruse), com oite11-
É obvio que rambém aqui nao Ialtam as dificuldades que sempre se Je- la e nove entre 1807 e 1845; A Flauw Mcígica contou com trinta e urna rcprcscntac,:ocs
vantam, quando se quer tomar a música como objecto para tima observacáo entre 1825 e 1842.
estética. As dificuldades no que acima foí dito residiam principalmente no 45 Na ópera de l\.fo;1art e Da Po11te Le Noz,::.e di Figaro [As Bodas de Fígarol de l7S6,
facto de, querendo eu demonstrar, seguínclo o curso do pensamento, como Chcrubino está apaixonado pela Condcssa, mas senle-sc atraído por todas as nmlheres
a genialidade do sensual é o objecto essencial da música, isso poder apenas e1JJ geral. Ycrsao dinamarquesa: Figaro.1 Givlermaal eller Den Rale Dag. Syngestykke i
jire Alaer, oversat til Musik af' Moz.art. 1:fier den italienske Omarheidelse af Beaumar-
ser propriamente demonstrado através da música, tal como também eu
r:hais · frwiske Original LAs Bodas de Fígaro ou a Jornada Louca. Pe<.;<i musical cm
cinco actos, trndu7i.da pa,rn a música de Mozart, de acordo com a versao italiana do
Londres, 1825: a presente referencia pcrtcncc a Der kleine Sackpfeifer [O Pequeno original frances de Heaumarchais], traduvíío del\. T. 13ruun, Copenhaga, 1817; dora·
Tocador de Gaita]. vantc mencionada corno Givtermaal.
43 O esboce inicial de urna teoría dos estadios do desejo encentra-se na entrada do di- 46 Fígaro é a personagem principal da mesma ópera. mas Kicrkegaard usa frcqucntc-
ário de 26 de Janeiro de 1836; vd. Pa¡». l C 125, BB:24, SKS. vol. 17, p. l l 3. mcntc o nome da pcrso1Jagcm para se referir i1 ópera.
112 S1í1C1l 1, ll'i l l·¡~w11d 113

cem a opera serii/", Ora se se considerar o pajern como u rna pcrsouugcm qunlqucr caso, rora do dcsejo. Quando se pinta todo o recto <le urna sala
mítica, entáo , encontrar-se-á cxpresso na música o que é próprio do primci- rn111 pcrsonagcns urnas ao lado das outras, rebaixa-se assim o recto, dizern
ro estadio. oi-. pintores; utilizando urna única personagern, leve e fugaz, socrgue-se
Despena o sensual, embota nao para movimento, mas antes para calma cntuo o tccto. Acontece o mesmo na relacño entre o desejo e o desejado no
aquiescencia. nao para júbilo e alegria. mas para melancolía profunda. O primeiro e no último estádio.
desejo ardente'" ainda nao está despeno, é presscntido mclancolicarncntc. O desojo, que ncste estádio está apenas presente como um pressenri-
Neste desejo reside sernpre o que é desojado. o qua] aumenta a partir do mento de si mesmo, fica pois scm movimento, sem dcsassosscgo, é apenas
desejo, mostrando-se nurn amanhecer gerador de confusáo. Esta relacáo suavemente agitado por urna inexplicávcl ernocáo interior, e tal como a
dá-se diante do sensual, distancia-se do sensual através de nuvens e nebli- vida da planta está presa ~1 terra, assim está ele mergulhado em tranquilo
nas, aproxima-se através do reflexo por elas emitido. O que viera tornar- nnscio presencial, absorto na conremplacño. e nao é capaz ele esgotar o scu
-se objecto de desojo é possuído pelo desejo, mas este possui-o scrn que o objecto, porque nao há essencialmente qualquer objecto ern sentido mais
ten ha dcscjado e, assirn scndo, nao o possui. Dolorosa (mas também por profundo e, contudo, esta falta ele objecto nao é objecto seu, pois, estives-
viada sua docura, enfeiticanre e cncantatória) é esta contradicáo que ncstc sc ¡;le prontamente assím cm moví mento e, entfto, ficaria dcterminado50,
estadio rcssoa com a sua nostalgia e a sua melancolía. A dor dcstc estadio se n1io f"osse de outro modo. cnt.ao, seria na mágoa e na dor, mas mágoa e
nao reside, designaclamente, no facto de ser cxccssivamcnte escassa, mas dor nflo tcm cm si u contradir;ao que é própria da melancolía e do abati-
antes no facto ele ser excessiva. O desejo é desejo tranquilo, o anseio é mcnto profundo. a equivocidade que constitui a doc,:ura <loqueé melancó-
anscio tranquilo, a cxaltacño é exalracáo tranquila, na qual o objecto des- 1 ico. Apesar de neste estádio o desejo nao estar determinado corno dcsejo,
ponra ficando tao peno do desojo que está dentro 1821 dele. O desojado npesar ele este descjo (pressentido naquilo que ao seu objecto diz respeito)
paira sobre o desojo, afunda-se nele, sern que todavía este movimenro estar completamente indeterminado, possui todavia uma única cletermina-
ocorra por via da propria torca de atraccáo do dcscjo, ou porque seja de- \·üo. a saber, é infinit.amentc profundo. A semclhan9a ele Thorn51, bebe por
scjado. O desojado nño desaparece. nao se csgucira do abrace do dcscjo. um corno cuja cxtrcmidacle se ergue do occano; contudo. o motivo pelo
visto que cruáo o desojo iría justamente despertar: mas sem que soja dese- qual nao consegue sorver para si o respectivo objecto nao reside no facto
jado está diantc do dcscjo que, justamente por isso. fica mclancél ico, por de este ser infinito, mas antes no facto ele esta i11íinitucle nao poder tornar-
nao ser capaz de chegur et dcsejar. Assim que o ele. cjo despena. ou mclhor, se para ele urn objecto. O sorvo do desejo 1831 níio designa de tocio urna
no seu despertar e corn o seu despertar, o dcscjo e o objecto do desejo rclac,:iio como objecto, é antes identico ao seu suspiro, e este é inf"i11itamen-
separarn-se. o desejo respira pois sao e livre, ao passo que anteriormente 1e profundo.
nao conseguia respirar diante do desojado. Quando o desejo nao está des- Em harmonía corn a descris;ao aqui dada do primeiro estádio. acaba por
perto, encanta e fascina o desojado. chega mesmo a angustiá-Io. O desejo ~e revestir ele grande significas;ao o facto ele o papel do pajern estar com-
tern ele ter ar, tem de cxplodir, o que acontece ao ficarern separados; o posto, no respeitante a música, para ser atribuído a urna voz feminina.
desejado póc-sc cm fuga, tímida e pudicarnente corno urna mulhcr, dá-sc O que há de contraditório ncste estádio como que está sugerido nesta con-
a separacáo entre eles, o dcsejado desaparece et apparet sublimis'", ou ern lradiirao, o clesejo está tao indeterminado, o objecto está tao escassamente
~eparado. que o des~jado repousa no desejo de um modo andrógino, tal
como na vida vegetal o macho e a femea se encontram numa única flor.
47 Sic. Na real idadc, dramma giocoso é a classi ficayao original de Don Giovanni.
Opera seria está aquí utilizado como sinónimo de drama musical com recitativo.
48 Aqui, «Attraa»: Vd. nota 1() no capítulo «Diapsalmata», A partir daqui todas as 50 Aqui, «deter111i11ere1».
ocorréucias de «clescjo» correspondem a «Attraa» ou a «0nske». 51 Na mitología nórdica. Thorn é incapaz de csvaziar o corno pelo qual bebe, já que o
49 Em latim no original: «e aparece suspenso». Vd. Virgílio, Georgira [Geórgicas], scu inimigo ligara a exlrcrnidacle do corno ao mar. Vd. J. 8. J\,tf;inichen. Nordi.vke Folks
livro I, v. 404: «Adparet liquido sublimis in acre Nisus»: cdicáo consultada pelo autor: Orcrlroe, Guder, Fa/Jler og llelte, i11d1il Frade 7 Tider [Supcrsti\:ÜCS. Dcuscs, Fábulas e
P. virgilii Maronis opera [Obras de P. V.M.], edicño de J . Badén. vols, 1-11, Copenhaga, Heróis do Povo Nórdico até aos Tempos de frocle VII l. Copenhaga. 1800. pp. 436-438;
1778-1780; vol. 1. p. 124. Segundo a tradu<;flo de Agostinho da Silva: «No firmamento o cpisódio também está narrado por A. OchlcnschUigcr, Thors Reise ti/ Joth1111heim. Et
'límpido, bem alto, Niso aparece», vd. «Geórgicas», in Virgílio, O/iras de Virgílio: Bu- episk Digt i 5 Sa11ge IA Viagem ele Thor para Jothunheim. Um Poema Épico cm Cinco
cólicas, Georgicas. Eneida, traducáo do latim de Agostinho d;i Silva. Lisboa: Temas e Cantos]. Nordiske Digl<:? [Poemas Nórdicosl, Copcnhaga, 1807: canto IV. vv. 23-41,
Debates. 1999, 2." edicáo, p. 68. pp. 82-88, e canro V, v. 24. p. 111.
l14 1 l~
Ou Ou. U1n "1tti1111\•11111 ti\ Vltl,1

O desejo e o desejado ficam unidos na unidadc que h{i cm sercm ambos pulavras s~lo capazos de exprimir a disposicño, é demasiado pesada e ~~nsa
neutrius generis52•
pura que as palavras a possum sustentar. so a música cons~guc tran~m11.1-~1.
Apesar de a réplica nao pertencer ao pajern mítico. mas ao pajem da O fundamento da melancolia do pajern reside numa prol unda contradicño
peca, a personagcm poética Cherubino, e, consequcntemente, apesar ele nao interior, para a qual procurámos chamar a arcncáo no que acirna ficou clito.
ser possível ncstc contexto reflectir sobre ela. visto que por urn lado nao Dcixamos agora o primeiro cstádio que é denotado pelo pajcm mítico;
pertcnce a Mozart e, por outro, expressa algo intcirarnente diferente daqui- dcixarnos que continue a sonhar melancolicamcnte com aquilo que ele tc111,
lo que aqui se discute, qucro todavía destacar com maior pormenor urna
que continue a desojar com melancolía o que. possui, N_~m~a vai. mais alé~n,
réplica em particular53, porque me proporciona ocasiáo para denotar este nunca sai do mesmo lugar, pois os seus movimentos sao ilusórios e, ass1111
estadio cm analogía corn um estadio posterior. Susanno'" troca de Cheru- seudo, nada sao.
Passa-sc de maneira diferente como pajcm da obra; com
bino, porque ele cerio modo ele tarnbém está apaixonado por Marseline55 e urna vcrdadcira e sincera amizade. qucreríamos intcressar-nos pelo scu
o pajem nao tem a máo mitra resposta que nao seja: é urna mulhcr. No to- futuro felicitá-lo por ter subido a capitño, convidá-Io ainda urna vez a bci
cante ao pajern da obra, é csscncial que o pajem se apaixone pela condessa, jar Susanna na despedida57; nao denunciaremos a marca que traz n.a tesla58•
e nao é essencial que ele se apaixonc por Marscline; o pajcm é urna mera que mais ninguérn é capaz de ver a nao ser qucm já sabe; mas ma1s do que
expressáo indirecta e paradoxal para a intensidadc da paixáo que o dcixa islo, também nao, rneu bom Chcrubíno, ou entao, chamemos o conde. para
preso 11 condcssa. No tocante ao pajcm mítico, é igualmente cssencial que
csteja apaixonado pela condessa e por Marscline, a fcrninilidade é, dcsig-
assim log~ dizer: «Que saía j•í, c~a ~ortayara fora:,~1ue vá para o regimcnt~c)
já nao é cnan9a nenhuma, nao ha mngucm que o s,11ha melhor do que cu.»
nadarnentc, o objecto do pajem, e ambas a tém ern comum. Por isso, quan-
do mais tarde ouvimos sobre Don Juan:
Segundo Estádio
Até as coquetos de sesscnta
A legre, ele a 1 ista acresccnta-", Este estádio está denotado no Popogenn<­1.l cm!\ Flauta M<ÍMi<a. Importa
aqui obviamente separar de novo entre o essencinl e o ca~u.al, evoc<~r o Pa-
trata-se pois da analogía perfeita, só que a intensidadc e a determinacño do
desojo cstáo muito mais descnvolvidas.
pageno mítico e csquecer a pcrsonagem real na obra, res1d1.ndo aqui par- .ª
ticularídade no Cacto de esta personagem da obra ter surgido nssocrnda a
Ora houvessc cu de me arriscar num cnsaio para designar com um único toda a espécíe de galimatías hcsitantes. A este respeito, nao seria destituído
predicado o que é proprio da música <le Mozart no tocante ao pajcm de de intcrcsse percorrer toda a ópera para mostrar como o tema, observado
Fígaro, e iría dizer, entáo: está ébrio de amor; mas tal como todos os esta- enquant.o tema operálico. erra quanto ao seu fundamento mais ~rofundo. Ao
dos de embriaguez tarnbém a embriaguez de amor é, entáo, capaz de pro- mesmo tcrnpo, nao se sentiría aqui a falta da ocasiao para ilummar o erót1~0
duzir efeito de dois modos: ou dilata a transparente alegria de viver, ou de um novo lado, na medida em que se assume que o modo como aquilo
adensa a turva melancolía. É este último o caso da música nestc passo, e que foi feíto para aí colocar urna intui<;ao ética mais profunda, para que
tarnbérn está certo que assim scja: 1841 a música nao é capaz ele fornecer o
fundamento desse cfeito, isso está fora do seu alcance; e nem mesmo as
57 V<l. Acto I. cena VIII, que culmina na ária ele Fígaro Non piil andrai ... : na versao
dinamarquesa: Du lille Captain!. (iivtermaal, p. 36. .. .
52 Em latim no original: «género neutro».
58 Vd. <iivtennaol, Acto Ul. cena 13, p. !09, quando a Condessa bc•Ja Cherubrno na
53 Vd. Acto I, cena V: Givtermaal, pp. 20 e segs.
testa: Acto llt, cena 15, p. 112, para a evoca<;iio ele Cherubino.
54 Na peca de Beaumarchais. como na ópera de Mozart, Susana. camarcira da Con· 59 A réplica niio consta do libreto, embora retlicta a troca de palavras entre o Conde e
dessa. está noiva de Fígaro e sufre o assédio do Conde.
a Condessa: Acto 1, cena 8, Givtennaal, p. 35.
55 Marcclline aparece para cobrar dívidas a Fígarn, objecto ele ciúrnc pela parte de
60 Papageno. o passarinheíro, é uma das personagcns prínci.pais de Die Zaube1:fl0te IA
é

Susana. até se dcscobrir que é afina] a rnñc que enjeitara Fígaro.


flauta Má.gicaj, de 1791, sobre um libreto de Emanuel Sch1kaneder (1751- 1812). Ver-
56 Traducáo adaptada dos versos da ária do catálogo na versáo de Krusc, p. 21: Don
sao dinamarquesa: Trvllejltt>iten. Sy11ge.1·(vkke i to Acter af Emmanuel Scl11c~aneder.
Giovanni.Xct« 1, cena 4. Kierkcgaard cita com urna variacfio: «Fryd» cm ve¿ de «Lyst», Oversa/ 1il l'vtozart.1· Musik ved N.T. Bruun IA flauta M:ígica. Sing.1piel cm Do1s Actos
i. e., «júbilo», em vez de «volúpia» (cdicño de 1807, p. 23). e cm ve: de «Smiil», i. e., de E. S., Traduzido para a Música de Mozart por N.T. Bruun], Copen haga. 1816: dora-
«sorriso» (edicáo de 1822. p. 226).
vante mencionada por Tryllejl~iten.
116 Ou Ou U111 hag111c11tP tiL: Vitln

esta seja ensalada com toda a cspécie ele provacñcs dialécticas nwis signifi- se mostrn durante urn instante corno o gcraclor de fragmenta9ao, também
cativas, é um golpe ele audacia, que se atreven a ir toralmentc para alérn das as.,im se mauifcsta novamcnte ao querer unir o que eshí separado. A con-
fronteiras da música, a tal ponto que, até mesmo para urn Mezan, teria siclo scquencia da scparas:ifo é ser o desejo arrancado do respectivo repouso
impossível emprestar-lhe algum interesse mais profundo. A tendencia defi- substancial cm si mesmo e, por eonsequcncia, o objecto cleixa de entrar
nitiva nesta ópera é precisamente 1851 aquilo que nela há de nao-musical e. 1861 na clelerminac;,:ao da substancialidadc, fragmentando-se, porém, muna
por isso, apesar de alguns números de conccno perfeitos e de algumas ex- mu 1 ti pi iciclade.
prcssñes patéticas profundamente emocionadas, continua a nao ser de modo '•
Tal como a vida da planta está ligada ao solo. assim está o prirneiro es-
algum urna ópera clássica. Na.o obstante, nao podemos ocupar-nos de rudo t{idio preso ao an. cio substancial. O desejo acorda, o objecto voa, nmlrípli-
isto na presente pequena investigacáo. Só ternos ele dedicar-nos a Papageno, cc na sua maniü:sta~i.ío. o a·n~cio desliga-se do solo e entrega-se ~1 <lcambu-
o que constitui urna grande vantagem para nós. se nao por outro motivo,
entáo. que seja porque nos exime de qualquer cnsaio que qucira explicar a
lac;,:flo, a flor re<.:cbe asas e, inconstante e incansável, esvoa~.a para cá e para
lá. O desejo orienta-,'ic na dirccflio do 0bjccto, movendo-se ao mesmo tem-
--·· )

significacño da relacáo de Papagcno corn Tamino'": urna rclacáo aparente- po dentro de .si .mesmo, o coLw,:a.o palpita alegre e sadio. os objectos desa- \..

mente lí'ío aprofundada e ponderada, no que di 1. respeito ao plano geral, que parecem e aparecem rapidament.e. porérn, ant.es de cada dcsaparecimento. ('
para ponderacáo pura e simples quuse se torna impensável. urn ápice de desfrute, um instante de emoc;iío. breve mas sumamente feliz.
Para um ou outro dos leirorcs. semelhantc tratamento de A Flauta Mági­ brilhante como urn pirilampo, inconstante e incansável como o pousar de
ca poderla talvcz parecer arbitrario, tanto por ver coisas a mais em Papage- uma borbolcl<) ele Vcrao, inofensiva como esta; beijos int:ont.áveis, mas tao
no como por ver coisas a menos em todo o resto da ópera: talvcz nao rapidamente gozados que é só como se aquilo que se tivesse lirado de um
viesse a poder aprovar a nossa condura, rcsidindo o fundamento no facto de objecto fosse dado ao objecto scguintc. Pressente-se um descjo rnais pro-
nao estar de acordó connosco quanto ao ponto de partida para qualquer fundo apenas momcntanea ..mcnte, mas este pressentimento é esquccido. Rln
cornentário sobre a rruisica de Mozart. Ern nossa opiniño, o ponlo de parti- Papageno. o desejo tem por objcct.ivo a dcscoberta. l::ste apetite pela des<.:o-
da é, dcsignadnmcntc, non Juan, e simultáneamente
é nossa conviccño que bcrtu é o pulsar do desejo, a sua jovial idadc. Papagcno nao encontra. o ob-
se mostra muis veneracáo por Mozart quando se diferencia Don Juan das jecto propria.mente dito para esla descoberta. nrns descobrc o que é múlti-
restantes óperas, sem que por isso eu qucira negar a signifícacño de tomar plo, na medida em procura aí o objcct<) que quer descobriJ. É assim que o
urna ópera particular como objecto de comentário especial. desejo é acordado. mas nao está dct.crrninaclo como desejo. Recorde-se que
O desojo ardentc acorda e, tal como semprc acontece quando só se re- o dcscjo está presente em todos os tres estádios, podcnclo pois clizer-se que
para que se estevc a sonhar no instante em que se acorda, também aqui o no primcirn está determinado como aquilo que so11ha, no segundo como
sonho já acabou. Este despertar como qual o desejo acorda, este abalo, aquí.lo qnc procura e, no terceiro, como aquilo que deseja arclen1eme11te. O
separa o desejo do objecto e faculta um objecto ao dese jo. Trata-se ele urna desejo qui.: procura ainda nao é, designadamente, o <lcscjo que deseja com
dctcrminacño dialéctica que tcrn de ser rctida corn acutiláncia: so na me- ardor, só procura <1.quilo que¿ capaz de desejar, mas nfio o dcst:ja. Por isso,
dida em que há objecto, há desejo; só na medida cm que há dcsejo, há o predicado que melhor o designa será: o desejo descobre. Se compararrnos
objecto; o dcscjo e o objecto sao um par de gérneos, cm que um nao veio Papageno com Don Juan, a viagem dcste através do mundo é mais do que
ao mundo antes do outro, nern sequcr urna ínfima parte de urn instante. urna viagem de descoberta, nfio se limita a desfrutar as aventuras da viagern
Mas aposar de assim tcrem viudo ao mundo absolutamente ao mesmo de dcscobe1ta. é antes um cavaleiro que sai á li9a para triunfar (veni-vidi-
tempo C, se bem que nño haja entre eles O espaco de tempo que habitual- -vici61). A descobcna e o triunfo sao aquí o mesmo; cm. cerio sentido, pode
mente há entre os génicos. entáo, a significacño deste vira existencia nao
é ficarcm unidos, mas, pelo contrario, ficarem separados. Mas este movi- 62 Em latim no original: «cheguei. vi, vencí», frase atribuida a C. Júlio César (100 ou lOJ-
mento do sensual, este abalo telúrico, abre por um instante urna infinita _44 a. C.), dirigida ao senado para designar o modo como vencen a ílatalha de Zela. Vd.
fissura entre o dcsejo e o respectivo objecto; mas como o princípio motor «Júlio César» in Plutarco, Vidas Para/das, 50, 3 e «Divus lulius» in Suetónio, De Vita
Caessarum, 37, 4. F.m portugués: «.lúlio César». in Plutarco, Vidas paralelas, tradu\:ifo re-
vista por L. Nazaré, Lisboa: Amigos do 1 .ivro, ·¡ 975, p. 157: e também «Caio Júlio César»,
61 Papagcno e Tamino pa11ilham a hu~ca pelo amor. constituindo urn par antin6mico in Suctónio, As vidas dos Do;c Césares. vols. I-III, traducáo de Angelina Pires (vol. I) e
a a
4uanto ideia que tcm do arnor e quanto motivai;.:lío com que cnfrcntam os obstáculos Adriaan de Man (vols. Il e III). estudo introdutório e notas de Vicror Raquel (vol. I) e
a :;uperar até enconlrnrcm a amada.
Adriaan de Mm> ( vols. 11 ' 111), Lisboa Odi¡iie' Sí1'>1x>, WOó-2007; vol. I , livro I, p. 71. /
118 119

até dizer-se que, no triunfo, ele esquccc a descoberta, ou a dcscobci ta rica la<,:•fo: nJo SL: ficu causado de o ouvir urna vez atrás da outra, porque é a
para trás, e entrega-a a Leporello, seu criado e secretario, o quat elabora o cxprcssáo absolutamente udcquada para toda a vida de Papageno, se toda a
catálogo num sentido completamente diferente daquele em que eu imagino vida Ior um chilrcar imparávcl deste tipo, a soltar-se ininterrupta e despre-
Papagcno a fazer regisios em livro. Papageno selecciona, Don Juan desfru- ocupadamente corn toda a Irivolidade e, como alegre e prazenteiro por ser
é

ta, Leporello verifica. este o conteúdo da sua vida, é alegre nos scus actos e alegre no seu canto.
Sou até capaz de apresentar em pcnsamento o que é próprio deste está- Ora, como é sabido, tudo está orientado com tanta profundiclade na ópera.
dio, tal como de outro qualquer. mas apenas e semprc no instante cm que que as flautas de Tamino e de Papagcno cntram cm correspondencia urna
cessou de existir. Mas por mais que eu conseguissc descrever pcrfcitamen- com a outra. E no entanto, que diferenca! A flauta de Tarnino, 1881 se bcm
te o que 1871 lhe é proprio, explicando os respectivos fundamentos, entáo, que soja aquilo que dá o nome a obra, falha completamente o seu efeito, e
sobra semprc, afina! alguma coisa que nao consigo exprimir e que afina! porqué? Porque Tamino nem sequer urna figura musical. e isto tcm que
é

será ouvida. E demasiado irnediato para ser apreendido cm palavras. Acon- ver corno erro 110 plano gcral de tocia a ópera. 'lamino torna-se muitíssimo
tece assim com Papagcno, é a mesma cantiga, a mesma melodía: comeca enrcdiantc e sentimental ao tocar flauta, e quando alguém reflecte em tocio
lcsto outra vez do princípio quando acaba, e assim succssivarnentc. Ora. o restante desenvolvimento de Tumino, no estado da sua consciencia, de
alguérn poderla levantar-me a objcccño de que, em gcral, seria impossívcl cada vez que ele puxa a flauta e ncla toca uma pcc;a, chega-se a pensar no
enunciar algo de imcdiato, o que cm cerro sentido tarnbérn está pcrlcita- campones de Horácio (rusticus exspectat, dum defluat anmi.~h6), só que
mente certo; porém, a irnediaticidade do espírito (cm, ern primciro lugar. a 1 lorácio nao deu ao seu campones uma flauta como passat·empo ocioso. Na
sua exprcssño imediata na linguagem e, cm seguida, na medida cm que o 4ualidadc de figura dramática, Tamino está inteiramente para além do mu-
pensamento intervém e produz conjuntamente urna rransformacño, perma- sical, tal <.:orno u dcsenvolvimento do espírito. que a obra quer em geral
nece rodavia essencialmcntc a mesma, justamente porque é dcrcrrninacáo levar 1.1 cabo. é urna idcia cornpletamente nao-musical. Tamino chegou jus-
do espirito. Ao invés, trata-se aquí ele uma irnediaticidadc da sensualidadc, tamente tao longc que. por isso, o rnusical ces:r;a. Lomando-se a sua flauta
rendo, nessa qualidadc, urn meio completamente diferente e, portante, a apenas u n1 desperd ício de t·empo para dcsanu viar o pensamento. Dcsanu-
desproporcño entre os mcios torna absoluta a impossibilidadc. viar o pcnsarncnLO é coisa que a mtísica alcanc;a, designadament.e. de ma-
Ora. houvcsse eu de efectuar urn ensaio para designar com um único neira ex.ccJcntc, at.é mesmo os pcnsamentos maus, tal como é cleveras dito
predicado o que proprio da música de Mozart na parte dcsta obra que nos
é acerca de David: «desanuviou o mau humor de Saul tocando música»67.
intcressa, e di ria, cntño: é um chilrcio jovial, esfuziantc de vida, efervescen- Reside aqui todavía uma grande desilusfío,já que wl acontece lcndo apenas
te de amor. O que cu tenho ele enfatizar muito em especial é a primcira ária cm conta que a consciencia é levada de regresso a
imed.iat.ici<ladc,
e o toque de campuinhas; o dueto com Tamino<>3 e posteriormente o dueto embalando-se nela. Por isso, o indivíduo é bem capaz de sentir-se .ldi:t. no
com Papagcna'" saem fora da deterrninacáo do musical imediato. Ern con- inst.ant.e da embriaguez, mas fica tao-só cada vez rnais infeliz. Permito-me
trapartida, se se considerar a prime ira áriaú5. cntño, decerto que Iicarn san- aqui um comcnt.ário, t.otalmemc in parenthesi. A música tem sido usada
cionados os predicados por rnim usados e, atentando-se com maior porme- para curar os dementes; cm cert.o sentido. lambém o scu propósito foi al-
nor, cncontra-se ao mesmo tempo urna oportunidadc para ver qual a canc,:ado e, cont.udo. é urna ilusa.o. Quando, dcsignaclamente, a demencia
signiíicacáo ele que o musical é portador. mostrando-se aquí como a exprcs- tem uma fundamentac,:5.o mental, entao, prende-se scmpre com um endure-
sño absoluta da idcia, seudo que esta é, portante, musical e imediaia . .É cimento de um ou de outro ponto da consciencia. Este cndurecirnento tern
sabido que Papageno acompanha com urna flauta de pa a sua jovialidade, de ser vencido, mas para que, na verdade. venha a ser vencido. tem de sair-
plena de alegria de viver. Seguramente que todo e qualquer ouvido já se -se completamente do caminho contrário daquele que conduz. ¡t música. Ora
sentiu comovido por este acompanharnento ele urna rnaneira peculiar: mas
quanto mais nele se pensa tanto mais se ve, cm Papageno , o Papageno mí- 66 Em latim no original: <<o rústico espera que o rio acabe ele correr». verso retirado de
Horácio, t:pi.vlolarum, livro I, 2. v. 42: ediyfio consultada pelo autor: Q. f­lorarii Flar:ci
tico, tanto rnais se achaque tem rnais capacidade de exprcssíío e de cieno-
opem, Lcipzig, 1828. p. 228. Na traduyao porluguesa: «I::'.' como esse alde¡jo, que loueo
espera! Que se despeje o rio». p. 10.
63 Sic., O duel:o é com Pamina; Acto I, cena 14, Tryllefl~>iten. p. 37. (;7 Primeiro Livro de Samuel, 16:23: «E :;ucedia que, quando o espfrito mau. da pan.e
64 Vd. Acto II, cena 29. Tryllejl~iiien, p. 106. de Deus. vinha sobre Saul. David tomava a harpa. e a 10cava com a sua mao; entao Saul
65 Vd. Ado 1, cena 2, fryllfjkiiten, p. 6. scntia alívio, e se achava melhor, e o espfrilo mau se retirava dele.»
120 Ou Ou, Un1 Joi ag11w1110 d1: Vklu 121

quando se utiliza a música, scgue-se entño, completamente pelo carninho mente netas colocou , cntño , clas dcnotarn precisamente o que há ele inofen-
errado, tornando o paciente ainda mais demente, mesmo que ele pareen que sivo na actividadc ele Papagcno. tal como acirna sugerimos.
cessou de o ser. Dcixemos por ora o Papageno mítico. Nao nos ocupemos do destino do
Posso muito bem mantero que aquí disse sobre Tamino a tocar flauta. Papagcno real, enviamos-lhe votos de felicidades na companhia da sua
sem receio de ver que mal entendido. Nao é de todo meu propósito negar
é pequcna Papagcna, e que possam deveras buscar alegria povoando urna
aquilo que até eu varias vezes também adrniti, o facto de a música, enquan- floresta primitiva ou um continente inteiro pura e simplesmente eom Papa-
to acompanhamento, poder ser portadora de significacáo , na medida cm genos73.
que entra num domínio estranho , designadamcnte, o da linguagern; em
A Flauta Mágica, o erro reside entretanto no facto de ser a consciencia
aquilo para que tocia a obra mostra tendencia e, portante. a tendencia pro- Terceiro Estádio
priamcntc dita da obra relevar a música e, no cntanto. continua a ser urna
é

ópera, se bcrn que este pcnsarncnto nao esteja claro na obra. Como meta Este cstádio denotado por Don Juan. Tal como no que acima está ex-
é

para o scu dcscnvolvirnento, supóe-se o amor determinado cticamcnte ou o poste, nño estou no caso de ter de seleccionar urna parte particular de urna
1891 amor68 no matrimonio. e reside aí o erro fundamental da obra, pois bcm ópera; nao importa aqui separar. mas antes congregar, dado que toda a
podcm, alias, deixar o casamento ser o que quer que seja, cm tennos ecle- ópera é cssencialmcnte urna cxprcssáo da idcia e, exceptuando alguns
siásticos ou seculares, urna coisa ele nao nao musical.
é , é de facto abso-
é números, rcpousa essencialmente ncla , gravitando na direccño da ideia
lutamente nao-musical. com nccessidadc dramática, como para o respectivo centro. Por isso, surge
Do ponto de vista musical, a prirneira ária possui, portanto, a sua grande aquí 1901 de novo oportunidade para ver com que signiñcacáo posso cu
significacáo enguanto cxprcssáo musical irnediata ele toda a vida de Papa- atribuir aos estadios antecedentes essc norne , quando chamo ao tercciro
geno, e da respectiva história. a qual, cm grau idéntico áquele em que a estadio «Don Jua1,1». Anteriormente, já eu havia recordado que nao tém
música é cxprcssáo absolutamente adequada para aqueta. apenas é história
ern sentido figurado; ao invés, o toque de campainhas a expressño musical
é
nenhuma existencia em separado, e quando se torna como ponto de partida
este tcrceiro estadio, o qual todo o estadio propriarncnte dito, cntáo. nao
é
1
da actividade de Papagcno, da qual, por scu turno, se pode apenas obter podern ser tao bem observados cnquanto abstraccócs unilarcrais, ou en-
urna represcntacáo através da música, seudo que esta produz encantamento, quanto antccipacócs preliminares, mas prefcrencialmente como pressenti-
é tentadora e cativante, como quando aquele homem tocava e fazia os pci- mentes de Don Juan: só que continua. contudo. a sobrar scmpre alguma
xcs pararcm para cscutar69. coisa que de algurna maneira justifica que eu use a expressíío «estadio»,
Na gencrulidade, as réplicas que ficarn a de ver-se ou a Schikaneder, ou que eles sejarn pressentiment.os unilaterais, e que cada urn deles pressinta
ao tradutor dinamarqués/", sño tao hilariantcs e estúpidas que quuse chega apenas um lado.
a ser incompreensível o modo como Mozart conseguiu obtcr o que fez a No prirneiro estadio, a conrradicáo residia no facto de o desejo nao ter
partir delas. Pór Papageno a dizcr acerca de si mesmo: «sou urna criatura nlcancado objecto nenhum, porérn, sem ter desejado, ficou na possc do seu
da natureza»?", fazcndo assirn com que. neste mesmo agora, passe por objecto, e nao conseguiu de modo algum dcsejar ardentemcnte. No segundo
mentiroso, pode ser visto como um exemplo instar omnitun, Seria possívcí estáclio. o objecto mostra-sc na sua multíplicidade, mas enquanto o descjo,
fazcr urna cxccpcáo corn as palavras do texto da primeira ária72, quando nesta multiplicidade, procura o seu objecto, cm sentido mais profundo nao
coloca as raparigas que apanha dentro da gaiola. Se, designadamcntc. pou- obtém todavia desejo algum. nao está ainda determinado como desejo. Ao
co muis se quiser colocar nas palavras do que aquilo que o autor provavcl- invés, em Don Juan, o desejo está determinado como desejo em absoluto e, J t

cm sentido intensivo e extensivo, é a unidade imediata dos dois estádios


precedentes. O primciro estádio descjava idealmente o uno; o segundo dc-
68 A estas duas ocurrencias de <<amor>), corresponde no original «K)1rrli¡\licd». sejava o sing~lar sob a <leterminac,:ao do múltiple~, o tercei'.·o estádio é a
69 Alusiío a versos de Johannes Carsten l-lauch (1790-1872); vcJ. Ri<'r¡.:,¡11'xe11 IA Rapa- unidade daí resultante. No singular, o desejo possu1 o seu objecto absoluto.
riga dos MontesJ, in Lyriske Di¡\te 1 Poemas Líricos]. Copen haga. 1842, p. 164.
ddeja cm absoluto o singular. Nísto reside o que é próprio da sedu\:aO, de
70 Vd. acima nota 60.
71 Vd. Acto 11. cena 3, Trvllejlf)iten, p. 59.
72 Vd. acima nota 63. 73 Vd. acima nota 62.
122 121

que adiante havcrernos ele falar, Neste estadio. o desejo é por isso absoluta- uiuo, rcrci desta forma feíto o máximo que cm sentido puramente estético
mente salutar74, vitorioso, triunfante, irrcsistível e demoníaco. Nao é obvia- <­ possfvcl fazer corn o musical. O que eu, portante, quero oferecer nao é

mente de descurar que nao se trata aquí do desojo num indivíduo singular, un: corncntário corrido da música, o qual nao poderá entretanto contcr es-
mas do dcsejo enquanto princtpio, determinado espiritualmente como aqui- scncialmcntc outras coisas para além de casualidades subjcctivas e idios-
lo que o cspírito excluí. Esta ideia a icleia de genialidadc sensual, tal como
é sincrasias, podendo apenas dirigir-se a algo que lhe seja correspondente
tambérn acima sugerimos. A expressáo para esta ideia Don Juan e, por seu
é j11n10 do lcitor. Nem urn comentador tao multiíacetado e corn urna exprés-
turno, a expressáo para Don Juan é única e exclusivamente a música. Sao siio tao requintada e elaborada na reílexüo como o Dr. Hotho conseguíu
especialmente estas as duas observacócs que serño arniúde destacadas de todavía evitar que, por um lado, a sua interpreracáo degenere numa verbor-
diferentes lados no que adiante se seguc, ao mesmo tempo que é indirecta- rcia que acaba por gerar a contrapartida da riqueza tonal de Mozart. ou que
mente aprescniada a preva da significacáo clássica tiesta ópera. Para entre- soc como um eco fraco, urna pálida cópia da esplendida exuberancia intei-
tanto tornar rnais fácil ao lcitor a manurencáo de urna panorámica de con- ramcnrc tonal de Mozart e, por outro lado. nao conscguiu evitar que Don
junto, procurarei reunir observacócs csparsas cm pontos particulares. J11a11 ora se torne mais do que ele é na ópera, passando a ser um individuo
Nao é minha intcncño dizcr algo ele particular acerca desta música e, rcflcxionantc, ora se torne menos. Este último aspecto encentra fundamen-
com o apoio de todos os bons cspíritos, irci especialmente resguardar-me to óbvio no facto de o ponlo central, profundo e absoluto, de Don Juan ter
de cspavorir conjuntamente urna multidáo de predicados, insipientes. mas escapado 11 Hotho; para Hotho. conrudo, Don Juan apenas a melhor ópe-
é

muito alarmantes. ou de denunciar a impotencia da linguagem com lascivia ra, nño é qualitarivamente diferente de todas as outras óperas. Mas quando
linguística, 1911 tanto rnais ainda que nao vejo isso como urna irnperfcicáo nao se inteligiu isto corn a scguranca omnipresente do olho especulativo,
da linguagem, mas antes como urna potencia elevada, masé por isso que cntño, nao pode falar-sc digna ou justificadamente ele Don Juan, mesmo
csrou ainda mais disposto a reconhcccr a música dentro dos scus limites. O que, ti ves se ísso sido i ntcl igido, csti vcsscrn reunidas as cond i9oes para fa lar
que em contrapartida larci em parte, iluminar a idcia de tantos lados
é. sobre o assunto. ele urna rnancira mais magnífica. mais rica e, acima de
quantos os possfvcis, e 11 sua rcla9ao com a linguagern, e continuar assirn a ludo. mais verdadeirn, do que a daquelc que aqui se atreve a lomar a pala-
circunscrever cada vez rnais o territorio no qual a música habita, bern como vra. - 1921 Ao invés, continuarci a detectar o musical a partir da icleia, da
a angustiá-Ia para que irrornpa e, na medida cm que ela se Iizcr ouvir, scm situa9ao, etc., a cscutá-lo, e quando tiver cntao levado o leitor a ficar musi-
que eu possa todavía dizcr mais que nao seja: «ouve». Em minha opiniño, calmente receptivo a um grau tal que lhc parece estar a ouvir a música
terei fcito o máximo que a estética é capaz de Iazer; se screi bem-sucedido, apesar de nada estar a ouvir, eolao. terei cumprido a minha larcfa e, entao,
é outro caso. Apenas num único lugar um predicado indicará a respectiva calar-me-ei. dizenclo ao Jeitor tal como a mim mesmo cu digo: «ouve».
sinalizacáo, corno se Iosse um mandado de captura, sern que por isso eu Vós. espfritos am{iveis. que protegeis todo o amor76 inocente, a vós enco.
ven ha a esqucccr, ou a permitir que o lcitor esqueca, que quem tcm na máo rnendo toda a minha mente, fazei com que os pensamentos em laborac.:ao
um mandado de captura ele modo algum capturou a pessoa sobre quem ele possam ser dignos do objecto, moldai a minha alma como um instrumento
recaí por cssc motivo. Também tocio o plano gcral da ópera, a sua constru- harmonioso, fa1,ei com que as suaves brisas da eloqucncia corram sobre ela,
9ao interior, será objecto de comentario específico em lugar proprio, mas enviai-me o Crutuoso refrigério e a frutuosa bcrn;iio das clisposi9oes! Vós.
voltará por sua vez a ser feito ele modo a que eu nao me ponha em altos espírit.os justos, que estais de guarda nas linhas de frontcira do reino da
berros, a valer por dois: «0! bravo schwere Noth Gotts Blit; bravissimo» 75, beleza, protegei-me. para que eu, levado pela co1ú'usao do entusiasrno e
mas antes tente sernpre fazer com que o musical apareen; e cm minha opi- pela cegueira do zelo. nao fa¡;:a ele Don Juan tuclo, nao cometa a injusli9a
de o apoucar, fazendo-o diferente daquilo que realmente ele é, que é ser o
74 «Verdadeiro». i. e .. «.wnd». na primcisa ecli~ao de E11ten­Eller, e nao «sund». máximo; vós, espíritos fortes. que sabeis captar o cora9ao do homem, ficai
75 Em alemao no original: <<Oh! brnvo. grande necessicladc. raios me· livrcm. bravíssi- do meu lado para que cu possa prender o leitor, nao nas redes da paixao ou
1110>>. Cita1;ao retirada da pc~a de .lohanncs Ewal<l (1743-1781), De brutafe Kfappere, nos artificios da cloqucncia, mas na verdade eterna da convic9ao.
lragicomisk Forspil i 1 Acl lOs Brutais Mernbros da Claque. Prelúclio Tragicómico em
Um Acto J; vd. J. Ewal<l, Samlede SkrUier 1 Escritos Completos), vol s. 1-VI, Copcnhaga:
Gylden<lal, l 914-1924; vol. 11. 1915. p. 125. l. 29. Kíerkegaard volta a ulilizar esta ci-
ta9ao no prefácio ele O Co11cei10 de Angús1ia. S\! 1, vol. fV. SKS. vol. 4. p. 313. p. 280:
na 1 radu~i'io brasi lei ra, p. 9. 76 Aqoi. «K)crrlighed».
124 Oti Ou. Um l•ir1¡ 1111·11!11 lit Vldll

1. A Genialidade Sensual Determinada corno Scducao mente a ldade Médiu. Po1 tanto, a idcia pericnce ¡, ldadc Médi:1 c. por seu
turno. na ldadc Médi;J uño pcrtence a um poeta particular, é urna dcsras idcins
Nao se sabe quanclo tcvc origcm aideia de Don Juan, sabe-se apenas que prirnordiais que irrompcm com originalidadc autóctono no universo da cons-
pcrtence ao cristianismo e que, percorrendo o crisiianismo, pertence por seu ciencia da vida popular. Havia de ser a fractura entre a carne e o espirito i11
turno a Idadc Média.
..­..
Se nao fosse possívcl sczuir
._­­,
a ideia com alaurna
....
sesu-
b
uoduzida no mundo pelo cristianismo aquilo que a Idadc Média tomaría co-
ranca, recuando na consciencia humana até cssc capílulo da história univer- mo objecto de consideracáo sua e, para esse Iim. Iaria das torcas em combate.
'\
sal, urnn ohscrvac,;ao sobre a constitui<;ao imerior da ideia seria desde logo cada urna por si, um objecto da intuicáo: Ora. Don Juan, se assirn ouso di/cr,
capa7. de afastar qualquer dúvida. A ldade Média é acima de tuclo tcmpo77 da é a incarnacáo da carne, ou a inspiracáo da carne pelo genuino cspfriio da
rcprcsentac,;ao, por um la~lo, .conscicnle e, por outro~ inc9nsci~nl~;2 total e carne, o que acuna já Ioi suficientemente destacado: ao invés. aquilo para que
representado num inclivíduo singular, de mo)de. porén)1.~ m1e seja apenas UH) eu qucro chamar a atcncáo a qucstáo de saber se se eleve atribuir Don .Jun11
é

1ínico lado a ficar determinado como tota.lidade; e como ganha, enlao visihili- a Alta Idadc Méclia ou ~l Baixa Idadc Méclia. Seguramente que para qualqucr
dade nuni inclivíduo singular, o qual é. por isso, tanto mais quanto é meno~ um será fácil notar que Don Juan cstabclccc urna relacño csscncial com a
do que um indivíduo. Junl.o desse indivíduo está assim um.ottl.ro indivíduo, o cavalaria medjcva!82. Ora. ou ele é a anrccipacño divergente e mal entendida
qual como que representa toialmcnte um ourro lado do contetído da vida; do erótico, que vcm A luz no cavaleiro, ou a cavalaria medieval urna oposi-
é

assim acontece com o cavaJei.ro e o escolástico, com o clérigo e o lcigo. c,:üo ao espírito, apenas ainda relativa e, só na medida cm que a oposicño se
A magnificente dialéctica da vida é continuamente iluslrada por intlivíduos cindc ainda mais profundamente, só entño. ganhu Don Juan visibilidadc 11a
reprcscnlantcs, os quais na maioria das vezes se conl'rontam um como oulro, quulidadc daquilo que é o sensual, o qual, na vicia e na ruorte. está contra o
aos pares; a vidu cslú continuamente presente apenas suh 193111110 specie.7R. e espirito. No tempo dos cavalciros. o erótico possui urna certa parecenca com
a grande unidadc dialéctica que a vida possui na unidade sub utmque specie7Y o erotismo helénico, sondo que este é dcsignadamente determinado animica
nao é prcsscntida. Por jsso. os contrários sao na maioria das vc1.cs fadü'erentes mente tal como o primeiro, rcsidindo iodavia a difcrcnca no facto de esta
um ao oul.ro.A Idade Média nao sabia clisso. Sendo assim, n.:alfaa jnconscien- dctcrminacño anímica cair dentro de urna dctcrrninacño espiritual universal.
ternente a própria ideia da rcprescnt.a<¡:i'ío, ao passo que só uma posterior oh- ou de urna dcterminacáo tida como totalidacle. A ideia ele feminilidadc esl:.í
serva~ao ve a idcia aí contida. Se. para a sua própria consciencia, a ldadc conunuamcnte em movimcnto de multas maneiras. nao sendo este o caso no
Média supoc um inclivíduo como representante da icleia, entao, a seu lado e helenismo. no qual cada urna era apenas uma indiviclualiclacle bela sem que
ern rcla9iio com ele. supüc de bom grado um outro indivícluo; é comum ~cr fosse pressentida a feminilidade. Tambérn por isso, na consciencia da ldadc
esta rclac,:1ío uma relac,:1ío cóntica, sendo que um dos indivíduos como que Média, o erótico do cavaleiro estabelecia urna relacüo de algum modo conci-
'\
corrige a desproporcionada grandeza do outro cliante da vida real. G assim liatória como espirito, se bem que o espíritu, na sua ciosa 1941 scvcridadc. o
1' mantivesse sob suspeita. Ora partindo de que no mundo se supós o priucípio
que. a seu lado, o rei temo bobo, Fausro tem WagnerK0,Do.!!iQui.xore_,S(l11c/Jo
Panf¡a81; Don Juan, Leporcllo. Esta forma9ao lambém pcrlence essencial- do cspfrito, ou se imagina que primeiro surgiu a oposicño rnais flagrante, n
\.). separacño que mais brada aos céus, atenuando-se clepois gradualmente. e Don
77 «Idee». 11a primeira edi\ao de fi1tl1!11·liller. Juan pcricnce nessc caso a Alta lclade Média; ou, proceclenclo inversamente.
78 Expressfío latina usada no rito católico para designar a comunhao pelo pao. admite-se que a rclacño se loi progrcssivamente clesenvolvendo até atingir
79 Exprcssao latina que designa a comunhao pelo pao e pelo viuho. esta oposicño absoluta e, assirn sendo, também é mais óbvio, na medida em
80 Criado de f'austo no Fausl de Goethe. Entre 1835 e 1837 Kierkegaard recolheu que o espirito retira cada vez mais as suas accóes da socicdadc anónima para
inúmcros ele1m:ntos de investigai;ao sobre a leuda de FauMo. distribuklo1> por cerca de
sesse11ta e1nraclas dos diários e cadcmos: o projccro foi abandonado ap6s a publicai;i'ío
agirsozinho, produzindo-se por essa via o oxavocLf..ov!l> propriamcnic dilo
do opúsculo de Hans L. Mancnscn ( 1808-1884) Ueber l.e11au'.~ Fwm !Sobre o Faust de e, cntáo, Don Juan pertence a Baixa Idade Média. Somos pois levados até ao
Lenau], Estugarda. 1836, o qual constituía a úll.ima parte de 11111 outro escrito. «Bctrag- ponto no tempo no qual a ldade Média está prestes a erguer-se, e também aí
tninger over Ideen aj'f'aust. Mcd 1 Jcnsyn paa l.e1wus hlllsl>> IOb:-crvac,;éics ~obre a Idcia
de Fausto. Com Rcspcito ao Fausto de Lenauj. l'erseus, .loumal .fin· de11 spec11/alive
fdee IPcrscu, Jornal para o Pensamenlo Especulativo]. edi9i\o de .J. L. l lciberg. n.u 1. traduc;ao de C. D. Biehl, vols. 1-IV. Copenhaga. 1776-1777; e a al.cma. Don Q11ixore von
Junho de 1837. Copenhaga, pp. ')1-164. /..a Mancha. tradui;.:ao de Heinrich Reine. vols. 1-II, Estugarda. l 837.
81 Kierkegaard possuía dua& tradt196es da obra de Cervantes: a di11n111arquesa. LJun 82 «Middelalderem>. i. c., «a ldadc. \llédia». na prirneira edic;ao de tirtlen-t:ller.
Quixote aj ;\tfunchas lel'!1el ug Bedri(ter [Vida e Pcitos de Don Q11 ixotc da Mancha]. 83 Ern grego no original: «escándalo».
12(i Ou Ou, Un1 l•10¡·111r111u dl· Vid11 127

encontramos urna ideia aparentada. designadamcruc a idcia de FHU1'to, so que corno aquilo que h<í de ser cxclufdo, como aquilo com que o espirito nada
Don Juan tem de situar-se um pouco mais cedo. Na medida em que o espirito. qucr rer que ver. scm que rodavia este tivesse ainda pronunciado um juízo
ao estar única e exclusivamente determinado como espirito, abdica dcste sobre cla, ou a tivesse condenado, o sensual assurne assim essa forma, a for-
mundo, sente que o mundo nao é meramente a sua casa, se bem que afina! ma do demoníaco na indifcrenca estética. É apenas um assunto do instante,
nao scja também o seu palco, retirando-se para as rcgiócs mais altas; deixa ludo depressa se modifica, tambérn a música cntáo acaba. Fausto e Don Juan
assim para tras o mundano como espaco de recreio para o poder, como qua! sao os titas e gigantes da Idade Média, nao sondo diferentes dos da Antigui-
sempre vivcu em Juta, e ao qua! cede agora o lugar. Na medida em que o es- dado pela grandiosidade dos esforcos, mas cortamente por se erguerern isola-
pírito se desprende da terra, a scnsualidade mostra-se assirn com todo o seu dos. por nao criarem urna uniáo de forcas que só se tornaría titánica através
poder, nada tcm a objectar contra a mudanca, tambérn lhe inteligível que
é da uniáo; mas toda a forca fica reunida nesse único inclivíduo.
ganha ern ficar separada, e alegra-se com o facto de a Igreja nao permitir que Don Juan é pois a cxpressáo para o demoníaco, determinado como o
continuern juntos. mas corta o elo que os unia, Mais forte do que alguma vez sensual, Fausto é a cxpressáo para o demoníaco, determinado como o
antes cstivera, a scnsualidade despena agora com toda a sua riqueza, com espiritual que é excluido pelo espirito cristáo. Estas ideias cstabelecem
tocio o regozijo e júbilo e, tal como a solitaria habitante da natureza, a rcscr- urna relacáo csscncial urna coma outra , e térn mu itas parecencas; portan-
vada EcoK4 (que nunca fala primeiro a ninguém ou nunca fala sem a tcrcm 10. poder-se-ia esperar que tarnbérn tivcsscrn cm comurn rerern ambas
interrogado, encontrando grande contento na trompa do cacador e nas suas sido preservadas numa (enda. É sabido ser este o caso de Fausto. Existe
cuncóes de amor, no latido do eso, no rcsfolgar do cavalo, nunca se cansando um livro popular cujo título é sobejamcntc conhecidot", se bem que o li-
ele o repetir vczcs a fío e, por fim. rnuito suavemente para si mesma, para nao vro tenha menor uso. o que é especialmente curioso nos nossos tempos.
o csqucccr), também assim o mundo intciro se tornou urna morada que por nos quais tanto se tem trabal hado a idcia de Fausto. Assirn acontece quan-
tocio o lado Iaz ceo do cspírito mundano da scnsualidade, ao passo que o es- do urn qualquer profcssor ou docente livre em ascen~ao87 .• alguém ama-
pfrito havia abandonado a terra. Na Idadc Média ouvia-se muito Ialar de um durecido espirilualmenle. cm sua opiniao, ganha créüito junto da corle do
monte que em mapa nen hum se encentra denominado monte de VénusK5. público leitor ao publicar um livro sobre Fausto. no qual repele fielmente
É onde habita a scnsualidadc, éonde habiiam as suas alegrías bravías, pois é o que todos os outros licenciados e confirmantes811 científicos j¿\ haviam
de um reino. de um estado, que se trata. Ncstc reino, nao habita a linguagem. dito; em sua opiniflo, podem ter a ousaclia ele clcscurar um tal livrinho
ncm a sobriedade do pcnsamento, nern os aladigados afazercs da rcflcxáo, popular e insignificante. Nunca lhe ocorrc como é al'inal tao bclo que a
ncssc reino ouve-sc sirnplcsmente as vozes clcrncntais da paixáo, o jogo da verdadeira grandeza seja comum a tocios, que um campónio se dirija a
volúpia, o ruído bravío da embriaguez. nesse reino desfruta-se simplesmcntc vit'.1va do TribJerH9 ou a uma cantadeira da Halmtorv90• e leía para si a
com eterno folguedo. O primogénito deste reino é Don Juan. Nao se quer com
isto dizcr que o reino do pecado, ciado que tal facto tcni de 1951 ser apreen-
é
86 Relato lcndário da vida do Doutor Johann Faust (c. 1490-c. 1540), mágico e alqui-
dido no instante ern que se mostra corn indiferenca estética. Só se mostra mista, e do scu pacro com o cliabo. A primcin1 cdi((fío cm dinamarqucs é De11 i den
como reino do pecado, quando entra em campo a reflexño, mas ncssa altura gandske Vel'llen hekie11dte F:rt::,- Sort- K1111s1ner og frold-Kur/ Doclor Johan Frwsl, n¡¡
Don Juan está morto, a música cala-se, vé-sc apenas o desafio desesperado /fans med Dievelen oprellede Forhund, For111ulri11g.~fulde Lev11el ug skra:kkeliRe E11de-
que contra ela vocifera impotente, sern que todavía encontre consistencia al-· lig1 {O Mundialmente Conheciclo Alquimista e Aprendil de Peiticciro. DouLor J. F., o
Scu Pacto como Diabo. a Sua Vida Adminívcl. e o Scu llorrcndo Finall, Copenhaga.
guma, nem mesmo nos sons. Na medida ern que a sensualidade se rnostra
s. d.: vd. ig~ah11ente Ein Volkshiichlein 1 Um Livrinho Popularj, edic,¡ao de L. Aurbachcr.
vols. 1-11. 2." edi<.,:ao, Muniquc: 1835: vol. Tl.
84 Vd. nota 32 no capítulo «Diapsal111ata». 87 Alusao ao opúsculo de H. L. Martcnsen. Vd. acima nota 80.
85 A ideia ele um lugar-origem para a sexualieladc remonta a primcirn mctadc do sécu- 88 Aqui. «Confir111ander>>, os que se preparam para reccber o sacramento da Confürna9ao.
lo xv. e consta das 'fo1111hauserballaden 1 Baladas ele Tannhiluscrl, transcrita~ pela pri- 89 Elisabelh Margrethc Tribler hcrdou o negócio do marido em 1818. e nos livros e
me ira vez no início do século xvr: edi~ao consultada pelo autor: Der Ta1111hiiuser 10 can((oes que cditava ligurava a inscri9ño cm que se identificava como «viúva do cnca-
Tannhiiuscrj, in Des K11obe11 W1.111derhom. Alte deutscl1e l .ieder 1 A Trompa Mágica do dernador»: <~J::. M. Trihler. Bogbinder Enke. Holm~~nsgade114.>> l'or seu turno. Hilarius
Rapaz. Poemas J\lcmaes Antigos], cdi<;ao de L. Achim von Arnim e de C. Brentano, Bogbinder. o alegre encadcrnaclor que cdiW Stadier paa Livets \l¡~i IEstádios no Can:ti-
vols. 1-111, 2." edic;:ao. Heidelberg, 1819; vol. l, pp. 86 e segs. Vd. também De~ Knabe11 nbo da Vida). é viúvo. e evoca crn várias instancias o papel determinante da falecicla
Wwulerhom. /\Lte deuls<'he Lieder, edic;:ao de L. Achirn von Arni111 e Clcmcns Brentano, esposa para o cabal desempcnho das suas fun<.,:i'íes de pai e de cncadcrnador.
posfácio ele Willi A. Koch, Munique: Winkler Verlag. 1964. pp. 60 c ~cgs. 90 Antiga pra9a de Copenhaga. hojc a Radhusplads, a Prn9a do Município.
128 129

e 0 teatro no qual se movlrucnta. É tarnbérn assim possível , na lclade Mé-


meia-voz, ao mesmo tempo que Goerhe cornpóc urn poema de Fo11s19'.
E na verdade , este livro popular merece ser tido em conta , tcm acima de dia, ouvir contar histórias ele hcróis construidas com um tal vigor que lhes
ludo o que se elogia como urna qualiclade louvável no vinho, tern hou- punharn rncio palmo entre os olhos, mas se um hornem cornurn subisse ao
quet, é um excelente produto engarrafado que vem da Idacle Média e. palco mostrando cara de qucm tcm meio palmo entre os olhos, entáo, o
quando se abre, derrama sobre um individuo um aroma tao perfumado, cómico fica em pleno undamento. O que se disse a respcito da lenda de
delicioso e característico que, estranhamente , acabamos por ficar como Don Juan nao havcria <le encontrar aquí lugar, se nao cstabeleccssc urna
ele. Mas já basta disto, 1961 quería simplesmente chamar a atcncáo para o relacáo mais próxima com o objecto <leste cstudo, se nao servissc para
facto ele nao se encontrar qualquer lenda deste tipo acerca de Don Juan. conduzir o pensamento até ao objectivo anteriormente determinado. O
Ncnhum livro popular, nenhurna balada. scmprc publicada este ano92, motivo pelo qual esta icleia, em comparacáo com Fausto, tern um passado
preservou Don Juan na recordacáo. Presume-se que até tenha existido tao pobre reside corn tocia a certeza no facto de ela encerrar algo de mis-
urna lencla, mas rcstringiu-se, corn roda a probabilidade, a um único e só terioso, cnquanto nao se inteligiu que a música era o seu meio propria-
inclício, porvcntura aincla mais breve do que as escassas cstroles que mente dilo. Fausto é idcia, mas urna icleia que, ao mesmo tempo, é essen-
constitucm o fundamento de Lenore de Bürger'", Talvcz contivesse urna cialmente um individuo. Imaginar o demoníaco espiritual concentrado
mera indicacño numérica, pois pode ser que eu esteja rnuito enganado, num único individuo 1971 é consequéncia própria do pcnsamento, contra-
mas o presente número de mil e Lrcs pertence a urna lcncla. Urna lencla que riamente ao facto de nfüner possível imaginar o sensual num único indi-
nao contivesse mais nada parece urn tanto pobre e, conquanto seja fácil víduo. Don .luan está no contínuo pairar entre ser ideia, ou seja.. f'or9a,
de explicar que nao tcnha sido recolhido por escrito, esse número é urn vicia - e indivíduo. Mas esse pairaré a vibra9ao musical. Quando o mar
se movc agitado, ncsse dcsassosscgo, as ondas espumosas formam enlfto \ ' '
excelente atributo, urna ousadia lírica, cm que rnuitos tal vez nem rcparcm
por estarern tao habituados a vé-lo'": Se bcm que esta ideia nao renha imagcns scmelhantes a scres96; é como se fosscm estes seres a po-las em
encontrado urna expressño assim muna lcnda popular, entño , ficou preser- movimcnto e, contudo, passa-sc o inverso, é a 011<.lulac;ao que cría as ima-
vada ele urna outra maneira. R sabido que Don Juan, há muiro tempo, gens. É assim 4ue Don Juan é uma i111age111 4ue se torna continuamente
cx istiu , designadarncntc como peca burlcsca95, terá decerto sido propria- visívcl, mas sern adquirir figura ou consistencia, é continuamente criado,
mente esta a sua prirneira existencia. Mas a ideia foi aquí concebida do mas nunca l'ica pronto, nada se capta da sua história além de escutar o
ponto de vista cómico, sendo no gcrat de assinalar que a ldudc Média foi barulho das ondas. Quando Don Juan é aprccndido dcsLa maneira, tudo se
tao_ l~sta a rnunir-se de ideáis quaruo a ter a certeza de ver o cómico que reveste entao de sentido e de profunda significar,:ao. Se cu imaginar um
residía na grandeza sobrenatural do ideal. Fazcr de Don Juan um fanfar- inclivícluo singular, se eu o vir, ou se eu o ouvir falar, entao, passa a ser
ráo. que se imaginava como tondo seduzido todas as raparigas, deixando cómico que ele tenha seduzido mil e tres: assim que ele G um in<livícluo
que Leporello acreditassc nas suas mentiras, nao era certamente urn plano singular, a énfase recaí inteiramente noutro lugar, sublinhando, designa-
gcral cómico que tossc desafortunado ele tocio. E nao tivesse siclo este o damcntc, qucm ele seduziu e como secluziu. A ingenuidade da cren9a
caso, nao tivessc sido esta a concepcño, a viragern cómica nunca poderla. popular e da kncla é capaz ele enunciar tais coisas sem deixar pressentir o
entño, ter deixado de aparecer, já que cla reside na oposicáo entre o herói cómico, o que para a rcf'lexao é impossível. Ao invés. quanclo Don Juan
( J• ( . ~ '1
é concebido por música, entao, tenho nao um indivíduo singular, tenho o
poder da natureza, o demoníaco, que fica tao cansado de sccluzir ou ele dar
91 c:;oethe ocupou-se de Faust. em diferentes fases de escrita, entre 17<ft) ~ 1832. a seclU<;ao por terminada quanto o vento fica cansado de bramar, o rnar ele
92 A época de Kierkegaard, esta era urna frase de inscrir,:ao frcqucntc na capa das
encapela'r-se, ou uma cascara de precipitar-se da sua altura. Aliás, o nú-
edicñcs de contos e de leudas populares.
93 Goufried August Bürger ( 1747-1794), poeta alemáo autor da balada «Lenore» mero de seduzidas pode também ser um outro qualquer, muitíssimo
( 1774). a partir de urna tradicño oral, na qual se narra a histeria ele urn rei morro, Wi-
lhelrn, que vern durante a noite buscar a sua amada para a levar para o scu túmulo; vd.
Biirgers Gediclue [Poemas de Bürgcr], Gotha. 1828. pp. 48-57. Vd. nota 102 ern «Diá- 96 Tal como consta da gravura CXY. com a legenda «Welle11111iidche11» LOndinas]. na
rio do Sedutor». obra de W. VoUmcr, Vol/s1andiRes Worterbuch der Mytlwlogie aL/er Na1ionen [Dicioná-
94 <<A ouvi-lo», i. e .. «at hore det»; na segunda edic;;ao de Enreu-Ellcr, rio Completo da Mitología de Todas as Na9oes], Estugarda, 1836. na posse de Kicrkc-
95 A vld.f!..~)on Juan foi difundida através da Europa por grupos de teatro ambulan- gaard; rcproduzida cm SKS, vol. K2-3, ilustra9ao 18, p. 129. Doravanle. esta obra é
te, e também pelo teatro de marionetas e ele fantoches. mencionada pelo nome do autor.
1.lO Ul

maior. Nao é amiúde um rrabalho fékil, quando se qucr traduzir urn libre- IH)I
·L C •>H . I''!.ll t 1'ctanto
< ,
por c~séncia
• ' ,
1 lércules é todavia diferente de Don Juan;
to de urna ópera, fazé-lo com tanto cuidado que a traducño nao vcnha nao é scdutor ncnhurn. Quando, dcsignadamente, se pensaAnº.ªm..or ~rego,
simplesmente a ser cantável, mas antes, quanto ao sentido, esteja razoa- cnlao. de acorde corn 0 respectivo conceito, ele é.Pº'. ~ssenc'.a fiel , Jl:sta-
velmente em harmonia como libreto e também coma música. Exernpli- mente por ser anímico. e aquilo que casual no individuo singular e ele ':;;
é

ficando como isto pode as vczcs ser de todo indiferente, mencionarei a :ul1arvan<s. , ias e ern relacño as
(y'·
>.;
várias que ele ama é por seu ...tumo
• - .•
casual em
-óxirna "
·,,
7
grandeza do número na lista de Don Juan. sern que por isso leve o assun- cada vez que ele ama urna nova; enquanto ama urna, nao pcns~ n~t p1~x . ·
to da maneira lcviana com que o povo em geral a aceita, opinando que é Ao invés, Don Juan radicalmente um sedutor. O scu am<~r nao e p~1ql1JC_?·
é

de pouca monta. Pelo contrario, tomo o assunto com um elevado grau é antes sensual' e o amor sensual, ?e .acord_? como rcspecttv.o ~once1to, nao ,,.> '· <'
estético e sério e, por isso, em minha opiniáo, a grandeza do número é é fiel. mas antes absolutamente infiel; nao ama urna, mas sim todas, ou
indiferente. Quero apenas louvar urna qualidacle do número mil e tres, é scja , ele scduz todas. É amor, nomeadamcnte. apenas no ~1o~ento. mas, 1~0
nomeadamente ímpar e casual, o que de modo algum é irrelevante, dá conceito, · o m omento é pensado ·e como a soma dos momentos, obtendo .
nos
designadamente a impressáo de que a 1 ista nao está de todo fechada, mas o
assim 0 sedutor. amor do cavaleiro é portante anímico e, por isso. dec?r-
que Don Juan, pelo contrario, prosscguc para diante; quase se chega a re do respectivo conceito ser por essencia fiel; de acordo como rc~p~~tlv?
lamentar Leporello, o qual, tal como ele próprio diz97, nao deve simples- conccito sé 0 amor sensual é cssencialmente infiel. Mas esta ~ua infideli-
mente estar de vigía a porta, antes 1981 deve além disso manter urna con- dadc m;stra-se dcsignadamcntc rambém de urna 0~1tra man~"~"· torna~sc
tabilidade tao circunstanciada que daria que fazer a um escriturário de continuamente apenas L1111a rcpctic,:ao. O amor ?ním1c? pos~u1 1)91 cm s1 ~
expediente com rnuita prática. dialéctico cm duplo sentido. Em parte. possui cm. si, des1g1~adamcntc., a
Tal como a sensualidadc está concebida cm Don Juan - cnquanto prin- dúvida e 0 dcsassosscgo. se bem que tambérn que1ra ser .feliz, ver o seu
cípio - , nunca antes havia sido concebida no mundo; por ísso, o erótico c.lesejo99 cumprido e ser amado. O amor sens~al ~5o p~ssu1 est<~ pre~cup~-
está igualmente determinado por mcio de um outro predicado. o erótico é 'ÍÍO. Até um Ji1piter100 estt) inseguro e.Jo seu tnunlo, e nao pode ser ~e ou~a
aqui seducüo . É bastante curioso que o helenismo tenha plenamente falta ~mancira, · nem m e'mo s ele 1-oderÍ'I
, ' dcseJ·ar oue
·1
fossc de outra 111ancira. Nao .•
da ideia de um sedutor. Nao é de todo intcncáo minha querer elogiar o é c.:stc 0 caso ele Don Juan. ele abrevia o proccsso e tcm sempre de s~1.
helenismo por tal facto, pois é bastante notorio para todos que, tanto os pensado como vencedor absoluto. Poclia parecer urna vantagem .s~1a; n~as
deuses quanto os horncns, cram pouco escrupulosos nos seus casos amoro- trata-se afina! propriamente de urna pobrela. Por um lado, o a~no1 c1n11111co
sos; também nao é intcncáo minha culpar o cristianismo, pois com efeito o tem igualmente urna segunda dialéctica, é, designadamenlc, d1ferc~tc tam~
cristianismo tern táo-somente a ideia fora de si mesmo. O motivo pelo qual bém na rela1rao com cada indivíduo que é o objecto e.lo. arnor. Reside aqui
o helenismo carece desta ideia reside no facto de toda a vida helénica estar a sua riqueza, o seu pleno conteúdo. Nao se passa ass1~ c~m. D~n, Juan_-
determinada como individualidade. É assim que o anímico é o predomi- Nao tem, designadarnente. tempo para tal, para ele tuc.lo se limita a ser u~i
101 e cm certo sent1-
nante ou o que está sernpre ern harmonia com o sensual. Por isso, o amor assunto do momento. Ve-la A e am á - ¡ a era urnas ·6 coisa
, ' '
helénico era anímico. e nao sensual, seudo isso que infunde a modestia que
repousa sobre tocio o amor grego. Apaixonavam-sc por urna rapariga, rno- 9S Aos dezoito anos. Hércules matou um lcáo fcrocíssimo que atormenlav.a a rcgiáo ~o
viam céu e terra para chegarem ~1 sua possc; quando eram bern-sucedidos,
o
.t .. :-
monte C L ei ,10.
rei Tés¡)ÍO reccbeu cm sc.,uida Hércules cm sua casa e ofercceu-lhe ,1s
· º . · . " d Ylillmer
suas cinquenta filhas para que c~tas pudcsscm concebcr horncns cor,\JOS<.>s. v · ·
talvcz cmáo ficasscrn cansados, e procuravam novo amor. Na inconstancia,
deceno que podiarn ter urna certa parecenca com Don Juan e, para citar p. 833. ,,n1t1.~ke>> e. duas linhas adianle, «descjar» corresponde
99 Aquí. «desejo» tracluz , "'
a
apenas um, Hércules poderia bem contribuir com urna lista bastante consi-
forma vcrhal «1~nske». . ·. , - e i ·ódios
derável , quando se pondera que se encarregava por vezes ele famílias intei- lOO Júpiter. na mitologia romana, e Zcus, na grega, pro1.agon1zam lllurneros P s
ras. chegando-se a contar até cinquenta ftlhas e, na qualiclade de gcnro eróticos. · E ,
LO¡ Alusao a urna réplica de Charles, na pec.a de Augustrn ugene ·en e é, .
s
·h L ,~ premiers
• .·
da familia, clava conta de todas elas, segundo alguns relatos, numa única
amours. que fundamenta o capítulo «0 Primeiro Alllor» em Ou- º'.';
.vd. A. l:.. Sci.ibc,
Denjórste Kjcerfighed. f.ys1spif; een. Act 10 Primciro Amor.. Comedia e1~ Um ~cto),
97 Y d. a primeirn <íria de Leporello, Notte e giorno fatticar ... , em que o servo se quei- . ,- d J L Hcihero Det kon.<>eli<>e Theaters Repertoire (Repert.6110 do leatro
tiac1 u<;ao e . · · e' 0
" . 64 't 1
xa de ter ele ficar na rua, cnquanto Don Juan está dentro <le casa com a seduz.ida, nesse Real de Cope1lhaga], n." 45, Copcnhaga, 1832, cena 16, p. 13. Vd. nota no cap1 u o
momento, Donna Anna. «Diário do Scdutor>>.
112
\ .., \ e

do, podía dizcr-sc isso acerca do amor unímico. mas tambcm nqui !.!.-.ta o hcrói, o improvisador , pode alongar-se tanto quanto ele quiscr. Ora o
meramente sugerido um comeco. No tocante a Don Juan, aplica 1-C de ma- poeta entrará na multipl icidadc, que sempre será o suficiente para lhc dar
neira diferente. Ye-la e arná-la é uma sé coisa. e isso é o momento. no alegría. mns nunca alcancará o efcito que Mozart alcancou, pois mesmo
mesmo momento ludo acaba, e repete-se o mesmo no infinito. Ao pensar que finalmente rerrninasse , nem havcria. cornudo. de chegar a dizer metade
que o anímico está em Don Juan, torna-se assirn urna ridicularia ou urna daquilo que Mozarl cxprirniu ncssc único número. Ora Mozart nao se dei-
autocontradícño, que nem decorre da ideia, colocar mil e trés em Espanha, xou levar pela multiplicidacle, trata-se ele cortas graneles formacñes que
Torna-se um exagero que produz um cfcito perturbador, mesmo que se passarn cm movirncnto. Estas cncoruram a respectiva razáo suficiente no
queira imaginar que está a ser pensado idealmente. Se nao se dispuscr de proprio rncio, na música. que é demasiado abstracta para exprimir as dife-
outro mcio para dcscrcver este amor que nao seja a linguagern, cai-sc numa rencas. A cpopeia musical torna-se assim algo proporcionalmente breve,
situacño cmbaracosa, pois assirn que se abdicar da ingenuidade que. com possuindo todavía. de urna rnancira incornparável. a qualidadc épica de
toda a inocencia, é capaz de sustentar que em Espanha havia mil e tres, conseguir permanecer tanto quaruo se qucira, dado que é possívcl. desig- I
cntño , exige-se algo rnais. designadamcnte , a individualizacáo anímica. O nada mente, comecar sernpre do início. e ouvi-la urna vez atrás da outra, J ,,
estét ico nao fica de modo algum satisfcito por via de se pór ludo no mesmo justamente porque o universal está cxpresso na concretudc da imcdiatlci-
saco. e qucr surpreendcr pela grandeza do número. O amor anímico dadc. Nao se ouve aqui Don Juan na qualidade de individuo singular. nao
movirnema-se justamente na rica multiplicidade da vida individual. na qual -.e ouvc o scu discurso. ouvc-sc antes a vo«, o clamor da . ensualidade.
os maiizcs constituern aquilo que é propriamcnte significativo. Ao invés, o ouvindo nós isto através da clangucscéncia da fcminilidacle. Só dc!.sa ma-
amor sensual pode por ludo no mesmo saco. O csscncial é para ele a fcmi- neirn pode Don Juau tornar-se épico, estando conlinua111cntc a terminar e
ni lidadc, total e abstracta, e, no máximo. é a diferenca rnais sensual. O continuamente a comc<rar de novo. pois a sua vicia é a ~oma <le momentos
amor anímico é subsistir no tempo. o sensual é desaparecer no tempo, mas que se rejeitnm, O!> quab, cnquanto momento. ncnhum cncadeamento pos-
o rncio que o exprime é justamente a música. A música está cxcclcntcmcn- suem; enquanto momento. a sua vida é a soma de momentos e, cnqu111110
te moldada para o cxecutar, dado que é multo mais abstracta do que a lin- soma de momentos. é o momento. Nestc comum universal, ncsle pairar
guagcm, nao enunciando de todo o singular. mas antes o universal em toda entre ser indivíduo e ser l'orya da naturcza, 11011 está Don Juan: as!>im que
a sua universalidadc c. cornudo. nao enuncia esta universalidadc dentro da se torna indivíduo. o e\tético adquire categoría!> inteiramcnte clifcrcntcs. É
abstraccño da reflexño. mas antes na concrerudc da imediaticidadc. 11001 por isso perfcitamentc adequado e portador de profunda signilica9üo inte-
Como cxernplo do que qucro dizcr, irei discutir com muis algum pormenor rior que, na sc<.iu~ao que decorre na pe9a. a ele Zerlina lll', a rapariga seja
a segunda ária do criado: o catálogo das scduzidas. Este número pode ser urna camponcsa comum. Talvcz os estéticos hipócritas. os quais. vcstindo
visto como a epopcia de Don Juan propriamcntc dita. Se duvidas da juste- a pele de quem cntende os poetas e os compoc;itores, em tudo contribuern
za da rninha afirrnacño. realiza este experimento: Imagina urn poeta, habi- para este mau entendimenlo. nos impuscssem que 7,crlina é urna rapariga
litado pela naturcza com rnuito rnaior fclicidadc do que qualquer outro incomum. Quem quer que seja desta opiniao mostra que entendcu Mozart
antes dele. dá-Ihc abundancia de cxpressüo, dá-lhc domínio e autoridadc mal e que utiliza categorías erradas. Que cntendeu Mo1arl mal é bastante
sobre os poderes da linguagcm. faz com que tudo aquilo em que há o cspí- claro, poi-; Mozart diligenciou por manter Zerlina tao insignil'icanle quanto
rito da vida lhc scja obediente, submisso ao seu ínfimo gesto, l'az com que possível, algo a que também Hotho104 est<1 atento, sem que veja. porém, o
a
ludo csicja pronto e disposto espera da voz ele comando, fa¿ corn que se motivo profundo. Se. dcsignadamente, o amor de Don Juan tivesse sido
rodeic de um numeroso grupo ele artilharia ligcira, de mensageiros de pés determinado de outro modo que nao fosse o c;ensual. se ele tivesse sido um
l estos 102 que no scu rapiidíissuno
. voo trazcrn o pensamemo, fa1 com que ~cclutor de significa~ao espiritual, algo que posteriormente passará a ser
nada lhe escape, ncrn o menor dos movimcntos, faz com que nao lhe reste objecto de observayi\o, cntao, havcria um erro fundamental na obra: a he-
segredo algum, coisa alguma impronunciável em todo o mundo - dá-Ihe roína da seduc;fio, com a qual nos confrontamos na obra do ponto de vista
cm seguida a tarcfa de cantal' Don Juan cm epopeia, dcsenrolando o catá-
logo das seduzidas. E qual será o resultado? - Nunca mais acaba. O épico
103 A4ui. Don Gimw111i, Acto 1, cena 9; Krusc. p. 26. Todas as personagens da ópera
tcm o dcfeito, se assim se quiser, de poder alongar-se tanto quunto quiser, mozarti.ana ~tio designadas pelo nomc original. e nao pelas variantes cla adaptn~ao de
Kruse. utiliL.adas por Kierkegaard.
102 Alusño aos epítetos atribuídox por Homero a Mercúrio en Aquiles. 104 Vd. Hotho. Vors111dic11.pp. 109-110.
134 011 Ou. ll111 1•111n11K·11tu ¡1,. id.1 115

~ramático, é urna pcquena camponcsa. A estética cxigiria assim que lhc o quc de s1g11il'icavao para mostrar o musical cm Don Juan. Na Antigui-
é

t1~ess: sido. a~ri~uída urna tarefá rnais difícil. Ao invés, estas difcrcncas dude, o sensual cncontrou exprcssáo na quietude silenciosa das artes plás-
nao sao aplicávels a Don Juan. Se cu conseguisse imagina-lo a conduzir ricas, 110 mundo cristáo, tinha de fervilhar com toda a sua impaciente pai-
sc~nelhante conversa acerca de si mesmo, tal vez entño ele disscsse: «Incor- xño. Ora, apesar ele também ser possível dizer, desta maneira, com verdade
reís em erro, nao sou urn qualquer homem casado que necessite de urna que Don Juan é sedutor, esta expressáo, que pode fácilmente produzir um
rapar~ga incomum para vira ser feliz; aquilo que me torna feliz, qualqucr cfcito perturbador nos fracos cérebros de alguns estéticos, tern dado fre-
rapan~a o tcm e, por isso, Iico com todas clas.» É assirn que térn de ser qucnrc ocasiáo a mau entendimento, na medida cm que se reuniu toda a
entendidas as palavras a que anteriormente recorri: «Até as coquetes de especie ele coisas que acerca disso pudcsscm dizcr-se, transferindo-as, sem
s_~ssenta>), ou noutro passo: pur che porti la gonella, voi sapete que! che mais, para Don Juan. Urnas vezes, puseram a descoberto toda a sua propria
.fa105. Para Don Juan, cada rapariga é urna raparíga comum, cada aventura dissirnulacáu ao seguir no encalco da de Don Juan, mitras vezcs, ficararn
de amor é urna historia do quotidiano. Zerlina jovcm e linda, e é urna
é roucos de tanta conversa para explicar as suas maquinacóes e argucia. ern
mulher, isto é o incornum que ela tem em cornum com centenas de curras suma, a palavra «sedutor» deu ocasiáo a que cada urn lhe fizesse oposicáo
mas isto nao é o incornum que Don Juan desoja ardentemente, mas antes~ como rnelhor podía, contribuindo com o scu 6bolo107 para um mau entcn-
~omum. universal que cla tem em cornurn com qualquer das mulhcres, Se dimcnto total. Ao falar de Don Juan, lcrn de utilizar-se a palavra «scdutor»
1~t.o assun nílo acontecer, cntño , Don Juan ccssa de ser absolutamente mu- com grande cautela, desde que seja mais conscqucnte dizcr uma coisa acer-
sical e, enuto, a estética exige a palavra, a réplica, ao passo que agora, co- tada do que dizcr seja o que f'or, nao porque Don Juan seja demasiado bom,
mo no caso presente, Don Juan 6 absolutamcnrc musical. Qucro esclarecer mas porque el.e nem sequer entra em determinac;oes éticas. Por isso, prefiro
a construcño interior da obra tarnbém de um outro ponto ele vista. Para Don chamar-lhe impostor, dacio que sempre aí reside, contudo, algo que é mais
J~1a11. Elvir:1 é urna perigosa i~1imiga; as réplicas que dcvcmos ao tradutor equívoco. J>ara ser sedutor, é sernpre necessário ter uma cena rcflexao e
dinamarqués desracarn-no rnuuas vczes. Por Don Juan a falar é corn toda a uma certa consciencia e, assim que clas estao presentes, pode entao ser
certeza um erro, mas daí nao resulta que a réplica nao houvesse de contcr este o lugar para falar de maquina\:OCS, e de ciladas astutas1os. Falta a Don
urna obscrvacño particularmente boa. Don Juan, portaruo. leme Elvira. É Jtian esta consciencia. Por isso, nao seduz. Deseja ardentcmente, e esse
prcsumív~I que um ou outro estético, dando seguimento a
sua opiniáo 11021 desejo procluz um efeito geraclor de sedu\:ao; ncsta medida, ele seduz. Des-
para exr~licar cabalmente tal coisa, dcsenrolassc urna longa conversa fiada, fruta a satisfa\:aO do clesejo; assim que a clcsfrurou, procura entao um novo
que Elvira urna rapariga incomum. etc. Tuclo isto falha o alvo. Para Don
é objecto, prosscguindo assim infinitamente. Por isso, certamente que enga-
Juan, cla pcrigosa porque é seduzida. No mesmo sentido, exactamente no
é na, mas 11031 na.o de modo a planear a sua impo¡;tura de antemao, é o pró-
1~esmo sentido, Zcrlina torna-se para ele perigosa quando é seduzida. As- prio poder da scnsuaiidade que cngana as seduzidas, e csse poder é antes
~tm. que scduzida, é elevada a urna esfera rnais alta, há nela urna consci-
é uma espécie de Némesis 109. Ele deseja com ardor e continua scmprc a de-
cncra que ?ºn Juan nfio pos~ui. Por isso, para ele, Zerlina perigosa,é sejar. desfrutando continuamente a satisfar;ao do descjo. Para ser sedutor,
Portante, 11~10 é outra vez por vra do casual que cla é perigosa para ele, mas falta-lhe o tempo para deline:u previamente o seu plano, e o tempo para
antes por via do comum universal'P". posteriormente ficar'consciente do seu agir. Um sedutor eleve por isso estar
. P~r conse?uin~e, Don Juan sedutor, o erótico nele scducño. Ora com
é é na posse de um poder que Don Juan nao tem, por mais bern equipado que
i_slo d1z-~e ale muuo, quando 6 entendido corn corrcccáo, e pouco. quando de resto se enconlrc - o poder da palavra. Assim que lhc damos o poder
e entendido com urna certa falta ele clareza geral. Já vimos que 0 conceito da palavra, cessa de ser musical. e o intercsse estético torna-se completa-
de s~dutor, no que dj~ rcspeito a Don Juan, fica modificado na esséncia, na mente diferente. Achim v. Arnim110 fala algures de um scdutor de um esti-
medida ern que o objecto do seu desejo ardcnte o sensual e apenas este,
é

107 O episódio sobre o mau entcndimento do óbolo da viúva consta do Evangclho de


Marcos, 12:41-44.
105 Em_ita~iano nu original: «basta que andern de saias. /e 1-:abeis 0 que ele faz», os dois 108 Vd. Epístola de Paulo aos Efesios, 6: l l: «Revesti-vos de toda a armadura de Dcus.
versos t111a1s da ána do catálogo. para que possais estar firmes contra as astutas ciladas do diaho.»
106 Ao longo deste parágrafo. traduziu-sc «det Almindelige>>por «cornurn universal» d.e 109 Vd. nota 32 no capítulo «Diapsalmata».
modo.ª rnanter o paralcJismo corn o uso do correspondentc adjectivo <<afmindelig». 11 O Esta é a única referéncia explícita em Ou-Ou a novela de L. Achim von Arnim.
traduz1do aqur por «comum». · 11.rmul, Reic/11h11m, Schuld 1111d Buj.Je der Grii)7nDolores LT'obreza, Riqueza, Culpa e
011 011 ll111 1 1 a¡.:1111.:1110 de Vtd.1 117

lo imciramente diferente, um sedutor que entra cm dctcruuuucóc-, cricn .... w~ parn ele, cm comparncao com nquilo que éo nsxunto pri11c'.p;.d: ~c.r urna
Para talar dele. utiliza urna expressño que. na verdadc, na ousadia e na mulhcr. Rcjuvcncscc a-. muis vclhus na bela rncia-idadc da lem111d1da_de:
concisño. é quase comparável a urna arcada de violino de Mozart. Di1. Ar- 1111a-.c amadurccc as novinhas num ápice: rudo o que for rnulhcr consr.1tu1
) nim que ele era capaz de fular de tal modo com urna mulher que, se o diabo p1l·~a sua (pur che porti la gonella voi sapete que! che ja). No e~tanto, isto
o apunhasse, entño, tinha conversa para se livrar do diabo, se conscguisse 11t111 é para ser cnte11dido de modo nenhum como se a sensuahdade <lclc
chcgur a fa lar com a bisavó dele 111. Este o scdutor propriamcntc dito , o
é
lo\Sl! ccgucirn; instintivamente, ele sabe fa1.cr muito bem a diferct~<,.:a e,
interesse estético tambérn aqui é outro, designadamente , o como. o método. ~ ,1l 11na de tudo. ideaJiza. Se. por um instante, cu voltar a pensar aqut num
Por isso, reside urna coisa muis profunda, que tal vez tenha escapado aten- a l''>tadio anlerior, no pajem, cntfio, talvez o leitor se recorde daquilo ~ue eu
9ao ele muitos, no facto de Fausto, o qual reproduz Don Juan, seduzir ape- JI' anles dis'>Cra, ao comparar urna réplica do pajem co~n urna répl1cn de
nas urna rapariga, ao passo que Don Juan seduz as centenas; mas. assim, 1 )on Juan. Fn~o parar 0 pajcm mítico, e mando o verdade1ro asscntar prn9a.
esta única rapariga é, portante. seduzida em sentido intensivo e dcstruída ( )1 a -.e cu imaginasse que o pajcm n1ítico se havia libertado e se pusera em
de urna maneira completamente diferente de todas as outras que Don Juan 111ovimcnto. cntao. recordaria eu aqui uma réplica do pajem que asscnta
cnganou, precisamente porque Fausto, enquanto rcproducáo, contém em si hc111 em Don Juan. Chcrubino ao saltar da janela para fora11\ designada-
a dererminacño do espirito. t\ fon;a de um scdutor deste tipo é o discurso. 111c11rc (ioeiro como um passarinho e atrevido. causa uma imprcssao tao
' o .
ou seja. a mentira. Ouvi há día uro soldado a talar com um segundo acerca lortc cm Su\anna que cla quase de-.maia; quando depois ela volta a s1, cx-
de um terceiro que havia cnganado urna rapariga; nao forncccu urna descri- rla111a: «Vede como ele corre - nao é que vai lcr succsso com as rapa-
<,;i'ío circunstanciada e. cornudo, a cxprcssño que usou era inteiramcnrc 11gasl» 1111 Trata-se, designada.mente, de uma coisa muilo hcm dita p~r Su-
adcquada: «conseguiu a coisa com mentiras e coisas assirn». Semclhantc -.anirn. e 0 fundamento do dcsmaio nao está na mera rcprcscnta9ao do
sedutor é de um tipo completamente diferente do de Don Juan, na sua c~r a11cvido salto, rnac; antes no facto de ele já ter tido suces~o com cla. Opa-
séncia é diferente dele, como pode ver-se pelo facto de quer ele, quera sua fClll. designa<lamcntc, é o futuro Don Juan, scm que isto tenha de ser enten-
actividade, sercm nño-rnusicais cm alto gran e, do ponto de vista estético, dido de urna mancirn tño L'isfvel como se o pnjcm se tornasse Don .Juan
se situarcm dentro da dcterminacño do intcressantc'!", Tambérn por isso. o quando tivcsse mais idadc. Ora Dl>n Juan nao se limita a ~cr feliz com .ªs
objecto do seu desojo, urna vez estcticarnente pensado da rnaneira corta. é 1 aparigas, ele torna as raparigas foli1cs e - infelit.es. roa~ é ha~tante cuno-
algo rnais do que meramente sensual. Sil .,erem clas a quererem que a~sim scja. e seria urna rapanga horrfvel.
Mas que especie de forca é cssa coma qua! Don Juan seduz? G a forca aquel a que nao <lcscjasse1 is ser infeliz por t.cr sido fcl iz com Don Juan uma
<lo dese jo ardcntc, a energía do desejo sensual. Deseja em cada mulher toda ve1.. Se continuar por is<>o a chamar sedutor a Don Juan. entao, de modo
a Ierninilidadc, e nisso reside o poder sensualmente idealizantc, como qual algum o imagino como alguém que delineia os c;cus plano~ perfidamentc,
ele embelcza ao mesmo tempo que triunfa sobre a sua presa. O reflexo 11041 rn111abilizando com astúcia os efeitos das suas intrigas; aqullo com que l:lc
desta gigantesca paixáo cmbeleza e dcscnvolve a desojada, que ganha o éngana é a gcnialidade da i;ensualidacle, sendo que ele é como se fosse a
rubor de urna belcza acrescida pelo resplendor do rcflcxo. Tal corno o íogo im:arna<;ao dessa genialidade. ralta-lhc a circunspecc;ao tia csp~rteza: a sua
do entusiasta ilumina com brilho scdutor até aquclcs que, nao sondo os vida é espumosa como o vinho 4ue lhc dá fon;as, a sua 11051 .v•d~ move-:e
visados, corn ele cstabelecern relacáo, tarnbérn ele transfigura cm sentido como os sons que lhe acompanham os repastos, é semprc lnunlante. Nao
muito muis profundo qualquer rapariga. dacio que a sua relacño com ela é
11ccessita de ncnhuma preparairíio, de nenhum plano geral. de tempo nc-
uma relacáo csscncial. Por lsso, todas as difcrcncas finitas dcsaparecern de nhum, porque está scmprc pronto. a forc;a e tá, dcsignadamente. semprc
ncle e. portanto, no dcscjo ardente. e só está realmente no seu elemento
Peniréncia da Condcssa Dolores]. vols. 1-Il. Berlim, 1810; vol. II. p. 21. Na obra de quando deseja. Senla-sc a
mesa, ergue o copo. alegre con~o um deus -
Arnlm, o seduror da Coudessa acompanhava a disposicño das scduzidus: era sensual levanta-se de guardanapo na rn5o, pronto para o ataque. Se Leporello o
corn as scnsuais, obscrvava a moral comas moralistas. e orava corn as religiosas. Vd.
dc~pcrta a rneio da 110ite. acurda sempre seguro do seu triunfo. Mas esta
Achim von Arnim. Sümtliche Romane und Er:llhlu11gen [Romance!' e Narrativas Corn-
pletos]. cdicáo de Walrhcr Migge. vols. 1-111. Munique: Carl llansen. 1962· 1965: vol.
Ul. 1965. p. 248. Vd. igualmente notas 2 e 3 em «Prcfácio», 1 13 Fígaro, Aclo II, cena 4; Givtermaal, pp. 55-58.
J 11 Exprcssáo coloquial que significa «fular de coisa nenhurna». l l4 A frase ocurre apenas na versao de 11nrnn, <iivtermaal, p. 58.
112 Enquauto categoría estética. Vd. nota JO ern «Prctácio». 115 Aqui. «í)nskede».
138 ( )11 011 l 111 l '1 :l)'llll llhl (k 1d.1 1 \()

f~rc;a, este poder, a palavra níío conscgue exprimi-lo, só a 111ú1,jcn pode 11 vcu vubvrxrir, ante'> se uprcssa nu111 eterno desaparecer, justamente como a
oferecer-nos urna reprcscntacáo .. a qua! nao pode, designadarncntc, ser 111ú<,ic~1. da qual se aplica dizcr que acaba quando cessa de soar, e s6 vcm
enunciada pela rcñcxáo e pelo pensarnento. Posso distintamente por cm novamcntc ;, cxisténcia na medida cm que volta a soar. Por isso. mesmo que
palavras a argucia de um sedutor com urna determinacáo ética, e a música cu vies ... e aqui lancar a qucstáo de saber qual o aspecto de Don Juan. !>C é
é

arriscar-sc-ia cm víío a curnprir tal tarcfa. Com Don Juan passa-se o inver- hc!o. se é jovern ou mais velho, que idadc aproximada rerá. entño, mais nño
so. Que especie de poder este? - Ninguém o pode dizcr, mesmo se eu
é Sl'r::í do que urna mera acornodacáo da minha parte; e aquilo que acerca dis-
pcrguntar a Zerlina antes de ela ir para o baile 116: «Que espécie de poder é 'º posxívcl dizer apenas pode esperar encontrar aqui lugar com a mesma
é

esse com que ele te prendc?» - rcspondcr-me-ia: «Nao se sabe»; e dir-lhc- .,ignificai;üo que urna seita tolerada o enc.:ontra dentro da lgrcja Oficial ele
-i~t ~u: «M~it~ bern dito, minha filha ! falas com mais sabcdoria do que os 1 ~~lado. É hclo. nao muito jovem; a haver de propor uma idadc. proporia
sabios da India. richtig, das weijJ man 11ich1117: e que infclicidadc níio ser trinta e !Tes anos, designadamente. a idade de urna gcn1<;iio. Quando se csl<l
eu também capaz de to di/cr,» cnvolvido cm inves1iga90cs dcstc tipo. dá que pensar o facto de facilmcntc
Essa forca cm Don Juan. essa omnipotencia. cssa vida, só a música é \l: perder o total, na medida cm que nos detemos no singular. como se ro~sc

capaz de exprimir. e nao conheco outro predicado alérn deste: jovialieladeé por intermédio da si1a beleLa, ou por conta do que para além disso fosse
exuberante de vida. Por isso. quando Krusc póc Don Juan a dizer, ao entrar po~sívcl nomear. que Oon Juan scdu1.; vcmo-lo, cntao. mas j:.i nao estamos a
na cena da boda de Zerlina: «Décm larga a jovialidade. mocos! Até já es- ouvi-lo e, por via disso, perde-se. Orn se cu, na medida do possível. quisesse
ta is vestidos para a boda!»11x. está pois a dizer urna coisa intciramcntc por isso fa7.er a minha parte para ajudar o leitor a ter uma inrui9ao de üon
cerra e, ao mesmo tempo, algo mais do que ele talvez este ja a pensar. Quan- Juan, <liria: «ve, ci-lo, ve como os olhos dele flamejam, como os lábios se
lo ~1 jovialidade, é, dcsignadamcntc, ele próprio quem a traz consigo c. no abrem num soll"iso, tüo certo ele está do seu triunfo; observa 1.1 scu olhar
respeitante a boda. o facto de estarern todos vestidos como que para urna majestáti<.:o, cxigindo o que é de César121, ve como ele entra ligciro na dan~a.
boda nao dcixa de ter significacño, visto que Don Juan nao simplesmente
é com que orgulho estendc u mao. como está fcli1 aqueta que lha pede» - ou
hom~m para Zcrlina, antes festeja com jogos e cuncñcs as bodas das jovcns entao, iría diz.er: «ve, ei-lo na sombra da floresta, encostado a uma árvorc,
raparigas por tocia a paróquia. Nño admira. portante, que se juntcrn a sua acompanhaudo-sc a
viola, e ve, desaparece além urna jovcm rapariga por
voila as alegres raparigas. E tarnbérn nao ficam dcsiludidas. pois ele tern entre as {u·vorc '.angustiada como urna cor9a ~elvagem, ma!:> ele nao se aprcc;-
que chcguc para todas. Elogios, suspiros, olharcs atrevidos. apertos ele mño !la. ele sabe que ela o procura: ou emao, iria cliz.er: ei-lo que repousa na
suaves, secretos sussurros, a perigosa proximldadc, a tentadora distancia rnargem do lago numa noite clara. tau bclo que a Lua fica parada a reviver o
- e estos apenas sao afinal os mistérios menores 119, prendas antes da boda. amor da sua juventude, tilo belo que as raparigas jovens da cidade muilo
Para Don Juan. motivo de júbilo lancar os olhos sobre tao rica colhcita,
é dariam para conseguir escapru· até ali e aprovcitar a escuridao do instante.
cncarrega-se ele toda a paróquia C, contudo, nao lhe CUSta talvcz tanto tem- enguanto a Lua se crguc ele novo para iluminar o céu, para o beijar» - se eu
po quanto aquclc que 1 .eporcllo gasta na contabiliclacle. fizcss1; isso, u lcitor atcnLo cliria: «ve, lá estragou ele 1.udo pura si próprio, foi
Arravés do que aqui foi desenvolvido. o pensamcnto é de novo dirizido ele mesmo qucm es4uecL:u que Don Juan nao é péU'a ser visto, mas para ser
até ñquilo que é propriarncnre o objecto da investigacño: Don Juan absolu- é ouvido». Portanlo. Lambém nao é isso que eu vou fazer. ames digo: «Ouve
tamente musical. Ele deseja sensualmente, scduz coma Jorca demoníaca da Don Juan. digamos que se nao forcs capa7. de obter urna representac;í.io de
scnsualidade, 11061 todas seduz. Nao lhc asscntam palavras e réplicas; cntño Don Juan ouvindo-o, entiío, nunca lambém o conseguirás. Ouve o comc<..;o
passaria prontamente a ser um individuo reflexionanret-". Nao é este de todo da sua vida; tal como o relfunpago se desprende da escurid5o das nuvens da
trovoada. também ele assim irrumpe <lo abismo da. crieclade, mais rápido do
116 Don Giovanni. Acto I, cena 18. que o curso do relámpago, rnais inconstante 11071 do que ele, e todavia com
117 Em alemáo no original: «cerro, isso nao se sabe». a mesma cadencia; ouvc como se despenha na mullíplkidacle da vida. como
118 C'ila<,:iío livrc a partir de Kruse.Acto 1, cena 8, p. '26.
119 Na Antiguidade grega, celchruvam.sc cm Fcvereiro os mistériox menores de Eléu-
sis. e cm Setembro o- misterios maiores. seja. o conhccimcnto gcrado provém contínua 1:: concomita.ntemcntc, no scu co111cúdo e
120 O scduror reflexionante é Johanncs, o protagonista de «Diári« do Scdutor», capítu- no scu pron:s).a1111::nlo, da razao e da sensibilidadc.
Jo do qual podcrá dizcr-se que. a partir de urn objecto. a scduzida (Cordel ia e mu itas 121 Vd. Matcus. 22:21: «f>isscram-lhc eles: De César. b1tao ele lhcs dissc: Dai, pois, a
curras). se cria um conceito de scducáo do qual a 1(12.<'ío náo se encentra excluida, ou César o 4uc é de Cé.<.ar, e a lJeus o que é de Deus.»
Ou (Ji1 \J111 l•111g1111..•111n d¡• Yhl11 1111
140 :-ln•111 1 t( 1 l t•vw11d

irrompe contra as suas sólidas represas; ouvc esses sons do vinlino , ligciros um cloito tentador. mas 1150 tentador para a produtividade poética. Segura-
e dancantes, ouve os sinais de alegria, ouvc o júbilo da votüpia, ouvc a bca- mente que a música de Mozart tem gerado rentacño, pois deceno que have-
titude festiva do desfrute, ouve u sua fuga bravia; corrcndo, ultrapassa-sc a rá por af um jovcm que, na vicia, tevc instantes nos quais teria dado metade
si proprio, sernpre mais rápido, sempre mais inconstante; ouve a concupis- da sua riqueza para ser urn Don Juan, ou tal vez toda ela; teria dado metade
cencia desregrada da paixáo, ouve o sussurro do amor, ouve o murmurio da do seu tempo de vicia. ou talvcz a vida toda, para ser Don Juan por um ano.
tentacáo, ouve o remoinho da seducño, ouve a tranquilidade do instante - Mas arravés da música tarnbérn as naturezas mais profundas passaram a ser,
ouvc, ouvc, ouve o Don Juan de Mozart.» 122 assi m, tocadas por essa 11081 ideia, encontraram ex prcssa na música ele
Mozart cada urna e tocias as coisas, até a brisa mais suave; cncontraram na
grandiosa paixáo da música de Mozart a plena cxpressáo sonora para aqui-
2. Outras Adaptacóes de Don Juan, Observadas na Relacáo lo que no próprio interior delas se movimentava. aperceberam-se de como
com a Concepcáo Musical cada urna das disposicócs aspirava a essa música, tal como o ribeiro corre
veloz para se perder na infinitude do mar. No Don Juan ele Mozart, estas
Como é sabido, a ideia de Fausto tem siclo objecto de urna multiplicida- naturezas encontraram quasc tanto texto quanto comentario e, enquanto se
de de conccpcóes; ao invés, de modo algurn é este o caso de Don Juan. o dcixavarn levar para cá e para lá pela música, gozavam a alegria ele se pcr-
que até podía parecer cstranho, tanto mais que esta última ideia designa urn dcrem ganhando ao mesmo Lempo a riqueza da adrniracño. No que a isto
capítulo do dcscnvolvimcnto da vida individual muito mais universal do rcspeita. a música de Mozart nao era exccssivamente rcstrita, pelo contra-
que a prirncira. Entretanto, torna-se fácil de explicar justamente pelo facto rio, as suas próprias disposicóes dilatavam-sc. assurniam urna dimensáo
ele o fáustico prcssupor urna maiuridadc espiritual de urna tal naturcza que sobrenatural, na medida cm que se reencontra va cssas disposicóes ern Mo-
torna urna conccpcüo bastante mais natural. Acrescente-se o que cu acima zart. A~ naturezas inferiores, as quais nenhuma infinitude prcssentern, ne-
recordei no tocante a circunstancia de ncstc sentido nao existir urna lcnda nhurna infinitude conccbcm, aldrabócs que se tomavam a si préprios por
de Don .Juan, de se terem feíto sentir sérias dificuldades no que diz respei- um Don Juan por terern bcliscado urna camponesa na face. por tcrcrn abra-
to ao meio, até Mozart ter dcscobcrto o rncio e a idcia. Só a partir do ins- cado urna criada de servir, ou por tcrcm despertado o rubor nurna douzeli-
. tant.e em que a ideia alcan9ou a sua vcrcladcirn dignidadc, voltando assim, nha, nao cntenderam obviamente nern a idcia, ncm Mozurt, nern mesmo
mais do que nunca, a preencher um per(odo da vicia individual, porém. de como produzir um Do11 Juan que nao fosse urna monstruosidade ridícula,
modo tao satisfatório, que o ímpet.o para extrair poeticamente o que foi um ídolo de família, o qual, diante dos olhares sentimcntais assumidos por
vivido na fantasia nao veio a existencia como uma necessidade poética. algumas primas, talvez parccesse um vcrdadeiro Don Juan, a quinta-
Trata-se novamente de urna prova indirecta do valor clássico e absoluto das -esséncia <le toda a dignidade de amar123. Neste sentido, Fausto nunca
óperas rnozartianas. Nesta perspectiva, já o ideal havia encontrado a sua uinda encontrou urna expressño e, como acima observado, nunca pode
exprcssao artística cm tao consumado grau que poderia decerto produzir encorurá-la, dado que a ideia multo rnais concreta. Urna concepcño de
é

Fausto pode mereces que lhe charnern perfeita e, cornudo. urna geracño
seguintc dará a luz. um novo Fausto, ao passo que Don Juan, devido ao
122 Na vcrsfío de Kruse. cm ve"!. da irnita~aodos passos da estátua do Comendador por carácter abstracto da ideia. vive eternamente em todas as épocas, e querer
Leporello («ta ICI fa ta ta ta»), Lcporello dirige o ouvido de Don Juan para o som dos fazer um Don Juan depois ele Mozart será sernpre como querer cscrever
pa~sos da cstát.ua, exclamando: «Hf>r. hf>r. h¡tirh>; Kruse. Acto 11, cena 19. pp. 121-122. urna Jlias post Homerum'I", num sentido ainda mais profundo daquclc corn
No entanto, esta secyao celebra a plenitude de vida em Don Juan. cm vez de prcssagiar
a sua morte e descida aos infernos. Ganha pertinencia a inclicayao avan9ada original- que é aplicado a 1 tornero.
mente por Georg Brandes: trata-se muito provavclmcnt.c da citai,;ao indirecta da frase Ora, se bem que aquilo que foi acirna dcscnvolvido se manteuha igual-
conclusiva de uma fala do «Epílogo» (que na realidade é o «Prólogo») da obra de Lu- mente cerro, tambérn de modo ncnhum se concluirá, contudo, que urna
dwig Tieck, Die verkeltrte Welt [O Mundo as Avcssas]; vd. Georg Ilrandcs, lloveds· dada natureza de talento nao houvesse de ensaiar-se para conceber Don
trflmniger i del 19 de aarhundredes Litteratw: Forelre.rninger holdte ved Kj(libenhavns
U11iversi1et 1 Foraarshalvaaret 1873 [Principais Correnres da Uteratura do Século
XIX. Conferfincias Proferidas na Univer.vidade de Copenhaga no Primeiro Seme.1tre de J 23 No original. <<F.lksvrerdighed». termo que no capítulo «0 Primeiro Amor» é unnbém
1873]. Volume JJ: Den romanriske Skole i Tyskland IAEscola Romantica na Alemanhal. traduzido por «qualidadcs cstimáveis».
Copenhaga: Gylclendalske Boghandel, 1873. pp. 146-147. 124 Em latim no original: «urna Ilía<la pós-homéric:a».
142
14:\
n
Juan de urna outra maneira. Qualquer um sabe que a~ coisas SI.! pasxam qucm csclnrccc 110 título que é «em pa1te segundo Moliere». Ora tal coisa
assim, mas porventura nao fez a inda reparo no facto de o arquétipo de (odas é 11091 int.eiramentc exacta. mas a pec;a ele Heiberg possui afina! urna gran-
as outras concepcóes ser essencialmente o Don.Juan-áe Moliere125: mas de vantagcm face a de Moliere, urna vantagem certamente fundamentada
este, por seu tumo, com efeito muito mais antigo do que o de Mozárr;
é
na seguranc;a do olbar estético com que l lc-iberg sempre conct.:bc as suas
além de ser cómico, e relaciona-se com o Don Juan de Mozart como 1:Hn tarefas: o gosto com que sabe fazer distin<,.:i'.fos. mas nao é irnpossívcl; con-
conto (Je fadas de Musaus'?" se relaciona com urna adaptacáo de Ticck~27. tudo, que no caso presente o prof. Heiberg tivessc sofrido a. influencia ín-
Tendo isto em conta, posso propriamente restringir-me a discutir o Don clireera da concep<;ao de Mo:1.art de molde a ver. designadamente, corno
Juan ele Moliere e. cnquanto procuro avaliá-lo do ponto de vista estético, Don Juan tem de ser concebido. sempre que nao se pretenda que a música
avalio simultánea e indirectamente as out1:as ~onccp5oe?. No :nt<~nto, l~uero seja a expressao genuína, ou que se pretenda introdu7.i-lo soh categorias
abrir urna cxccpcáo como.Don Juan de1 l le1herg1~. E o proprio Heiberg estéticas completamente diferentes. O prof. Hauch também trahalhou num
Don J11an129, em condi<;ocs de ser incluído na catcgoria do intercssante.
125 Jcan Baptiste Poquelin ( 1622-1673), dito Moliere. e Don Juan 011 le [estin de pi erre
Portanto. passando eu agora a discuür a segunda formar,:ao de concep96es
[Don Juan ou o Convidado de Pcdra], de 1665. sao amplamcruc comentados ao longo
dcsta seceso. a partir ele tradu1;i'fos da época que Jutroduzcm um numero siguificativo de de Don Juan, também nao ncccssitarei ccrtamenle ele recordar o Jcitor de
alreracóes ao original. Edicño consultada pelo autor: Don Juan eller Sieengiccsten, Skues­ que tal niío ocorre na pequena investiga<_;fü.1 aqui presente por ca.usa própria
pil ifem Optoge [Don Juan ou o Convidado de Pcdra, Peca ele Teatro cm Cinco Actos 1. sua. mas apenas para esclarecer a signifü:ar,:fl.o da concepc,:ao musical ele
in./. B.!'. Molieres urlrolgt1'Skuespi! [Pecas Escolhidas de J. B. P. Moliere!, tradTi"ªº de uma maneira mais completa do que anteriormente havia sido possível.
K. 1 .. Rahbck, Copenhaga. 1813; vol. 1, pp. 171-258. Doravantc a obra é mencionada por o ponto de vfragcm na con¡;ep~ao de Don Juan já acima foi designado
Molieres udvalgtc Skucspit, seguido de iudicacño de pagina. Para um cstudo uprofuodado clestc modo: assim que lhe dfío réplicas, tuclo se transforma. A reflexfío
da rclacáo entre Kicrkcgaard e Moliere. vd. Ronuld Grirnslcy, «Kicrkcgaard.and IQ~ D_on
Juan Legend. 1. Kierkcgaard as..!!. <;_riti.c ~· .\1oli~rCl,>,Jn Seren Kierkegaard 1111d PrP11ch
que, designadamentc. motiva a réplica reflecte-o para l'ora da ohscurida-
Literature, Carditf: Univcrsity of Wales Press, 1966, pp. 11-25. cle. na qual ele é apenas audfvel por m(1sica. Tendo isto em conta, pocleria
126 Joha1111 Karl August Musiius ( 17~5- l n7), autor alemño de aventuras fantásticas; parecer que a melhor mancira ele con<.:eber Don .luan seria porvcntura
edi9í'ío cousulrada pelo <tutor: Muslius· volksmarchen der Deutscheti [Cornos Populares comoTha/fot J'fambém é sobejamente sabido que já l'oi assim concebiclo13º.
d1)~ Alcmács, por Musaus], edi9ño ele Christoph Martin Wiclund, vols. l-V. Viena. 1815- No e~tanLo.' esta concep9ao tem de ser elogiada por ler reconhcciclo as
-1816.
suas forc,:us e, por isso, circunscreveu-sc a cena final. na qual a paixao de
127 Obras des ·e tipo do autor na biblioteca de Kicrkcgaard: Johann Ludwig 'I'ieck
( 1773-1853). Pluuüasus, Eiu« Sanunlung vun Mührchen, J::r<,iihlw1ge11, Schauspielen
Don Juan haveria de ser mais facilmenlc visívcl no jogo muscular da
und Nove/len !Pha11t.<1Sl1S. Urna Corupilacño de Conros, Narrativas, Pecas de Teatro e pantomima. O resultado é noval'nente nao estar Don Juan apresentado de
Novellerú, ecliyao de L. Tieck , vols. 1-111, Bcrlim. 1828. e Sii111mtli<:he Werke [Obras acorclo coma sua paixao esscncial. mas de acordo como casual, e o carta1.
Completas]. vols. 1-U, París, l837. de scmelhante representai;:ao comém sempre mais do que a pei;;a; di:l o
128 A traducño de Heiberg <la peca de Moliere é na realidade uma versño livrc, na qual cont.eúdo, designadamente, que é Don Juan, o seclutor Don Juan. ao passo
1 leiberg introduz coufcssadamente elementos que a aproximarndo teatro de marionetas; ciue o ballet quase que apresenta apenas os tormentos do desespero, cuja
vd.1>011 Juan. Skuespit i jire Acter ! Don Juan. Peca cm Cinco Actos], in Murionetthea-
ter [Teatro de Marionetas], Copcnhaga. 1814. pp. 1-94; e Don Juan. in J. L. Ileiberg:
expressao, conguant.o scja apenas pantomímica, é algo que ele tem em
Samlede Skrifter. Skuespi! [Escritos Reunidos de J. L. H. Teatro], vol s. !-VII. Copenha- comum com muitos out.ros desesperados. Em Don .luan. o esscncial nao
ga, 1833-1841; vol. VI. 1836, pp. 173-275: nesta edicño. ligura o scguintc subtítulo: pode ser aprcsent¡.¡do em balleL, e qualqucr um sentc facilment.c quao ri-
«Tildeels efter Moliere» 1 «Em Parle. Segundo Moliere»]. Johau Lucl vig Heiberg, poeta,
dramaturgo. e filósofo de succsso ao longo de varias décadas na Dinamarca, bcm como
tera?r Vintersa:d» 1 «Semente de Inverno Literária»], in lmelligensblaúe [Polha dos In-
crítico e tradutor de pecas de teatro, ocupou o cargo de director do Teatro Real de Co- telectuais] n." 24, 01.03.1843; vol. 11, pp. 285-292).
penhaga, a partir de 1849. Unanimemente reconhecido como filósofo e, cm especial,
129 Johannes Carsten 1-lauch, natural.isla dinarnarques; vd. Don .luan, in Gregoriu5 den
como o introdutor da filosofia hegeliana na Dinamarca, foi professor da cadeira de Syvemle og Don .l11a11. To Dramaer lGregório VII e Don Juan!, in Dramatiske Vwrker
Lógica, Estética e l.itcraturn na Real Academia Militar; autor desde 1830 de diversos
íOhras Dramáticas 1, vols. 1-lli. Copcnhaga. 1828-1830; vol. U, 1829, pp. 137-270.
trabalhos de naturcza filosófica, e editor de varios periódicos. As referencias a Heiberg 130 Don Juan, ou le festin de Pierre, criado cm Viena ern 1761, música de Christoph
em Ou-Ou sao elogiosas, numa fase em que Kierkegaard aspirava ainda a ver o seu
Willihald Gluck (1714-1787) e corcografia de GasparnAngiolini (1731-1803), bascado ;·
talento rccon.heciclo por Heiberg e a escrever para as mencionadas publicac¡:oes. A rup- a
na pec¡:a de Moliere. Levado cena na coreografía de Vincen~.o Galeotti ( 1733-18161
tura leve lugar após a publi.cac;iio da recensao a Ou-Ou, da autoria de Hcibcrg, «Lit-
no Teatro Real de Cope11haga em 1781.
144

dículo seria ver Don Juan enfeiticar urna rapariga através dos scus passos ajuda nao sal is fu, visto que, por csséncia, nño compete a sernelhante indi-
de danca e de gesticulacóes engenhosas. Don .luan é urna deterrninacño víduo triunfar. e exige-se crise do conflito.
dirigida para dentro, e nao pode pois tornar-se visívcl ou manifestar-se A rc~i&l.Cncia que o indivíduo tem para combater pode ern parte ser ex-
nas formas do corpo e nos respectivos movimcntos, ou corn harmonía terior, nao residindo tanto no objecto como no mundo que o rodeia, e pode
plástica. encontrar-se parcialmente no proprio objecto. A primcira é aquela de que
Ora mesmo que nao se quiscsse atribuir réplicas a Don .Juan, pcderia rnais se térn ocupado todas as concepcóes de Don Juan, porque se reteve
todavia imaginar-se urna conccpcáo de Don Juan que apesar disso utilizas- o momento da ideia de havcr de ser ele a triunfar, enquanto erótico. Ao
se a palavra como rneio. 11101 Semel han te concepcáo real mente tambérn invés. destacando-se o outro lado, só cntño rico ern crer que está abcrta a
existe, é de Bynm131• É certo e seguro que Byron estava apetrechado de perspectiva para urna concepcáo significativa de Don Juan, a qua! irá 11111
modos diversos para aprcscntar urn Don Juan e, por isso , possível ter a
é criar urna imagem de contraste corn o Don Juan musical, ao passo que
certeza de que, fossc csse emprecndimcnto mal-sucedido, o motivo nao qualqucr conccpcño que se encontre entre estas duas contém sempre im-
residiría em Byron, mas em algo muito mais profundo. Byron ousou Iazer perfeicñes, No Don Juan musical, ter-se-ia assim o scdutor extensivo e, na
corn que Don Juan viesse a existencia para nos, ousou contar-nos a sua outra, o intensivo. Este último Don Juan é cntao aprcscntado nao corno
vida na infancia e na juventude, ousou construí-lo a partir do contexto de rendo chegado ~ possc do seu objecto através dc-urn jinico golpe, nao é o
circunstancias da vida finitas. Por essa via, Don Juan tornou-sc urna perso- scdutor determinado de mancira imcdiata, é o sedutor reflexivo. Aquilo ele
nalidadc rcflcctida, a qual pcrde a idealidacle que possui na rcpresenracáo que aqui nos ocuparemos é a manha , a dissimulacáo , com a qua! ele sabe
tradicional. Passo prontamente a desenvolver qua] a modificacño ocorrida insinuar-se no coracáo de urna rapariga, o domínio sobre ela que ele sabe
na idcia. Quando Don Juan é concebido musicalmente, cntáo, oico nele obter para si mesmo, a seducño cnfciricantc, arquirectada e consecutiva.
tocia a infinitude da paixño, mas oico simultaneamentc o scu poder infinito, Torna-se aquí indiferente o número de vezes que ele seduziu, aquilo de
ao qual ninguérn é capa¿ de resistir; oico a concupiscencia bravia do dese- que nos ocupamos é a arte, a fundamentacáo, a profundidade da dissimu-
jo, mas oico sirnultaneamente cssc triunfalismo absoluto do desojo, contra la9ao, com as qua is ele scduz. Por fim , o desfrute acaba por ser tao reflec-
o qual seria baldado ter ofcrecido qualqucr resistencia. Se o pensameuto se tido que se torna diferente em relacáo ao desfrute do Don Juan musical. O
dctivcr urna vez que scja no obstáculo, cntáo, este irá antes obter significa- Don Juan musical desfruta a satisfacáo , o Don Juan reflexivo desfruta a
c;ao apenas porque inccndeia a paixño, mais do que por se colocar rcalmen- impostura. desfruta a argúcia. O desfrute iruediato acaba, e desfruta-se
te cm oposicáo: o desfrute dilata-se, o triunfo é ccrto e o obstáculo é um mais urna reflexáo sobre o desfrute. A esse rcspcito, encentra-se um indí-
mero estímulo. Sernelhante vida, movida de urna forma elementar, e pode- cio particular na concepcño de Moliere132, só que este nao chcga de modo
rosa e irresistívcl dernoniacarncntc - tenho-a cu cm Don Juan. É esta a sua algum a exercer o seu dircito deviclo a interferencia de toda a restante
idealidacle, da qua! posso retirar urna imperturbável alegria, porque a músi- conccpcño. Em Don Juan, o clesejo ardentc acorda porque ele ve urna cla- (
,'.:¡
ca nao me apresenta Don Juan como pessoa ou como indivfduo, mas como quelas raparigas feliz na rela~ao com quem ela ama, e comec;a a ter ciú-
poder. Se Don Juan concebido como indivíduo, fica logo eo ipso em con-
é mes, o que constitui urn interesse que na ópera nao nos ocuparía de todo,
ffito com o mundo que o rodeia; enquanto indivíduo scnte-se preso e agri- justamente porque Don Juan nao é um indivíduo reffectido. Assim que
lhoado por esta ambiéncia, porventura triunfará, como grande indivíduo Don Juan é concebido como um indivíduo rcflcctido, só é possível alcan-
que é, mas sente-sc desde logo que as dificuldadcs nos obstáculos dcsern- 9ar urna idealidade correspondente a idealidade musical, quando se con-
penharam aqui um papel diferente. É delas que o interessantc essencial- duz o assunto para o ambito psicológico. A idealidadc da intcnsidade
mente se ocupa. Mas assim sendo, Don Juan conduzido sob a determina-
é passa entao a ser aquilo que se alcanc;a. Por isso, o Don Juan de Byron tem
9ao do interessante. Se se quisesse apresentá-lo como triunfador absoluto de ser considerado como tendo errado, porque se desenvolve de urna for-
recorrendo a pompa das palavras, entáo, sente-se prontamente que essa ma épica. O Don .Juan imediato terá de seduzir mil e tres, o sedutor refle-
xivo precisará de sccluzir apenas urna, e aquilo de que nos ocupamos é o
131 Oeorgc Gordon Byron. Lord Byron (1788-1824). trabalhou at.é a morte no poema
modo coino ele o faz. A secluc;ao do Don Juan reflexivo é urna obra de
épico em cantos Don Juan; edi<;ao consultada pelo autor: Lord Byron'.s stimmtliche arte, na qual cada um dos pequenos trnyos tem a sua significa9ao especí-
Werke 1 Obras Completas de Lord By ron I, vários tradutores, vol s. 1-X, Estugarda, 1839;
vol. VIII, p. 1; vol. X, p. 100. 132 Vd. Molieres udvalgleSkuespil, p. 184; el leibcrg. Skuespil, vol. VI, p. 188.
146 < >11 < >11 U111 l •1.w1w 111111h V1d.1

Iica; a scducáo do Don Juan musical é um golpe de mao , um asvumo do comico Iica tao pt:1 to Se cu aprcscntar o vício do jogo num indivíduo e dcr
instante, mais _fácil de fazcr do que de dizcr. Lcrnbro-mc de u111 quadro que cinco tült:rcs a cssc mdrvfduo para ele os perder no jogo , a viragcrn passa a
u~a vez cu vi. Um horncrn jovern e bonito. um vcrdadciro mulhercngo. ser cómica. Deceno que assirn nao acontece no Do11 Juan de Moliere, mas
Brincava corn um grupo de raparigus jovens, todas na perigosa idade ern ocorrc afinal de um modo semclhanic. Se cu fizcr Don Juan passar por
que nem sao adultas, nem sao enancas. Divertiarn-se entre curras coisas a npcrtos de dinhciro. acossado pelos credores, ele pcrde desde logo a idcali-
saltar por cima de um. fosso. Ele ficava na be ira e 11121 ajudava-as a saltar, dude que possui na ópera, e o efcito passa a ser cómico. A famosa cena
segurando-lhes pela cintura para as erguer no ar e depositar do outro lado. cómica cm Molicre134, rendo grande valor enquanto cena cómica e estando
Er~ urna visño ~raciosa; clava-me alegria, tanto por ele como pelas rapari- a
ao mesmo tempo muitíssimo bern adequada comédia de Moliere. 11131
gumhas. Pcnsci cntáo cm Don Juan. As jovcns raparigas corriarn para os obviamente que, por esse motivo, nunca dcveria ser incluída na ópera, na
scus bracos, ele agarrava-as cntño com a mesma rapidez, corn a mesma qual produ1iria um efeito inteiramentc pe11urbador.
agilidadc, depositando-as do out ro lado do Iosso da vida. Que a concep9ao de Moliere aspira ao cómico, nao está meramente
O Don Juan musical triunfa ern absoluto e, por isso, tarnbém esta obvia- mostrado na cena cómica de que falámos. a qual, se estivcssc completa-
mente na posse absoluta de cada um dos rncios capazes de o conduzir a mente isolada, nada sequer demonstraria; é antes o plano geral que traz a
este triunfo, ou rnelhor, está na possc tao absoluta do meio que é como se marca do cómico. A primeira e a última réplica de Sga11arel135, o início e o
nao nccessitasse de o utilizar, ou seja, nao o utiliza enquanto meio. Assim fim ele tocia a pe9a, dao disso um testemunho mais <lo que suficicnre. Sga-
que passa a ser um individuo rcflectido, cntño, mostra-sc que há algo que narel comc9a por elogiar uma pilada de rapé. dedu'.l.indo-se, entre outras
se ~h~m~ «O mcio», Se o poeta lho conceder, fazcndo, porérn, com que a coisas, que ele nao pode ter assim tanto para fazer ao . ervi90 <leste Don
~~srstcnc.ia e o obstáculo rcsultcm conjuntumentc tao graves que o triunfo Juan: termina, qucixando-se de ter sido o único a quem injusti9a foi feíta.
rica duvidoso, cntíío, Don Juan entra na dctcrrninacáo <lo imcrcssanrc e. Ora quando se pondera que Moliere também fez com que a estátua'-'6 vies-
nesta perspectiva, pode pensar-se cm várias conccpcócs de Don Juan, até se buscar L)on Juan e que, apesar de Sgaranel ter igualmente sido testcmu-
chegar ao que ~nterio~mente chamamos de seducño intensiva; se 0 poeta nha clesta terrível coi. a, coloca-lhe afinal essas palavras na boca, corno se
lhe negar o mero, cntao, a conccpcño entra na dctcrminacáo do cómico. quisesse dizcr que a estátua. visto que se entrega, aliás, a praticar n justi\:a
Urna conccpcño pcrfcita que o tcnha conduzido sob o dominio do intcres- na terra. a castigar o vício. deveria também ter ponderado que podia pagar
sanre, n~nca cu_ vi; cm contrapartida, a
maioria das concepcócs de Don n SgHnarel o soldo que !he era clevido por longos e leais servi9os em ca~a
Juan aplica-se dizer que se aproxirnarn do cómico. o que explicável pelo de Don Juan. coisa que o seu amo nao tivera condi9oes para l'azer dcvido
a
é

facto de estarem associadas a Moliere, em cuja concepcño 0 cómico está sua repentina partida; quando se pondera isto, entiio. qualquer um acaba-
latente. seudo que o mérito de Heiberg consiste ern ter tomado nítida cons- ría por sentir o cómico no Don 111011 dt: Moliere. (A adapta~ao de Heibcrg,
ciencia dis~o e, por conseguintc, nao chama i\ sua pe9a meramente urn tea- que diantc da de Moliere possui a grande vantagt:m ele ser mais correcta.
tro ele marionetas, antes dcixa que o cómico brilhe neta de multas manci- <leu também lugar a uma viragem cómica de muitas maneiras. pondo na
ras 133. Assirn que urna paixño, ao ser upresentada, ve negado o rncio com boca de Sganarel urna sabcdoria casual que nos permite ver nele um apren-
que atinge_ a satisfacáo, cruño. é possívcl de rencadcar urna viragcrn trágica diz. de ladrao, o qual acaba como criado de Don Juan depois ele rer experi-
ou urna v~rn~em cómica. Nao é possível fazer surgir a viragcrn trágica, mentado mu itas outras fun9óes.) O hcrói da peya. Oon Juan, é nada meno
quando a ideia se rnostra como seudo de todo injustificada e. por isso. 0 do qut: urn hcrói, é um sujeito mais do que infeliz, que presumivelmente

133 Alu!>~o provável ª.º último grau de caracterizacñn da comédia (termo aqui equiva- 134 Cenn com o creclor, Mrn1&icur Dimanchc. Acto IV, cena 1. in Molier<>s 11d1•a/g1e
lente a «forma dramática») cm Heibcrg: o primciro grau, a comédia imediata, situa-se Sl..uespil. pp. 231-237. nesta tradu9áo. M. Di manche dá pelo nomc de Hr. Knapmanl e
entre O bu~)ef.l:O e a car~a: 11<! segundo. a comédia alfa cu reflexiva, prevalece a ironía: na adaptn9áo tle Heibcrg tcm o nomc del len Paa~ke: vd. S/..11('.l"fJil, vol. VI, pp. 259-262.
e no tcrccrro .. a comedia universal ou especulativa. a ironía. aliada ao riso, produz 0 A ópera de ~01.art nao tem qualquer cena equivalente; sugere-se antes o contrário. já
\ humor: v~I. Kj~!benhvam flyvende I'ost it [Correio Volante de Copcnhaga(. u." 7-8, J0- que 01)11 Juan entrega urna bolsa com dinheiro a Leporello; vtl. Don (iiol'l11111i, Acto 11.
-16. Janciro-Fcvcreim de 1828. Kicrkcgaard esquematiza parcialmente cstu tipología cena J. Kruse, pp. 71-75.
c~a.~ fo~rnas dramáticas n~ seu diario: vd. BB: 23, SKS. vol. 17. p. 113. Para urna apre- 135 Nome do criado ele Don Juan na pc<;a de Moliere.
s~ntar,:a~ comen~ada da h1erar<.¡11iz.a9ao das formas dramáticas cm Hcibcrg. vd. Hcnning 136 Na verdade, o monumento funerário do Comendador. pni de Donna Anna, a\sa~si-
Fenger, The Heibergs. Nova lorque: Twayne Publishcrs, lnc .. 197 t. pp. 134-139. nado por Don Juan na primt:ira cena da ópera. Vd. aclíante nota 167.
148 ~º" 11 1 1 •ti,('!Jlllli (1 Ot1 Ou, lJ111 l•ir1¡·1111•111<i d~ ld!I

náo foi admitido ao cxamc iinal137 e que cscolhcu agora um outro modo de o 'omcndador, etc .. algo que é tido como imensarnenrc desmedido, e que
vida. Vcm, dcsignadamcnte, a saber-se que ele Iilho ele um horncm muito
é (cm outra vec ele ser explicado como urna mentira, de molde a restabelecer
disiinto!". o qual procura igualmente entusiasma-lo a seguir a virtudc e os harmonia. Se é Sganarel quem nos eleve fornecer urna rcpresentacño da
feitos imortais através da ideia representada no norne grande dos seus an- puixáo que lavra em Don Juan, entáo a sua expressáo está tao travestida que
tepassados; mas isto resulta tao inverosímil, ern relacáo a toda a sua restan- o riso é impossível de comer, quando Sganarel diz assim para Gusman11145:
te conduta, que se é antes levado a pensar que tudo nao haveria de ser urna «Para conseguir o que ele deseja146, Don Juan era bem capaz de casar corn
mentira perpetrada pelo proprio Don Juan. A sua conduta nao muito ca- é o dio ou com o gato dela, sim. até contigo, o que seria ainda pior»; ou
valheiresca, nao visto de espada na mño abrindo carninho por entre as
é quando observa que o seu amo nao se limita a dcscrer do amor, descrcndo
dificuldadcs da vida; distribuí bofetadas ora a urn, ora a outro, sirn, chega também da medicina 147•
praticamcntc a batcr-sc com o noivo de urna das raparigus 139. Portante, se Ora se a conccpcáo ele Don Juan ele Moliere, considerada enquanto adap-
o Don Juan de Moliere tossc realmente um cavalheiro, entño. o poeta sabe ta<;ao cómica, fossc correcta, uño seria eu quem cominuaria aqui a discutí-
fazcr muitíssimo bcrn corn que nos esque\:amos disso e, 11141 em vez de14 º -la, dado que neste cstudo só tenho de centrar-me na conccpcáo ideal e na
cavalheiro, dá-nos a ver um espadachirn, urn vulgar dissoluto, que nao tem significacáo da música, rendo em vista cssa concepcáo. Poderla entáo
medo de andar ao murro. Quern já teve oportunidade ele ter como objecto contentar-me cm chamar a atcncáo para a curiosa circunstancia ele apenas
de observacño aquele a quern se dá o nome de dissoluto. rambém sabcrá por música se ter concebido Don Juan de urna maneira ideal, na idcalidade
que esta classe de homcns senté um amor excessivo141 pelo mar e. por isso, que ele possui na tradicional rcprcscntacáo medieval. A falta de urna con-
achara igualmente adcquaclo que Don Juan tcnha pesto os olhos nurn par ccpcáo ideal, que tcnha a palavra como meio. poderla entáo fornecer urna
ele salas e que agora se tcnha prontamente metido nurn barco para ir atrás preva indirecta da justeza da minha tese. No entamo, sou capaz ele ir rnais
delas pelo Kal lcbocstrand 142, urna aventura domingucira no rnar.juntamen- além.justamentc porque Moliere nño está correcto, e aquilo que o impediu
te corn o barco a virar-se. Don Juan e Sganarel esrño prestes a perder a de atingir a correcciío é o facto de ele ter conservado algo do ideal de Don
vida e sño, enfirn. salvos por Pedro e pelo infinclo Lucas143, cuja prirneira Juan, tal como devido na representacáo tradicional. A medida que eu as-
é

aposta havia siclo entre scrcrn eles horncns ou urna pedra, urna aposta que sinalar este facto. mostrar-se-á de novo que a conccpcáo ideal só pode
custou a t.ucas um marco e oito xclins, o que quuse é demasiado para Lu- exprimir-se esscncialmenre através da música, e rcgrcsso assim de novo a
cas, e para Don Juan. Ora quundo se acha que tuclo isto está adequado, a minha tese propriarncnte dita.
irnprcssáo fica pois perturbada por um instante. dacio que vem a saber-se 11151 Logo no primciro acto de Don Juan de Moliere, Sganarel tem uma
que Don Juan ésimultaneamente um tipo que secluziu Elvira144, assassinou fala muito longa, na qual nos quer ofereccr urna representacáo da ilimitada
paixáo do seu amo e da multiplicidade das suas aventuras. Esta fala corres-
137 Aquí. «AUe.11a1». ponde por inteiro a segunda ária do criado na ópera. A fala nao faz surgir
138 Don Louis. pai de Don Juan. surge como personagem em Moliere. e também na outro efeito que nao seja o cómico, e aquí a concepcáo de Heiberg voila a
tr<1du9ao da pei;:a (como nomc de Don Lodovico), mas niío figura no elenco da versüo possuir a vanragcm de o cómico estar menos amalgamado do que em Molie-
de 1 leiberg: vd. Acto IV, cena 4, in Molieres 11dval¡¡1e Skuespil. pp. 237-239. re. Ao invés, este cfcctuou um cnsaio para nos deixar pressentir o poder dele,
139 Pierre, namorado de Charlotte: Acto 11, cena 3. in Molieres udval¡¡te Skuespil, pp. mas o efeito nao resulta, apenas a música pode dar-lhc uniño. porque descrc-
202-205. Na ópera, esta situa<¡:iío está transposta para a relar;iio entre Don Juan e Mas-
ve ao mesmo tempo a condura de Don Juan, levando-nos a ouvir o poder da
sello; vd. Don Giovwmi. Acto 11. ce11a Y.
140 Na primcira edir;üo de E111e11-Eller, nao figura «istederfor». mas «strteber derfor»,
seclu<,:ao, ao mesmo tempo que o catálogo é clesenrolado <liante de nós.
o que implicaría traduzir a frase como: «e esfon;:a-se por isso para 4ue vejamos». Em Moliere, a estátua vem buscar Don Juan no último acto. Ora por
141 Aqui. «K)a'rlighed». rnais que o poeta tenha procurado motivar a entrada da estátua, fazendo
142 Bra<¡:o de mar entre a Zeli\ndia e a ilha de Amager, a sul <le Copenhaga. Heihcrg
tlesloca a aci;:fa1 da sua vcrsiío parn este local. sem o nomear explícitamente.
143 Acto U, cena l; em Moliere, as personagens tern os nomes <le Pierrol e Luca.~, na 145 Nome do cscutleiro de El vira na tradui;:ao da pcc,,:a de Moliere: vd. Molieres udva/g-
traduc;;ao para dinamarqucs da pec,:a de Moliere, Pedrillo e Lucas, e na versao de Hei- te Skuespil, p. 176.
berg, Pedro e Lucas. 146 Aqui, «~nsken>.
144 Em Moliere. Elvira é esposa de Oon Juan c. no elenco de pcrsonagcns, 1-Iciberg 147 Acto 111, cena 1, in Molieres udval¡¡1e Skuespil. p. 214: e Heiherg, Skuespil, vol. VJ.
descreve-a como «consorte». p. 227.
150 :\¡)1~ 11 I\ il'I I_¡ g(l(l1tl
011 Ou, U111hnt1111.•11to de Vidu 151

com que fosse precedida por urna exortacílo. esta pcdra , porérn, torna-se livrc de Don Juan 149: o lcitor OLI o espectador nao véern fundamento ne-
semprc urna pedra de escándalo. Se Don Juan é concebido idcalrn~ntc co- nhum para tal. e aqui a questáo é justamente em torno de um fundamento
mo forca, corno paixáo, entáo, o próprio céu rerá de por-se em movimento.
sensato. A inconstancia que há em Leporello está decerto motivada na ópe-
Se nao foreste o caso, a utilizacáo de mcios tao forres dá semprc que pen- ra, porque Leporello, na sua relacáo com Don Juan, está mais pcrto de ser
sar. O Comendador nao necessita, na verdade, de dar-se ao incómodo, dado
urna consciencia individual e, por isso, a vida donjuanesca reflecte-se nele
que se fica mesmo mais perro de ver o senhor Paaske148 meter Don Juan na
de maneira diferente, sem que todavía ele esteja propriamcnte ern condi-
prisáo por <lívidas. o que cairia plenamente dentro do cspírito ~a !nodern.a cóes de nela penetrar. Ern Moliere, tambérn Sganarcl urnas vczes é pior, e
comédia, a qual nao neccssiia de um tao grande poder de dcstruicáo, preci-
outras é mclhor, do que Don Juan, mas torna-se inconcebível que ele nao o
samcntc porque os proprios poderes cm movimento nao sao tao grandiosos.
abandone, dado que nern sequer recebe o respectivo salario. Se cm Sgana-
Seria inteirarnente consentánco com a cornédia moderna fazcr com que
rel se imaginar urna unidadc, correspondente a simpatética obscuridadc
Don Juan aprcndcsse a conhecer os sustos triviais da realidadc. Na ópera
musical que Leporello tem na ópera, nao resta outra coisa que nao seja to-
está perícitamcntc cerro que o Comendador rcgrcsse , mas enláo a sua en-
mar a unidade como urna idiotice parcial. Volta aquí a ver-se um exemplo
trada possui igualmente verclacle ideal. Desde logo, a música faz do Comen- de como o musical tem de surgir para que Don Juan possa ser concebido na
dador algo rnais do que um individuo singular, a sua voz expande-se até sua verdadeira idealidacle. O erro de Moliere nao está cm ter concebido
chegar a ser urna voz de cspírito. Por isso, tal como na ópera Don Juan Sganarel no modo cómico, mas sim c1T1 nño o ter lcito correctamente.
está concebido corn sericdadc estética, também assirn acontece com o Co- O Don Juan de Moliere tambérn um sedutor, mas a peca ofcrecc-nos
é
mendador. Em Moliere, ele surge com gravidadc estética e peso, a ponto de
apenas urna parca represenracño de que ele assim é. Que Elvira cm Molie-
quasc o rornarem ridículo; na ópera, surge corn leveza estética, com vcrda-
re é esposa de Don Juan é inegável, e particularmente bem delineado, tendo
de metafísica. Ncnhurn poder na obra, ncnhurn poder no mundo é capaz de
cm vista o cícito cómico. Ve-se desde logo que se está perante urna perso-
coarctar Don Juan, só urn espirito, um fantasma, pode fazé-lo. Quando isto nagern comum, que utiliza promessas de casamcnto para levar urna rapari-
fica cabalmente entendido, entño, clarifica-se a conccpcáo de Don Juan. ga ao engano. Por essa vía, El vira pcrdc toda a atitudc ideal que possui na
Um cspírito , um fantasma, sao reproducáo. é esse o segredo que resi~e. no ópera, ondeé encontrada sem ourras armas que nao sejam a fcrninilidade
facto de rcgrcssarern, mas Don Juan é capaz de tudo, capaz de rcsisnr a
ultrajada, ao passo que a imaginamos aquí com certidñes de casarnento,
é

tudo, excepto a rcproducáo da vida. precisamente porque ele vida sensual


perdendo Don Juan a equivocidacle da ~edu9ao pelo facto de ser um hornem
é

irnediata, de que o cspíriro negacáo.


jovem e 11 171 um esposo ex peri mentado, ou scja, ex peri mentado em expe-
é

Tal como concebido por Moliere, Sganarel permanece urna personagern


riencias extraconjugais. O modo como ele enganou Clvira, os rneios com
inexplicável, 11161 cujo carácter se torna confuso cm elevado grau. Aq~ülo
os quais a incitou a sair do convento, seriam decerto algo que urnas ciadas
que aquí produz um elcito perturbador novamcntc o facto de Moliere
réplicas de Sganarel haveriam ele ter-nos esclarecido; mas visto que a cena
é

conservar alguma coisa do tradicional. Corno Don Juan acima de tudo um


de sedu9ao ocorrente na obra nao nos oferece a oportunidacle de admin1r a
é

poder, tarnbém esse poder se rnostra na sua relacño com Lcporcllo. Este
arte de Don Juan. é óbvio que a nossa confian9a nesses feítos fica abalada.
sente-sc arrastado na sua direccáo, sentc-se esmagado por Don Juan, funde-
Ora. conquanto Don Juan de Moliere seja cómico, isso nem sequer era
-se nele, tornando-se um mero órgiío da vontade do seu amo. Esta simpatía
necessário; mas como, no entanto, é ele próprio quem nos quer fazer enten-
obscura e intransparcnte faz justamente de Lcporello urna personagcm
der que o seu Don Juan é realmente o herói Don Juan, 4ue conquistou El-
musical, achando-se pcrfcitamente adequado que nao lhe seja possível
vira e assassinou o Comendador, é fácil de ver onde está o erro ern Moliere,
livrar-se ele Don Juan. Com Sganarel, o assunto 6 outro. En1 Moliere, Don
mas somos simullaneamcnte levados a pensar se tal nao terá afina! propria-
Juan é um individuo singular e, por conseguinte, Sganarel estabelece com rnente fundamento no facto de Don Juan nem uma vez sequer poder ser
ele urna relacáo, tal como com um indivíduo. Ora se Sganarel se sente in-
apresentaclo na yualidade de seclutor, sem que seja como auxílio da música,
dissociavelmente ligado a Don Juan, cntáo, mais nao será do que um razo-
a menos que se enverecle, como acima mencionado, pelo aspecto psicoló-
ávcl requisito estético exigir que se clarifique o modo como isso pode ser
gico, o qua!, por seu turno, nao se reveste facilmente ele intercsse dramáti-
explicado. De nada serve que Moliere o faca dizer que nao conseguc ver-se
co. Em Moliere, também nao se ouve Don Juan conquistar as duas jovens

148 Vd. acima nota 134.


149 No fecho da primeira cena do primeiro acto; Molieres udvalgte Skuespil, p. 176.
152 153

raparigas, Mathttrine e Clwrlofle150, a conquista ocn1 re font de cena e co- justamente a sua grandc1.a. Por isso, clizer que a ópera é imoral é urna
mo Moliere nos deixa de novo presumir que Don Juan lhcs ofcrcccu prornes- palerrnice, o que provérn tao-semente de gente que nao entende como se
sas de c~samento, entáo, só se obtém novamente urna parca no<;ffo do seu concilie urna totalidade e antes acaba por ficar presa nas singularidades.
t~llento. Enganar uma raparíga com promessas de casamento urna arte par-
é A aspirac;ao definitiva da ópera é moral em elevado grau, e a impressao
t1~ularmcnte pobre e,já que alguérn é suficientemente baixo para o fazcr, daí que dela se retira é absolutamente salutar, porque ludo é grande, tudo pos-
nao resulta de todo que seja suficientemente grande para que lhc charncm sui um parhos genuíno. sem cosmética, a paixao da volúpia nao menos do
Do~ !uan. A única cena que parece querer apresentar-nos Don Juan na sua que a da seriedacle, a do desfrute nao menos do que a da ira.
actividade de seduzir, se bem que pouco sedutora, a cena com Charlotre'>'.
é

Ma~ dizer a uma jovem carnponesa que ela linda, que tem olhos cintilantcs,
é

pcdir-Ihe que de urna volta para observar as suas formas, nao deixa trair 3. A Const.ruyao Interna da Ópera
nada de in~omum em Don Juan, mas antes um hornem dissoluto que observa
urna rapanga tal como um negociante observa um cavalo. É possívcl conce- A pesar de o título desta seccáo já ter de ser considerado como suficien-
der de ~orn grado que a cena produz urn cfeito cómico e, houvesse a cena de temente esclarecedor, no entamo, por urna qucstáo de scguranca, guero
prodt~zu· ape~1as essc cfciio, e nao iria eu aquí discutí-la. Mas dacio que este chamar a atencáo para o facto de nao ser obviamente intencño rninha vir de
n~)tón.o cnsaio de Don Juan nño cstabelcce rclacáo alguma com as multas modo algum ofercccr aquí urna avalíacáo estética da obra Don Juan, ou
~1s~ónas que ele possa ter tido, esta cena contribuí assim de novo, directa pu urna dcmonstracño da cstrutura dramática do texto. Tern sempre ele ser-se
iudirectamentc, para mostrar aquilo que na comedia imperfciLo. Moliere
é muito cauteloso ao Iazer separacóes destas, ern especial diante de urna
parece l.er querido retirar algo rnais de Don Juan, parece ter querido igual- producño clássica. Quero repetir ainda urna vez, nomeadarncntc, aquilo que
mente rnantcr nelc o ideal, mas lalrou-lhe o meio e, por isso, tudo 0 que re- acima j11 dcstaquei rnuitas vezes: Don Juan só passível de exprcssáo mu-
é

a~menle acontece redunda cm algo de negligenciávcl. Na globalidade, pode sical, um facto que eu proprio constatei esscncialmcntc através da música
dizer-se que no Don Juan de Moliere acabamos por saber que ele é sedutor e devo, por isso, vigiar de todas as manciras para que isso nao revista o
~penas numa perspectiva histórica; nao vemos isso do ponlo ele vista drama- aspecto de ser a música a surgir de um modo exterior. Se lidarmos assirn
t~co. A cena na qual ele se mostra nurna maior actividade é a cena com corno assunto. pode a meu ver admirar-se a música nesta ópera tanto quan-
Charlotte e 11181 Mathurine152• sustentando aí a conversa de ambas, e lo se quiscr, que a sua significacño absoluta nao captada. 1 totho nao Iicou
é

fazendo-lhes crcr qu~ cada urna delas era justamente aquela com quem ele isento de urna abstraccáo inverídica dcste tipo, daí resultando que nüo é

prornetera casar. Aqui, porém, aquilo que prende a nossa arencáo nao a sua é possível considerar a sua aprcscntacáo como satisfatória, por rnais talento-
arte da seducáo, mas urna intriga teatral inteirarnente cornurn. sa que 11191 ele resto seja, Em Hotho , o estilo, a aprcscntacíío, a reproducáo,
Para concluir, talvez eu possa elucidar o que aqui ficou desenvo.lviclo tém vida e movirncnto; as categorías siio indeterminadas e pairam, a con-
pegando numa observacár, frequcntemente avancada: o facto ele Don Juan cep9ao de Don Juan níio está penetrada por um único pensamento, mas
de Moli~re ser myis moral do que o de Mozart. Entretanto, entendido isto dissolvida em muitos. Para ele, Don Juan é um sedutor. Mas esta categoría
da mancira certa, trata-se justamente de urn elogio a ópera. Na ópera, nao já é incleterm.inada e, contudo, tem de estar determinado em que sentido ele
se trata meramente de conversas sobre um sedutor, antes Don Juan que
é é sedutor, tal como eu também tentei fazer. Ora acerca <leste sedutor diz-se
é u~1 sedutor, e inegável que a música, nas suas singularidades, pode ser
é uma quantidacle de coisas em si e para si verdadeiras; mas como aqui as
multas vezes bastante sedutora. Entretanto, é assirn que eleve ser; esta é representa9oes comuns chegarn a ter o dircilo ele reinar muito excessiva-
mente, semelhante sedutor torna-se sirnplcsmcnte tao reflectido que cessa
150 Nornes das personagcns na adaptai;:ao de Heiberg; no original e na tradu~ao dina- de ser em absoluto musical. Holho penetra na obra cena a cena, o seu rela-
marquesa, as personagcns ternos nomes de Maturina e Car!otta. to está fresca e profundamente acidulado pela sua própria individualiclade,
151 Cen'.1 que encontra rnrrespondencia no dueto Lit ci darem la mano ... entre Don em alguns passos, porventura um nadinha em excesso. Quanclo tal aconte-
G1.º~'ann1 e Zerhna:_ vtl .. 1>011 Ciovanni. Acto 1, cena 9. No Don Juan efe Moliere (no
ce, seguem-se entao efusoes simpatéticas sobre o quanto há debelo, rico e
ongrnal e na tradu~ao clmamar4uesa), Acto II, cena 2; na versao de Heibcrg Acto u
cena 3. ' ' diversificado no modo como Mozart exprimiu tudo isto. Mas é deveras
152 No original e na tratlu9ao dinamarquesa, Acto IJ, cena 4; na versao de Heiberg. pequena a alegria lírica suscitada pela música de Moz.art e, por muito bem
Acto 11, cena 7. que vista o homem e, por rnuito bem que ele saiba exprimir-se. na concep-
154
155

c;ao de Hotho, Don Juan de Mozart nao rcconhecido na ua absoluta va-


trata-se de um erro, mas muna ópera nao de modo algum urn erro. O que
é
é

lidade. Este reconhccimento é aquilo a que eu aspiro, porque este rcconhc-


conserva a unidade na ópera a nota fundamental que sustém o todo.
cimento é idéntico a justa cornpreensáo daquilo que constitui o objecto
é

O que aqui se diz sobre o efeito dramático global válido, por scu turno,
é

desta invcstigacáo. Nao é de modo algum mcu propósito tomar toda a ópe- para as partes individuáis do drama. Houvesse eu de designar o efeito dra-
ra como objecto de consideracao , mas sima ópera na sua totalidadc. nern
matico do drama com urna única palavra, conquanto este seja diferente do
scquer discutir as diversas partes cm separado. mas incorpora-las nas mi- produzido por qualquer outra forma poética, entáo. diria eu que o drama
nhas observacñes tanto quanto possívcl, e nao as ver fora da sua ligacño actua através do simultaneo. No drama, vejo reunidos na situacño, na uní-
como todo, mas sim dentro dessa ligacáo.
dadc da accáo, os momentos que sao exteriores uns aos outros. Ora, quanto
Num drama, o intcresse principal congrega-se de urna maneira perfeita- mais excretados forem os momentos discretos, quanto mais profundamente
mente natural cm tomo do que chamamos o hcrói da obra; na relacáo que
a situacáo drarruitica estivcr penetrada pela rcflcxáo, tanto menos a unidadc
estabclcccm com ele. as restantes personagcns rcvcstern-se apenas de urna
dramática será urna disposicáo e tanto mais eta será um pcnsamcnto dctcr-
significacáo subordinada e relativa. Entretanto. quanto mais a reflcxáo in- minado. Mas tal como a totalidade da ópera tarnbérn nao pode ser assim
terior penetrar no drama com o scu poder de separacáo. tanto mais as pcr-
penetrada pela rcflcxño , como é o caso do drama propriamenre dito. tarn-
sonagens secundarias admitcrn tambérn urna certa absolutez relativa, se é
bérn assim este o caso da situacáo musical, a qual , se bem que dramática,
é

que me atrevo a dizé-lo. lsto nao de modo algum um erro, é antes pelo
possui todavía a sua unidadc na disposicño. A semelhanca de qualquer si-
é

contrário urna vantagcm, tal como a observacáo do mundo que sé tem olhos
tuacño dramática. a situacáo musical tcrn o simultaneo, mas a actividadc
para alguns indivíduos proeminentes e para a respectiva significacño no das forcas urn som conjunto, urna voz conjunta, é harmonia. e a irnprcssño
é
dcscnvolvirncnto do mundo, nao dando, porém, valoraos subalternos, em
da situac;ao musical é a unidadc que se produz ao ouvir cm conjunto aquilo
é

certo sentido mais elevada, mas inferior aqueta que ve o que menor, na
que soa cm conjunto. Quanto mais profundamente penetrado pela rcflcxño
é

respectiva validado de igual grandeza. O dramaturgo conseguirá apenas


estiver o drama, tanto mais a disposicño se transfigura em accño. Quanto
alcancá-lo na mesma medida cm que nada reste de incornensurávcl, cm que
menos accño , tanto mais prcvalcccntc o momento lírico. Na ópera, tudo
é
nada reste da disposicño da qual o drama se desprende, ou seja, nada reste
isto pcrfcitarncntc conforme. Como scu objcctivo imancntc, a ópera nao
é
da disposicño qua disposicáo, 11201 sendo ludo, no entamo. convertido na
tem tanto assirn u descricáo de personagens e a ac\:aO, nao está suficiente-
sagrada moeda153 dramática: ac9ao e situacño, Na mesma medida cm que mente reflectida para tal. Ao invés, na ópera. H paixño substancial e irrcllc-
o dramaturgo conseguir alcancá-lo. também na mesma medida a impressáo
xiva encentra a sua expressño. A situacño musical reside na unidade da
total. produzida pela sua obra, será menos urna disposicáo do que um pen- disposic;ao, na discreta pluralidade de vozes, O que próprio da música
é é
sarnento, urna ideia. Quanto rnais a irnpressáo total de um drama for urna justamente ser capaz ele conservar a pluralidade ele vozes na unidade da
disposicáo, tanto maior a certeza de o próprio poeta a ter pressentido na
é
disposicño. Quando cm linguagcm corrcnlc se clizem as palavras «plurali-
disposicáo, e ter feito com que a irnpressáo total viesse progressivamente a
dade de vozes». entfío, designa-se prcfcrencialmcntc urna unidadc 11211 que
existencia a partir da disposicño, nao a tondo captado na ideia, nern dcixado é um resultado finito; na música, nfío é esse o caso.
que esta se desdobrasse do ponto de vista dramático. Um drama deste tipo O interesse dramático exige uma rápida progressao, um rilmo animado,
sotrc entáo de um peso exccssivo e anormal de lirismo154• Num drama, aquilo a que pudesse chamar-se velocidade da queda em crescimcnto ima-
nente. Quanto mais o drama estiver profundamente penetrado pela reflexfío,
153 Na antiga Judeia, as ofertas e esmolas tinham de ser feitas na moe<la do povo judeu. tanto mais inintcrrupta é a pressa com que avanc;a. Se, ao invés, foro momen-
justificando a prcsenc,:a de cambistas em volta dos templos; vd. Matcus. 21: 12, Marcos. to lírico ou o épico a prevalecer unilateralmente, entao, sobressai um ce1to
11: 15, e Joao. 2: 14-15. Aqui, porém, a <<sagrada moeda» é metáfora para a regra aristo-
ent.orpccimcnto que faz adormecer a situac;ao, tornando lentos e pesados o
télica.
154 fonnulac;:ao de Heiberg, na sua crítica ao Trauerspiel de A. Oehlenschlügcr, Vterin-
processo e o prosseguimento dramáticos. Na esscncia da ópera nao reside
geme i Miklagard [Os Yarnngianos de Miklagard] de 1826 (OehlenschWKer~· frag~dier esta pressa, em parte devido aoque é próprio de urna certa dilac;ao, um ccrto
ITragéclias de O.). vols. I-X, Copenhaga. 1841-1849; vol. IV, 1842, pp. 115-240). in Kjfl- auto-espraiamento no tempo e no cspac,:o. A ac<;ao nao possui a ccleridadc da
benhvans flyvende Post ICon"Cio Volante de Copenhagal. números 99-101, Copenhaga, queda ou o respectivo direccionamento. movimentando-se antes num plano
1827, e números 7-8 e 10-16, Copenhaga. 1828; vd. igualmente J. L. Heiberg, Prosaiske mais horizontal. A disposic;ao nao está sublimada na personagem e na ac<,:ao.
Skrijier [Escritos em Prosa l, vols. I-III, Copenhaga, 1841-1843; vol. [, pp. 251-381.
Por consequencia, numa ópera a acc;ao só pode ser acr;ao irnediata.
156 157

Se aplicarmos a ópera Don Juan o que foi aquí dcscnvolvido, entño , riéncia que nñoé agrudável csíorcar dois sentidos ao mesmo tempo, e
isso dar-nos-á ocasiáo de ver rudo isto cm toda a sua vcrdadcira validade utilizar muiro a vista, ao mesmo tempo que se temo ouvido ocupado,
clássica. Don Juan o herói da ópera, o interesse principal agrega-se em
é torna-se assirn factor de frcqucnte pcrturbacáo. Por isso, quando se ouve
torno dele; nao se limita, no entamo, a ser meramente isto, antes ele
é música, há tendencia para fechar os olhos, lsto aplica-se cm maior ou
qucm conlere interesse a todas as curras personagcns. Contudo. tal nao menor grau a toda a música, e a Don Juan in sensu eminentiori . Assim
eleve ser lomado em sentido um tanto exterior, sendo justamente este, que os olhos estáo ocupados, perturba-se a imprcssáo, visto que a unida-
porém, o segredo desta ópera: dentro da ópera, o hcrói simultaneamen-,
é de dramática que aos olhos se oferece é completamente subordinada e
le a Jorca das restantes pcssoas, a "vida de Don Juan o respectivo prin-
é impcrfcita, cm comparacáo coma unidade musical que ouvida cm con-
é

cípio vital. A paixño de Don Juan pñe cm movimento a paixáo dos out ros, junto com a dramática. A minha própria experiencia deixou-me esta
a paixño dele ressoa profundamente cm ludo, ressoa profundamente e conviccáo. Scntci-mc de perro. afastei-rne cada vez mais, procurei um
sustenta a sericdadc do Comendador, a ira de Elvira, o óclio de Arma. a recanro no teatro, para me conseguir ocultar completamente nesta músi-
importancia de 0Uavio155, a angustia de Zerlina. a exaspcracüo de Mas- ca. Quanto melhor cu a cnicudia, ou cslav~-cu1.crcL.CJUC a entendía. tanto
setto156, a confusáo de Leporcllo, Sondo na ópera o hcrói , Don Juan é o mais e~ me afastava para .Ionge dela, n,,iío p9r fricza, mas ~r~or158,
denominador da obra, sendo o hcrói, atribui-lhe, cm gcral, o seu nome , pois a música quer set entendida ~' <lís_1.fü19i;L Este facto trouxc consigo
masé mais, se assim posso cu dizcr, ele é o denominador cornum. Tocias algo de particularmente enigmático para a minha vida. Ilouvc alturas cm
as outras existencias, cm rclacño corn a dele, sao apenas urna derivada. que tcria dado ludo por um bilhete, agora nem sequer picciso de pagar
Ora, se se exigir que numa ópera a sua unidadc scja urna nota fundamcn- um táler15'J por um bilhclc. Fico cá fora no corredor, encosto-me a div.i-
1.al, Iacilrnente se pcrccbcrá que nao se torna possível imaginar urn tema sória que me separa dos lugares do espectador, entao. o efeit.o produzido
mais perfeito para urna ópera do que Don Juan. A nota fundamental pode é forlissüno. é cm si rncsmo um mundo, apartado ele mim. nao sou capa:¿
estar ern relacáo com torcas tercciras na obra. sustentando estas últimas. de ver nada, mas eslou suficicntcmcnlc peri.o para ouvir e. contuclo, infi-
Como cxcmplo de uma ópera dcstc tipo mencionarci A Dama Branca'Y'; nitamente longe.
mas urna tal unidadc , na rclacño com a ópera, 6 urna dererminacño ultc- Como us restantes personagens que entram na ópera nao necessitam dc
rior do lírico. Em non Juan. a nota fundamental rnais nao é do que a ser lfío prof'undamentc re llcx i vas que passem a ser transparentes enq ua11to
forca fundamental na propria ópera, a 1101a fundamental Don Juan. mas
é caracteres dramáticos, resulta l.arnbérn dcslc !"acto o que acin1a foi destaca-
ele, por scu turno. é absolutamente musical - precisamente por nao ser do: a situa\:fio nao consegue desenvolver-se ou dcsponlar por completo.
personagcm, mas vida esscncial. 11221 As restantes figuras da ópera tam- mas é em certo grnu sustentada por uma disposi<;fío. Aplil:a-sc o mesmo a
bém nao süo personagens. sao antes paixñes esscnciais, supostas por in- ac9ao ele urna ópera. Aquilo que no mais rigoroso sentido tem o nome ele
tcrmédio de Don Juan e, ncssa medida, tornam-sc por sua vez musicais. ac<;fio.11231 o acto que é levado a cabo coma conse.iencia de um objeclivo,
Como Don Juan qucm entrelaca tocias clas, estas por seu turno
é nfío pode encontrar a sua cxpressao na música, a nao ser naquilo a que se
enuelacarn-se também em Don Juan, e constituem as cousequéncias ex- poderia chamar ac\:fÍO irncdiata. Em Don Juan. é o caso de ambas as coisas.
ternas, su postas continuamente pela propria vida de Don Juan. Na ópera, A ac<,:¡¡o é ac<;ao irnediata; a este respeito tenho de remeter para o que acima
é esta a absoluta ccntralidade da vicia musical de Don Juan, pcrmitindo ficou dito. quando desenvolví a significa9lio ele Don Juan corno sedutor.
que a ópera cxcrca um poder de ilusño como nenhuma outra, e que a vida Devido ao facto de a acr;flo ser acr;fío imcdiala, é inteiramentc adequado que
musical de Don Juan transporte um individuo para a vida contida na obra. a ironía seja tao preponderante nesta obra, visto que a ironia é e continua a
Devido a ornnipresenca do musical nesta música possívcl desfrutar urna
é ser o mestre disciplinador da vida imedial.a. Para inlroduzir apenas um
única pcquena parte dela. e ser-se instantaneamentc transportado; chega- cxcmplo, é assim que o retorno do Comendador160 é urna desmedida ironia.
-sc a meio da obra, e fica-sc instantaneamentc noqueé central, porque o dado que Don Juan pode vencer qualquer obstáculo, masé sabido que na.o
que central, a vida de Don Juan, está cm lodo o lado. Diz a vclha cxpe-
é

155 Don Otravio está noivo ele Donna Auna e jura vingar a honra de ambos. 158 A qui, «Kjasrlighed»,
156 Noivo de Zerlina. 159 Quantia equivalente ao salario semanal de um trabalhador.
157 Vd. nota 17 cm «Prefacio». 160 Don Giovanni, Acto 11. cena 15; Kruse. Acto II. cena 20. p. 123.
158

1ncja agora 1111tis 1'01 le a 1x1ixao, irrompe por ela aclcnlro mais violentamen-
é possívcl assassinar um espectro'?'. /\ situacño c~u'í curra vez completa-
te, l'>Urgindo de ro111pa111c cin ,:..ons. Repele-se ainda mais uma vez, estreme-
mente sustentada pela disposicáo: a este rcspciio, icnho de recordar a sia-
ce cnti:io o scu interior, irrompem entilo a ira e a clor como urna torrente de
nificacáo de Don Juan para o todo, bern como a existencia relativa dus
lava, na conhecida tirada com que termina a ária. Ora ve-se aqui qual era a
restantes personagens ern relacáo a Don Juan. Mostrarci a minha opinlño
minha opiniao ao afirmar que Don Juan ressoa em El vira, ve-se que é algo
discutindo com rnaior pormenor urna situacáo particular. Escolho para o
mais cloque fraseado. O espectador nao eleve ver Don Juan, nao eleve ve-lo
efeito a primeira ária de Elvira162. A orquestra cxecuta o preludio, Elvira
juntamente com Elvirn na unidade da sittta9ao, deve ouvi-lo entrando em
entra. A paixáo que no peito dela brada tcm de ganhar fólego e o canto
Elvira, saindo de Elvira. pois se bem que seja Don Juan quern canta, ele
ajuda-a nesse intuito, o qual seria todavía demasiado lírico para ser propria-
canta, porém, de modo a que quanto mais descnvolvido estiver o ouvido do
mente urna situacáo; a aria de Elvira seria entáo da mesma naturcza do
espectador, tanto mais lhe parecerá que provém da própria El vira. Tal como
monólogo. no drama. A difcrcnca residiría apenas no facto de o monóloaob
o amor164 cría o seu objecto, também assim acontece com a exasperas;ao.
estar rnars perlo de dar o universal de urna forma individual, e a ária, o in-
Está obcecada por Don Juan. Esta pausa e a vo¿ ele Don Juan tornam a si-
dividual ele forma universal. Mas, tal como cu dissc, isto seria cxcessiva-
tua9ao dramática. mas a unidaclc na paixiío de Elvira, na qual Don Juan
mente pouco para chegar a ser urna situacáo. É por isso que tambérn assirn
rcssoa. sendo embora essa sua paixao suposta por Don Juan, torna a situa-
nao é. Em segundo plano, ve-se Don Juan e Lcporcllo na ansiosa expecta-
c;ao musical•. A sitml9ao, observada como situa((flo musical, é inigualável.
tiva de ver surgir a dama que já haviam observado a janela, Ora se esrivés-
Se, ao invés, Don Juan, bem como Elvira, forem personagens, enliio, a si-
semos perante um drama, cntño. a situacáo niío residí ria no facto de El vira
tuac;ao falhou, cntao, resulta errado por Elvira a expectorar em primciro
estar em primciro plano e Don Juan ern segundo plano, antes residiría no
plano e Don Juan a tro((ar em ·segundo plano, visto que seria aqui de exigir
inesperado confronto entre os dois. O intcresse repousaria no modo como
que eu os ouvissc 11251 em conjunto, scm que afina! seja dacio o meio para
Don Juan iria escapar. Na ópera, o confronto entre os dois também adquirc
o fazer, e apesar ele ambos serem personagens a quem seria irnpossfvel
urna significacño sua. mas multo subordinada. O confronto é para ser visto,
soar em conjunto dessa forma. Se forem personagcns, entao, a colisao entre
ª. s~tua(ffü~ musical para ser ouvida: Ora a unidadc na situacflo a dispo-
é é
os dois é a si1.ua9ao.
sicao eOnJunta16\ na qual Elvira e Don Juan ressoam em conjunto. Também
por isso, é intciramentc acertado que Don Juan se rnantenha rccuado tanto
quanto possível, pois nño deve ser visto. nao apenas por Elvira, mas ainda
* Em minha opiniño. é assím que devern ser concebidas a ária e a situacño de
Elvira. A incomparávcl ironía de Don Juan nao dcvc ser mantida no exterior,
menos pelo público. A ária de Elvira comcca. Nao sci designar a paixáo de
antes eleve permanecer oculta na paixáo substancial de El vira. Jsto tern de ser
Elvira a nño ser como um amor-ódio, urna paixáo amalgamada. vibrante e
ouvido em conjunto. Tal como o olhar especulativo ve ern conjunto, tambérn o
sonor~. O seu interior movimenta-sc cm dcsassossego, ganhou fülego, fica
ouvido especulativo ouve assirn em conjunto. Vou dar urn exemplo retirado <lo
11241 traca por um instante, mais rraca do que urna qualquer explosao apai- que puramente físico. Quando alguérn, ergucndo-sc num ponto alto, observa
é

xonaclu. segue-sc uma pausa na música. Mas basta a movimenta9ao no seu urna regiño plana e ve os diferentes caminhos que corrern paralelos uns aos
interior para i.ndi.car que ainda nao há paixao suficiente para que chcgue a curros, se ti ver falta de intuicño, verá táo-sorncmc os carninhos, e as terras que
explodir; o diafragma da ini tem de ser abaJado ainda corn mais intcnsida- os entrernciam como que desaparecern, ou verá tao-somente as terras e os ca-
dc. Mas que coisa será capaz de fazer surgir este abalo, que incitamento? minhos desaparcccráo; aqueles que pelo contrario possuem um olhar intuitivo,
Só pode ser um único - a tro9a de Don Juan. Por isso, Mozarl utilizou a vé-los-áo cm conjunto, verño riscas a toda a cxtcnsño. Também assim acontece
pausa - oxalá eu fosse grego, já que assim d.iria que a utilizou de uma como ouvido. O que foi aqui dito aplica-se obviamente a situacáo musical; a
maneira plenamente divina - para aí entrelas;ar a tros;a de Don Juan. Fla- situacáo dramática tcm esse mais, l. e., o espectador sabe que é Don Juan qucrn
está em segundo plano e que Elvira quern está cm primeiro plano. Ora se cu
é

assurnir que o espectador é conhecedor destas anteriores relacóes (algo de que


161 Forrnulacño original de Jens Immanuel Baggesen, Kallundhorgs Krenike eller o espectador nao pode ter conhecimento na primcira vez). entáo, a situacáo
Censurens Oprindelse [Crónicas <le Kalundborg ou Origcm da Censura], de 1786, in ganha rnuito, mas também se verá entño que, houvesse a énfase de rccair nesse
Jens Baggesens danske varker [Obras em Dinamarqués de J. B.], vol. L p. 236.
ponto, nao estaría cerro manté-Ios longc um do outro durante tanto tempo.
162 Don Giovanni, Acto I, cena Y; Krusc. Acto l. cena 6, pp. 20-2l.
163 Recordc-sc outra valencia de «Ste111ni11g», que permite ler a expressáo como «afi-
164 Aqui. «K)(.(!r/ighed».
nacño conjunta».
160 161

Comcnrou-sc acirna como, na ópera, nao M.: C.:\1gc a p1c~su drumárica, a mui-, rigor, o que resta da pcrsonulidudc écngolido por cssa paixílo. Ora
crescentc celeridadc no scu curso, tipicn do drama, e como a silua<;iio se 1slo está absolutamente cerio. porque é ele urna ópera que estamos a tratar. \
espraia corn agrado mais urna migalhinha. nao tcndo isvo. cornudo, de de 1 :sta obscuridade, esta misteriosa comunicacáo com Don Juan, em parte
generar ern constante paragem. Corno exemplo da verdadcira mediana, srmpatética, cm parte antipatética, fat. com que sejam conjuntamen~e musi-;
posso destacar a situacáo que acabo de discutir, nao como se esta suuacño cuis e, cm 1)011 Juan. produz o efcito de toda a ópera soar cm conjunto. A
fossc a única cm Don Juan, ou a mais pcrfeita, pelo comráric, todas cías única figura na obra que parece ser cxccpcíío é obviamente o Comendador;
assirn sao. e todas sao perfeitas, mas porque o leitor a retérn como rccorda- mas iambérn por isso está tao sabiamente distribuído que, cm certo grau,
<;ao mais próxima. E contudo, aproximo-me de um ponto comprometedor, Iica de Iora ou delimita a obra; quanto mais o Comendador fossc impelido
pois conlesso que há duas íirias dispcnsáveis, as quais, por rnais perfcitas para a frente, tanto mais a ópera ccssaria de ser absolutamente musical. Por
que cm si mesmas sejam, produzcrn afinal um efcito perturbanrc, e urn isso.é continuamente rnantido cm segundo plano, e tño encoberto quanto
cfeiro retardador. Prefería guardar scgrcdo, mas já ele nada serve agora, a possível. O Comendador é a vigorosa proposicño antecedente e a intrépida
verdadc tem de vir a IU/ do clia. Se forem retiradas, toda a restante ópera proposícáo consequentc, situando-se entre estas a proposi9a~ in.termédia_ <l~
fica igualmente perfcita. Urna de Ottavio165• e outra é de Anna166, ambas
é Don Juan, masé o rico conreúdo dcsia proposicáo intcrrnédia que constitui
sao mais pc~as ele concerto cloque música dramática, tal como ele um modo o teor da ópera. O Comendador só aparece duas vczcs167• Na primcira ve~,
gcrul Ottavio e Anna sao personagens demasiadamente insignificantes para aparece de noitc; está no fundo do palco. nao é possívcl _ve-lo, ~as é_ ouv~-
ousarem fazer parar o andamcnto. Se forem retiradas, a ópera adquirc, aliás, do quando eai sob a espada de Don Juan. A sua scriedadc já ah esta,
urna pcrlcita cclcridade dramático-musical, pcrfcita como ncnhurna outra. mostrando-se apenas mais forre diante da troca e da parodia de Don Juan,
Valcria ccrtamcntc a pena pcrcorrer tocias as situa<,:oes urna a urna, nao algo que Mozart exprimiu na música ele maneira excelente; a seriedudc do
para ª" Iazer acompanhar de pontos de cxclarnacño, mas para mostrar a Comendador já demasiado profunda para pcnencer a um homcm; ele é
é

respectiva significacáo, a respectiva validade enquanro siruacño musical, o c~pírito antes de morrer. Na segunda vc1., mostra-se como espírito, e o cla-
que entretanto está fora dos limites da pcquena invcstigacño aqui presente, mor troantc do céu ressoa na sua vo1, solcne e séria; mas tal como o Comen-
na qual de especial importáncia destacar a centralidade ele Don Juan cm
é dnclor se transfigurou. a sua voz ve-se assim transfigurada para algo que é
toda a 11261 ópera. Repetc-se urna coisa parecida no que di; rcspeito as '>i- mais do que urna vo1 humana; o Comendador já nao fala, julga.
ruacócs singulares. 11271 A seguir a Don Juan, a personagcm mais importante na obra é ma-
Quero esclarecer rnais pormcuorizadurnente a j:í discutida ccntralidadc nifestamcnte Leporello. A sua rela<_;ao com o amo passu a ser explicável
ele Don Juan na ópera. passando a observar as restantes pcrsonagens na obra precisamente através da música, sem a música, toma-se incxplicávcl. Se
na rclacáo com Don Juan. Tal como no sistema solar os corpos oscuros, ao Don Juan for uma personagem reflectida. cntiio. Lcporcllo torna-se um
rccebercm a Ju¿ do Sol, que está em posicño central, ficam semprc apena), patife quase ainda maior do que ele, e fica por explicar como pode Don
iluminados pela mctade, e lcm luz, dcsignadarnentc, no lacio que está vol- Juan exercer um poder tiío grande sobre ele; o único motivo que resta é ele
tado para o Sol, tambérn é este o caso das personagcns desta obra: só está pagar mais do que todos os outros, um motivo que nem sequer Moliere
iluminado o momento de vida, o lado que está voltado para Don Juan, parece ter querido utililar, dado permitir que Don Juan passe por apertos <le
quanto ao resto, sao obscuras e opacas. lsto nao tcm de ser tomado cm dinheiro. Ao invés. tomando nós Don Juan como vicia irnediata, entao.
sentido restritivo, como se cada urna desras personagcns fossc urna ou outra torna-se fácil entender que ele seja capaz de cxercer uma influencia decisi-
paixño tomada cm abstracto. como se, por exemplo, Anna fossc o ódio. va sobre Leporcllo, que o assimile para si a ponto ele Leporello quasc che-
Zcrlina, a lcviandade. Sernclhante falta de gosto é a última coisa a caber gar a ser um órgao de Don Juan. Em certo sentido, l..eporeHo eMá mais
aqui. No indivíduo singular, a paixáo concreta, porérn, concreta em si
é

mesma, nao sendo concreta na personal icladc, ou para me exprimir com 167 Kicrkcgaard scguc a indica<;ao de llotho, que apenas considera duas e1~tra~las do
Comendador; vtl. Holho. Vorswdien. p. 41; e referencia a cena do cem1léno nas
pp. 133-136. !\a realirladc, o Comendador aparece urna vez em vida. i. c .. quando é
165 Dalla sua pace, Acto l. cena 14, composta para a estrcia da ópera cm Viena cm a~sassinado, Don Giow11111i, Acto l. cena l: e <luas vc7.es como espectro: na cena do
1788: nao figura na vcrsño de Krusc. ccmitério, Don Giovanni, Acto JI, cena 11, Kruse, Acto TI, cena IS, p. 102: c na cena
166 Non mi dir. betl'ldol mio. :1 segunda ária de Donna Anna.Acto 11, cena 12; Krusc, conclusiva, a ceia em casa de Don Giova111ú, Don Giovanni. Acto ll, cena 15. Kruse.
Acto 11. cena 16. p. 114. Acto ll. cena 20. p. 123.
16.l
162

perto de ser urna consciencia pessoal do que Don Juan, mns para que tal uportuuidudc de lancar u111 olhar profundo sobre o compositor, e s~obre a
aconteca, teria de ser ele a tornar clara a rclacíío corn ele csrabclccida; mas rel:1c;ao anímica que maruém com a ~11a música. Se nao captar corn éxito o
nao consegue fazé-lo, nao consegue eliminar o encantamento. Vol ta aquí a que central na música, nao entra nurn relacionamento mais prof~ndo corn
é

impor-se que Leporello tenha de ficar transparente para nós, assirn que a disposicño fundamental da ópera, cntáo, isso fica inconfund1velmentc
profcre urna réplica. Tambérn na rclacño de .Leporello com Don Juan há denunciado na abertura; esta passa entáo a ser um agregado dos pontos
algo de erótico, há um poder corn o qua! Don Juan o prende contra a von- salientes cntrelacados por urna frouxa associacáo de ideias, e nao totalidadc
iadc dele; mas dentro dcsta cquivocidade Lcporello musical e Don Juan
é
algurna. nao contendo a abertura. como era propriamente dcver seu, escla-
continua a ressoar nele, algo de que darei posteriormente um exemplo para rccimentos mais profundos sobre o conteúdo da música. E comurn que urna
mostrar que é mais do que urna frase. abertura dcssc tipo seja tambérn por isso completamente arbitrária, .e pode,
A excepcáo do Comendador, todas as personagens estabelecem urna dcsignadamente, tornar-se táo longa ou tao breve quanto se querrá, e. o
espécie de relacño erótica com Don Juan. Nao é capaz de excrcer poder elemento congregador, o de continuidadc, dado que apenas urna associa-
é

algum sobre o Comendador, ele é consciencia; os outros cstáo cm scu po- c;uo de idcias, pode ser desc1lrolado tanto quanto se que~ra. Por ísso, urna
der. Elvira ama-o, está por cssa via cm scu poder, Anna odeia-o, está por abertura é arniúde urna renracáo perigosa para compositores de segunda
cssa via cm scu poder, Zcrlina teme-o. está por essa vía em seu poder, Ot- ordcm que se dcixam embarcar com muita facilidade no plagio el.e si m~s-
tavio e Masscuo juntam-sc-lhes por razócs de afinidade. já que os laces de mos, roubando do seu proprio bolso. algo que produz urn efclto rnuuo
sanguc sao ternos. perturbador. Tendo assim claramente cm conta que a .abertura nao dc~e
Ora ~<>e eu voltar por um instante no que aqui foi desenvolvido, entáo, contcr o mesmo que a ópera contém, cntáo, torna-se 6bv10 que tamb~m nao
talvez 'o leitor veja corno aqui se dcsenvolveu novamcnte, ern diversas dcve corucr urna coisa absolutamente diferente. Ha-de conter, des1gnada-
perspectivas, o tipo de relacáo que a ideia de Don Juan estabelecc com o merite, 0 mesmo que a obra contém, mas de urna maneira diferente, deve
musical, o modo como essa rclacáo é aquilo que é constitutivo de toda a conté-lo de urna mancira central e agarrar o ouvinte corn todo o poder do
ópera. o modo corno cla se rcpctc nas partes particulares da ópera. Poderia que é central.
de bom grado parar aqui , mas por urna qucstáo de completude suplementar A este rcspeito, a scmpre admirada abe1tura de Don .luan é e permanece
quero todavia esclarecer essa relacáo percorrendo algumas pecas em sepa- uma obra-prima perfcita. e se nao se pudesse introduzir ncnhuma outra
rado. A escolha nao há-de ser arbitraria. Escolho para cssc cfcito a abertu- prova da classicidade de Don Juan, entao, ser.ia surici~nle destacar es:a
ra 1<>8, a qua l. está bern perlo de dar a tonalidade fundamental H ópera pela única: o que há de impensável no facto de aquilo que tinha o central. nao
sua condensada concentracño; escolho a seguir o momento mais épico e o houvesse de ter também o periférico. Esta abertura niío é nenhuma mistu-
momento mais lírico na obra. para mostrar como 11281 a perfeicáo conser- é
rada ele temas, nao eslá enredada em a~socia¡,;oes de ideias em labirinto, é
vada até nos limites rnais extremos da ópera. e o dramático-musical devi- é
concisa, determinada, fortemente construída c. acima de 11291 tudo. está
damente mantido, e como Don .Juan quern sustenta a ópera musicalmente.
é
impregnada da esséncia de toda a ópera. É vigorosa como~ pensarncnto ~e
Nao é este o lugar para um dcscnvolvirncnto da significacáo trazida, na um c(eus movimentada como a vida de um mundo, arrepia pela sua sene-
globalidade, pela abertura a ópera; quando multo, pode aquí ser destacada dade, esi'remece na sua volúpia, esmaga com a sua Lcrrívcl ira, inspi:a por
a circunstancia de urna ópera, ao exigir urna abertura, mostrar bastante a viada profunda alegria de vi ver; é cavernosa nas suas se~1lenc,:as, cs~ndente
preponderancia do lírico, e que o efeito visado por essa via o de fazer é
na volúpia,é vagarosamentcsolene na sua imponente digntdade, movunenta-
surgir urna disposicáo, algo a que o drama nao pode permitir-se, dado que -se, esvoa<;a e danc,:a nesse seu gáudio. E isso nao foi alcanc;ado sugando o
tudo eleve ser transparente. É por isso adequado que a abertura seja corn- sangue da ópera, pelo contrário, cm rclac,:ao a ópera, a abertura é uma pro·
posta em último Jugar, para que até mesmo o artista possa ficar profunda- fecia. e a música desdobra nela toda a sua amplitude e, batcndo levemente
mente penetrado pela música. Por isso, é cornum a abertura conceder a as asas com vigor, como que fica a pairar; fica a pairar sobre o local onde
irá pousar. É uma luta. mas urna luta nas mais altas ~egioes eté~eas. Para
quem ouvir a abertura depois de ter obticlo um co~~cc1mento ma.1s aturado
168 Para urna análise circunstanciada do quanro Kicrkcgaard se apropriou do cnsaio da ópera, talvez pare9a que entrou na remota oftcrna onde. as io~c,:as que
wagneriano «De l'Ouverture» (1841). vd. Elisabete M. de Sousa, «What Kierkegaard did
aprendeu a conhecer na ópera se agitam com uma for9a pnmor<l1al, onde
after reading Wagner», in Filosofia e Literatura J, Actas do l." Colóquio de Filosofia e
Literatura, ed. Humberto Brito, Lisboa: fnstituto de filosofía da Linguagem, pp. 57-69.
irrompern urnas contra as outras com todos os poderes. No entanto, o com-
164 f ht Ou lJ111 "'·'l'ttll't1h1 d;. V1d.1 IM

bate é excessivamcntc desigual, urn ú11 ico dos poderes j11 e 'K'111lor do 1 riun- couhcccdor de musicu. 1na-. La1111Jém cxtou a cscrcvcr apenas para apaixo-
fo antes <la batalha, fogc e esquiva-se, mas esta ruga é prccixarncntc a sua ii.1do-.. e e-.1c-. vao deceno entender· me, e alguns deles ainda rnelhor do que
paixáo, o ardente desa. sossego da sua breve alegria de vivcr, o pulso ace- l u 111c cntcndo a mim mesmo. Contento-me entretanto coma parte que me
lerado do scu ardor apaixonado. R assirn que este poder pñc cm movimcn- couhc. com este enigmático cnarnorarncnto e, aposar ele eu aliás agradecer
to o outro poder, arrastando-o consigo. Este. que prirneiro se mostrara tao .tus dcuscs ter nascido horncm e nao rnulhcr'?", acontece que a ópera de
inabalavelrnentc seguro que quase esiivera imóvel, tem agora de sair e, 1\ lu/art me cnsinou como é bclo, e reconfortante, e enriquecedor, amar
rapidarneruc, o movirnento torna-se tao veloz que parece ser urn combate L'111no u ma n tu 1 her.
real. Nao é possívcl prosseguir com rnaior pormenor, importa agora ouvir no sou um dcsscs amigos de irnagens: a moderna literatura tem criado
a música. pois o combate nao é um combate de palavras. mas urna fúria dos cm mim, cm grande medida, urna avervño a irnagens, visto que por vczcs
elementos. Tcnho apenas de chamar a atcncáo para o que anteriormente Ioi chcgarn a cstcndcr-sc tanto que, de cada vez que encentro urna imagem, sou
dcscnvolvido: o interessc da ópera Don Juan, e nao Don Juan e o Comen-
é mvoluntariurncntc pcrcorrido por um temor, o ele que o verdadeiro propó-
dador, e tudo isto cvtá mostrado na abertura. Parece que Mozart se aplicou vuo dessas imagens seja ocultar urna obscuridadc do pcnsamcnto. Nao me
e dispós a abertura de molde a que aqueta voz profunda que soa no início, atrcvcrci de modo algum a efectuar um ensaio incomprccnsívcl ou infrutí-
tornando-se a pouco u pouco cada vez mais fraca, como que perca o seu krn para traduzir a contida e enórgica brcvidade muna linguagcm figurati-
porte rnajcstático e tcnha de correr para conseguir acompanhar a pressa va, verbosa e in. ipiente: qucro apenas dcswcar um único ponto na abertura
demoníaca que !he escapa e, contudo, quasc arranjc poder para a aviltar. l'. para chamar a atcn!:faO do lcitor, utilizarei uma imagem. o único rncio de

arrasiando-a consigo para urna corrida na brcvidade do instante. Assim é que <lisponho para cstubelcccr ligayffo com essc ponto, o qual nao é (~bvia-
criada progrcssivamentc a 11w1si9í:ío para a propria obra. No scguimento mi;nte outro que nao ... eja a primcira apari':fi'iO de Don Juan. o pressent11nen-
<lis ro. tem de imaginar-se o final 169 cm rclacño cstrcita com a primcira 'º que dele se tcm. e do poder com que mais tarde ele irrompe outra ve¿. A
parte da abertura. No final, a scriedadc regressa outra vez a si mesma, ao abertura comcya c.:om alguns acordes profundos. sérios. e uniformes, ~oan-
pusso que no decurso da abertura como que cstivcra lera de si mesma: a do cntao pela prirncira ve1. um simtl infinitamente longínquo e. como se
qucstáo nao é agora correr ao desafio 11301 com a volúpia, a sericdadc re- 11vesse chegado dema-.iado cedo, é retirado no mesmo in~tante. até que
grcssou novamentc e, dcssc modo, cortou todas as sardas para urna nova 111ais tarde se ouvc 11311 repetidamente, cada vez mais intrépida, cada vez
corrida. mais sonante, aquela vul que primeiramcnte con~cguira entrar com astúcia
Por isso. conquanto ern determinado sentido veja indcpendente , num e garridicc e, contudo. como que com angústia. nao scndo por seu tumo
outro ·entido, é de considerar a abertura como um prenúncio da ópera. capaL de penetrar profundamente. É as:.im que por VelUS ~C VC na natureza
Procurei acirna Iembrá-lo, refrescando a recordacüo do leitor quanto ao o horizonte, obscuro e encoberto; demasiado pesado para se suster a 5i
dccréscirno progressivo corn que no infcio da obra urn dos poderes se avi- próprio, rcpousa sobre aterra, tudo ocultando na sua noitc escura: fa1.em-se
zinha. Constata-se o mesmo ao observar o outro poder, o qual aumenta, ouvir apena!> alguma" nota~ cavernosa.,, porém, nao em movimento, mas
dcsignadumcnte, cm progrcssño cresccnte; corncca na abertura, cresce e como um profundo munnúrio a si mesmo dirigido - ve-se entao jlmlo ao
aumenta. E especialmente digno de admiracño o que está cxpresso no seu mais extremo limite do céu. longe no horizonte. um clarao: precipita-:.e
comeco. Ouve-sc o corneco sugerido tao ténue e misteriosamente. ouvc-se, rapidamente a toda a largura da terra. "orne-se num ápice. Mas voila de-
mas acabando de forma tao rápida que se recebe justamente a irnpresxño de prcssa a mostrar-se. aumenta de fon,;a, ilumina momcntancamentc todo o
que se ouviu urna coisa que nao se ouviu. É preciso ter urn ouvido atento, céu comas suas chamas, no instante seguinte o horizonte parece ainda mais
urn ouvido erótico, para reparar da prirncira vez como a abertura faz a su- obscuro, mas flameja ainda mais depreso.,a e mah incandescente, é como se
gcstáo do jogo Iigeiro dessa vohipia, a qual depois se recebe, ricamente
expressa ern toda a xua pródiga abundancia. Indicar com rigor e exactidáo 170 Prasc atrihuída a Tules por Diógencs L<iércio em Vidas de Grwules Fi/6svfu1,l. 33:
onde está essc lugar é algo que nao sou capa¿ de fuzer, já que nao sou um edi~iies con<>uhadm. pelo autor: Oiugenis ú1er1ii de l'itis plli/osopl10ru111 1 Vid<L' dos Fi-
l6sofos de D. L.]. vob. 1-11, Lep11g. 1933: vol. l. p. 15. e Dioge11 Li1fr1se~jilosofiske
Hiswrie LHistória da Pilosofia de D. L.]. vols. l-11, trad11i.;iío de B0rgc Riisbrigll,Co~-
169 /\ última cena é aqui a cena da ceia, Acto 11. cena 15; Krusc, Acto IJ. cena 20, nhaga. 1812: vol. 1. p. 14. Vd. Diogenes Laertius. Li1•es of Emi11e111 Philosopller.v. tra-
p. 123. A chamada scena ultima. cstreada na verxílo de Viena. nunca foi e" ibida na Di- dui,;ao de R. D. Hicks. Cambridge: Harvard L:nivcrsity Prco;s (Loeb). 1991. vob. l-11:
namarca. a scmclhanca do que acontcceu na Alcmanha durante todo o século xix. vol. l. p. 35.
166

a propria cscuridño tivcsse perdido o vosscgo e se puses:-w c111 mov111w111o. de l .cporcllo corresponde ao 11ao 111c11os ramoso monólogo de Sganarel cm
Tal como os olhos pressentcrn a deflagracño ncssc primciro clarño, também Moliere. Observaremos a c;ituac;iío urn pouco mais de perro. O monólogo de
os ouvido pressentern toda a paixño ncssa agoni/aruc arcada de violino. Sganarel '7' está longo de ser pouco espirituoso. e quando lido nos v~rsos
é

Há urna angustia naqucle claráo, é como ter nascido na obscuridadc profun- ! luidos e leves do Prof. Heibcrg, devoras que entretém; cm contrapartida, a
da e com angustia - assim a vida de Don Juan. Há nclc urna angústia,
é xituacíío peca por defcito. Digo isio mais em relacáo a Moliere. já que, em
mas esta angustia a sua energía. Nao se trata de urna angústia que csteja
é l tcibcra, o caso é outro. e nao digo isto para rebaixar Moliere, mas para
rcflectida ncle subjectivarnentc, mas sim de urna angustia substancial. Ña mostrar o mérito de Mozart. Em maior ou menor grau, um monólogo rom-
abertura. nao há o que é comum dizcr-se sem saber o que se está a dizcr pe scrnprc corn o dramático e. quanclo o poeta. para fazer surgir tal cfcito,
- nao há de. espero; a vida tic Don Juan nao desespero; é antes tocio o
é procura produzi-lo através da propria e .. pirituoxidade do diálogo. e nao
poder da scnsualidade, nascido na angustia, e o próprio Don Juan é esta utravés da respectiva pcrsonagcm, foi etc qucm partiu a vara nas suas pró-
angústia, mas esta angustia éexactamente o demoníaco desejo ele vivcr. prias costa-; ao abdicar do intcrcssc dram:í.tico. Na ópera, é diferente. A si=
Depois ele Mozart ter assim feíto corn que Don Juan viesxc existencia. a a tua9ao é aqui absolutamente musical. Já atrás recordei a dirercnc;a que ha
vida de Don Juan descnvolvc-ve agora diantc de nós nos sons dancantcs dos entre mna situa9ao dram:ítica e urna situa9ao dramútico-musical. No drama,
violinos, nos quais ele se precipita no abismo. ligciro e fugaz. Tal corno ao a conversa nao é tolerávcl. exige-se acc,:fio e situa\:i'lO. Na ópera. há um re-
lancar urna pcdra de molde a que vcnha a tocar de raspáo na supcrfície da pouso na situac;ao. Mas entao. o que faz desra situa<rao uma situa<rao musi-
água, esta c~nsegue cntño saltitar sobre a água durante algurn tempo e, cal? Foi destacado anteriormente que Lcporello é urna figura mu~ical e,
pelo contnirio, assim que acaba de saltar, afunda-sc instanrancarncnrc no t.:ontudo. nao é ele quem sustérn a siluac,:ITo. Se assim fossc, a sua ária seria
abismo. tarnbérn ele danca assirn sobre o abi\1110, rejubiluntc ncste scu análoga ao monólogo de Sganarcl, se hcm que por isso se tivcsse igualmen-
breve pravo. te demonstrado que urna qua.<,e-<;ituac;ao deste tipo a1-scnta mclhor na ópera
Ora. se. como acimn foi comentado, a abertura puder todavía ser tida do que no drama. Aquilo 4uc torna a -;ituac,:ao musical é Don Juan. que estú
como u111 prcnúncio da ópera; se na abertura se dcscer duquclas elevadas tá dentro. O fulcro nao estú em Leporello, que c-;tá próximo, mas em Don
rcgiñcs, entño. é ele pcrguniar cm qual dos lugares na ópera se aterra me- Juan. que nao ·e ve - mas 4ue se ouve. Seria deccrto possívcl contrapor o
lhor, ou como proceder para que a ópera tcnha infcio. Quanto a isto, Mozurt !.eguinte: «nao se ouvc 0011 Juan de tocio». A isso. rcsponderia eu: «sim.
viu a única coisa que esta va cerra: cornccar corn Leporello. Podía até pare- ouvc-sc. pois ele ressoa em Leporello.» Em relac,:ao a isto, devo chamar a
c:r que isso nao tcm grande mérito. tanto mais que quasc todas as concep- atern;ao para a transic,:ao ( 11110/ star dentro colla l)el/a)174• na qual L:po~ello
cocs de Don Juan comccarn por um monólogo de Sganarcl. No entamo, é est<í manil'estamcntc a rcproduzir Don Juan. Mas mesmo que nao tosse
urna grande diferencu, e surge aquí novamcnte a oportunidade ele admirar este o caso. 11331 a situac;ao está todavía delineada de modo a que ncla se
11321 a mcstria de Mozart. Colocou a prirneira ária do criado cm ligadío inclua involuntariamente Don Juan. cf..qucccnclo-f..e Leporello que está cá
' d. 171 ,t. T
1111~ tata corn a abertura . e. algo que raramente ocorre: cnquadra-se aqui fora. em favor de Don Juan que está lá dentro. Acima de tudo, Motart fez
muno bem, e lanca urna nova luz sobre o plano geral da abertura. A aber- com que Leporello reproduz.issc Don Juan com genufna gt.:nialidade.c. por
tura procura dcsccr até asscntar os pés na realidadc cónica: já ouvírarnos 0 es!.a vía. alcanc,:ou duas coisa.,: o efeito musical 4ue consiste cm ouv1r Don
Comendador e D. J. na abertura; a seguir a eles. Lcporello é a figura rnais Juan cm todo o lado por onde Leporello ande sozinho, e o cfeito paródico.
importante. Nao obstante, Leporello nao pode ser elevado para travar cssc que consiste cm ouvir Leporello a repetir Don Juan, e~tando Don Juan
combate nas regiües etéreas e, no entanto, mais do que ninguém, parle é também presente, através desse efeito. a parodiá-lo inconscientemente.
desse combate. Por conscguiruc, a obra tem início com ele de modo a que Como cxemplo, mcncionarei a conclusao do baile 175.
ele fique cm Iigacáo imediara corn a abertura". É por isso inteiramente
ccrto contar a primcira ária de Leporello172 como parle da abertura. A ária l73 Acto[. cena J: in Molieres udwilRte Sk111•.vpil, p. 173.
174 Em italiano no original: «qucr estar lá den1ro eom a bcla»: a Ncuc Mo7.art-Ausgabc
~ubs1itui «1•1wl» por «1•ni».
171 O~ editores de SKS imercalam um conjunto de frases do manuscrito, corn início 175 Don (iiovamú. Ac10 I, cena 20, Kruse. Acto l. cena 20, p. l23; scguindo ordens de
nesrc local e conclusño no asterisco. seto linhax abaixo nesia página. Don Giovanni, Lcporcllo dall(,:a com Massel.lll e distrihui os pare¡, nu dan9a. Além desta
1y2 Acto 1. cena 1. prime ira ária de Leporello. No11e e giorno fatticar .... cm liga<;iio cena. há ainda toda uma sequencia de cenas em que Lcporello e Don Juan trocam de
directa coma abertura. identidades: ve!. Do11 Gio1•a1111i. Acto 11. do final da cena 1 até ao início da cena do ce-
1()8 16()
Ou Ou l1111 h,1¡•1111.11111111 \ 111.1

Se se perguntar qual o momento mais épico na ópera, en tao, nao rcsinm


é nos ... a situacao, e há algo de doloro ...o no lacto de cln estar presente para vir
dúvidas de que a rcsposta fácil: é a segunda riria de l.cporcllo. a .iria do
é a saber das mil e trl!s que h(i c111 Espanha c. mesmo, o que ainda rnais, na é

catálogo. Já foi acima destacado. através da cornparacño dcsta ária com o vcrsño alcmá cla igualmente nomcada como urna das mil e tres, o que
é

correspondentc monólogo em Moliere, qual é a significacáo absoluta da sen do um apcrfcicoarncnto alernáo 1 HO revelador, em idéntico grau, de urna
é

música: a música, justamente pelo facto de nos deixar ouvir Don Juan estúpida indecencia, tal como a rraducáo alemá, de urna maneira ~ao ~en.os
ouvir a variacóes nelc, faz surgir o efcito que nao está ao alcance da pala- estúpida, é ridículamente indecente e completamente falhada. E a El:1ra
vra ou do .diálogo. É aqui de irnportáncia salienrar a situacáo e o que nela que Leporello oferece urna panorámica épica da vida do seu amo, : é. me-
há de musical. Ora se olharmos para o palco, o conjunto em cena consti- é gável que é inteiramente adcquado ser Lcporcllo a declamar e ~lv1ra a
tuído por Leporcllo, Elvira e o criado fiel. O amante infiel, ao invés, nao cscutá-Io, já que ambos cstáo intcrcssados nisso cm alto grau. Por isso, tal
está presente. está dcsignadarncntc, como Leporcllo exprime, dizendo com como se continua a ouvir Don Juan em toda a ária, tambérn nalguns passos
propriedadc - «está fora»176. É um virtuosismo que está na posse de Don ouvc-sc assirn Elvira , a qua! está visivclrncntc presente cm palco, como
Juan: ele está cá, e - en tao, ele está Iora, e torna-se para ele tao convenien- urna testcmunha instar 011111i11111, nao por motivo de algurn privilégio aci-
te estar fora (designadamentc fora de si mesmo), quanto conveniente a
é dental da sua parte, mas porque o método permanece essencialmente o
entrada de Jeronimus'?', Como agora se mostra que ele nao está, podcria mesmo, urna vale por todas. Se Leporello fosse urna personagern dramática
parecer estranho que eu falc dele, inrroduzindo-o de certa rnancira dentro ou urna personalidade profundamente reflectida. entáo, seria difícil imagi-
~la situacño; com urna apreciacáo mais rigorosa, tal vez isto venha a parecer nar sernclhante monólogo, mas, exactamente por ser uma figura musical.
mterrarncnte adcquado, vendo-se aquí um excmplo de como a ornniprcscn- afunda-sc cm Don Juan; por isso, a ária tcm uma tao grande significa9ao.
9a de Don Juan na ópera tcm de ser tomada a letra, visto que nao pode ser A ária é uma reprodu<;ao de toda a vida de Don Juan. Lcporello é o narrador
denotada de maneira mais incisiva do que chamando a atcncño para a cir- épico. Dcce1to que scmclhantc narrador épico nao pode ser frio ou .ncar
cunstancia de ele estar presente. mesmo quando está fora. No entamo. indiferente ao que está a narrar. mas devc, contudo, manter urna a11tude
queremos deixá-lo agora ficar de Iora.já que con. cguiremos ver rnais tarde objectiva diante disso. Nao é este o caso de Leporello. Deixa-"e levar corn-
com que significacño ele estn presente. Ern contrapartida, queremos obser- plctamentc pela vida que dcscrevc. csquccc-se de si crn Don Juan. Volto
var ~s tres pcrsonagens ern palco. ofacto de el vira estar presente contribuí aqui a ter assim um cxcmplo do que é di1.cr que Don Juan rcssoa por toda
obviamente para produzir urna situacño, poís seria descabido pór Leporello a parte. A situa<,:ao nao reside de modo algum nu c.:onfabula<;íio de Lcporello
a dcsenrolar a lista para passaternpo seu: mas a posicño dela contribui ao e de Elvira sobre Don Juan. mas na disposi<;iio 4ue sustém o todo, na pre-
mesmo tempo para tornar a sit.ua~ao ernbaracosa. Nao posslvel negar que,
é se111~a espiritual e invisível de Don Juan. Desenvolver mais a tra~si<;üo
cm .gerul, a troca por vetes dirigida ao amor17l! de Elvira é quasc cruel. desta ária. o modo como ela come~a tranquilamente. com pouca mov1men-
Assirn . acontece no segundo acto 179, no instante decisivo cm que Ouavio ta9ño, inflamando-se, porém. cada vez mais a medida que a vida de Don
p.uxa Iinalrnentc a coragern do peito e a espada da bainha para 11341 a~sas- Juan cada vez mais ncla resc;oa; desenvolver mais o modo como Lcporello
smar Don Juan, e ela mete-se entre os deis, descobrindo agora que nao é

Don Juan, mas sirn Leporello, urna diíercnca que Mozart assinalou marca- J 80 /\ verstio a lema regi~ta os scguiotc~ versos para a ária do c?tálogo: •<1(111 ~e11<! ''.mi
damente através de uma espécie de gemido trémulo. Acontece assirn nesta 'll'l'Í - md11 Tau.1e11d 111ul drei: Sie sim! c111('/1 dahei», i. e., «Mil e <lua;. - nao, mil\!
;·res. També1~1 cst:iis incluída». Vd. o seguintc comentário atribufvel a J. L. Hciberg. in
Kjflhe11hm·11sfly1•e11de Post ICorrcio Volante de Copenhagal, IR~?. n~mero 79, 1 d1:
mitério, cena JO. Ao longo dcsta primcira parte, sernpre que Don Juan e Lcporcllo Outubro (cdi91io irnpressa. vol. l. pp. 328 e scgs.), na mesma 1:ubnca «1 heatret», «Don
coutracenam com curras personagcns. Iazcm-no trocando ele identidadc: é corn a inter- Juan»: <<Den dwiske Bearheidelse aj 0011 J11a11er11paal1'ivlel1¡: de11 bedste .wm exwe-
vcncño d~ cstárua do Comendador que as respectivas identidades sao repostas. rer. [ ... } /)en 1yd.1ke Bearbeidelse er 1111der al Kri1ik. /seer de:1 MacHle, /11:orpaa den
176 Répl~ca de Lcporello apenas ocorrentc em Kruse. Acto J. cena 5, p. 22. t\'dske Omarbeider /wr ¡1/yndret Molieres Don Juan, og c11dog 111df9>rt hele .ke11e11 med
177 Alusao.a oportuna entrada de Jeronirnus. após uma outra pcrsonagem ter manifes- Mr. Di manche ... er nol(el af det F11skeral(ligste man har see1 i Omarbeidelve~fager .»
tado o dcsejo de que ele aparecesse; vd. Ludvig llolbcrg, Barselstuen [Sala de P;111osl. 1 «A adapta<;1ío dinamarquesa <le Don Juan é induhitavelmente a mdhor que existe [. ".: 1
de J 724. Acto V, cena 6; in L. Holberg, Den Danske Skue-Plads [O Teatro Dinamar- A a<lapta(fUO alema é cm 1udo criticávcl. Em especial. o modo como o adapta~or alemao
qués]. vols. 1-VII, Copenhaga, 1758-1788; vol. 11, sem indicacáo de página. pilhou 0 Do11 Juan de Moliere, tcndo mesmo introdui.iclo a ce~a com ~r. D1o~nache .. · ·
178 Aqui, «Kjarlighed», · É uma das maiorcs trapalhiccs já vistas no campo das adapta<;ocs.»] lntormai,:ao genlll-
179 Don Giovanni, Acto 11. cena 8: Krusc, Acto 11, cena 11, p. 94. mente cedida por R. Purkarthofer.
170 l '/I

é cada vez mais transportado, deixando-sc arrastar e embalar por estas hri triga., c1 u/adas; nao se sentéentretanto saciado. a sua alma possui a inda a
sas eróticas; o modo como a ária está matizada difcrcnciadamcnre. de torca vital de scmprc, nfío carece de cornpanhia prazenteira, ou de ver e
acordo com as diferencas da ferninilidade que estáo no scio de Don Juan, ouvir a espuma do vinilo, ou de se fortalecer a bebe-lo; a vitalidadc interior
tornando-se aqui audíveis - nao é este o lugar para o fazer, irrompc nelc mais forre e mais rica do que nunca. Mozart concebe-o ainda
Se se perguntar quaJ é o momento rnais lírico na ópera, enráo, a resposta e scrnprc idealmente. como vida. como poder, porém de urna maneira ideal
talvcz suscirasse mais dúvidas: pelo contrario, certamcnte que nao 11351 no confronto com urna rcalidadc; aquí ele está como que embriagado con-
restarn quaisquer dúvidas de que o momento mais lírico só pode ser atribuí- sigo mesmo de urna maneira ideal. Se todas as raparigas do mundo o rode-
do a Don Juan, e que redundaría numa ruptura em relacño subordinacáo a asscm oeste instante, nao constituiría perigo para elas, já que como se ele
é

dramática, se fosse tolcrável que urna personagern secundária vicsse de fossc demasiado forre para as encantar. 11361 para ele. ern cornparacáo com
alguma maneira ocupar a nossa arencño. Mozart também teve isto cm con- uquilo que ele desfruta de si proprio. até o desfrute multíplice da rcalidadc
sideracáo. A cscolha fica assirn significativamente circunscrita e, verifican- é cxccssivamcntc pouco. Fica aquí bem mostrado o que significa dizcr que
do mais de perlo, só pode falar-sc ou do banquctc'U, a primcira parte do a esséncia de Don Juan música. Diante de nós, ele como que se dissolvc
é

grande final, ou da conhecida ária do champanhc'P. No que diz respcito a na música, desdobrando-se num mundo de sons. Chamou-se a esta ária «a
cena do banquete, até ceno ponto, pode cortamente ser rida como um mo- ária do champanhe», o que incgavclmcntc muito denota. Mas aquilo que,
mento lírico, e a inebriantc e plena sacicdadc da refcicáo, o vinho a espu- cm particular, acaba por se ver é o facto de nao cstabclccer urna rclacño
mar, os longínquos sons festivos da música, tudo isro se une para potenciar casual com Don Juan. Assim é a vida dele. espumosa como o champanhe.
a disposicño de Don Juan, tal como a sua propria natureza festiva lanca urna E t.aJ como sobcm permanentemente as pérolus neste vinho, cnquanto hor-
luz engrandecida sobre todo o desfrute que produz um efcito tao torre que bulham no seu ardor, soanclo ricamente com a melodía que lhcs é própria,
até mesmo Lcporello se transfigura nesse rico instante. o do último sorriso lambém assim ressoa o pra7.er do desfrute no fervilhar elemental que cons-
da alegria, o do aceno de despedida do desfrute. Entretanto, trata-se afinal litui a vida de Don Juan. Aquilo que dá significa9ao dramática a esta ú1ia.
mais de urna situacáo do que ele urn momento meramente lírico. A situacáo nao é a situac¡ao. é antes a nota fundamental da ópera que nela soa. resso-
n.iio reside obviamente no facto de se comer e beber ern palco. pois isso , cm ando em si mesma.
si e por si, érnuito insuficiente para ser tomado como situacño. A situa~ao
reside no facto de Don Juan ser empurrado para o ponto mais extremo da
vida. Perseguido por tocio o mundo. o outrora triunfante Don Juan nao tem Poslúdio l nsignificante
agora outra morada. que nao scja urna salinha remota l 83. Ncste cu me mais
a
extremo da báscula da vida, Don Juan, ainda urna vez míngua de cornpa- Ora, se aquilo que foi aquí desenvolvido eslivcr certo, cntao, regresso
nhia festiva, accnde todo o dcsejo ele viver no seu proprio peito. Se Don novamcntc ao meu tema favorito: entre todas as obras clássicas, o Don
Juan fosse um drama. entáo, o desassosscgo interior da situacño exigiría Juan ele Mo;,art eleve erguer-se no lugar cimeiro; alegrar-me-ci ainda urna
que esta fossc tao breve quanto possível. Ao invés, está certo que na ópera vez com a fe] iciclade ele Mozart, urna felicidade que na verdadc é digna de
a situacño seja mantida, que seja glorificada com toda a excelencia possí- inv~ja, ern sic par.a si, e também porque faz felizes todos aquelcs que sim-
vel, apenas soando ainda mais bravía porque. para qucrn ouve, ecoa no plesmente conceberam de algum modo a feliciclacle de Mozart. Eu. pelo
abismo sobre o qual Don Juan paira. menos, sinto-me indescritivelmente feliz por ter entendido MclZart mesmo
Passa-se ele maneira diferente coma iíria do charnpanhe. Em váo, creio que tao-só remotamente, e por ter presscnlido a sua fclicidade; quanto mais
eu, irá procurar-se aquí urna situacáo dramática, mas tanto maior a sua é
fclizes nao estarao aqueles que o ent.cndcram pcrfcitamente, quanto mais
significacáo enquanto cfusáo 1 frica. Don Juan está cansado das muirás in- fcli..,,es nao terao de sentir-se com aquele que é feliz.

181 Don Giovanni, Acto 11, cena JJ: Krusc, Acto 11, cena 17, p. 114.
l 82 Don Giovanni, Acto l. cena 20: Kruse. Acto l. cena 15, pp. 49-50.
183 Na didascália de Kruse para a cena final da ópera, le-se o seguinte: «Iin smuk Sal¡ Don
Juans petite Maison. Dcekket Ta.ftel; et tille Orchester», i. c., «Urna sala bonita na casinha
de Don Juan. Mesa posta; urna pequcna orqucstra»; vd. Kruse, Acto 11. cena 17. p. J 14.
11371

O Retlexo do Trágico Antigo


no Trágico Moderno
Um Ensaio de Esforco Fragmentario

Proferido <liante dos


2:u ~LnagavcX.QW ¡IBVOL 1
11391

Se alguém viessc dizcr: «O trágico continuará sernprc a ser o trágico»,


nao seria eu a recordar muita coisa em contrario, na medida cm que qual-
qucr desenvolvimento histórico rem todavía sempre lugar no scio da cir-
cunscricño do conceito. Partindo, dcsignadamente, do prcssuposto de que
haveria de produzir-se algum sentido nas suas palavras, e que a palavra
«trágico», que por duas vezes af ocorrc, nao havcria ele ser tomada como
criadora Jo sinal ele parénteses destituído de significacáo em torno de um
nada destituído de contcüdo, o sentido dessas palavras teria certamentc de
ser o seguinte: o contcúdo do conceito nao destronou o conceito, antes o
enriqueccu. Por outro lado, nern sequer cscapou a atencáo de nenhurn ob-
servador aquilo que o leitor, ou o público trcqucntador de teatro. já pensa
ter em sua legitima posse, como se fossem dividendos seus provenientes
dos esforcos dos conhcccdorcs ele arte, nomeadamcntc o facto de havcr
urna diferenca essencial entre a tragédia auriga e a moderna. Se alguém
aplicasse aquí a diíerenca cm absoluto. servindo-se sé da insfdia, e poste-
riormcnte tal vez do poder, para se introduzir entre o trágico amigo e o trá-
gico moderno, entáo. a sua condura nao seria menos desmedida do que a do
primeiro, na medida ern que pretendería ter o proprio trágico como a base
de sustcniacáo que lhe era imprescindívcl, e cssa base. por seu turno, esta-
ría tao longo de poder ser separada que acabaria precisamente por ligar o
trágico antigo e o moderno. Como aviso contra qualqucr csforco unilateral
dcste género em prol dessa scparacáo, terá igualmente de contar-se como
facto de os estéticos? sernprc rcgrcssarem ainda i1s detcnninacñcs e aos

2 V d. a rernissño de Hegel para a Poética de Aristóteles ern vorlesungen über die Aes-
thetik [L{9oess°Z:>bré a Estérical.Hl , in \Verke, vol. XJ, pp. 506-507; Iubiliiums, vol. XIV,
pp. 506-507; e Suhrkump, vol. XV, pp. 500-501. Doravante mencionada como Aesthe-
tik, seguida das referencias nas diferentes edicóes. Ern portugués: G. W. F. Hegel, Esté-
1 Hm grcgo no original, traduzivcl por «cornunidade ele defuntos». ou «companheirox tica. traducáo de Alvaro Ribeiro e Orlando Vitorino, inrroducño de Pinharanda Gomcs.
na mene». Este capítulo. bcrn como os dois capítulos scguintes, sao a presentados como Lisboa: Guimarñcs Editores. l 993, p. 640. Para os apontamcntos de Kierkegaard sobre
seudo discursos proferidos ern asscmbleias estatutarias desta associacño. esta ohm de Hegel. vd. Pop. III C 34, Not. 10: 1. SKS. vol. 19, pp. 285-286.
1 '//
176

requisitos estipulados por Aristóteles3 para o trágico. como sendo aqucles próprio nso, como objecto de obscrvucño, qucm nao leve tanto em vista o
que esgotam o conceito; tem de ser tomado como aviso, tanto mais aiuda casual quanto o universal, como ncstc esforco , quern agora observou com
por ser capaz de deixar qualqucr individuo preso a urna certa nostalgia, a intcrcssc psicológico como diferente aquilo que em cada idade da vida
é

de que por muito que o mundo se tenha modificado a representacáo do despena o riso, dcixa-se fácilmente convencer de que o imutável requisito
trágico mantém-se ainda essencialmente inalterada. tal como chorar conti- para a comédia, o de devcr despertar o riso, contém em sí mesmo um alto
nua ainda a ser igualmente natural para o homem. Por tranquilizante que tal grau de mutabilidade em relacáo a diferente representacáo da consciéncia
possa parecer para quem nao deseja divorcio algum, e menos 11401 ainda do mundo sobre o rislvel, sern que, no entanto, a diferenciacño seja tao
qualquer rompimento, mostra-se assim a mesma dificuldadc que acaba de difusa que a correspondente exprcssáo nas funcóes somáticas fosse a extc-
ser rejeitada, sob urna curra figura que quase mais perigosa. Regressar
é
riorizacáo do riso arravés do choro. Ora também assim acontece com o
ainda e sernpre a estética aristotélica, nao simplesmcnte por atencáo defe- trágico.
rente ou hábito antigo, éseguramente admitido por quern quer que esteja Ora aquilo que está mais perro de ser o conteúdo desta pequena indaga-
familiarizado com a estética contemporánea", ficando desta maneira con- cáo nao tanto a rclacáo entre o trágico antigo e o moderno quanto o cnsaio
é

vencido do escrupuloso rigor com que aincla se está ligado aos pontos de para mostrar como é próprio do trágico antigo dcixar-sc assimilar para
rnovimento estipulados por Aristóteles5, os quais continuam ainda a dentro do trágico moderno, de molde a que o verdadeiro trágico nelc se
aplicar-se a estética contemporánea. Entretanto, assim que nos aproxima- torne visfvel. Mas, por multo que eu me esforce para que tal vcnha a ser
mos desses pontos, a dificuldacle mostra-se prontamente. As dctcrminacóes visívcl. 11411 elevo todavía abster-rne de qualquer profecía sobre ser tal
sño, designadarncnte, ele ámbito rnuito gcral, e é bem possível estar de coisa aquilo que a época exige, de modo a que cssa ocorréncia fique intei-
acorclo com Aristóteles ncstc ámbito e, no cntanto, nño estar de acorde com rarnente scm conscquéncias, tanto mais que toda esta época trabalha mais
ele em outro sentido. Para nao antccipar o desenvolvimenro ulterior men- na direccáo do cómico. Nessa medida, a existéncia está minada pela dúvida
clonando desde já cxcrnplos <lo que constituirá o respectivo conteüdo, dos sujeitos, o ísolamento ganha cada vez mais preponderancia. algo ele que
prcfiro ilustrar a minha opiniáo no que diz respeito a comédia proccdcndo nos podemos certificar rnclhor ao prestar atcncáo as múltiplas aspiracóes
a urna observacño corrcspondcnte. Se urn estético da Antiguidade tivesse sociais, Estas dcrnonstrarn que procurarn contrariá-la, designadarnente,
dito que aquilo que está prcssuposto na comédia personagern e situacño,
é
tanto através do csforco do tempo. tomado isoladameruc, quanto por via de
e que o riso aquilo que a cornédia quer despertar, entño, certo que seria
é é
procurarern opor-se-lhc de urna maneira irracional. O estar isolaclo consiste
possívcl rcgrcssar a este ponto vezes sern conta; porém, assim que se pon- sernpre em alguém fazer-se valer como Numerus"; quando urn indivíduo
derassc no quño diferente pode ser aquilo que leva urna pcssoa a rir-sc, quer fazcr-se valer como urn único individuo, cntáo , tcm-se um isolamento;
cntáo , dcpressa se ficava convencido de como o espaco requerido por esta todos os membros de associacóes iráo dar-me razáo neste ponto, sem que,
exigencia é colossal. Quern algurna vez tomou o riso dos outros, ou o seu por isso , possam ou queiram inteligir que acima de tudo um isolamento
é

idéntico ao que ocorre quando urna centena quer fazcr-se valer única e
3 Vd. Aristóteles, Poética 144%. Na trad111;üo de Eudoro de Sousa. Lisboa: IN-CM, exclusivamente como urna centena. O número é sempre indiferente em
1994. pp. 109-11 l. Edic;ocs consultadas pelo autor: Aristoleles gnece ¡A. ern gregoJ, relacáo a si próprio, e é inteiramente indiferente que soja urn ou rniL ou
edic;iío de lmmanuel Bekker, vols. 1-11, Berlim. 1831; vol. 11, p. l449; e /\.ri~toleles Di- todos os habitantes do mundo no seu conjunto, determinados apenas nume-
chtkww 1 Poél ica de A. I, traduc;üo de Michael Conrad Curtius, Han6ver, 1753, pp. 11- dcamente. Por conseguinle, no scu princípio, o espírito desta associa~ao é
-J 2. Doravante, estas tres lradu<;;oes sao mencionadas pelo nornc dos respectivos tradu- tao revolucionário quanto o espírito a que quer opor-se. Quando David quis
1.ores, i. c., Sousa, 13ckkcr e Curtius. antecedido de Poética.
sentir com rigor o seu poder e a sua magnificéncia, mandou contar o seu
4 G. E. Lessing, Humburgische Dramaturgie 1 Dramal.urgia de 1 lamburgo]. in Gotthold
Ephrairn Lessing, Werke !Obras!, Munique: Car! Hanser Verlag. vols. l-Vlll, 1970- povo7; nos nossos tenlpos, ao invés, pode clizcr-se que os povos se contam
-1979; vol. IV («Dra111aturgische Schriften» !«Escritos sobre Teatro»]), 1973. textos
37-39 (4, 8 e 11 de Sctcmbro de 1767), pp. 399-414. Edic;ao consultada pelo autor:
Hamburgische Vramaturgie LDrarnalurgia de llamburgol. textos XXXVlT-XXXIX. in 6 Corno cm Horácio. 1:..-pisto/arum LEpístolas]. livro I, 2, v. 27: <<Nos numerus .mmus, et
Gottlw/d Ephraim Lessing'.~ siimmtliclte Schr(lien [Escritos Completos ele G. E. L.], jruges conswnere 110ti», i. c., «Nós somos número, nascidos para consumir as colheitas»;
vols. I-XXXIl, Berlim, 1825-1828; vol. XXIV, pp. 267-284. cdi<;;ao consultada pelo autor: Q. Horatii F/acci opera Lübras de Q. Horácio Flaco],
5 Poética. 1449b-1450a. Vd. Sousa, pp. 109-112; Bekker, pp. 1449-1450; e Cunius, Leipzig, 1828, p. 227.
pp. 12-13. 7 Alusao ao episódio narrado no Segundo Livro de SamueL 24: 1-9.
178

a si próprios para seruircrn a sua significacuo diuruc de um pode, superior. rro que o l'a1.: o mmisuo nao qucria a rcsponsabilidadc, mas quería ser
Todas estas associacócs cxibcm entretanto a marca da arburariedadc, cría nunistro , desde que o secretario de Estado fosse o rcsponsávcl; por último.
das que foram, na rnaioria das vczcs, para urna ou outra finalidadc casual. acubaram obviamente por ser os guardas-nocturnos, ou os cornissários de
cujo dono e senhor é obviamente a associacáo, As multas associacócs corn- rua, a ficar responsáveis. E nao seria esta historia de rcsponsabilidadc as
provam assim a dissolucño do tempo e contribuem elas mesmas para a avcssas urn assunto digno de Aristófanes! E por outro lado. porque térn o
acelerar; sao infusórios no organismo do Estado. indicadores ele que este se governo e os govcrnantes tanto medo de assumir a responsabilidadc , a nao
dis.solvcu. Quando aconteceu na Grécia comecarem os hetairistass a gene- ser por tcmcrern urn partido da oposicáo, o qual, por scu turno e em idénti-
ral izar-se. se nao quando o Estado cstava prestes a desintegrar-se? ca escala, continua a declinar novamcnte a responsabilidade? Quando se
E nao rerño os nossos tempos urna scmclhanca notoria corn aquclc tempo, imagina cstes doi~ poderes <.liante um do outro, mas sem capacidadc para
que ncm mesmo Aristofanes conseguí u tornar mais risível do que realmen- tercm miio um no outro. porque um deles continuou a esquivar-se do outro.
te era? Nao estará desenlacado. cm sentido político. o clo que mantém urn deles 1 imito u-se a fa,1,er figura di ante do out ro. um plano geral assim
unidos os estados de urna mane ira invisfvel e espiritual, nao estará cnfra- disposto nao ficaria com toda a certeza scm forr;a cómica. Está pois cabal-
quccido ou destrufdo o poder que na religiao segura o invisível e, tal como mente dernonstrado que se di-;solvcu aquilo que propriamcntc mantém
outrora os áugurcs, nao terño os estadistas e os eclesiásticos cm cornum o unido o estado. mas o isolamento deste modo criado é obviamente cómico.
facto de nao conscguircm olhar-sc recíprocamente sem urn sorriso"? Oí. e o cómico reside no facto de a subjcctividade fazer-se aquí aplicar apenas
nossos tempo possucm com cfcito algo que lhcs proprio face a esse tem-
é enquanto fom1a. Qualquer pcrsonalidade i~olada !te torna semprc cómica
po na Grecia, os nossos tempos siio dcsignadarncntc mais melancólicos, c. quando pretende fazer valer a ~ua casualidade pcrante a ncccssidade de
por isso, rérn um desespero rnais profundo. Os nossos tempos sao assirn desenvolvimento. Fazer com que um in<livfduo ca!.uaJ conccbcsse a idcia
suficientemente melancólicos para sabcrcm que existe algo chamado res- universal de vir a ser o libertador de todo o mundo encerraría indubitavel-
ponsabilidade, e que a responsabllidade tern algo para significar. 11421 Por mcnte o mais profundo cómico. Ao invé~. o surgimento de Crisro é, cm
isso. se bcm que todos queiram mandar, ninguém quer ter a rcsponsabilida- ccrto sentido (e é, designadamcntc noutro sentido, infinitamente muito
de. Ainda está na mcméria recente huver um estadista francés explicado. mais), a tragédia mais profunda, porque Cristo veio na plc11itudc do tem-
quundo lhe voltaram a olcrccer a pasta ministerial, que a accuaria na con- po11 e carregou o pecado do mundo12, algo que tenho especialmente de
di9flo de ser o secretario de Estado a assumir a rcsponsabilidadc!", O rci de :-.ublinhar tcndo cm conta o trecho seguintc.
Franca, como é sabido, nño assurnc a responsabilldade, ao invés. o rninis-é Como se sabe, Ari tóteles aponta como f'ontc!. para a acryao da tragédia
duas coisas, füavmet xcü. ·1\()oi;1\ mas observa simullaneamcnte que o as-
X Sociedade política cm A tena), 11m, finais do século va. C.
~unto principal é ti::A.o~14. e que os indivíduos nao agem para representar
9 ~Cícero qucm r~lala o ccpriclsmo de C:110 sobre o~ augurios. Cato considcruva que personagens. sendo antes estas inseridas devido ti ac9flo. Facilmcnte se
do1i. áugurcs. d:vcn~m sornr u111.ao outro quando se cruzam. visto ambos sabcrcm que nota aquí urna divergencia face a tragédia contcn1poranea15• Aquilo que,
as suas prcvisoes nao se concrcuzam. Vd. Cícero. De Divinatione [Sobre a Adivinha-
cño], livro 11. 24; De Natura Deorum (Sobre a Naiureza dos Dcuses], livro l. XXVI. 71; 11 Gálatas. 4:4: «M:b vindo a plenitudc dos tempo~. Dcu~ cnviou o seu filho. na,cido
cdicño consultada pelo autor: M. Tullii Ciceronis opera 011111ia [Obras Completas de M. de mulher, 11ascidn ~ob a lci»; vd. igualmente Efésios, 1: 10: «Oc torna!' a congregar e111
Túlio Cícero). vots. 1-IV e índex , edicño de Johann August Ernesti. Halle. 1756-1757. Cristo todas as coisa~. na dispcnsa9ao da plenitu<le dos lcmpos. tanto as que e~tiio no~
vol. IV, pp. 491 e 678. F.m portugués: Da natureza dos deuses, iniroducño, lraduc;ao e 1.:éus, como as que esiao na 11.:rra.>>
notas de Pedro Braga Falcño, revisáo de Alice Araújo. Lisboa: Vega, 2004. p. 45: «Já 12 Joao, 1 :29: «No dia scguinte . .loan viu a .lc~11s. que vinha para ele. e dissc::: Eis o
me parece suficientemente admirável o facto de um hanispice nao se rir quando ve um Cordeiro de Dcus. que tira o pecado do mundo.»
colega, mas ainda mais admirável é o facto de vos comerdcs o riso entre vós.» /\. mcncáo 13 Em grcgo no original: «pcn,amento c carácter».
a esta obscrvacáo de Cato sobre os áugures repele-se na segunda parle de E11te11 Eller, 14 Em grcgo no original: «lilll>>.
SV t. vol. 11. p. 286. e SKS. vol. 3. p. 164. 15 Para as considera95cs de l legel sobre a subjcctividade vista através da difcrern,:a
10 Eco de urna noticia publicada no jornal Bcrlingske Tidende [Notfcias de Berling] a entre a trngédia e a cornédia. e na ~ua 111an.ifesta95o na trag.édia moderna. vd. Hegel.
22 de Ma~90 ~e 18~~· sobre L~uis-Aclolphc Thier1> (1797-1877). político francés que, AeJthetik /11 (Estética 111], in Werke. vol. X3. pp. 562-564: Jubili/11m.1. vol. X.IV. PP·
quando pnmcrro-muustro. exrgiu que cm cada ministério o~ secrcuirios de Estado se 562-564; e S11hrka111p. vol. XV, pp. 555-557; e G. W. F. Hegel. Hstética, tradu95o de
ocupassem de todas as matéria correntcs para que os ministros pudcsscrn dedicar-se a Álvaro Ribciro e Orlando Vitorino. intrcxlur;:iío de Pinharanda Gomcs, Lisboa: Guima-
trabalho político na axsemblcia ou ern reunióes. racs Editores. 1993. pp. 66<)-661.
180 011 011 ll111 l 1,1••111111111111 V1d.1 IKI

dcsignadamcnrc, constituí o que próprio da 1ragédia ar11ig:i e a accuo nao


é ncnhurna. Por isso, u 11ugéd1a moderna nao coniém qualqucr prirneiro plano
derivar meramente da personagcm, a accño nao estar xubjcctivamcutc
é cpico. qualqucr legado épico póstumo. O hcrói crgue-sc e caí. acirna de
rcflecrida em cxccsso. mas antes ter a propria accáo um relativo acréscimo rudo, dcvido aos scus proprios actos.
de passividade. Por isso, a tragédia antiga tambérn nao desenvolvcu o diá- O que acaba aquí de ser dcsenvolvido, de mancira breve mas suficiente,
logo até atingir o grau de reflcxíío cxaustiva 11431 cm que tudo convergisse; encentra a sua significacáo ao ilustrar urna diferenca entre a tragédia rnais
no monólogo e no coro, contém propriamente a tragédia os elementos dis- amiga e a rnais recente, que considero ser de grande significacáo: a dife-
cretos para o diálogo. Quer o coro se aproxime rnais da subsrancialidade rente espécie de culpa trágica. Como é sabido, Aristóteles exige que o herói
épica, ou da cxaltacño lírica, indica afina! como que esse rnais que nao será trágico tenha áµcxgnu11l. Mas tal corno na tragedia grega a ac~üo é urn
diluído na individualidade: por sua ver, o monólogo é mai a conceruracño mcio-termo entre acr;ao e passividade. também assim acontece na culpa,
lírica, e tem csse rnais que nao será diluído na accño e na situacüo. Na tra- residindo aí a coli!>lio trágica. Ao iuvés, quanto mais rcflcctida estiver a
gédia antiga, a propria accáo conrérn ern si um momento épico!"; é tanto subjcctividadc, tanto mais o indivíduo é visto. numa perspectiva pelagia-
um aconrccirncnto como urna accño. Tal fica obviamente a devcr-se ao na 19, como e tando entregue a si própdo, tanto mais ética a culpa se torna.
facto de o mundo antigo nao ter a subjectividade rcflecrida cm si mesma 17. O trágico ja;¿ entre estes dois extremos. Nao tendo o indivíduo qualqucr
Ainda que um indivíduo se rnovcsse livremcnte. rcpousaria ufinal em de- tipo de culpa, entüo, o interesse trágico é relevado, pois nesse caso a coli-
terminacñcs substanciáis no estado, na farnília. no destino. Esta determina- sao trágica é debilitada; 11441 ao invés, tendo em absoluto culpa, entiío.
r;ao substancial é aquilo que, na tragédia grcga. é propriamcnte funesto e é deixa de interessar-nos do ponto de vista trágico. Por conscguintc, é segu-
realmente o que é proprio dela. A queda do hcrói nao é de modo algurn urna ramente um rnau entcndimc11Lo do trágico, quando os nossos tempos aspi-
mera consequéncia da sua accáo, é antes simultancarnentc uma passivida- ram a que Ludo o que é runcslo seja transubstanciado na individualidade e
de, enquanto na tragedia contemporánea a queda do herói nao é propria- na subjcctividadc. Nada se qucr saber acerca do passado do herói. descar-
mente passividade, mas sim acto. Por conseguintc, na época contemporá- rcga-se toda a sua vida. t.al como os seus actos. cm cima dos seus ombros,
nea a situa<,:fto e a pcrsonagern süo realmente os elementos prcvalccentcs. tornando-o de tudo imputável. mas desl.a maneira transforma-se também a
O herói trágico está rcflecrido subjectivarncnte cm si, e esta reflexño nao 0 sua culpa estética cm culpa ética. O herói trágico torna-~e as!:.im mau. o mal
rcílectiu apenas para fora de toda e qualqucr relacño imediata como estado, convertc-se no pr6prio objecto u·ágico; porém, o mal niio possui qualquer
a linhagem, o destino. antes o rcflectiu multas vezcs para rora da sua pr6- intcrcssc eslélico e o pecado niio é um elemento estético. Ora este esfor~o
pria vida anterior. O que nos ocupa é um cerro e determinado momento da mal entendido tem seguramente fundamento em todo o trabalho deste tem-
sua vida cnquanto acto próprio seu. Por causa disso, o trágico deixa-sc es- po na direcc;ao do cómico. O cómico reside precisamente no isolamento;
gotar na siwa~üo e na réplica. porque nao sobrou de lodo imcdiaticidade ora quando se pretende aplicar o trágico dentro do isolamento, obtém-sc o
mal na sua vileza, e nao o vcrdadeiro delito trágico na sua equívoca incul-
16 Alusño a teoría dos géneros Iitcrárir», de J. L. Heiberg. segundo a qunl os géneros pabilidade. Quando nos debru~amos sobre a literatura contemporanca, nao
constituem urn mcio de avaliar o desenvolvimcmo pessoal do autor dentro de urn pro- é difícil encontrar excmplos. É assim que uma obra como a dt: Grabbe,
ccsso dialéctico, do género lfrico até uo dramático, através do épico, Vd. J. L. Heibcrg.
0111 vaudevillen sotn dramatisk Digtart, OI( om de111· Betydniug paa den danske Skuepla
º.
Fumt WI(/ Don Juan2 cm tantos modos tao genial. estií propriamentc
construída sobre o mal. Para entretanto nao argumentar apenas a pa11ir de
ds [Sobre o Vaudeville como Género da Poesia Dramática. e sobre a Sua lmportáncia
um único exemplo escrito, prefiro demonstrá-lo dentro da consciencia uni-
para o Teatro Dinamarqués], Copcnhaga, 1826, i11 Prosaiske Skrifter [Escritos ern Pro-
sa l. vols. 1-111. Copcnhagu. 1 ll4l-1843. vol. L pp, 123-247. Sobre 1 lcibcrg, vd. nota 128 versal de toda a época contcmporanea. Quando se pretende apresentar um
no capftulo «Üi. fatádios eróticos lmcdiatos 011 o Erótico-Musical». individuo, no qual as infelizes circunstancias da infancia se haviam reper-
17 Sobre o dircito a liberdadc da subjccrividade e i\ sua cxprcssño no cristianismo, vd. cutido com tal perturba~ao que precipitaram a sua queda, cnrao, isso nem
Hegel. Grundlinien der Philosophie des Rechts oder Naturrecht und Stautswissenschaft
i111 Grundrisse [Fundamentos <la Filosofiu do Dircito ou Dircito Natural e Ciencia do
Estado em Epítome], § 124. in Werke. vol. VIII, p. 166; J11bilii11111s, vol. VII, p. 182; e 18 Em grego no original: «erro», «culpa».
Suhrkamp, vol. VII, pp. 232-233. E111 portugués: l Icgel. Principios da Filosofia do Di­ 19 Pel~gio (c. 360-422) ncgou o pecado original e defcndcu a liberdade, a iniciativa e a
reito, traducáo de Orlando Vitorino. 4." cdir,:ao. Lisboa: Guimarñcs Editores, 1990, pp, responsabilidade do indivíduo. 110 seu percurso para alingir a grn<;a.
122-124. Dorava me mencionada como Philosophie des Rechts, seguida das referencias 20 Christian Oictrich Grabbc ( 1801-1836). autor de 0011 Juan und Fa11st. Ei11e Tragüdie
nas tres edicóes e na traducílo. in fünf Akten [Don Juan e Fau~lo. Urna Tr.igédia cm Cinco Acto~!. Frankfurt. 1829.
182 011 011 ll111 J 1,1¡.,11111111 d1 \ul.1

scquer apelaría aos tempos hodiernos c. obviamente. nao porque icnha sido jui1 acura a dclibc: ai;ao do ( 'onsclho de Saúdc24 sobre o scu estado ~1ental.
mal tratado, pois tenho o direito de imaginar que tcnha xido tratado de urna e opina que tcm de actutu contra o ladráo e nao contra a mác do ladríio. O~a
maneira excepcional, mas porque os tempos dispñcm de urna curra medida. rendo cm coma que aqui se discute u111 crimc, é cerro que o pecador nao
Nao querem saber de sernclhanres pusilanimidades. scm ir rnais longc, fa- pode fugir para dentro do templo da estética. cmbora esta iambém ~iesse a
zern do indivíduo o responsável pela sua vida. Portante. se o individuo caí, encontrar urna cxpressño complacente para corn ele. No enianto , nao esta-
entño. nao trágico, mas sim vil. Seria agora de pensar que a geracño t1 qual
é ría cerio que ele a procurasse na estética, pois o carninho dcl,c na.o~ condt~I'.
tenho a honra de pertencer tcria de ser um reino de deuses. E no entamo ao estético, mas sirn ao religioso. O estético fica agora arras de s1, e sena
nao é de todo assim: a plenitude de forca. a coragem que assirn qucr ser a' um novo pecado seu agan-ar agora o estético. O religioso é a expr~ssao <.~o
criadora da sua propria fcl icidade, ser até a sua própria criadora, urna é amor paternal. pois possui cm si o ético, masé cornplacente, ~por 1nte.rme-
ilusño, e ao perder o trágico, o tempo ganha o desespero. Enccrra-se no dio de que, a niio ser precisamente por via do mesmo que da ao 1rág1co a
trágico urna nostalgia e urna cura, da qual na vcrdade nao é possível des- respectiva suavidade: por intermédio da conli.nuida.dc. Mas, c'.1quanto o
denhar e, ao quercrrnos ganhar-nos a nós proprios de urna maneira sobre- estético lhe concede esse descanso antes que seJa valttlada a prol unda con-
natural. como se tenia fazer nos nossos tempos, perdcmo-nos a nos pró- tradi~ao do pecado, o religioso só a conceden\ depois de esta contradi9ao
prios21 e tornarno-nos cómicos. Cuela indivfduo, por muis original que scja, ser vista cm todo o seu horror. Exactamente no insrnnte cm que o pecador
é todavía filho ele Dcus, do scu tempo. do seu povo, da sua Iamflia. dos scus está prestes a sucumbir ao pecado universal. que sobre si mcsm~ carre~ou
amigos; i.Ó nelcs encentra a sua verdade e, se em todos eles a sua relarivi- por ter sentido que, quunto mai!. pecador se tornasse, ranto ma1or sena a
dade foro absoluto, eruño, torna-se risívcl. Rncon1ra-se por vczes nas 11451 perspectiva de o;c salvar, ncssc mesmo im,tantc de pavor mostra~sc o co.n:
llnguas urna palavra que cm virtude da sua construcáo é frequcntcmcntc solo contido no facto de ser também a culpabilidadc comum aquilo que 101
usada nurn determinado caso, acabando por ve tornar autónoma ncssc caso, aplicado no seu caso: 11461 mao; e ·se consolo é. um con~olo religioso, e
digamos que como advérbio; ora, para os especialistas, urna palavra dcstu quem for da opiniao de que pode chegar aí por out ro cam111ho, por cxcni-
especie possui de urna vez por todas urna accntuacño e urna impcrfeicño plo, a1ravés de urna volatiliza\1íO e ·téticn. ~ecc~e11 o con-..nlo dc~alcle. ~
das quais nunca se restabclece: se, aposar de tudo, viesse a estabelccer-sc realmente n1ío o tem. Por isso. cm ce1to scnlldo. e uma medida 1nu1to acc1-
.. .,., . -
agora o requisito de ser substantivo, cxigindo-sc que fosse declinada nos
. .
crnco casos+. sena cntao genuinamente cómica. Turnbérn assirn acontece
1ada do tempo querer tornar o indivíduo rcsponsávcl por tudo: rnas.a infc-
licidadc está cm nao o fazer de urna maneira suficientemente prolunda e
corn o indivíduo. quando este, porvcntura retirado corn bastante dificulda- íntima, e daí a !>ua insuficiencia; tem presun9ao bastante para desdenhar
de do ventre materno do tempo, pretende ser absoluto ncssa desmedida das líigrimas da tragédia, mas tcm igualmente presun¡yao bastante para
relatividadc, Ao invés, se abdicar dessa exigencia, vindo a ser relativo, querer prescindir da clemencia. E o que é a final a vida humana .. quando :..e
entáo, possui eo ipso o trágico, nern que ele fossc o rnais feliz dos indiví- retira estas cluas coisas. o que é o género humano'! Ou a nostalgia do trági-
duos; eu até diria que o indivfduo so é feliz quundo possui o trrigico. O co, ou o pesar profundol5 e a alegria profunda da rcligiiio. Ou nao será urna
trágico tcrn cm si urna infinita suavidade , a qua! é propriamente aquilo que melancolía, urna nostalgia na :-.ua arte. na sua poesía. na sua vi~a, na su~
sao a graca e a miscricórdia divinas, nurn sentido estético em relacño a alegria, aquilo que é próprio de tudo o que provém desse povo aJ011tmado?
vicia humana; é ainda mais branda e afirmo, portante: é um amor2J maternal No precedente. tcntci particularmente destacar a cliferen9a entre.ª tragé-
que aquieta o aflito. Quanto ao ético, é severo e duro. Por isso, quando um dia antiga e a moderna, tanto quanlo cMa se toma perceptível na cl1feren9a
criminoso diante do juiz dá como dcsculpa que a rnñc íinha tendencia para dentro da culpa do herói tnígico. É este o verdadciro foco de onde ludo !rra-
roubar, especialmente durante o tempo cm que cstivcra grávida. entño. o clia na diferenya específica. Se o hcrói é inequívocamente culpado. ent~o. o
monólogo desaparece, o coro desaparece, a fatalidade desaparece, entao, o

21 Mateus. 16:26: «Pois que aproveita ao homcrn ganhar o mundo inreiro. se viera
perder a sua alma? ou que comutacño far:í o homcm para recobrar a sua alma?»: vd, 24 Trata-!>c.: de «S1111dheds-Collegiet». a entidade que entre 1807 e 1907 rcgulou os a~
igualmente Marcos, 8:36-37, e Lucas, 9:25. suntos de saúdc pública. .
22 Da gramática grega. 25 Nt:stc capítulo. «Sorg» está tradu¿ido por «pesar>> e os termo' derivados como ~pe-
23 Aquí. «Kjarligtted»; 1al como ao longo de todo o capítulo. a excepcño de urna única saroso», «pcsarosamente», «exprimir pesar» ou «lamentar». Vd. nota 16 no capitulo
ocorréncia de «Elskov»; assinalada na nota 43. «Diapsalmata>>.
184 Ou 011. 111 111.1•111111lil d~· klu lt{5

pensamento fica transparente no diálogo e a acoso, na si1ua9ao. No que diz difercnca na culpa trúgica. Na tragédia amiga, o pesaré mais profundo e a
respeito a disposicáo, pode também exprimir-se o mesmo de urna outra dor, menor; na tragedia moderna, a doré maior e o pesar, menor. O pesar
perspectiva, designadamente, aquela que a tragédia faz surgir. Como é sabi- contém semprc em si algo de mais substancial''" do que a dor. A dor aponta
do, Aristóteles exige qu_e a tragédia despertc no espectador temor e compai- sernpre para urna reflexáo sobre o sofrimento que o pesar nao conhece. Do
xao26. Recordo que Hegel, na sua Estética, se apoia neste comentário e ponto de vista psicológico, dcveras interessante observar urna enanca
é

junto de cada um destcs pontos, coloca urna dupla consideracño, a qua! nño quando olha para urn adulto que sofre. A enanca ainda nao está suficiente-
é entretanto particularmente exaustiva27. Quando Aristóteles distingue entre mente reflectida para sentir dor e, no entanto, o seu pesar é infinitamente
temor e compaixáo, entáo, bem que seria possível, no tocante ao temor, profundo. Nao está suficientemente reñectida para ter urna representacáo do
ponderar antes a disposicáo que acompanha o singular e, quanto a compai- pecado ou da culpa; quando ve um adulto sofrer, nao lhe ocorre ponderar
xáo, a disposicáo que é a imprcssáo definitiva. Esta última disposicáo é nisso, e contudo, se lhe for ocultado o fundamento do sofrirnento, há um
aqu~la que tenho sobretudo ern vista, por ser aqueta que corresponde a culpa obscuro pressentimcnto que se junta a este seu pesar. É também assim o
trágica e, também por isso, rcm cm si a mesma dialéctica desse conceito. Ora pesar dos grcgos. mas muna harmonía profunda e completa, por isso, é si-
sobre isto, Hegel comenta que há duas espécies de compaixáo, a habitual multaneamente tao suave e tao profundo. Ao invés, quando um adulto ve um
qt~e .vai ao encentro do lado finifo do sofrimento, e a verdadeira compaixad jovem, urna crianca, a sofrer, entño, adoré rnaior e o pesar. menor. Quanto
trágica. Ora esta obscrvacáo está intciramcnte certa, mas para rnim tern urna mais a rcpresentacáo da culpa sohrevier tanto rnaior é adore tanto menor é
signif'ica<;ao menor, pois aquela ernocáo universal um rnau cntendimento,
é
0 pesar profundo. Ora, ernpregando isto na relacáo entre a rragédia antiga e
que tanto pode abatcr-se sobre a antiga como sobre a moderna 11471 rragédia. a moderna, entáo, terá de dizer-sc que na tragédia antiga o pesar é mais
Verdadeiro e vigoroso é entretanto o que ele acrcscerua cm rclacño a verda- profundo e, na consciencia que lhe é correspondentc, o pesar~ mai~ prof~111-
deira compaixáo: «das wahrhafte Mitleiden ist im Gegentheil die Sympathie do. Tem, dcsignadamente, de recordar-se continuarncntc que isso nao reside
mil der zugleicn siulichen Berechtigung des Leidenden» (vol. 3, pág. 53 l )28. em mirn, mas antes na tragedia e, para que cu legítimamente cntenda a tra-
Enguanto Hegel observa agora a cornpaixño no universal e a respectiva di- gédia grcga. tenho de estar bcm familiarizado com a consciencia grcga. É
fercnca na difercnca da individualidadc, prcfiro destacar a diferenca da com certeza por ísso que nao passa multas vezes de mero papaguear haver
a
cornpaixño em relacílo diferenca da culpa trágica. Para sugerir isto pronta- tanta gente a admirar a tragédia grcga, pois torna-se dessa mancira rnanifes-
mente, farei com que aquilo que gcrador de passividade e se encentra na
é to que, no mínimo, os nossos tempos nao guardarn grande simpatía por
p~lavra. «comp~ixao»29 se divida ern dois, e acrescentarei a cada parte o que aquilo que o pesar grcgo propriamcntc dito, O pesaré mais profundo por-
é

ha de simpatético e se encentra na palavra «corn», porém, de molde a que que a culpa possui a equivocidade estética. Na época contemporánea 1J481 a
nao chcgue a pronunciar-me sobre a disposicño do espectador com algo que dor é maior. Poder-se-ia dizer, acerca da tragédia grega, que terrível cair
é

pudessc apo.ntar par~ a sua arbitrariedadc. mas antes de tal modo que, en- nas maos de um dcus vi vo31• A ira dos de uses é tenível, mas afina! a dor nao
guanto expruno a diferenca na sua disposicño, acentuo sirnultanearnente a é ta.o grande como na tragédia moderna, na qua! o hcrói sofre toda a culpa,
e é ele mesmo transparente no sofrirnento resultante dcssa sua culpa. Cabe
26 Pol!lirn, 1452b-1453a. Vd. Sousa. pp. 118-121; 13ckker, vol. JI, pp. 1452-53; e Cur- agora aqui mostrar, a semelhan9a da culpa trágica, qua! dos pesa.resé o ver-
tius, pp. 25-26.
cladeiro pesar estético e qua] é a verdadeira dor estética. A dor mais amarga
27 O comcntário de Hegel sobre o temor e a compa.ixiío enconlra-se em Aesthetik 111
in Werke~ vol. X3, pp. 531-532; Jubiliiwns, vol. XIV, pp. 531-532; e Suhrkamp, vo1.'xv: é agora manifestamentc o arrependi~cnto, mas. o arrependimento pos~ui
pp. 524-:>25; na lradw;;iío portuguesa: pp. 648-649. urna realidade32 ética, e nao estérica. E a dor mais amarga porque possu1 a
28 Em alemao no original; fragmento de urna passagcm de 1 legel: «Das wahrhafte
Mitleiden ist im Gegenthei/ die Sympathie mil der z11gfeich .sitllichen Berecl11igung des 30 Sobre a perda de substancia no indivíduo. uma vez subsumido na família, no esta-
le1denden, ~nit dem A.f/im'.ativen und Substantielfen, das in ihm vorlumde11. sein muj.J»; do ou na linhagem. vd. Philosophie des Rechts. § 264, in Werke, vol. Vlll, p. 327;
em po11ugues: «A verdadeira compa1xiío é, pelo contrário. a simpatia corn a simultanea Jubitaums, vol. VII, pp. 343-344; e Suhrkamp. vol. Vil, pp. 411-412. Na tradLI<;ao
, lcgitimidade moral de quem sofre, como af'im1ativo e o substancial, que neJe tcm de portuguesa: pp. 2%-237. .
estar presentes.» Vd. Ae.vthetik III, in Werk.e, vol. X3, p. 532; .fubilawns, vol. XIV 31 Hcbreus, J 0:31: «Horrenda coisa é cair nas maos do Dcus vivo.»
p. 532; e Suhrkamp, vol. XV, pp. 524-525. ' 32 Aqui, «Realitet»; quando usado cm paralelo com «Virke/ighed», denota unu1 realida-
29 No original, a correspomlcncia entre «den Lidende>, (<<O paciente», «O sofredor») e de última, num sentido aproximado ao da ideia platónica, algo que se apresenta corno
«Medlidenhed» («a compa.ixao») resulta mais evidente do que na língua portuguesa. real por ser aquilo que representa o cxemplo consumado. Vd. nota 44 nestc capítulo, e
186
Ou Ou. Un1 l'1tl~'tlll'tllt1 de Vida 187

transparencia total de toda a culpa, porém.justnmcruc por c.:au1.,a dcssu trans- rnovirnento oposto ao da dor; se nao se quiser vi~iá-lQ por meio de ergotis-
parencia. nao interessa do ponto de vista estético. O arrepcndirncruo tcm mos - alzo que tarnbém eu evitarei de urn outro modo - pode dizer-se:
urna santidadc que eclipsa o estético, nao quer ser visto, ainda menos pelo o - -
quanto menos culpa ti ver. mais profundo o pesar. Se se insistir, acaba por
é

espectador, e exige urna espécie de iniciativa pcssoal completamente dife- anular-se o trágico. Resta sempre um momento de culpa, mas esse momento
rente. É ccrto que a comédia contemporánea. de vez em quando, püe em nao está propriamente rcflectido subjectivamente; por isso, na tragédia grega
cena o arrcpendimcnto, mas isso rnostra apenas desentcndirncnro por parte o pesaré tao profundo. Para evitar consequéncias intempestivas, limitar-me-
do autor. Recordou-se e bem o intercsse psicológico que é possívcl obter -ci a comentar que. corn todos os exageres, apenas se chcgará ao ponto de
quando se ve o arrependimento retratado, mas aquí o intcrcsse psicológico conduzir o pesar para um outro dornínio. A unidade, dcsignadamcnte entre
nao é,por sua vez, o interessc estético. Isto faz parte cla confusáo que nos um absoluto sern culpa e a culpa absoluta, nao é urna determinacño estética,
nossos tempos se aplica de tantos modos: procura-se urna coisa onde nao é antes urna determinacáo metafísica. É realmente este o fundamento pelo
haveria de ser procurada e, pior ainda, encentra-se essa coisa onde nao ha- qual sernpre houve pejo em chamar «trágica» a vida ele Cristo, porque se
veria de ser encontrada: qucrem edificar-se no teatro, e cxercer urna influen- sentía que as dcterminacóes estéticas nao esgotam o assunto. Tarnbém assim
cia estética na igreja; querem convertcr-se com os romances, e ter prazer se mostra, de um ouiro modo, que a vida de Cristo é rnais do que aquilo que
com escritos edificantes; querern ter a filosofia no púlpito, e o padre na cá- se dcixa csgorar cm dctcrminacñcs estéticas. já que as detcrminacócs estéti-
tedra. Esta dor nao portante, a dor estética c. contudo, torna-se manifestó
é.
cas ficarn neutralizadas ncste fenómeno e colocadas cm indifcrcnca. A accño
que o tempo cornemporáneo trabalha nessa direccáo, como se isso losse do trágica contérn scmprc em si urn momento de solrirncnto. e o solrimento
rnais airo intcrcssc trágico. Volta aqui a mostrar-se a mesma coisa, no que trágico. um momento de ac¡¡:fto, e o estético reside na relaüvidade. A identi-
diz respeito a culpa trágica. Os nossos tempos pcrdcrarn todas as determina- clade ele um agir absoluto e ele uma passividade absoluta é superior as fon;as
c,:oes substanciais de tamflia, de estado e ele Jinhagcm; térn de dcixar o indi- a
da estética e pertence metafísica. Na vida de Cristo verifica-se esta identi-
vfduo completamente abandonado a si proprio. de molde a que, no rnais ri- cladc, pois o seu sofrimento é absoluto porque o seu agir é absolutamente li-
goroso sentido, se convcrta no seu proprio criador, cuja culpa ponanro,
é.
vrc, e o scu agir é absoluto sofrimcmo porque é obediencia absoluta. Portan-
pecado, e cuja doré arrepcndimento; com ludo isto. porérn, o trágico é anu- to, o momento de culpa remanescente nao está reflectido su~jectivamente, o
lado. Tambérn no muis rigoroso sentido, a tragédia onde há soírimento per- que faz com que o pesar seja profundo. A culpa trágica é designadamcnte
deu propriarnente o seu imeressc trágico, pois o poder do qual provérn o mais do que urna mera culpa subjectiva, é a culpa original; mas a culpa ori-
sofrimento percleu a sua significacño, e o espectador grita: ajuda-te a ti mes- ginal, tal como o pet:ado original, é urna dctcrmina9ao substant:ial, e é preci-
mo, e o céu te ajudará3\ por outras palavras: o espectador pcrdeu a cornpai- samente esse subs1·ancial que torna o pesar mais profundo. A semprc admira-
xño, mas a cornpaixáo tanto em sentido subjectivo quanto objectivo, a
é,
da rrilogia tn1gica de S(~/bcles, Oedipus Culoneus, Oeclipus Rex e l\11t{f.:011a34,
vcrdadcira expressáo para o trágico. Ora. a bern da clareza. antes de seguir gira essencialmente em torno deste autentic.:o interesse lrágico. Mas a culpa
por di ante com 11491 o que atrás desenvolví, quero agora cornecar por deter- original encerra em si uma autocontracli9ao, a de ser culpa e. porém, nao ser
minar mais circunstanciadamenre o verdadeiro pesar estético. ~esar tem o culpa35. O elo através do qual o indivícluo se torna culpado é exactamente a
piedaclc, mas a culpa cm que incorre possui toda a anfibología estética possí-
nutras occrréncias esparsas, assinaladas, na nota 65 do capítulo «Silhuctas», e nas notas vcl. Até podia ser fácil vir aqui pensar que haviam sido os jucleus o povo a
68, 69 e 105 em «Diário do Sedutor». As ocorréncias assinaladas nas notas 39 e 44 do quem caberia ter desenvolvido o trágico prorundo. Quando de Jcová se diz
capítulo «A Rotacáo de Culturas». e na nota l 5 no capítulo «Ü mais Infeliz» constitucm que era um deus invejoso, que nos filhos visita as iniquidades dos pais até a
os dois casos rnais relevantes do uso ele «Realitet», tercei..ra ou quarta gen1<;:ao~6, ou quando se escuta as pavorosas maldic;oes no
33 Kierkegaard usa urna variante de dois ditados registados cm C. Molbech, Danske l
Ordsprog, Tankcsprog og Riimsprog [Provérbios, Ditados e LengaJengas Dinamarque- 34 S6focles. t!:dipoem Colono, Rei Édipo e A11tígo11a. 1
ses l. Copenhaga, 1850. p. 96, igualmente comuns na cultura curopeia, que substituem a 35 Sobre inocencia e culpa cm Kicrkcgaarcl. vd. O Co11cei10 de Angústia, SV 1, vol. Vl.
fatalidadc presente na matriz grega por uma relacño entre Deus e o hornern, na qua! a pp. 306-309. e SKS, vol. 4, pp. 341-344: e «Culpado? - 'lío-Culpado?», capítulo de J
iniciativa do singular é valorizada. Vd .. por excmplo, Ésquilo, Os Penas, v. 472: «Oh! Estádiosno Cnminlro da Vida, SV l. vol. IV. pp. 175-459. e SKS, vol. 6, pp. 173-368.
Céu inimigo, como tu iludiste os Persas nas suas csperancas!», in Ésquilo, Persas. tra-
dU<;:ao de Manuel ele Oliveira Pulquério, Coimbra: Instituto Nacional de Invesrigacño
Científica, 1992. p. 31.
36 13xodo. 20:5: «Nao te encurvarás a elas. nem as servirás: porque cu. o Senhor. teu
Dc11s, sou Dcus 7.closo. que visiro as maldades dos pais nos filhos. até á lerceira e quar- ~l
la gerac;ao daqueles que me aborrecem.»
188

Antigo 11 SOi Testamento, en tao, podia cair-se na tcnta<:Jo l'Ácil de procurar aí trarn cm contacto. u.-.s1111 como o dialéctico que jaz no conceito ele culpa
materia trágica. Mas o judafsmo est¡) demasiado clescnvolviclo do ponto de trágica,
vista ético para o fazer; as maldi9oes de Jeová, se bern que pavorosas, silo ao Considerando que fornecer trabalhos de contextualizacño, ou de ámbito
mesmo tempo castigos justificadamente merecidos. Nao era assim que acon- maior, está contra os esforcos da nossa associacño. considerando que nao
tecia na Grécia; a ira dos deuses nao tinha qualquer carácter ético, mas sirn remos tendencia para trabalhar em prol de urna torre babilónica, podendo
equivocidade estética.
Deus em sua justi9a vir por ela abaixo, destruindo-a39• considerando que,
Na própria tragédia grega encontra-se urna passagem do pesar para a dor, tendo consciencia ele que aquela confusao aconteceu com tocio o direito,
e quería agora introduzir Filoctetes'l como exemplo. No rnais rigoroso os reconheccmos no que é próprio ele todo o csfor90 humano na sua ver-
sentido, urna tragedia onde há sofrirncnto. Mas, tambérn aquí. ainda do-
é
dade como senclo fragmentários, e reconheccnclo que cssc é precisamente
mina afina! urn elevado grau de objectiviclade. O hcrói grego repousa no o factor através do qual se clifercnciam da infinita concordancia da nature-
seu destino, o seu destino imutável, isso ncm sequcr se discute. Este ele-
é
za; considerando que a 11511 riqueza da individualiclade consiste exacta-
mento é propriarnente o momento ele pesar na dor. A primeira dúvida. com mente na for9a ele prodiga! idade fragmentária, e que aquilo que é o gozo
-
a qual a dor de facto comeca, é a seguintc: porque acontece isto comiso
porque nao pode ser de outra maneira? Deceno que há ern Filoctetes urn "" ' do indivíduo proclutor, e também do indivíduo receptor, nao é o dcsempe-
nho árduo e meticuloso, nern a prolongada concep9::fo clesse clesempenho.
alto grau ele rcflexáo que scmprc me parcceu notório. através do qua! esta mas a proclrn;;ao e o gozo da cintilante fügacidade, a qual contém, para o
tragédia cstabclecc a dilercnca cssencial corn aqucla irnortal trilogía: a au- produ1·or, um mais que é mais do que o contido no dcscmpcnho consuma-
tocontradi<,:ao na sua dor, magistralmente retratada, na qual há urna verdade do, visto que se trata do aparecimcnto da ideia. e para o receptor conlém
Wo profundamente humana, havendo todavía urna objectividade que sus- um mais. j<í que a respectiva fulgura<,:flo despe11a a própria produtiviclade
térn o todo. A reílexáo de Filoctetes nao está absorvida cm si mesma, e é do receptor - dizia eu, considerando que ludo isto está contra a tendencia
genuinamente grcgo que ele se qucixe de que ninguém é tcstcmunha da sua da nossa associa9~'ío, sim, considerando que o período agora licio quase
doi-18. Reside nisto urna verdade extraordinaria e, no entamo, fica aquí ao tcrá de ser considerado como um sério ntent::iclo ao estilo inte1:jeetivo, por
mesmo tempo mostrada a difercnca em rela9ao n autentica dor reflexiva, a onde brotam as ideias sem que cheguem a desabrochar. um estilo que é o
qual sempre descja estar só corn a sua dor. e procura urna nova dorna so- estilo oficial da nossa associa9ao, enrno, Jimit·ar-mc-ci a recordar, dcpois
lidáo dcsta dor.
de ter chamado a aten9ao para o facto ele nao poder todavia designar-se a
Portanro, o vcrdadciro pesar trágico exige urn momento de culpa, a ver- minha condura como insubordinada, ciado que o elo que sustém este perí-
dadeira dor trágica exige um momento de inculpnbilidacle; o verdadeiro odo está pois tao frouxo que as ora9oes intercaladas se eri9arn de um
pesar .trágico exige urn momento de transparencia, e a verdadeira dor trági- modo bastante aforístico e particular, entao, limitar-me-ei a recordar que o
ca exige u?1 m~mento de obscuridade. Creio desta forma poder sugerir meu estilo foz um ensaio para dar a aparencia ele ser aqui lo que nao é -
melhor o dialéctico dentro do qual as determina9oes do pesar e dador en- revolucionário.
37 Füoctetes, tragédia ele Sófocles. Em cada uma das reunioes, a nossa associa<;ao exige renova9ao e rcnas-
38 Sófocles, Fitoctetes, vv. 691-707; na !raclw;5o de José Ribeiro Fcrreira: «Aí ele era
cimento, coma finalidade de fazer rejuvenescer a activ.idade interna através
:iLinho de si mesmo. scm poder andar,/ sem ter alguém ao lado da sua desgraca, f de urna nova designa9ao da sua produtividade. Designemos entao a nossa
Junto de qucm cncontrassem eco os gemidos/ pela chaga sangrenta que 0 devorava, ¡ tendencia como um ensaio de esfor90 fragmentário ou um ensaio na arte de
~e al.guma crisc surgisse, nao havia quern /o cálido fluxo de sangue que jorrava da fe- escrever papéis póstumos. Urna obra completamente concluída nao estabe-
rida infectada f do pé lhe pudessc aplacar./ com ervas calrnanres, / colhidas da [erra lece ncnhuma rela9ao coma personaliclade geradora de poesia; com papéis
fecunda. 1 Era ele que rasrejava por aqui e por ali. f arrastando-se / qual um menino
póstumos e, em virtude daquilo que há de dcscontínuo, de desultório, sente-
abandonado da ama, i até lugares onde enconrrasse rcmédio /para a sua dor, enquanto
-se sempre um impulso para, conjuntamente, inventar poet.icamente a per-
adonneci~a /.'1 roaz tortuni».' in Sófocles. Filoctetes, inrroducáo, versño do grcgo e notas
de José Ribciro .Fcrre1rn, Lisboa: Funda9ao para a Ciencia e a Tecnología e Junta Na- sonalidade. Os papéis póstumos sao como uma ruína, e que lugar de rcfúgio
cional de lnvest1ga9ao Científica e Tecnológica. 1979. pp. 66-67. F.diyocs consultadas poderia ser mais natural para os sepultados? A arte consiste agora cm pro-
pelo autor: Sophoclis Tragardia: [Tragedias de S.), vols, 1-II, cdi9i'ío de C. H. Weisc, cluzir artistícamente o mesmo efeito, a mesma negligencia e casualidade, o
Lcipzig; vol. 11, pp. 255-256; e Sophokles's Tragadier [Tragédias de S.], vols. [-IV.
tradu9iio de Peder Grib Fibigcr. Copenhaga. 1821-1822: vol. ll. p. 288.
39 O episódio da Torre de Babel está narrado no Livro do Génesis. 11:1-9.
l
l';)\J
( )11 011 IJ111 1 1.1¡•1111 11111 1li \ 111.1 11) 1

mesmo raciocínio anac.olútico; a arte consiste cm produ/rr urn dcl-11 rute que ubusussc tia sua contlancu, qucrn rica c.:01110 se cla estivcssc utnis de mima
nunca se torne presencial, mas que sernprc contcnha cm 1.i um momento do rcprccndcr me c. c.:011t11do, acontece o inverso: no scu scgrcdo, ela torna-se
tem~? passado, de molde a que esteja presente no tempo passndo. É ixto continuamcnrc cada vez muis visívcl. Ela é propriedadc rninha, é minha
que.Ja se encentra expresso na palavra «póstumo». Ern ccrto sentido, rudo legítima propricdadc e, contudo, é por vezes corno se cu me houvesse in-
aquilo que um poeta produz é de facto póstumo; masnunca ocorreria a al- trocluódo insidiosamente na sua confian<;a. como se tivesse continuamente
guérn ,chamar trabalho .póstumo a algo cornplctameme concluído, ernbora de olhar cm voila, procurando-a para trás e, contuclo, acontece o inverso,
~o~st~1s~ a casual qual1dad': de nao ter sido publicado enquanto a sua vida cla está !.empre i1 minha frente. continua apenas a vir i1 existencia na medi-
e vivida . Também eu admito que, cm sua vcrdade, isto soja urna qualidn- da cm que a levo para a frente. Chama-se Antí~o110. Quero manter este
de de toda a ~.rodw;:ao. humana, tal como 11521 a lemas concebido, que seja nome da antiga tragéclia45, a qual quero na globalidade ficar ligado. embo-
um legado póstumo. Já que aos horncns nao é concedido viver na eterna ra visto de um otllro lado tudo se tome moderno. No cntanto, um comcntá-
contemplacáo dos dcuses. Portante, dcsignarci como legado póstumo aquí- rio, em primeiro lugar. Utili1,o urna figura fominina, porque crcio sobrctudo
lo qt.1e se produz entre nos, ou seja, um legado póstumo artístico; chamarci que urna natureza fcminina se presta melhor para mostrar a diferen9a. Co-
negl1.gcncia. i.ndolcncia, a
gcnialidadc a que arribuímos preco; vis iuertiar" rno mulhcr tcrá a substancialidade suficiente para que o pesar possa
ns lcis narurars a que prestamos culto. Dcsta forma, procedí em conformi. mostrar-se, mas enquanto pcrtencente ao mundo rcllexionante terá H refle-
dado comos nossos sagrados usos e costumes"2. xao suficiente para ficar corn a dor. Para ficar como pesar. a culpa trágica
Ora apr?xin~ai-vos cnrño de rnirn. caros LtJµ."tUQUVFX(H1>µrvot, fazei tcrn de vacilar entre culpa e sem culpa, aquilo com que a culpa passa para
urna roda a minha ~.olla, agora que entrego a rninha heroína trágica ao dentro da respectiva consciencia tem ele ser sempre uma detcrmina9iio da
a
mundo. agora que filhn do pesar entrego como cnxoval o dote da dor, Ela subsrancialidadc: mas se, para ficar com o pesar, a culpa trágica tivcr de
~ obra _minha. mas o seu contorno está todavía tao indeterminado, a sua possuir esta inclctcrrnina9iío. 11531 cntao, a reflexiio nao tcní de estar pre-
f igura e tao nebulosa que qualquer um de vos pode apaixonar-se por ela e, sente na sua infinitudc. vislo que iria pois reflecti-la para fura da sua culpa.
ª:~cu modo, ser capaz de a amar. Ela é cria9ao minha. os pensarncntos dela na medida cm que a rcflexao. na sua infinita objcctividadc. niío pode dcixélf"
sao o· mcus pcnsarncntos e, 110 cmanro, é corno se cu tivesse repousado cm que o momento de culpa original que concede o pe:..ar ven ha a parar. Quan-
~ua casa numa noite de nmor'", como se clame tivcsse confiado 0 scu pro- do entretnnto a rcflexao estivcr despertada. entii.o, nao irá rcflecti-la para
fundo scgredo. no meu abrace o tivessc expirado conjuntamente coma al- forado scu pesar, mas para dentro dele. e transformar-lhc-á a cada instante
ma, e.corno se ncsse mesmo agora estivcsse para rnim transformada, desa- o pesar cm dor.
~ar~c1da, m~>lde ~1 _que apenas fossc possívcl seguir o rasto da sua A Jinhagcm de Lábdaco46 é. portanto. objecto da irrita9ño dos deuses
1~c
realidade na disposicño rernancscente, cm ve; ele havcr acontecido 0 in- irados, tdipo matou a esfinge. libertou Tebas, f-.c.lipo rnatou o pai. casou
verso, e ter ela nascido da minha disposicño para urna rcalidade cada vez com a mae47, e Antígona é fntto dcsle easarncnto. 8 o que se passa na tra-
maior. Coloco-lhc palavras na boca c. cornudo, sou eu qucm agc como se gédia grcga. fa90 aquí um desvío. Passa-sc comigo tudo de maneira pare-
cida e, no cntanlo. é tudo diferente. Todos sao sabedores de 4ue ele matou
40 No ongi.nal «i l1<111s levendc Live»; uma alusao ao título da primciru obra de Kicrkc- a esfinge e libertou Tcbas, e Édipo vive prezada e honradamente, feliz. no
gaard, puhli.cacla cm 1838. Al en e11d1111 l evendos Papirer. i. e .. «Dos Papéis de Alguém
tunda cm Vida». scu casamcnlo com Jocasra. O restante está escondido dos olhos das pes-
41 Em lutim no original: «forp da inércia». soas, e ncnhum pressentimento chamou alguma vc1, csse sonho pavoroso a
42 Ao longo dcste pnrágrafo. a idcia de posicrldade surge associada a uunsmissáo de realidade. Só Antígona o sabe. Como chcgou ao scu conhccimenlo reside
bcns mat~na1s e c~p1r11ua1s. e a dois modos de rcccpcño dcssa heranca. atmvés do uso
dos scgu11~1cs termos: «eftertadte Papirer»; i. e .. «papéis póstumos», e «Efterla- 45 De Sófocles, com o mesmo tíntlo. Para uma análise i.:omparativa da discu~~fto de
dens/..~1h». 1. e .. «hcranca» ou «legado póstumo». A suspciia sobre cs~a idcia tic postcri- Hegel sobre a tragéclia de S6focles e a proposla divergente ele Kierkcgaa~d no. presente
d'.1d: e l~.1n~:.1cl11 pelo cmprego simult~n~o ~le ouiros termos corn o me.,1110 prefixo «e]- capítulo, vd. Gcorgc Stcincr. A11rigone.L New Havcn e Londres: Yalc U111vers1ty Prcss.
ll.r». «F:;¡udade11!11'<Í». 1. e .. ~negligencia». e ainda o verbo «efterkonune«, aqui 1996, pp. 51- 66. e Jon Stew~in. «Hcgel's lntlucncc on Kierkegaar<l\ lnterprctmion of
rradio-ido por «agir cm conformidadc». «Antigonc», Persono y Derecho, n ." 39. Oezembro. 1998. pp. 195-21 (i.
43 Única ocorréncin de «Elskov» no presente capítulo. 46 Lábdaco. avo ele Édipo. profanou Ulll altar a Dionísio. provocando a ira dos deuses
44 Aquí e nas duas ocorréncia-, seguimos. «realidade» truduz «virketiuhed», Vd. acima contra si e comra toda a dcsccnclcncia.
nota 32.
47 Jocasrn. ml'íe de Édipo. de~posa o lilho após a mortc de Laio.
192 Ou-Ou. Um F1.1¡i11)l'11ll1 1k Vidu 193

forado iuteresse trágico, e cada um pode entregar-se as ~W)S proprias COll1- mais profundo. 111as a dor é menor. Por conseguinte. a angustia parte es- é

binacóes, no que a isso diz respeito. Em iclaclc precoce, ainda antes de scncial do trágico modcrno49. itP-.or i~so que Ham!e150 tño trágico, pois
é

atingir o pleno desenvolvimento, obscuras alusócs a este pavoroso segredo suspeita do crirne da mác, Robert le diable" pergunta como foi afina! pos-
apoderaram-se momentáneamente da sua alma, até que, com um só golpe, sível causar ele tanto mal. Hf>f?ne52, cuja máe o havia gcrado de um troll ,
a certeza a lancou nos bracos da angústía. Tenho aquí agora, desde Jogo, ao acabar casualmente por ver a sua ímagem na agua, pcrgunta agora a máe
urna detcrminacáo da tragedia moderna. A angustia é, a saber, urna reflexáo de quem reccbcra o seu corpo aquela forma.
e, assim scndo, cssencialmente diferente do pesar. A angustia é o órgao
é Agora a diícrcnca salta facilmente aos olhos. Na tragedia grega, Anl.ígo-
através do qual o sujeito se apropria do pesar e o assimila para si. A angús- na nao se ocupa de todo como infeliz destino do pai. Este destino repousa
tia a forca do movimento como qual o pesar trespassa o coracíío de cada
é como um pesar irnpcnetrável sobre toda a linhagcrn; Antígona vive a vida
um. Mas o movimento nao é rápido como o da seta. progrcssivo, nao
é sem pesar como qualqucr outra jovcm grega, apesar de o coro a lastimar,
acontece de urna vez por todas, está antes cm constante devir, Tal como um pois a sua morte está determinada, visto que deixará esta vida crn idade tao
olhar erótico de paixáo desoja ardcntcmcnte o seu objecto, assim a angustia precoce, dcixá-la-á sem ter provado a sua mais bela alegria, e no manifesto
olha o pesar para o desojar corn ardor. TaJ como um silencioso olhar de csquecimento do autentico pesar profundo da família. De modo aJgurn se
amor incorruptfvcl se ocupa do objecto amado. também a angustia ocu- é quer agora di'l,er que é de animo leve, Oll que O indivíduo singulal' fíca SO-
pa<;ffo propria no pesar. Mas a angustia possui em si mais um momento, mente entregue a si mesmo, sem se preocupar com a sua rela~ao com ali-
capaz. de Iazer com que fique agarrada ao seu objecto com mais íorca aindu, nhagem. Mas isto é genuinamente grego. Nesse tempo. as círcum:tancias da
pois ama-o tanto quanto o reeeia. J\ angustia possui urna dupla funcáo, é, v.ida eram-lhes concedidas a semclhan9a do ho1i'l.Onte sob o qual viviaro.
parcialmente, o movimento de descobcrta que corninuamcnte lhe toca e Se b<.:m que obscuro e encoberlo, também é ao mesmo tempo inalterávd.
através desse toque descobrc o pesar, na medida cm que anda a volta do Atribui li. alma uma nota fundamental, e esta nota fundamental é o pesar.
pesar. Ou entáo a angustia repentina, instala num sé agora tocio o pesar,
é nao a dor. Em Anlíf(ona, a culpa trágica congrega-se num det<.:rminado
de tal forma. porém, que esse agora se dissolvc instantancamente em suces- ponto, foi ela quem scpulrou o irmft.o apesar da proihi9ao do rei. Visto como
sáo. Corn esta significacáo, a angustia urna auténtica dcterrninacáo trági-
é um facto ·isolado, como urna coJ.isao entre o amor fraternal e a piedade, e
ca 11541, e a velha expressño quem deus vult perdere, primutn demen1a14S uma arbitrária proibic,;íi.o humana, <.:nlao, Antf!{ona dcixaria de ser urna tra-
encontra aqui corn vcrdadc justo cabimento. Que a angustia é urna determi- gédia grega, e seria um tema trágico int.eiramente moderno. Aquilo que em
na~ao da rcllcxfío, dernonstra-o a propria língua, pois digo scmprc scnlido grego lhc atribuí intcresse trági<.:o l 1551 é o facto de na infeli'I. mor-
«angustiar-se com alguma coisa», separando desta forma a angústia daqui-
lo corn que Iiquei angustiado, e nunca posso usar angustia cm sentido ob- 49 Na prime ira cdic,;áo dt: 1:.:nte11-r:ller, le-se apenas <<l d lo trágico».
jectivo, ao passo que dizenclo ao invés «O mcu pesar», posso tanto exprimir 50 Personagern principal da l.ragédia homónima de W. Shakcspeare (1564-1616), com
aquilo por que sinto pesar. como o mcu pesar por tal coisa. Além disso, a múltiplas alusocs no co11junto da obra de Kierkcgaard.
angústia contérn sempre em sí urna rcflcxño sobre o tempo, pois eu nao 51 A Jcnda conhece várjas vcr:-:oes e deve a sua grande divulga~ao no século x1x a ópe-
consigo angustiar-me com o tempo que presente, mas apenas com o tem-
é
ra homónima de ()iacolllo Meyerheer ( l 791- '1864) com libreto de l:iugenc Scrihe e
po que passado ou cmn o tempo que futuro. mas o tempo que passado,
é é é
a
Germain J)clavigne (1790-·1868); foi levada cena em Copenhaga. com lihrelo traduzi-
do por Thomas Ovcri;kou, como nomc de Robert af Nonnandier 1 Roherto da Nonm111-
ou o tempo que é futuro. assim antagonizados reciprocarncntc de modo a
clia), conr.ando-~e vinte récitas entre 1833 e 1839, e dozc enl.re 184 l e 1844. J\o primci-
que o presencial desapareca, urna determinacáo da reflcxáo. O pesar gre-
é
ro acto, o trovador Rimbaut reprodut, a lcnda na versao mais popularizada: Robert
go, ao invés, tal como a vida dos gregos, presencial, e o pesaré por isso
é
confcssa-se repetidamente perseguido pelo mal e pela infelicidade, acabando por rene-
gar a patenúdade do diabo, Ilert.ram. e os pode.res mágicos que este lhe au·ibuírn; no
48 Em Jatim no original: «a quem Deus 4uer perder, tira p.rimcüo a razao», tradu~ao cerceiro acto, tem lugar uma cena paradigmática do góti.co rornfü1tíco, cujos protagonis-
latina tlo coment:'írio ao v. 620 de 1\f/lÍ[(ona de Sófocles. Na tradui,:ao portuguesa do tas sao mortos-vivos, designadarnenle, fantasmas de urna irmandadc de freiras que ha-
respectivo verso do texto grego le-se: «parecer he.m o 4ue é mal, é só a qucm ! o deus viam profanado os seus votos.
leva a
ruína». in Sófocles, f\¡¡tfgona, inti:odtH;:fio, versao do grego e notas de Maria 1 le- 52 Nome do filho que a rainha Grimhild, esposa do reí Gjuke, concebeu de urr1 trol!.
lcna da Rocha Pereíra, Coimbra: lnstituto Nacional de lnvesl:igac,;ao Científica. Centro Edic,:iio consultada pelo autor: Old nordiske Kmnpe-Historier ejier islandske Haand-
de Esludos Clássicos e llumanfsticos da Uníversidade, 1984. p. 66. Doruvunlc mencio- skrijier [I-l istórias (le G iga111cs Nórdicos de /\cordo com Manuscritos Islandeses 1, vols.
nada por A..ruf¡::ona. 1-111. traduc;ao d..: C. C. Ruin. Copenhaga. 1821-1826; vol. lL pp. 242-244.
194 .Sp11•11 J, 11,.•1 J..1,.•g11ard 19'1

te do irrnño, na colisáo da irrnñ com urna proibicíío humana particular, alma. Nc111 ncccssuo de recordar que cla nao é de modo algurn urna mulher
rcssoar o pesaroso destino de Édipo. o destino trágico de Édipo. tal como
é fraca e docntia, pelo contrário, orgulhosa e chcia de forca. Nada há que
é

nas dores tortas. a ramificar-se em cada rebento singular da sua família. É porventura enobreca tanto urn horncm como conservar um segrcdo. Dá a
este lota! que torna o pesar do espectador tao infinitamente profundo. Nfio roda a sua vida urna signíficacño.embora apenas para ele proprio, que 11561
éum individuo que sucumbe, mas um pcqueno mundo, é o pesar objcctivo o salva de qualquer aprecia<,:ao frívola sobre o mundo a sua volta; bastando-
que agora avanca, soltó, como urna forca da naturcza na sua autentica e -se a si próprio, pode quase dizer-se que repousa sumamente feliz no seu
terríve~ consequéncia de si, e o destino pesaroso de Antígona é um pesar '>egrcdo. se bem que o scu segredo fossc o mais sumamente infeli¿. Assim
potenciado, tal como a rcssonáncia do destino do pai. Por isso, quando é a nossa Antígona. Está orgulhosa do scu segredo. orgulhosa de ter sido
Antígona decide enterrar o irrnáo aposar da proibicáo do rei, entáo, nisso estranhamcnte escolhida para salvar a honra e a glória da linhagem de Édi-
nao vemos tanto a accáo livre quanto a necessidade funesta que visita as po e, quando o povo reconhecido aclama Édipo cm gratidao e apre~o, en-
iniquidad~s dos pais nos filhos. E há certamcnte tanta libcrdadc ncssa ac9fio 1ño, ela sente a sua autentica ~ignifica9ao. e o seu segredo cava-se cada vez
que podenamos amar Antígona pelo seu amor fraternal, mas na ncccssida- rnais fundo na sua alma, mais inacessfvel a qualqucr ser vivo. Sen le o quan-
d: da fotali~ade r~side et~ ~imultaneo como que um rcfrño mais alto, o qual to está agora colocado nas suas maos, e isso dá-lhe a grandeLa sobrenatural
nao só rodela a vida de Edipo. como também a sua linhagcm. que é neccss:íria para que ven ha a poder ocupar-nos do ponto de vista trá-
Ora cnquanto a Antígona grcga vive assim a vida scrn pesares - e se gico. Apenas lcrá de intcressar enquanto figura singular. Ela é mai-; do que
este novo facto nao tivcssc surgido, podcr-sc-ia imaginar a vicia dela neste uma jovem rapariga cm sentido geral e, contudo, ela é um<1 jovcm; é espo-
~radual desdobramento, se bcm que feliz - . a vida da nossa Anttgona. ao sa e, contudo, com toda a sua virgindade e pureza. Como esposa, a mulher
invés, chcgou csscncialmcnte ao firn. Nfío foi corn parcirnónia que a provi alcan\:OU a sua dctermina9ao e, por is o, urna mulher pode em geral
e urna palavra adequada no lugar certo como é costume dizcr-sc, como
é, inleressar-nos apenas na mcsnia medida em que cstcja em rehu;ao com csrn
macñs de ouro em vaso de prata5-', a sirn tarnbérn cu pus o fruto do pesar sua detcrmina¡;ao. Há entretanto analogía~ com e ·te caso. Fala-~c a~sim de
110 vaso da dor, O scu dote nao tcrn um esplendor efémero que possa ser uma esposa de Deu~56• que possui na fé e no cspírito o cont<.:údo no qual
devorado pelas tracas ou pela ferrugem, é um tesouro eterno, os ladróes niio rcpousa. Gostaria de chamar esposa lt nossa /\ntígona talvc1. ainda num
o conseguern assaltar e roubar'", pois ela propria estaría demasiado vigilan- ... entido mab bclo, com ef'eilo, ela é quase mais, ela é mae, de um pomo de
te. A sua vida nao se desenrola como a vida da /\ntígona grcga, nao está vista puramente estético. ela é vi1">(0 11101er~7• sobo cora<,:ao transporta o seu
voltada para fora, mas sim para dentro, o palco nño está no exterior, mas no '>Cgredo, c!.condido e dic;simulado. Ela é silencio precisamente por estar
interior, é urn palco do cspírito. Será que nao fui bcrn-sucedido. caros repleta de segrcdo, mas este retorno a si mesma, que jaz no silencio,
LuµmtQavt:xQ(llµl'VOt. no despertar do vosso interesse por urna tal jovern. concede-lhe um porte -;obrenatural. Scnte orgulho no seu pesar, é ciosa
ou dcvo recorrer a urna caprario benevolentioeé'; Tarnbérn ela nao pertencc dele, pois o seu pesaré o seu amor. Mas, no entanto. o seu pesar nao é uma
ao mundo no qual vive e, se bem que florescenre esa. a sua vida autentica propríedadc mor1a e imóvel, move-se continuamente, dá u
luz a dor e é
é todavía clandestina, pois, apesar de ela estar viva, neutro sentido tarnbém dado a lt1l com dor. Tal como uma rapariga fica noiva quando decide sacri-
está morta, esta vida ésilenciosa e escondida, o mundo nem scqucr lhc ficar a sua vida por urna idcia, quando tra;, a grinalda do sacrifício íl volta
ouve um suspiro. visto que tcm os suspiros escondidos no recóndito da sua da testa. pois que a grande e cntusias111ante ideia transforma-a. e a grinalda
do sacril'ício é como a grinalda nupcial. Nenhurn homem conhecc~8, e con-
53 Proverbios. 25: 11: «Aquele que profere a paluvra a scu tempo. é como uns pomos tudo é esposa; ncm sequer conhece a ideia que a entusiasma. pois isso nfto
de oiro cm lcitos de prara.» !.eria feminil. e, contudo, é esposa. A~sim acontece coma nossa Antígona,
54 Mareus, 6: 19-20: «Nao queiruis entesourar para vós tcsouros na torra. onde a fer-
rugem e u traca os consome. e onde os Iadróes os desenrerrarn e roubam: /Mas ente-
sourai ~ara ~ós rcsouros 110 céu, onde nao os consume a íerrugem ncm a traca, e onde
os ladroe.s nao os descnrcrram, ncm roubarn»: palavras retomadas por Paulo na Epís- 56 Vtl .. por exemplo. nos canlicos de Salomao, 4:9a5:1. Kicrkegaartl repete esta ideia
tola_ de Tiago, 5:3: «Ü vosso ouro e a vossa prata se enferrujaram: e a fcrrugcm deles \arias vc1c~. citando também a partir de Kruse. Acto L cena 6. Kru<.e, p. 20. Vd. igual-
dt~ra testcrnunho contra vos. e devorará a vossa carne como urn fogo, Ajun1a1>tes para 111c11Le nllla 36 no capítulo «Silhuetas».
vos um tesouro de ira para os dias últimos.» "17 bn lati111110 original: «virgcrn 11wc».
55 Fórmula latina de fal,a modéstia com que um autor apela ~1 car 1d.1dc do lcuur '\X \d. L Ul'ª'· 1: ·' 1· •+ d"w t\l:u r¡i Como 'e fara !\to. vis10 que niio conhc<;o varlío'!»
196 Ot1 011. Um h11r111~ 11tn 1h V1du 197

é esposa do pesar59. Ela consagra a vida a sentir pesar pelo dc~11110 do pai, mnpropnado'", 111:1.., c'>ta mupropriacáo é a dor propriamente dita. Os gregos
cm lugar do seu. Urna tal infelicidade como aqucla que aringiu o scu pai cxprirnium-sc de uin modo figurativo, justamente porque a reflexño que
reclama o pesar e, no entanto, nao há ninguém que possa sentir pesar por lhc-, é incrcnte nao estava contida nas suas vidas. Quando assim Filoctetes
ele, dado que nao há ninguém que saiba. E tal como a Antígona grega nao ,l. lastima de que vive só e abandonado na ilha de. erra, o seu enunciado
pode suportar que o corpo do irmño seja sepultado sern as últimas honras, pns<;ui simultancamcntc urna verdadc exterior; ao invés, quando a nossa
11571 também assim cla semc quáo difícil teria sido se ninguérn tivesse ntígona scntc adorna sua solidáo, é devoras inapropriaclo dizcr que está
chegado a saber, angustia-a que nao houvessc de ter sido derramada urna xo, porérn, precisamente por isso, só adoré devoras autentica.
lágrima, quasc agradece aos deuscs ter sido escolhida como instrumento. Ora no que diz rcspeito íl culpa trágica, esta reside entño, por um lado. no
Assirn, na sua dor, Antígona é grande. Posso também mostrar aquí urna lacto de cla sepultar o irmño e, parcialmente, no contexto do pesaroso des-
diferenca entre o que grcgo e o que é moderno. É genuinamente grcgo que
é l ino do pai, subentendido nas duas 1J581 tragédias anteriores62. Neste ponto.
Pilocrctes se queixc de que ninguém sabe que ele sofre. é urna neccssidadc volto agora a ficar perante urna curiosa dialéctica que coloca as iniquidades
profundamente humana querer que os outros chcguem a saber dis io: a dor da linhngcm na rclacño com o indivíduo. É isto que é o atávico. Em geral.
reflcxionantc, emrcranto. nao <leseja tal coisa, Nao ocorrc a Antígona dese- i111agina-se a dialéctica bastante abstractamcnte, pcnsa-sc sobretudo nos
jar que alguérn houvcssc de vira saber da sua dor, mas, ao invés, sentc-o movimcntos lógicos. A vida vem entretanto cnsinar-nos que há mu itas cspé-
em relacáo ao pai, sentc a jusiica que reside em sentir pesar. o que. do pon- c1e-. de dialéctica. que qua!-.c cada paixao tema sua. Por isso, a dialéctica que
to de vista estético, é tao merecido como sofrcr um castigo quando se agiu coloca as iniquidades da li11hagum ou da ramília cm ligac,;üo com o sujeito
mal. Por isso, enquanto na tragédia grcga sé a idcia de estar determinada -.ing.ular, de molde a que este nao só sofre sob o seu efeito - pois é urna
para ser enterrada cm vida arranca a Antígona esta exclarnacño de pesar: rnn~equencia da nature1a contra a qual o indivíduo procuraría cm vao
<.:alejar-se - , como carrega a culpa. participa dela; esta dialéctica é-nos
(850) i<li oúorcvoc, alheia. nada de imperioso para 116!-. contém. Se. no entanto. <;e pensa\se num
OU"t' f.:'\1 f3Q01:0L; OÜ"t' CV Vt:Y.(lOLCJL 1c11a:.ci111ento da tragédia antigu. entao, cada indivíduo tcria de ponderar o
µé1:01.xo~, oú ~<l>ow, oiJ 1':J<:tvoúot''6 º -.cu próprio renascimento. nflo apenas em sentido espiritual. mas no sentido
1111 ito do ventre materno da famíl ia e da 1 inhagem. A dialéctica que coloca o
a nossa Antígena pode dizer isto durante a vida inteira acerca de si mesma. 111uivíduo em liga~ao com a família, e com a linhagem, nao é de todo urna
A difcrcnca é notória; o seu enunciado cncerra urna vcrdadc factual que faz dialéctica subjcctiva, já que elimina precisamente a liga9ao e o indivíduo
com que a dor scja menor. Se a nossa Antígona dissesse o mesmo. cría para fora do contexto; é uma dialéctica objectiva6•1• É es. cncialmente a pic-
dade. Conservar a picdade nao pode ser visto como um dano para o indiví-
a
duo. Nos nossos tempos. passou a apli<.:ar-sc uma coisa relai,:ao natural que
• (844). O weh Unselige! a
mio é aplicável rela<;ao espiritual. Nao
se quer todavia ficar tao isolado, ser
Nicht 1111rer Menschen, 11i<·/i1 11111er Todten, 1ao desnaturado. yue nao se considere a familia como um todo. do qual é
lm Leben nicht lteituiscli nocn im 7ix/e!t po-.sível dizer que. quando um membro sofre. todos sofrem também64.

t Em ulemilo no original: «Ai, infeliz! I Ncm entre os homens , nern entre os monos, /
Na vicia liio pouco cm casa como nu morte!» A truducño ulcmñ do v. 850 citada pelo <> 1 Na~ frases conclusivas do parágrafo. o autor joga com duas valéncias de «ll<'ge11­
autor retirada de Sophokles Trugtrdien [Tragédias de S.J. traducño de Johann Chri-
é 11t11». i. c .• «inapropriado» 011 •<figurado» em rela~o ao 'cntido de uma palavra ou
stian Donncr. Heidelberg. 1839. p. 186. lia-,c. contrastadas com «egl'111/ig». i. c., «autcn1ico», 011 «propriamente dito».
(¡2 Nei Édi¡ll) e Édi¡m e111 Co/0110.
59 Complc1a_-~e uqui a cornparacáo iniciada linhas antes curn Ifigénia, protagonista de <>' l lc••cl e~tabclccc a difcrcnr;a entre dialéctic;i subjcctiva e dialéctica objectiva em
tfigénia em Aulid« de Eurípedcs. Vd. Eurípcdcs. tfigénia em Áulidr, introducño e versño 1 orle.1~11gt•11 iiber die Gescl1ichte der Philosophie 1 Lir;<'íe~ sobre a Hbtória da rilosofia].
de Carlos Albe110 País de Almeida. notas e revisño de Maria de Fátima Silva, Lisboa: 111 Wer~c. vols. Xllt-XY: vol. XIII, pp. 130 e segs.; J11bifii11111s, vol. XVII, pp. 326 e
Funclac;ao Caloustc Gulbenkian. Junta Nacional de lnvestigacño Científica e Tecnológi- 'l"f'>.: e 'i11hrf..w11p. vol. XVIII. pp. 302 e segs.
ca. 1998, 2.ª edi9ao. (1I Primcira Epí,tola ao~ Corínlio-;. 12:26: «De maneira que, se um membro padece.
60 Na traducáo portuguesa de Maria 1 lclena da Rocha Percira: «Ai de 1111111, dc,¡p·ac;adaJ 1odoi. 0~ 111cmbn'1' padccc1u c\lln ele: e se urn 111e111bro recebe glória. todos o~ 111embros
I que nem comos hornens I nem c.:0111 º"' cadáveres / eu vou habiuu '». /\111111"""· p. 76 'l" 1 CfO'flJHlll COlll ele ...
198 199

Fazemo-lo involuntariamente e. aliás, por que motivo ir{l o rndivrduo singu- fiar 0 scu pe... ar. pois de tacto nao sabia se ele tinha conhecimento disso e.
lar ter assim tanto medo de que um outro memoro da familia lhc traga de- por conseguintc, havia urna possibilidadc de o mergul~ar numa dor comp.~-
sonra. senño por sentir que sofrc com cssa dcsonra. Ora o indivíduo tcrn rável a sua. E cornudo. se ele disso nao tivesse conhec1mento, a culpa sena
manifcstarnentc de aceitar este sofrirnento, quer queira , quer nao queira. menor. Aqui 0 movimento é sempre relativo. Se Anttgona nao conl~eces~c
Mas, quando o ponto ele onde se parteé o individuo e nao a linhagem. este 0
contexto factual com precisño, entáo, tornar-se-ia insignificante, nao tena
sofrimcnto forcado é o 111axi11111111; sente-se que o hornem nao mais consegue mais para combater do que um presscntimcnto, o que é cxccssivarnente
ser senhor da sua rclacño natural, mas deseja-o tanto quanto )he for possível. pouco para nos ocupar do ponto de vista trágico. Mas ela ~abe tudo: porém,
Ao invés, se o individuo olhar a relacáo natural como um momento incluído no scio dcstc conhccimento, há todavía urn desconhec11nento que pode
na sua vcrdade, esta exprime-se entáo no mundo do espíritu como sendo o continuar a mantero pesar cm movimcnto. co~tinuando a tra~~sfo_rmá-lo.~m
indivíduo a participar na culpa. Muitos nao seriam porvcntura capazos de dor. Acrcsce que cla continua a estar em confltto com a amb1enc1a extet 1or.
pcrccbcr esta consequéncia. mas assirn tarnbérn nao conscguiriarn percebcr Édipo vive na memória do povo como um rei feliz, honrado e louvado;
o trágico. Se o indivfduo está isolado, ou é em absoluto o criador do seu .º
11601 a própria Antígona admirava tanto o pai quanto amava. Tom_a parte
destino e, assirn sondo, nada mais haverá de trágico, mas apenas o mal - em qualquer júbilo e celebra~ao do pai, sente entusiasmo ¡x:lo pa1 corno
pois ncm sequcr é trágico que o tivcssem cegado ou aprisionado cm si pró- nenhuma outra jovem em todo o reino, o seu pcnsamcnt~ a ele re~rcssa
prio, pois isso é 11591 propriamente obra sua -: ou os individuos sño meras continuamente, é louvada no paí-; como um modelo de hlha adorav~I e,
modificacócs da existencia da substancia eterna e, asvirn seudo, o trágico contudo, este eniusiasmo é o linit:o modo através do qual é capaz de de1xar
volra a ser afastado. irromper a dor. o pai está scmprc nos seus pensamentos,_mas o modo como
Ora, em rclacño i'1 culpa tnigica, mostra-sc tarnbérn Iacilmcntc urna difc- aí está constitui esse seu doloroso -;egredo. E. contudo, nao ousa entr~gar-se
ren~a na moderna. dcpois de ter acolhido cm si a amiga, pois só agora pode ao pesar, nao ousa afligir-se. sente o quanto repou~a s??re cla, r~cc1a que,
propriarnente fular-se disso. Por vía da sua piedadc infantil, a Antígona se a vissem sofrer, houvessem de eneo111rar um 1nd1c10 e, ass1111 sendo,
grega participa na culpa do pni, tal como na rrngédia moderna: mas para a vindo cJcssc lado. também nao receberá o pesar, mas sima dor.
Antígona grcga a culpa e o sofrirneruo do pai ~ao um facto externo, um Se ror elaborada e profundamente reelaborada desta forma, penso .qu_e
facto inabalávcl, que o scu pesar nílo rnovc (quod non volvit in /U!Ctore65); Antígona poderá decerto ser ocupa9ao nossa, e penso que nao me_ 1~e1s
c. conquanto cla sofra pcssoalrnenrc coma culpa do pai cm virtudc da con- acusar de ligeireta de espírito ou de excesso de amor ptcmt~I. se cu 101 de
scquéncia natural. esta culpa está por '\CU turno cm toda a sua facticidadc opiniao que ela pode muito bcm cnsaiar-sc na m_atéria tníg1ca e, a~arccer
cxtcrior.Com a nossa Antígena, passu-se de maneira diferente. Avsumo que numa tragédia. Até aqui é somente uma figura épica e, nela, o trag1co tem
Édipo morrcu . .lá quando ele era vivo, Antígona ero sabedora dcsse segrc- apenas intcressc épico. .
do, mas nunca rivera coragem para ·e confiar ao pai. Coma rnorte do pai, Tainbém neni scquer é assim t5o difícil descobm um encadeamento no
dcspojaram-na da única saída para ficar liberta dcstc '>CU scgrcdo. Confiá-lo qua! possa inserir-se: a este respeito, podemo~ muito_ bem contentar_-'.10~
agora a outro ser vivo seria desonrar o pai, a vida tcrn para cla signif'ica9ao com aquilo que a tragédia grega oferece. Anttgona _a1nda tem urna ~tm<•.
enquanto consagrada a prestar-lhe a dcrradcira homcnagcm dia a dia, quase viva: vou fazé-Ja um pouco mais velha e casado. A mae tambérn pode csta1
hora a hora, atruvés do scu silencio inquebrantávcl, De urna coiva ela nao viva ainda. Daqui decorre que passam obviamente a ser scrnpre per_sona-
esui todavía sabedora. dcsconhecc se o próprio pai sabia disso. ou nao. Bi"' gens secundárias. tal como decorrc que, de um modo gcral. a tragédia a~-
aqui o que é o moderno: a inquietude no seu pesar, a anfibología na sua dor, quire em si um momento épico, a sc111clha119a do q~c acontcc~ na tragé<lia
Ela ama o pai com toda a sua alma, e essc amor arrasta-a para tora de si grcga, <;ern que por isso neccssite de ser tao proemmentc; aqu~. con:udo, o
propria e para dentro da culpa do pai; como fruto de um mi amor scntc-sc monólooo dcscmpenha scmpre um papel principal, embora a s1tua~ao _<leva
albeada dos homens. scnre tanto mais a sua culpa quanro mais amar o pai, continu:mcnte vir em auxilio. Tudo isto tem de ser imaginado em c,OllJUnto
só junto dele encorura rcpouso; como sao igualmente culpados, sentiriam com 0 único interesse principal que é o conteúdo da vida de Ant1gona; e
pesar junto urn do outro. Porérn, cm vida do pai , nao foi capaz de Ihe con- quanc.lo agora 0 todo estiver assim ordenado. resta perguntar: como é pro-
duzido o interesse dramático? ,
65 Em latim no original: «Oque cla nao agita no pcito». «/11 pectore w1/icn·, ~ urna A nossa heroína. tal como aprcscntado nos parágrafos anteccdentcs. esta
cita~ao Je Hon1ero. ocorrenic em Lucn:cio e cm Virgílio. a 1.:aminho de qucrci -.altar por cima de um momento e.la sua vida, está pres-
200
201

tes a dispor-se a viver espiritualmente por inteiro, algo que a n.uurcza nao aumcnta-lhc a dor, tl cndn suspiro scu 11621 a seta do pesar fica cravada cada
tolera. Corn a profundidadc que lhc vai na alma, quando fica apaixonada. ve¿ mais fundo no coracño. Para a demover. nao deixa meio algum por ex-
t~m neccs~ariamente de amar com urna paixáo extraordinária. Eis-rnc pois perimentar. Corno todos os outros, ele sabe quanto ela ama o pai. Encontra-
diante do interesse dramático - Antígona está apaíxonacla, e digo-o com -a junto do túmulo de Édipo, aonde cla se dirigirá para aliviar o coracáo,
dor, Antígona está mortalmente apaixonada, A colisáo trágica66 reside maní- onde se entrega a saudade do pai, embora essa saudade se misture com clor,
festamcnte nisto. Na generalidadc, devíamos ser um pouco mais esquisitos porque ela nao sabe como há-dc encontrar-se corn ele outra vez. nao sabe se
face 11611 aoque chamamos colisáo trágica. Quanto rnais simpatéticos forcm ele conhecedor da sua culpa ou nao. Ele surpreende-a, suplica-Ihe pelo
é

os poderes em colisáo, quant.o mais profundos e simult.aneament.e mais con- amor com que ela rodeia o pai, repara que lhe causa urna irnpressáo in vulgar,
géneres, tanto mais significativa será a colisño. Ela está pois apaixonada e insiste, tuclo espera deste rneio, e nao sabe que está precisamente a agir con-
aquele que constituí o objecto do seu amor nao tern dcsconhecimento disso. tra si proprio.
Ora a minha Antígona nao urna rapariga comum e, assim scndo, tarnbém
é
O facto em torno do qual gira o interesse consiste, portanto, cm ele con-
o dote cicla é incomum: é a sua dor. Nao lhe é possível pertcncer a um ho- seguir arrancar dela o seu scgredo. De nada serviría lcvá-la tcmporariarncn-
mc.111. scm este elote, senté que seria urna ousadia cxccssivarnente grande; te ao delirio para que dcssa forma ela o traíssc. Os poderes cm cclisáo
sena impossfvel esconde-lude um tal observador.vira esconde-la seria uma mantém-sc a par um do outro cm tal grau que a accáo se torna impossível
ofensa contra o seu amor; mas poderá cla pertencer-lhe tendo esta dor? Ou- para o indivíduo trágico. A dor de Antígona é agora dilatada por vía do scu
~ará confiá-la a alguérn, mesmo sendo ao homern amado? Anrfgona tcrn :unor, por via do sofrirnento simpatético dirigido a quem cla ama. Só na
torca, a qucstáo nao é saber se ela, por sua propria culpa, para aliviar o pciro mortc poclerá encontrar paz; a sua vida está assim consagrada ao pesar, e
irá confiar a alguém a sua dor, porque cla conscguc suportá-la bcrn sen; ela como que estabeleccu urna cspécie de fronteira, um dique contra a in-
apoio; mas conseguirá ela justificá-la diantc de urn morto? Ela propria, de felicidade que porventura se iri.a fatalmente propagar na gera9ao seguinte.
cerco modo, sofrc igualmente ao confiar-lhc o scu scgredo, pois a sua vicia Só no instante da morte poclerá ela confessar o seu fervoroso amor, só po-
tambérn está pesarosarnenrs cntrelacada ncssc segredo. Nao obstante isso derá confessar que Jhe pertence no instante em que nao lhe pertence. Quan-
nño a preocupa. A questño é apenas o pai. Vista por este lado, a colisño é do Epaminondas67 foi ferido na Batalha ele Mantineia, deixou que a seta
portante de urna natureza simpatética. A sua vida, que antes era tranquila e ficasse enterrada na ferida até ouvir dizer que a batalha estava ganha, por-
calma, tom~-se agora violenta e apaixonada, obviamente que sernpre no seu que sabia que a morte chcgaria quando a cxtraíssem. É assim que a nossa
eu: e a r~p.lrca del~1 comeca aquí a tornar-se patética. Lula consigo propria. Antígona carrega o scu scgredo no cora~ao, como urna flecha que a vida
qurs sacrificar a vida ao scu scgredo, mas agora exigem-lhe o seu amor em continuamente crava cada vc1, mais rundo, scrn lhc roubar a vida, pois des-
sacrificio. Ela vence, ou seja, o scgredo vence, e ela pcrde, Surge agora a de que cstcja enterrada no scu cora1,:ao, vivcrá, mas no instante cm que f'or
segunda coüsáo. pois para que a colisño trágica sejajustificadarnente profun- retirada, tení de morrer. O seu amado ten1 de lutar para a despojar do seu
da. os poderes em colisáo térn de ser homólogos. !\ colisño descrita até segredo e, nao obstante, para ela, isso trará conjuntamente morte ce1ta.
agora nao possui esta qualidade,já que a colisño propriarncnte entre o amor
é
A que maos cairá ela agora? As do vivo ou as do morto? Em certo sentido,
dela pelo pai e o amor por si mesma, e em tomo de o seu proprio amor nao
ser um sacrifício demasiado grande. O outro poder em colisüo é 0 amor
simpatético pelo seu amado. Ele sabe que é amado, e passa a ofensiva com
ousadia e audacia. A reserva ele Anrígona surprcende-o deveras; ele percebe 67 Epaminondas (c. 418-362 a. C.). general de Tebas. Vd. Cornelius [Cornélio) Nepos,
«Eparní11011das». livro XV, 9. De excelle11tibus ducihus exterarum ge11ti111n LDos Exce-
que tern de haver dificuldades muiüssimo particulareg , mas que nao térn ele
lentes Chefcs dos Povos Estrangeiros]. Outra fonte disponível para o autor: «Epami-
ser para ele inultrapassáveis. Tudo o que lhe importa convence-la do quan-
é
no11das». in Ludvig Holberg, Helte-Historier [Hist6rias de Her6is]. vol. 11. in Ludvig
to ele a ama, sim, de que a vida dele acubou quando ti ver de abdicar do amor llotbergs udvalRte Skri/ier [Escritos Escolhidos de L. H.1. edis:ao de K. L. Rahbek,
dela. Por fon, a paixáo dele torna-se quase urna inverdade, apenas ainda rnais vols. J-XXI, Copenhaga. 1804-1814; vol. X, 1807. pp. 513 e segs. Vd. The Book of
engenhosa devido a esta resistencia. Cada vez que !he reitera o seu amor, ele Cor11eli11s Nepos 011 the Great Generals of Foreign Natio11s, XVIII, ou Cornelius Ne-
pos, together with Lucius Annaeus Florus, tradui;:ao de John C. Rolfe (Loeb). Nova
lorque: Putnam, 1929. p. 547. Vd. tradus:ao ponugucsa de Jofio Fclix Pcreira: Cornelio
66 Hegel, Aesthetik, ITI. in Werke, vol. X3, p. 527; .!11bilii11ms, vol. XIV, p. 527: e Nepote, Vida dos Capiteles Ilustres. Lisboa: Irnprensa de Lucas Evangelista Torres.
Suhrkamp. vol. XV, p . .521; tradw,:iio portuguesa, p. 647.
1888. pp. 106-107.
202

as máos do morro. e aquilo que fora pre isagiado a Hérrnle\.<>l'. que havc- 11631
ria de ser assassinado nao por um vivo, mas por um morro - iambém se
lhe aplica, dado que a recordacáo do pai é o motivo da mortc dela; neutro
sentido. caí as máos do vivo, rendo em conta que o seu amor infeliz a é

ocasiáo para que a recordacáo a mate.

Silhuetas
Passatcrnpo Psicológico'

Proferido diante dos


L·uµMQCLVl'.'X.Q(J)µevm2

68 Hércules morrcu envenenado pelo sungue do centauro Nesso, anos depois de este
ter sido mono por urna tia~ setas envenenadas de Hércules. Sófocles menciona a pro-
tccia da morrc de l lércules e narra asna rnorte na rragédiu 11s Traqutnias, vv. 1159 e
segs .. 555 e 705: vd. A.I' Traquinias de Sófocles, introdueño. ver •fío do grcgo e notas
de Maria do Céu Zambuja Fialho, Coimbra: Instituto Nacional de lnvestigucáo Cic11-
tífica, 1984: p. 79 [vv. 1159 e segs. [: «HÉRACLLlS: 1 .•. 1 Fora-rnc outrora revelado por
mcu pai que cu nao viria a rnorrcr ai. müos de urn homern vivo, mas de alguém já
morto que habitasse o Hades. Esse alguém é,scm dúvida, o Centauro [ ... ]»: p. 55 1 vv,
555 e segs.]: <<DG.IANIRA: Conservo desde há muiro, guardada nu111 vaso de bronze, a
dádiva de um antigo monsrro. Era a inda jovcm, quando a recolhi do peito cabeludo de
Ncsso. no momento cm que expirava, assassinado»: p. 61 [vv. 705 e scgs.]: «DFJA.'l/J.
l{A: 1 ... 1 vejo-me autora de um Ieito horrendo. Pois por que razño, por 411e motivo.
havia o Centauro. ao morrer, de se mostrar indulgente para comlgo. que fui a causa da
sua mortc?' Nao o faria:» Outra fontc disponívcl para o autor. Paul Friedrich A. Nits-
ch, Neues mythologisches WiJrterlmch 1 Novo Dicionário Mitológico 1. vol s. 1-11, revi-
san de Friedrich Gorthilf Klopfer, Lcipzig. Sorau. 1821: vol. l. p. 842.
11641
11651

Alocucáo improvisada

ll~>geschworen mag die Liebe immer seyn;


Cornemoramos ncsta hora a lundacáo da nossa associacáo, regozijarno-
Ltebes-Za11ber wiegt in dieser Hoh!«
-nos urna vez mais porque esta alegre ocasiño rcpctiu-sc novamente, por-
Die berausclue, überrasc/Jte Seele
que acabou o cija mais longo. e a noitc corncca a triunfar. Esperarnos du-
111 vergessenhoitdes Schwures ein:1
rante este longuíssimo dia, ainda há um instante suspirávamos por viada
sua longura, mas o nosso desespero está agora transformado cm alegria. É
* * cerro que o triunfo é meramente insignificante, e que a preponderancia do
* a
dia irá sentir-se ao longo do tempo, mas nao escapa nossa atcncño que o
scu dominio se rompen. Por isso, nao protelarnos o nosso júbilo pelo triun-
Gestern liebt · iclt,
fo da noite até que se torne pcrccptível para todos, nao o protelarnos até
Heutc leid' ich ,
que a indolente vicia burguesa nos venha recordar de que odia dirninui.
Morgen sterb • ich
Nao, tal como uma jovem noiva espera impaciente a chegada da noitc,
Dennoch denk' ich
tarnbém assim aguardamos cheios de anseio o primeiro cair da noitc, o
Heut und Mwt:e11 prirneiro anuncio do scu futuro triunfo, e a alegria e a sorpresa seráo tanto
Geru cm Gestern.4 maiores quanto rnais porto ficámos de desesperar do modo como havería-
mos de su portar, se os d ias nao cncurtasscm.
Decorreu um ano, e a nossa associacño ainda subsiste - haveríamos nós
ele alegrar-nos por isso, caros rupJtagave1<Qú)µevo1., de alegrar-nos porque
a sua subsistencia troca da nossa doutrina sobre a queda de ludo, ou nao
haveríamos antes de sentir mágoa5 porque subsiste. e alegrar-nos por, cm
qualqucr dos casos, ter apenas rnais urn ano para existir; pois que se nao
1 O subtítulo inicialmente escolhido en «Forrf)~ i de
sobre a Arte Negra»; vd. Pap, 111 B 17;: J de ~5 de Ju;I~~-~~
1 K
e18~1~1st», ou seja, «Ensaio tiver desaparecido ncssc cspaco de tempo, nao foi deveras decisáo nossa
2 Vd. nota 1 no capítulo anterior. · serrnos nós a dissolvé-la? Nao gizámos planos ele longo alcance" aquando
3 Em alernño no original: «Pode sempre renegar-se 0 amor· ¡ Nesta . lila 3 ·. d da sua fundacáo; demasiado familiarizados com a miséria da vida e com a
~:~;·i~~;~~:'.1
I A alma ébria e surprcendida I No esquecimer:IO eta s~ajura.>: ,;~~;~ªna:
5 «Af serge» é traduzfvcl por «lamernar», «lastimar». e também «sentir rnágoa» ou
~ ~m -a~e~11íio n~ original: «Ontcm amei, I Hl~jc sufro, I Amanhñ morro! Prcfíro, porém I «andar em cuidados». Sendo «Sorg», «mágoa», a palavra-chave neste capftulo. preferi-
I OJe e amanhñ, 1 Pensar em ontcm.» Poema de G E Lessing ¡ · ¡ S .'
I , IC· ,- T · · · , « ,¡e( aus aem
1 patu s­ ram-sc as duas últimas opcócs.
e wn~> . mi_?ªº raduzida do Espanhol]; cdi9ao consultada pelo autor: GoufrieaEohraini 6 Vd. Horácio, Odes; livro l. 4, v. 15: «Spem nos vetat incohare longum»; «a breve
Lessing.1 sdmmüiche Schrifteu [Escritos Completos de C1· E 1 ] r ¡ 1 xx 1 ·
1825-28· vol XVJI 1 . ~ .• · '· • '0 s. - XII. Berlirn, Jurac,:iío da vida impede-nos de encetar duradouras esperances»: e livro 11, 16, v. 17:
,p.281.\d.GottholdEphra1ruLessino.WerkejObras] Munique:1
ear J• HanscrVeriag.vols.1-VIIL
' ·
1970-1979· vol l(C·/' ¡° F.! 1 ". . •
«Quid brevi jorfes iaculamur Mu/10'!>>, i. e .. «Porque intrépidos na nossa breve vida
mas, Fábulas, Comédias]), 1970, p. 125. . . ec te tte, 'a Je n. Lnstspie!e [Poe- tanto visamos?», in Horácio, Odes. traducáo de Pedro Braga Falcáo, Lisboa: Livros
Coiovia. 2008. respectivamente, pp. 56 e 162.
206 'l..07

perfídia da existencia, resolvemos ir em auxílio da lei universal? e aniqui- J loco d iantc do '>OJ)m do ... cu nariz 10. -
A noite triunfa, porérn, e o dia fica
lar-nos a nós proprios, se a nós ela nao se antecipar. Um ano passou e a mais curto, e a espcranca crcscc! Enrño, enchamos urna vez mais os copos,
nossa associacáo ainda conta com todos; ninguérn foi ainda substituído. caros cornpanheiros ele bebida; saúdo-tc com este cálice, ó máe eterna de
ninguém se fez substituir.já que cada um 11661 de nós demasiado orgu-
é rodas as coisas, ó noite silenciosa! Tudo provém de ti, tuclo a ti volta a re-
lhoso para tal. porque todos vemos a rnorte como a maior das felicidades. gressar. Apieda-te, entáo, do mundo outra vez. dcscerra-tc de novo para
1 la veríamos nós de ter nisso alegria e nao haveríamos antes de anclar em ludo reunir e guarda-nos a todos no abrigo do teu vcntre materno! Saúdo-tc,
cuidados, e exultar apenas na csperanca de que a confusáo da vida depressa ó noire escura, saúdo-te como vitoriosa, e esse o meu consolo, já que tu
é

nos vcnha separar. na esperanca de que a tcrnpestadc da vida deprcssa nos abrevias tudo no eterno esquecimento, odia e o tempo, e a vida e as fadigas
arraste! Na vcrdadc, éstes pcnsarncntos adcquam-se bem rnelhor nossa a da rccordacáo: 1
'\ 1 ('
associacáo, concordam óptimamente com a festividade destc instante, com
tocia a ambiéncia Pois nao é engcnhoso e significativo que o chao desta
pequena sala, de acordo com o costumc da nossa terra, csteja juncado de
verdura como se Iosse para um funeral, e nao nos conceden a propria natu- 11671
reza o scu asscntirnento, quando atentamos na brava tempcstade que ¿1 Desde o tempo em que no seu famoso tratado Laocoonte" Lessing regulou
a
nossa volta ruge, quando ficarnos de vigia poderosa voz do vento'! Sim, os diferendos das fronteiras entre a poesía e a arte. pode ser considerado co-
calerno-nos por um instante para escurar a música da rempcsradc, 0 seu 1110 um resultado reconhecido unanimemente por todos os estéticos que a
intrépido curso, o seu audaz desafio. e o obstinado rugido do mar e o sus- difcrcnca reside no facto de a arte12 se encontrar sob dererminacóes espaciáis
piro angustiado da floresta, e o desesperado quebrar das árvores e o cobar- e a poesía sob dctcrminacñes temporais, e no facto ele a arte representar o que
de silvo da crva. Bem podem os homcns reiterar que a voz da divindade nao está cm rcpouso e a poesía aquilo que se movc. Por isso, o que vier a ser
está no vento impetuoso, mas na brisa suaves: mas, de facto, os nossos objecto de represenracáo artística tcrn ele possuir urna transparencia tranquila
ouviclos nao estño feítos para captar as brisas suaves, mas antes para sorver para que o interior repouse num exterior correspondcntc. Quanto menos for
o ruíclo dos elementos. E porque nao irrornpe ainda com mais violencia, este o caso, rnais difícil se torna a tarcfa para o artista, até que se faca valer a
a
pondo fim vida e ao mundo, e a este pcqueno discurso, que sobre todo o diícrcnca que lhc cnsina que cssa tarcfa nao de modo algum a sua. Se to-
é

resto tem pelo menos a vantagern de em breve chegar ao firn. Sim, oxalá marmos o que aquí nao íoi adiantado, mas apenas csbocado, para a relacáo
esse turbilháo que consütuí o princípio mais interior do mundo", mesmo entre a mágoa e a alegria, é simples de inteligir que é muito rnais fácil repre-
que os ~ornens riele nao reparcrn, mas antes comam e bcbarn, se casem e se sentar artísticamente a alegria do que representar a mágoa. Posto isto, de
rnuJtipliquem numa despreocupada agitacáo, oxalá irrompessc e com funda modo nenhum se há-de negar que a mágoa é reprcscntávcl artísticamente,
indignacño sacudisse de si as monranhas e os estados, e as obras da cultura mas para falar corn clareza, chegado um ponto em que se toma cssencial
é

e as invencñcs sagazes dos hornens; oxalá irrornpesse com o dcrradeiro que a mágoa estabcleca urna contradicáo entre o interior e o exterior, e esta
bramido pavoroso que anuncia o crepúsculo de rudo com maior certeza do fa:t. com que a reprcsenla9ao da mágoa seja impossível para a arte. A contra-
que a trompeta do Juízo Final; oxalá se agitasse e fizessc rernoinhar esta di\(1io reside urna vez rnais na própria essencia da mágoa. É próprio da alegria
rocha nua sobre a qual nos erguernos, com a mesma ligcireza corn que um querer manifestar-se, a rnágoa qucr esconder-se e até por vezes levar ao en-

7.Na filosofia tlos cstóicos, o fogo está presente como lei universal que regula 0 princí- 10 Vd. Livro dos Salmos, 18: 15: «Bntiio foram vistas as profundezas das águas. e foram
p10 e o tim tlo mundo. descobcrtos os fundamentosdo inundo: pela tua repreensiio. ao soprar das tuas narinas.»
8 Vd. nota 33 110 capítulo «Diap.1·almata». l l Vd. G. E. Lessing. lAOKOON oder iiber die Grenzen der Malerei und Poesie [Lao-
9 Na filosofi~i pré-socnítiea, Dcmócrilo (e. 460-c. 370 a. C.), na csteira de Leucipo (c. coonle ou das Fronteiras da Pintura e da Poesía). Edi9iio consultada pelo autur: <<Laoko-
460-370 a. C.), u criador do atomismo. descreveu u cosmos, incluindo nele t:ambém a un», in Got/hold Ephraim Lessing s sammtliche Scllr(ften 1 Escritos Cornpletos de G. E.
alma, como um turbilhiío eo11slituído por número infinito de átomos cm movimento 110 L.I. vol. JI. pp. 121-397; vd. Gotthold Ephraim Lessing, \Verke IObrasl, M1111iquc: Carl
vazio. Por seu turno, Anaxágoras (500-428 a. C.) encontrou no conceito de nous a l[anser Verlag, vols. l-Vlll, 1970-1979; vol. VI (Kunst theoretische und kwwhistoris-
for9a e o princípio ordenador da matéria, constituída por um número infinito de elemen- l'he Schriflen [Escritos Teóricos sobre Arte e sobre História de Arte)), J 974. pp. 7-187.
tos, construindo Anaxágoras uma explica9iio evolutiva da matéria de acordo com a se- 12 Ao 1.ongo dcsta sec«ao, enlende-sc por arle a pintura e a escultura, tal como em La­
parn91io e a eombina91io desses elementos. o(·oome.
208 Ou Ou U111 1•··~·1111111111k \ rd.1 209

gano. A alegria comunicativa, social e franca, qucr exteriorizar-se: a mágoa


é Ora, iJO tentar rccolhcr-sc assirn para dentro. lago encontra finalmente
é fechada. silenciosa, solitaria, e procura recolhcr-sc. Ninguém negará a um cercado, um recóndito, onde, em sua opiniáo. pode ficar. e comcca
exactidáo deste facto, por pouco que tcnha feito da vida objecto seu de ob- agora o scu movimcnto unifonnc. Como o péndulo do relógio, oscila assim
servacáo. Há pessoas cuja compleicáo está de tal modo organizada que, para a frente e para tnis, sern conseguir encontrar repouso. Corneca sernpre
quando se emocionam, o sangue afluí i1 epiderrne, e o movimento interior do principio, reflecte outra vez, interroga as testcmunhas, coteja e analisa
toma-se assim visível do exterior; a compleicño de outras é de tal espéc:e que os diferentes depoimentos, coisa que já fez centenas de vczcs, mas que
o sanguc refluí, rccolhc-se interiormente na dircccño dos ventrículos e das nunca chega a dar por concluida. Com o dccorrer do tempo. o uniforme
partes internas do organismo. É mais ou menos assim que se passa com a comporta cm si algo ele ancstesiante. Tal como anestesiam o pingar unifor-
alegria e a mágoa, no que di/ rcspcito as modalidades de exprcssño. A com- me da goteira, o girar uniforme da roca de fiar, o sorn monótono que se
pleicño primciramente descrita é muito mais fácil de observar do que a se- propaga quando alguém anda para a frente e para Irás. mcdindo os passos
gunda. Na primeiru, ve-se a exprcssño. o rnovimcnro interior é visível do no andar por cima do nosso, também assim a mágoa reflexiva acaba por
exterior; na segunda compleicño presscnte-se o rnovirnento interior, A palidez encontrar alívio ncste movirncnto que se torna para cla urna ncccssidadc
exterior como se fosse a despedida do interior. e o pensamcnto e a fantasía
é como se fosse urna movimeruacílo ilusoria. Surge por tirn um ccrto cquilí-
corrcm atrás do que é fugidio e se esconde no oculto. Isto aplica-se sobretudo brio, o Impero para 11691 deixar a rnágoa irrompcr cessa, conquanto possa
ao género de mágoa que trararci com maior pormenor, a qual terá de chamar- ter-se exteriorizado urna única vez. o exterior está calmo e tranquilo. e no
-se mégoa rcflcxiva!'. No máximo, o interior contém aqui apenas um indício mais recóndito do scu pequcno rccanto, vive a mágoa corno um prisioneiro
que nos póc cm pista, por vczcs ncrn scqucr 11681 tanto. Esta mágoa nao se bcm guardado numa prisño subterránea, ano upós ano gastando a vida no
dcixa representar cm arte. pois o cquilfbrio entre o interior e o exterior está scu rnovimcnto uniforme. a andar para a frente e para irás no eu reduto.
anulado. e nao cabe assim cm dctcrminacñes cspaciais. Também num outro nunca se cansando de pcrcorrcr o caminho longo ou curto da mágoa.
sentido nño se deixa representar cm arte, pois nao rcm essa quietude interior, O que ocasiona a miígoa rcllcxiva pode parcialmente residir na condi9ao
antes está em movirncnto constante; aposar de este movirncnto nño a enrique- subjectiva do indivíduo. e parcialrncntc na mágoa objectiva ou na ocasiao
cer corn noves resultados. o próprio movimcnto todavía csscncial, Como
é da mágoa. Um indivíduo que pade9a de rcílcxao tran-.formará qualquer
um esquilo na gaiola. corre assirn 11 voila de si mesma, mas niio de urn modo mágoa cm mágoa rcllcctida, a sua e. trutura individual e a sua complci9ao
tao uniforme como faz esse animal, antes de urna maneira em que alterna fazem com que lhe scja impossívcl assimilar cm si a mágoa scm ir mais
continuamente a combinacño dos momentos interiorc r dn rnágoa. Aquilo que além. No entanto, é urna coisa doentia, que nao consegue ter particular in-
faz com que a rnágoa reflexiva nao possa tornar-se objecto de representacño teresse, pois desta forma qualquer casuaJidade pode 1:.ofrer urna metamor-
artística é ter falta de repouso, nao ficar de acordó consigo mesma, nao
é fose através da qual vem a existencia como miígoa rellcctida. O assunto é
rcpousar cm alguma cxprcssño única e determinada. 'Ial como o doente com outro quando é a mágoa objectiva, ou a ocasifío da mágoa. a gerar a refle-
dores se vira ora para um lado, ora para o outro. tarnbérn assim a mágoa re- xao no próprio indivíduo. fazcndo da mágoa urna mágoa reflectida. É este,
flcx iva se revira para encontrar o respectivo objecto e a respectiva expressáo. ~obretudo, o caso em que a mágoa objectiva nao é dada por conclufda. em
Quando a mágoa tem rcpouso, cntáo, o interior da mágoa qucr desprender-se que subsiste urna dúvida, seja qua! for aliás o modo como está constituícla.
progressivamente, ficundo visível no exterior, tornando-se assim objecto de Mostra-sc logo aqui no pensament.o uma grande multiplicidade, maior ern
representacáo artística. Quando a mágoa em si mesma contém descanso e tudo de acordo corn aquilo que um indivíduo viveu e cxpe1ienciou, ou se-
repouso, entáo. o movimento acciona-se de dentro para fora: a mágoa refle- gundo a inclina¡;ao sentida para dar uso a sua perspicácia em tais experien-
xiva rnovirnenta-se para dentro, como se fosse o sangue a refluir da periferia, cias. Nao é de modo algum intenr;ao minha percorrer cxaustivamcnte tocia
e dcixa apenas que a pressintam por via da fugiclía palidez. A magoa reflexi- 1.:sta multipliciclade, quero apenas assinalar um lado particular, tal como se
va nao conduz a ncnhuma mudanca csscncial no exterior; apressa-se a ir rcvelou a minha observa~ao. Quando a ocasiao de mágoa é uma impostura,
para dentro até no prirnciro instante da mágoa. e só um observador mais cntao, a própria mágoa objectiva é constitufda de molde a gerar no indiví-
cuidadoso presscntc o seu dcsaparccimcnto; mais tarde zclará cuidadosamen- duo a mágoa reflexiva. Que uma impostura seja realmemc urna impostura,
te para que o scu exterior soja tao pouco notório quanto for possívcl. é rnuitas ve¿es bastante difícil de apurar c. nao obstante, tudo depende dis-
"º: cnquanto for quc.;tiom1vel. a mágoa n5o cncontra descanso. antes tem
13 Na pnmeira ediciío «reflekterende»; i. e .. «reflcxionantc». de cont rnuar u dca111h1rlar para a frente e para trá!> na rcllcxao. Quando além
210 211

disso esta impostura nao tcm que ver com urna coisa cxtc: 101. llHI'> corn n apn;scrna~ocs ncssa dircccuo. e a cntrcgá-lax para tratarncnto poético ou
toda a vida interior de um individue, como ümago mais Intimo da sua vida, psicológico.
entño, torna-se cada vez maior a probabilidade de persistencia da mágoa É esta mágoa reflexiva que me proponho por cm relevo. tornando-a pe~-
reflexiva. Mas o que poderá decerto ser designado com maior verdade co- ccptívcl em algumas imagens dentro do que possível. Chamo-lhes «SI~
é

mo urna vida de mulher do que o seu amor!"? Por isso, quando a mágoa de lhuetas». em parte para através da designacáo lembrar desde logo que fui
urn amor infeliz tem por fundamento urna impostura, entáo ternos urna buscá-las ao lado obscuro da vida e, em parte, porque, tal como aconte_:e
mágoa incondicionalmente reflcctida, qucr ela se conserve toda a vida. qucr com as silhuctas, nao sao visíveis de forma imediata. Se eu segurar na mao
o individuo a venca. É cerro que o amor infeliz. para urna mulher, constituí urna silhucta. nao retiro dela qualqucr imprcssáo, nao consigo obter com
em si e para si a rnágoa rnais profunda, mas daí 11701 nao redunda que todo cla nen huma reprcscntacáo propriamcntc dita, so quando a seguro contra a
o amor infeliz engendre urna mágoa reflectida. Quando assim o amado paredc sem observar agora a ima~em imcdiata. mas sirn o quc.!.e revela na
morre , ou eta talvcz simplcsmerue nao veja o scu amor correspondido, ou pnredc, só entáo consigo ve-la. E assim que acontece com a imagcrn que
quando as circunstáncias da vida fazcm da concrcrizacáo do seu dese jo uma vou mostrar, urna imagern interior. que só 11711 se torna obs~rvável des~e
coisa impossívcl , entño, há aqui deceno ocasiño para ha ver mágoa, mas nao que 0 meu olhar penetre profundamente o exterior. O exterior latv:z n~o
pura urna mágoa reflcctida, excepto se a propria pessoa cm qucstáo estivos- tcnha em si nada de notorio, mas só na medida em que o perscruto, so entao
se anteriormente docnte, o que a coloca assirn forado nosso intercsse. Ao descubro a imagem interior. aqueta que quero mostrar, uma image~11 in.te-
invés, se nao cstivcr docnte, cntáo. a sua mágoa toma-se urna mágoa irne- rior demasiado ténue para se tornar visível exteriormente, porque e tec1da
diata e, nessa qualidade, poderá pois vira ser objecto de rcpresentacáo ar- comas mais suaves disposirroes da alma. Se cu olhar urna folha de p~pcl,
tística. ao passo que, para a arte. surge inversamente a impossibilidade de 1alve1. esta nao possua qualquer particularidade após uma ob. e~va9ao 1me-
exprimir e de representar a mágoa reflexiva ou o respectivo fulcro. A má- diata; só quando a seguro contra a luz do dia e a olho prolundam~ntc,
gon imcdiata édcsignadamcnte a reproducño e a cxprcssño da impressáo da descubro, entao, finas imagens interiores, as quais "ªºcomo que demasiado
mágoa. intciramcnte congruentes, a scmelhanca da irnagcrn que Verónica rs anímicas para se verem de uma mancira imediata. Fixai pois o vo~so.olhar,
conservou no seu pano de linho, e a escrita sagrada da mágoa fica estam- caros tvµna.QavexQwµ.evm, nesta imagem interio~. nao vo~ de1xc~s per-
pada no seu exterior. beta. clara e legível para todos. turbar pelo exterior, ou antes, nüo scjais vós a cná-lo, po1s con11r1u~ a
A mágoa reflexiva nao pode. por conseguinte, tornar-se objecto de reprc- afastá-lo para 0 lado, de modo a poder observar me.lhor para den~ro ~lo in-
scntacáo artística; em parte, porque designadarnentc nunca está presente, terior. Porém. nao necessito certamente de encorajar esta assoc1a~ao. da
antes se encontra continuamente ern devir e, ern parte, porque o exterior, o qual tenho a honra de ser membro, a faze-lo; pob sene.lo cmbora .1ovens,
visívcl. é indiferente ou vale a mesma coisa. Portante, se a arte nño quiscr tcmos idade suficiente para nao nos deixarmos levar ao engano pelo exte-
cingir-se a
ingcnuidade, da qual se cncontra cxemplos de e. critos antigos, rior, ou para licarmos parados diante dele. Entao, l~averia de ser u~a es!~-
nos quais apresentuda urna figura que quase pode representar soja quern
é ranrra va, aqueta com que me Iisonjeio, se eu acred1tasse que vos d1gnar.1e1s
for, enquanto, ao invés, se descobre no seu peito urna placa, um coracáo ou concc<ler a vossa aten<;Üo a esta imagcm, ou que os meus csfor9os havenam
coisa parecida, onde pode lcr-sc ludo. em especial quando a figura torna de vos ser alhcios e indiferentes. e nao cm hannonia com os i~te_resscs .eta
urna posicáo que nos guia a atcncáo para isso, e até aponta para lá, um nossa associa\:ao, urna associa9ao que conhece apenas urna pa1xao, dcs1g-
efeito que tarnbém podía ser bem conseguido escrevendo por cima «é favor naclamente, a simpatia pelo segredo da mágoa. Também nós formamos de
observar»: se nao quiser cingir-: e a ingenuidade, ve-se abrigada a renunciar facto uma ordem, também nós de facto nos ausentamos de quando em vez
como cavaleiros errantes pelo mundo fora, cada um segui~do o .seu :~j-
14 Neste passo, «Kjterlighed»,Ao longo desic capítulo o uso de «Kjterlighed»aplica-se nho nao ¡)ara combatermos monstros, ou para ir em auxílJo da 111ocencia,
ao amor das mulhcres aquí ex postas como mulhcrcs enganadas pelos respectivos scdu- '
ou para sermos testados cm aventuras amorosas 16 . Na d a d'1sto no: o~upa.
rores. Dado que as ocorréncias de «amor» cnquanto «Kjarlighed» ultrapassam larga- nem mesmo a última coisa. pois a seta no olhar de urna rnulher nao !ere o
mente as de «amor» enquanto «Elskov»; doravantc seráo assinaladas 1;:111 nota upenas as
nosso peito empedernido. e o sorriso jovial das al~gres rapari.gas nao no.
ocorréncias de «Elskov»,
15 De acorde com a tradicño, uma mulhcr de nome Verónica cnxugou o sangue e o move, mas o aceno secreto da mágoa decerto que s1m. Que seJam outros a
suor de Cristo no caminho do calvário com uma toalha, na qual ficou gravado o rosto
de Jesus. 16 No original. «Blskn11s-Eve11tw».
212 !':yir ~·ti 1, lt't k~guunJ 011 Ou, lJ111 111.tj'1111•1il(1 de Vitla 213

orgulharem-se de nao havcr rapariga em parte alguma capaz. de resistir no contra urna volupia ao verter a sua rnágoa, semelhante a volúpia que delei-
poder do seu amor17, nao os invejamos, flcaríamos orgulhosos se nenhuma ta no esvaimcnto cm sanguc. O presente está esquccido, o exterior. rasgado,
mágoa secreta cscapasse it nossa arencáo, se nenhuma mágoa escondida o passado está ressuscitado, o sopro da mágoa, aplacado. Quem sente má-
fossc tao esquiva. ou tao orgulhosa, que nao nos fossc possível penetrar goa encentra alivio, e o simpatético cavaleiro da mágoa alegra-se por ter
triunfalmente no seu mais íntimo refugio: Que Juta havcrá mais perigosa, encontrado o que buscava, pois o que buscamos nao é de todo o presente,
que comporte rnais arte e ofereca maior prazcr, algo que nao queríamos
ó mas o passado, nao a alegria, pois ela está sempre presente, mas a magoa.
é

investigar, a nossa escolha está feíta, só amamos a mágoa, só buscamos a já que a sua csséncia é passar e. no instante do tempo presente, a vemos
magoa. e onde quer que descubramos a sua pista, segui-la-emos, intrépidos. 11731 apenas como quem ve um homem, quando os olhos apenas o captam
inabaláveis, até que cla se manifesté. Equipamo-nos para este combate, no preciso momento cm que vira para outru rua e desaparece.
exercitamo-nos ncsta Juta diariamente. E na verdade, a mágoa csgucira-sc Nao obstante, a mágoa esconde-se por vez.es ainda melhor, e o exterior
assim chcia de secretismo rodeando o mundo, e só qucm 11721 por cla tem nada deixa pressentfr, ncm mesmo o que ínfimo for. Durante bastante tempo
simpatia acaba por conseguir pressenti-la. Caminha-sc pela rua, cada urna pode passar despercebido a nossa aten9fío, mas se casualmente um trejeito,
das casas parecida com a seg u inre , e só o observador ex perimentado pres-
é urna palavra, um suspiro, um tom na voz, um sinal. no olhar, um trcmor nos
scntc que esta casa por volta da meia-noitc parece completamente diferen- láhios, lllll falso agarrar 11() aperto de maos, pe1fidamentc atraii;oarcm o que
te. ronda por ali um infeliz que nao encentra rcpouso , sobe as escadas. os fora escondido com o máximo cuidado, despe1ta entao a paixao, come9a
seus passos ecoam na quictudc da noitc. Passamos uns pelos outros na rua, entíío a lula. Importa agora usar de vigilancia, de persevernn((a e de argúcia;
cada um é parecido com o outro, e este outro com quase toda a gente. e sé pois quem será 1.odavia tao engenhoso como a rnágoa solitária. embora um
o observador expcricntc prcsscnic que dentro daquela cabcca habita um solitário prisionciro perpétuo tenha lambém bastante tempo para conccber
locatário que nada tcm que ver com mundo. mas que apenas consomc a muita coisa, e qucm será tao !esto a esconder-se como a mágoa solit.íiria;
vida solitaria num tranquilo ofício doméstico. É bcm ceno que o exterior é pois nenhuma jQvcm rapariga consegue esconder com maior angústia e
entáo objecto da nossa obscrvacño, mas nao do nosso intercssc: é assim
é pressa o scio que havia posto a descoberto do que a mágoa escondida ao ser
que o pescador sesenta impcrturbávcl, dirigindo o olhar para o rio, nao se surprecndi.da. F,x igc-se en tao urna inlrcpidel'. inabalável, pois luta-sc contra
interessando, porém, pelo rio, mas sim pelos movimentos no fundo. Por um Prot.eu 18, que tcm de dar-se por vencido quando simplesmente se perse-
isso. o exterior possuí deceno significacño para nós, porérn, nao como ex- vera e, por mais que ~1 scmclhan9a desse tritao asswna qualquer figura para
prcssáo do interior. mas antes como urna informacño telegráfica de que se cscapulir. contorcendo-sc na nossa mao como urna cobra, apavorando-
algo está escondido no interior profundo. Quando se observa um rosto lon- -nos com o rugido de um lcíio, transformando-se numa árvore cujas folhas
ga e atentamente, encontramos por vezes urna especie de outro rosto dentro sussurram, ou em água revolla, ou cm fogo crepitante, porém, por últin10,
daquele que olhamos. Trata-se cm gcral de um sinal inconfundível de que tem aünal de augurar e. por último. a mágoa tem de manifestar-se. Vede,
a alma esconde um emigrante que se rctirou do exterior para vigiar um te- estas aventuras sao dese jo nosso, passatcmpo nosso, e lan9armo-nos nclas é
souro oculto. e o caminho para o movimento da observacáo sugerido é a nossa rcgra de cavalaria; ora, com tal firn, erguemo-nos a meio da noile
pelo facto de esse rosto parecer estar incluso no outro, o qual dá a entender
que se tem de fazcr cslorco para o penetrar, caso se pretenda dcscobrir al-
guma coisa. O rosto, que aliás o espelho da alma, assumc aquí urna equi-
é
l 8 Na mitología grega. Proteu era tilho dos tita5 Tétis e Oceano, ou aim.la de Posíclon.
Tinha o dom da prerno11ic;:ao, mas resguarda.va-se, fugi11do de quem o procurassc, ou
vocidadc que nao se deixa representar em arle, e yuc TJa gcneralidade metamorfoseava-sc, exig:imlo entao coragem por pmtc dos que lhe pedissem augúrios.
também se conserva apenas durante um fugaz momento. É preciso um olho Vd. Odissda, can lo t V. vv. 450-459: «Ao meio-dia ernergiu o vclho do mar, que ali
muito proprio para o ver. urn olhar muito proprio para perseguir este indício e11controu ! as gordas focas: verificou todas e contou-lhcs o número.! Contou-nos lam-
indefectivel de urna mágoa secreta. Essc olhar deseja ardentemente, e con- bém a nós como focas, sem suspcitar i que havia algum dolo, em seguida, dcii.ou-se. i
tudo, é tifo solícito, angustiantc e imperioso, e contudo, tao compadecido, Atirárno-110~ entiío a ele com urn grito e segurámo-lo i com as miíos; mas o Velho nao
persistente e insidioso, e cornudo, tao sincero e bern-intencionado, que se csqueceu das artimanhas: i transformou-se primeiro num lciiobarbudo; i depois 11urna
serpente. m1m leopardoe num enorme javali; i dcpois cm água molhada e numa árvorc
embala o indivíduo numa especie de agradável languidez, na qual ele en- de altas folhas. / ;-.rós segurámo-lo com persisténcia, de espírit.o paciente>>, in Homero.
Odisseia, tradu9fio de Frederico Lourenc;:o, Lisboa: Livros Cotovia. 2003. pp. 78-79.
17 No original, <<Elskovs-Magt». Doravante. esta tradu9ao é referida como Odisseia.
214 Ou Ou, U111 h,1¡111111110 tk Vitla 215

como salteadores 19, por isso, ludo ousarnos, pois que nenhuma paixrro bra- é oppe/lotivo)J., e pelo mcu lado nada haverá que impeca urn ou outro de vós
vía como a paixáo da simpatía. E nao necessitarnos de temer que nos Ialtern de vira sucumbir u rcntacáo de dar um outro nome a uma das imagcns, um
aventuras, mas sim de deparar com resistencia, demasiado dura e impenetrá- nome rnais querido, ou o nome que porventura lhes pareca mais obvio.
vel, pois tal como acontece no que contamos naturalistas, os quais, ao fazcr
saltar blocos de granito que desafiararn os séculos, encontrararn dentro do
seu interior um animal vivo que havia salvo a sua vida sem ser descoberto, 1. Marie Beaumarchais23
também certarnente seria possível havcr homens cujo exterior fosse urna
montanha firme como urna rocha, guardando urna vida de mágoa eterna- Aprendemos a conhecer esta rapariga em Clavigo de Goethe24, obra a
mente escondida. E contudo, isto nao irá moderar a nossa paixño ou esfriar qua! ficarnos ligados apenas para a seguir um pouco mais adiantc no tempo,
o nosso zclo, pelo contrario. irá inflamá-Io; pois que a nossa paixáo nao é ele quando perdeu o interesse dramático, quando progressivamente abranda-
todo curiosidadc que se satisfaca corn o exterior ou corn o superficial; é rarn as consequéncias. Continuemos a segui-la, já que n6s, cavaleiros da
antes urna angustia simpatética que sonda os rins20 e os pcnsamcnros ocultos; simpatia, ternos tanto o dom inato como a capacidade adquirida de, em
e por rneio de magia e de esconjuro convoca o oculto, mesmo aquelc que a procissño, acompanhar a passo a mágoa. A sua história é breve; Clavigo
rnortc arrancou do nosso olhar. Conta-se que antes da batalha Saul, disfar- prometcu dcsposá-la, Clavigo abandonou-a. Esta inforrnacáo suficiente é

cado. aproximou-se de urna vidente exigindo que lhe mostrasse a imagern para qucm costurna observar os fenómenos da vicia como se observa rari-
de Sarnuel. Nao era com toda a certeza mera curiosidade, aquilo que 11741 o dades nurn gabinete de artes: quanto mais diminuto tanto rnelhor, tanto
impelia, nao era o dcsejo de ver a imagem visívcl de Samuel-', quería antes mais se acaba por ver. Da mesma maneira. pode tarnbém contar-se de forma
experimentar o seu pcnsamcnto, e espcrou com certeza cm desassossego até muito sucinta que Tántalo tem sede e que Sísifo faz rolar urna pcdra por
ouvir a voz condenatoria do severo juiz. Tambérn assirn nao se tratará ape- u ma montanha aci ma25. Em caso de grande pressa, acabaría por redundar
nas de mera curiosidadc a mover um ou outro de entre vós, caros
LVµrt<XQClVeXQU>f.lliVOL, a observar as irnagens que vos aprcsentarci. Ernbora
22 Em latim no original: «nemes comuus».
cu designadarnente as designe através de determinados nomes poéticos, nao 23 Maric Bcaumarchais, pcrsonagcm principal de Clavigo tic Gocthc. Vd. nota seguintc.
deve por via disso ficar sugerido que se trata de meras figuras poéticas que 24 Clavigo, l::i11 Truuerspiel, tragédia de Goethe em cinco actos de 1774. buscada em
surgcm diante de vós; os nemes tórn antes de ser tomados como nomina acoruccimcnros rcais, Mnric Bcaurnarchais era irrnñ de Pierre Augusto Caron de Bcau-
marcháis ( 1732-1799), e toi duas vezes abandonada por Clavijo y fajardo ( 1726-1806).
Em Gocthc, o tratarncnto 1 ircrário apresen la desvíos acentuados, visto que, na vida real,
19 Como em Horácio, Fpütolarwn [Epístolas], livro 1, 2, v. 32: «Ut i11g11/ent lw111i11es, nem Marie morre de amor, nem o seu irmño mata Clavigo. Edi9ao consultada pelo au-
.n1rgu111 de 110cte latrmies»; edi9ao consultada pelo autor: Q. Horatii F!acti opera tor: Clavigo, in J. W. Goethc. Goethe's Werke, vollsuindig« Ausgabe letzter Hand
!Obras de Q. Horácio l'Jaco¡, Lcipzig, 1828: vol. 11, p. 187. Na traduyao de António [Obras de O .. Edi9ao Completa na Última Revisan], vols. f-LX. Estugarda, Tübingen,
Lui:1. de Seabra: «Alta noitc o ladrao ímprobo se crgue /A fim de apunhalar um dcsgra- 1828-1842; vol. X. pp. 49-124. Vd. tambérn Clavigo, in J. W. Gocrhc, Goethes Werke.
c,:ado». in Satyras e epistolas por Q11i1110 Horacio Ffacco. traduzidas e annotadas por Hamburger Ausgabe lObras de G., Edi91ío de Hamburgo]. vols. I-XIV. Hamburgo:
António Luiz de Scabra, Porto: Casa de Cruz Coutiuho, 1846, p. 10. Christian Wcgncr, 1948-1960: vol. IV (Dm111ntische Dicht1111gen. Zweiter Band IPoc-
20 Vd. Jercmias, 20: 11: «Mas, ó Senhor dos Exércitos. Justo Juir., que provas os rins e mai; Dramáticos. Segundo Yolume]), 1953, pp. 260-306. Doravante a obra é referida
o conu,:iío. veja cu a tua vingan9a sobre eles: pois a ti descobri a minha causa»; e tam- como Clavigo, seguido de Werke e l/amburger Ausgabe para a.~ duas cdic,:oes, respccli-
bém Apocalipse, 2:23: «E ferirei de morte os scus filhos. e todas as igrejas saberao que vamente.
eu sou aquele que sonda os rins e os corn90es; e darei a cada um de vós segundo as 25 A forma sucinta cxcmplificada nao tem ohviamente em conla, mais do que a exten-
vossas obras.» s1ío dos respectivos passos na Odisseia, a dimensao mítica dos episódios; vd. Canto XI,
21 Vd. o episódio cm que Saul consulta a pitonisa de Endor. narrado no Primeiro Livro vv. 582-600: <<Vi TiintaJo a sofrcr grandes l.onncntos, I em pé num lago: a água chegava-
de Samuel, 28:4-18. em especial, 11-14: <<A mulher. en tao, Jhe dissc: A qucm te farei ·lhe ao queixo. / Estava cheio de sede, mas nao tinha maneira de beber:/ cada vez que
subir? E disse ele: Faze-me subir a Samuel. í Vemlo. pois. a mulher a Samuel, gritou cm o anciao se haixava para hcbcr, /a água dcsaparccia, sugada, e cm volta dos seus pés !
afta voz, e a mulher falou a Saul. dizendo: Por que me tens enganado? Pois tu mesmo aparecía terra negra. pois um deus tudo secava. / Havia árvorcs altas e frondosas que
és Saul. /E o rei lhc disse: Nao temas. porém, que é o que ves? Ent1ío a mulber disse a clcixavam pender seus frutos,/ peras, romas e macieiras de frutos resplandecentes; /
Saul: Vejo deuses que sobcm da terra. / E ele lhc disse: Como é a sua figura? E disse doces figos e azeitonas luxuriantes. I Mas quando o anci1ío estendia as maos para os
eta: Vem subindo urn hornem anciao, e está envolto numa capa. Entendendo Saul que frutos, I arrebatava-os o ven[() para as nuvens sombrías. / Vi Sísifo a sofrer grandes
era Samuel. inclinou-se como rosto em terra, e se prostrou.» tormentos,/ tenninclo lcvar11nr com ns maos uma pcdra monstruosa.! Fsfon,:ando-sc por
216 Ot1 Ou, IJ111l111¡•111111111 <il' V1dt1 21 ·1

em demora alongarmo-nos no assunto. dado que nño se rica a saber mais curra. Em courparacuo como interior. o exterior tornou-sc insignificante, e
do que aquilo que já se sabe, e que é o todo. O que trará urna exigencia de postulado na indifcrcuca. Na mágoa reflexiva. o fulcro reside no facto de a
rnaior atencáo tcrá de ser <le urna outra espécie. Reunidos a volta da mesa mágoa procurar continuamente o seu objecto, constituindo esta busca o
de chá cm íntimo convívio, o samovar aproxima-se do firn, a dona da casa dcsassosscgo da mágoa e a sua vida. Mas esta busca urna flutuacáo cons-
é

pcde ao enigmático estranho que alivie o coracño, manda vir água acucara- tanto e, se o exterior fosse em cada momento urna perfcira expressáo do
da e compota para essa finalidade, e corneca ele agora: «é urna historia interior, entáo, para representar a mágoa reflexiva, tcria ele dispor-se de
multo comprida». É assim que se passa nos romances. e também aí se trata urna completa sucessáo de imagens; mas ncnhuma irnagcm singular expri-
de urna coisa completamente diferente: urna historia muito comprida 11751 miria a mágoa, e ncnhuma imagcrn singular obteria propriarnente valor
e um anunciozito tao breve. Se, para Marie Beaumarchais, se trata de urna artísrico. pois nao seria bcla. mas vcrdadeira. Estas imagens teriam de ser
historia breve, é urna outra questáo; por muis que se saiba que nao é com- observadas tal como se observa o ponteiro dos segundos num relógio; nao
prida, pois urna historia comprida tem todavia urna extensáo rncnsurávcl, se ve o mecanismo, mas o movimento interior é continuamente exterioriza-
por vezcs urna história breve tern, ao invés, urna qualidadc enigmática, a de do pelo facto de o exterior 11761 continuamente se modificar. Mas esta
ser mais longa do que a mais comprida das historias, aposar da sua brevi- mutabilidadc nao pode ser representada em arte e, no entanto, é este o ful-
dade. cro de toda a questáo. Quando o amor infeliz encontra assim fundamento
No acirna cxposto, já comentei como a mágoa reflexiva nao fica visível na impostura. a dore o sofrirnento sao tais, que a mágoa nao capaz, de é

no exterior, ou seja, encontra nele a sua cxprcssáo bela e repousante. O encontrar o seu objecto. Confirmada a impostura, e rendo o visado inteligi-
desassossego interior nao permite esta transparencia, o exterior prcfere ser do que se trata de urna impostura, cntáo, ceno que a mágoa nao termina,
é

consumido desse modo e, fossc ele Ca$O de o interior haver de declarar-se trarar-se-á porérn ncssc caso ele urna mágoa imcdiata, e nao de urna rnágoa
no exterior, seria prcfcrcncialrnentc por meio de uma certa morbidez, a qual rctlectida. Torna-se fácil ver a dificuldade dialéctica, pois de que coisa
nunca pode tornar-se objecto de representacáo artística, visto nao possuir o sentirá ola mágoa? Se ele fosse um impostor, entño, o facto de ele a ter
interesse do belo. Goethe sugcriu isto corn alguns indicios particulares-", abandonado teria devoras sido benéfico, e quanto mais cedo tanto melhor;
Ora mesmo que se concordassc com a justeza desra observacño. cntño, ela haveria de preferir encontrar nisso alegria e havcria de sentir rnágoa
poder-se-ia ficar tentado a tomá-la por algo de casual e só quando nos con- pelo facto de o ter amado; e cornudo, ele ter sido um impostor urna mágoa
é

vencéssernos, através de urna avaliacáo em tennos puramente estéticos e profunda. Mas isto, se bcm que seja urna impostura, o desassossego no
é

poéticos, de que aquilo que a observacáo dá a conheccr icm verdade esté- perpetuum mobi!e27 da mágoa. Procluzir urna certeza para o facto exterior
tica, só cntáo se atingiria a consciencia mais profunda. Ora se cu imaginas- de urna impostura ser urna impostura já bastante difícil e, contudo, dcssa
é

se urna mágoa rcflectida e perguntassc se nao se dcixaria representar em maneira nem se dá o assunto de modo algum por encerrado, ncm o movi-
arte, cntáo, ficaria dernonstrado desde logo que o exterior completamente
é
mento por parado. Para o amor, uma ímpostura é designadamenle um para-
casual ern relacño a mágoa; mas se isto for verdadeiro, entño, renuncia-se doxo absoluto, encerrando-se no parndoxo a necessidade de urna mágoa
ao belo artístico. Se a mágoa é grande ou pequena, significativa ou insigni- retlectida. Os diferentes factores do amor poderiam ser articulados no indi-
ficante, bela ou menos bcla, ludo isto é indiferente; avaliar se seria mais vícluo singular de modos muilíssimo diferentes e, sendo assim, o amor de
acertado deixar a cabcca muis inclinada para um lado do que para o outro , um nao poderia ser o mesmo que o amor de outro; pode prevalecer mais o
ou antes para o chao, deixar que o olhar se fixasse, melancólico, ou se era- egoísta. ou o simpatético; mas seja lá como for o amor, tanto nos seus mo-
vasse no chao, nostálgico; coisas destas sao completamente indiferentes, mentos singulares como na sua totalidade, uma impostura é um paradoxo
nao há urna que exprima a mágoa reflexiva mais adcquadarneute do que a que o amor nao consegue pensar, e no qual acabará, contudo, por pensar.
Quer fosse o amor egoísta a estar absolutamente presente, ou o simpatético,
o paradoxo ficava assim elimfaado, isto é, por forc;:a do absoluto o indiví-
empurrar com as rnaos e com os pés, ! conseguia levá-la até ao rnme do monte: mas
quando i ia a chcgar ao ponto mais alto. o pesu fazia-a rcgrcdir, /e rola va para a planí-
cie a pedra sem vergonha. / Ele csfor~ava-se de novo para a empurrar: dos se11s mem- 27 Em latim no original: «moto contínuo». O termo aplica-se a hipotéticas máquinas de
hros / escotT.ia o suor: e poeira da sua cabe\(a se elevava>>, in Odisseia, pp. 196-197. movimento que usam a energía procluzicla por elas próprias. Diz-se igualmcnlc de u111a
26 C/avigu. Acto 1, cena 2, in Werke, vol. X. pp. 59-60; Hwnburger Ausgabe, vol. IV. pci;;a musical que se caracteriza l)Or um !luxo contínuo de notas fixa~. habitualmente
pp. 263-267. cadcnciadas com tempo rápido.
218 Ou 011 l 111 h.11•1111 11111 d1 \ 111.1 .? l lJ

duo está para além da rcílcxño , nao pcnsa ccrtamcnrc 110 paradoxo no si urn ou out ro pcqucno ligamento intciro ou incólume, o qual passa a ser
sentido cm que é eliminado por meio de urn como-da-rcllexao, antes é ocasiño constante de dor instalada. A possibilidade dcstrufda rnostra-se
salvo precisamente por via de nao pensar nelc, nao se preocupa com as transfigurada numa possibilidade mais elevada, ao passo que a tentacño de
trabalhosas explicacóes ou confus6es da reflexáo, repousa em si mesmo. criar por magia urna nova possibilidadc dessc tipo nao é tao grande, quando
Por causa do seu orgulho, o amor egoístamente orgulhoso considera que a se trata de uma rcalidadc que se rompe, porque a rcalidade eleva-se mais
impostura é irnpossível, nao se preocupa em chegar a saber o que é possível alto do que a possibilidadc.
dizer a favor ou contra, tal como o visado pode defender-se ou dcsculpar- Ora Clavigo abandonou-a. anulou pcrfidarnente a relacáo. l labituada a
-sc. tcrn absoluta certeza porque é demasiado orgulhoso para acreditar que repousar nele, quando ele a alasta ele si, nao tem forcas para se sustcr e caí
alguém haveria de ter a ousadia de Icvá-lo ao cngano. O amor simpatético desfalecida nos bracos dos que a acornpanham. Parece ter acontecido assim
possui a fé capa/ de mover montanhas-". para ele qualquer defesa nada é com Maric. Também aliás imaginável urn outro corncco, pode imaginar-
é

em comparacíío corn a inabalável conviccáo que possui de que nao se rra- -se que logo no prirnciro instante eta teve íorca 11781 suficiente para trans-
tava de impostura ncnhuma, qualquer acusacáo nada prova contra o intcr- formar a mágoa cm mágoa rcfleciida , e que Ioi cla, ou para evitar a humi-
cessor que explica nao se tratar de urna impostura, explicando-o nao de um lha9ao ele ouvir os curros dizcr que cla tinha sido cnganadu. ou porque o
ou de outro modo, mas 11771 cm absoluto. Mas na vida, ve-se um amor e rirnava tanto que lhl: causaría mal ouvi-lo ser insultado vc1.cs scm conla
dcstes raramente, ou ralvcz nunca. Ern gcral, o amor conrérn cm si ambos por ser impostor. a quebrar prontamente qualquer liga9ao comos omros, de
os momentos, e estos colocam-no cm rcl<u;ao com o paradoxo. Nos dois modo a consumir a mágoa dentro de si me. ma e a con~umir-se a si mesma
casos descritos, o paradoxo tambérn se d;í cortamente no amor. mas nao lhe na mágoa. Sigamos Gocthc. Os que a rodciarn niio dcixam de compadecer-
diz rcspcito: no último ca o, o paradoxo dá-sc no amor. O paradoxo é im- -se. scntcm com cla a sua dor. e levados pelo scntimento dizem: vai ser a
pcn ·Ctvcl c. cornudo. o amor pensará ncle c. de acorde com os diferentes mortc dela. Falando agora de urna perspectiva estética, isto está pois per-
factores momentaneamente presentes, aproxima-se muitas vezes ele um fcitamcnte cerio. U m amor infeliz pode ser de um tal carácl.cr que o -;u icícl io
modo coruraditório ele nclc pensar. mas nüo conscguc íazé-lo. Este rumo do terá de ser considerndo certo do ponto de vista estético, 111as nao tcrá cntao
pcn ... amento infinito e ·ó termina quando o indivíduo rompe com ele ar-
é de ter urna impostura por fundamento. Se ro~sc este o caso, entao, o '>uicí-
bitrariamente, ao fazer aplicar urna outra coba, urna deterrninacño da von- dio pcrderia todo o ~ublime e conteria uma conccs. aoque o orgulho terá de
tade, mas dessa rnaneira o inclivfduo singular fica sujeito a determinacñcs proibir que scja concedida. Se ela pelo contrário acabar por morrcr, cntao,
éticas. e nao nos diz respeito do ponto de vista estético. Airavés de urna será idcntico a ter sido ele a matá-la. fo.ta expressao está em perfcita har-
decisño, alcanca aquilo que nao conseguc atingir scguindo o caminho da monia como forte movimcnto interior dentro de !>i me-;ma. cela cncontra
reflexño: fim, repouso. alívio nis<,o. Ma-; a vida nem scmpre seguc escrupulo!.amente as catcgoriac;
lsto é válido para qualqucr amor infcli« cujo fundamento scja urna im- estéticas, nem sempre obedect: a
normalividade estética, e ela nao morrc.
postura; aquilo que cm Mario Beaurnarchais terá de Iuzer surgir a mágoa Perantt: i-.to. os que a rodeiam ficam em apuros. Senlem que nao é praticá-
reflexiva ainda mais é o facto de ser um noivado que se rompeu. Um noi- vel continuar a repetir garantidamcnte qul: Maric morrcrá, quando cla per-
vado é urna possibilidade, nflo urna rcalidade. mas exactamente por ser manece cm vida; além disso. nao pensam reunir condic;0cs para se pronun-
apenas urna possibilidade pode parecer que nao produz um efeito tao forre ciarem com a mesma cncrgia patética tal como no início, e havia todavia
quando se rompe, que se torna bastante mais fácil para o indivíduo suportar sido esta a condi9ao para que houvcsse de haver alguma consoln\fto para
este golpe. Por vezes. é certamente possfvel que scja este o caso: mas. por cla. Mudam pois de método. Ele era um velhaco. di7cm-lhe. um impostor,
outro lado, a reflexáo fica tentada a avancar rnuito mais, dacia a circunstñn- um homem execrável. nao valia a pena morrer por ele; csquecc-o. nao pcn-
cia de ser semente urna possibilidade que é dcstrufda, Quando a rcalidadc ses mais nisso, foi me~mo tau-<>omentc um noivado, apaga este aconteci-
se rompe, en tao, o rompimcnto é cm gcral muito mais drástico. cada nervo mento da tua recorda9ao. e vol tas novamcnte a ser jovem. capa1 de ter es-
é cortado e o rompirncnto, cnquanto rompimcnto. conserva urna completu- peranr;a outra vez. lsto inflama-a. pois o patlios da ira entra em harmonia
de crn si mesmo: quando urna possibilidade se rompe. entáo, a dor instan- com as suas outras disposi96cs interiorn~. o orgulho fica saciado com o
tánca talvez nao seja tao grande, mas tambérn deixa multas vezes atrás de pensamcnto vingativo ele transformar rudo aquilo em nada, nao era por ele
-;cr alguém cxtraordinário que o amara. long.e disso. ela vira rnuilo bem º"
28 Vd. nota 85 no capitulo «Dlapsalmata», ...cu~ dcfeitos. ma<. acredita' a que ele era um bom homcm. um homcm fiel,
220 221

por isso o amara, fora por cornpaixáo e, por isso. vai ser r:ícil csquccé-lo, Iosse urn impostor, scriu nré conccbívcl que se arrepcndcsse do passo que
pois ela nunca dele teve necessidade. Marie e os que a rodciarn esiño outra dcra e voliassc atrás. ou, o que seria ainda mais magnífico, talvez ele nem
vez em uníssono e o dueto entre eles corre oprirnamcntc. Pensar que Cluvi- ncccssirassc ele arrepender-se, e conseguisse justificar-se em absoluto, ou
go era urn impostor nao se afigura aos seus acornpanhantcs como difícil: explicar rudo, e constituiría entáo 11801 porventura urna afronta se cla tives-
pois nunca o amaram e, assim sendo, 11791 nao se trata de paradoxo nenhum se feíto uso disso, nao seria possível restabcleccr a antiga rclacáo, e seria
e, conquanto talvez o estimassern (algo que Goethe sugere em relacáo a por sua própria culpa, pois fora ela quern teria arranjado confidentes para o
irma29), esse interesse torna-se precisamente urna arma contra ele, e a be- rnais secreto crescimcnto do amor dele; e se cla conscguisse realmente
nevolencia, que porvcntura era um pouco mais do que benevolencia, torna- convencer-se de que ele era impostor, cntáo, para ela rudo valeria de facto
-se excelente materia inflamável para alimentar as chamas do ódio. Apagar o mesmo e, em qualquer dos casos, seria todavía mais bonito da sua parte
a recordacáo de Clavigo tarnbérn nao se afigura corno difícil para os scus nao íazcr uso disso.
acornpanhantcs. e, por isso, exigem que Marie faca o mesmo. O orgulho Ora, assim que. contra sua vontade, os seus acompanhantes vieram em
é

dela irrompc cm ódio, os que a rodeiam espevitam-no , Mario dcsabafa com auxílio do desenvolvimento de urna nova paixáo, o ciúme da sua própria
palavras forres e comas animosas intcncócs vigorosas com que se embria- mágoa. A decisáo dela está tornada, scntc-sc nos scus acompanhantes, cm
ga. Alcgrarn-se os que a acompanham. Nao rcpararn naquilo que nem se- tocios os sentidos, a falta de energia para estar de harmonia com a sua pai-
quer ela própria quer confessar para si, nao repararn que no instante seguin- xño - Marie recebe o véu; nao entra no convento, mas recebe o véu da
te fica esgotada e fraca, nao rcparam no pressentirncnto angustiante que mágoa que a c~condc de qualquer olhar alheio. O seu exterior está tranqui-
dela se apodera, nao rcpararn que a Jorca que ela naquele instante possui é lo, Lucio rica csquecido, o scu discurso nada deixa pressentir, dirige os votos
urna desilusáo. Esconde-o cuidadosamente e a ninguém o confessa. Os que da mágoa a si mesma. e comec,;a agora a sua solitária vida oculta. No mes-
a rodeiam insistcm com éxito nos seus exerclcios teóricos, mas cornccarn mo instm1te, tudo fica transformado; antigamente tinha para si como possí-
entretanto a querer vestigios de efeitos práticos. Mas éstes iardam. Conti- vel !'alar comos outros, mas nao se limita agora a estar amarrada aos votos
nuarn a acirrá-la. as palavras dela denunciarn forca interior. e surge-Ihes ele silencio, extorquidos pelo seu orgulho com o consentimento do seu
rodavia a suspeita de que as coisas nao estilo a bater cerro. Impacientam-sc, amor, ou exigidos pelo seu amor e aprovados pelo orgulho. porém. nao
arriscam o máximo, pcrscgucrn a pista da troca, a seu lado, para a desem- sabe agora de todo por onde come<;ar, ou como come9ar, nao porque te-
boscar. É demasiado tarde. Está instalado o mau entendirncnto. Para os seus nha111 surgido momentos novos. mas porque a reflexao triunfou. Ora se
acompanhantcs, o facto ele ele ter siclo impostor nao constitui hurnilhacño, alguém lhe perguntasse ele que coisa ela sentia mágoa, nada tcria para res-
mas deceno que é assim para Mario. A vinganca que lhe é oferecida, ponder, ou entao. respondería do mc~mo rnodo que aquclc sábio30• a qucm
dcsprczá-lo. nao traz porém realmente muita signilicacáo, visto que, para perguntaram que eoisa era a religiao, e que pediu tempo para pensar e mais
assim ser, ele teria ele arná-la, mas nao [oi devoras isso o que ele fez, e o tempo a:incla para pensar, continuando assim a dcver resposta. Marie está
desprezo ele Marie tornou-sc assim urna ordern de pagamento que ninguérn agora perdida para o mundo, perdida para os que a rodeiam, emparedada
honra. Por outro lado, ser ele impostor nada tem de doloroso para qucrn a em vida; fecha a última abertura com nostalgia, sente neste instante que
rocleia, mas para Marie cortamente que sim e, entretanto. ele nern sequcr talvez fosse ainda possível manifestar-se. no instante seguinte fica afastada
tem falta ele um defensor no íntimo dela. Ela sente que foi demasiado longe, deles para sempre. Nao obstante. está decidido, inabalavelmente decidido,
deixou que prcsscntissern nela urna forca que nao está na sua posse. e nao e nao necessita de temer corno aquelc que vivia ernparedado ao ver csgotar-
quer admiti-lo. E que consolo haverá tambérn em dcsprczar? Entáo, melhor -se a magra ra9ao de pao e água que lhc l'oi dada, na.o sucumbirá, pois t.cm
será sentir mágoa. Além disso, possuirá porventura um ou outro bilhete alimento para muito tempo, nao nccessita de temer o tédio, tcm mesmo
secreto, de grande significacáo para a explicacáo do texto, mascujo teor é

de ordern a poder simultaneamente colocá-Io sob urna luz mais favorável


ou mais desfavorável, de acordo comas circunstancias. E contudo, a nin- 30 Simónides de Ceos (c. 556-c. 467 a. C.). famoso pelos seus epigramas. Vd. Cícero,
De 11awra deorwn l Da Nanire7.a dos Deuses], Livro l. XXI, 60. Edi):iio consultada pelo
guém ela o conficlenciou, e a ninguérn quer confidenciar, pois se ele nao
autor: M. Tullii Ciceronis opera 01nnia [Obras Completas de M. Túlio CíceroJ, vols.
1-IV e índex, e<li<,:ao de Johann August Ernesti, Jlallc. 1756-1757: vol. IV. pp. 487-488.
29 Cluvigo, Acto 111, cena 1, in Werke,vol. X, p. 83; Hamhurger Ausgahe, vol. IV. pp. Ern poitugues: Cícero, Da nawrez,a dos deuses. introdu):iío, tradrn,:ao e notas de Pedro
280-281. Braga Falcao. rcvisiío de Al ice Araújo, Lisboa: Vega. 2004. p. 41.
222 Ou Ou. Uru 1•111¡•111111111 ¡I¡• Vklu 22:1

multo com que se ocupar. O scu interior está tranquilo e calmo, nada tcrn cia ele vir ter comigo o mais dcprcssa possfvel, ouco-lhc a rápida passada,
de notorio e, no entanto, o seu interior nao a esséncia incorruptível de um
é rnais rápida do que o bater do meu coracáo. ei-lo que chcga , é ele» - e o
espirito tranquilo:", mas a actividade estéril de um espírito inquieto. Procu- interrogatório - é adiado.
ra a solidáo ou o contrario. Em solidáo , repousa do esforco sempre despen- «Dcus altíssirno, essa pequena palavra que tantas vezcs repetí para mirn
dido ao impor ao seu 11811 exterior urna determinada forma. Tal como mesma. 11821 recordando-a entre tantas outras, sern que nunca tivcsse feito
aquele que, tendo permanecido durante muito tempo em pé ou sentado em reparo no que propriamente aí se ocultava. Sim, tudo explica, nao era seu
posicáo forcada, alonga o corpo com volúpia e, como um ramo que há propósito sério deixar-me , ele está de volta. O que pode o mundo inteiro
muito vcrgado pela rorca, ao romper-se a amarra, retoma de novo com contra esta pcqucna palavra, as pessoas cansaram-sc ele mim, nao tcnho um
gáudio a sua posicáo natural, assim ela encentra refrigerio. Ou, por contras- amigo sequer, mas tenho agora um amigo, um confidente, urna palavrinha
te, procura ruido, divcrsáo, pois cnquanto a atencáo de todos se dirigir para que tudo explica - ele está de volta, nao baixa os olhos , olha-rnc meio a
outras coisas, pode asseguradamente ocupar-se de si propria: e o que acon- ralbar e diz: ó tu, ele pouca fé33, e essa palavra baila nos scus lábios como
tece ali a sua volta, os sons da música. as conversas ruidosas, soa tao dis- urna folha de oliveira34 - ele está ali» - e o interrogatório é adiado.
tante que lhe parece estar num pequeno quarto só para ela, afasrada de tocio Tendo cm conta tais circunstancias, é pcrfcitamente natural considerar-
o mundo. E se porventura nao conseguir reter as lágrimas. entño, terá a -se que o pronunciarncnto de um juízo está scmprc ligado a grandes dificul-
certeza de ser mal entendida, ficará porvenrura debulhada cm lágrimas: dades. É evidente que urna jovem nao jurista, mas já náo é de tocio evi-
é

pois quando se vive cm ecclesia pressa32, scntc-sc urna legítima alegria dente que ela nao possa pronunciar um juízo, e contudo , o juízo desta
pelo facto de o ritual religioso de um individuo estar cm conforrnidadc corn jovem rapariga será sernprc de tal carácter que. sondo a primcira vista um
o ritual público no modo de cxtcriorizacño. Apenas recela a convivencia juízo, contérn simultaneamcntc algo mais que mostra nüo ser um jufzo,
mais tranquila, pois ncla fica menos sujeita il desatencáo, é tao fácil come- mostrando em simultaneo que no instante seguinte pode vira ser pronun-
ter um deslize, e tao dificil evitar que nele nao reparern. ciado um jufzo totalmente contrário. «Ele nao era impostor nenhum. pois
Por rora. nada h<í pois a observar, por dentro, h{i todavía intensa activi- para que houvesse de ser tal, teria de estar consciente clisso logo desde o
dado. Dccorrc aquí urn irncrrogatório que pode. com todo o dircito e com comc90; mas ele nao estava. diz-mo o cora9ao, ele amou-mC.)) Quando
especial énfase. ser chamado urna acareacño embaracosa; tudo trazido e é assim se reafirma o conceito de impostor, bcm feitas as contas, talvez até
escrupulosamente poste ~t prava, a sua figura, a sua expressáo, a sua voz, nunca tcnha havido um impostor. Clibá-lo com este fundamento revela um
as suas palavras. Devern ter sido poucas as vezes em que um juiz instrutor intcressc pelo acusado que nao pode subsistir com rigorosa justic;,:a, e que
de urna acareacño deste tipo, cativado pela beleza da acusada, tenha ínter- também nao resiste a urna única objec9ao. «Era um impostor, um homem
rompido o interrogatório, por nao se encontrar ern condicóes de prosseguir. abominável, frio e sem eora9ao, deu-me uma infelicidade scm limites. An-
O tribunal espera com expectativa o resultado do scu imcrrogatório, que tes de o conhecer, vivía satisfeita. Sim. é verdadc, nao fazia a menor idcia
tarda cm chcgar, e tal nao llca, contudo, a dcvcr-se ao facto de o juiz ter de que poderia vira ser tao feliz, ou de que havia uma riqueza tal na alegria
fallado ~1s suas obrigacócs; o carccrciro pude tcstcmunhar que ele compa- como essa que ele me deu a conhecec mas também nao fazia a menor idcia
rece todas as noitcs, que lhc entrega o acusado, que o interrogatório dura de que poderia vira ser tao infeliz quanto ele me deu a conhecer. Por isso,
varias horas, que nao houve no seu tempo um juiz tao perseverante quanto hei-de odiá-lo, abominá-lo, amaldi9oá-lo. Sim, Clavigo, maldito scjas, do
este. O tribunal retira daí a conclusño de que este terá de ser um caso mui- mais recóndito íntimo da minha alma, amaldii;oo-te; ninguém t.erá de saber
to intrincado. É assim que acontece cometa, nao urna única vez. mas urna disso, nao posso permitir que scja outro a faze-lo, pois mais ninguém tem
vez atrás da outra. Todas as coisas sao apresentadas tal e qua! se passaram, esse direito a nao ser eu; amei-tc como mais ninguém, mas também te
de urna maneira fidedigna, o que exige justica e - amor. O acusado é ci-
tado, «ei-lo que chega, vira a esquina, abre o portáo da cerca, vede como se
aprcssa, tevc saudades minhas, dir-sc-ia que pos tudo de lado na impacién- 33 lnvO(;a9ao de Cristo frequentc no bvangelho de Mateus (6:30; 8:26: 14:31; 16:8) e
tambérn cm Lucas, 12:28: «E se Deus assim veste a erva, que hoje cst{i no campo. c
~manha é lan9ada no forno. quanto rnais a vós. homens de pouca fé?»
31 Vd. I Pedro, 3:4: «Mas o homem encoberto no conu;:ao, no incorruptível traje de urr1 34 Livro do Génesis, 8: 11: «E a pomba voltou a ele sobre a larde; e cis. arra1H.:ad:1. urna
cspírito manso e quieto. que é precioso <liante de Deus.» f'olha de oliveira no ~cu bi<.:<J: e <.:011hcccu Noé que as águas tinhnm minguado ~obre :1
32 Em latim no original: «igreja perseguida». 1crrn.>>
Ou Ou. Un: Fragnu.:1110 de V1du 225
224

odeio, pois ninguém conhece a tua dissirnulacáo como cu conhcco. Vós, tará isto a um horncm? Ou terá sido urna inconstancia. ficará bem a um
bons deuses. a quema vinganca pertence, entregai-ma por um tempo breve, horncm ser inconstante? E porque me assegurou ele no comeco do muito
nao lhe darci mau uso. nao scrci cruel. Entáo. irci insinuar-me na sua alma que me ama va? Se o amor nao tem subsistencia, o que poderá entáo subsis-
quando amar uma outra, nao para matar essc amor, nao seria 11831 castigo tir? Sirn, Clavigo, despojaste-me de rudo, da minha fé, da minha fé no
nenhurn, pois sei que ele a ama tao pouco quanto a mim amou, de modo amor, e nao apenas no teu [».
algum ama ele alguém, ama táo-sornente a ideia, o pensamento, a sua po- «Nao era impostor. O que o arrancou da minha beira, nao sei; nao conhe-
derosa influencia na corte, o seu poder espiritual, tudo aquilo de que nem co essa forca obscura: mas essa forca obscura infligiu-lhe dor, urna dor
cu consigo fazer ideia de como ele capaz de amar. Despojá-lo-ei ele rudo
é
profunda; nño quis dar-me a saber a sua dor, por isso, fez de conta que era
isso; aprenderá entáo a conhecer a mínha dor; e quando estiver a beira clo impostor. Sim, se ele se ligasse a outra rapariga, cntáo, eu diría: era urn
desespero, dcvolvcr-lhc-ci cntáo ludo, mas há-dc ser a mirn que ele agrade- impostor. nenhum outro poder no mundo me levará a crcr outra coisa; mas
ce - fico assim vingada.» ele nao fez isso. Porventura acredita que fazendo-se passar por um impostor
«Nao. níío era impostor. já nao me amava mais, por isso abandonou-me , diminui a minha dor, que me deixa armada contra ele. Exibe-sc, por lsso,
mas isso nao era impostura nenhuma; se rivesse ficado corrugo sem me de vez em quando com outras raparigas jovens. lan~ou-me, por isso, um
amar, entño. teria sido um impostor e eu, tal como urn pensionista, haveria olhar tao trocist~1, outro dia, para me agastar e dessa forma deixar-me livre.
de ter vivido do amor que outrora rivera por mirn, haveria de ter vivido da Nao, nao era de certeza um impostor, e como havcria aquela voz de poder
sua piedade, do óbolo que talvcz até generosamente me tivessc atirado , enganar? Era tao calma e no ent.anto tao emotiva; como se rompessc cami-
vivido até ser um fardo para ele e até ser um tormento para mim própria. nho por entre os rochcdos, ::;oava assim vinda de um interior cuja profundi-
Coracáo cobarde e rniscrávcl, dcsprcza-tc a ti mesmo, aprende a ser grande, dade eu mal conseguia prcssentir. Pode esta voz enganar'? O que é cntao a
aprende isso com ele; amou-mc mais do que cu entendía ser amar-me a voz, será um estalar da língua, um ruído que é possível provocar como bem
mim propria. E haveria cu de sentir cólera contra ele? Nao, coníinuarei a se quiser? Tem contudo de ter morada algures na alma, tem de ter um lugar
amá-!o, porque o scu amor era mais fortc. o scu pcnsamcnto mais altivo do de origem. E tinha-o. tinha morada no mais recóndito do seu cora<;:ao, ele
que a rninha fraqucza e a minha cobardía. E talvcz aincla me ame, sim. foi amava-me, ele ama-me. É verdade que tinha também uma outra voz, fria,
por amor a rnim que me abandonou.» gélida, capaz de matar qualquer alegria na minha alma, ele sufo<.:ar q~~.lqu~r
«Sirn, agora alcancei, agora já nao tenho dúvidas, era um impostor. Eu pensamento jubiloso. capaz até ele para mirn mesma tornar o meu betJO fno
vi-o, a expressáo orgulhosa e triunfante percorria-rne com urn olhar trocis- e repugnante. Qua! delas era a verdacleira? Ele era capaz de enganar ele
ta. Ao seu lado, seguía urna espanhola, irradiando a sua beleza; porque tocias as maneiras, sinto porém que aquela voz trémula na qual palpitava
havia ela de ser tao bonita - estava capaz de matá-Ia - porque nao sou toda a sua paíxiio nao era uma impostura, é irnpossível. A outra voi era uma
eu assim tao bonita? E nao o era eu? - nao o sabia, ele tinha-rno dacio a impostura. Ou entao. seriam poderes malignos a exercerem domínio sobre
saber. e porque já nao o sou? - De qucm é a culpa? - Maldito sojas, ele. Nao, nao era impostor nenhum, esta voz que dele me fez cativa para
Clavigo, se tivcsscs ficaclo comigo, tcr-mc-ia tornado ainda mais bonita, sempre nao é urna impostura. Nao era imposcor, mesmo que eu nunca o
pois o mcu amor crcscia com as iuas palavras e as tuas garantias, e com entenclesse.»
ele a minha beleza. Agora fenecí, já níío ganho vigor, que forca tem todo O inte1Tooatório
b
nunca é dacio por concluído, e o julgarnenlo tambérn
.

o carinho do mundo em comparacáo com uma palavra tua? Oh, oxalá eu nao; o interrogatório, porque se introduzem continuamente pausas, o Julga-
voltasse a ser bela. oxalá pudesse outra vez agradar-lhe. pois só por isso mento, 11851 porque se limita a ser urna clisposi<,:ao. Por conseguintc. quan-
desejo ser bela. Oh. oxalá ele nao conseguisse amar mais a juventude e a <lo este movimento é accionado, pode instalar-se durante o tempo que se
beleza! Afligir-me-ia eu entáo rnais do que outrora, e quern será capaz de quiser. nao se lhe vislumbrando o fim. Só um rompimcnto pode conduzir
afligir-se corno eu !» ao seu termo, conduzindo-o clesignadamente a interromper todo o movi-
«Sirn, ele era um impostor. Como poderia ele alias cessar de amar-me? mento do pensamento; mas nao é possívcl que tal acontec;a, pois a vontade
Deixei eu cntáo de o amar? Nao há urna mesma leí para o amor de um é sempre serva da reflexao, e fornece encrgia a momentánea paixao.
homem corno para o amor de urna mulher? Ou será o homcm 11841 mais Quando ela entao pretende por vezes desprender-se do todo, recluzi-lo a
fraco do que o fraco? Ou tal vez ele tivesse errado, tal vez fosse urna desilu- nada, tal nao passa novamentc de uma disposi<,:ao, de urna paixao momen-
sao ter-me amado, urna desilusáo que desapareceu como urn sonho , asscn- tanea, e a reflexao continua a permanecer vitoriosa. Urna mediac;ao é im-
226 Syl1 i.:11 1 1c1 k1.:guurd Ou Ou. l11111•111¡.i11)l1110 d~· idu 227

possível; se ela comecar de modo a que o corneco seja de urn ou de outro qualqucr compensacño, qucr seja neste ou no mundo futuro. O que houves-
modo urn resultado de operacóes da reflexáo, entáo é arrastada nesse mes- se ele vir sorria-lhc 1·:Jo pródigamente ao espelhar-se na ilusáo do seu amor
mo instante. A vontade tem sobrctudo de comportar-se de urna maneira e, cornudo, Ludo era tao natural e tao directo; tal vez urna pálida rcflexño lhe
completamente indiferente, tem de cornecar por forca da sua própria von- tcnha entáo pintado urna pálida ilusáo que nao actue sobre ela corn um
tade, e só assim épossível talar de um comeco, Se tal acontecer. entáo cfcito tentador, mas que por um instante seja mitigante. É assim que o tem-
deccrto que poderá comccar, mas ficará completamente fora do nosso inte- po continua a passar para ela, aré que tenha consumido o proprio objecto
rcssc, cntregá-la-ernos cntáo com prazer aos moralistas, ou a quem de resto da sua rnágoa, o qual nao era idéntico a mágoa sua, mas antes a ocasiáo
estiver disposto a ficar com ela. dcscjamos-lhe um casamento honrado, e para que ela continuasse a procurar um objecto para a mágoa. Se alguém
comprornetemo-nos a dancar no diada boda, quando felizmente tarnbém a possuísse urna carta, e soubesse ou acreditassc que continha algum csclarc-
rnudanca do nome nos terá entáo feíto esquecer que havia sido a Marie cimento sobre aquilo que teria de considerar para a íclicidadc suprema da
Beaumarchais de quern falamos. sua vida, urna carta cuja letra estivesse, porém, fina e esbatida, a caligral'ia
Nao obstante. regressernos a Marie Beaumarchais. Como foi acima ob- quase ilcgível, lcria essa carta urna vez atrás da outra. certamente que com
servado, o que próprio da sua mágoa é o dcsassossego que a irnpede de
é
angústia e desassossego, mas com toda a paixao e, num primeiro instante,
encontrar o objecto da mágoa. A dor dela nao acolhe tranquilidadc, Ialta-lhe tiraria um sentido, no instante seguinte, um outro, em rela¡;ao ao qual,
a paz de que qualquer vida nccessita, quando de prever ao scu alimento e
é
quando estivesse na certeza de erer que havia licio urna palavra, ex pi icaria
de se restabelecer com ele: nenhuma ilusáo lhe dá a sombra da sua tranqui- tudo de acorclo com esse segundo sentido; mas nunca seria capaz de ir para
la frescura, enquanto absorve a dor, Pcrdeu a ilusño da infancia ao ganhar alérn cla mesma incerteza com que havia iniciado. Olharia fixamente, cada
a do amor35, pcrdcu a do amor quando Clavigo a cnganou; se lhe tivcssc vez mais angustiadamente. e quanto mais fixarnenl.c olhasse, menos veria;
sido possível ganhar a ilusáo da mágoa, reria sido urna ajuda. Entáo, a má- os olhos ficariam por vezes repletos de lágrimas, e quanto mais assim acon-
goa dela ter-se-ia aprox imado da rnaturidadc vi ri 1, e te ria u ma compensacño tccesse, menos veria; com o decorrer do tempo, o texto tornar-se-ia mais
para o perdido. Mas a mágoa ele Marie nao ganhava vigor, pois ela nao desvanecido e mais inclecifrável. por último, o papel haveria de dcsfazer-se,
perdera Clavigo, ele enganou-a, cla ñca sempre como urna enanca ele tcnra e nada mais lhe restaria do que olhos marejados de lágrimas.
idade no scu choro, urna crianca sern pai nem mae,já que se lhc houvessem
arrebatado Clavigo, possuiria entáo o pai na rccordacáo da sua Iídclidade e
do scu afecto. e a rnác, na exaltacáo de Maria; e nada tem com que possa 11871
criá-la; pois o que vi vcu rora decerto bel o. mas ern si e para si nao tinha 2. Donna Elvira
todavía significacño, era antes como provar o futuro. Tambérn nao pode ter
esperanca 11861 de que este filho da dor se transforme cm filho da alegria, Aprendemos a conhecer esta rnpariga na ópera Don Juan, e nao será
rarnbém nao pode ter esperanca de que Clavigo houvesse de regressar; pois desprovido de significac¡:fío para a nossa ulterior investiga\(ao atentar nos
que nao terá forca para carregar um futuro; perdeu a alegre confianca com indícios contidos na obra sobre a sua vida anterior. Elvira era freira, foi da
a qual tcria temerariamente seguido Clavigo no abismo e, ern vez disso, paz do convento que Don Juan a arrancou36. Oeste modo, é sugerida a
ficou com centenas de escrúpulos, estaría no máximo em condicóes de vi- desmedida intensicladc da sua paixao. Nao era uma rapariguinha tagarela
ver o passado com ele ainda mais urna vez. A sua frente cstendia-se um saída de um internato que tivessc aprendido a amar na escola, e a namoris-
futuro quando Clavigo a abandonou, um futuro tao belo, tao promissor ele car nos bailes; que alguém desla cspécie seja seduzido, nao contém nada de
encantamento, que quase lhe confundía o pensarnento, cxercendo obscura-
mente o seu poder sobre ela; já se iniciara a sua mctarnorfose, quando o 36 Vd. Don Giovanni. l\cto 1, cena 5; Kruse. Acto I, cena 6, pp. 18 e 20. Enguanto Da
desenvolvimcnto foi interrornpido e a transformacáo parada; havia prcssen- Ponle no seu libreto apenas diz: «M'innamori, o crudel. l Mi dichiari tua sposa, e poi
111oncw1dv I TJella terra e del cielo al santo dritto I ... >> («Enamorei-me. ó crnel. J
ticlo urna nova vida, havia intuído as torcas dessa vida agitando-se dentro
Declarei-me tua esposa, e faltando i ao santo direito do céu e da terra I ... » ), Kruse faz
dela, quando o rompimento se deu e ela foi repelida, e nao há para ela Donna Eivini dizcr: «Far dig. jeg glemte alt, min Stammes !Ere./ Min Paf!,t med Gud
( ... ) I Den Agr jeg nf)d i Klosrers stille Celler» («Por ti. tudo csqueci. a honra da rninha
35 A qui, bem como as duas ocoriencias seguintes de «amor». corresponde «Elskov» no linhagcm, I O mcu pacto com Dcui; ( ... ) I A aten9ao de que precisava nas celas do con-
original. vi.:nto>> ). e «Gud.1/m1rl 1•or je~» («De Dcus era cu a noiva» ); vd. Krm;e, pp. 18 e 20.
228 Sl)1L'11 k1L'' kcguurd 229

grandemente significativo. Ao invés, El vira foi criada na disciplina do con- blfurcacílo, até ao iusuuuc e111 que sobe ao palco, náo, nós seguimo-la no
vento, mas esta disciplina nao logrou erradicar-Ihe a paixáo, porérn, decer- seu caminho solitario.
to que a ensinou a reprimi-la e, por essa via, a torná-la aincla mais violenta, Portante, Don Juan seduziu Elvira e abandonou-a, acontcceu depressa,
logo que se cncontra no direito ele soltá-la. É presa segura para um Don tao deprcssa quanto «um tigre a derrubar um lírio»39; se só em Espanha sao
Juan; ele sabcrá fazcr jorrar a paixño, bravia, indomável, insaciável, capaz já mil e tres411, pode por aquí ver-se como Don .luan está cheio de prcssa.
de se saciar apenas no seu amor. Nele, ela tcm tudo , e o passado é nada; se seudo assim possível calcular aproximadamente a rapidez do movimento.
o abandonar perderá entáo tudo, e iambém o passado. Renunciara ao mun- Don Juan abandonou-a, mas El vira nao tem acompanhantes em cujos bra-
do, quando surge entáo uma figura a qual nao pode renunciar, e essa figura cos possa cair desfalecida, nao neccssita de temer que decidarn estrcitar-lhc
é Don Juan. A partir de agora, a tudo renuncia para viver com ele. Quanto o cerco em demasía, sabern bcm como abrir fileiras para facilitar a partida
mais significativo fosse o que ela abandonava, tanto maior teria de ser a dela, nao ncccssita de temer que alguérn queira vir disputar a sua perda;
firmeza com que a ele se agarra; quanto maior for a firmeza com que ele a talvez aparees antes urn ou outro que se encarregue ele o demonstrar. Ficou
abraca, tanto mais terrível se torna o desespero dela quando ele a abandona. so e abandonada, e clúvida alguma a lenta; claro que ele era urn impostor
é

O scu amor já desde o início um desespero, nada para ela tcm significa-
é
que a dcspojou de rudo, deixundo-a a mercé da desonra e da ignomínia.
9ao, scja no céu ou na terra, scm Don Juan. Nao é o pior que lhe pode acontecer, estéticamente falando, durante breve
Na obra, Elvira inrercssa-nos desde que a rclacño dela com Don Juan tempo salva-a da mágoa reflexiva, que de certeza mais dolorosa do que a
é

tenha significacáo para ele. Houvesse de ser eu a sugerir em poucas pala- mágoa imediata. É lacto aquí indubitável. e a reñcxño nao consegue chegar
vras a respectiva signiflcacáo , entño, diria que ela o destino épico de Don
é a transforrná-lo ora muna coisa, ora neutra. Urna Marie Beaumarchais teria
Juan, e o Comendador, o seu destino dramático. Há nela um ódio que irá sido capaz de amar um Clavigo de urna maneira igualmente ardente, bravia
cm busca de Don Juan por todos os recantos, urna chama que iluminará o e apaixonada; e proporcionalmente a sua paixao, pode tratar-se de pura
cscondcrijo mais obscuro, e nao houvessc cla ainda assirn ele dcscobri-lo, casualidade nao ter o pior acontecido, Marie quase poclia desejar que tal
há dentro dela um amor que o encontrará. Participa com os restanres'? na tivesse acontecido, visto que isso t.cria consliluíclo um final para a história,
pcrseguicño a Don Juan, mas se eu imaginasse que todos os poderes haviam entao, teria licado muito mais bem armada contra ele, mas tal nao aconte-
sido neutralizados, que os csforcos dos perseguidores se haviam reciproca- ceu. É muito mais duvidoso o facto que tem a sua frente, cujo vercladeiro
mente anulado, para que assim El vira ficassc sozinha com Don Juan, fican- carácter permanece sempre um segredo entre ela e Clavigo. Quando pensa
do ele a sua rnercé, entño, o ódio haveria de ser a arma para o assassinar, na fria IJ 891 dissimulac,:ao, no mcsquinho senso eomum necessários para a
mas o seu amor haveria de o proibir, mas nao 11881 por compaixáo, pois cnganar de molde a que aos olhos do mundo surgisse com urna aparencia
para ela Don Juan demasiado grande, e assim haveria de conservar-lhe
é
bcm mais suave, de molde a fazer dela a presa do compadecimento, diz-se:
sempre a vida, pois se o rnatasse , entáo, rnatar-se-ia a si pr6pria. Portanto, «Üra, Senhor Oeus, o caso nao é assim tao grave»; é capaz de a deixar in-
se nao houvcsse na ópera outras forcas em movimento contra Don Juan que dignada, ela é capaz de quase perder o juízo só de pensar na orgulhosa al-
nao Iossc Elvira. cntño, nunca teria fim, visto que, fosse isso possível, El- tivez. cliante da qual cla enlrctanto nem scquer tem nada para significar,
vira impediría o proprio raio de o atingir'" para ser cla a vingar-sc e, con- estabelecendo-lhe um limjte que diz: «até aqui e daqui nao passas». E nao
tudo, nao conseguiría de novo excrcer vinganca. É assim que na ópera ela obstante, é possível explicar o todo de outra maneira, de um modo mais
interessa; mas ocuparno-nos aquí apenas da sua relacáo com Don Juan na bonito. Mas a medida yuca explica9ao se torna outra, também o faclo se
medida em que trouxer para ela significacño. Ela objecto do interesse de
é
torna outro. Port.anto, a reflexao dispoe desde logo do suficienle para agir,
muitos, mas ele modos muitfssimo diferentes. Don Juan interessa-se por ela e a mágoa reflexiva é inevitável.
antes ele a peca comecar, o espectador oferece-lhe o seu interesse dramáti- Don Juan abandonou El vira, nestc mesmo agora tuclo para ela ganha ni- . 1

co, mas nós, os amigos da mágoa, nao a seguimos meramente até a próxima tidez, nenhuma clúvida retém a mágoa no parlatório da retlexao; remete-se

37 Os restantes sao Donna Anua e Don Ottavio, aos quais se rcúncm posteriormente 39 Citas;ao retirada de Aladdin, eller Den fomnderlige Lampe 1 Aladdin ou a Lampada
Zerlina e Masseuo. Maravilhosa], in Adam Oehle11sclzliigers Poetiske Skrijter 1 Escritos Poéticos de A. O.],
38 Na cena do banquete final. dcpois de dar a máo ao Comendador, Don Juan atingi-
é
vol~. 1-!L Copenhaga, 1805: vol. Il. pp. 75-436; vol. .11, p. 275.
do por raios e sugado pelos espíritos do inferno. 40 Vd. nota 23 no capítulo «Diapsa/111(t1a».
230 S11r1•11 "1 ·1 l-.1.:ga:11d 2JI

ao silencio no seu desespero. Com um único pulsar, a magon circula profun tao fuga1.. voltava a cubcca para olhar para trás, o rosto tao fascinante e
<lamente através dela, e essa circulacáo proccssa se para fora, a paixao rclul todavia o olhar tao inquieto; era Don Juan. Ou seguc apressado para um
ge com chama arravés dela e toma-se visível do exterior. Ódio, desespero, cncontro, ou já vem de regressol Entretanto, assim que desaparecen dos
vinganca, amor, rudo isto irrompe para se manifestar visivelmentc. Nestc 1111.:us olhos e ficou esquecido do meu pensarnento, o meu olhar voltou a
instante, Elvira é pictórica. Tarnbém por isso, a fantasia mostra-nos desde tixur-sc no convento. Estava outra vez rnergulhado em considcracóes sobre
logo urna imagern dela, e o exterior nao fica aquí pesto na indifcrcnca, a a volúpia da vida e a tranquila paz do convento, quando vi urna figura fe-
reflexño dccorrcnte nao está desprovida de eonteúdo, e a sua actividade nao minina Jií no alto do montc42. Corría dcscnlrcadarncntc pela vereda fora,
deixa de ter significacño, dado que cla rejeita e selecciona. mas o caminho era rnuito inclinado, e parecia sernpre que clase despenhava
Se ncste momento El vira constituí tarefa para reprc: cntacáo artística, é do monte abaixo. Aproxirnou-se. O rosto dela cstava pálido, só os olhos
urna outra qucsiño; mas urna coisa é certa, neste instante ela é visível e í'lamcjavam terrivelmente, o corpo exausto. o peito arque java violentamen-
pode ser vista, obviamente que nao no sentido ern que e na ou aquela El vira te e cornudo, corría cada vez rnais deprcssa, O'> caracóis do cabclo esvoa-
real possa realmente ser vista. o que na maioria das veles equivale a dizcr cavam sollos. dcslcitos pelo vento, mas ncm mesmo a fresca brisa matinal
que nao é possível ve-la, mas a Elvira por nós imaginada é visível na sua e 0 seu passo aprcssado eram capazos de enrubescer as pálidas faces, o scu
cssencialidade. Deixo por decidir o grau no qual a arte está cm condicécs véu de freira rasgara-se e [ugira para trás, o leve hábito branco multo havc-
de transmitir os cambiantes de exprcssño na sua facc, para tornar intuitivo ria traído diante <le um olhar profano, nao tivcsse a paixao no scu rosto
O amago do scu desespero, mas torna-se pOSSÍve( dcscrcvé-Ia, e a imagem atraído a aten9ao do mais corrupto dos homens. Passou por rnim a correr.
que assirn surge nao se torna um mero fardo para a mcmória, que nada poe 1150 ousei falar-lhe. para tal era o seu porte demasiado majestático, o olhar
ou tira, antes possui a sua validade. E quern nao viu El vira! Era de manhñ demasiado régio, a paixao demasiado ilustre. A que lugar pertence e:-.ta jo-
cedo quundo cmprccndi urna caminhada por urna das rcgióes románticas ele vem? Ao convento'! Paix5cs destas tcm aí morada'! - Ao mundo? Este
Espanha. A natureza acordava, as árvorcs da floresta agitavam as copas, e hábito - Por que motivo corre'! Para esconder a sua vergonha c desonra.
as folhas como que csfregavarn o s1J110 dos olhos, urna árvorc inclinava-sc ou para perseguir Don Juan? Corre para a floresta. que sobre. ela se encerra.
sobre urna mitra para ver se esta jéí estava a pé, e toda a floresta ondulava c-.condendo-a, e nao a vejo rnais, mas oi90 apenas o suspiro da floresta.
co111 a brisa fresca e refrescante; urna leve neblina lcvantava-se da rerra, o Pobre Etvira! l louvessem as árvores de saber alguma coisa - e nao obs-
sol arrancou-a como se lossc um tapete sob o qual havia 11901 rcpousado tante, 11911 as árvores sao melhorcs do que os homcns, pois as árvores
durante a noite, e olhando agora como u111a mñc amorosa para as flores e suspiram e calam-sc - os homcns murmurarn.
para tudo o que era vicia, dizia: «l .cvanrcm-sc, Iilhos queridos, já brilha o Ne!>te primeiro momento, Elvira é pa~sível ~e ser r~prcsc.nta~~~·(,e bcm
a
Sol,» Ao virar para urna ravina, saltou-rnc vista um convento, ergucndo-sc que a arte nao possa propriamentc ocupar-se d1sso. pois sena dtflcLl encor~-
no alto do cumc de urna serru, para onde conduzia urna vereda rnuito tortu- trar uma unidade de expressao que tivesse em si simultaneamente a mult1-
osa. Derive nclc a minha mente, pensci que ali se encontrava assirn como pli<.:i<ladc das paixoes, entao, a alma exige ve-la. Foi ~ q~1e pro~urei sugerir
que urna casa de Dcus firmemente aliccrcada nas rochas41. O mcu guia coma pequena imagem que acima esbocei: nao constttu1u des1gnadarnente
contou-rne que se iratava de um convento de freiras, conhecido pela rígida minha inten9ao representar Elvira através dcssa imagem, ~t'.eria po.rém
disciplina. Abrandou-sc-me o passo, bem como o pensarncnto, e que coisa sugerir que cabia aqui descrevc-la. que nao se trata va. dc.um s~b1to capnch~
ha verá tarnbérn para atrás dela correr. quando se está tao perro de um con- da minha parte. mas de urna imposi9ao válida da 1dc1a. ao obstante. e
vento. É provávcí que até acabassc por parar completamente. se nao tivcssc apenas um momento e. por isso. ternos de seguir Elvira mais para diant~.
sido despertado por um rápido movimento a rninha beira. Virei-me involun- O movimento que se nos impüe é um movimento no tempo. Elvrra
tariamente, e vi urn cavaleiro passando por mirn em toda a pressa. Como era 111antém-se no cume quase pictórico acima sugerido através de urna suces-
belo. o passo tao ligeiro e todavía tao vigoroso, tao majestoso e. conrudo, "ªº de momentos temporais. Adquire por essa via interesse dramático. Na
pressa com que por mim passou. vai apanhar Don Juan. Tuclo isto está
pcrfeitamentc adcquado, pois se bcrn que ele a tenha abando.nad~, porém,
41 Vd. Mateus. 7:24-25: «Tocio aquele , pois. que escura estas minhas palavras, e as
pratica, asscmelhá-lo-ei ao homcm prudente. que edificou sobre a rochai ? E deseen a
arrastou-a consigo para dentro da prccipitar;ao da sua própna vida, e eta
chuva. e correram rios. e assoprararn ventes. e combutcram aqueta casa. e nao caiu.
porque estava edificada sobre a rocha.» '-12 Na V('rsií0 de Kru~l'. 001111;1 rnvira ~ frcir:i. Vd. acima 1101:1 36.
232 233

tem de alcancá-lo. Se o alcancar, toda a atencáo dela se vira cnrño nova- convencida e exige urna nova preva, visto que exigir a preva constitui um
mente para fora, e ainda nao obternos urna mágoa reflexiva. Ela perdcu ulívio, e a incertcza. um rcfrigério. Passa, entáo, a ser apenas rnais urna
tudo, o céu, ao escolher o mundo, o mundo, ao perder Juan. Por isso, nño icsrcmunha das proezas de Don Juan. Mas podíamos também imaginar que
tem a quern recorrer a nao ser ele, só estando na sua proximidade écapaz cla a mais forte. É raro acontecer tal coisa, mas irei fazé-lo por galantería
é

de rnanter o desespero i1 distancia, quer seja abafando as vozcs interiores para corn o sexo ferninino. Ei-la entáo ainda na plenitude da sua beleza,
com o ruído da cxasperacáo e do ódio. as quais todavía apenas se fazern pois se bcm que tenha chorado, as lágrimas nao ofuscaram todavía o brilho
ouvir com ressonáncia se ele estiver presente pcssoalmente, quer seja tendo dos olhos e, se bem que tenha sentido rnágoa, esta nao esgotou todavía a
esperance. Esta última forma já indica que os momentos da mágoa reflexi- exuberancia da juvcntude e, se bcm que se tenha afligido, a afli9fü.1 dela nao
va estilo presentes, mas nao lhcs foi <linda possível encontrar tempo para dcsgastou todavía a vitalidade da sua bcleza e, se bem que lhe empalideces-
confluírem para dentro de si. «Tcrá primeiro de ficar cruelmente convenci- scrn as faces, por isso, há porém na expressáo ainda mais animo e, se bcm
da», d iz-se na adaptacáo de Kruse43, mas esta exigencia denuncia comple- que nao se mova eom a leveza da inocencia infantil, avanca todavía eom a
tamente a disposicño interior. Se como que sucedcu nao Iicou persuadida firmeza enérgica da paixáo feminina.. É assim que enfrenta Don Juan.
de que Don Juan era um impostor, enrño, nunca ficará. Mas desde que exi- Amou-o acima ele tudo no mundo, acirna da Iclicidadc suprema da sua al-
ja urna preva suplementar, entño, será bcm-succdida por meio de urna vida ma, tudo dcsbaratou por ele, até a propria honra, e ele foi-lhc infiel. Conhe-
inquieta e errante, eternamente ocupada a perseguir Don Juan, evitando o ce agora urna única paixño apenas, é o ódio, um único pcnsamento apenas,
dcsassossego interior do desespero tranquilo. O paradoxo encontra-sc já 6 a vinganca. É assirn tao grande como Don Juan; pois que «seduzir todas
diante da sua alma, mas desde que consiga manter a alma em agita9ao, as raparigas» a cxprcssáo masculina para a expressáo ferninina «dcixar-se
é

através de prevas exteriores que nao hajarn de explicar o passado , mas sim xcduzir urna vez com toda a sua alma», e agora odiar ou, se assirn se quiscr,
de dar informacño sobre a presente condicáo de Don Juan, nao possuirá a amar o sedutor com urna energía que ncnhuma 11931 esposa possui, É assim
11921 mágoa reflexiva. Alternarn-se ódio, exasperacño, maldicócs, súplicas, que cla enfrenta Don Juan, nao lhe falla a coragcm para ousar ir contra ele,
conjuracóes, mas a alma dela a inda nao regressou a si mesma para repousar niio se bate por princípios moráis, bate-se pelo seu amor, um amor nlio
na consideracáo de que foi cnganada. Espera urna explicacáo viuda do ex- fundamentado no rcspeito; nao luta para vir a ser o seu par, lula pelo scu
terior. Quando portante Kruse poe Don Juan a dizer: amor, e nao se contenta com urna fidelidade contrita, esse amor antes exige
vinganca: por amor a Don Juan, deitou a perder a sua suprema felicidadc e,
Se estás agora disposta a ouvir, se voltasscm a oferecé-la, voltaria a deitá-la a perder para se vingar. Urna
A crer na rninha palavra - tu que de mim desconfías; figura dcstc género nunca deixa de produzir efeito sobre Don Juan. Ele
Quase posso cntño dizcr como inverosímil
é
conhece qual o desfrute que há em cheirar as mais bolas e tragrantes flores
O motivo que me impele, etc.44, da primeira juvcntude; sabe que é apenas um instante, e sabe o que se lhe
seguirá, viu demasiadas vezes estas pálidas figuras estiolarem tao deprcssa
entáo, ternos de manter-nos em vigía para nao ficarmos em crer que aquilo que quase se tornava visível. mas aconteceu aquí o prodigioso, romperam-
que aos ouvidos do espectador soa como chacota produz um cfcito serne- sc as leis do curso universal da existencia, seduziu urna jovem rapariga,
lhante em Elvira. Para ela, esta conversa serve ele rcírigério, visto que El- mas a sua vida nao se extinguiu, a belcza dela nao esmoreceu, transformou-
vira exige o inverosímil, e quer acreditar nelc, precisamente por ser invero- -se, e está mais bela do que nunca. Nao pode negá-lo, ela cativa-o mais do
símil. que nunca outra jovem o fez, mais do que a própria Elvira,já que a inocen-
Ora se deixarrnos que Don .Juan e Elvira colidarn, ficamos nesse caso te freira, apesar da sua bcleza, fora todavia uma jovcm como tocias as ou-
<liante da escolha de deixar que o mais forte seja Don Juan ou seja Elvira. Lras, este seu namoro urna aventura como muitas oulras; mas esta jovem é
Se for ele o mais forre, toda a conduta dela nada chegará a significar. Ela única no seu género. Esta rapariga está armada, nao esconde um punhal no
exige «urna prova, para ficar cruelmente convencida»: ele é suficientemen- peito45' mas traz urna armadura que nao é visível' pois o ódio dela nao fica
te galante para nao dcixar que tal preva tarde. Obviamente que cía nao fica ~;.iciaclo com discursos e declamac;oes, mas antes de urna maneira invisível,
e eis pois o seu ódio. Dcsperta a paixao de Don Juan, ela tem de pertencer-
43 Kruse, Acto l. cena 6. pp. 20-21.
44 lbid. 45 Nova cliscrcpi\ncia e111 rcl;19iío ao librcLO ele Da Ponte; vd. Krusc. Acto 1. cena 5. p. 18.
234 235

-lhc urna vez mais ainda, mas tal nao acontece. Sim, se se uurassc de u111:1 que 1a111bé111 lhc scj11 dilrcil 1';11c-lo. pois para que tal vcnha a ~e~ possívcl
jovem que conhecessc a baixeza dele, que o odiasse. cmboru nao houvcssc ll'I a previamente de desesperar; já uma ve/: soubc o que era o religioso e, da
sido enganada por ele, cntño , Don Juan triunfaría, mas nao pode vencer ,l'gunda vez, este iní colocar-lhc grandes exigencias. O religioso acima de
é

esta rapariga, toda a seducáo dele é impotente. Mesmo se a sua vcu. fossc tudn urn poder perigoso para cntabular conversa. é cioso de si próprio e nao
rnais insinuante do que a sua própria voz, os seus avances mais engcnhosos ,c dcixa escarnecer. Quando cscolhcu o convento, a sua alma orgulhosa
do que os seus proprios avances, nao a dcrnovcria, mesmo que os anjos por tulvcz tcnha aí encontrado abundante satisfacño, pois. diga-se o que se dis-
ele implorasscm, mesmo que a mae de Deus Iossc dama de honor no casa- \CI', ncnhuma rapariga arranja partido tao brilhante como aqueta que dcspo-
mento, rudo seria em vilo. Tal como nos infernos Die/o se a fasta de E11eia.1A6• ..,.1 0 céu: e agora. ao invés, agora dcverá regressar como um penitente, cm
que lhe tora infiel. também ela certamerue nao irá afastar-se dele, voltar-sc- "' 11.:pendimento e contri9ao. Além disso, resta . empre ainda a qucstao de
-á antes contra ele, com maior írieza ainda do que Dido. -.ahcr ~e conseguirá encontrar um padre capaz de pregar o evangelho do
Nao obstante. o encontro de El vira com Don Juan é apenas um momento ,111cpendimento e da contri9ao como mesmo vigor com que Don Juan pre-
de transicño , ela atravessa o palco, o pano desee, mas nós, caros i•ou a boa nova da volúpia. Por conseguintc, parn se salvar dc!->te c.les~sp~r~.
!uµn:auuvexl)WµEvm. deslizamos silenciosamente atrás dela. pois só agora tcm de agarrar-se ao amor por Don Juan, algo que lhe será tanto ma1s fac1I
ela passa a ser, com toda a 11941 propricdadc, Elvira. Enquanto csrivcr na vislo que entretanto o ama ainda. Uma terceira possibilidade é impensávcl.
proxirnidade de Don Juan, está fora de si mesma; quando rcgrcssa a si mes- dado que, houvesse ela de ser capaz de encontrar consolo no amor de out ro
ma, importa cntño pensar no paradoxo. Pen ar urna contradicüo, aposar de horncm, e isso seria mais medonho do que a mais medonha das coisas. Por-
todas as certezas da ñlosoña moderna"? e da atrevida coragcrn dos seus jo- 1.wto. é por sua causa própria que tcm de amar Don 11951 Juan: é a c;ua legf-
vcns scguidorcv, estará scmpre ligado a grandes dificuldadcs, Perdoar-sc-á 11111a defc~a que o exige, e c~ta é a espora da rcflexño que lhe impüe olhar
dcccrto a urna jovcrn rapariga que cla achc que é difícil pensar que aqucle l l\amente para o paradoxo de poder amá-lo, cmbora ele a cngana~ ·e. De
que ama era um impostor e esta é, no entamo, a tarefa que lhc está destinada. l:ada ve1.. que o desespero qucr cntao apoderar-se dela, refugia-se na lem-
Tcrn isto cm cornum com Marie Bcaurnarchais e, cornudo, há urna diferenca brnn~a do amor de Don Juan. e para ~e sentir realmentl! bem neste lugar de
no modo como cada urna cm particular atinge o paradoxo, O facto tido por ahngo. deixa-se tenlar pelo pensamcnto de que ele nao era impostor, cmbo-
Marie para ncle se apoiar era cm si tao dialéctico que a reflcxño tcriu desde ra o f;.19a de diferente!-. modos. dado que a dialéctica de urna mulhcr é pecu-
logo de aprcendé-lo cm toda a sua concupiscencia. No que di7. respcito a liar. e só qucm já tcve a oportunidade de obscrvá-la. só csse é cap~z.de
El vira, a preva factual de que Don Juan era um impostor parece tao eviden- 1mi1á-la. ao passo que o maior <los dialécticos que alguma vez tenha v1v1do
te que nem se ve bem como a reflcxño pode ter máo nisso. Por is .o, apreen- pode cndoidcccr de tanto especular para produlir tal dialéctica. Tíve entre-
de o assunto a partir de urn outro lado. Elvira perdeu tudo e, cornudo, tern a 1;11110 a fortuna de conheccr alguns exemplos notáveis, com os quais frc-
vida intcira a sua frente, e a alma reclama um viático de que possa vivcr. qucntei um curso completo de dialéctica. Curiosamente, seria de crer qu.e
Mostram-se aqui duas possibilidadcs: ou ficar su jeito a determinacócs éticas losscm preferencialmcnte de encontrar na capital, pois o barulho <.:as mult1-
e religiosas. ou conservar o seu amor por Don Juan. Se cumprir a primeira. di>c!> muito escondem: entretanto. nao é assim que todavía acontece, diga-se,
ficará forado nosso intercsse, e tercmos o prazer de deixá-la ingressar nurna quando se quer obter cspécimes nobres. Nas províncias, nas pcqucn:1s lo.ca:
associacño de madalenas'", ou onde ela aliás quiser. É entretanto provável lidades, nos solares, encontramos os mais bclos. A4ucle que me esta mais a
mfio de pensar era urna sen hora sueca, uma jovem da no breza. O seu primci-
46 Vd. o episodio ele Dido e Encias, in Virgílio. Eneida, livro VI. vv . 469-474: «Ela, scrn ro amante nao poderia te-la cobic,:ado com maior veeméncia do que me es-
se voltar. fita no chao./ só mosrrava a firmeza que tcria I se da mais dura pedra fosse tor<rava cu, 0 seu segundo amante, por seguir o andamen~o dos p.ensame~1tos
fcita, ! se cm mármore Marpesso ali cstivcssc. /Por fon l;í parle e para o bosque fogc / do seu cora<;:ao. No entanto, devo a verdade confessar nao ter sido a mmha
1 onde Siqueu, o scu esposo outrora. I sofre da mesma dor, igual amor», in Obras de pcrspicácia ou esperteza que me colocou na sua pista, mas sim uma circuns-
virgtlio: 811cólicm. Geárgicas, Eneida, tradu~ao do latim de Agostinho da Silva, Lis- lancia casual que a ser aqui contada resultaria excessivamente prolixa. Vive-
boa: Temas e Debates. 1999, 2.'' cdicño. p. 299.
47 Vd. Hegel. Die wissenschaft der Logik IA Ciencia da Lógica, A Lógica Objectiva]
'ª cm Extocolmo, travara aí conhccimento com um conde frances, tendo
ll: in \Vede, vol. IV. pp. 70-71 . Jubilüums, vol. IV. pp. 548-549. e Suhrkamp . vol. VI. '>ido vílima da dcslealdade das eslimávcis quali<la<lcs destc. Ain<la agora é
pp. 77-78. como \e cstivcsse viva, a minha frl!nte. A primcira ve¿ que a vi nao produziu
48 «Magdalene-Stiftelse» , urna instituicáo criada para albergar prostitutas. l'lll mim propriamc111c imprc!-.sao alguma. Era ainda bonita, com um porte
"36 S0n:11 I< ic1 kcgaard Ou Ou. Um 11111!!111l·11to de Vidu 237

altivo e distinto. nao falava muito , e c11 lc1 i:i provavclmcntc rcgrcssado lfto invés, nao estando predisposta para tal, mas querendo entretanto sugerir-me
inrcirado como quando chcgara, se urna casualidadc nño me tivesse feito que a sua alma eslava entregue a mágoa, pcgava-me na máo, olhava-rne e
testernunha do scu segredo, A partir desse instante. adquiriu significacáo dizia: «eu era mais fina do que um junco, ele era mais magnífico do que o
para rnim; oíereceu-rne urna imagern tao vívida de urna Elvira que nao con- cedro do Líbano»51• Nao sei onde tcria ido buscar estas palavras; mas cstou
scguia cansar-me <le a olhar. Urna noite estive com ela numa festa em socie- convencido ele que, na altura em que Caronte vicr no seu barco para a Iazer
dadc e, tendo eu chegado primeiro do que ela, esperara já um pouco quando arravessar o reino dos mortos52, nao encontrará na sua boca o óbolo regi-
me dirigi a janela para ver se ela chegava e, um instante depois, a sua carru- 111cntaclo, mas sirn estas palavras nos lábios: «eu era mais fina <lo que um
agcm parou <liante da porta. Deseen da carruagern e o seu traje causou-me junco, ele era mais magnífico do que o cedro do Líbano!»
desde logo urna impressño particular. Vestía urna fina e leve capa de seda, Ora El vira nao consegue dcscobrir Don Juan, e cabe-lhe pois encontrar
parecida como dominó com que na ópera Elvira se mostra na cena do bai- sozinha uma saída para a complica9ao da sua vida; tem de voltar a si. Mu-
lc49. Entrou 11961 com urna dignidade elegante, realmente imponente, rrazia dou de companhias, e fica assim afastada a ajuda que talvcz desse algum
urn vestido de seda preta, estava vestida com o mais elevado bom gosto e contributo para fazer soltar a míigoa. 1 ·1971 As suas novas companh ias nada
entretanto extremamente simples, sern jóias que a ornamenrassem. o colo conhccem da sua vida anterior, e nada pressentem; pois o seu exterior nada
descoberto, a pele mais branca do que a neve, nunca vi um contraste tao 1cm de notório ou de assinalável, nenhuma marca de mágoa, ncnhuma pla-
belo como este, entre o seu vestido de seda prcta e o scu colo branco. Ve-se ca a avisar toda a gente de que aqui há mágoa. Consegue dominar qualquer
bastante arniúde um colo descobcrto, mas é tao raro ver-se urna jovcm que cxpressao, pois a pcrda da sua honra sabe bem ensinar-lhe tal coisa; e em-
renha realmente regace. lnclinou-sc dianre de todos os convidados e, quando bora nao atri.bua um precto alto ao juízo dos homens, pode pelo menos
a seguir o anfitriáo se dirigia para a cumprimentar, fez urna reverencia mais prescindir das suas condolencias. Ora, assim, fica Lucio em ordem e cla
profunda. mas aposar de os scus labios se abrirern num sorriso. nao ouvi pode contar, eom tocia a certeza, fazer a sua vida scm despertar suspeitas na
qualquer palavra da parte dela. Para mirn, a sua condura era vcrdadcira no gentalha curiosa, que na generalidade é Llio estúpida 4uanlo curiosa. Está
mais alto grau, e eu, que era o seu confidente, no silencio da minha mente, cntüo na legítima e incontcstacla posse da sua mágoa, e só se houvesse de
apliquei-lhe as palavras proferidas pelo oráculo: oüre MyeL oüre XQ'ÚJttfl, 1cr tanto infortúnio que cleparasse com um contrabandista profissional, só
úA.A.ó. or¡µ,c::cíve1.50. Aprendí muito corn ela e, entre outras coisas, também cntao 1cria a recear uma inspec-;ao mais rigorosa. O que se passa realmente
corroborei a obscrvacáo que multas vezes flz: urna pessoa que esconda urna no seu interior? Sente mágoa? Se scnte! Mas como luí-de designar-se esta
mágoa, com o passar do tempo, encontra urna palavra singular ou um pen- mágoa? Chamar-lhe-ia cuidados eom as neccssidades da vida53; pois a vida
samento singular. com o qual conseguía designar hielo para si mesma, ou dos homens nao consiste apenas em comer e beber; também a alma exige
para o singular que nisso fora iniciado. Urna tal palavra ou um tal pcnsarncn- que a sustentem. É jovem e, con tu do. as suas reservas vitais consumiram-
to como um diminutivo em relacáo a prolixidadc da rnágoa, é como um
é
sc, mas daí nao resulta que venha a morrer. A este respeito. preocupa-se
tratamento carinhoso que se cmprega no uso diário. Estubclccc amiúdc urna cm cada dia como día de amanha. Nao pode deixar de o amar e, nao obs-
relacáo completamente acidcntal com aquilo que designa, e fica quase sern- tante, ele enganou-a, mas se ele a enganou. deveras que o amor dela54
pre a dcver a sua origcm a urna casualidade. Depois de haver ganho a con- p~rde a respectiva fon;a nutriente. Sim. se ele nao a tivcsse enganado, se
fianca dela, de ter licio sucesso na derrota da sua suspeicño para comigo, um poder mais alto o tivesse anebatado, deveras que ela estaría tao bem
porque urna casualidade a fez cair no meu poder, depois de ela me ter con- cuidada como qualqucr rapariga pode para si desejar, visto que a lembrarn;:a
tado tudo, percorri com ela muitas vezes toda a escala de disposicóes. Ao
51 Vd. Salmos. 92: 12: «0 justo tlorescerá como a palmcira: crescerá como o cedro no
49 Provávcl alusáo ao traje de Donna Elvira na cena do baile (Don Giovanni, Acto I, Líbano»: e Salomao. 5: 15: <<As suas pernas. como col unas de mármore, fundadas sobre
cena 19: Kruse, Acto I, cena 19, pp. 59-60), usado na encenacño dinamarquesa a que base~ de ouro puro: o seu parecer, como o Líbano, excelente como os cedros.»
K ierkegaard assistiu. 52 Ca ron te transporta va os defuntos na sua barca atsavés do río J\queronte até chcgarcm
50 Fragmento «Heráclito B 93» atribuído ao filósofo como rendo sido proferido pelo ao n.:i110 de Hades. bra costume colocar uma moeda, o óbolo, sob a língua do cadáver.
oráculo tic Delfos, Na traducáo de Alcxandrc Costa: «O senhor, de quemé o oráculo. ou duas. urna em cad:i olho, para pagar a viagem.
aquele em Delfos, nao diz nem oculta, porém, assinala». Vd. Fragmentos rontcxtuali- 5"\ No original, «Nll!ri11f.:.1sor8». substantivo formado a partir de «Ncering>>. i. e .. «ali-
zados. edicño bilinguc. prefacio, aprcscntacño. traducáo e comentarios ele Alcxandre 111c1110». c «Sm"K», i. c., «tnágo<1», «cuidado~».
Costa. Lisboa: lmprcnsa N<1cional-Casa da Moeda. 2005, p. 111. 5.1. /\qui. «/Jls/..m•».
238 Ou 011. U111 1 111r1111·1110 (11· Vidtl 239

de J?on Juan valia rnuito rnais do que muitos esposos cm vida. Mas quando «Enganou-uic? Nuo! l luvin-rne prometido alguma coisa? Nao. O meu
abdica do seu amor, entáo, é levada a cair na mcndicidade, eruño, terá de Juan nao era pretendcntc nenhurn; nao era um pobre ladráo de galinhas, por
regressar ao convento para escarnio e vergonha seus. Sirn, pudesse ela com tal coisa urna freira nao se rebaixa. Nao me pcdiu a máo, estendeu-rne a
isso comprar para si aquele amor ainda mais urna vez! Assim vai vivcndo. rnño dele, agarrei-a. olhou-me, fui sua, abriu-rne os bracos, pertenci-lhe.
Odia, que agora o presente. parecc-lhe a inda como capaz de ser suporta-
é
l~llcostei-rne, enlcci-rne nelc como urna planta, repousci a rninha cabeca no
do, há ainda um resto de que pode viver; mas do dia scguinte, ela sente scu peito, contemplei essc rosto todo-poderoso com o qual dominava o
temor. Entáo, cisma e volta cismar, agarra-se a qualqucr saída e, contudo, mundo, e que todavía repousava cm mim como se. para ele, cu fossc todo
nenhuma encentra, e nunca consegue assirn chegar a sentir mágoa de urna o mundo: como urna enanca de mama suguei a plenitude, a riqueza e a
maneira consequentc esa, porque continua a procurar como há-de ela sen- Iclicidade suprema. Posso exigir mais? Nao era eu sua? Nao era ele mcu?
tir mágoa. E se ele nao fossc meu, 11991 seria eu menos sua por isso? Quando os dcu-
«Qucro esquecé-lo, erradicar a imagcm dele da minha alma, ser eu qucm ses vagueavam sobre a terra e se apaixonavam por mulheres, foram fiéis as
me dcvassa corno urn fogo devorador, e qualqucr pensamcnto que lhc per- suas amantes? E todavía a ninguém ocorre dizcr que eles as enganavam! E
tenca há-de arder, só cntáo poderci salvar-me, é ern minha legítima defesa, porque? porque se dizque urna rapariga deve ficar orgulhosa de ser amada
se nao erradicar cada um deles, mesmo o pcnsarnento mais remoto sobre por um dcus. E o que sao todos os deuses do Olimpo diantc do meu Juan.
ele. ficarci cntáo perdida, s6 assirn é possível que seja eu propria a E nao havcria eu de estar orgulhosa, haveria eu de rcbaixa-lo , deveria eu
salvaguardar-me. Eu propria - o que este rneu 11981 eu? mcsquinhez e
é
ultrajá-lo cm pensamento, pcrmitindo-lhe que este o sujeitassc as apcrtadas
'.11i~éri~, fui infiel ao meu prirnciro amor, e haveria cu agora ele reparar cssa e miserávcis lcis que se aplicam a gencralidade dos homens? Nao, qucro
infidelidade tornando-me infiel ao scgundo?» sentir-me orgulhosa por ele me ter amado, era rnaior do que os dcuses, e
«N~o. odiá-Io-ci, só no ódio pode a minha alma encontrar satisfacño, só quero honrá-lo rcduzindo-me eu mesma a nada. Quero arná-lo porque me
no ódio posso encontrar rcpouso e ocupacáo. Tecerei urna corca de maldi- pertencia, amá-lo porque me abandonou, e continuo ainda a ser sua, eguar-
\:Ü~s com ludo aquilo que rno faz recordar. e direi por cada beijo: maldito darei o que ele dcsperdi9ar.»
sejas, e por cada urna das vezcs que me abracou: dcz vezes maldito sejas, e «Nao, nao posso pensar nele: de todas as vezes que quero recordar-me
por cada urna das vczes que jurou que me ama va, hei-de jurar que o odiare]. dele. de tocias as vez.es que o meu pensamcnto se aproxima do esconderijo
Será esta a rninha obra, o rncu rrabalho, a isso me consagro; habituei-me 110 da minha alma onde habita a sua rnemória, é entao como se cometesse um
convento a rezar o rosario. e continuo assim a ser urna freira a rezar marinas novo pecado, sinto uma angústia, urna angústia indizívcl, urna angústia
e véspcras. Ou talvez houvesse de contentar-me corn o facto ele ele me ter como aquela que me invadía no convento, quando sentada na minha cela
amado urna vez, talvez houvessc de ser urna rapariga ajuizada que nao 0 solitária espera va por ele, com pensamentos que me at.erroriz.avarn: o seve-
rcpelisse com altivo dcsprezo, agora que sei que era impostor, tal vez houvcs- ro dcsdém da abadessa, a puni<,:ao Lerrível do convento. a minha ofensa a
se de ser urna boa dona de casa que sabe economizar e esticar tanto quanto Oeus. E nao fazia entretanto esta angústia parte disso? O que seria do mcu
possível u que pouco. Nao, odiá-Io-ei , só dessa forma conscguirei desligar-
é
amor sem ela! Ele nao era de facto meu esposo, nao receberamos a bcn9ao
-me dele e demonstrar a mim mesma que dele nao necessito. Mas ficar-lhe-ei da igreja. os sinos nao dobrararn por nós, ncm soaram os hines e. conludo,
a devcr algurna coisa, quando o odcio? Nao estarei a vivcr as custas dele? o que eram toda a música e todo o cerimonial da igreja, comparados com
Pois que coisa alimenta o rneu ódio, a nao ser o meu amor por ele?» aquela angústia, como havcriam eles de conseguir prcdispor-me! - Mas
«Nao era impostor, nao fazia a menor ideia daquilo que urna mulher ele cntao chegou e a desarmonía tia angústia dissipou-sc na suprema e feliz
pode sofrer. Se tivesse sido essa a sua ideia, nao me teria abandonado. Era harmonía da seguranrya, e apenas frémitos suaves agitavam voluptuosamen-
um homem, b~stava-se a si própriu. Serve-me entáo isso de consoló? Segu- te a 1ninha alma. Haveria eu entao de temer esta angústia, nao é claque mo
ramente que srrn, pois o meu sofrimento e o meu tormento comprovam-me recon.la. nao é ela o anúncio da sua chegada? Se eu pudesse recordá-lo sem
o quanto eu fui feliz. tao feliz que ele ncm sequer tcrn qualqucr ideia disso. esta angústia, nao cstaria entao efectivamente a recordá-lo. Ele chcga, ofc-
Por que motivo, entño, me queixo eu, porque um homern nño é como urna rece silencio, domina os espíritos que querem arrancar-me dele, sou sua,
muJher, nao é tao feliz quanto ela, quando ela feliz, e nao tao infeliz
é é :-.umamente feliz. com ele.))
quanto ela quando ela ilimitadamente infeliz, porque a felicidade dela nao
é
Se eu imaginasse alguém cm perigo no mar, desintcrcssado da vida, que
tinha limites.» continuassc a bordo porque havia alguma coisa que qucria salvar e que nao
241
240 ~01 t•11 K ic1 kcguard Ou Ol1. U111 h.1r111~·n1111k Vid11

era capaz de salvar, porque eslava indeciso acerca do que havcria de salvar, parcela de tcrra corn cssa especie de flores, e tcrás trabalho de máos para
obtenho assim urna imagem de Elvira; está cm pcrigo no mar, está prestes toda a tua vida.
a afondar-se, mas isso nao a preocupa, nao repara nisso, está indecisa acer- Já foi comenrado58 como era notório que enquanto a lenda de Don Juan
ca do que há-de salvar. fala de mil e tres seduzidas só em Espanha, a lenda de Fausto fala apenas
de urna única jovem seduzida. Valerá certamente a pena nao esquecer esta
obscrvacño, pois é significativa para o que adiante se scgue, guiando-no~<>
12001 na deterrninacáo do que próprio da mágoa reflexiva de Margarcte. A
é

3. Margarete= primeira vista poderla designadamente parecer que se tratava apenas da


difercnca entre El vira e Margarete , cnquanto difcrenca entre duas individu-
Conhcccmos esta menina do Faust de Goet.he. Era urna rapariguinha alidades distintas que haviam passado pelo mesmo. A difercnca entretan- é

burguesa e nao cstava, como Elvira, destinada ao convento; mas fora, no to multo mais esscncial e, contudo, nao se fundamenta tanto na distincáo
cntanto, criada no temor a Deus, mesmo se a sua alma fosse demasiado entre os seres femininos quanto na distincáo essencial que tcrn lugar entre
infantil para sentir a seriedade, como eliz Goethe de inigualável maneira: um Don. Juan e um Faust. Tern de ha ver. j~í desde o início, urna difcrenca
entre urna Elvira e urna Margarctc, porquanto a rapariga que venha a afec-
Halb Kinderspiel, tar um Fausto tcm de ser cssencialmente diferente da rapariga que afecta
tlalb Gou i111 l-ler-;.en.56 um Don Juan; mesmo que eu imagine 12011 que se trata da mesma rapariga
a dar que fazcr a atencüo de ambos, havcria todavía urna outra coisa: urn
Aquilo que ncsta rapariga amamos, cm particular, é a grácil sirnplicida- deles sentía-se fascinado de maneira diferente do outro. A difcrenca, que
de e hurnildadc da sua alma pura. Logo na prirncira vez em que ve Fausto, assim apenas estava presente como urna possibilidadc, ao ser colocada cm
scntc-sc demasiado pequena para ser amada por ele, e nao pela curiosi- é
relacño ora com Don Juan, ora corn fausto, descnvolvc-se até atingir urna
dacle de vira saber se Fausto a ama que arranca as pétalas do malmequer, realidade completa. É cerro que Fausto designadamcnte urna reproducáo
é

mas sim por humildadc, por se sentir demasiado pcqucna para escolher e, ele Don Juan; mas o facto ele ser urna rcproducáo Iaz justamente corn que
por isso, inclina-se diantc da sentenca oracular de um misterioso poder. ele próprio scja, por esséncia. diferente do outro no estadio da vida em que
Sim, querida Margarete! Goethe traiu o motivo por que arrancavas as pode ser designado como Don Juan; pois, com efcito , reproduzir urn outro
pétalas ao proferir estas palavras «ama-me, nao me ama»57; pobre Marga- estadio nao dizer que passa simplesmeníc a ser esse estadio, mas antes
é

rete, podes até prosseguir corn esta tarefa, mudando simplesrnente as pa- que se passa a ser esse estádio contendo ern si todos os momentos do está-
lavras: «enganou-rne, nao me enganou»; podes até cultivar urna pcqucna dio anterior'". Por conseguinte, cmbora desoje ardentementé0 o mesmo
que um Don Juan, desoja-o porém de um outro modo. Mas para que ele
vcnha a conseguir desejar de urn outro modo. também isso tem de estar
55 O autor nao utiliza o nome da personagem 110 original alemáo, i. e .. mas sim o nome
com que a personagem [icou conhecida na traducáo dinamarquesa. «Margrctc». presente de outro modo. Há momentos em Fausto que fazem do método um
56 E111 alemiio no original: «chelo de brinquedos /e já de Deus o coracño». na traducáo outro, tal como tambérn há momentos em Margarete que tornam necessario
de Joáo Barreruo, Fw1s10. Lisboa: Círculo del .citorcs, 1999, p. 2l6. Edi<¡:ao consultada um outro método. O método de Fausto está nutra vez na dependencia da
pelo autor: J. W. Gocthe. Goethe 's Werke. vollstitndig« Ausgahe lettler Ha11d [Obras de sua volúpia, e a sua volúpia é distinta da de Don Juan, apesar de haver urna
Goethe, bdi«iio Completa na Última Revisaol, vols. 1-LX, Estugarda. Tübingen, 1828-
-1842; vol. xn. VV. 3781-3782, p. 199. Vd. também Faust. J::ine Tragodie in Coethes
58 Vd. cm especial a sec<¡:ao l. «A Genialidadc Sensual Determinada como Sedu<;:ao»,
Werke, Hwuhurger Ausgahe lObras de G .. E<li<;ao de 1 Iamburgol. vols.1-XIV, HallJbur-
go: Cluistian Wegner, 1948- l 960; vol. UI (Drwna1isc/1e Dichtungen. Ers/er Band [Po- no capítulo «Üs bstfüiios Eróticos lmediatos ou o Erótico-Musical».
59 Vd. os parágrafos conclusivos do preambulo as tres sec<;:i:it:s que descrcvem os u·cs
emas Dramáticos. Primeiro Volumel). 1949, p. 120. A obra será doravante referida
apenas por Fousf !; as duas edi96es. por Werke e Hamburger Ausxabe. respectivamente; estádios do descjo no capítulo <<Os F.stádios Eróticos !mediatos ou o Erótico-Musical».
a tradu«iio portuguesa, por Fauslo. pp. 110-tll.
57 No texto original alemao, lC-se: «Er lieb1 mich ­ liebl mich 11ich1», i. e., «ama-me 60 Todas as ocorrencias de «desejo» e de <~desejo ardente», ou de «dcsejar ardentemen-
le I com ardor». na sec'<ªº dedicada a Marga rete. corrcspondem no original. respectiva-
- nao me ama». lendo-se na tradu<;;ao portuguesa se lé: <<Mal me 4uer - bem me
quer>>. Vd. Fausr !, v. 3182, in Werke, vol. XII, p. 156, Hamburger A11sgabe, vol. IIJ. mente a «Allroa>) e «atlrua». a exccp9ao da ocorréncia do último parágrafo <leste capí-
p. JOl; Fausto. p. 184. lUlo. devidamenlc n-;~inal;tda.
242 24J

scrnelhanca e. sencial entre elas. Na generalidadc, eré-ve estar a dizcr urna No Fuust dé Oocthc, Meplii.1·10p/1ele.1· faz com que ele veja Margarctc
coisa muito perspicaz quando se destaca o facto de Fausto acabar por se uum cspclho. Dclcitarn-sc-lhc os olhos com cal contcmplacáo, mas ~ao é
lomar um Don Juan e. com isso, diz-se todavía muitíssirno pouco, dado que todavía a bclcza o que ele deseja com ardor, se bcm que a receba conjunta-
importa aqui saber com que significacño Fausto se transforma cm Don mente. o que ele clescja com ardor é a alegria pura. impcrturbávcl, rica. e
Juan. Fausto é um demonio tal como um Don Juanrrnas , urn demónio imcdiata de urna alma fcminina, mas nao a dcseja de urna mancira espiri-
superior. O sensual só adquire significacño para ele depois de ter perdido tunl, mas antes sensual, Em cerio sentido. tarnbém deseja como Don Juan,
tocio urn mundo anterior. mas a consciencia dessa perda nao se apagou. desojando todavía de urna maneira completamente diferente. Porvet~tu~a
está continuamente presente e. portanto, no sensual nao procura tanto o urn qualquer professor extraordinário63, convencido de que ele proprio
desfrute como procura a divcrsño, A sua alma duvidantc nada encentra havia sido um Fausto, dado que lhe teria sido imposstvel chegar ele outro
onde possa repousar-sc, e agarra agora o amor?'. nao porque acredite ncle , modo a professor extraordinário, observaría aqui que Fausto exige dcscn-
mas por ele conrer urn momento presencial, no qua! há um instante de re- volvirncnto espiritual e cducacño por parte da rapariga que vcnha a dcsper-
pouso, e urna aspiracño que distrai e desvía a atencño da inaniclade da dú- rar o scu de cjo. Porvcntura urn número maior de professorcs extrnord~ná-
vida. A sua volúpia nao contém pois a «l leiterkeil»62 que distingue um Don rios acharia que se trata de urna obscrvacíío brilhantc, e as respectivas
Juan. O rosto dele nao é sorridcntc, a fronte nao está desanuviada, e a ale- esposas e namoradas inclinariam a cabcca cm sinal de aprovacño. Entretan-
gria nao é sua companhcira; as jovcns raparigas nao dancarn nos scus to, falhararn redondamente. visto que Fausto nada desejaria com meno.
bracos, antes ele que as angustia até si. Por isso, o que ele busca nao é
é ardor. Urna rapuriga, a quern se desse o nornc de educada, situar-sc-ia d~n-
meramente a volúpia da sensualidade, o que ele desoja com ardor é antes a tro da mesma relarividade tal como ele próprio e, ernbora para ele tal corsa
imcdiaticidadc do cspírito. Tal como as sombras no mundo dos monos ncm scquer tivcsse significacño ncnhuma, ncm scqucr seria nada. Com a
quando se apodera vam de alguérn vivo 1 he sugavam o sangue , con seg u indo sua migalha de cducacño tal vez tentassc o vclho rnc-,t~c da d~vi~a a lcvá~la
agora vi ver cnquanto o sangue as aqucccs e e alimentasse , também Fausto l'Om ele para a corrcntc onde clu deprcssa desespcnmu. /\o rnves, urna JO-
procura urna vida imecliata que o rcjuvencsca e fortalecu. E 12021 onde será vcm inocente rica dentro de mitra relatividaclc e, por isso. nada é, cm ccrlo
mclhor encontrar tal vida do que numa jovcm rapariga. e como poderá ele 12031 sentido, pcrante fausto e, no entanto, noutro <,entido, é imensamcntc
sugar tal vida mais intcirarncnte do que no abrace do amor? Tal como a nrnis, dado que cla é imcdiaticidaclc. Só dentro desta imcdiatieidude ela se
ldade Média Iala de Iciticciros que sabiam como preparar um elixir da ju- con-;titui como alvo do desejo ardcntc dele e ulirmci, por bso. que ele de-
ventudc utilizando para tal o coracño de urna enanca inocente, iambérn é ... cja a ime<liuticidadc nao <le uma maneira espiritual, mas sim sensual.
deste Iortalccirnento que a sua alma cxausta necessita, a única coisa que Gocthe intcligiu tudo islo perfeitamente e, por isso. Margarele é urna
por um instante pode saciá-lo. A sua alma doente nccessita daquilo a que rapariguinha burguesa, urna rapariga a quem poderíamos ter quase a te1lta-
podcríamos chamar os prirnciros verdores do coracüo; e a que outra coisa \ªº de chamar insignificante. Dado que é de impo11fincia para a mágoa de
haveria cu de comparar a prima juventudc da inocente alma fcminina? Se Margarcte, vamos agora examinar mais.de pcrto como havcrá Fa~sto de t:r
eu dissesse que como uma flor. di ria muitíssimo pouco, já que é mais, é
é produz.ido efeito sobre eta. Os trac;os s111gulares rcal¡;ados por (1oethe sao
um desabrochar; a saúde da csperanca, da fé e da confiunca brota e flores- obviamente de grande valor: mas creio todavía que, a bcm da complctuúc.
ce com rica multiplicidade, e suaves anscios movem os finos botócs e os há urna pcquena modifica<;ao que tem de ser pensada. Na sua. inocent.e
a
sonhos dño sombra fecundidadc destcs, É assirn que urn Fausto a rnovc, -;implicidade, Margarcle depressa repara que, em Fausto. no que d1z respe1-
acena a sua alma inquieta como urna ilha de paz no mar tranquilo. Ninguérn a
10 fé. alguma coisa nao bate eerto. Em Goethc. isto surge na pequena
melhor do que Fausto sabe quanto isto é efémero; nao acredita nisso, tal l.'cna da catequiza¡yao64, inegavelmente uma excelente inven<;iio do poeta.
como nao acredita em coisa alguma; mas no abrace do amor. ele convence- 1.cvanta-se agora a questao de saber quais as consequencias que este ex~mc
-se de que existe. Só a plenitude da inocencia e da puerilidade sao capazes pode implicar para a sua relac;ao recíproca. Fausto mostra-sc como duv1da-
de reconfortá-lo por um instante.

h1 J\lu,ao a Martcnscn. Vd. nota 80 no capítulo «ÜS Estádios Eróticos lmcdiato~ ou o


61 Ncsta ocorréncia de «amor», bem como nas duas seguintes. IG-sc no original «El­ F1 <íl ico Musical>>.
skov», (l-1 Vd. Faust f. vv. 341.1 ll68. 111 Werkc, \OI. 11. pp. 60~6l. lln111/11ir¡¡er Aus¡¡abe. vol.
62 Em alernño e entre aspas no original: «jovialidadc». 111, pp I 09 l lO; ¡.'uu.110, ¡lp 197 I 99
244 K ll'' kegnurd
Sp1 ~·11 245

dor, e parece que Gocthe quis dcixar que Fausto continuassc a ser duvidu- através do qual lodos os momentos se transforrnam em momentos negati-
dor também diante de Margarcte, pois nada mais sugcriu a cssc respeito. vos. Gla, ao invés. tcm o ponto da conclusáo, tema puerilidade e a inocén-
Esíorcou-se por afastar a atcncáo dela de todas as investigacñes sernelhan- cia. Portanto, nada é mais fácil para ele do que equipá-la. A sua prática da
tes, e por fixá-la única e exclusivamente na rcalidadc'" do amor. Mas. por vida cnsinou-Ihc bastantes vczcs como aquilo que expunha como dúvida
um lado, creio que, urna vez surgido o problema. seria difícil para Fausto produzia nos outros o clcito de verdacle positiva. Ele encontra entáo alegria
e. por outro lado, creio que nao está certo do ponto de vista psicológico. :10 enriquece-la agora com urn conteúdo rico de intuicáo, toma tocio o ador-
Nao é devido a Fausto que me deterei mais neste ponto, mas sim dcvido a 110 imediato da te, encentra alegria ao enfeitá-la coma Ié, porque lhe asscn-
Margarete; pois se ele nao se houver mostrado <liante dela enquanto duvi- La bem e fica assirn mais bonita a seus olhos. Em simultáneo, retira daí a
dador, a mágoa dela tcrn mais um momento. Portanro, Fausto é duvidador, vantagem de a alma dela ficar cada vez mais firmemente ligada i\ sua. Ela
mas nao é um tolo vaidoso que queira (azer-sc passar por portador de sig- ncrn sequer propriamente o entende: liga-se cada vez rnais a ele como urna
nificacáo duvidando daquilo cm que os outros acreditam; a sua dúvida tcm enanca: o que para ele dúvida. para ela é verdade incontestável. Mas
é

urn fundamento objectivo ncle próprio. Seja isto dito cm honra de Fausto. enguanto Fausto edifica assim a fé dela, corrói-lhe ao mesmo tempo essa
r .ogo que ele, ao invés, pretende impor a sua dúvida aos out ros. pode f'acil- fe, pois ele próprio acaba por se tornar um objecto de fé para ela, um deus,
mente urna paixño impura imiscuir-se. Logo que a dúvída é imposta aos nao urn homem. Só tcnho aqui de csforc;:ar-mc por evitar um mau entcncli-
curros, encentra-se nisso urna invcja que se alegra quando os despoja da- mcnto. Podcria parecer que l'a<;o de Fausto um jgnóbil hipócrita. Nao é de
quilo que tinharn por garantido. Mas para que cssa paixño da inveja venha 10<.10 o caso. É a própría Grete qucm trouxe o assunto ~1 baila; ele abarca de
a ser despertada no duvidador, rcrn de ser possível falar de urna oposicño um só relance a magnificencia que ela ere possuir e ve que esta nao pode
por parte do individuo visado. Onde nao coubcr [alar de oposicño, ou onde -;ubsistir diante da sua dúvida, mas nao lhe falta a coragem para a destrui_r,
nao for todavía bo11i10 pensar nisso, acaba aí a rentacño. Este último é o e agora é gra9as a uma certa benevolencia que assím se comporta. O amor
caso de urna rapariga jovcm. Diantc dela, o duvidador está sernpre em 12041 que ela sente dá a Orctc a significa9ao dele e, contudo. continua sendo
apuros. Despojá-la da sua fé nao é tarcfa para ele: pelo contrario, ele sentc quase uma crian9a; ele 12051 condescende coma puerili<lade dela, e alegra-
que é apenas por via da fé que ela possui a grandeza que tern. Sente-sc se ao ver como Margarete se apropria de tudo. Para o futuro el<:? Margarete
humilhado, visto que há nela urna exigencia natural para com ele, para que tuclo isto traz entretanto consequencias das mais penosas. Se Fausto se ti-
ele seja o seu apoio, conquanto ela propria se tornassc vacilante. Sim, um vcssc mostrado a Grctc como duvidador, mais tarde eta teria porventura
duvidador desajcitudo, um talso sábio, poderla muito bem encontrar satis- conseguido salvar a sua f'é, entao, teria rcconhccido com toda a humilclacle
fac,;ao por extorquir a fé ele urna rapariga, e alegria por apavorar mulhcrcs e que os pcnsa111c111.os arnbiciosos e arrojados ele Fausto nao eram para ela,
criancas, visto que nao é capaz de aterrorizar homcns, Mas isto nao se apli- tcr-sc-ia segurado bem ao que tinha. Ao invés, devc-lhc agora o conteúdo
ca a Fausto; é demasiado grande para tal. Portante. é possível estar de da fé e, contudo, quando ele a abandona, ela int.t:ligc que ncm ele próprio
acordo corn Goethe quanto ao facto de fausto trair a sua dúvida urna pri- acreditava nisso. Enquanto ele esteve com ela, nao descobriu a dúvida,
meira vez, porérn, ao invés, nao creio de todo que lhe suceda o mesmo na agora que ele partiu, tudo para ela se altera, ve dúvida em tudo, uma dúvi-
segunda vez. Isto é de grande importancia no que diz respeito a
concepcáo cla que nao é capaz de dominar, pois continua a pensar conjuntamente na
de Margarete. Fausto vé prontamente que toda a significacáo de Margarcte circunstancia ele o próprio Fausto nao haver conseguido controlá-la.
assenra na sua inocente simplicidade; se lha tirarem. Margarete ern sí nao é Também segundo a co11ccp1rao de Goethe. aquilo com que Fausto prende
nada, nada é para ele: por conseguinte, tem de ser conservada. Ele duvi- é
Margaretc nao é tanto mn talento sedutor de Don Juan. mas sim a enorme
dador, mas. nessa qualidade, tem todos os momentos do positivo em si, supcrioridade de Fausto. Por isso. nem scquer é propriamente capaz de per-
caso contrário seria um péssimo duvidador. Falta-lhc o ponto de conclusño, ceber, como ela diz de maneira tao estimável, o que Fausto pode nela encon-
trar de extraordinário66• Portanto, a primeira impressao que ele lhe causa é
65 Vd. notas 32 e 44 no capítulo «O Rctlexo do Trágico Antigo no Trágico Moderno»,
avassaladora, diante dele, fica mesmo reduzida a nada. Ela nao é de todo
e rambém outras ocorréncias esparsas. assinaladas nas notas 68, 69, e 105 cm «Diario perten9a ele Fausto, no sentido em que El vira pertence a Don Juan, pois esta
do Sedutor». As ocorréncias assinaladas nas notas 39 e 44 do capítulo «A Rotacño de
Culturas». bcm como a nota 15 no capítulo «Ü mais Infeliz», constituem os dois casos 66 Fc11w !, vv. 3211-3216. in Werke, vol. 11. pp. 60-61. Hambw:~er Ausgabe, vol. IIL
mais relevantes do uso de «Realitet», pp. 109-110: Fn11.1f(), pp. 197-199.
246 Ou Ou. U111 1•111!'1111,.1110 tk Vid:i 247

é todavía a expressño ele um subsistir autonomamcmc cm rclacño a efe, Podcria parecer que. no caso ele Margarete, te ria ele ser mais difícil por a
Margarete antes desaparece por completo em Fausto; rambém nao rompe rcflexíío cm rnovirneruo; aquilo que a trava é o sentimento de que simples-
corn.o céu par~ lhe pertencer, pois isso encerraría urna justificacáo perante mente nada era. No entamo, reside aqui outra vez urna colossal elasticidade
ele; rrnpcrceptivelmem-, sern a mais remota reflcxüo, Fausto torna-se tudo dialéctica. Se eta conseguisse segurar o pensamento ele que, no mais rigoro-
para ela. Porém, como desde o início cla nada é, se me é permitido dizé-lo, so sentido, nada era, entáo, a reflexáo ficava excluída, cntño, também ela
t?rna-sc.c~tda vez menos, quanto mais convencida estivcr da quase superio- niio havia sido enganada; pois quando nada se é, entáo, níio há qualqucr
ridade d1v111a de Fausto; cla nada é e sirnultaneamenrc limita-se a ser através rclacáo, e onde nao há qualquer relacáo, também nao pode falar-se de enga-
dele. O que Goethe diz neutro lugar acerca de Hamlet67, que a sua alma 110. Até aqui, cla está em sossego. Este pensamento nao se deixa todavia
estava para o corpo como urna semente de carvalho plantada num vaso de segurar. antes varia instantáneamente na sua contracli9ao. Nada ser é tao-
flores, a qual acaba dcsse modo por rebcntar o recipiente, aplica-se ao amor -somcnte a exprcssao para o facto de codas as infinitas cliferen9as do amor
de Margarete. Fausto é demasiado grande para cla e o amor de Margarete Lercm sido negadas e, precisamente por isso, é a exprcssao para a absoluta
t~rá de acabar por Ihe dcspedacar a alma. E essc instante nao pode tardar, validade do seu amor, na qual reside por sua vez a respectiva justificar;íio
visto que Fausto sente muito bcm que cla nao pode continuar nesta irnedia- absoluta. A conduta dele nao é meramente urna impostura, mas urna ubsolu-
ticidadc; nao a conduz agora as mais altas rcgiñcs do cspíriro, pois é dessas la impostura. porque o amor dela era absoluto. E nao lhe é possível voltar a
rcgiócs que fogc; deseja-a sensualmente - e abandona-a. ter aquí repouso, visto que, como ele foi tudo para eta, Margarete nem ser:í
Por conscguintc. Fausto abandonou Margarcte. A perda dela é tao tcrrível capa1. de segurar esse pensamcn10, sem que seja por intcrmédio de Fausto;
que até os que a rodciarn csqueccrn por um instante aquilo que de curro mas nao pode pcns<í-lo por scu intermédio, porque ele era um impostor.
modo lhes custaria tanto 12061 esqueccr, esquccern que foi dcsonrada; ela Agora que se vai alheando cada vez mais dos que a rocleiam, 12071 comc-
repousa nu.n:a impotencia total, na qual nño lhc possívcl pensar a sua perda,
é <;a o movimento interior. Nao se limitara a amar Pausto com toda a sua al-
e até lhc foi roubada a forca para fazer urna idcia da sua infelicidade. Se ma. tinha sido antes ele a sua fon,:a vital, ela veio 11 existéncia por intermé-
esta condicño pudesse perdurar, cntáo, seria impossível que a mágoa reflexi- dio dele. Jst<.l impli<.:a que a alma dela, quanto a disposi9ao, nao se comova
va surgissc. Todavia, a pouco e pouco, a consolacño dos que a rodeiam de- decerto menos do que a de El vira. antes in1plica que a disposi<;ao singular
volve Margaretc a si propria, dando-lhc um impulso ao pcnsarncnto através se comova menos. Está a caminho de ter urna disposi9ao fundamental. e a
do qual ele entra de novo cm movirncnto: mas assim que se póe ern movi- disposi9ao singular é como uma bolha que sobe das profundezas. que oem
,~~nto, rnostra-se el_:iramcnte que eta nao está en1 condicóes de segurar urna tem for9a para se suster, nem é empurrada por uma nova bolha, desfaz-se
uruca das observacñes do pensamento. Escuta-as entáo como se nao fosse antes na disposi9IT0 geral, a de ela nada ser. Esta disposi9i:io fundamental é
para cla que estivcssern a falar. e ncnhuma dessas palavras trava ou acelera por seu lurno urna concli9ao que é sentida, que nño se exprime numa qual-
o desassosscgo do curso do seu pcnsarncnto. O problema é para cla 0 mes- quer exclamac;ao singular, é inclizívcI, e é baldado o cnsaio levado a cabo
mo, tal como foi para Elvira, pensar que Fausto era um impostor, mas é pela disposic,;ao singular de modo a ergue-La. a elevá-la. Por isso, a clisposi-
ainda mais difícil, porque fausto leve sobre eta uma influencia mais profun- c,;ao total continua a soar em conjunto com a disposic;ao singular, criando-
da; nao era um mero impostor. era devoras um hipócrita; cla nada abandonou -lhe ressonancia sob a forma de impotencia e prostrac,;ao. A disposic;a.o
por ele, mas deve-lhe tudo e possui ainda este rudo até certo ponto, sé que singular encontra expressao, mas nao alivia, nao atenua e, para empregar
agora este rudo mosrra-sc como impostura. E será o que ele disse menos urna expressao da rninha Elvira sueca. a qual é seguramente bem mais de-
vcrdadciro, porque ele proprio nisso nao quis crer? De modo nenhurn e, nao 1101.ativa, se hem que um hornem a conceba aincla menor, a disposic;ao sin-
obstante, para ela, isso é assim, pois foi através dele que ela nisso quis crer. gular é um falso suspiro que dcscngana, nao é como um suspiro ele verdacle,
que é urna movimenta9ao revigorante e benéfica. A disposi9ao singular
67 Vd. Wilhelm Meisters Lehrjahre IOs Anos de Aprendizagem ele W. M.I, We.rke 11cm sequer é tonificante, ou enérgica, para o ser, é demasiado pesado o scu
[Obras], vol. XIX, Livro IV, cap. 13, p. 76: vd. igualmente Goethes Werke. Hamburger
suspiro68.
Ausgabe (Obras de G ., Ed_i9ao de Hamburgo], vols. 1-XIV, Hamburgo: Christian Weg-
ner, _1948-1960: vol. V 11 (Romane und Novel/en, Zweiter Band 1 Romances e Novel/en 1).
1950, ~· 246. Em portugués: Os A.nos de Aprendizagem de Wilhelm Meister, vols. l-IJ, 68 A edi9iío SKS regista «Aa11de1raek», i. e., «suspiro>>, de acordo como manuscrito.
tradu9ao portuguesa de Paulo Osório ele Castro, Lisboa: Relógio D'Água, 1998; vol. 1, cm dc1riincn10 de «Udll)>k». i. e .• «expressfto». termo usado na primeira e na segunda
p. 32.
cdi9oes de En1e11-ll.'ller, aind11 cm vida ele Kicrkegaanl
248 Ou Ou. Um h11¡•111i 11111 d~· 1d:i 249

«Podcrei csquccé-lo? Pode o ribeiro, por mais longc que conrinuc a ele inclinou se para chcgar até mirn, criou-mc com amor", era rudo para
correr, esqueccr a forne. csqueccr a sua nascente , apartar-se dela? Entño, rnim, o mcu dcus, a origcm do meu pcnsamento, o alimento da mínha alma»
teria de parar de correr! Pode a flecha, por mais veloz que voc, csqucccr «Podcrci sentir rnágoa? Nao. nao! Como urna bruma nocturna, a mágoa
a corda do arco? Entáo, teria de parar no seu voo! Pode a gota de chuva, cobre a mínha alma. Oh ' , regrcssa para mím. renunciarci a tí, jarnais cxigi-
por rnais longe que caía. esquccer o céu de onde cai? Entño, tcria de rci pertcnccr-te, scnta-te sirnplcsrncnte junto de mirn, olha-rne para que cu
dcsfazer-scl Poderci tornar-me outra, poderei nascer outra vez de urna ganhe forca para suspirar. fala comigo, fala-me de ti. como se fosses um
mñe que nfío é a rnínha? Poderei csquecé-Io? Enráo teria eu dcveras de cstranho. esquecerci que és tu: fata para que as lágrimas consígam soltar-se.
cessar de ser!» ao sou eu tampouco nada, nem sequer capaz de chorar a nao ser por seu
«Podcrei lembrá-lo'? Pode a minha recordacáo fazé-lo surgir, agora que intermédio!»
ele dcsapareccu, eu que apenas sou a minha recordacño dele'! Esta pálida «Onde poderei encontrar paz e rcpouso? Sobem-rnc os pensamcntos
imagern encvoada, é es e o Fausto que eu adora va'! Recordo as suas pala- pela alma, crgucm-sc um contra o curro, confundcm-sc um com o outro.
vras, mas nño possuo a harpa da sua voz! Lembro-rne das . uas conversas, Quando cstavas junto de mim, obcdcciam ao tcu sinal, brincava cu cntao
mas o meu pcito é demasiado fraco para lhcs ciar corpol A ouvidos moucos com eles como urna crian\:a. cntntn\:ava-os numa grinalda e colocava-os
soarn sem signiflcacáo!» ..,obre a minha caber;a, deixava que ewoa9as1:>em como o meu cabclo sollo
«Fausto! Oh! Fausto! Regrcssa, sacia os farnintos, veste os nus, consola ao vento. Agora enrolam-se de urna maneira aterradora ~t minha volta.
quem morre de sede. visita o solitárío69! Sei bcrn que o rneu amor nenhurna cnroscam-se como cobras apertando a minha alma angustiada.»
significacño tcvc para ti, mas também ncrn sequer pedí tal coisa. O mcu «E sou mae! Um ser vivo exige-me alimento. Pode o faminto saciar o
amor prostrou-se humilde a teus pés, o mcu 12081 suspiro era urna precc, o faminto, e qucm morre de sede dar de beber ao sedento? Hei-de entao
rncu bcijo urna olereuda de gra~:i1s, o mcu abrace, urna adoracño. Qucrcs tornar-me uma assassína'! Oh!, Fausto, voila para mim, salva a crian9a no
por isso abandonar-me? Nao o subías de anternáo? Ou nao serve de razño -,eio materno, mesmo que ncm sequer queiras salvar a mae!»
para me amares, o facto de eu precisar de ti, de a minha alma sucumbir É assim que Margarete nao é movida pela dísposi<rao, mas antes na
quando nao estás junto de rnim?» disposi\:ao; mas a disposi~ao singular nao a alivia, porque se desfaz na
«Dcus do céu, perdoa-rne eu ter amado um homem rnais do que te amo, disposir;fío total que eta nao conscguc anular. Sim, se Fausto lhe fosse ar-
e que entretanto o ame ainda; sirn, eu sci que falar-te desta maneira é um rancado, Margarctc nao procuraría qualquer apaziguamento; a '\ua sortc
novo pecado. Amor eterno, oh!, deixa que a tua clemencia me ampare, nao ~cria todavia ínvejávcl ao~ scus olhos - mas foi cnganada. Falla-lhe o
me afastes de ti, devolve-o a mim, inclina o scu coracño de novo para 12091 que se poderia chamar a situar;ao da múgoa, pois nao lhc é possívcl
mim70, apicda-te de mirn, picdude, por voltar a suplicar-te assim!» i.entir mágoa sozinha. Sim, pudesse eta encontrar a entrada de urna gruta de
«Podcrci rnaldizé-lo? O que sou cu para a tal me atrever? Pode o vaso de eco. como a pobre Florine no conto de fadas74, sabendo que cada suspiro,
barro afrontar o olciro71? O que era eu? Nada! Barro nas suas rnáos, urna mela qucixume que claí saísse seria ouvido pelo seu amado. e nao passaria
costcla a partir da qual me criou72! O que era eu? Urna pequenina planta, e aí meramente tres noites como Florine, antes quereria af pennanecer dia e
noitc; mas no palácio de Fausto nao há nenhuma gruta do eco, e ele, ouvido
11enhum tcm no conl\:ªº dela.
69 Mateus, 25:35-36: «Porque rivc fume e dcstes me de comer: tive sede. e desies-rnc
de beber: era estrangeiro e hospedastcs-me, I Estava nu e vestistcs-rne; adocci, e * *
visitastes-mc; csrive na prisño , e fostes vcr-rnc.» *
70 Salmos. 119:36: «Inclina o meu coracáo aos tcus testcmunhos. e nño a cobica», e
também 141 :4: «Nao inclines o meu coracáo para o mal. nern para se ocupar de cobas 73 O autor utiliLa o verbo «ill opelske». tenno corn múltiplas ocorrencias nos Discursos
más com aquelcs que praticarn a iniquidade: e nao coma das suas delfcias,» J:cltfirn111es e em Ol>ras do Amor.
71 Romanos, 9:21: «Ou nao tem o olciro poder sobre o barro, para, da mesma massa, 74 ·Protagonista do conto ele facla~ Den blaa F11gl [O Pássaro Azul]. aclapta\:iiO do origi-
fazer um vaso para honra e outro para dcsonra?» nal fra11ccs /_'oiseau 8/eu. in Maric Calhcrinc d'Aulnoy (1651 1705). Le., Conte.\ de
72 Livro do Génesis. 2:21-23: «Entño o Senhor Deus fez cair um sono pesado sobre / <'t''· vol .... 1-lV. Pari..,, 1810: vol. I, pp. 88-96. O conto é uma das muiias variante~.
Adño, e este adormcceu: e tornou urna das suas costclas. e ccrrou a carne cm scu lugar; 'llfgida' no período 1nm5nlll'11, da novela mcdieva llistoria de los dos c11w11orad().I
I E da costela, que o Senhor tomou do homern. lormou urna mulher: e 11011~c a a Adao.» F/11re.1 1· /J/1111cq/lor.
~ 1

250

Talvez já vos tenha tomado demasiado tempo, prcndcndo a vossa aten- 12111
<;ao para estas imagens, caros 2:vµnagavexv(l)f!eVOL, tanto mais ainda que,
por mais que eu ten ha Ialado, nada de visível se mostrou diante de vós. No
entanto, tal nao fica de facto a dever-se a natureza fraudulenta da rninha
apresentacáo, mas ao próprio assunto e a dissimulacáo da mágoa. Quando
a oportunidade propicia se oferece, rnanilcsta-se entáo o que está escondí-
do.Temo-Jo pois em nosso poder, e queremos agora na despedida fazer
com que estas tres noivas da mágoa se unarn, deixemos que se abracem
urnas as curras na consonancia da mágoa, que diantc de nós facarn um O mais Infeliz
grupo, um tabernáculo, onde a voz da rnágoa nao cmudccc, onde o suspiro
nao cessa, porque sao clas, mais zelosas e mais fiéis do que vestais, aguar- Urna Alocucáo Entusiástica aos L"UµJtagavEXQWµEVOL1
dar a obscrvacáo dos ritos sagrados. Fósscrnos nós interrompé-las, fóssc-
mos nós descjar-lhcs'" o regrcsso do perdido, e constituiría isso urn ganho Pcroracáo nos Encontros de Scxia-Fcira
para clas? Nao haviarn já rccebido urna consagracáo superior? E esta con-
sagracño uni-las-á, [aneando urna bclcza sobre a sua uniño. e nessa uniáo
laculrando-lhes alívio, pois só aquele que mordido pelas cobras sabe o
é

que terá de sofrcr qucm mordido por cobras.


é

75 Aqui, «onske»,
12131

Como é sabido, dizern que há algures em Inglaterra urna sepultura que


nao se destaca por ter um monumento esplendoroso ou urna ambiéncia
melancólica, mas sim por urna pequena inscricño - «Ü mais iníelizs '.
Dizern que a sepultura foi aberta, mas que nao cncontraram qualquer ves-
ugio ele um cadáver. Despertará rnaior surprcsa nño se encontrar um cadá-
ver. ou abrir-se a sepultura'! É cstranho, na verdade, que renham arranjado
tempo para verificar se havia alguém l:i dentro. Quando se le um nome num
cpitáfio, surge tacilmcntc a tcntacño de pensar em como lhe tcria corrido a
vida no mundo, poder-se-ia até desejar descer ao seu encontró na sepultura
para com ele conversar. Mas esta inscri<;ao tilo significativa! Um livro
é

pode ter um título que nos dá vontadc de Ier o Iivro, mas urn título pode ser
cm s.i tuo rico de idcias, e tifo intcrpelador do ponto ele vista pcssoal. que
nunca se chega a Ier o livro. Na verdade, esta inscricáo é tao significativa,
ludo está em conformidade coma disposicño, comovcntc ou alegre - para
aquele que. na tranquilidade da sua mente. porvcntura tivcssc secretamente
desposado o pensamento ele que era ele o mais infeliz. Mas posso pensar

2 Trata-se de um túmulo 11a Catedral ele Worcestcr na Inglaterra onde se le a inscricño


«Miserrimns» , i. c., «o muis infeliz». No periódico The Keepsake [A Lembranca]. edi-
tado por Frederic Mansel Reynolds (1800-1850). William Wordsworth (1770-1850)
publicara, cm J 829, 1m1 soneto intitulado «il Gravestone Upon Tlie Floor 1111'/ie Clois-
ters Of Worcester Cuthedral» [«Uma Lapide Tumular no Chao <los Claustros da Cate-
dral de Worccstcr» 1. cujo tcor rnuito scmclhunte ao parágrafo inicial do presente capí-
é

tulo; o soneto foi posteriormente publicado ern The l'oems, em 1832. Tarnbém Rcné
Chateaubriand ( l 768-1 !l48) descreve o mesmo túmulo etn Mémoires d'Outre-Tombe
[Memórias para Além do Túmulo]. edi9ao de Maurice Levaillant e Gcorgcs Moulinicr,
París: Bibíiothcquc de la Pléiade , 1951, vols. l-II; vol. I. livro X, cap. V. p. 354. Tal
corno o presente capítnlo de 011-0u, qualquer urna destas eventuais tomes rcaccndc a
discussño de Aristóteles, no prirneiro livro da f.;,¡ca a Nicomaco, em torno do conceito
de íclicidadc como supremo bcm: vd. cm especial 11 OOa e 11O1 b, ern confronto coma
11arra;.;iío de Heródoto sobre Sólon, referida na nota 10 dcste capítulo. Em portugués:
Aristóteles. Ética a Nicáruaco. traducño do grego e notas de Antonio C. Caciro, l .isboa:
1 Vd. nota l no capítulo «0 Rctlcxo do Trágico Antigo no Trágico Moderno». Quetzal Editores, 2004, pp, 34-~5 e :18-39, respectivamente.
254 Ou Ou. U111 F1:i¡•111l'1tlo lil' Vida 255

num hornem, cuja alma nao conhece mis ocupacócs, e que cstabclcccu co- do noitc, rcuniudo-nos urna única vez apenas para sermos edificados por
mo tarefa da sua curiosidade vira saber se realmente se cnconuuva alguém rcprcscntacñes da rniséria da vida, da duracáo do dia e da infinita durabili-
naquela sepultura. Mas vede, a sepultura estava vazia: Tal vez tenha rcssus- dado do tempo, nós. caros CJ'UµnaoavexgwµEvm, que nao acreditamos no
citado, talvez tenha querido trocar das palavras do poeta: jogo da alegria, nem na felicidade dos tolos, nós que em nada acreditarnos,
- na sepultura há paz, a nao ser na inlclicidade.
O seu silencioso ocupante nao conhece o pesar-'; Vede corno eles avancarn numa íncontável multidáo, todos os infelizes. Sao
rcpouso algum cncontrou, ncm mesmo na sepultura, talvcz ande outra vez, afinal muitos os que créern ter sido chamados, mas poucos os escolhidos7. Há
a vagabundear errante pelo mundo, abandonou a casa, o lar. limitando-se a que estabelecer urna separacáo entre eles - urna palavra, e a horda desapare-
deixar urn enderece! Ou ainda nao foi encontrado, ele, o mais infeliz, que ce; os excluídos sao, dcsignadamcntc, convidados indesejáveis, todos aqueles
nern mesmo as Eurnénidas perseguem até que encentre a porta do templo4 cuja opiniáo é ser a morte a maior das infelicidades, que ficam iníclizes por-
e o humilde banco dos que orarn, seudo, porérn, manticlo em vicia pelos que temcm a mortc; pois que nós, caros ouµ..1'[0l)<XVEXQWµtwm. nós. quais
pesares, perseguido até a sepultura pelos pesares! soldados romanos, nao tememos a morte", conhecemos urna infelicidade pior,
1 1 aja elcdc nao serencon tradoccabc-nos en tao .caros CJ'U µJtaQovgxow usvor, sobrcrudo e acima de rudo - a infelicidade ele vivcr, Sim, se houvesse um
cmprcendcr uma pcregrinacño como cruzados, nao até cssc Santo Sepulcro homcm que nao puclesse morrer, se for verdadc o que a leuda conta sobre
no 12141 feliz Oriente, mas até cssa pesarosa sepultura no infeliz Oeidentc. csse Judeu Errante", como havcríamos de ter hcsiracóes em declará-lo como
Queremos procurá-lo, o rnais infeliz. junto a cssa sepultura vazia. certos ele
que o encontramos, pois tal como o anseio do crente aspira pelo Santo Se- 7 Matcus, 22: 14: «Porque muitos silo os chamados. mas poucos os cscolhidos.»
pulcro, também os infelizes sao arrastados para Ocidentc até essa sepultura 8 Retirado do relato ele Cícero sobre Calo, o velho, Para o presente passo, vd. Cato
vazia, deixando-se cada um deles invadir pelo pensamento de que ela lhes maior de senectute [Cato, o Vclho. sobre a Velhice]. livro XX, p. 75. fali91ío consullada
está des ti nada. pelo autor: M. 'l'ullii Ci<·ero11is opera omnia !Obras Completas ele M. Túlio Cícero!.
Ou nao houvesse urna ponderacño clestas de ser um objecto digno da vols. 1-IV e fndex. edi9íio de Johann August Ernesti, l lallc. 1756-1757: vol. IV, p. 956.
nossa consíderacáo, nós, cuja actividade, estando eu a agir de acorde com l~lll portugucs: Catrio­o­V<'lho ou Oa Vefhice. tradu9ao do lat im. i11trotlL1C,ao e noias de
Carlos Humberto Gomes, Lisboa: Cotovia, 1998. pp. 50 e SJ.
os santos preceitos da nossa associacáo. é urn ensaio ele recolhimento casu- 9 Ou Ahasveru:-:, pcrsonagem lend:írü1 do Sul da Europa, com lendas lranscriws no início
al e aforístico, nós que nao pensamos nem falamos por aforismos, mas que do século x1u. sobre a qual recaiu u rmildic.:ao ele ser imortill como castigo por ter batido
antes vi vemos aforisticarnente, nós que vivernos <X<pOQLOp.cvm5 e segrega- e tro<;ado de Jes11s a caminho do Calvário, tendo-lhe Jesus dilo que ele haveria de esperar
r/\ como aforismos na vida, fora do convívio corn os horncns, scrn tomar :ité il segunda vinda do Cristo. A lenda baseia-se ern parte nas palavras de Jesus, Mateus,
parte nos scus pesares e nas suas alegrías. nós que nao estamos cm censo- 16:28 («cm verdade vos digo que alguns há, dos que aqui estao, que nao provarlío a
náncia com o barulho da vida, seudo antes pássaros soliuirios na quietude morte, até que vcjam viro Filho do hornem no seu reino.>>), mas os factos nam1dos rele-
vam do imaginário medieval: convertido ao cristianismo, o Jucleu Errante tcrá vivido até
:1os cem anos, altura em que mudou de pele e voll:ou a 1.cr o aspecto de um hornem de
3 Versos retirados do poema épico de Christian Henriksen Pram (1756-1821). Suerkod­ Lrinta anos. Extremamente popular foi a publica~lío na Alemanha em 1602 de Kurcze
der [Starcaterus], Copenhaga , 1785, ode Vil, p. 142. IJ1'schreibt111R und Erz.ii.hlung vun einem .!11de11 111it Namen Ahasverus 1 Pequena Descri-
4 Na tragedia As Euménides, de Ésquilo, Orcstes perseguido pelas Fúrias até que se
é
~·iio e Narrativa de Um Judcu de Nome J\hasverus], com oitentas edi9{>es até flnais do
refugia no templo de Delfos. Vd. Ésquito, Oresteia: Agamémnon, Coéforas, Eutnénides, ~éculo xv1n, traduzicla em inúmeras línguas, entre as 4uais o dinamarqucs. Durante este
traducño de Manuel de Oliveira Pulquério. Lisboa: Edicóes 70, 199 l. Sao duas aspas- período, o destino do judeu errante e a errílncia do povo jucleu na Europa confl1.1ír~1m no
sagens que melhor evidenciam que Orestes foi a Delfos. A primeira encontra-se na peca imaginário popular. A. von Chamisso e Nikolaus Lenau ( 1802-1850) cscrevernm poemas
anterior as F.uménides: Coéforas, v. 1035. p. 170: «ORESTES: agora vede: com este :-.obre a lenda. respectivamente Der ewige Jude lO Judeu Errante] de 1838, in Adelbctt
ramo, assim envolvido ele la, vou dirigir-me ao santuario erguido sobre o umbigo da von Chamisso. Si:i.11u/iche Werke [Obras CompletasJ, fixay:iO do texto de Jost Perfahl,
tena. solo de Lóxias. onde o esplendor do togo brilha incxtingufvcl , para fugir ao san- notas, glossário, cronologia e posfácio de Volk.er Hoffmann. vols.1-ll. Munique: Wink.Jer
gue <le minha mlíe. Lóxias nao permitiu que recorresse a nutro lar»; a segunda.já em As Yerlag, 1975: vol. l, pp. 611-613; e Ahasve1; der ewige .lude IA., o Judcu Errante], de
Euménides, vv. 40 e segs; p. 187: «PITONISA: Entro no santuario inundado de coroas, e 1827-1831, in Nikolaus Lenau. Siimtlir:he Werke, Briefe !Obras Completas. Carlas l. Es-
eis que vejo, junto do "omphalós", Lllll homem odiado pelos deuses, em atitude de su- 1ugarda: J. G. Cotta'schc Buchhandlung Nachf., 1959, p. 65. Kierkegaar<l at.ribui carac-
plicante. com as máos a cscorrer de sanguc e a espada rcccntcmcnrc dcscmbainhada.» Lcrí~ticas do Jucleu Errante a outras figuras mítico-lcndárias que sao alvo de tral.amento
5 Em grego no original: «Separados». «postes a parte». cxtc11sivo na presente obra. Em Pnp. I C 58 (Not 2:7, SKS, vol. 19. p. 94) ePap. lJ ASO
6 Traducáo latina do termo grcgo «acpOQHJµ.Ev01»; vd. nota anterior. (AA:38, SKS, vol. 17, p. 49), 1_5-ierkc&·wrcl afirma que, cm Don Juan .. sceombinam ele-
256 257

o mais infeliz'! Seria entáo explicáveJ por que motivo esta va a sepultura vazia; perdoal-i ne por peri urbar a vossa tranqui liclade por u m instante; en con tremo-
era para indicar que o mais infeliz seria aquele que nño pudcsse morrer, que -nos junto a sepultura vazia. Tres vczcs grito eu bem alto por esse mundo
nao pudessc sumir-se para dentro de uma sepultura. Ficava o assunto arruma- fora, vos. os infelízes, escutai-me; pois nao é nossa intencáo resolver este
do. e a rcsposta era fácil. visto que o mais infeliz seria aquelc que nao pudcs- assunto aqui entre nós, neste recanto do mundo. Encontrado está o lugar
r- se morrcr, e seria feliz qucm pudesse morrcr; seria feliz qucm morresse na onde terá de ser resolvido diante do mundo intciro!
1
i\ velhicc, mas rnais feliz seria quem morrcsse na juventude, seria felicfssimo
l qucm morresseao nascer, e o mais feliz de todos seria aqucle que nunca tives- No entanto, antes de passarmos a interrogar os singulares, lomcrnos os
se nascido. Mas as coisas nao se passam assim, a mortc a felicidadc comum -
é nossos Jugares aqui sentados na qualiclade ele dignos juízes e companhciros
a todos os homcns e, rendo em conta que o mais infeliz nao foi por conscguin- ele combate. Í'orlalcc;arnos o nosso pensamento, armemo-Jo contra o cnean-
1.e encontrado, tcm pois de ser procurado dentro dcstas limitacñcs. lamento do ouvido; pois que voz será dcveras tao insinuante como a do
Vede, desaparecen a horda, reduziu-se o número. Nao vou agora dizer: infeliz, que voz ser{i tí.'ío enfcít.ic;antc como a do infeliz, quando fata da sua
conccdci-me 12151 a vossa atencño, pois sci bem que a tcnho: nao digo: própria infelicidade. Tenhamos a dignidade de lomar aqui assento na qua-
emprcstai-rne os vossos ouvidos, pois sci bem que sao meus. Os vossos licladc de juízes, na quaJidade de companheiros de combate, para que nao
olhos cintilum.já vos crgueis na cadcira. É urna contcnda na qual vale bcm pcrcamos a visao de conjunto, níio nos dcixando confund'ir pelos singula-
a pena participar, um combate ainda muis terrível do que se fossc de vida res, pois que a eloquencia do pesar é infinita e infinitamente inventiva.
ou de morte, já que nño tememos a rnorte. Mas a recompensa, claro que é Iremos dividir os infelizes em determinados grupos. e apenas será ciada a
mais soberba do que qualqucr outra no mundo, e mais garantida, pois ague- paJavra a um cm cada grupo, ciado que nao negaríamos que nenhum imii-
le que tem a certeza de ser o mais infeliz, nao nccessita sequcr de temer a víduo singular seja o mais infcli7., mas trata-se antes de uma cJasse; m<is de
felicidadc. nao ha-de saborear a humilhacño de ter ele gritar na sua última modo algum t.crcmos hcsita<;oes na atribui9ao ao representante dessa classe
hora: S61on, Sólon. Sólon1º~ do nome «O mais infcli1,», nao hesitaremos cm atribuir-lhe a sepultura.
Ora abramos entño urna livre concorréncia. da qual ninguém ficará ex- :Cm lodos os escritos si stcmáticos de Hegel, há um único parágrafo que
cluído. seja por vía da sua condicño, ou da idadc. Ninguérn fica exclufdo a !rala 12 J 61 da consciencia ínfeliz11• É num profundo desassossego e de co-
excepcáo de quemé feliz e de quem teme a morte - sao bcm-vindos todos 1w~fto palpitante que alguón scrnprc embarca na leitura de tais estudos, no
os rncmbros da congrcgacño dos infclizcs, o Jugar ele honra está destinado receio de acabar por vira saber a mais ou a menos. A consciencia infeliz é
a qucm for realmente infeliz. a sepultura <10 mais infeliz de todos. A minha uina exe.ressao que basta ser usada _casualmcnlc qo dccorrer de uma con-
voz rcssoa pelo mundo foru. escutai-a, lodos vós que vos designais como versa para quase conseguir fazer gelar o saqguc e pór os nervos em franja
inlclizes no mundo, mas nao tcmais a rnorte. J\ minha voz ressoa para trás c. ao ser agora proferida tao formalmente, i'l. semellian9a claquclas misterio-
no tempo. dacio que nao seríamos suficientemente sofísticos para excluir os sas palavras de um con to de Clemens Brentano: «tertia m.1x mors est» 1 '.?
defuntos por já terern morrido, pois que de facto viveram. Eu vos conjuro, - pode levar a que se cstrernec;a como um pecador. AL feliz aquelc que
tem mais que ver com o assunto do que escrever sobre ele um parágrafo;
memos de Pausto e do .ludeu Errante. atribuindo a este o elemento de desespero, subli- mais feliz éÚ!lda é aquclc que consegue escrever o parágrafo seguint.c. Ora
í"~~ ~ind~ que o Judeu Errante, tcm de ser interpretado epicarnente; cm Pap, II A 56 o infeliz é aquele que, de uma mancira ou de ourra, temo seu ideaL o con-
(AA:46, SKS, vol. 17, p. 59), afirma ainda que Fausto de verá cvoluir para urna nova
ideia. precisamente a icleia simbolizada pelo Judeu Errante.
10 Segundo Heródoto (Historias, livro l. 30-34. 86-90), Creso, rci da Lídia, condenado 11 Para o desenvolvimcnto dcste conccito cm Hegel, vd. Phünomenologie des Geistes
il. morte por Ciro, reí da Pérsia, chamou já na Iogueira tres vezes pelo nomc de Sólon. l l'enomcnologia do l::lspírito], in Werke. vol. II, pp. 158-173; Jubiliiums, vol. 11, pp. 166-
Ao ter de justificar-se, Creso acaba por confcssar o que Sólon lhc dlssera, i. e., nao ser -181; Suhrkamp, vol. f[I, pp. 163 e seg:s. (l. W. F. Hegel. Fenomenologia do Espírito,
a riqueza o que faz um homern mais feliz do que outro. Ciro anula a ordcm de execucáo. 1radui.;ao de Pauln Meueses, com a colaborn9ao de Karl-Hcinz Efkcn (vol. 1) e .losé
mas nao conseguem apagar a togueira; Creso é salvo pela ch uva que eai por intervcncño Nogueira Machado (vol. 11), aprc.senta\.'ªº de 1-Jcnrique Yaz, vols. I-Il, Petrópolis: P.cii-
de Apelo. Edicáo consultada pelo autor: Die Geschichtendes Herodotos 1 As Historias tora Vo1..es, 1992; vol. L pp. 140-151.
de H.1. vol s. 1-11, rraducáo de Friedrich Langc, Bcrlim, 1824; vol. 1, pp. 18-19. 20, 49- 12 Em latim, 110 original: <<morrcu a terccira no.o>. Vd. Clemens Brentano (1778-'1842),
-50. Edicáo portuguesa: Heródoto, Historias. Livro l. introducño geral lle Maria Helena Oi<: drei Niis.ve [As Tres Nozes] de 1817. Bcrl.im, Konigsberg, 1834. Vd. cíLayao na pági-
da Rocha Percira, intro<lui.;ao ao Livro 1, vcrsao do grego e notas de José Ribeiro Fcr- 1ia inicial do conto in Clc111e11s Brenlano, Die drei Nii.vse, in Werke.editado por Friedhelm
reira e de Maria de r:'át.ima Silva, Lishoa: Edi96es 70. 2002, pp. 74-77. 115-119. Kc1npetal, vol s. 1-UL Muniquc: l lnnscr Vcrlag. l %3-1968; vol. 11, 1963. pp. 762-773.
258 259

tcúdo da sua vida, a plenitude da sua consciéncia, a sua própria csséncia. scnrc, mas unnb 111 11t) tempo futuro; entáo, ternos urna forrnacño de infeli-
fora de si mesmo. O infeliz está scmprc ausente de si mesmo, nunca está zcs. Se observarrnos a individualidade recorclaclora, entáo, também assim
presente em si mesmo. Mas é possível estar manifestamentc ausente quer acontece. Se capaz de se tornar presente no tempo passado, em sentido
é

num tempo passado, qucr num tempo futuro. Por esta via, todo o territorio rigoroso, cntáo, nao é infeliz; mas se nao for capaz, mantendo-se antes ela
da consciencia infeliz rica suficientemente circunscrito. Agradecemos a própria scmpre ausente num tempo passado, entáo , ternos urna forrnacáo de
Hegel esta rigorosa delimitacáo e, agora, dado que nao nos limitamos a ser infclizcs.
filósofos que olham para este reino a distancia, pretendemos observar com A rccordacño é prcfcrcncialmcntc o elemento específico dos infclizcs, o
rnais rigor, na qualidade de nativos, os diferentes estadios que af se.encou- que obvio. porque o tempo passado tema assinalável qualidade de já ter
é

tram. O infeliz está portante ausente. Mas fica-se ausente, quando se está passudo, e o lempo futuro, a de que há-de vir, e pois possívcl dizer, cm é

nurn tempo passado ou num tempo futuro. Tem de insistir-se nesta exprcs- cerro sentido. que o tempo futuro está rnais perto do presente do que está o
sao, dado que é manifesto o que a ciencia da linguagem tambérn nos cnsina, passado. Ora, para que a indiviclualidade esperancosa venha a tornar-se
que há um tempus que é presente num tempo passado , e um tempus que é presencial no tempo futuro, para ela este tern de conter realidade15, ou me-
presente num tempo futuro; mas cnsina-nos a mesma ciencia cm simulta- lhor, rem de para ela constituir realidade; para que a inclividualidade recor-
neo que há um tempus, que é o plus quam perfectum, no qual nada há de dadora vcnha a tornar-se presencial no tempo passado , este tem de para ela
presencial, e urn futurum exactum13 com cssa mesma característica. Sao comer realicladc. Mas quanclo a indiviclualicladc espcrancosa qucr ter cspc-
estas as individualidades esperancosas e recordadoras". Em certo sentido, ranca num tempo futuro, o qual nao possui para cla ncnhuma rcalidadc, ou
trata-se dcccrto de individualidades infclizes, designadarnente, por scrcm quando a individualidadc recordadora qucr recordar urn lempo que rcalida-
apenas cspcrancosas ou apenas recordadoras. se aqueta que feliz. aliás,
é de ncnhuma conicvc, cntño, obremos as individualidades inlelizcs propria-
for unicamente a individualidadc que está presente a si propria. Entretanto, mente ditas. Acerca da primeira, nao haveria de crcr-se que fosse possívcl,
nao pode todavía designar-se como infeliz, em sentido estrito, urna indivi- ou que fosse dada como pura loucura; entrernentes nño é assim, visto que
dualidadc que seja presencial na esperance ou na recordacáo. Aquilo que hcm pode a individualidade csperancosu nao ter csperanca cm algo CJUC
designadarncnte tem de ser aquí relevado é o facto de a individualidadc ser para cla nao tcnha rcalidade , porérn, tcrn cspera.nr;a cm algo que cla própria
af presencial. Tambérn assirn verificamos que seria impossível que um nao sabe se poderá realitar-sc. Quando designadamcnte uma indivi<lualicfo-
golpe, fosse qual fosse de resto a sua dureza, tornasse um homcrn o rnais dc, na medida ern que perde a esperarn;:a, em vez de se tornar uma indivi-
infeliz. Um golpe pode dcsignadamente roubar-lhe ou apenas a esperanca, dualidacle recordadora. qu.iser tornar-se uma individualidade esperanc;:osa,
fazendo desse modo corn que seja presencial na recordacáo, ou a rccorda- cntao, obtemos uma fonnar;ao 12181 desse tipo. Quando uma individualicla-
~ao, fazendo dcsse modo corn que seja presencial na cspcranca. Ora siga- dc, na medida em que percle a recorda9ao, ou na medida em que nada tem
mos em frente para vermes agora como terá cntño a individualidade infeliz para recordar, nao quiser tornar-se urna individualidade esperanr;osa. mas
ele ser determinada com maior rigor. 12171 Observemos primeiro a individu- antes quiser continuar a ser urna individualidadc recordadora, cntao, ternos
aliclade cspcrancosa. Quando ela nao agora presencial ern si mesma, na
é u111a forrna9ao de infcli:r.cs. Assim, se um inclivíduo se perdesse na Antigui-
qualidade de individualidade esperancosa (e consequenternente, nesta me- dadc ou na ldade Média, ou cm qualquer outra época, mas de molde a que
dida, infeliz), entño , fica infeliz no mais rigoroso sentido. Urn individuo c~sa época contivesse para ele uma dada rcalidadc, ou se ele se perdcsse na
que tern esperanca na vida eterna, em certo sentido, pode rnuito bem ser sua própria infancia ou juventude, mas <le molde a que a infancia ou a ju-
urna individualidade infeliz, na medida em que abdica do que presente.
é vc11tude contivesse para ele urna realida<le irrcfutável, enüio, de nao seria
mas em sentido rigoroso nao é afina] infeliz porque, ncssa csperanca, é propriamente urna individualidade infeliz em sentido rigoroso. Inversamen-
presencial em si mesmo, e nao trava combate cornos momentos singulares te, ..,e cu imaginasse um homem que nem sequer tivesse tido infancia pró-
da finitude. Ao invés. se na esperanca nao for capaz de ser presencial em si
mesmo, mas antes perder a sua esperanca, voltar a ter a esperanca, e assirn
1 '\ Ncslt: parágrafo. todas as ocorrencias de «realidade» correspondem no original ao
sucessivamentc, entáo, está ausente de si proprio, nao apenas noqueé pre-
1¡·11110 dinarnarqucs <<Reali1ef>>. Vd. a.s ocorrencias assimiladas nas notas 39 e 44 <lo ca-
pllulo <<A Rolac_:ao de Culturas», e também OLilras ocorrencias esparsas. assinaladas nas
13. Correspondcnte ao futuro perfeito. 1mws J2 e 44 do capítulo «Ó Rerlexo tlo Tdgico Anligo no Trágico Moden10>>. na nota
14 Vd. nota 78 no capítulo «Diapsalmata», (1'\ do capítulo •<SilhL1ct<1s», \! nn1, notas 68, 69 e 105 cm «Diário do Scdutor>>.
261
260 u Ou. Uui h ur1111•1110 tli' vldn

pria, visto que esta idade da vida passara por ele sern signi rica9ao propria- é esta precisamente a sua infclicidade. A sua infelicidadc é ter vi~do derna-
mente dita, mas que. ao tornar-se agora, por exemplo, professor de enancas. siado cedo ao mundo e por esse motivo chegar scmpre demasiado tarde.
descobrissc tudo o que de belo a infancia encerra, e que quisesse agora re- Encontra-se sernpre rnuito perto de objectivo, e no mesmo instante fica longe
cordar a sua propria infancia, olhando sernpre fixamente para trás, era de- dele descobre entáo que aquilo que agora o faz infeliz, porque tem csse ob-
ceno um cxernplo justificadamente adeqllado. Olhando para trás, acabaría [cctivo, ou porque ele está assim, é precisamente aquilo que o tcria fcito feliz
entáo por chegar a dcscobrir a significacño daquilo que já passara por ele. ·há alguns anos, se o tivcsse licio, ao passo que ficou infeliz porque nao o teve.
16•
e que entretanto quería recordar na sua siguiñcacáo. Se cu imaginasse um A sua vida nao possui qualqucr significacáo, tal corno Anceu de quemé uso
homern que, tendo vivido sem apreender a alegria ou os prazcrcs da vida, e costumc dizcr-se que nada se sabe acerca dele, excepto aquilo que deu