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MITO1: estrutura ontológica (Marlimmendes)

O mito não é grego nem latino, mas um farol que ilumina todas as culturas
(BRANDÃO, 1985)

Mito se distingue de lenda (o que deve ser lido ou narrado em público, do latim
legenda); de fábula (caráter imaginário e ficcional); de parábola (caráter didático); e de
alegoria (etimologicamente significa “dizer outra coisa” – metáfora [relação de
semelhança], metonímia [relação de causa e efeito], neologismo [palavra ou frase
nova ou antiga com sentido novo], eufemismo [substituição de palavras ou expressões
plebeias por outras mais elevadas]). Para compreendê-lo em sua especificidade faz-se
necessário adentrar em seus fundamentos ontológicos (e epistemológicos, já que
nosso objetivo é escrutiná-lo racionalmente e não vivenciá-lo ritualisticamente).
Contudo, é importante salientar que a retomada do mito pela inteligência, nutrida de
abstrações rigorosas e transcrição refletida, deixa escapar o essencial, na medida em
que distancia a narrativa e a realidade vivida (que é indissolúvel) e separa o mito da
situação concreta, conferindo-lhe, assim, uma autonomia de pensamento que o
desnatura2. Segundo Lévy-Brühl (1928, p.436) “o que chamamos de mito é a carcaça
indiferente que subsiste depois que os elementos místicos que envolvem o conteúdo
positivo do mito já se evaporaram”.
É sabido que o intelectualismo do homo rationalis projeta a realidade humana
sobre o plano de ordenamento racional, rechaçando as instâncias mítico-arcaicas e
reduzindo o homem à função demonstrativa de inspiração científica. A implicação
dessa redução eidética3 (dessolidarização da realidade) é a diminuição e a perversão
do ser (ex-sistência = separação).
O mito se apresenta como um sistema, que tenta, de maneira mais ou menos
coerente, explicar o mundo e o homem (narrativa de uma criação – cosmo e/ou
fragmento). Ele não possui outro fim senão a si próprio. Acredita-se nele, ou não, por
1
O mythos é a fala que narra, a palavra “revelada”, enfim, o dito. O logos é, por sua vez, a fala
que demonstra e expressa o pensamento entendedor das coisas.
2
Para Gusdorf (1979) “a mitologia é já um repertório dos mitos de todas as idades e de todas
as origens, destacados do seu contexto vivido, isto é, desnaturados. A empresa mesma da
mitologia traduz uma iniciativa refletida, um desejo de sistematização ao qual o homem da
idade mítica permanece ainda estranho. Para ele, o mito não é um mito, mas a própria
verdade” (p.23).
3
Fil. Palavra originária do grego “eidos”. Segundo o filósofo alemão Edmund Husserl (1859-
1938), conhecimento filosófico relativo à forma ou à essência das coisas, e não à sua função
ou existência empírica, que são estudadas pelas ciências. Read more:
http://aulete.uol.com.br/eid%C3%A9tica#ixzz2bI5uohqQ.
um ato de fé, uma vez que seu critério de adesão é a crença e não a evidência
racional (criação que repete o ato cosmogônico – restauração da plenitude integral).
Pode-se dizer que é um modo de conhecimento capaz de comunicar o incognoscível
(relato de um acontecimento ocorrido no tempo primordial mediante a intervenção de
entes sobrenaturais). É uma fala, um sistema de comunicação, uma mensagem. O
mito é uma segunda língua na qual se fala da primeira, isto é, ponto de partida para a
compreensão do ser – base para todo o trabalho posterior da razão. O mito é um
modo de significação, uma forma, um símbolo. É uma intuição compreensiva da
realidade, percebida de maneira espontânea, sem exigência de comprovações. É a
palavra, a imagem, o gesto que circunscreve o acontecimento no coração do homem
antes de fixar-se como uma narrativa, ou seja, é fala que narra, avessa ao
pensamento reflexivo das coisas (logos). É palavra revelada, é o dito que faz reviver
uma realidade primeva – não é ato é, antes, ação em movimento circular, já que o
tempo é idêntico a si mesmo. Ele não é lógico, ao revés, é ilógico e irracional, é
sentido e vivido antes de ser inteligido. É segundo Carlos Byington (apud BRANDÃO,
1998)
A interação do consciente com o inconsciente coletivo que, através dos
símbolos, forma, então, um relacionamento dinâmico,
extraordinariamente criativo, cujo todo podemos denominar de Self
Cultural. Os mitos são, por isso, os depositários de símbolos
tradicionais no funcionamento do Self Cultural, cujo principal produto é
a formação e a manutenção da identidade de um povo (p.10).

De acordo com Walter Boechat (apud BRANDÃO, 1998), analista junguiano e


psicoterapeuta,
Na verdade, o Mito, como verdade última, é elemento de orientação do
ser. O homem, desde suas origens, não produz os Mitos. As ideias
mitológicas ocorrem a ele; ele não as pensa, mas é pensado por elas,
poderíamos dizer. Os núcleos componentes de todos os Mitos das
diversas culturas, os mitologemas, representam estruturas mentais
básicas de todos os homens. Estas moléculas estruturais do psiquismo
são expressões do inconsciente coletivo (Jung), sempre inesgotável em
suas manifestações, sempre presente. Géia, Deméter, Sêmele, “toda a
terra fértil”, expressam o arquétipo da Grande Mãe, a origem de todas
as formas simbólicas e do próprio ego. Dioniso, Hermes e Apolo como
crianças, o arquétipo da criança, nossas potencialidades do vir-a-ser,
nossa criatividade e também nossas regressões patológicas a um
infantilismo inadequado. O ciclo dos heróis, Heracles, Teseu, Perseu e
muitos mais, o movimento da energia psíquica do inconsciente para a
consciência, o herói é sempre filho de um imortal (arquétipo atemporal
no inconsciente) com uma mortal (o ego e suas finitudes).
Encontramos, enfim, uma infinitude de entidades e configurações no
panteão grego que refletem nossas próprias tendências inconscientes.
A mitologia cumpre assim um papel fundamental para a psicologia: ela
a move de sua posição puramente conceitual e, portanto, unilateral –
pois a existência humana não pode ser abrangida por conceitos
teóricos – e a fertiliza com imagens ricas em possibilidades de
desenvolvimentos. Teremos assim uma nova psicologia para uma nova
compreensão do homem, na qual o irracional também tem seu lugar.
Pois o irracional mítico é parte componente de Todo Psíquico do ser
humano (contracapa).

Consoante Junito de Souza Brandão (1998, p.15) após Freud 4, Jung,


Neumann, Melanie Klein, Erich Fromm, Mircea Eliade, entre outros grandes pioneiros
e seus seguidores, o mito enveredou por caminhos bem mais legítimos e genuínos:
deixou de ser uma simples ficção para, através do conceito de arquétipo, como bem
sublinha Byington, abrir para a Psicologia a possibilidade de perceber diferentes
caminhos simbólicos para a formação da Consciência Coletiva.
Roland Barthes (1985), por sua vez, com o intuito de retratar a grandiosidade do
universo mítico afirma num tom quase poético:

O mito não cega as coisas, sua função, ao contrário, é falar delas;


simplesmente purifica-as, inocenta-as, funda-as em natureza e
eternidade, dá-lhes uma clareza que não advém da explicação, mas da
constatação (...), o mito faz uma economia: abole a complexidade dos
atos humanos, dá-lhes a simplicidade das essências, suprime toda e
qualquer dialética, toda e qualquer discussão que vá além do visível
imediato, organiza um mundo sem contradição por não ter
profundidade, um mundo mostrado na sua evidência; o mito funda uma
clareza feliz; as coisas parecem significar elas mesmas (p.252).

4
Para Freud o corpo é portador de psiquê. Já Jung encara a psiquê como parte de uma
realidade universal e transcendental – psiquê humana é para ele parte de um “inconsciente
coletivo” que transcende os limites do espaço e do tempo. Assim, desmaterializa o
entendimento da psiquê e utiliza o conceito de arquétipo – que estrutura o pensamento e dá
ordem ao mundo – ou modelo original, plano de base, idéia viva, padrão protótipo, inspirado na
visão de Platão sobre as imagens ou esquemas (modelo a partir do qual nossa compreensão
do mundo é organizada). Cf. MORGAN, Gareth, 2007, p.205-238.
Seguindo essas pegadas Georges Gusdorf (1979), com efeito, defende que o
mito é princípio de realidade, só ele autoriza e outorga o ser, ou seja, sua estrutura
ontológica perpetua uma realidade dada e imediata. Daí poder dizer que enquanto a
idade mítica da humanidade reina sem contestação, ela aparece sendo a idade da
Repetição, uma espécie de pré-história antes da história da razão raciocinante. Nesse
sentido, a palavra repetição torna-se mais adequada do que a expressão “eterno
retorno”, proposta por Mircea Eliade. A ideia de retorno eterno 5 já supõe o tempo. Mas
o pensamento primitivo ainda não tem consciência do tempo; ele está como que isento
dele. A repetição significa a reafirmação do mesmo. O retorno eterno, outra coisa não
visa senão a identidade do Mesmo no meio da dispersão iniciante do Outro; com isso,
a unidade já aparece ameaçada. Historicamente, de resto, o pensamento do eterno
retorno manifesta-se no universo grego, como uma sistematização filosófica,
característica de uma época e de uma civilização em que a mentalidade pré-histórica
da idade mítica já se encontra de certo modo superada em suas matrizes originais
(GUSDORF, 1979, p.32-41).

RITO: Reatualização e ritualização do mito (o rito possui o poder de suscitar ou, ao


menos, de reafirmar o mito). Através do rito o homem se incorpora ao mito. A ação
ritual realiza no imediato uma transcendência vivida. Rito é, em síntese, a práxis do
mito. É o mito em ação. O rito, que é o aspecto litúrgico do mito, transforma a palavra
em verbo, sem o que ela é apenas lenda, “legenda”, o que deve ser lido e não mais
proferido.

RELIGIÃO: do latim religione/religare (ação de ligar). Conjunto de atitudes e atos pelos


quais o homem se prende, ou seja, se liga ao divino ou manifesta sua dependência em
relação a seres invisíveis tidos como sobrenaturais.

5
Para Nietzsche a ideia de “eterno retorno do mesmo” refere-se a tudo que retorna infinitas
vezes na mesma ordem e sequência – pensamento ou posição do “mais pesado dos pesos”.
Essa ideia se junta à ideia do “niilismo”, enquanto admissão do vazio de sentido após a morte
de Deus. Daí precede à criação/invenção do “além-do-homem” (fórmula suprema da
afirmação). Assim, com a preocupação de redimir o homem do “vir-à-ser eterno”,
Nietzsche/Zaratustra atribui ao “além-do-homem” a prerrogativa da afirmação e da salvação,
visto que somente na visão do homem que vai além de si mesmo, do “super homem”, o “eterno
retorno” poderia ser suportado. Em outras palavras, o “além-do-homem” seria trazido à luz para
suportar o “eterno retorno” em sua incomensurabilidade. Para maiores informações conferir
Clademir Luís Araldi (2003, p. 89-120).
Tempo mítico (sagrado): tempo circular (reatualização). Essa reversibilidade liberta o
homem das amarras do tempo morto, dando-lhe possibilidade de recomeçar e recriar
sua vida e seu mundo.

Tempo histórico (profano): tempo irreversível, cronológico, linear (reinterpretação).


Comemora-se uma data histórica, mas não é possível fazê-la voltar no tempo.

BIBLIOGRAFIA

ARALDI, Clademir Luís. Nietzsche – os desertos do niilismo e os caminhos da criação.


In.: AZEREDO, Vânia Dutra de (org.). Encontros Nietzsche. Ijuí, Rio Grande do Sul:
Ed. Unijuí, 2003, p. 89-120.

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. 12ª. ed. Vol. 1. Petrópolis, 1998, p. 09-
41.

ELIADE, Mircea. O mito do eterno retorno: arquétipos e repetição. Trad. Manuela


Torres. São Paulo: Martins Fontes, 1978.

GUSDORF, Georges. Mito e metafísica. Trad. Hugo di Prímio Paz. São Paulo:
Convívio, 1979.

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