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Revista Duc In Altum Caderno de Direito, vol. 1, nº 1, jul-dez. 2009.

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O PRAGMATISMO seus costumes, seu senso do


COMO direito e todo o resto, e acres-
centando um pouco aqui e
ALTERNATIVA À
retirando um pouco ali, deve
LEGALIDADE determinar do modo mais sá-
POSITIVISTA: bio que puder qual peso fará
O MÉTODO pender a balança. (...) Após ter
JURÍDICO- terminado o cansativo proces-
PRAGMÁTICO DE so de análise, deve haver para
todo juiz uma nova síntese que
BENJAMIN NATHAN
ele terá de fazer por si mesmo.
CARDOZO. O máximo que ele pode espe-
rar é que, com muito pensa-
mento e estudo, com anos de
George Browne Rego1 prática como advogado ou juiz
e com a ajuda daquela graça
interior que chega de vez em
“É uma questão de grau se a lei quando ao eleito de qualquer
que toma minha propriedade e vocação, a análise possa ajudar
limita minha a conduta, preju- um pouco a tornar a síntese
dica minha liberdade de manei- verdadeira.”2
ra indevida. Assim, dever de
um juiz se torna também uma A opção pela assertiva de
questão de grau, e ele é um juiz Cardozo acima enunciada, a
útil ou um juiz medíocre quan- título de introdução ao presen-
do calcula a medida de forma te estudo, não pretende apenas
exata ou imprecisa. Ele deve esteticamente constituir, como
equilibrar todos os seus ingre- às vezes ocorre no frontispício
dientes, sua filosofia, sua lógi- de alguns trabalhos acadêmi-
ca, suas analogias, sua história, cos, uma referência bibliográfi-

1 Professor do Programa de Pós-


Graduação em Direito da UFPE e da 2 CARDOSO, Benjamin Nathan. A
Faculdade Damas da Instrução Cris- Natureza do Processo Judicial in Morris
tãPós-doutorado pela Universidade Clarence org. Os Grandes Filósofos do
de Oxford.Membro do College of Direito. Martins Fontes: São Paulo,
Preceptors – UK. Ex-Reitor da UFPE 2002, p. 540.
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ca ilustrativa que empreste uma intimidade da morada do direi-


tonalidade um tanto quanto to.
literária ao conteúdo que se Portanto, o primeiro pas-
pretende investigar. Sua eleição so a ser dado, antes que se ten-
tem como objetivos: te propriamente abordar as
a) Fazer com que, didati- implicações metodológicas
camente, os seus ouvintes, ou inerentes à natureza da filosofia
leitores imirjam, de um só gol- pragmática consiste em procu-
pe, no cerne do tema que do- rar averiguar, sumariamente,
ravante será aqui discutido, a em que sentido o termo méto-
saber: a partir da concepção do foi concebido na moderni-
metodológica positivista, apre- dade recente, particularmente
sentar uma amostra da aborda- no que concerne à sua relevân-
gem filosófico-pragmática de- cia para o conhecimento cientí-
senvolvida por Cardozo e suas fico nas suas diferentes formas
implicações e aplicações para a de manifestação. Sem sombra
problemática jurídica; de dúvidas é o Positivismo a
b) Considerar alternati- corrente filosófica que repre-
vamente que, por mais elucida- senta à alternativa concorrente
tivo que um texto possa pare- a do pragmatismo a mais cons-
cer, ele se torna pobre em rela- pícua e que obteve maior am-
ção ao inesgotável potencial plitude e relevância nesse cená-
interpretativo que suscita. Por rio, pelo fato de através de um
conseguinte, ele estará sempre retorno às bases de uma nova
aberto ao contínuo exercício epistemologia de cunho empi-
espiritual da arte hermenêutica, ricista passar a constituir uma
na sua incansável faina de tra- alternativa às filosofias especu-
zer à tona o que a própria con- lativas que prevaleciam à épo-
textura escrita do texto oculta e ca, particularmente a do idea-
que, por si mesma, não é capaz lismo alemão.
de revelar. Por conseguinte, o
texto de Cardozo, não obstante Ao lado dessa preocupa-
a sua evidente clareza, convida ção em delinear o sentido do
a que se busque desvelar impli- método científico positivista,
cações de natureza jurídico- torna-se paralelamente perti-
pragmática que se abrigam na nente tecer certas considera-
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ções acerca de alguns aspectos instrumentalidade e, numa


relacionados ao seu uso, às certa medida, deixar vir à tona -
variações e possíveis adapta- de um ponto de vista estrita-
ções que se submeteu no curso mente metodológico - algumas
da sua evolução. Com isso, semelhanças e contrastes entre
poder-se-á ter uma melhor o método visto sob a perspec-
noção acerca dos limites e das tiva lógico-pragmática e o seu
possibilidades da sua abran- contraponto. Com isso, por
gência e funcionalidade quanto fim, presume-se, ficará a crité-
às diferentes esferas do conhe- rio do analista, com base na sua
cimento humano que se pro- imaginação e suas próprias
põe a investigar, nomeadamen- inferências, fazer um mais claro
te a jurídica. A etapa que se e preciso escrutínio das even-
segue a essas sintéticas consi- tuais virtudes e inconsistências
derações acerca do método que porventura venham a ser
positivista tem por escopo identificadas nos paradigmas
delinear as bases nas quais se metodológicos sob análise,
assenta a proposta lógico- bem como sobre a sua perti-
metodológica pragmática, para nência e o alcance na compre-
que, a partir disso, seja possível ensão do fenômeno jurídico.
de modo mais adequado, me- No panorama intelectual
diante a justaposição dos dois moderno, em especial aquele
modelos, por em realce, à luz que se delineou durante o sécu-
de uma análise comparativa, o lo XIX, uma das concepções
que mais precisamente distin- que mais suscitou problemas
gue e contrasta as propostas de natureza metodológica, tan-
que fluem do pragmatismo, to pela sua relevância quanto
daquela que se apóia nos pres- pelo seu caráter controverso,
supostos da metodologia cien- foi o Positivismo. Suas propos-
tífica antecedente. tas empolgaram e preocupa-
Sucessivo às premissas ram, como até hoje ainda em-
acima, procurar-se-á reduzir a polgam e preocupam, grande
amplitude do enfoque, direcio- parte dos pensadores nos mais
nando-o estritamente ao cam- diferentes ramos do saber cien-
po do direito, de sorte que se tífico e filosófico.
possa então por em relevo sua
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Não é simples desenrai- pios absolutos e muito menos


zar e trazer à luz os seus ante- de compreender a origem do
cedentes históricos. Sua afini- universo. O conhecimento
dade com o Empiricismo re- humano limita-se, apenas, a
mete as suas origens a pensa- observar, sistematicamente, os
dores que perpassaram a traje- fenômenos com vistas a expli-
tória do pensamento moderno car as relações existentes entre
em diferentes períodos, a e- eles. Se o pensamento é inseri-
xemplo de Francis Bacon, do nessa camisa de força que é
Thomas Hobbes, David Hume o reduzir-se estritamente à pura
August Comte. John Stuart observação da realidade fática,
Mill, Bertrand Russell, Frege, então a imaginação torna-se,
Schröder, Hilbert e tantos out- apenas, uma escrava da obser-
ros. Convencionalmente, toda- vação, e, em conseqüência, o
via, tem-se atribuído a Augusto papel da razão limita-se a, do
Comte o papel de fundador do ponto de vista lógico, procurar
Positivismo moderno. descrever, explicar e prever o
Esquematicamente, po- curso dos fenômenos. Teori-
der-se-ia identificar três fases camente, contudo, Comte ad-
em que o corpus da concepção mite que a ciência não é sim-
positivista pode ser desdobra- plesmente uma serva dos fatos.
do: Assim, não há, em última análi-
a) O Positivismo Clássico se, uma necessária indissociabi-
cujas características gerais po- lidade entre teoria e prática.
dem ser sumarizadas da seguin- Para esse pensador a ciência
te forma: constituindo-se uma tem, precipuamente, uma mis-
espécie de derivação do idea- são superior àquela da mera
lismo filosófico, insere-se nu- aplicabilidade aos interesses
ma das vertentes do idealismo utilitários do comércio e da
subjetivista, cuja tônica funda- indústria. Sua meta essencial é
mental reside na ênfase atribu- atender os anseios mais fun-
ída à consciência do sujeito e o damentais da própria inteligên-
papel das sensações , marcado cia, no seu afã de conhecer as
por um ceticismo oriundo da leis que regem os fenômenos
constatação da impossibilidade naturais, enquanto a filosofia
humana de apreender princí- dedicar-se-ia ao estudo das
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generalidades de todas as ciên- que é o método positivo ‘só


cias. Como salienta Rovighi3, a por ter lido os preceitos de
filosofia no pensamento de Bacon ou o Discurso de Des-
Comte consiste em: cartes”.

“determinar, exatamente, o Cumpre aqui, de logo,


espírito de cada uma delas (ci- destacar dois aspectos que se-
ências), em descobrir as suas rão relevantes à distinção entre
relações e conexões, em resu- o método positivista e o prag-
mir, se é que isso é possível, mático. O primeiro, pertine à
todos os seus princípios pró- ruptura epistemológica entre
prios em um número mínimo teoria e prática; o segundo, à
de princípios comuns, em con- dificuldade de viabilizar, meto-
formidade com o método posi- dologicamente a pretensa neu-
tivo.” tralidade que impregna os pos-
tulados positivistas, diante dos
O positivismo de Com- princípios da moralidade, tema
te pode, então, ser sintetizado a ser posteriormente discutido.
como uma lógica do conheci- b) O Empiriocriticismo.
mento científico, ou seja, como O uso dessa expressão é intro-
uma metodologia da ciência. duzido no cenário filosófico do
Essa epistemologia positivista, século XIX através de Avena-
na forma como foi configura- rius. Foi, contudo, Ernst Mach
da, representa filosoficamente: quem melhor o explicitou e
difundiu, tornando-se, desse
“o único meio racional verda- modo, um dos seus mais ilus-
deiro para evidenciar as leis tres representantes.
lógicas do espírito humano” as Mach foi um famoso físi-
regras gerais para empreender co, embora dotado de uma
com segurança a busca da ver- imensa preocupação com os
dade”. De outro modo, tere- fundamentos filosóficos do
mos a ilusão de compreender o conhecimento científico. Ele
pretende demonstrar que existe
um salutar intercâmbio entre a
3 ROVIGHI, Sofia Vanni. História da
Filosofia Contemporânea. Ed. Loyola: ciência e a filosofia. Desse mo-
S.Paulo, 2001, pp.127/8 do, tanto os filósofos têm aber-
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to novas perspectivas para uma em que devemos conduzir a


maior compreensão da ciência, investigação científica até aque-
quanto os cientistas têm con- les elementos que provisional-
tribuído para a ascensão do mente não podemos ultrapas-
pensamento filosófico. Em sar. A partir de então se desve-
síntese, todo filósofo apóia-se lam aquelas duas categorias que
num determinado ramo da constituem o problema que
ciência para que o seu trabalho atormenta a investigação filo-
progrida, da mesma sorte que sófica – são elas: o que é a coi-
os cientistas têm, por trás do sa em si e em que consiste esse
seu labor, uma filosofia. eu insondável que ronda apore-
Mach parte do suposto ticamente a imaginação dos
que a base de todo o conheci- pensadores. Mach considera
mento reside nas sensações que que não se trata, propriamente,
são dados originários que não de um problema e sim de um
se confundem propriamente, pseudoproblema, devendo,
nem com o objeto nem com o como tal, ser excluído das nos-
sujeito.Desse modo não existe sas preocupações, porque além
um eu, pois o sujeito é um de insolúvel representa uma
feixe de sensações, nem tam- fútil e inócua digressão filosó-
pouco, por trás dessas sensa- fica. Excluído, então, o que
ções existem as coisas em si não tem sentido estar presente
mesmas; as coisas, similarmen- numa investigação, fazemos
te, nada mais são do que con- emergir, através das ciências
juntos de sensações. Mas é, particulares, numa perspectiva
sobretudo, o conceito que puramente empírica, as rela-
Mach desenvolve sobre o que é ções entre objetos e conceitos
a ciência que caracteriza essa de sorte a ordená-los tipologi-
vertente do positivismo e que, camente.
numa considerável medida, De acordo com a sua co-
serviu de base para a terceira nhecida doutrina filosófica da
dimensão do positivismo, a “economia do pensamento”
saber, o Neopositivismo Sua Mach conclui que da enorme
proposta científico- multiplicidade e variedade de
metodológica, como ele inici- objetos que se oferecem ao
almente a descreve, consiste conhecimento humano seu
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volume excede a capacidade Uma segunda conse-


intelectual de armazená-los e qüência da sua teoria é que
incorporá-los ao arsenal das nenhuma ciência pode solucio-
suas experiências. Portanto, é nar todos os problemas que
fundamental condensá-las o lhes são suscitados. Isso por-
máximo possível em formas que, muitos problemas, como
reduzidas Essa sumarização vimos, são deixados à margem
torna-se a conditio sine qua ne- porque não conduzem a nada,
cessária ao progresso científico, são pseudo-problemas, pro-
gerando assim, uma considerá- blemas mal formulados; ou-
vel economia na capacidade de trossim, faz parte do desenvol-
pensar. Como bem caracteri- vimento de uma ciência afastar
zou Pierre Duhem4: problemas mal colocados e
sem sentido. Para ele, final-
“Une telle condensation d’une mente, não há como fragmen-
foule de loi em um petit nom- tar a unidade do conhecimento
bre de principles est une im- científico, pois, todas as ciên-
mense soulagement pour la cias se subsumem numa só. Se
raison humaine qui ne pourrait, pretendesse reduzir, numa só
sans um pareil artífice emm- premissa, o empiriocriticismo à
magasiner les richesses nouvel- sua essencialidade, poder-se-ia
les qu’elle conquiert chaque afirmar que seu ponto de par-
jour. tida consiste na rejeição de
La redution des lois physiques qualquer tipo de conhecimento
em théories contribue ainsi à metafísico, não propriamente
cette economie intellectuelle porque se o julgue falso, mas,
em laquelle M. E. Mach voit le simplesmente, porque lhe fale-
but, le príncipe directeur de la
Science.”5
alívio para a razão humana que não
poderia sem um semelhante artifício
4DUHEM, Pierre. La Théorie Physique armazenar as novas riquezas que ele
Son Object – sa Structure. Librairie conquista cada dia.
Philosophique J. Vrin: Paris, 1997, A redução das leis físicas em teorias
p.27. contribui assim para essa economia
5 “Uma tal condensação de uma intelectual na qual Ernst Mach viu o
multidão de leis em um pequeno fundamento do princípio diretor da
número de princípios é um imenso Ciência.”
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ce qualquer significado. Esta é mático do Wiener Kreis. Os


uma das diferenças fundamen- princípios que inspiraram o
tais entre o positivismo clássico positivismo lógico pressupu-
e o neopositivismo, particu- nham a construção de uma
larmente em relação ao seu ciência unificada (Einheitwissens-
mais recente desdobramento: o chaft). Essa estrutura global do
positivismo lógico. Este emer- conhecimento científico pre-
ge na modernidade, a partir das tendia incorporar dentro de um
contribuições filosóficas, cien- mesmo conjunto, os achados
tíficas e lógicas de um grupo de científicos das ciências físicas e
intelectuais que informalmente naturais, da psicologia, das
se reunia num Café, em Viena matemáticas, etc. Seria, entre-
e que, posteriormente, passou a tanto, necessário que se conce-
ser identificado sob a epígrafe besse um modelo metodológi-
de Círculo de Viena, como se co que pudesse abrigar e dar
verá a seguir. unidade e coerência aos conte-
c) O Positivismo Lógico údos dessas distintas dimen-
e o Círculo de Viena corres- sões do saber científico.Para
pondem assim a esse terceiro e tanto, propunham que o méto-
mais recente desdobramento do lógico, concebido por Pea-
doutrinário do Positivismo. e no, Frege, Whitehead e Ber-
que tem, como já mencionado, trand Russell, fosse introduzi-
o seu referencial histórico atri- do nas suas investigações. Com
buído às reflexões de um grupo isso, pretendia-se eliminar as
de cientistas, composto, pre- interveniências metafísicas que
dominantemente mas não ex- bloqueavam o progresso da
clusivamente, por físicos, ma- ciência, cujos resíduos, inclusi-
temáticos, cientistas naturais, ve, ainda poderiam ser detecta-
etc., muito embora dele tam- dos como uma herança de
bém participassem alguns filó- Kant - apesar do avanço que
sofos sociólogos e juristas. sua teoria crítica tinha patroci-
Um apanhado ilustrativo nado nesse particular -, tor-
das idéias que inspiraram o nando assim mais claros os
positivismo lógico e das suas conceitos e teorias das ciências
propostas metodológicas está empíricas, bem como os fun-
contido no Manifesto progra- damentos matemáticos que
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lhes dão sustentação. Mas o saber, aquele que trata das rela-
pano de fundo que dá susten- ções entre a linguagem e a rea-
tabilidade à teoria neopositivis- lidade, e a sintaxe, referente às
ta reside no postulado verifica- relações existentes entre os
cionista. Nesse sentido: próprios sinais que integram a
linguagem; nesta última hipóte-
“o princípio da verificação se, a tarefa da filosofia consisti-
constitui o critério de distinção ria nomeadamente, em através
entre proposições sensatas e da mesma, procurar clarificar o
proposições insensatas, de mo- discurso científico. É o que, de
do que tal princípio se configu- forma mais radical e categórica,
ra como critério de significân- propõe Rudolf Carnap7 na sua
cia que delimita a esfera da obra Logical Sintaxis of Lan-
linguagem sensata da lingua- guage, quando afirma que a Fi-
gem sem sentido que leva à losofia:
expressão o mundo das nossas
emoções e dos nossos me- “is to be replaced by the logic
dos.”6 of science – that is to say by
the logical analysis of the con-
Do exposto, infere-se cepts and sentences of the sci-
que proposições sensatas são ences, for the logic of science
unicamente aquelas que deflu- is not other than the logical
em de uma verificação empíri- syntax of the language of sci-
ca e que a matemática e a lógi- ence.”8
ca são convenções tautológicas
que não se referem diretamente
ao mundo dos objetos reais.
Quanto à filosofia, sua compe-
tência limitava-se, simplesmen-
7 Carnap, Rudolf, in Logical Positiv-
ism, Ed. by A. J. Ayer, :The Free
te, a proceder a analise das Press, New York, 1959, p.24.
proposições científicas sob 8 “deve ser substituída pela lógica da

dois aspectos: o semântico, a ciência, ou seja, pela análise lógica


dos conceitos e das proposições das
ciências, já que a lógica da ciência
6 REALE, Giovanni. História da Filo- não é outra coisa senão a sintaxe
sofia. V. III. Ed. Paulinas: S.Paulo, lógica da linguagem da ciência”
1990, p.994.
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Esse postulado que ex- ções redundaria, eventualmen-


cluiu qualquer possibilidade de te, no fim da própria filosofia,
direcionar a investigação filo- na medida em que as ciências
sófica para a esfera da realidade fossem progredindo de manei-
tornou-se, não obstante as ra integrada e solidária10:
diferentes tonalidades interpre-
tativas que lhe atribuíram os “Philosophy is not a system of
integrantes do Circulo de Vie- truths and therefore does not
na, um consenso entre seus os constitute a special science;
participantes. Nesse sentido, só rather it consists in ‘that activi-
às ciências particulares compe- ty by which therefore meanings
tia a abordagem dos objetos do of propositions are ascertained
mundo real. Em conseqüência, or clarified. Philosophy clarifies
para os positivistas lógicos, não propositions, science verifies
se poderia cogitar de objetos e propositions. The latter is con-
valores de natureza transcen- cerned with the truth of prop-
dente ou quaisquer preceitos ositions, the former, however,
normativos de caráter absoluto with the question what exactly
por carecerem de conteúdo e, propositions mean’ In this
portanto, considerados pro- sense, philosophy it is not a
blemas sem sentido. Desse science with a subject-matter
modo - admite Victor Kraft9 - of its own, but a method which
torna-se problemático definir is employed in the special sci-
com clareza o estatuto do saber ences whenever and wherever
filosófico - como Schilick ten- there occur obscurities. We
tara propor no seu “Erkenntnis” thus confront the paradoxical
- e estabelecer as bases de uma result that progress toward
concepção positiva para o scientific solidarity undermines
mesmo, uma vez que a sua the very raison d’être of phi-
redução a um mero instrumen-
to de clarificação dos significa-
dos das palavras e das proposi-
10 FARRELL, Martin Diego. La
9 KRAFT, Victor: The Vienna Cicle. metodologia Del positivismo lógico: Su
Greenwood Press: New York, 1969, aplicación al derecho. Editorial Astrea:
p. 188. Buenos Aires, 1979 pp.133/34
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losophy conceived as a sci- sam apenas os sentimentos do


ence.”11 sujeito falante ou descrevem as
atitudes deles resultantes. Nes-
A propósito do “status” se sentido, não são nem verda-
das normas de conduta e da deiros nem falsos. Como afir-
natureza transcendente atribuí- mava Schlick, aquele que se
da aos objetos valoráveis, já aventura a investigar proble-
acima assinalado, cumpre ainda mas de natureza ética não deve
indagar como, à luz do positi- converter-se em moralista,
vismo lógico, as proposições pois, em assim o fazendo, dei-
éticas seriam então interpreta- xa de ser investigador para
das. Para os integrantes do tornar-se predicador.
Círculo de Viena os juízos de Na mesma esteira segue
12
valor teriam um conteúdo pu- Ayer que também não atribuí
ramente emotivo e não descri- sentido significativo aos enun-
tivo. Dessa sorte, eles expres- ciados de valor declarando
serem eles o produto das emo-
ções humanas e, nessa mesma
11 “A Filosofia não é um sistema de linha de análise, não devem ser
verdades e desse modo não constitui
uma ciência especial; antes ela resulta
considerados verdadeiros ou
daquela ‘atividade pela qual os signifi- falsos. Trata-se, simplesmente
cados das proposições são averigua- de conceitos sem qualquer
dos ou clarificados. A Filosofia clari- validade para o mundo real.
fica proposições, a ciência verifica Para ele:
proposições. A última está preocupa-
da com as verdades das proposições,
a primeira, entretanto, com a questão “Los conceptos éticos funda-
do que as proposições significam.’ mentales no son analizables, ya
Nesse sentido, a Filosofia não é uma que non existe ningún critério
ciência com seu próprio objeto e mediante el cual se pueda po-
conteúdo, mas um método o qual é
empregado nas ciências especiais nos
ner a prueba la validez de los
momentos e nas circunstâncias em juicios em que aquellos figuran.
que venham a ocorrer obscuridades. La razón por la cual non son
Nós então nos confrontamos com o
paradoxal resultado de que o progres-
so que conduz à solidariedade cientí- 12 AYER, A. J. Language, Truth and
fica solapa a verdadeira razão de ser Logic in Farrell, Martin Diego. Op. Cit.
da filosofia concebida como ciência.” p.140.
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analizables es que son meros O último passo é então


seudoconceptos; la presencia procurar verificar como, par-
de um símbolo ético em uma tindo dos pressupostos do
proposición no agrega nada a positivismo lógico, foi possível
su contenido fáctico. En con- construir as bases de uma ciên-
secuencia se yo digo ‘Usted há cia normativa do dever-ser.
obrado mal al robar esse dine- O arquiteto desse enge-
ro’ non afirmo más do que nho metodológico foi o filóso-
habria afirmado diciendo sim- fo e jurista vienense Hans Kel-
plesmente ‘Usted há robado sen. Seu edifício jurídico-
esse dinero’.Al agregar que la doutrinário apóia-se numa
accion es mala non hago nin- considerável medida, nas suas
guna nueva aserción a su res- mais polêmicas obras dentre as
pecto; manifesto sencillamente quais destacam-se: Hauptpro-
mi desaprobación moral res- bleme der Staatrechtlehre, Proble-
pecto de ella, como se yo hu- mas Fundamentais da Teoria
biera dicho Üsted há roubado Jurídica do Estado e Reine
esse dinero! Com um particular Rechtslehre, Teoria Pura do
tono de horror. Claramente se Direito. Kelsen foi um dos
vê que aqui non se dice nada integrantes do Círculo de Vie-
que pueda ser verdadero ni na, compartindo com os de-
falso”13 mais algumas premissas fun-
damentais do Positivismo Ló-
gico, particularmente, a do
13 “Os conceitos éticos fundamentais
não são analisáveis, já que não existe verificacionismo e da sua con-
nenhum critério mediante o qual se seqüente rejeição às proposi-
possa colocar à prova a validade dos ções de natureza metafísica
juízos em que aqueles figuram. A
razão pela qual não são analisáveis é
que são meros pseudo-conceitos; a faço nenhuma nova asserção a seu
presença de um símbolo ético em respeito; manifesto simplesmente,
uma proposição não agrega nada ao minha desaprovação moral a respeito
seu conteúdo fático. Em conseqüên- dela, como se eu houvesse dito ‘Você
cia se eu digo ‘Você agiu mal ao roubou esse dinheiro!, com um parti-
roubar esse dinheiro’não afirmo mais cular tom de horror. Claramente se
do que teria afirmado dizendo sim- vê que aqui não se diz nada que possa
plesmente ‘Você roubou esse dinhei- ser verdadeiro nem falso.”
ro’. Ao agregar que a ação é má não
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voltadas à análise de valores e própria realidade resume-se


princípios ético-normativos. àquilo que é pensado; conse-
Para ele, portanto, como para qüentemente, isso implica ou-
os demais integrantes do Circu- trossim que o real, para se tor-
lo de Viena, nada que ultrapas- nar acessível ao conhecimento,
sasse os limites da ciência fazia pressupõe a sua redução a uma
sentido. E ciência, para o Posi- dimensão puramente idealista-
tivismo Lógico no qual Kelsen subjetivista do saber. . Especu-
se inscreve é, tanto na sua a- lar, por conseguinte, sobre a
cepção particular como na sua origem das normas éticas im-
totalidade um sistema de cog- plicaria descer ao território
nições. sociológico e psicológico e
O Fisicalismo Kelsenea- extrapolar as fronteiras da ci-
no, termo que se incorporou à ência do Direito. Sendo este,
doutrina, consistia numa tenta- como ficou caracterizado, ao
tiva de criar uma linguagem mesmo tempo, realista e idea-
unificada que servisse indistin- lista, isso resulta numa contra-
tamente a qualquer ciência. dição; sua possível embora
Como então encontrar um inócua conciliação correspon-
lócus apropriado para a ciência deria, analogamente, à tentativa
do Direito no contexto dos de interpretar o platonismo
demais saberes? Segundo Kel- como uma análise da realidade
sen, o Direito é uma ciência ao sob uma perspectiva puramen-
mesmo tempo positiva e realis- te empírica e cientificista . Ali-
ta. A realidade, contudo, para ás, um dos expoentes do Posi-
Kelsen - coerente com a pró- tivismo Lógico, Carnap, já
pria tradição do Positivismo houvera advertido de que se
Lógico – encontra-se dissecada curvar sobre as ações humanas
de qualquer conotação relativa nas suas raízes sentimentais e
ao homem nas seus aspectos volitivas constituiria um esfor-
sociais, históricos ou mesmo ço inútil, uma vez que essas
pragmáticos. Para ele, o real é ações e os seus efeitos não
estritamente criado por e de- podem ser jamais demonstra-
corrente do próprio pensamen- dos por não disporem de vali-
to; assim sendo, se o mundo é dade científica. A dos enuncia-
criado pelo pensamento, a dos de valor, concluira Carnap,
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não se poderia deduzir qual- nós não sabemos o que ela é e


quer enunciado que assegure a nunca o viremos a saber.”14
veracidade ou não das experi-
ências futuras, posto que sua Sendo, como previra
análise não pode submeter-se Kelsen, o Direito é uma enti-
ao critério da verificabilidade. dade que prescreve, autoriza,
Kelsen como herdeiro imputa, exculpa esses atos que
dessa tradição neo-kantiana, só podem tornar-se efetivos
adota, assim, como pressupos- mediante normas que discipli-
to da sua Teoria Pura do Direi- nem essas condutas.
to a incomunicabilidade entre o Na sua estrutura, os fatos
mundo do Solen (dever-ser) e o jurídicos são, simultaneamente,
do Sein (ser). Como salienta naturais e sociais. Todavia,
Kaufmann, um dos seus reno- Kelsen pretende elaborar uma
mados discípulos, a partir desse nova concepção doutrinária,
dualismo metodológico e em caracterizada por uma rigorosi-
conformidade com ele, cria-se dade e pureza científicas que
um abismo entre a perspectiva ressalte o caráter genuíno e
descritiva explicativa e a pres- distintivo do Direito enquanto
critiva normativa. sistema normativo. . O estatuto
que rege essa nova ciência afas-
“Na ‘teoria pura do direito’, ta-se do que ele intitulou de
apenas está em causa esta últi- jurisprudência tradicional, que
ma (prescritiva normativa) preponderou durante o século
Contudo, enquanto teoria posi- XIX e XX e que implicava uma
tivista, ela apenas pode ter por espécie de síntese metodológi-
objecto as estruturas formais ca envolvendo o conteúdo do
(lógicas) das normas jurídicas, direito com o das ciências soci-
não os seus conteúdos, já que ais e humanas, o que se conflita
esses não são acessíveis ao com a sua aspiração de estabe-
conhecimento científico. Para
Kelsen a justiça é apenas‘um
bonito sonho da humanidade’; 14 KAUFMANN, A. e HASSEMER
W. (Org). Introdução à Filosofia do Direi-
to e a Teoria do Direito com temporâneas.
Fundação Calouste Gulbenkian:
Lisboa, 1994.p.179. .
Revista Duc In Altum Caderno de Direito, vol. 1, nº 1, jul-dez. 2009. | 35

lecer um sistema caracterizado endereçadas à formação do


por sua pureza metodológica. Direito, mas as suas tendências
Kelsen procura demons- exclusivamente dirigidas ao
trar a relevância de se elaborar conhecimento do Direito, e
uma teoria jurídica do Direito e aproximar tanto quanto possí-
do Estado cujo postulado me- vel os seus resultados do ideal
todológico assegure uma obje- de toda a ciência: objectividade
tividade e um equilíbrio social e exatidão.”15
que possa torná-la como ele
mesmo declara, uma ciência O sistema unitário de di-
jurídica livre dos influxos tanto reito idealizado por Kelsen tem
daqueles que detém o poder como pressuposto a decantada
com dos que a ele aspiram. É norma fundamental. Ela repre-
nesse sentido que no Prefácio à senta, para ele, a ratio essendi do
primeira edição da sua Teoria seu sistema de direito, e seu
Pura do Direito ele assim se papel consistia em dar suporte
manifesta: constitutivo à sua natureza
lógico-jurídica. Equivocada-
“Há mais de duas décadas que mente, pensadores como Men-
empreendi desenvolver uma ger admitiram que a teoria kel-
teoria jurídica pura, isto é puri- seneana considerava a norma
ficada de toda ideologia política fundamental como constituinte
e de todos os elementos da do sistema jurídico-positivo ao
ciência natural, uma teoria jurí- que Kelsen contra-argumenta
dica consciente de sua especifi- afirmando que nunca pretende-
cidade, porque consciente da ra deduzir da norma funda-
legalidade específica do seu mental o conteúdo das normas
objeto. Logo desde o começo jurídicas concretas e sim o seu
foi meu intento elevar a Juris- fundamento de validade16.
prudência, que – aberta ou Pelo que se pode obser-
veladamente – se esgotava qua- var, da leitura da obra Teoria
se por completo em raciocínios
de política jurídica, à altura de
uma genuína ciência, de uma
15 KELSEN, Hans. Teoria Pura do
Direito. Armênio Amado Editora:
ciência do espírito. Importava Coimbra, 1984, p.7.
explicar, não as suas tendências 16 Op. Cit., pp 274/5.
36 | Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 1, nº 1, jan.-dez. 2009.

Pura do Direito, Kelsen não (Die Philosophie dês Als-Ob


pretendia dar continuidade ao Filosofia do Como-Se:
tradicional edifício jurídico que
vinha histórica e culturalmente “A norma fundamental de uma
se delineando; nem simples- ordem jurídica ou moral positi-
mente reformulá-lo. Seu pro- vas (...) não é positiva, mas
pósito - como ressalta Arnaldo meramente pensada, e isso
Vasconcelos17 - consistira em significa uma norma fictícia,
demoli-lo para, sobre os seus não o sentido de um real ato de
escombros, construir teorica- vontade, mas sim de um ato
mente um nova ordem para o meramente pensado. Como tal,
Direito. ela é uma pura ou ‘ verdadeira’
Se a teoria pura do direi- ficção no sentido da vaihinge-
to constitui o ponto de partida riana Filosofia do Como-Se,
da concepção de Kelsen, diga- que é caracterizada pelo fato de
se, o momento paradigmático que ela não somente contradiz
da sua doutrina, ela não chega, a realidade, como é contraditó-
entretanto incólume ao seu ria em si mesma.”18
epílogo. A honestidade intelec-
tual que sempre caracterizou a Ademais, por não prever
personalidade de Kelsen fê-lo nenhum conteúdo, a norma
publicamente reconhecer a fundamental, qualquer que seja
inconsistência do seu argumen- a sua conceituação, tem como
to inicial. Na sua obra Teoria propósito primeiro desentra-
Geral das Normas, ele confessa nhar o direito de quaisquer
ter abandonado a tese do cará- implicações jusnaturalistas. Ao
ter hipotético da norma fun- retirá-la do contexto do siste-
damental a qual passa a consti- ma jurídico positivo, retira-se
tuir uma construção puramente dele, automaticamente, ques-
intelectual e volitiva de caráter tões de ordem principiológica
nitidamente fictício, inspirada que necessariamente entrelaça-
no modelo de Hans Vaihinger riam o Direito à Moral.

17 VASCONCELOS, Arnaldo. Repas- 18KELSEN, Hans. Teoria Geral das


se Crítico de seus Principais Fundamentos, Normas. Sérgio Antônio Fabris Ed.:
Ed. Forense: Rio de Janeiro, 2003. Porto Alegre, 1986, p.328
Revista Duc In Altum Caderno de Direito, vol. 1, nº 1, jul-dez. 2009. | 37

Analogamente, os con- mentos que marcaram a vida


ceitos de norma primária e desse pensador austríaco. O ter
norma secundária que passam sido exposto à dramática situa-
também a sofrer uma inversão ção de refugiado, por exemplo,
quanto ao papel que devem primeiro na Suíça e posterior-
desempenhar no sistema puro mente nos Estados Unidos, em
de direito. Na primeira formu- função do fato de ser judeu e
lação da sua teoria, Kelsen desse modo perseguido pelo
considera a norma descritiva, regime nazista que se instalara
ou seja, a que descreve uma na Alemanha, proporcionou-
conduta, como primária, en- lhe, em contrapartida - ao lado
quanto que a norma que pres- da sua já mencionada integri-
creve uma sanção à violação da dade moral e intelectual que lhe
anterior como secundária. impunha o dever de reconhe-
cer os seus próprios equívocos
“Admite-se que a distinção de - a abertura de novas perspec-
uma norma que descreve uma tivas no plano cultural, filosófi-
certa conduta e de uma norma co e notadamente jurídico.
que prescreve uma sanção para Tudo isso, conjuntamente,
o fato de violação da primeira é deve ter contribuído para que
essencial para o Direito, então Kelsen não mantivesse como
precisa-se qualificar a primeira pretendia, ao longo da sua ex-
como norma primária e a se- tensa vida que abrangeu mais
gunda como norma secundária de sessenta anos de efetiva
– e não ao contrário como foi produtividade, uma coerência
por mim anteriormente formu- doutrinária que desse uma sis-
lado.”19 temática seqüência e conse-
qüência ao seu trabalho.
Não se pode excluir a Quando professor na Ca-
possibilidade de considerar que lifórnia, em um artigo intitula-
essas assinaladas mudanças na do Direito, Estado e Justiça na
teoria de Kelsen tenham, em Teoria Pura do Direito, no Yale
parte, sido provocadas pelo Law Journal observa-se que
impacto de certos aconteci- Kelsen já tentava adaptar suas
reflexões à realidade socio-
19 Op.Cit. p. IX.
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cultural e política do sistema da o direito se origina e qual a


Common Law. Diz ele: dinâmica da sua criação.
Arnaldo Vasconcelos a-
“O Direito pode ser objeto de nalisa a obra de Kelsen na
diversas ciências; a Teoria Pura chamada fase norte-americana,
do Direito, nunca pretendeu para demonstrar que houve
ser a única ciência do Direito uma guinada quanto aos obje-
possível ou legítima. A Socio- tivos da sua pesquisa, citando
logia do Direito e a História do literalmente o filósofo vienense
Direito são outras.(...) Elas, acerca dos objetivos da sua
juntamente com a análise estru- Teoria geral do Direito e do
tural do Direito, são necessá- Estado afirma que o seu pro-
rias para uma compreensão pósito:
completa do fenômeno com-
plexo do Direito.”20 “é antes de tudo reformular
que meramente republicar pen-
Ao procurar relativizar os samentos e idéias expressos nas
cânones radicais da sua pureza edições alemã e francesa. Essa
metodológica, Kelsen começa- reformulação atende duplo
va a admitir que existe uma objetivo : “apresentar os ele-
certa funcionalidade da socio- mentos essenciais daquilo que
logia jurídica no sentido de o autor veio a chamar teoria
complementar, através da ju- pura do Direito de modo a
risprudência, o sentido da aproximá-la dos leitores que
norma. Eis a evidência da suas cresceram em meio às tradi-
rupturas com os postulados ções e à atmosfera do Direito
originais da sua doutrina, pois consuetudinário” e segundo,
enquanto na sua primeira for- “dar a esta teoria uma formula-
mulação ele afirma que não ção tal que a capacitasse a a-
importa examinar o processo branger os problemas e as ins-
de formação do Direito, na tituições do Direito inglês e
segunda, declara que à teoria americano além daqueles dos
pura compete investigar como países que adotam o Direito

20 VASCONCELOS, Arnaldo Op.


Cit. p.171.
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Civil, para os quais ela foi ori- À margem dos desdo-


ginalmente formulada.”21 bramentos das concepções
positivistas na forma como
O Professor Arnaldo foram, até aqui sinteticamente
Vasconcelos, por fim, procu- apresentados e certas diferen-
rou destacar a inviabilidade do ças que caracterizam alguns
esforço de Kelsen no sentido dos seus respectivos postula-
de postular essa neutralidade dos, não é difícil perceber que,
científica, tão cara e essencialís- inobstante essas variações, há
sima à sua formulação doutri- como que um fio condutor,
nária, argumentando: cuja consistência é suficiente-
mente forte para atar os varia-
“Kelsen adotou o conceito dos elos que compõem as suas
neo-kantiano de realidade pen- diferentes formas de manifes-
sada ou ideal, fundada no prin- tação. Não seria de estranhar,
cípio de que o mundo é criação portanto, que suas propostas
do pensamento. É de indagar- metodológicas, quando direci-
se, então: como criar o mundo onadas ao Direito não guardas-
de improviso, como fazê-lo sem certas similitudes. Assim, a
com ausência de critérios, co- obsessão para eliminar da aná-
mo construí-lo sem valoração? lise do fenômeno jurídico
Nietzsche, bem próximo de quaisquer interferências de
Kelsen, com antecedência já natureza puramente especulati-
desvendara o processo: ‘nada va, considerando o direito tão
que possua valor neste mundo somente como norma; a ado-
o possui por si mesmo, segun- ção do princípio do verificaci-
do sua natureza – a natureza é onismo; o seu rigoroso com-
sempre sem valor: atribuir-se- promisso com os postulados
lhe certa feita um valor e fo- das ciências da natureza no que
mos nós que os demos, nós, os concerne à observação e análi-
atribuidores! Nós criamos o se do mundo fático; a exclusão
mundo que interessa ao ho- dos juízos de valor e das consi-
mem”22 derações em torno do signifi-
cado do indivíduo nas suas
21 Op.cit., p.6 dimensões humanas e sociais e,
22 Op.cit., p.9 finalmente, o seu reducionismo
40 | Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 1, nº 1, jan.-dez. 2009.

que encapsula a ordem jurídica, certos aspectos similar àquele


subsumindo o direito à lei e que a filosofia de Hegel passou
esta ao Estado. Em função a desempenhar após a sua mor-
disso, o Direito nada mais é te, cindindo as correntes do
senão o que é produzido pelo pensamento filosófico em he-
poder e, portanto, sua origem é gelianos de esquerda e de direi-
essencialmente política. Esses ta.
são alguns dos ingredientes A fundamental premissa
que, de uma forma ou de outra, da filosofia pragmática é a de
forjaram o liame entre positi- que o seu método rejeita, sis-
vistas das mais diferentes mati- tematicamente, toda e qualquer
zes. Ilustram essas afinidades, forma de dualismos que, ao
no variegado das suas manifes- longo da história, têm permea-
tações, correntes como a Esco- do o pensamento filosófico. A
la Francesa da Exegese, a dos crítica pragmática está assenta-
Pandectistas na Alemanha e da no pressuposto de que o
mesmo no Brasil com integran- conhecimento tem um caráter
tes da famosa Escola do Reci- orgânico e inclusivo, e, portan-
fe, a exemplo de Tobias Barre- to, seu desenvolvimento pro-
to, Sílvio Romero, Clóvis Bevi- cessa-se dentro e numa pers-
láqua, Pontes de Miranda e pectiva contextual e funcionali-
outros, sem chegar a mencio- zada, ou seja: as distinções que
nar outras influentes ramifica- venham a ocorrer e os propósi-
ções do Positivismo Jurídico tos que se pretende atingir no
como é o caso da Corrente curso das ações praticadas são
Analítica de Austin. subsumidos no interior de cada
Todavia, nenhuma delas situação, envolvendo os indiví-
obteve repercussão tão impac- duos e o meio ambiente..Henri
tante e tamanha relevância no Bérgson, cuja respeitabilidade
mundo jurídico como a de como filósofo o coloca como
Hans Kelsen, a qual mereceu, uma das maiores expressões da
indubitavelmente um destaque filosofia francesa no século
privilegiado nessa abordagem. XX, na sua obra La Pensée et
O pensamento de Kelsen de- le Mouvant, referindo-se ao
sempenhou “modus in rebus, pensamento de um dos “great
diga-se assim, um papel, sob fathers” do Pragmatismo, Wil-
Revista Duc In Altum Caderno de Direito, vol. 1, nº 1, jul-dez. 2009. | 41

liam James numa longa, mas La réalité coule; nous coulons


elucidativa referência ao prag- avec elle; et nous appelons
matismo, no que concerne à vraie toute affirmation qui, em
forma como interpreta as idéias nous dirigeant à travers la re-
de vida e de verdade assim se alité mouvante, nous donne
expressou23: prise sur elle et nous place
dans de meilleures conditions
“Mais, dans la vie, il se dit une pour agir.” (...) On pourrait, ce
foule de choses inutiles, il se me semble, résumer tout
fait une foule de gestes super- l’essentiel de la conception
flus, il n’ya guère des situations pragmatiste de la vérité dans
nettes; il rien ne se passe aussi une formule telle que celle-ci :
simplement, ni aussi comple- tandis que pour les autres doc-
tèment, ni aussi joliment que trines une verité nouvelle et
nous voudrions; les scènes une découverte, pour le prag-
empiètent les unes sur les au- matisme cést une invention.”24
tres; les choses ne commencent
ne finissent; il n’y a pás de de-
nouement entièrement satisfai-
24“Mas, da vida, se diz uma infinida-
de de coisas inúteis, se faz uma infi-
sant, ni de geste absolument nidade de coisas inúteis, se pratica
décisif, ni de ces mots qui por- uma infinidade de gestos supérfluos,
tent et sur lesquels on reste: poucas situações são claras; nada se
tous les effets sont gates. Telle passa também simplesmente, nem
est la vie humaine.” (...) la re- também completamente, nem tam-
bém tão belas como gostaríamos que
alité n’apparaît plus comme fossem; as cenas se interpenetram
finie ni comme infinie mais umas às outras; as coisas nem come-
simplement comme indefinie. çam nem terminam; não existe des-
Elle coule, sans que nous puis- membramentos inteiramente satisfa-
sions dire si c’est dans une tórios, nem gestos absolutamente
decisivos, nem daquelas palavras que
direction unique, ni meme si se dizem e sobre as quais se pretende
c’est toujour et partout la encontrar algum apoio; todos os
meme rivière qui coule.” (…) efeitos são sucetíveis de degradação.
Tal é a vida humana. (...) A realidade
não aparece mais como finita nem
23BÉRGSON, Henri. La pensée et le como infinita, mas simplesmente
Mouvant. Presses Universitaires de como indefinida. Ela move-se sem
France: Paris, 1946, pp.240/1/6/7. que nós possamos dizer se é numa
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A partir dessa percepção Os alicerces que empres-


sobre verdade e vida no prag- tam sustentação a essa propos-
matismo, é possível inferir que ta metodológica fundam-se: na
para essa concepção os pro- pressuposição de uma lógica
blemas e os diferentes modos retirada da experiência: a lógica
de interpretá-lo são, diga-se pragmática ou instrumental.
figurativamente, “cosidos” Quais pensadores tiveram ori-
numa espécie de caldeirão cul- ginalmente, um papel relevante
tural no qual o indivíduo as na formulação dessa lógica e
funções sociais e o mundo quais são suas principais carac-
circundante se misturam e se terísticas? Não é uma tarefa
diluem, representando aquilo fácil determinar historicamente
que – como dizia Santayana – qual foi o primeiro pensador a
constituiria uma espécie de cogitar do método pragmático
síntese hegeliana. A conse- e dos pressupostos lógicos que
qüência desse processo meta- lhe deram sustentação. Há au-
bólico é que, em última análise, tores que, mesmo não sendo
o que é, na linguagem filosófica propriamente pragmáticos, a
entendido como perene e subs- exemplo de Hume e Quine
tancial torna-se algo relativo ou preocuparam-se com a pro-
transacional. blemática do dualismo e de-
senvolveram concepções lógi-
cas bastante semelhantes às do
direção única, nem mesmo se é sem- pragmatismo.Parece mais pru-
pre e em toda parte o mesmo rio que
se move”(...) A realidade move-se; dente que, se procure identifi-
nós nos movemos com ela; e nós car a origem dessa lógica no
chamamos verdade toda afirmação berço da tradição pragmática
que dirigimos com base na realidade americana que teve o seu pon-
mutável, nós estamos submetidos a to de partida no século XIX,
ela e nós tentamos nos colocar nas
melhores condições para agir” (...)
através do chamado Clube
Pode-se, me parece, resumir o essen- Metafísico de Boston. E, sem
cial da concepção pragmatista de nenhuma dúvida, é possível
verdade numa fórmula tal que seria identificar como um dos seus
essa: enquanto que para outras dou- principais expoentes o filósofo
trinas uma nova verdade é uma des-
coberta, para o pragmatismo é uma Charles Sanders Peirce.
invenção”.
Revista Duc In Altum Caderno de Direito, vol. 1, nº 1, jul-dez. 2009. | 43

Com efeito, a filosofia creto das coisas, pulsante, desa-


do século XIX havia se defron- fiador ganha uma tremenda
tado com um dilema. Se, por relevância e as ações, instru-
um lado, o Iluminismo rompe- mentos mais eficazes para a-
ra com a base de sustentação daptação e transformação do
metafísica que, até então servi- meio ambiente, substituindo os
ra de suporte ao conhecimento clássicos modelos pautados na
científico, por outro, a própria pura contemplação racional do
ciência, mais tarde, se encarre- mundo.
gara de produzir novos cons- É com base nesse cenário
tructos metafísicos. É o caso que revolucionou o panorama
do Positivismo de Augusto cientifico-filosófico da recente
Comte que ao reduzir todo modernidade que emergem as
conhecimento à ciência positi- propostas dos pragmatistas;
va e seus métodos, resvala para elas têm seu embrião na obra
o que se poderia chamar uma de Charles Sanders Peirce. Ele
metafísica às avessas. Ademais, vai formular sua concepção
o advento e a popularização do pragmática, partindo do supos-
Naturalismo e da Teoria da to de que os paradigmas da
Evolução trouxeram uma nova lógica aristotélica como instân-
concepção de homem que cia racional autônoma e orde-
rompia de maneira radical com nadora do conhecimento hu-
toda a tradição filosófica de mano já não mais davam conta
cunho racionalista, cujos pos- dos requerimentos que essas
tulados encontravam na tradi- novas teorias impunham à
ção cristã do ocidente o seu compreensão e ao exercício da
aval, a sua garantia. O homem ciência moderna. O processo
passa a ser agora considerado cognoscitivo sofre agora, com
como um dentre outros ani- Peirce, uma reversão. A teoria
mais, e a inteligência um agente submete-se à prática e a ação
precioso para adaptar o ho- torna-se tão importante quanto
mem ao meio, na busca de à reflexão, sem que isso, pro-
soluções para os problemas priamente, implique numa des-
que a natureza suscita. O Ho- valorização das idéias e da pró-
mo Faber ocupa o lugar do pria teoria. Ao revés, elas se
Homo Sapiens; o mundo con- tornam vivas, palpitantes e
44 | Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 1, nº 1, jan.-dez. 2009.

funcionais. Caminham coope- então, defluir uma das caracte-


rativa e solidariamente em co- rísticas essenciais do Pragma-
munhão com o agir humano tismo, a saber: não é, simples-
que, por seu turno se faz mais mente, um método entre ou-
rico, mais inteligente. São as tros métodos já existentes;
idéias que tornam a realidade trata-se, outrossim, de uma
ordenada e modificável e como forma diferente de encarar
a realidade é essencialmente outros métodos. Como bem
dinâmica, as idéias têm, pela dizia William James, o Pragma-
sua própria natureza, que a- tismo nada mais é do que um
companhar o seu ritmo, caso novo método de tratar velhas
contrário, afundariam na vala idéias. Por essa razão o Prag-
comum da pura especulação, matismo é substancialmente,
desconectadas do real e sem uma atitude e não uma técnica
qualquer utilidade. Na verdade, procedimental que resulte de
essas considerações prelimina- uma lógica de cunho estrita-
res, que defluem, de uma abor- mente racional e que enquadre
dagem bastante genérica do os fatos em categorias univer-
pragmatismo não chegam a sais e necessárias. Oportuno
expressar ainda, o conjunto das reportar ao famoso aforisma
reflexões metodológicas apro- do Juiz da Suprema Corte dos
fundadas da obra filosófica de Estados Unidos, Oliver Wen-
pragmatistas como Peirce, e dell Holmes Jr., relativamente à
outros importantes represen- natureza do Direito, “a vida do
tantes dessa vertente doutriná- Direito não é a lógica mais a
ria como James e Dewey e que história”.
têm, contemporaneamente, em Uma compreensão mais
Rorth o seu mais insigne porta- nítida e coerente do método
voz. Tais idéias encontraram o pragmático, partindo, como se
seu correlato no, direito, atra- observou, de uma hipótese
vés dos trabalhos de Holmes, anti-essencialista, que refuta
Cardozo, Pound e, mais recen- modelos formais de conceitua-
temente, de pragmatistas como ção do discurso, supõe uma
Richard Posner, Anthony Ke- nova forma de pensar, aplicá-
neddy e outros Das considera- vel às mais diversas dimensões
ções precedentes poder-se-ia, do conhecimento humano,
Revista Duc In Altum Caderno de Direito, vol. 1, nº 1, jul-dez. 2009. | 45

incluindo-se então, as dimen- específico, mas no problema


sões social, moral e a jurídica, ele próprio. Nessas circunstân-
em substituição ao modo de cias, as operações do espírito
pensar cartesiano. Portanto, só são mutáveis e dinâmicas, inte-
uma alternativa crítica que par- ragindo, por seu turno, com
ta, como afirmava Peirce de uma experiência que flui num
uma dúvida genuína, é capaz continuum, de sorte a que seja
de dar conta das inconsistên- possível pensar em planos in-
cias e dos erros, incapazes de tegrados, o abstrato e o concre-
ser superados pelos cânones da to.
metodologia convencional. O Tendo em vista que, os
método pragmático parte de conceitos intelectuais, de acor-
uma real inquietação do sujeito do com o método pragmático,
com os seus próprios precon- não são definitivos, mas dinâ-
ceitos, para então eliminar os micos e abertos, porque extraí-
falsos problemas criados pela dos das conseqüências práticas
abstração, rompendo, assim, previsíveis, o seu número é
com o pré-falado dualismo que indefinido e sua aferição pro-
artificialmente, cria abismos babilística, portanto, estando,
entre existência e racionalidade, assim, impregnados de falibili-
teoria e ordem fática, pensa- dade. Se, é relativa a verdade
mento e ação ciência e ética, nessa acepção, os conceitos,
contextualizando-os e direcio- por seu turno, estariam perma-
nando-os para uma compreen- nentemente aptos a um inter-
são integrada da vida social, minável aperfeiçoamento e
nomeadamente para o universo refinamento dos seus significa-
jurídico, objeto deste estudo. dos.
O método pragmático Agora, mais uma vez, re-
considera que os efeitos con- direcionando o problema para
cebíveis de natureza prática o campo do direito, observa-se
que estão envolvidos numa que cada caso insere-se num
determinada situação com- conjunto de circunstâncias
põem o seu significado, o que específicas e, assim, tem a sua
implica que o investigador, própria história. Sua solução
diante de um problema, não se rejeita portanto modelos orto-
concentra apenas num método doxos e sua análise varia em
46 | Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 1, nº 1, jan.-dez. 2009.

função de um maior domínio ais deixa entrever que, a meto-


possível dos elementos que dologia aplicada ao direito ain-
comparecem à situação conjun- da se assenta no modelo sub-
tural, associado ao esforço suntivo que remonta ao século
imaginativo no sentido de en- XIX. Esse modelo, no qual a
contrar soluções mais apropri- decisão jurídica resulta dogma-
adas e convenientes para cada ticamente do texto legal ou de
caso. Os antecedentes são uma estrita submissão dos fa-
também muito importantes. O tos à lógica, opõe-se ao méto-
somatório de todas essas con- do pragmático. Ele parece não
dições possibilita que se chegue resistir a uma análise mais pro-
a decisões mais realistas e razo- funda dos seus postulados. Na
áveis em boa parte dos casos, maioria das vezes, os casos em
apesar de existirem os chama- que as normas jurídicas não se
dos “hard cases” no dizer de conformam aos fatos por mera
Dworkin. Entretanto, esses, subsunção, dado a singularida-
não correspondem à maioria, e de de cada evento e a impossi-
mesmo assim, devem ser en- bilidade do legislador de prever
frentados, a partir de algum a infinidade de ocorrências
nível de remodelamento teóri- fáticas que a realidade venha a
co, o que supõe, maior criativi- provocar, resultam no apare-
dade e inovação. Acerca do cimento de situações conside-
inovar, caberia aqui, retomar o radas aporéticas..
velho paradigma aristotélico Essas sucintas reflexões
segundo o qual, os ingredientes tiveram como objetivo, como
que compõem o ato de julgar e inicialmente se fez referência,
de procurar fazê-lo com justiça lançar alguma luz sobre a natu-
consistem em integrar e har- reza do método pragmático e
monizar essas duas dimensões sua aplicabilidade no campo do
extremamente nobres do ser direito. Pretendeu-se por outro
humano essas virtudes superio- lado, apresentar um contra-
res que são a Sophia e a Phro- ponto metodológico respeitá-
nesis, ou seja, a sabedoria e a vel para que se permitisse fazer
prudência. algumas ilações sob o ponto de
Um olhar retrospectivo vista puramente metodológico
sobre as nossas práticas judici- entre o Positivismo que im-
Revista Duc In Altum Caderno de Direito, vol. 1, nº 1, jul-dez. 2009. | 47

pregna a mentalidade de boa diálogo espontâneo, como ele


parte dos cientistas e pensado- decidia os casos no curso da
res da atualidade, inclusive no sua atividade judicante, as fon-
universo jurídico, e o Pragma- tes às quais recorria e os cami-
tismo. Toda a discussão que nhos que seguia para chegar a
aqui se desenvolveu teve como uma decisão. E Cardozo mo-
ponto de referência e núcleo da destamente respondeu: “Creio
temática, uma assertiva do Juiz que isso eu poderia fazer” A
Benjamin Nathan Cardozo, aparência imediatamente sim-
que substituiu o Juiz Oliver plória desse episódio deixa
Wendell Holmes na Suprema entrever uma atitude esencial-
Corte dos Estados Unidos. mente socrática, marcada por
É curioso e ao mesmo um genuíno sentimento de
tempo oportuno passar em sabedoria, associado a uma
revista alguns aspectos da vida nítida consciência da inesgota-
e da obra de Cardozo, a con- bilidade e relatividade do co-
cepção metodológica que ado- nhecimento humano. Movido
tou na elaboração dos seus pela convicção de que o exercí-
trabalhos e, sobretudo, como a cio intelectual se alimenta e
integrou e a valorizou do pon- enriquece através da sua contí-
to de vista das suas atividades nua e interativa exposição das
como intelectual e como juiz. nossas idéias ao crivo da expe-
Quando convidado pelo Pro- riência, Cardozo admite haver
fessor Corbin para participar continuidade e interação entre
das Conferências de Storr na os aspectos teórico-
célebre Universidade de Yale doutrinários de um problema -
para que formalmente discor- sempre suceptíveis a reinter-
resse sobre os aspectos doutri- pretações – e as conseqüências
nários da sua concepção jurídi- práticas que venham dele resul-
ca, Cardozo, humildemente, tar. Essas conferências proferi-
declarou que não acreditava das por Cardozo, culminariam
que, com base no que já pro- numa das suas mais importan-
duzira, tivesse algo de impor- tes obras: A Natureza do Pro-
tante a dizer aos alunos. Corbin cesso Judicial. Suas reflexões
então sugeriu que ele simples- em muito contribuíram para
mente relatasse, através de um que se lançasse, posteriormen-
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te, luz mais compreensiva, não intelectualmente, à luz de uma


só sobre a obra sistemática de dialética oralizada, sem o que,
Cardozo, a exemplo de “The as doutrinas escritas tornar-se-
Growth of the Law”e “Para- iam, tão somente, manifesta-
doxes of Legal Sciences” mas ções doxográficas e não pro-
nomeadamente, sobre o seu priamente filosóficas? Que
pensamento posto em ação nas portanto é indispensável enri-
suas atividades judicantes. quecer os recursos metodoló-
Esse episódio evoca uma gicos com uma hermenêutica
questão que se afigura perti- dialógica, que possibilite ultra-
nente, no sentido de se conjec- passar as limitações impostas
turar até que ponto, Cardozo pelo texto, inserindo-o, como
estava consciente de que en- propõe o pragmatismo, num
capsular o pensamento no in- contexto experiencial e lingüís-
vólucro das suas concepções tico que expanda as suas possi-
doutrinárias implicaria encerrar bilidades interpretativas, tor-
a continuidade do discurso, nando-o mais rico e abrangen-
bloquear o diálogo e interrom- te? Que a dinâmica das forças
per a comunicação, raison-d’être inarticuladas de que falava
do processo decisório. Não Holmes e que emergem do
seria possível que a hesitação senso-comum constituem, ao
de Cardozo em falar para os mesmo tempo, um convite e
estudantes se devesse à sua um desafio a uma compreen-
percepção de que, para ele, um são dinâmica do mundo da
filósofo pragmático, deveria vida? Que, conseqüentemente,
estar consciente da limitação de as doutrinas e os discursos
um discurso meramente formal escriturados, podem servir
o qual traduziria, apenas, uma apenas como ponto de partida,
opinião estagnada sobre certas mas nunca desfecho de uma
concepções consideradas apri- situação problemática, posto
oristicamente verdadeiras? E que, é da oralidade discursiva,
mais, que essas verdades neces- que emerge no contínuo exis-
sitariam, tanto do ponto de tentivo, das situações proble-
vista prático quanto teórico, ser máticas, que nasce a inteligên-
continuamente oxigenadas pela cia criativa capaz de sintetizar
experiência e reexaminadas de forma dinâmica e ao mesmo
Revista Duc In Altum Caderno de Direito, vol. 1, nº 1, jul-dez. 2009. | 49

tempo inclusiva, o teórico e o


prático? “Sócrates – Por conseguinte,
A propósito, Giovanni quem julgasse puder transmitir
25
Reale , na sua obra “Para uma uma arte com a escritura e
Nova Interpretação de Platão”, quem a recebesse convencido
tomando como referência o de que poderá extrair daqueles
diálogo Fedro, reúne os argu- sinais escritos alguma coisa de
mentos desenvolvidos por claro e sólido, deveria ser mui-
Platão, para demonstrar um to ingênuo e ignorar, na verda-
aspecto da teoria daquele filó- de, o vaticínio de Amon, se
sofo grego sobre as limitações considera que os discursos
da escrita e sua impossibilidade consignados são alguma coisa
de aumentar a sabedoria dos mais do que um meio para
homens. Para tanto, Platão trazer à memória de quem já
serve-se do mito do deus egíp- sabe as coisas das quais trata o
cio Toth que exalta junto ao rei escrito”.
Tamus, monarca de uma gran-
de cidade às margens do Nilo, Sendo o escrito, portan-
(a Tebas egípcia), o valor da to, por si só, incapaz de justifi-
escrita, como veículo de sabe- car aos que o criticam suas
doria. O Rei Tamus, todavia, próprias premissas, necessita
refuta os argumentos de Toth, sempre da ajuda da oralidade
alegando que a escrita só é que não se limita a repetir as
capaz de transmitir a aparência mesmas coisas contidas na
da verdade, o mundo da opini- palavra escrita. Ou seja, se só
ão. Com a escritura – diz ele – pela oralidade é possível com-
termina o verdadeiro instru- preender adequadamente a
mento de comunicação do essência do escrito, ninguém
saber, que é o ensinamento. melhor do que seu autor para
Assim Platão, através das pala- fazê-lo. E prossegue:
vras do seu grande mestre Só-
crates, expõe a sua tese: “Sócrates - Porque, caro Fedro,
a escritura tem isso de terrível,
semelhante, na verdade, à pin-
25 REALE, Giovanni. Para uma Nova
Interpretação de Platão. Editora Loyola: tura. De fato, as criaturas da
São Paulo, 1991, p.p. 54-80. pintura se te apresentam como
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se fossem vivas, mas se per- iluminar e enriquecer a solidão


guntas alguma coisa a elas, e a inamovibilidade dialética do
permanecem mudas, encerra- discurso escrito, mas, igual-
das num silêncio solene; assim mente, a sabedoria que está no
também o fazem os discursos. seu conteúdo, a qual, para ser
Acreditas que eles falam e pen- desvelada, está a depender pri-
sam eles mesmos alguma coisa, oritátia e fundamentalmente da
mas se compreendendo bem, competência do seu próprio
lhes perguntas alguma coisa do autor.
que disseram, continuam a O texto de Platão é bas-
repetir uma única e mesma tante claro quanto a esse aspec-
coisa. E uma vez que um dis- to:
curso esteja escrito, gira por
todas as partes, nas mãos dos “Sócrates – E então? Conside-
que o compreendem e também remos agora outro discurso,
nas mãos daqueles para quem irmão legítimo deste? Vejamos
não tem a menor importância e de que modo nasce, e pela sua
não sabe a quem deve falar e a natureza, quanto seja melhor e
quem não deve. E se o ofen- mais poderoso do que aquele?
dem e erroneamente, o ultra- Fedro - Qual é esse discur-
jam precisa sempre da ajuda do so, e de que modo dizes que
pai porque não é capaz de se nasce?
defender e de se ajudar sozi- Sócrates - O discurso escrito,
nho.” mediante a ciência, na alma de
quem aprende, e que é capaz
Apesar da íntima relação de se defender por si e sabe
existente entre o discurso escri- com quem deve falar e com
to e a sua oralidade, só esta quem deve calar.
última é capaz de o defender e Fedro - Pretendes referir-
ampliar a compreensão do se ao discurso de quem sabe, o
primeiro. Mas essa é uma ativi- discurso vivo e animado, do
dade que há de ser exercida por qual se pode dizer, com razão,
quem realmente conheça a que o discurso escrito é uma
essência do discurso escrito. imagem?
Desse modo, Platão exalta não Sócrates - Justamente este.”
apenas o método utilizado para
Revista Duc In Altum Caderno de Direito, vol. 1, nº 1, jul-dez. 2009. | 51

Essa metodologia que contida no Fedro, desenvolvi-


enfatiza as doutrinas não escri- dos pela intitulada Escola de
tas, (àgrapha dógmata), consis- Tübingan, particularmente,
te, portanto, num esforço inte- através das obras de Hans
grado de combinar de um lado, Krämer26 e Konrad Gaiser27
as reflexões desenvolvidas cri- apóiam-se na análise fenome-
ticamente sobre o texto, não nológica, rompendo com o
como uma conseqüência ne- paradigma de Schleiermacher.
cessariamente estratificada das Este, segundo Henrique de
suas premissas, mas como um Lima Vaz, não obstante a sua
salto qualitativo sobre elas a- relevância para a compreensão
través de uma reflexão inteli- da obra de Platão, relega a uma
gente e criativa; essa mesma posição inexpressiva a tradição
reflexão só encontrará validade indireta das doutrinas não-
na medida em que se apoiar escritas.
num novo modo de interpretar Portanto, ao mesmo
as experiências contidas no tempo em que se pretende
texto, ou seja, reconhecendo as consignar que existem diferen-
suas limitações e, ao mesmo ças consideráveis entre o mé-
tempo, emprestando-lhes di- todo pragmático e as idéias
namicidade, interatividade e platônicas, particularmente
complementariedade. como foram interpretadas pe-
Ao se destacar, aqui, do los pensadores de Tübingen,
ponto de vista intelectual, as diferenças cuja análise extrapo-
raízes hermenêuticas das dou- laria os limites desse trabalho,
trinas escritas, para desvelar da algumas analogias tornar-se-
sua estreita dimensão formal, o iam, não obstante, pertinentes.
fluir de perspectivas mais ricas Elas servem ao propósito de
e inovadoras, pode-se observar procurar demonstrar algumas
que a fenomenologia, como afinidades entre as propostas
ressalta Piere Tevenaz, interli-
ga-se ao pragmatismo, pois ter, 26 Arete bei Platon und Aristóteles
fazer e ser são categorias car- apud REALE, Giovanni. Por uma
deais da realidade humana. Nova Interpretação de Platão. Ed. Loyo-
la: S. Paulo, 1997, p. XXV.
Trabalhos mais recentes, 27 Platons Ungeschirebene Lehre
inspirados na tese platônica Op.Cit, p.XXVIII.
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de certos pensadores pragmáti- ses do Estado se impõem aos


cos e o seu background históri- indivíduos formalmente orga-
co-filosófico. Ilustram essas nizados, submetendo os seus
analogias, a crença inabalável imperativos à massa dos cida-
no papel inovador da educa- dãos como supremos coman-
ção; as infinitas possibilidades dos que refletem impecavel-
de interpretar os problemas, do mente o bem e a verdade. En-
ponto de vista das suas contro- tretanto, a força desses impera-
vérsias intelectuais, através de tivos, alcançam maior relevo e
um natural descrédito pela dignidade na proporção em
memorização vis-a-vis o poder que se abram alternativas à
dinâmico e criativo da inteli- liberdade de pensar criticar o
gência em compreender as que tempera o poder da força
infindáveis alternativas de uma com o poder da persuasão, da
situação problemática e o de- circulação do conhecimento e
senvolvimento de novas hipó- da efetiva participação do indi-
teses que iluminem o seu co- víduo na vida social. Nesse
nhecimento e as possibilidades sentido28:
de ação. De que o escrito en-
quanto norma - inclusive nor- “Laws in the main express the
ma jurídica estratifica, condici- sober and considered judgment
ona – unidireciona interpreta- of the community as to that is
ções e condutas. A ampliação really good for individuals; the
dessas idéias de um plano pu- authority of law is on this basis
ramente epistemológico para the authority of comprehensive
uma dimensão sociológica dos and reflectively approved good.
problemas suscita implicações (…) Liberty to think, inquire,
do ponto de vista do exercício discuss is central in the whole
da liberdade dos indivíduos de group of rights which are se-
criticar e criativamente, ampliar cured in theory to individuals
e enriquecer o diálogo. Do in a democratic social organiza-
ponto de vista pragmático esse tion. It is central because the
princípio vem claramente deli- essence of the democratic
neado na filosofia de John
Dewey quando afirma que o 28DEWEY, John. The Latter Works.
verdadeiro poder e os interes- Vol. 7. Ethics, p.p. 216,358.
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principle is appeal to voluntary


disposition instead of to force, Tudo isso poderia, hipo-
to persuasion instead of coer- teticamente, ser associado a
cion. Ultimate authority is to esse episódio no qual Cardozo
reside in the needs and aims of - um Juiz da Suprema Corte,
individual as these are enlight- detendo um considerável po-
ened by a circulation of der sobre o sistema jurídico e
knowledge, which in turn is to sua aplicabilidade – preferira
be achieved by free communi- prelecionar oralmente sobre
cation, conference, discussion. suas experiências como juiz
Exchange of ideas, distribution para os estudantes de Yale,
of knowledge, imply a previous submetendo assim, as suas
possession of ideas and infor- próprias convicções ao teste e
mation which is dependent aos desafios da prática, vis-a-
upon freedom of investiga- vis as próprias concepções do
tion.”29 pragmatismo jurídico-
filosófico.Desse modo, preten-
dia, certamente, ampliar e enri-
29 “A força da lei pretende prudente- quecer, sob um forma partici-
mente expressar o julgamento da
comunidade como se fosse o bem
pativa e dialógica o seu discur-
real dos indivíduos; a autoridade da so. Isso parece, portanto guar-
lei é desse modo a autoridade do bem dar, enfatize-se, uma certa si-
reflexiva e compreensivamente apro- militude ao já referido postula-
vado. (...) Liberdade de pensar, inqui- do platônico enunciado no
rir, discutir é central para todos os
direitos os quais asseguram teorica- Fedro – no sentido de que,
mente segurança aos indivíduos nu- para Cardozo, aa linguagem
ma organização social democrática. oralizada, tinha um relevante
Isso é fundamental porque a essência papel na sua filosofia jurídica,
do princípio democrático é o apelo à na medida em que estava sujei-
disposição voluntária, ao invés da
força, a persuasão ao invés da coação.
ta a múltiplas, renovadas e mais
A autoridade suprema reside nas
necessidades e propósitos dos indi-
víduos enquanto iluminados pela distribuição de conhecimentos, impli-
circulação de conhecimentos, o qual, ca uma prévia apropriação de idéias e
por seu turno se alcança através da informações as quais dependem da
livre comunicação, das palestras, das liberdade de investigação.”
discussões. Intercâmbio de idéias,
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ricas interpretações, tornando- balável crença de que o juiz


se assim menos rígida e mais não é um mero intérprete da
compreensiva. lei, mas o seu criador e que o
propósito que conduz esse ato
Cardozo, diga-se por fim, criativo consiste na tentativa
juntamente com Oliver Wen- obstinada de adaptar e tornar o
dell Holmes Jr. E Roscoe direito um instrumento de
Pound entendem o direito co- transformação significativa e
mo um fenômeno social intrin- funcionalmente útil da vida
secamente relacionado a todas social. Na mesma linha de ra-
as diversas dimensões da vida ciocínio o processo, para ele,
do homem, particularmente não constituí apenas uma for-
àquela oriunda das chamadas ma de trazer à luz fatos enco-
ciências humanas e sociais, bertos, não se trata simples-
constituindo as obras dessa mente de uma forma de desco-
tríade de pensadores, a expres- brir, mas de criar em cima dos
são mais rica e significativa da fatos existentes alternativas
chamada Escola Sociológica do inteligentes, apoiadas num i-
Direito. narredável compromisso com
os genuínos sentimentos de
Algumas reflexões de justiça, visando alcançar solu-
Cardozo, que emergem da sua ções práticas e substancialmen-
obra e do seu diálogo com te éticas, para os problemas de
aqueles estudantes, acerca da natureza jurídica. Nesse senti-
natureza e do método do pro- do, seria pertinente, agora, ou-
cesso judicial e a evolução do vir o que diz o próprio Cardo-
Direito poderiam, agora, ilus- zo:30
trar essas mencionadas analogi-
as. A constatação que clara- “Se estou procurando consis-
mente se percebe na obra de tência lógica, a simetria da es-
Cardozo é o seu permanente
compromisso de integrar de
forma contínua e substancial a 30 CARDOZO, N. Benjamim. A
teoria jurídica às práticas exer- Natureza do Processo Judicial in Os Gran-
des Filósofos do Direito, Clarence Moris
cidas nos tribunais. Associado (org.). Martins Fontes: S. Paulo, 2002,
a isso, acrescente-se a sua ina- p.524.
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trutura legal, até que ponto nam sua obra perfunctória e


devo procurar? Em que ponto mecânica. Há lacunas a serem
a busca será interrompida por preenchidas. Há dúvidas e am-
algum costume discrepante , bigüidades a serem esclareci-
por alguma consideração de das. Há injustiças e erros a
bem estar social, pelos meus serem mitigados, se não evita-
próprios padrões ou pelos pa- dos. Muitas vezes se fala da
drões comuns de justiça e de interpretação como se ela não
moral? Todos esses ingredien- fosse nada, a não ser a procura
tes entram em proporções va- e a descoberta de um sentido
riadas nesse estranho compos- que, por mais obscuro e laten-
to que é preparado todos os te, tinha, não obstante, uma
dias no caldeirão dos tribunais. preexistência real e verificável
Não estou interessado em in- na mente do legislador. A ave-
vestigar se os juízes devem ou riguação da intenção pode ser a
não ter permissão para prepa- menor das dificuldades de um
rar tal composto. Considero a juiz para atribuir sentido a uma
norma feita por juiz como uma lei” Cardozo, N. Benjamim: A
das realidades da vida. Os ele- Natureza do Processo Judicial,
mentos não foram reunidos in Os Grandes Filósofos do
por acaso. Algum princípio, Direito, Clarence Moris (org.)
por mais que inconfessado, Martins Fontes, S. Paulo, 2002,
inarticulado e subconsciente, p.524
regulou a infusão. Pode não ter
sido o mesmo princípio para E finalmente, falando
todos os juízes em alguma é- sobre o papel e a função do
poca, nem o mesmo princípio que considera uma genuína
para algum juiz em todas as Filosofia do Direito assim se
épocas. Mas houve uma esco- expressa:
lha, não uma submissão ao
decreto do Destino.” “O direito de nossos dias depa-
ra dupla necessidade. A primei-
Ou ainda: ra é de uma nova compilação
(Restatement) que nos traga
“Códigos e leis não tornam o certeza e ordem, livrando-nos
juiz supérfluo, tampouco tor- da confusão dos precedentes
56 | Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 1, nº 1, jan.-dez. 2009.

judiciários. Esta é a tarefa da tribunal um toque das qualida-


ciência legal. A segunda é de des que fazem um poeta. O
uma filosofia que exerça o pa- exame e análise dos fatos soci-
pel de mediadora entre as exi- ais pode fornecer-nos os dados
gências da estabilidade e de sobre os quais medita o espíri-
progresso em conflito, e forne- to criador, mas no processo de
ça um princípio de evolu- criação há sempre alguma coisa
ção.(...) A verdade realmente é a mais do que nele entrou.
que no processo de evolução Geny, em sua Ciência e Técni-
do direito, assim como em ca em Direito Privado, lembra-
outros campos do pensamento, nos como essa noção da evolu-
jamais podemos furtar-nos à ção do direito se enquadra bem
dependência de intuições ou de no esquema geral do recente
clarões interiores, que trans- pensamento filosófico, e, parti-
cendam e transformam as con- cularmente, com a filosofia de
tribuições de simples experiên- Bérgson e a da escola de Bérg-
cia Os grandes historiadores son. ‘É necessário, dizem-nos
diz Windelband, ‘não precisam eles, completar e corrigir a rigi-
esperar pelas experiências e dez do intelecto pela maleabili-
pesquisas dos nosso psicofísi- dade do instinto, de modo a
cos. A psicologia que usaram auscultar o mistério do univer-
foi a da vida diária. Foi o co- so por meio de uma espécie de
nhecimento dos homens, a simpatia intelectual’A nova
experiência da vida, do homem filosofia prega ,sob o nome de
comum, a par da visão do gê- ‘intuição’, uma forma de co-
nio e do poeta. Ninguém con- nhecimento mais sutil do que o
seguiu, ainda, fazer uma ciência proveniente apenas da inteli-
dessa psicologia de compreen- gência, uma forma de conhe-
são intuítiva’ O que aqui se diz cimento que se instala no pró-
do historiador é igualmente prio coração da realidade e nela
verdadeiro do jurista. Uma penetra, vindo de dentro e não
percepção mais ou menos páli- de fora. Não é necessário que
da dessa verdade inspira a ob- nos tornemos discípulos de
servação de Graham Wallas, de qualquer teoria de epistemolo-
que deveria haver em alguns gia, da de Bérgson ou de qual-
dos juízes do nosso mais alto quer outra, a fim de perceber a
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força da analogia entre o pro- sua relevância para uma filoso-


cesso criador aqui descrito e o fia pragmática do direito e suas
processo em ação no desen- necessárias articulações e apli-
volvimento do direito. O me- cações, relativamente às práti-
canismo patenteia a mesma cas jurídicas.
diversidade de forma e de par-
tes e combinações. A análise
alterna com a síntese; a dedu-
ção com a indução; o raciocí-
nio com a intuição. Trata-se,
nas palavras de Geny, ‘de um
processo extremamente com-
plexo e cheio de delicadas nu-
anças, repleto de casuísmo e
dialética, uma mistura constan-
te de análise e síntese, no qual
os processos a posteriori, que
fornecem soluções adequadas,
pressupõem direções a priori,
propostas pela razão e pela
vontade.’” Cardozo, Benjamin,
A Evolução do Direito Cole-
ção Ajuris, Porto Alegre, 1978,
p.221/2..

Deixo aos leitores como


no início foi sugerida, a fasci-
nante tarefa de interpretar as
idéias aqui expostas, com o
propósito de, através delas,
procurar de alguma forma am-
pliar a compreensão do intrín-
seco significado que às refle-
xões de Cardozo possam con-
ter, particularmente, sobre a
metodologia por ele proposta e

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