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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.

Matheus Nascimento Campos


NºUSP: 11248654

Ítalo Calvino: "Palomar" uma olhar atento à estrutura e às personagens

São Paulo
2021
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.

Matheus Nascimento Campos


NºUSP: 11248654

Ítalo Calvino: "Palomar" uma olhar atento à estrutura e às personagens

Trabalho entregue a disciplina


“Tópicos de Literatura e Cultura Italianas II:
Do Pré-Romantismo ao Século XX”. Ministrada pelo prof.
Aislan Camargo Maciera

São Paulo
2021
BREVE INTRODUÇÃO

Em 1923, numa viagem a Cuba, um casal de cientistas dá à luz aquele que se


tornará um dos maiores nomes da literatura mundial: Ítalo Calvino. Ainda criança, o
pequeno Calvino muda-se para Itália e vai com a Família viver em San Remo. Lá teve a
oportunidade de forma-se em Letras o que muito lhe será útil não apenas da obra ficcionista
de Calvino, mas também em sua obra ensaística. Forma-se doutor em meados dos anos 40
defendendo sua tese sobre Joseph Conrad, autor polonês que escreve sobretudo sobre
navegação e errância ao mar.
Publica seu primeiro romance "A trilha dos ninhos de aranha” em 1947, que tratará
de Pin, garoto italiano que vê-se entre os adultos da resistência dos patirgiani. Trabalha na
Editora Einaudi e no jornal comunista “L’Unità”. Até então membro do Partido Comunista,
Calvino oferece resistência a Mussolini frente ao regime fascista italiano. Sai do partido em
1956. Pouco depois junta-se ao OuLiPo, grupo de escritores que propunham um tratamento
experimental à literatura.
Esse tratamento experimental dado a literatura irá permear toda a obra ficcional de
Calvino a partir daí: pública “As cosmicômicas”, obra que escreve de forma cômica virando
às avessas as teorias sobre a origem do Universo, assim brincando com a linguagem
cientificista; já na década de 70 escreve “O castelo dos destinos cruzados” com uma
narrativa enigmática que baseia-se no baralho de tarô para desvendar sua um
quebra-cabeça intrigante; pública “Os amores difíceis”; “As cidades invisíveis”; “Se um
viajante numa noite de inverno” cada uma com sua especificidade experimental e literária.
Até que no ano de 1983, Calvino dá à luz a “Palomar”
O interesse do presente trabalho por resenhar essa obra dá-se pela forma, como
verá-se adiante, que ela representa seu próprio autor, sintetiza sua construção
filosófica-literária - expondo seu modo de criação - e encerra sua carreira ficcional já que
Calvino falece apenas dois anos após sua publicação.

PALOMAR E CALVINO

O livro talvez seja um dos que melhor representam a obra calvinista, mas para além
disso, “Palomar” trás um pouco da biografia do próprio autor, uma vez que o mesmo a
refere como “uma autobiografia em terceira pessoa”1. O livro é um conjunto de pequenos

1
FERRAZ, Bruna Fontes. Os Exercícios de Palomar para uma autobiografia total. Revista Literatura
em Debate. Online: 2010, v. 4, n. 1.
contos que têm como eixo central a observação, descrição e questionamento de diferentes
objetos do mundo. Sejam objetos materiais, sociais ou filosóficos.
O Sr. Palomar é o protagonista, é o olhar que traduzirá todo esse conjunto de objetos de
forma analítica-descritiva. Palomar também é o nome de um telescópio localizado na
Califórnia. Segundo Calvino:

“A primeira ideia era fazer dois personagens: o Sr. Palomar e o Sr. Mohole ...
Os dois personagens deveriam tender: Palomar para cima, o exterior, os
aspectos multiformes do universo; Mohole para baixo, o escuro, os abismos
interiores (...). Só no final percebi que não havia necessidade de Mohole
porque Palomar também era Mohole: a parte sombria e desencantada que
esse personagem geralmente bem-disposto carregava dentro de si, não
precisava ser exteriorizado em um personagem próprio (...). Relendo tudo,
percebo que a história de Palomar se resume em duas frases: “Um homem
que se propõe a alcançar a sabedoria passo a passo. Mas que ainda não
chegou lá".2

Ou seja, o senhor Palomar, ao mesmo tempo que olha para cima, para o mundo,
para o universo, para a grandeza da vida, também olha para dentro (ou para baixo),
refletindo sobre si sobre sua relação com o mundo e com os demais.
A relação do senhor Palomar com o Calvino dá-se sobretudo quando se pensa no
caráter analítico dos dois. Calvino foi um arquiteto de literatura: projetava a obra e
acreditava no poder preciso que a literatura tem. Ou seja, para o autor, era-se necessário
criar uma obra para além do campo narrativo, no qual apenas o conjunto de acontecimentos
narrativos viabilizasse a qualidade da mesma, tinha que se ir além: criar uma literatura que
fosse fundamentada numa prática experimental do fazer literário, comunicando a narrativa
com aspectos textuais, plásticos, lúdicos corroborados por uma experimentação linguística
e criativa.
Palomar é um colecionador de olhares. Calvino também o é. Palomar é alguém que
busca entender o mundo para ordená-lo, pois a desordem do mundo o deixa ansioso.
Calvino também busca essa ordem quando o leitor percebe que ele cria literatura com
estruturas bem fundamentadas. Mas qual a estrutura de "Palomar"?.

A ESTRUTURA DA OBRA

Palomar é uma obra de 27 contos divididos em três partes (1), cada parte se divide
em três partes (1.1), que por sua vez, se dividem em outras três partes (1.1.1), ou seja, é
uma obra ternária. São três grandes áreas temáticas, onde: 1 representa uma “experiência

2
SILVA, Dayse Mara Ramos da. Uma leitura de Palomar, de Italo Calvino. Dissertação de mestrado.
Universidade de São Paulo: São Paulo, 2008.
visual” e tem como objeto de análise e narração “formas da natureza”; e 2 traz um olhar
sobre objetos “antropológicos e culturais”; e 3 tem um caráter meditativo e especulativo
sobre o mundo e o eu.
Essas três áreas temáticas dentro da grande área 1, grande área 2 e grande área 3,
refletem-se como um gabarito nas outras partes seccionadas do índice, ou seja. No conto
1.2.3 há uma mistura dessas três áreas temáticas num único conto. No conto 3.3.3 há
sobretudo um caráter especulativo. No conto 1.1.3, tem-se uma ênfase nas “formas da
natureza” (1), mas com uma pitada especulativa (3).
Ou seja, trata-se de uma obra muito bem calculada e arquitetada pelo seu autor. Em
cada uma dessas áreas temáticas, há a descrição do Sr. Palomar sobre objetos que a
compõem: por exemplo, na grande área 1, Palomar falará sobre ondas, praias, banhistas
etc.; na grande área 2 falará sobre arte, cultura, capitalista; na grande área 3 falará sobre os
cosmos, o mundo, a sua relação com outras pessoas, etc. Ou seja, o Sr. Palomar está a
todo momento divagando e analisando situações e objetos de observação.
Os temas, ao mesmo tempo que parecem se afunilar, também parecem se expandir:
pode-se ler como um funil, mas também como uma pirâmide (ou um funil de cabeça para
baixo), pois os primeiros contos, tratam-se de objetos que vão da superfície, passando pelo
simbolismo, chegando no centro do homem (funil) e também parece que os temas se
expandem em grandezas: o objeto -> a linguagem -> o cosmo (pirâmide ou funil invertido),
isto é, ao mesmo tempo que a grandeza se diminui, ela se expande.
Os contos têm uma estrutura única, apesar de fazerem parte de todo esse grande
emaranhado pensado por Calvino. Não é necessário ler os contos imediatamente anteriores
para que se possa compreender o conto que se lê. Cada conto possui uma unidade de
sentido nele mesmo: início, meio e fim. Não estão seriados de maneira continuada, mas
lê-los espaçadamente, faria com que a arquitetura da obra ficasse prejudicada, a forma que
ela foi concebida, portanto, é a forma que deve ser lida. Mesmo com cada conto tendo
início, meio e fim, o conjunto da obra foi especialmente arquitetado conforme a obra
finalizada por Calvino. Somente a leitura conjunta desses contos (principalmente na ordem
estabelecida) faz aguçar a percepção do leitor sobre outras possibilidades no texto, por
exemplo, sobre quem é o Sr. Palomar.

QUEM É O SENHOR PALOMAR?

O Sr. Palomar é extremamente taciturno, fechado em si e pouco sociável. É curioso


pensar que, em meio a tantas divagações, pensamentos e conceituações, está lá alguém
em silêncio. Então para o leitor, o Sr. Palomar é um, para aqueles que convivem consigo,
ele é outro, ele é alguém em profundo silêncio.
Há durante a obra a aparição de outras personagens, mas nenhuma tem seu nome
revelado, Palomar é sempre a referência: a filha de Palomar, a esposa do Palomar e o
mesmo permanece em constante silêncio em relação aos demais.
Essa característica, de Palomar ser sempre bastante fechado em si, parece aludir a
um possível estado depressivo pelo qual a personagem passa. Palomar parece ser muito
inseguro, tem medo do que diz, algo que se soma com aquilo já descrito: é uma
personagem silenciosa, não porque é misterioso, mas porque tem medo de ser julgado
pelos demais, de parecer alguém de pouco conhecimento de mundo, ou seja, se for para
falar, tem que falar com certeza. Esse silêncio todo e toda essa introspecção revelam uma
personagem não somente observadora, mas socialmente insegura. “Numa época e num
país em que todos se esforçam por emitir seus juízos e opiniões, o senhor Palomar adquiriu
o hábito de morder a língua três vezes antes de fazer qualquer afirmação.” (p. 93).3
Ao passo que tem-se essa figura ostensivamente taciturna, reclusiva e
potencialmente depressiva, Palomar parece ao leitor ser um homem bastante ansioso,
também.
Na terceira e última parte da obra, Palomar se deterá sobre assuntos mais reflexivos
da vida e do mundo. A última instância de aprofundamento reflexivo da personagem dá-se
na observação, ou melhor, imaginação do mundo sem ela. Palomar refletirá sobre como
seria a vida sem sua presença.
O narrador em terceira pessoa, como muitas obras da literatura contemporânea,
parece sumir no texto, sua voz se confunde com a voz do próprio Palomar, porém, em
alguns momentos, essa sensação é quebrada por intromissões do narrador a respeito do
próprio Sr. Palomar.
Este capítulo (3.3.3 [especulação; especulação; especulação]), “Como aprender a
estar morto” é ainda mais interessante para observar essa personagem, pois, a partir do
momento que o leitor se depara com um mundo sem Palomar (conforme a imaginação do
mesmo), ele, o leitor, se depara com um o Palomar no mundo. É um jogo de contrários: vejo
o mundo sem o Palomar para entender como é o mundo com o Palomar, mas quem narra é
o próprio Palomar, logo é a ideia de mundo com Palomar expressa pelo mesmo, logo é o
parecer do Palomar versus o ser do Palomar (apontado pelo narrador que lembra ao leitor
que ele está ali, observando tudo.
Ali, lê-se “O mundo sem ele significará para ele o fim da ansiedade?...” (p.109),
então aqui, o leitor tem contato com um narrador que se indaga sobre a ansiedade do

3
CALVINO, Italo. Palomar. Companhia das Letras, 1994. 1º ed. [Palomar, 1983]. Tradução: Ivo
Barroso.
Palomar, que a morte do mesmo lhe representaria o fim da ansiedade. Ansiedade essa
talvez que seja simplesmente a busca constante por respostas de como o mundo funciona
ou uma tentativa de pôr o mundo em ordem. Teria esse “pôr o mundo em ordem” sentido
metarreferencial ao próprio Calvino que no livro “Palomar” tenta, de certa forma fazê-lo (já a
começar pela arquitetação da estrutura da obra, passando pelos temas abordados e como
são abordados…)

CONCLUSÃO E CONCLUSÕES

No fim da obra, o narrador exalta:


"Se o tempo deve acabar, pode-se descrevê-lo, instante por instante' pensa
Palomar, 'e cada instante, para se poder descrevê-lo, se dilata tanto que já
não se vê mais seu fim'. Decide que se porá a descrever cada instante de
sua vida, e enquanto não os houver descrito a todos não pensará mais em
estar morto. Neste momento morre." (p.112)

Aqui vê-se um Palomar ainda mais revolto em si, agora mais do que tudo, ele quer
registrar suas reflexões sobre todo instante e, para ele, essa é a maior representação da
vida e Palomar, que durante todo este conto vinha pensando em sua morte, agora pensa na
vida e em viver (instante por instante) e nesse momento, o Sr. Palomar morre. Aqui pode-se
apontar um efeito trágico, mas também cômico, pois a morte é inevitável, não existe vida
sem morte e não existe morte sem vida.
Ainda no último conto é possível ler: “Talvez estar morto seja passar no oceano das
ondas que permanecem ondas para sempre, logo é inútil esperar que o mar se acalme.” (p.
109). Algo curioso é que aqui, a obra se referencia no o oceano e nas ondas, algo que se
comunica com o primeiro conto da obra “Leitura de uma onda” (1.1.1). Ou seja, depois de
toda essa epifania, o livro faz referência ao seu início, mostrando que as indagações do
Palomar sempre surgem novamente, são cíclicas. Sempre que se termina, elas se
reiniciam.

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