Mauricio Pelegrini
ORGANIZADO RES
11 Femi nism os e ·
Cont raco ndut as
Persp ectiva s
Fouca ultian as
1 nter rn e iL)s
1
i 1
- 1
Sumário
APRESENTAÇÃO 9
11. RACIO NALID ADE NEOL IBERA L E SEGUR ANÇA : EMBA TES ENTR
E
DEMO CRACI A SECURITÁRIA E ANAR QUIA
225
AcÁc 10 AUGU STO e HELE NA W1LK E
12. MULH ERES COMP OSITO RAS NO BRAS IL DOS SÉCUL OS XIX E XX 247
Ana Carol ina Arrud a de Toledo Murg el
13. DEVIR QUILOMBA: ANTIR RACIS MOS E FEMIN ISMO COMU NITÁR
IO NAS
PRÁTI CAS DE MULH ERES QUILO MBOL AS
267
MARI LÉA DE ALME IDA
14. FUGA DA PESTE , DO SUJEI TO E DO DESER TO
291
ToNY HARA
1
1
1. O Frankenste in do neoliberalismo:
liberdade autoritária nas "democracias"
do século XXI 1
WENDYBROWN
3. 88% d~s eleitores de Trump eram bra ncos, em um país onde os brancos constituem 62%
da pop~l açao. Ele recebeu o_apoio de m ais qu e a metade das eleitoras brancas; 2/3 dos eleitores
brancos, e quase 2? dos elett~rcs brancos acima de 50 anos (Tyson; :M aniam, 2016).
1 01ir~p conquistou o apow de _213 dos eleitores brancos sem diploma universitário (Silver,
dº • go ent:"e 1/5 e_1/4 dos eleitores de Trump entrevistad os em p esquisas de boca de urna
. tss_eram _que nao considera~am _T rump como qualificado para a pres idência, sugerindo ue a
t
JU S ificaçao de suas fru st raçoes, 1ra, preconceito e ódio hierárquico fora m decisivos (Ro~erts
2016). '
MARGARETH RAGO • MAURICIO PELEGRINI (ORGS.) 19
selvagem" até mesmo por Marine Le Pen, está desenfreada por todo o
Euro-Atlântico, onde os habitantes brancos das classes trabalhadoras e
médias enfrentam um acesso decrescente a rendas decentes, habitação,
escolas, aposentadorias e futuros, e levantaram-se numa rebelião política
contra usurpadores sombrios imaginários e também contra os cosmopolitas
e as elites que consideram responsáveis por terem escancarado as portas
de suas nações e se livrado deles. Isso nós sabemos. Mas qual é a forma
política dessa ira e sua mobilização? Os velhos termos usados para
descrever isso - populismo, autoritarismo, fascismo - apreendem de forma
inadequada essa mistura estranha de belicosidade, desinibição e uma
combinação antidemocrática de licença e apoio ao estadismo nas atuais
formações sociais e políticas. Eles também não identificam os elementos
específicos da razão neoliberal - um alcance radicalmente extenso do
privado, uma desconfiança da política e um repúdio do social, os quais
juntos normalizam a desigualdade e destroem a democracia - que moldam
e dão legitimidade a essas paixões da política da direita branca e raivosa. E
eles não apreendem o niilismo profundo que está transformando os valores
em brinquedos, tornando a verdade inconsequente e o futuro uma coisa
indiferente ou pior, um objeto de destruição inconsciente.
No que se segue, explorarei essa conjuntura a partir de um único
angulo: o que gera as dimensões antipolíticas e, no entanto libertárias
e autoritárias da reação popular de direita nos dias de hoje? 01ie novas
iterações e expressões de liberdade foram forjadas a partir da conjuntura da
razão neoliberal, do poder branco masculino injuriado, do nacionalismo,
de um niilismo não reconhecido? De que forma a liberdade se tornou o
cartão de visitas e a energia de uma formação tão manifestamente não
emancipatória, na verdade caracterizada rotineiramente como anunciadora
de uma "democracia não liberal" em seus ataques à igualdade de direitos,
ao constitucionalismo, às normas básicas de tolerância e inclusão e sua
afirmação do nacionalismo branco, de um estadismo forte e de líderes
autoritários? Como e por qual motivo a _liberdade e o iliberalismo, a
~ __o__ a_utori.taris_m9,__âJiherdade e _a _ex~lusão social legi_
t imi.~~~a
~ v-i.olêI-1-G-i-a-soei-al-s-ê -OOG@.n.tram combinag_os ~ nossos diª-5.? De que
maneira essa fusão desenvolveu uma atração e umam odes ta legitimidade
em nações antes democráticas e liberais? Esse ensaio não fornece a
genealogia que responderia de forma abrangente a essas questões, mas
oferece uma primeira incursão. Ele segue vários tributários históricos
9
20 NE OL IBE RA LIS MO , FE
MI NIS MO S E CO NT RA
CO ND UT AS
A s LÓ GI CA S E EF EI TO S DA RA ZÃ
O NE OL IB ER AL
O neoliberalismo é co m um en
te co m pr ee nd id o co m o um co
políticas econômicas que prom nj un to de
ove ações sem restrição, fluxos
de capital po r meio de tar e ac um ul aç õ: s
ifas baixas e im po sto s, de sre
das indústrias, privatização gu lam en taç ao
de bens e serviços pr ev ia m
desmonte do Estado de be m en te públicos,
-e sta r social e a de str ui çã o
organizado. Foucault e outro do tra ba lh ism o
s nos ensinaram ta m bé m a
neoliberalismo como um a rac co m pr ee nd er o
ionalidade go ve rn am en tal qu
distintos de sujeitos, de formas e ge ra tipos
de co nd ut a e de or de ns de se
social. 5 Di fe re nt em en te da ide nt id o e valor
ologia - um a distorção ou m
realidade - a racionalidade ne iti fic aç ão da
oliberal é produt iy_a, f~_!ll~~<?~
ela coloca sob um viés econ do:
ômico cada esfera e_ e_{!!peE
s ubstitui um modelo de socie 1io hu m an ~ e
dade basead a nu m co nt ra to
de ju sti a or um a sociedade so ei ~ -- ro du to r
concebida e organiza a co m o
stados orientados pelas necessi m er ca do s, co m
dades do mercado. a m e i
racionãITaade neolioe ral se tra a em qu e a
ns fo rm a em nosso senso co m
seus princípios não governam um ge ne ra liz ad o,
so m en te po r meio do Es ta do
os locais de trabalho, as escolas , m as pe rm ei am
, os hospitais, as academias, as
o policiamento e to da forma viagens aéreas,
do desejo e decisões hu m an
superior, po r exemplo, não so as . A educação
m en te é reconfigurada pe la
neoliberal como um investime racionalidade
nto do capital hu m an o na m
próprio valor futuro; essa trans el ho ria de seu
formação to rn a lit er al m en te
ideia e a prática da educação co ininteligível a
mo um be m público de m oc rá
universidades é afetado po r iss tic o. Tu do nas
o: níveis de en sin o e pr io rid ad
cl~r~,. mas tam bé m os currícu es de or ça m en to ,
los, o ensino e as práticas de
cn ten os de admissão e de cont pesquisa, os
ratos, as questões e co nd ut a ad
As coordenadas de nações os m in ist ra tivas.
tensivamente de m oc rá tic as
forma reformatadas. U m exem são da m es m a
plo: pouco depois de sua eleiçã
o em 20 17 , o
5 • Baseada nas con ferências
racional" d d de F
1 l a e em
U d . ou cau 1t em 71.vas
n om g the D emos (B row n, i20
1 •
cim ento da biopolít ica , oferec
15) . i um res um o dessa
p
. do ataque à sociedade e ao
Q y al o motiv o social? Pa ra os neoliberais
t
como f:amosamen e disse M ar ga re t Th atc he r, a socie . ,
dade não existe. A
. d Thatcher Fr ied ric h Ha
estre1a-guia e ' ye k, la m en to u "o socia . ,,
l como
um termo sim · lta ne am en te mítico, in co .
u er en te e perigoso, falsamente
antropomo'rf icO e, ale'm disso, fazendo uso ta m be, m " . . ,,
do an im ism o (Hayek
1988, p. 108 e p. 112-113; Ha ,
ye k, 19 82 , p. 75 -7 6) . O ~ue
no reino do social algo tão fa z da crença
abominável pa ra Ha ye k e qu
inevitavelmente a localizar ne e ele conduz
le a ju sti ça e a or de m planeja
sua vez, implica solapar a or de da. Isso, por
m di nâ m ica fo rn ec id a pe la co
mercados e moral, ne nh um dos mbinação de
quais em an a da ra zã o ou da in
evoluem espontaneamente (H ten çã o, ambos
ayek, 19 88 , p. 67 e p. 11 6- 11 7;
p. 66-68). Além do m ais ,já qu Ha ye k, 1982,
e a ju sti ça di z re sp eit o à co nd
com regras universais, é um ter ut a compatível
m o errôneo qu an do aplicado
ou estado de um povo, como à condição
no ter m o "justiça social". A
então mal orientada, ataca a lib ju sti ça social é
erdade em es pí rit o e de fato
inevitavelmente substituí-la pe , já que tenta
la ideia do Be m de um gr up o.
Fora seu papel na execução de
políticas sociais m al orientad
que os neoliberais são tam bé m as, por
co nt ra o político? Pa ra M ilt on
a dupla ameaça da política à lib Friedman,
erdade te m sua base na su a co
de poder inerente, que é dispe ncentração
rsa pelos mercados e seu in
coerção fundamental, seja po r str um en to de
governo ou po r injunção, ao
mercados permitem escolhas passo que os
(Friedman, 2002). Em bo ra
que alguma medida de ordem ele reconheça
política é indispensável pa ra
estáveis e seguras, e até mesm sociedades
o pa ra a existência e saúde
(propri~dade e leis de contrato do s mercados
s, política m on et ár ia e assim
para Fn ed m an todo ato polít po r diante),
ico, regra ou m an da to é um
liberdade individual. At é m es a subtração da
m o a democracia, sempre qu
alcanç~r ~ unanimidade, co mp e deixa de
ro me te a lib er da de ,já que im
da ma. iona sobre a minori·a Em põ e a vontade
• co n t raposiç · ~ •
permitem que as preb ao a isso, os m er ca d os sempre
ere ncA
ias
• d' 'd .
in ivi uais prevaleçam, o eq
•
Tam bém Frie dric h Hay ek achava que a vida polí tica com
prom etia
a liberdade indi vidu al e a orde m e prog ress o espo ntân eos
que ela gera
quando disc iplin ada (e, port anto , resp onsa biliz ada) pela com
peti ção. Isso
é mais do que uma sínte se para um gove rno limi tado .
Ant es, para Hay ek,
a política enqu anto tal e a dem ocra cia, em especial, limi tam
a libe rdad e
na med ida em que conc entr am o pode r, cons tran gem a ação
indi vidu al,
desorganizam a orde m espo ntân ea e disto rcem os ince ntiv
os natu rais,
as distribuições e, port anto , a saúd e dos merc ados . Em Lei,
legislação e
liberdade, Hay ek com eça com uma epig ram a de Wal ter Lipp
man n: "Em
uma sociedade livre, o Esta do não adm inist ra os negó cios
hum anos . Ele
administra a justi ça entr e hom ens que cond uzem seus próp
rios negó cios "
(Lip pma nn apu dHa yek, 1982 , p. v).
Entr etan to, mes mo essa man eira de colocar a ques tão, na
med ida
em que ela se conc entr a no Esta do e na econ omi a, dá pouc
a ênfa se à
textura e ao loca l em que ocorre a liber dade neol iber al, na
qual tant o a
~esre gula men taçã o quan to a priv atização se torn am prin cípio
s mor ais e
filosóficos amp los, este nden do-s e bem além da econ omi a.
Qy.a ndo esses
princípios se afirm am, restrições à liber dade em nom e da
civilidade, da
igualdade, inclu são ou bem público, e, acim a de tudo , em nom
e daqu ilo que
Hayek cham a "a peri gosa superstição" da justi ça social estã o num
continuu m
com o fascismo e o tota litar ismo (Hay ek, 1982 , p. 66). Para
com pree nder
isso, é preciso que cons ider emo s mais de pert o a com pree nsão
f: 2 / que Hayek
--ª- da liberdade. ,---- t;, ~ - .
Para Hay__ek, a liberd ad e prev alece ande não exist e coer ção hum ana
intencional; ela é restr ingida som ente por regras obri gató
rias, inju nções
?u ameaças. Inde pend ênci a ou liber dade , utili zadas por
ele de form a
intercambiável, nada mais e' do que "'10d epen d"enc· iaa d vonta de arb'ttra, n~·
de outre m''·
----- =--= . ) ela se refere som ente à relação dos hom ens com outr os hom ens
.r
N E O L IB E R A F E M IN IS M O s E co N T R A C O N D U T
24 L IS M O , AS
, . . fração d
e a unic am ela é a coerça-o 1 h o m e n s (H a y e k 1960, p. 5 9 -
pe os
60) Hayek reje
ita explicitamen a1 uer outro sentido d' e h.b e r da de e
, . .a te qu q
e espec1 lmente hostil a significados qu aproximam d a
c ap a c 1
.d d
a e ou
do oder de ag e se a li z a
ir - "liberdade d " u m a li b e rd a d e com
a s~berania po e - o 6q1u-6e8e).qu
pular (Hayek, E s te s ele cons1•d -
meramente erra 1 960, P· dida era nao
dos mas perigo e m que c o n d u
- so s, n a m zem a uma
sensaçao a mp li a da de direito, p e m c o n trole d o E s ta d
forma de distrib ortanto, a u . o sob a
uição de rec~rs laneJamen to social. A li b e rd a d e
concebida como os eu~oberania
agência, capacid p ro d u z in te rv e _
tanto limitam a ade o t n ç o e s. .que
verdadeira lib~rd d e s tr o e m a o rd e m e s p o n
que ela gera. D ~~e qu;~bºerdad ta n e a
ito de forma in e buscada o u
parte de seu sen lisi~~ a1 (isso pratica_da à
tido no merc~ incluiria to d o s
. -o da esque o : os projetos
de emancip aça rda) inevitaevre 1m te sofre u m a inversã
oposto da liberd en o p a ra o
ade.
Por que moti·vo de acordo co H k a o rd e m
, m aye , e s p o n tâ n e a d
interdepen d"~nci. e desenvolvimento da . ·u - m e r
e
ausência de inte a - lí f ~ " u civi zaçao e e a p enas na
g
com peritos, plarvençao po ica. ~ a l é a razão dessa h o s ti li d a d
nejadores e mesm e p a ra
, te o p a ra c o m o rd e n s legais . A
esta na oria de Hayek da ignorância ? . r:s~os~a
de que não há e n so cial in e re n te , e m
em pode haver u s u a 1ns1stenc1a
seja da parte d m conhecimen •
os indivíduos o to s u p e ri o r d a s o c · d d
individual tem u dos grupos: "~ ie a e,
seu principal ap d e fe s a d a . li b e
inevitável de tod oio no re c o n h r~ a ~ e
os nós a respeit e c im e n to d a 1
quais dependem o de u m grand gnoranc1a
a realização dos e n ú m e ro d o s
homens oniscien nossos fins e b e fa to re s d o s
tes .. . haveria po m -e s ta r.. . se e x is
p. 80-81). Segu uca defesa d a li ti s s e m
ndo Hayek, o berdade" (H a y
embasamento e k , 1960,
0 qual as civiliz d o c o n h e c im e n to s
ações foram co o b re
demasiado amp nstruídas está
la e sedimentad d is s e m in a d o d
possa se: reunid o p o r demais e fo rm a
o e processado p ro fu n d a m e n te
algum. E assim p o r qualquer p p a ra q u e
que u m Estado e ss o a o u g ru p o , e m
planejamento so que se p e rm it a lu g a r
cial cometerá fazer u m a p o lí
inovação e a o erros, limitará ti c a o u
rdem gerada p a li b e rd a d e , s
portanto, a resp elos mercados u fo c a rá a
onsabilidade. O e re d u z ir á a d
planejamento is c ip li n a e,
assim inerentem o u o c o n tr o le e
ente opressivo, s ta ta l é
1960, p. 75-90). cheio de erros
E m contraste c e desvitalizado
de perspectiva in om isso, a libe (H a y e k ,
teligente secula rdade g e ra u m
que responsabil r, quando é disc a e s p é c ie
iza o uso da lib ip li n ada p e la c o m p
erdade. e ti ç ã o
MARGARETH RAGO • MAUR1c10 PELEGRINI (oRGs.) ✓~/2~ ·25
~~ Õ7~
, /f~'Q'r"
E possível que o princípio original nos seja familiar desde Adam
Smith, mas ele foi modificado de forma significativa por H_aJre-k, que
expandiu seu campo de ação. ComQ___f9ucault nota, a modificação substitui
a- t~OC8: __ pel~ _~.9!!1.2~_!]ção
-----.como o motor
------ · da -o~dem
--------- ------ e desenvolvimento
- -- -=----=-----=--...:..______
espontâneo e necessita, assim, que a competição seja instalada em todos
os domínios e implantada em todos os sujeitos (Foucault, 2008, p. 118). A
gpansão postula a liberdade de mercado como um princípio ontológiÇQ
e normativo abrangente: toda a sociedade é como um mercado e melhor
organizada como um mercado, e toda liberdade (pessoal, política, sociaf,
cívica) tem uma forma de mercado. Essa expansão é o que transforma uma
teoria econômica em uma teoria cosmológica: o mesmo tipo de liberdade
deve prevalecer em toda parte e é capaz de produzir efeitos positivos por
toda parte. A liberdade gera disciplina, e a disciplina gera inovações sociais,
eficiências e ordem.
A dimensão normativa da teoria de Hayek anima o projeto construtivista
neoliberal para transformar seus princípios em princípios ubíquos de
governo. 6 Mas de que maneira esse projeto normativo se estabelece? Isto
é, como é que a liberdade se expande para todos os domínios da existência
e, de modo inverso, como são confinados e reduzidos o alcance e poder
da política? A resposta familiar é que isso se dá pela privatização dos
bens públicos e a responsabilização dos sujeitos - a missão explícita do
thatcherismo e reaganismo nas décadas de 1980 e 1990, e de todos os governos
neoliberais desde então. 7 No entanto, importante como é, a privatização-
econômica trabalha apenas uma das pontas do problema que os neoliberais
tencionam resolver, já que elimina as restrições à liberdade eliminando as
proi ~fedades do governo e responsabilizando sujeito_s _e famíl_ias através
~o _desmantelamento das provisões pública& Mais crucial para nossos
propósitos é o interesse de Hayek em expandir o alcance e o_direito do que
dire ito das famílias e igrejas de influ enci ar, qua ndo
não controlar, a vida
cívica e O discurso das com unid ades , cida des e naçõ es.
Em vez, esses erros
são em seu conj unto escu lpid os num a figu ra de um anti
cris to político no
inte rior de uma form ulaç ão haye kian a de libe rdad e que
valo riza e expande
0 priv ado para recu ar o alcance do polí tico e colo car em ques tão a próp
ria
existência do social. 14 Amp lific ar a com petê ncia do
priv ado e amplificar
a força desi nteg rado ra da desr egul ame ntaç ão de tudo
em toda s as partes
capa cita a prát ica nova da libe rdad e a mat eria liza r de form
a bast ante literal
a afirmação de que "não existe essa coisa, a soci edad
e", já que ataca os
valores e as prát icas que sust enta m os laços sociais, a
coop eraç ão social, a
provisão social e, claro, a igua ldad e social.
É fácil de ver, nesse pon to, com o falas e com port ame ntos
algumas
vezes viol enta men te sexistas, tran sfób icos , xenó
fobo s e racistas
irro mpe ram com o expressões de libe rdad e, cont radi zend
o os ditames da
correção política. Qya ndo a esfe ra prot egid a, pessoal,
é amp liad a, quando
a oposição à restr ição e ao regu lam ento se torn a um
prin cipi o universal
e fund ame ntal , quan do o social é avil tado e o polí
tico dem oniz ado, a
anim osid ade indi vidu al e os pod eres hist óric os do dom
ínio dos homens
brancos são tant o legi timi zado s qua nto desa trela dos.
Nin gué m deve nada
a ning uém ou poss ui o dire ito de rest ring ir algo a
qual quer pessoa; a
igualdade, com o Hay ek decl arou com fran quez a, não
é outr a coisa que a
ling uage m da inve ja (Ha yek, 196 0, p. 155 -156 ). Enq uan
to isso, a oposição
da esqu erda ao sent ime nto supr ema cista é desc rita
com o policiamento
tirân ico, que tem suas raíz es no mito tota litár io do
social e faz uso dos
pod eres coer citiv os do polí tico . Isso tem com o efei
to uma reformulação
prof und a e não simp lesm ente um nov o acen der das
guer ras culturais, que
se cheg ou a ima gina r que tive ssem culm inad o no fina
l do século X:X. 15
O!ie ro ser bem clar a ness e pon to. Não esto u
afirm ando que
Hay ek ou outr os neol iber ais ima gina ram ou defe
nder am os ataques
surp reen den tem ente esca ncar ados aos imig rant es,
aos muç ulm anos , aos
negr os, aos jude us, aos gays e às mul here s que part em
hoje em dia de uma
14 . H aye k consi"derava a Justiç
· · a socia · 1 " uma f"rau d e sema• ntica
· " , uma "st1perstiç~' o perigo . "
" sa '
aquele incubus que faz dos belos senti ment os os instru
ment os para a d estn 11·Çao
- de todos os
. _ d
· ·1· - 1·
va1ores d e uma civi izaça o ivre", e, d a mane ira
· mais · reve1a d ora, com o gerando" a destnuçao 0
. • . . b r
am b iente mdis pensa,vel em que some nte pode m florescer os va1 · • tradicionais, a sa e '
ores morais '
a liberd ade pessoal". Ver Haye k, 1982, p. 67-7 0.
15 . A esque rda não está imun e a esse deslo came f1 ações
• nto do pu, bl'ico com os valor
' es. e preoc
d u ·
texto.
pnva das, mani festo nas preoc upaçõ es com espaços segur d • · ao leitor e um
os e a verte ncias '
MA RG ARE TH RAGO • MA
URI CIO PEL EG RIN I (OR GS.
)
31
e
32 NEO LIBE RAL ISM O, FEM INIS MO S
E CON TRA .coN n
l
U1'A. s
!7• Repito, esse evento coloca a liberdade bem além do escopo e jogo imaginados pdos
intelectuais neoliberais.
18 - Até mesmo a extraordinariamente cautelosa e sutil Jacqueline
Rose (2016) parece tkrtar
co~ a noção de que aqueles impulsos repulsivos estejam simplesmente lá, nas profundezas d :1
psique, aguardando serem ativados ou liberados.
NEOLIBERALISMO, FEM INIS MOS E CONTRA.e
--,
34 ONnlrr
J\ ~
.
que haV1am perd'd i O
seus emp rego s perc ebe ram de form a rudimentar
. ,., ' , • b urna
hgaçao entre o decl ínio do Esta do-n ação , seu pro pno em- esta r econôm·
. . ico
, .
em dec1mio e o declínio da sup rem acia .bran ca mas . .culi na, até que
plataformas políticas dos part idos naci ona lista s Ade as
_direita a ~~licitassern.
E eles estão certos: arru inad os pela tran sferenc1a
e terce1nzação dos
empregos operários sindicalizados para o exte rior
, pelo desaparecimento
da moradia acessível e pelos mov ime ntos glob ais de
trab alho e capital sem
precedentes, a era do prov edo r bran co segu ro _e ~a
s~b eran ia do Estado-
nação no nort e global cheg ou ao fim. Ess a cond1çao
nao pod e ser revertida,
mas pode ser inst rum enta liza da poli tica men te. Aqu
i a figura hiperbólica
do imigrante é especialmente pote nte, na qua l o terr
oris ta se funde com o
ladrão de empregos, com o crim inos o e com o vizi
nho que evita trabalhar
e onde, inversamente, falsas promessas de potê ncia
eco nôm ica restaurada
se mis tura m com falsas promessas de uma sup rem
acia racial e de gênero.
Limites porosos de vizi nha nça e da nação, status soci
oeco nôm ico solapado
e novas formas de insegurança são tran çad os junt
os num a lógica causal
racializada e num a reparação em term os eco nôm icos
. Com o no slogan do
Brexit, "nós vamos controlar noss o país nov ame
nte. " Ou novamente os
fjranceses, "a casa e,
nossa" .
E é, no enta nto, um erro enx erga r os hom ens brancos
da classe operária
e média como prejudicados de form a espe cial pela
polí tica neoliberal e
negligenciados de form a especial pelo s polí tico s neo
libe rais . Essa censura
comum à cam pan ha de Hill ary Clin ton por part
e dos críticos liberais
mais conhecidos - a de que ela se con cen trav a em
excesso nas políticas
de iden tida de e dava pou co espa ço ao trab alha dor
bran co - erra o alvo
qua nto à extensão em que o desl oca men to sofr ido
pelo s bran cos, e pelos
ho~ e~s bran~os em especial, não é uma exp eriê
ncia prin cipa lme nte de
dechnio e_conomico, mas sim da perd a de dire itos
polí tico s, sociais, de uma
supr e~~ cia eco nom icam ente repr odu zida e, port anto
, o mot ivo pelo qual
os pohticos de direita e da plut ocra cia se pod em
perm itir não fazer nada
por seus eleitorados, enq uan to aliviam seus feri men
tos com uma retórica
anti-imigrantes t' • 1 .
, an inegros e ant1g oba liza ção e enq uan to eles re a1· h na
forma e a voz da 10 ai
. naça- o com a 1orm
e '
a e a voz do nativisn10. Repetimos, 5ei·t
·
J'
ao alveJ~r os multiculturalistas, as elites polí tica s,
os refugiados os acadêmicos liberais,
e · • . .
d d' .
s Matter,. .~1 ra jva
' as iem mis tas ou os ativistas do Black Live . .
ª1 irde1ta con tra o "po litic ame nte corr eto" e a "justiça
pe O estrona 1n social" é alimentada
d b
ento os rancos, dos hom ens bran cos especi·· al men de
te,
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MARGARETH RAGO • MAURIC IO PELEGR INI (ORGs.)
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19. O mantra é novame nte a liberdade - a liberdade de se fazer e dizer aquilo que se deseja, de
pegar o que se pode, guardar o que se ganha, liberdade da exigência percebida de reconhe
cer o
próprio privilégio e compart ilhar a riqueza socioeconômica. Esse direito de posse foi e
é, claro,
personificado pelo de Donald Trump - não somente suas banheiras douradas e fanfarro
nice a
respeito de pegar nas xoxotas, sua fuga "esperta" dos imposto s, mas também em sua indignaç
ão,
?epois de assumir O cargo, de que lhe era impossível govc1:nar por ~e~reto, d~spedir a impr_ens
1mpor sua proibição aos muçulm a,
anos, ou, de º\ttr~s formas, v1ci.u o sistema de freios e
contrapesos que são os remanes centes da democracia liberal.
~O . . "A luta contra os judeus tem sido sempre u~. sintoma dos piores car~cteres, ,~quel~s _mais
1nveJosos e mais covardes.
Aquele que agora part1c1pa dela tem que ter mmto da d1spos1çao da
turba" (Nietzsche apud Santaniello, 1997 ).
-i c.-o--n.~G . o.e d· re :;.
e ü.tn~ ~ ~ ' ( ·e ... t<i.~i ca
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havia subido para setenta e dois por cento em outubro de 2016, quando
Trump era candidato. De forma semelhante, em 2011, sessenta e quatro
por cento dos evangélicos brancos consideravam ser muito importante
para um candidato presidencial possuir uma crença religiosa forte, número
que caiu para quarenta e nove por cento durante a campanha de Trump
(Blow, 2017, p. A21). Tais mudanças foram certamente efeito menos de
uma profunda reflexão ética e mais de uma mudança nas marés da política.
Assim funciona o niilismo - não a morte de valores, mas eles se tornando
multiformes, juntamente com sua disponibilidade para projetos de gestão
de marcas e para acobertamento de propósitos que manifestamente não
são compatíveis com eles.
Além dos valores, tanto a verdade quanto a razão perdem suas amarras
em uma era niilista (Nietzsche, 1968, p. 10). A verdade, ainda suspensa,
cessa de precisar de provas, ou até mesmo de um raciocínio; as acusações
constantes de ''fake news" são eficazes e populações altamente setorizadas
recebem relatos de eventos dirigidos às suas convicções estabelecidas.
Contudo, as próprias convicções estão cada vez mais desligadas da fé e
imunes a argumentação; elas disfarçam mal sua emanação do ressentimento,
do impulso ou ultraje. Exemplificado pelos tabloides ingleses agitando seu
apoio ao Brexit, a mais notória expressão de niilismo a esse respeito é a clara
indiferença de Trump para com a verdade, a consistência, ou convicções
políticas e morais afirmativas (diferentemente de convicções baseadas no
ressentimento). Qye os apoiadores de Trump e a maior parte da mídia de
direita compartilhem em grande parte essa indiferença enfatiza o caráter
niilista da época.
Para Sluga (2017, p. 16), o trum pismo personifica outra característica do
niilismo, tal como descrito por Nietzsche, uma característica crucial para as
qualidades antissociais da liberdade em nossos dias. Essa é a dessublimação
da vontade de potência. Tanto Freud quanto Nietzsche entendem os
valores e o mundo compatível com eles como sublimações daquilo que
Freud chamou de instintos ou pulsões, e que Nietzsche chamou de vontade
de potência. Ambos entenderam o animal humano indomado como sendo
mais livre e de algumas formas mais feliz na ausência de tal sublimação, mas
também como correndo o risco de autodestruição e destruição por outros.
Acima de tudo, ambos entenderam a própria civilização como sendo um
produto da sublimação. Com a desvalorização dos valores do niilismo,
existe, como argumenta Sluga (2017, p. 17), "um recuo e um colapso da
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38 NEO LIB ERA LISM O, FEM INIS MO
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24. Existem inúmeras variações do relato dessa eleitora de Trump sobre seu apoio a ele: "Não
parece que faz qualquer diferença qual partido entra. Seja o que for que digam que vão fazer
quando chegarem lá, eles não podem fazer realmente ... Eu só quero que ele perturbe ao máximo
todo mundo, e ele fez isso" (Rosenfeld, 2017).
25. E, precisamos acrescentar, quando a proletarização se desloca para o Sul Global,
beneficiando as populações do Norte com mercadorias baratas e abundantes, indo de comida e
vestuário até carros e produtos eletrônicos.
N E O L IB E R A F E M IN IS M O
40 L IS M O , S E co N T R A
CON D U T As
iz 'q u e
e . • r o conflito e n tr
sociais po r me·io do alinhamento e o desejo e as
n e c e s s i· d~ des
Marcuse faz uso da n o s s a c o n s
de Freud e de c iê n c ia c o m
Hegel: nas cu M a r x p a ra radic o regime.
lturas comuns alizar a f o r m 1 - d
"consciência infe d e do1::in~ção, a u açao e
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dos anseios "m a consciencia - rcuse,_ a
aus", tanto no a condenaçao
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e a consciência ociedade (M a
do superego pa é s im u lt a n e a m rc u s e , 1964, P
ra o controle in e n te u m e le m e n ·
a respeito da so terno e u m a fo to n o arsenal
ciedade. N a m n te d o ju lg a m
oferece uma su edida e m que e n to moral
spensão dessa a d e s s u b li m a ç
feliz" (um eu m censura rí g id a ã o repressiva
enos dividido e d á ocasião à "c
reprimido), a c se to rn a u m e onsciência
onsciência é a u menos cons
primeira v ít im c ie n c io s a m e n
a consciência se a . D e te
descontrai não m a n e ir a im p o
sujeito, mas ta apenas e m rela rt a n te ,
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conduz a u m s e n o s repressão são
uperego menos n e s s e c o n te x to
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ciedade não em icando m e n o s
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perda de consc para todos. N d iz e r m e n o s
iência devido a a s palavras d
liberdades sati e M a rc u s e , "a
sfatórias c o n c
e d id a s p o r u m
26 · "Pn· d a
va O das re1v
· ·m d'icaç -
prazer, ajustado oes que sa- o ·ir
assim, gera sub reconciliáveis
missão" (Marcu co m a so ci ed
se, 1964, p. 7 6 ad e es ta b el ec
). id a .. . o
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l\1ARGARETH RAGO • MAURICIO PELEGRINI (ORGS.) 41
sociedade não livre produz uma consciência feliz que facilita a aceitação das
más ações dessa sociedade. [Essa perda de consciência] é o símbolo de uma
autonomia e compreensão erri declínio" (Marcuse, 1964, p. 76).
Qye tal dessublimação diminui a força da consciência faz sentido
intuitivamente, mas por que Marcuse associa isso à autonomia e compreensão
intelectual em declínio do sujeito? Aqui sua ·questão complexa difere
do argumento de Freud em Psicologia das massas e análise do eu, de que a
cons~iência é reduzida quando o sujeito efetivamente a transfere para um líder
idealizado ou uma autoridade. Para Marcuse, a autonomia declina quando
declina a compreensão (isto é o seu lado cognitivista, senão o racionalista)
e a compreensão declina quando não mais é necessária para a sobrevivência
e quando o sujeito não emancipado é embebido de prazeres e estímulos
dos bens de consumo capitalistas. Colocado de forma inversa, a repressão
das pulsões exige trabalho, incluindo o trabalho do intelecto. 27 Portanto, na
medida em que a dessublimação do capitalismo tardio relaxa suas exigências
contra as pulsões, mas não liberta o sujeito para se autodirigir, as exigências de
intelecção são relaxadas de forma substancial. 28 Livre, estúpido, manipulável,
absorvido, mas não viciado por estímulos e gratificações triviais, o sujeito
da dessublimação repressiva na sociedade capitalista avançada não somente
é livre em termos da libido, liberado para desfrutar de mais prazer, mas
liberado de expectativas mais gerais da consciência social e da compreensão
social. Tal liberação é amplificada pelo ataque neoliberal ao social e pela
depressão da consciência promovida pelo niilismo.
Marcuse argumenta que a dessublimação repressiva constitui "parte
integrante da sociedade na qual ocorre, porém de forma alguma sua
negação" (Marcuse, 1964, p. 77). Possui a aparência de liberdade, enquanto
suporta o status quo e se submete a ele. Suas expressões, diz Marcuse,
podem ser suficientemente audazes ou vulgares para ter até mesmo a
aparência de dissidência ou de rebeldia - pode ser "desenfreada e obscena,
viril e de bom gosto, e bem imoral" (Marcuse, 1964, p.77). Contudo, esse
atrevimento e desinibição (repetindo, manifestos nos tweets, blogs, no
27 • Mesmo dizer um forte "não" a eles ou sublima·r suas energias em formas socialmente
aceitas é apoiado e organizado pela moralidade e teologia sociais dominantes, e ocorre a níveis,
em grande medida, inconscientes.
28 - Marcuse descreve uma "atrofia dos órgãos mentais para compreender contradições
e alternativas" e faz uma afirmação famosa: "O real é racional... e o sistema estabelecido
corresponde às expectativas" (Marcuse, 1964, p. 79).
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42 NEOLIBERALISMO, FEMINISMOS E CONTRACONDUTAS
CONCL USÃO
REFERÊNCIAS