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São Paulo, Brasil, 12 de maio de 2021.

Srª. Michelle Bachelet, Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos;

Srª. E. Tendayi Achiume, Relatora Especial das Nações Unidas sobre Formas
Contemporâneas de Racismo;

Sr. Morris Tidball-Binz, Relator Especial das Nações Unidas sobre Execuções
Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias;

Sr. Nils Melzer, Relator Especial das Nações Unidas sobre Tortura e outros Tratamentos
ou Punições Cruéis, Desumanos e Degradantes.

Ref.: [APELO URGENTE] Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias e


Desaparecimentos Forçados no Brasil - “Crimes de Maio”.

CONECTAS DIREITOS HUMANOS, DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO


DE SÃO PAULO e MOVIMENTO MÃES DE MAIO vêm, respeitosamente, dirigir-se à
Organização das Nações Unidas (ONU) com o objetivo de apresentar informações e
solicitar providências urgentes sobre graves violações de direitos humanos ocorridas entre
12 e 21 de 2006, na cidade de São Paulo, no Brasil, em episódios popularizados como
“Crimes de Maio”.

A) O contexto de letalidade policial no Brasil e os “Crimes de Maio”.

A violência policial permanece como prática corriqueira e generalizada no Brasil, a


despeito de há muito tempo se saber dessa política. Em visita realizada no ano 2000, o Relator
Especial das Nações Unidas contra Tortura, Nigel Rodley, afirmou que: “O período do regime
militar de 1964 a 1985, caracterizado pela tortura, desaparecimentos forçados e execuções
extra-judiciais, ainda paira sobre o presente regime democrático”1.

Conforme dispõe a Constituição Federal brasileira de 1988, toda pessoa tem direito à
vida, ao devido processo legal e a um julgamento imparcial, sendo inadmissíveis execuções
arbitrárias ou extrajudiciais. Apesar disso, diversos estudos denunciam uma realidade
contrária no país, com escalada da violência policial e altas taxas de letalidade.

Em razão de homicídios praticados todos os dias, a polícia brasileira se tornou uma


das mais letais do mundo: entre 2009 e 2016, quase 22 mil pessoas foram mortas pela
polícia no Brasil2, número superior ao total vitimado nos últimos 30 anos pela polícia dos
EUA3. Apenas em 2018, a polícia brasileira matou 6.220 pessoas, sendo o equivalente a uma
pessoa executada a cada 85 minutos4. Nesse contexto, essencial o destaque ao perfil das
vítimas: homens (99,3%), jovens entre 15 e 29 anos (77,9%), e majoritariamente negros
(75,4%)5, evidenciando uma atuação seletiva e racializada da política de morte.

Os números reforçam o quê, infelizmente, já se sabe: perpetua-se uma política


estatal de genocídio da população negra, efetivada por ação direta e por omissão.

Após o relatório do ano 2000, o excessivo número de mortes provocadas pela polícia
brasileira voltou a ser denunciado pela ONU em 2009. Uma série de ilegalidades sobre a
atuação da polícia foi registrada pelo Relator Especial sobre Execuções Extrajudiciais,
Sumárias ou Arbitrárias da ONU, Sr. Philip Alston, no relatório A/HRC/11/2/Add.2, de 23 de

1
ONU, Comissão de Direitos Humanos. “Civil and Political Rights, including the questions of Torture and
Detention.” Report of the Special Rapporteur, Sir Nigel Rodley, submitted pursuant to Commission on Human
Rights resolution 2000/43. Addendum Visit to Brazil. Documento E/CN.4/2001/66/Add.2. Parágrafo 158.
Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G01/123/23/PDF/G0112323.pdf?
OpenElement. Acesso em: 11/05/2021.
2
11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública – Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Disponível em:
http://www.forumseguranca.org.br/publicacoes/11o-anuario-brasileiro-de-seguranca-publica/. Acesso em:
11/05/2021.
3
8º Anuário Brasileiro de Segurança Pública - 2014. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ano 8. 2014, p. 6.
Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/publicacoes/8o-anuario-brasileiro-de-seguranca-publica/.
Acesso em: 11/05/2021.
4
13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública - 2019. Ano 13. Disponível em:
http://www.forumseguranca.org.br/publicacoes/13-anuario-brasileiro-de-seguranca-publica/. Acesso em: 11 mai.
2021.
5
Ibidem. Acesso em: 11/05/2021.
março daquele ano6. Após inspeção no país e diante da confirmação dos dados sobre a
altíssima letalidade policial no Brasil, o Relator chegou à conclusão de que execuções são
praticadas pela polícia não somente em serviço, mas também fora dele, por meio de
grupos de extermínio7.

O Relatório aponta, com preocupação, os números dos chamados “autos de


resistência” ou “resistência seguida de morte” - homicídios causados por policiais, que são
registrados como decorrentes de resistência ou confronto, incluindo casos nos quais não
houve reação, com elementos de execução extrajudicial, como por exemplo, tiros à queima
roupa nas costas das pessoas8. A figura dos “autos de resistência” também acaba protegendo
os agentes de segurança pública de investigações, conduzindo à equivocada presunção de que
a polícia somente age em legítima defesa.

O Sr. Philip Alston ainda constatou a intencional má condução das investigações,


que estaria acobertando os homicídios: observou-se que as mortes eram direcionadas a
delegacias diferentes de onde deveriam ser apresentadas, indicando uma atuação
propositalmente confusa da polícia para dificultar qualquer apuração dos fatos. Ele,
inclusive, afirma ter tido acesso a provas contundentes sobre a adulteração dos locais das
mortes; restando, nestes casos, apenas o testemunho dos policiais sobre o ocorrido9.

A conivência do alto escalão da polícia contribui para uma cultura de impunidade,


visto que os policiais sabem que podem operar à margem da lei não só no serviço, com os
“autos de resistência”, mas também fora dele 10. A situação de violência era tamanha que o

6
Disponível em: https://www2.ohchr.org/english/bodies/hrcouncil/docs/11session/A.HRC.11.2.Add.2_sp.pdf.
Acesso em: 11/05/2021.
7
Relatório A/HRC/11/2/Add.2, ONU, p. 6: “In part, there is a significant problem with on-duty police using
excessive force and committing extrajudicial executions in illegal and counterproductive efforts to combat crime.
But there is also a problem with off-duty police themselves forming criminal organizations which also engage in
killings”. Disponível em: https://undocs.org/es/A/HRC/11/2/Add.2. Acesso em: 11/05/2021.
8
7º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2013, p. 120. Disponível em:
https://forumseguranca.org.br/storage/7_anuario_2013-corrigido.pdf. Acesso em: 11/05/2021.
9
Relatório A/HRC/11/2/Add.2, ONU, p. 10: “In the May 2006 cases, a number of resistance deaths were
reported to the wrong precinct, suggesting collusion in impunity between specific Military Police battalions and
Civil Police stations. [...]I received extensive evidence that crime scenes were routinely tampered with. [...] The
policeman involved in the killing is often the only witness from whom a statement is taken”. Disponível em:
https://undocs.org/es/A/HRC/11/2/Add.2. Acesso em: 11/05/2021.
10
Ibidem, p. 11: “Corruption and second jobs cause harm in themselves, but high-level tolerance of them also
contributes to a culture of impunity in which police know they can operate outside the law”.
relatório é taxativo em asseverar: “O sistema atual é um cheque em branco para as mortes
praticadas pelos policiais”11.

Mais uma vez, no ano de 2016 o Relator Contra Tortura da ONU, Sr. Juan Mendez,
apontou que o Brasil é marcado pelo racismo institucional, estando as pessoas negras
mais

vulneráveis à violência de Estado. O relatório sobre a visita ao país durante o ano de


2015 pontuou que “afro-brasileiros estão significativamente em maior risco de
encarceramento em massa, abuso policial, tortura e maus tratos, negligência médica, e serem
mortos pela polícia [...] sugerindo alto grau de racismo institucional”12.

No mesmo documento, reforçou-se a preocupação quanto à ausência de perícia


autônoma no país e a emergência de que sejam utilizados, em casos de execuções e tortura,
os Protocolos de Istambul e de Minessota. Ainda foi recomendado que se reduza, urgente
e drasticamente, o número de mortes por ação de policiais e que tipos de ação como o
“auto de resistência” ou semelhantes sejam abolidos do ordenamento interno13.

No âmbito dessa estrutura maculada pela violência policial ocorreram, em 2006, os


episódios configuradores dos “Crimes de Maio”, já denunciados em diversas instâncias,
nacionais e internacionais, sem, contudo, terem obtido um deslinde satisfatório até hoje,
data em que completam 15 anos.

Entre 12 e 21 de maio de 2006, mais de 500 pessoas foram executadas no estado


de São Paulo, durante conflitos armados entre o crime organizado e a polícia.
Oficialmente, pelo menos 124 (cento e vinte e quatro) pessoas foram mortas pela polícia 14,
que registrou todos os casos como resistência seguida de morte 15; no entanto, há indícios de
11
Ibidem, p. 11. No original: “The present system constitutes a carte blanche for police killings”.
12
ONU, Comissão de Direitos Humanos. Report of the Special Rapporteur on torture and other cruel, inhuman
or degrading treatment or punishment on his mission to Brazil, p. 8. No original: “Afro-Brazilians are at a
significantly higher risk of mass incarceration, police abuse, torture and ill-treatment, medical neglect, being
killed by the police,[...] suggesting a high degree of institutional racism”. Disponível
em:https://www2.ohchr.org/english/bodies/hrcouncil/docs/11session/A.HRC.11.2.Add.2_sp.pdf. Acesso em: 11
mai. 2021.
13
Ibidem, p. 11, 13 e 22.
14
Folha de S.Paulo - Familiares acusam policiais por mortes - 16/05/2006. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1605200625.htm. Acesso em: 11/05/2021.
15
ONU, op. cit., pp. 9-10. No original: “The 124 killings were not registered and investigated as homicides, but
each was instead registered by the police as a ‘resistance followed by death”. Disponível em:
que a polícia esteve implicada em execuções extrajudiciais realizadas por grupos de
extermínio.

Estudo realizado pelo Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual


do Rio de Janeiro (LAV/UERJ) em colaboração com a subscritora Conectas Direitos
Humanos16 revelou, a partir do exame de 564 boletins de ocorrência e laudos de exames
necroscópicos das mortes ocorridas no período, que após o ataque inicial aos agentes
públicos, a maioria dos assassinatos foi cometida contra a população civil, principalmente
em bairros periféricos, evidenciando uma operação de extermínio. Na opinião dos
pesquisadores, os dados reforçam a hipótese de atos de retaliação com a participação de
agentes do Estado em grupos de extermínio. Veja-se:

Este quadro é compatível com o cenário de uma série de ataques contra


agentes nos dias iniciais, com muitas vítimas entre eles, e uma série de
operações de represália realizadas por policiais nos dias seguintes, com um
alto número de vítimas civis. A conclusão mais clara é que a letalidade dos
civis não acontece basicamente durante os ataques contra policiais ou
agentes penitenciários, mas num momento posterior, provavelmente em
intervenções realizadas por policiais (grifos nossos)17.

Todas as execuções sumárias relatadas foram cometidas com modus operandi similar:
geralmente à noite, com a abordagem repentina de homens encapuzados; na mesma época, em
maio de 2006, e no mesmo contexto histórico (suspeita-se que tenham sido reações
indiscriminadas e vingativas dos órgãos policiais); na mesma região, as periferias do estado
de São Paulo18; e da mesma forma. Exatos 15 anos depois e apesar da luta incansável dos
familiares por justiça, nenhuma execução e nenhum desaparecimento forçado foi
esclarecido.

B) Enquadre dos fatos às disposições da Resolução A/HRC/43/1.

https://www2.ohchr.org/english/bodies/hrcouncil/docs/11session/A.HRC.11.2.Add.2_sp.pdf. Acesso em:


11/05/2021.
16
Conectas Direitos Humanos; LAV/UERJ. Análise dos impactos dos ataques do PCC em São Paulo em maio
de 2006. Disponível em: https://www.conectas.org/publicacoes/download/relatorio-crimes-de-maio-2006.
Acesso em: 11/05/2021.
17
Ibidem, p. 11.
18
CAAF-UNIFESP - Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo.
Violência de Estado no Brasil: uma análise dos Crimes de Maio de 2006. Relatório Final. São Paulo: UNIFESP,
2019. Disponível em: https://www.unifesp.br/reitoria/caaf/images/novo_site/documentos/Relat%C3%B3rio_-
_Crimes_de_Maio.pdf. Acesso em: 12/05/2021.
Em junho de 2020, este respeitável Conselho de Direitos Humanos da Organização
das Nações Unidas (ONU) aprovou a Resolução A/HRC/43/1, como parte de um debate
histórico sobre violações de direitos humanos, racismo sistêmico e violência policial
contra pessoas negras. Essa Resolução é produto da global mobilização antirracista,
condenando “veementemente a persistência entre as agências de aplicação da lei de práticas
racistas violentas e discriminatórias contra africanos e afrodescendentes, em particular
aquelas que levaram à morte de George Floyd em 25 de maio de 2020 em Minnesota [...] e a
morte de outros afrodescendentes, e também condena o racismo estrutural do sistema de
justiça criminal”19 (grifos nossos).

Dentre outras obrigações, a mencionada Resolução 43.1 atribui à Alta Comissária


para Direitos Humanos das Nações Unidas a responsabilidade de, “com o auxílio dos
titulares dos mandatos de procedimentos especiais pertinentes, elabore um relatório sobre
racismo sistêmico, violações do direito internacional dos direitos humanos cometido pelas
forças de aplicação da lei contra Africanos e afrodescendentes, especialmente os
incidentes que levaram à morte de George Floyd e outros africanos e afrodescendentes, a
fim de contribuir para a prestação de contas e à reparação das vítimas’” (grifos nossos).

A Resolução ainda conclama a todos os Estados e às partes interessadas que


cooperem, plenamente, com a Alta Comissária na elaboração do relatório supramencionado,
servindo o presente apelo urgente também a este intuito, caso seja considerado adequado
pelas mandatárias competentes aos procedimentos especiais na Organização das Nações
Unidas.

Indubitável que, à luz da referida Resolução, bem como das normas que regem o
direito internacional de direitos humanos, os eventos aqui relatados ensejam cobranças
urgentes ao Estado brasileiro e às autoridades públicas do estado de São Paulo,
sobretudo por terem ocasionado mais de 500 mortes de civis e, pelo menos, outros 4
desaparecimentos forçados, atingindo preponderantemente pessoas negras.

Um dos elementos essenciais de uma resposta adequada à prática de desaparecimento


forçado é a integração entre a procura pela pessoa desaparecida e os procedimentos de
responsabilização, sobretudo criminal. Documentos internacionais como o proposto pela

19
Disponível em: https://undocs.org/en/A/HRC/43/1. Acesso em: 12/05/2021.
International Bar Association – Human Rights Institute (IBAHRI) trazem ainda a
importância de incluir e colaborar com famílias das vítimas e associações de familiares,
desenvolvendo políticas de busca pública que não as re-vitimizem20.

A busca por pessoas forçadamente desaparecidas, com razoável grau de suspeita


recaindo sobre agentes de segurança locais, exige medidas especiais, como a criação de
órgãos especializados devidamente equipados, e de arcabouço legal que agregue toda a
cadeia de condutas responsáveis pelo desaparecimento. Tais medidas são legais,
administrativas e legislativas, mas não só; devem imputar a responsabilidade do Estado em
qualquer dimensão necessária para extinção da prática21. O Comitê para Direitos Humanos
da ONU também inclui, a título de compensação, a necessidade de “investigação e
responsabilização por qualquer ação que possa ter prejudicado a efetividade da
busca”22.

Em seu Manual de Direito Antidiscriminatório, o Professor Doutor Adilson José


Moreira salienta a importância de se observar a governança corporativa em perspectiva de
conexão com o direito constitucional e o antidiscriminatório, no sentido de reconhecer as
problemáticas que a falta de conexão crítica entre os temas traz para a segurança pública 23.
Com efeito, a falta de análise a respeito da realidade dos grupos minoritários, em detrimento
do acesso a direitos, faz com que a discriminação alcance resultados de extrema violência e
prejuízo no Brasil, tal qual é a situção do desaparecimento forçado24.

No caso relatado, após as mortes, as poucas investigações policiais instauradas


não representaram qualquer avanço efetivo à resolução dos crimes. De modo similar à
atuação das autoridades policiais, também houve omissão dos órgãos de justiça
brasileiros. A negligência do Ministério Público com as mortes é explícita, ignorando
elementos como a ocultação de provas e a alteração dos locais dos crimes. A única ação do
20
International Bar Association. Where are they? International Standards for the search for forcibly disappeared
people. Disponível em: https://www.ibanet.org/Article/NewDetail.aspx? ArticleUid=060b4b13-a627-4175-abb4-
50324edaf747. Acesso em: 12/05/2021.
21
ONU. Grupo de Trabalho sobre Pessoas Desaparecidas. Compilação de Comentários Gerais à Declaração
para a Proteção de Todas as Pessoas contra Desaparecimento Forçado.
22
Human Rights Committee. CCPR/ C/126/D/2750/2016. Publicado em 13 de setembro de 2019.
23
Moreira, Adilson José. Tratado de Direito Antidiscriminatório. São Paulo, Editora Contracorrente, 2020, p.
698.
24
De acordo com a proposta de estudos referenciada, deve-se “[...] analisar os processos culturais e políticos
responsáveis pelo uso dessas características como alvo principal de um sistema protetivo especial", que
compreende a importância dos parâmetros de proteção a grupos vulneráveis (MOREIRA, 2020, p. 698).
órgão foi a listagem das vítimas, com a indicação de dados como nome, profissão e causa da
morte. Houve, ainda, omissão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que acatou
os pedidos de arquivamento de vários inquéritos, embora pudesse ter discordado e
encaminhado o material ao Ministério Público para nova manifestação.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, igualmente, se omitiu ao anular a


única condenação de um policial militar pelas mortes ocorridas em maio de 2006 25. O
motivo da anulação também diz muito sobre a Justiça Brasileira: considerou-se que o
julgamento foi inválido porque a representante da Defensoria Pública do Estado de São
Paulo leu um relatório sobre os “Crimes de Maio” que, no entender dos julgadores, não
guardavam relação com os fatos do processo.

Indignadas com o esgotamento de todos os recursos judiciais internos, as famílias


buscaram outras formas de obter algum tipo de resposta do Estado. Internamente, em 2009, a
subscritora Conectas Direitos Humanos solicitou ao Ministério Público Federal que
requisitasse a “federalização” das investigações das mortes, devido ao possível envolvimento
de agentes públicos locais nos crimes. Somente em maio de 2016, dez anos após os fatos,
o então Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, acatou a solicitação e
apresentou ao Superior Tribunal de Justiça o pedido de federalização 26. O caso segue
sem julgamento.

Ainda em 2009, a peticionária Conectas Direitos Humanos também protocolou


denúncia na Comissão Interamericana de Direitos Humanos contra a República Federativa
do Brasil, denunciando a violação a direitos previstos na Convenção Americana sobre
Direitos Humanos, quais sejam: direito à vida (Artigo 4, elemento 1 ); direito à
integridade pessoal (artigo 5, elemento 1); direito à proteção judicial (artigo 25,
elementos 1 e 2); e violação das obrigações assumidas pelo Estado (artigo 1º, elemento
1.1).

Em adição, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, representada pelo Núcleo


Especializado de Cidadania e Direitos Humanos, o Movimento Mães de Maio, a Justiça
Global e a Ação dos Cristãos pela Abolição da Tortura - ACAT Brasil, em abril de 2010,
25
Trata-se do processo nº 9000018-55.2006.8.26.0001.
26
Janot pede para PF reabrir apuração de chacina dos ataques de 2006 em SP. Disponível em:
http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/05/janot-pede-para-pf-reabrir-apuracao-de-chacina-dos-ataques-de-
2006-em-sp.html. Acesso em: 12/05/2021.
também apresentou ao Procurador-Geral da República do Brasil, chefe do Ministério Público
Federal, um pedido de instauração de incidente de deslocamento de competência que,
passados 11 anos, segue sem qualquer resposta.

Assim como fez a peticionária Conectas em 2009, no ano de 2015 a Defensoria


Pública do Estado de São Paulo apresentou petição à Comissão Interamericana de Direitos
Humanos contra a República Federativa do Brasil, em razão dos “Crimes de Maio”
ocorridos na Baixada Santista/SP, alegando violação aos direitos das vítimas à vida, à
integridade pessoal, à liberdade e segurança pessoais, às garantias judiciais e à
proteção judicial, todos eles assegurados pela Convenção Americana de Direitos Humanos.

Hoje, 12 de maio de 2021, as subscritoras do presente apelo protocolaram nova


petição perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, denunciando violações aos
artigos 1º (1.1), 3º, 4º, 5º, 7º, 8º, 13 e 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos;
artigos I e III da Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas; e
artigos 1º, 6º e 8º da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, em razão de
desaparecimentos forçados ocorridos em 16 de maio de 2006 e que permanecem não
elucidados pelas autoridades brasileiras, sem qualquer tipo de amparo aos familiares
ou responsabilização dos agentes públicos envolvidos.

C) Conclusões e Pedidos.

Por todo o exposto, destaca-se, respeitosamente, a urgência de providências sobre


os fatos narrados, em virtude dos efeitos do tempo decorrido. Inicialmente, ela é apresentada
devido à longa espera das mães e familiares das vítimas por uma resposta satisfatória do
Estado, exatos 15 anos após as mortes; ademais, deve-se considerar o impacto da
passagem do tempo sobre essas mães e familiares, muitas já em idade avançada.

Assim, diante dos fatos denunciados, as subscritoras requerem, às e aos responsáveis


pelos procedimentos especiais, bem como ao Alto Comissariado da Organização das Nações
Unidas, as imediatas providências listadas a seguir:
a) Que se questione o Estado brasileiro sobre os evento ocorridos, entre 12 e 21 de
maio de 2006, em cidades do estado de São Paulo, especialmente pela
caracterização de atuação violenta e arbitrária das forças policiais;

b) Que se questione o Estado brasileiro sobre quais foram os protocolos empregados


para prevenir o uso de força letal e a vitimização da população civil,
especialmente de pessoas negras, nos termos da Resolução 43.1 do Conselho de
Direitos Humanos das Nações Unidas;

c) Que seja recomendado ao Estado brasileiro que tome as providências para:


i) garantia de investigação independente, célere, transparente e imparcial,
conduzida por órgão autônomo, alheio às forças de segurança e instituições
públicas envolvidas na operação, nos termos da obrigação n. 16 prevista na
Sentença Nova Brasília da Honorável Corte Interamericana de Direitos
Humanos;
ii) formação de corpo pericial independente, que garanta a imparcialidade e
transparência para investigar os assassinatos, observando-se os termos do
Protocolo de Minnesota; e
iii) que os familiares das vítimas e todas as pessoas que sofreram violações
sejam devidamente reparadas;

d) Que reitere a necessidade de o Estado brasileiro criar um plano de redução da


violência e letalidade policial, conforme já recomendado pela Honorável Corte
Interamericana de Direitos Humanos e na Resolução 43.1, do Conselho de Direitos
Humanos das Nações Unidas;

e) Que emitam um posicionamento público a respeito da inviolabilidade do direito à


vida e à integridade física da população moradora de favelas e periferias.

Solicitamos, desde já, que todas as eventuais dúvidas e informações a respeito desta
manifestação sejam encaminhadas para: litigio@conectas.org; debi1977@gmail.com e
nucleo.dh@defensoria.sp.def.br.
Defensor(a) Pú blico(a)
Unidade de XXXXXXXXX

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