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História e memória: kalós thánatos

Segundo J.P. Vernant para os gregos da Grécia arcaica a mais dolorosa das
experiências é a do esquecimento. O herói grego é, por excelência, dotado de beleza
e de coragem – é quem, por um feito glorioso e inolvidável, encontra a “bela morte”
que constitui a tessitura do epos; pelo ato nobre, torna sua memória para sempre viva.
No combate de Aquiles contra Heitor, na Ilíada, Vernant aponta o que se exige da
condição do guerreiro: transformar a morte em glória imperecível, fazendo do quinhão
comum a todas as criaturas, o trespasse, um bem que lhe seja próprio e cujo brilho
seja eternamente seu:

“A bela morte – kalós thánatos –, para lhe dar o nome com que a designam as
orações fúnebres atenienses, faz aparecer [...] na pessoa do guerreiro caído na
batalha [...] o homem valoroso. Para quem pagou com a vida a recusa de
desonra no combate, da vergonhosa covardia, ela assegura um renome
indefectível [...]. Eleva o guerreiro desaparecido ao estado de glória por toda a
duração dos tempos vindouros; e o fulgor dessa celebridade [...] se realiza de
vez e para sempre no feito que põe fim à vida do herói”.

A vida breve, a pronta morte, tem no mundo heroico sua contrapartida: glória
imorredoura, aquela que a gesta heroica canta, continua Vernant,

“Em uma cultura como a da Grécia arcaica, em que as posições de uma


pessoa são tanto melhor estabelecidas quanto mais longe se estende sua
reputação, a verdadeira morte é o esquecimento, o silêncio, a obscura
indignidade, a ausência da fama [...] ultrapassa-se a morte acolhendo-a a
aposta constante de uma vida que toma, assim, valor exemplar e o que os
homens celebrarão como um modelo de glória imorredoura”.

Pela glória que o herói soube conquistar devotando sua vida ao combate, ele
inscreve na memória coletiva do grupo sua realidade de sujeito individual, exprimindo-
se em uma biografia que a morte conclui e torna inalterável. Pelo canto público das
realizações às quais ele se entregou por inteiro, o herói continua, para além da morte,
presente na comunidade dos vivos. A epopeia canta os heróis exemplares, o modelo
do guerreiro que escolhe, ao mesmo tempo, a vida breve e a glória imperecível. E
Vernant conclui:

“a memoria do herói (pela bela morte) é sempre viva: ela inspira a visão direta
do passado que é o privilégio do aedo. Nada pode atingir a bela morte: seu
fulgor se prolonga e se funde na fulgurância da palavra poética que, dizendo-
lhe a glória, torna-a real para sempre. A beleza do kalós thánatos não difere da
do canto que, celebrando-a, torna-se ele mesmo, na cadeia contínua das
gerações, memória imortal”.

É a esse título que a lethe grega – o esquecimento –, irmã da morte e do sono,


é alegoricamente mencionada, pelos poetas, como a verdadeira morte. O herói grego
enfrenta a morte sem angustia, porque vive a plenitude de um presente que se
prolongará na rememoração, de um tempo sem limite – que é a imortalidade [...].
MATOS, Olgária. História e memória. In: Contemporaneidades. São Paulo: Lazuli
Editora – Companhia Editora Nacional, 2009, p. 71-72.

Heróis e fabricantes de heróis

O mito do herói é o mais comum e o mais conhecido em todo o mundo.


Encontramo-lo na mitologia clássica da Grécia e de Roma, na Idade Média, no
Extremo Oriente e entre as tribos primitivas contemporâneas. Aparece também em
nossos sonhos. Tem um poder de sedução dramaticamente flagrante e, apesar de
menos aparente, uma importância psicológica profunda. São mitos que variam muito
nos seus detalhes, mas quanto mais os examinamos mais percebemos o quanto se
assemelham na estrutura. Isto quer dizer que guardam uma forma universal mesmo
quando desenvolvidos por grupos ou indivíduos sem qualquer contato cultural entre si
– como, por exemplo, as tribos africanas e os índios norte-americanos, os gregos e os
incas do Peru. Ouvimos repetidamente a mesma história do herói de nascimento
humilde, mas milagroso, provas de sua força sobre-humana precoce, sua ascensão
rápida ao poder e à notoriedade, sua luta triunfante contra as forças do mal, sua
falibilidade ante a tentação do orgulho (hybris) e seu declínio, por motivo de traição ou
por um ato de sacrifício “heroico”, onde sempre morre.

Outra característica relevante no mito do herói vem fornecer-nos uma chave


para a sua compreensão. Em varias destas histórias a fraqueza inicial do herói é
contrabalançada pelo aparecimento de poderosas figuras “tutelares” – ou guardiães –
que lhe permitem realizar as tarefas sobre-humanas que lhe seriam impossíveis de
executar sozinho. Entre os heróis gregos, Teseu tinha como protetor Poseidon, deus
do mar; Perseu tinha Atenéia; Aquiles tinha como tutor Quiron, o sábio centauro.

Estas personagens divinas são, na verdade, representações simbólicas da


psique total, entidade maior e mais ampla que supre o ego da força que lhe falta. Sua
função específica lembra que é atribuição essencial do mito heroico desenvolver no
indivíduo a consciência do ego – o conhecimento de suas próprias forças e fraquezas
– de maneira a deixá-lo preparado para as difíceis tarefas que a vida lhe há de impor.
Uma vez passado o teste inicial e entrando o indivíduo na fase de maturidade da sua
vida, o mito do herói perde a relevância. A morte simbólica do herói assinala, por
assim dizer, a conquista daquela maturidade [...].

JUNG, Carl G.; FRANZ, M. L. Von; HENDERSON, Joseph L., JACOBI, Jolande;
JAFFÉ, AAniela. Heróis e fabricantes de heróis. In: O homem e seus símbolos. Trad.
Maria Lúcia Pinho. 6º.edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987, p. 110-111.
ATIVIDADE

1) Qual a ideia central dos verbetes de Olgária Matos e Carl Jung, e, qual a
relação entre eles?

Matos: entende o mito como significante. Há necessidade de lembrar e relembrar os


feitos do herói para mantê-lo como tal.

Jung: trata do mito do herói como simbólico. Mostra a unidade em equilíbrio e a


universalidade da narrativa em diferentes culturas.

Relação: ambos tratam do mito básico do herói, descrevendo-o de maneira similar –


necessidade de uma origem humilde, acompanhamento de um tutor divino (ou semi),
morte trágica em batalha em defesa de um ideal coletivo.

2) Em que medida esses verbetes dialogam com o texto de Luciana Ruschel


Nascimento Garcez – “O mito, o herói, o artista”, no que se refere aos
conceitos de MITO, MITOLOGIA, MITOLOGEMA, MITEMA e MITOCRÍTICA?
3) Tendo como base o verbete abaixo apresentado, relacione mito significante e
alguma narrativa consagrada por um ato supostamente heroico (por exemplo, o
“sebastianismo”, o “getulismo”, o “tancredismo”, etc.).

De acordo com Stuat Hall (2005) as identidades nacionais não são coisas com as
quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação.
Uma nação é uma comunidade simbólica, daí sua possibilidade de gerar um
sentimento de identidade e lealdade (um domicílio, uma condição de pertencimento).
As culturas nacionais são compostas de símbolos e representações (é um discurso,
uma “comunidade imaginada”). Como é contada a narrativa da cultura nacional?

a) em primeiro lugar, há a narrativa da nação, tal como é contada e recontada nas


histórias e nas literaturas nacionais, na mídia e na cultura popular. Essas
fornecem uma série de estórias, imagens, panoramas, cenários, eventos
históricos, símbolos e rituais nacionais que simbolizam ou representam as
experiências partilhadas, as perdas, os triunfos e os desastres que dão sentido
à nação;
b) em segundo lugar, há a ênfase nas origens, na continuidade, na tradição e na
intemporalidade. A identidade nacional é representada como primordial. Os
elementos essenciais do caráter nacional permanecem imutáveis, apesar de
todas as vicissitudes da história;
c) uma terceira estratégia discursiva é a invenção da tradição: “tradições que
parecem ou alegam ser antigas são muitas vezes de origem bastante recente e
algumas vezes inventadas... Tradição inventada significa um conjunto de
práticas..., de natureza ritual ou simbólica, que buscam inculcar certos valores
e normas de comportamentos através da repetição, a qual, automaticamente,
implica continuidade com um passado histórico adequado”;
d) um quarto exemplo de narrativa da cultura nacional é o mito fundacional: uma
estória que localiza a origem da nação, do povo e de seu caráter nacional num
passado tão distante que eles se perdem nas brumas do tempo, não do tempo
“real”, mas de um tempo “mítico”.

Contudo, em vez de pensar as culturas nacionais como unificadas, deveríamos pensá-


las como constituindo um dispositivo discursivo que representa a diferença como
unidade ou identidade. Elas são atravessadas por profundas divisões e diferenças
internas, sendo “unificadas” apenas através do exercício de diferentes formas de
poder cultural (...) (Stuart Hall, 2005, p. 47-65).

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