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REINHARD BENDIX
Tradução
Mary Amazonas Leite de Barros
|edusP
*» lote W3ri i Sccs. kc.
ip: Szudics cf otir ChaRzixt SOOSL. O^èer
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Bendix, Reinhard
Construção Nacional e Cidadania / Reinhard Bendix ; tradu-
ção Mary Amazonas Leite de Barros. - São Paulo: Editora da Uni-
versidade de São Paulo, 1996. — (Clássicos ; 5)
ISBN: 85-314-0331-6
1. Cidadania 2. Estado Nacional 3. Mudança Social
4. Sociologia Histórica I. Título. II. Série.
96-0119 CDD-320.1
índices para catálogo sistemático:
1. Estado nacional : Construção : Ciência política 320.1
Direitos reservados à
Edusp — Editora da Universidade de São Paulo
Av. Prof. Luciano Gualberto, Travessa J, 374
6a andar — Ed. da Antiga Reitoria — Cidade Universitária
05508-900 - São Paulo - SP - Brasil Fax (011) 211-6988
Tel.(011)813-8837 r. 216
Printed in Brazil 1996
Foi feito o depósito legal
3
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REINHARD BENDIX
levaram ao reconhecimento final dos direitos de cidadania de todos os adultos,
incluindo aqueles em posições de dependência económica.
A análise seguinte começa com a crise no "governo doméstico" analisada por
Tocqueville. Emerge dessa crise um novo padrão de relações de classe, substituindo
a antiga relação tradicional por uma relação de autoridade individualista. Novas
formas de agitação emergem desse novo padrão de relações de classe, envolvendo
a ideia de direitos iguais para todos os cidadãos. Faz-se uma tentativa de reinterpretar
a radicalização das classes mais baixas no decorrer da industrialização inglesa.
Contra esse pano de fundo, o processo de construção da nação é examinado em
termos de uma análise comparativa dos direitos da cidadania. Nos Estados-nações
emergentes da Europa ocidental, o problema político crítico era se, e em que
extensão, o protesto social se ajustaria a toda a cidadania das classes mais baixas.
Relações de Classe numa Era de Contrato
Relações de autoridade individualistas
A reciprocidade das relações sociais está dentro de padrões porque os homens
se orientam pela expectativa dos outros, e toda ação do "outro" limita o âmbito das
respostas possíveis. Autoridade significa que os poucos no comando têm uma
ampla escolha de opções. Inversamente, subordinação significa que os muitos que
cumprem as ordens têm seu âmbito de escolha reduzido. Mas as opções dos poucos
são limitadas, mesmo quando o poder no comando é opressivo. Um desses limites
é que, mesmo a mais drástica subordinação, deixa algumas escolhas àqueles que
obedecem. A não-cooperação tácita pode ser variada, sutil, e mais importante do
que o protesto manifesto. Os subordinados fazem julgamentos, conduzindo a graus
de cooperação ou não-cooperação que são variáveis importantes em cada padrão
de autoridade estabelecido.
A ideologia tradicional que defende os privilégios da aristocracia em nome
de suas responsabilidades deve ser vista por esse prisma. Tocqueville enfatiza os
aspectos positivos das relações sociais que correspondem à sua visão do mundo.
Por mais voluntariosos e evasivos que sejam os senhores individualmente, é
razoável presumir que, por algum tempo, o senso e a prática da responsabilidade
aristocrática por seus inferiores eram relativamente elevados, assim como eram
genuínas a lealdade e obediência dos subordinados. De fato, sem alguma respon-
sabilidade de um lado e alguma lealdade de outro, não teria sentido dizer que as
relações de autoridade tradicionais foram rompidas. É melhor considerar o padrão
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TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVI11
sem prejudicar seu próprio interesse e que o trabalhador não tem outra salvaguarda
senão o empenho e nenhuma garantia contra a fome.
A terceira abordagem, especificamente identificada com a obra de Malthus,
relaciona essa teoria de mercado do trabalho com a teoria da população. Em vez
de afirmar a harmonia de interesse entre ricos e pobres, Malthus reconhece a
inevitabilidade de desgraças periódicas e agudas. Ele atribui esse fenómeno à
tendência da população a aumentar mais rapidamente do que os meios de subsis-
tência, uma lei da natureza que as classes superiores não têm poder para alterar.
Malthus afirma que a pobreza é inevitável e um estímulo necessário ao trabalho,
que a caridade e a ajuda ao pobre apenas aumentam a indolência e a imprevidência,
que as classes superiores não são e não podem ser responsáveis pelo destino do
pobre. Mas, em termos do presente contexto, ele também contribui com uma
importante ideia. Se é uma lei da natureza que os pobres aumentem seu número
além do suprimento de alimento disponível, é responsabilidade das classes mais
altas entender essa lei e instruir as classes inferiores de acordo com ela. A
imprevidência pode ser uma tendência natural, mas também resulta da ignorância
e da falta de restrição moral, e essas falhas podem ser combatidas pela educação.
A educação, portanto, é a tónica da nova ideologia empresarial, uma vez que
os empregadores já não possuem a abrangente autoridade pessoal do senhor
aristocrático. Tem-se muita confiança em forças impessoais como a necessidade
económica e a pressão da população sobre os recursos — muito mais confiança do
que ocorria quando o senhor exercia um domínio inteiramente pessoal sobre sua
propriedade. Mesmo assim, os empregadores devem lidar com a administração de
homens, e no início do século XIX ouviam-se queixas em relação à crescente
distância pessoal que tornava tal administração difícil, especialmente na velha base
paternalista. Com a divulgação das ideias igualitárias declina a ênfase no nível
social; o abismo entre as classes se alarga, como observa Tocqueville, e a influência
pessoal dos empregadores diminui. Conseqúentemente, a confiança é depositada
não apenas nas forças económicas impessoais, mas também na influência impes-
soal das ideias e da educação. É nesse contexto que os propagandistas autónomos
como Samuel Smiles formulam a nova ideologia empresarial, com sua ênfase na
"imensa quantidade de influência" que os empregadores possuem, se se aproxima-
rem de seus trabalhadores "com simpatia e confiança" e "ajudarem[-nos] ativa-
mente na formação de hábitos prudentes"3. Daí em diante, as ideologias
empresariais consistem em combinações temáticas dos três elementos seguintes:
1. o elemento paternalista, modelado segundo a propriedade tradicional, na qual a
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RE1NHARD BENDIX
dominação pessoal do senhor sobre sua família e serviçais é a tónica; 2. o elemento
impessoal, modelado segundo a concepção de mercado dos economistas clássicos,
em que a pressão anónima da oferta e da procura, da luta pela sobrevivência, força
os trabalhadores a fazer o que seus empregadores mandam, e J. o elemento
educacional, modelado segundo a sala de aula, o laboratório psicológico, ou a
sessão de terapia, nos quais a instrução, os incentivos e as penalidades, ou as
persuasões motivacionais indiretas, são usados para disciplinar os trabalhadores e
impeli-los a intensificar seus esforços.
No decorrer da industrialização na Europa ocidental, podemos postular uma
sequência que conduz primeiramente a um declínio do paternalismo e ao surgimen-
to do elemento impessoal e, subsequentemente, a uma confiança declinante nas
forças de mercado e a uma crescente confiança no modelo educacional. A sequên-
cia aplica-se mais intimamente ao desenvolvimento inglês e americano, embora
mesmo nesse caso seja uma aproximação grosseira. Como o paternalismo sempre
inclui um elemento educacional, a confiança nas forças do mercado foi muitas
vezes obscurecida numa maneira paternalista, e a dimensão educacional é compa-
tível com uma abordagem impessoal e também pessoal. Os antecedentes culturais
diferentes, bem como a estrutura organizacional inconstante dos empreendimentos
económicos, têm muito que ver com as diversas ênfases entre as ideologias
empresariais, tais como as dos Estados Unidos, Alemanha e Japão4.
A dimensão política dessas ideologias é, contudo, de especial importância.
Num Estado-nação emergente que destruiu a antiga fragmentação da autoridade
pública, as agências do governo nacional permitem aos empregadores de mão-de-
obra proteção legal para seus direitos de propriedade. Esses direitos fazem parte
de uma ampla tendência igualitária, que também se expressa no elogio a hábitos
frugais e trabalho árduo, qualidades que habilitam todos os homens a adquirirem
propriedade e status. Ao nível impessoal de apelos ideológicos, essa abordagem
produz certos paradoxos típicos, de importância política.
As interpretações individualistas da relação de autoridade não permanecem
limitadas à empresa. A ideia de um mercado impessoal, que induzirá os trabalha-
dores a oferecer seus serviços e trabalhar diligentemente, demanda políticas que
facilitem a operação desse mercado. Além disso, o recurso a apelos ideológicos e
a métodos educacionais sugere que os incentivos impessoais são insuficientes. Os
empresários também procuram inculcar os hábitos e motivos desejados. Mas,
4. Op. cit., cap. 5; Heinz Hartmann, Authority and Organization m Gcrman Management, Princeton,
University Press, 1959, passim; e James G. Abegglen, TheJapaneseFactory, Glencoe, The Free Press,
1958.
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TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII
sados e apoiados por seus superiores; quando foram reunidos em grande número para trabalhar
socialmente sob o mesmo teto; quando as estradas de ferro possibilitaram-lhes mudar de um
lugar para outro, e mudar seus patrões e empregadores tão facilmente como de casacos; quando
foram encorajados a buscar participação no governo, mediante o direito de voto eleitoral r '.
6. John Stuart Mill. Principies ofPoliiicalEconomy. II. pp. 322-323. A afirmação de Mill é aqui cilada
como uma formulação excepcionalmente dará do que era aparentemente um tópico comum de
conversação. Ver o levantamento esclarecedor da crescente consciência das relações de classe de Asa
Briggs, "The Languageof'Class" inEarty Nineleenth Centniy England". em AsaBriggse JohnSaville
(eds.), Essays in Labour History in memory ofG. D. H. Cole, London. Macmillan, 1960, pp. 43-73.
7. Esta é a definição de Karl Mannheim da "democratização fundamental", que é compatível com
diferentes formas de governo, não só com a "democracia". A definição é útil. todavia, porque realça a
emergência de uma comunidade política nacional, na qual todos os adultos, independentemente de
classe, são cidadãos e, portanto, participantes. Ver Karl Mannheim- Man and Socicty in an Age of
Rcconstruction, New York, Hareourt, Brace, 1941, p. 44.
8. Ver Karl Marx, Capital, New York, Modern Library, 1936, pp. 466-478, a respeito de seu levantamento
e interpretação dessas rebeliões.
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RE1NHARD BENDIX
Distinguindo na prática a destruição saqueadora de propriedade daquela "justifi-
cada", pode-se considerar que os trabalhadores se engajaram numa "negociação
coletiva pelo distúrbio" numa época em que as reuniões eram proibidas por leic).
Essa prova é compatível com a ideia de que os operários que se engajam na
violência desejam ao mesmo tempo demonstrar sua respeitabilidade. Estão face a
face com uma iniquidade legal manifesta; são proibidos de se reunirem para a
negociação coletiva pacífica, enquanto as reuniões dos empregadores são toleradas
ou até encorajadas. Portanto, a "negociação coletiva pelo distúrbio" acompanha
facilmente a exigência de direitos civis que foram negados, apesar da aceitação da
igualdade formal perante a lei1".
Embora muito desarticulado a princípio, o apelo contra as iniqiiidades legais
envolve uma nova dimensão do distúrbio social. Para captar a relativa novidade
dessa experiência, temos de confiar na prova circunstancial do período. No fim do
século XVIII e através do século XVIII, a posição cívica do homem comum
tornou-se um tema de debate nacional na Europa. Durante décadas, os debates
sobre a educação básica e o direito ao voto questionam se uni aumento na
alfabetização ou nos direitos de voto entre o povo funcionaria como um antídoto
à propaganda revolucionária ou como um perigoso incentivo à insubordinação11.
É difícil saber quais sentimentos esses debates suscitam entre as próprias pessoas.
Confrontadas com a iniquidade de sua posição legal e um debate público acima de
sua confiança cívica, há naturalmente muita vacilação. O povo parece alternar entre
a insistência nos direitos antigos e as violentas revoltas contra as causas mais
9. A frase foi cunhada por E. J. Hobsbawm, "The Machine Breakers", Past and Prescnt, l, 1952, pp.
57-70. A prova referente à distinção entre saque e tais agitações, como os famosos distúrbios dos
ludditas, é analisada em Frank O. Darvall, Popular Disturbances and Public Ordcr inRegencyEngland,
London, Oxford University Press, 1934, pp. 314-315 e passim.
10. Observe-se a esse respeito a ênfase de Marx no modo pelo qual as reuniões de trabalhadores e
empregadores estimulam um ao outro e a referência no texto abaixo à consciência dessa iniquidade
entre os magistrados ingleses. Um estudo das disputas industriais e agrárias no Japão sugere que quase
o mesmo mecanismo opera num cenário cultural muito diferente. Ver o comentário de que "um número
crescente de fazendeiros arrendatários convenceram-se da necessidade da ação política, quando
souberam com que frequência os veredictos dos tribunais, que se baseavam nas leis vigentes, foram
contra eles", em George O. Totten, "Labor and Agrarian Disputes in Japan Following World War I",
Economic Development and Cultural Changc, IX, out. 1960, pt. II, p. 194.
11. Questões semelhantes foram levantadas com respeito à conscrição universal, uma vez que armas nas
mãos do povo comum eram consideradas uma ameaça revolucionária. Um estudo de caso da questão
do alistamento e seu significado para o desenvolvimento das relações de classe na Alemanha é o de
Gerhard Ritter, Staatskunst und Kricgshandwerk, Munich, R. Oldenbourg, 1954, pp. 60-158 e passim.
Ver também a referida discussão em Katherine Chorley, Armies and thc Art of Rcvolution, London,
Faber & Faber, 1943, pp. 87-107, 160-183. Os referidos debates sobre a alfabetização são analisados
em detalhe com referência à experiência inglesa, em M. G. Jones, Thc Charity School Movcment,
Cambridge, Cambridge University Press, 1938, passim.
100
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII
[...] há quase sempre uma época em que as mentes dos homens flutuam entre a noção
aristocrática de sujeição e a noção democrática de obediência. A obediência perde então sua
importância moral aos olhos daquele que obedece; ele não mais a considera como uma espécie
de obrigação divina, e ainda não a vê sob seus aspectos puramente humanos; ela não tem para
ele nenhum caráter de santidade ou justiça, e ele se submete a ela como a uma condição
degradante mas proveitosa1-.
Um homem que nasceu num mundo que já tem donos, se não puder obter subsistência de
seus pais, em relação aos quais ele tem uma justa exigência, e se a sociedade não quer o seu
trabalho, não tem direito de reclamar a mínima parcela de alimento, e, de fato, não tem direito
de estar onde está. No vigoroso festim da Natureza, não há abrigo desocupado para ele. Ela lhe
diz para ir embora, e executará rapidamente suas próprias ordens13.
101
REINHARD BEND1X
razoável esperar uma crescente sensibilidade entre o povo, embora inarticulada,
em resposta a esse questionamento público de sua respeitabilidade.
Os observadores contemporâneos frequentemente comentavam a reação po-
pular. Esses observadores estão com frequência distantes da vida da classe traba-
lhadora, e são partidários no debate concernente às "classes inferiores", e divididos
entre eles mesmos. Seus preconceitos são muitos, mas o sectarismo pode não
apenas sensibilizar como também distorcer o entendimento. Na Inglaterra, obser-
vadores tão diferentes como Thomas Carlyle, William Cobbett, Benjamin Disraeli
e Harriett Martineau comentam o sentimento de injustiça entre os trabalhadores,
sua perda de auto-respeito, o abuso pessoal que os dirigentes da sociedade cumulam
sobre eles, o movimento cartista como a expressão de ultraje da gente do povo à
negação de seus direitos civis, e o sentimento dos trabalhadores de serem uma
"classe proscrita" em seu próprio país'4. Tal desafeição cívica do povo era encarada
com grave preocupação por eminentes oradores em muitas sociedades europeias.
Em retrospecto, essa preocupação parece justificada no sentido de que a posição
do "povo" como cidadãos estava efetivamente em questão15.
A negação implícita ou explícita da respeitabilidade cívica do povo é contra-
riada com certa naturalidade por uma insistência nos direitos do povo que não deve
ser anulada. Essa insistência fundamenta-se primeiro em um sentimento de justa
indignação diante da ideia de que o trabalho, que é "a pedra angular sobre a qual
a sociedade civilizada é construída", é "oferecido menos [...] do que suportará a
família de um homem ordeiro e sóbrio em decência e conforto"16. Essa concepção
14. Ver o capítulo "Rights and Mights", em Thomas Carlyle, Chartism, Chicago, Belford, Clarke, 1890,
pp. 30-39; G. D. H. e Margaret Cole (eds.), The Opinions of William Cobbett, London, Cobbett, 1944,
pp. 86-87,123-124,207, epassim; Hansard's Parliamentary Debates, vol. XLIX, 1839, cols. 246-247;
e R. K. Webb, ThcBritish WorkingClassRcader, London, Allen& Unwin, 1955, p. 96, sobre as fontes
dessas declarações. Também é relevante aqui o famoso símile das "duas nações entre as quais não há
nenhuma comunicação nem simpatia; que são tão ignorantes dos hábitos, pensamentos e sentimentos
uma da outra como se morassem em regiões diferentes, ou como se fossem habitantes de planetas
diferentes, formados por uma raça diferente, alimentados por uma comida diferente, ordenados de
maneiras diferentes, e não fossem governados pelas mesmas leis". Esta passagem ocorre no romance
de Benjamin Disraeli, Sybil, Baltimore, Penguin Books, 1954, p. 73.
15. Para uma visão geral dos esforços propagandísticos para contrabalançar essa "desafeição cívica" na
Inglaterra, ver R. K. Webb, op. cit., passim, e Reinhard Bendix, Work andAuthority in Industry, pp.
60-73.
16. A frase citada é de um folheto de Manchester de 1818, reeditado em J. L. e Barbara Hammond, The
TownLabourer, London, Longmans, Green, 1925, pp. 306-308. No paradigma de Tocqueville, pode-se
dizer que essa ideia fica a meio caminho entre a crença nos "antigos direitos" que foram erroneamente
abolidos e a pretensão de que os próprios servos devem ser os senhores. Notar também a análise de
Von Stein, que afirma que o antagonismo entre os trabalhadores e os empregadores "origina-se na
crença nos direitos e no valor dos trabalhadores individuais, por um lado, e no conhecimento de que,
ais condições presentes da produção mecanizada, os salários do operário não serão proporcionais a
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TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO X\'III
aias pretensões como indivíduo". Ver Lorenz von Stein, "Der Begriff der Arbeit und die Prinzipien
áes Aibeitslotines in ihrem Verhàltnisse zum Sozialismus und Communismus", Zeitschrift fur dle
facsmicSzzxs»issaucfiaft. III. 1846. p. 263.
1~. Sobre «ira exposição detalhada dessas concepções de direitos naturais no pensamento socialista e de
sma •ampaubdidadc a» a lei de propriedade, ver Anton Menger, The Right Io lhe Wholc Producc
ofLebonr, Loodon. MacauUa*. 1899. passim.
18. Possjvelmenie. o uso por Man da teoria do valor do trabalho teve seu grande impacto moral na base
dessas concepções de "direitos •atarais*, como é analisado por Menger.
19. Engels considerava os dois fcnôincBos caisalmente ligados, como em seu comentário a Marx
de que o "aburguesamento do proletariado inglês" era em certo sentido "muito natural numa
nação que explorava o inundo todo". Ver s*a cana a Marx. de 7 de outubro de 1858, em Karl
Marx e Friedricn Engels, Ausgewãhlic Briefc, Bcrlin, Dietz Verlag, 1953. pp. 131-132. Todavia,
sua interpretação ignora as heranças históricas q»e incitam «ma "reciprocidade nacional de
direitos e obrigações", apesar da ameaça das ideias revolucionárias e dos esforços para uma
mudança económica rápida. A coincidência entre a posição preferida pela Inglaterra e seus
legados favoráveis à efetivação dessa "incorporação" política do "quito Estado" foi discutida
até agora apenas em trechos e partes de obras. Ver ]. L Hammond. The Industrial Revolution
and Discontent", The Economic History Rcview, II, 1930, pp. 227-228; Henri de Man, The
Psychology of Socialism, New York, Henry Holt, 1927, pp. 39-41, com respeito ao papel do
auto-respeito ofendido no protesto radical inglês; e Selig Perlman, A Theory of lhe Labor
Movcment, New York, Augustus Kelley, 1949, p. 291, que enfatiza o significado especial da
questão do direito de voto.
103
RE1NHARD BEND1X
estabelecida e com os apelos religiosos, que com muita frequência são apologias
mal disfarçadas em favor da ordem estabelecida. Contudo, o ateísmo doutrinário
é raro, e os líderes da classe trabalhadora inglesa muitas vezes fundamentam suas
demandas numa linguagem bíblica ou quase bíblica20. Portanto, a proeminência da
Inglaterra como uma potência mundial e uma prática religiosa comum podem ter
facilitado a incorporação cívica dos trabalhadores, mesmo que o novo equilíbrio
nacional de direitos e deveres não se realizasse facilmente.
Um exemplo extraído do campo das relações industriais ilustra as sutilezas
dessa transição inglesa para uma comunidade política moderna. À primeira vista,
a proibição legal dos sindicatos no início do século XIX parece uma brutal
repressão. Dizia-se que as "reuniões de trabalhadores" reduziam os direitos legais
formais do empregador assim como os do trabalhador. Contudo, em seu exame do
sindicalismo primitivo, os Webbs concluem que a organização ineficiente da
polícia, a ausência de instauração de processo público efetivo e a inércia dos
empregadores eram responsáveis pela ampla ocorrência de reuniões ilegais, apesar
de sua inequívoca proibição21.
Mais recentemente, uma publicação de documentos sobre os antigos sindi-
catos revelou que nem os empregadores nem os funcionários do governo recorriam
a todos os remédios legais que lhes eram franqueados. Aparentemente, os empre-
gadores desejavam que o governo instituísse medidas judiciais contra reuniões
ilegais. Um parecer do promotor-geral, enviado à Secretaria de Negócios Internos,
em 1804, é de especial interesse a esse respeito. O parecer apresenta detalhes do
grande mal das reuniões entre os trabalhadores por todo o país, reuniões conside-
radas claramente ilegais e passíveis de processo. Mas se o governo tivesse de
20. Indícios da relação entre o renascimento religioso e o protesto da classe trabalhadora são discutidos
em Work and Authority in Industry, pp. 60-73, de minha autoria, mas a questão é controvertida. Em
sua obra Social Bandits and Primitive Rebels, pp. 126-149, Hobsbawm questiona que os movimentos
religiosos entre os operários diminuíram seu radicalismo. Em Churches andthe Working Classes in
Victorian England, London, Routledge & Kegan Paul, 1963, K. S. Inglis reúne grande quantidade de
provas que sugerem que os operários ingleses eram marcadamente indiferentes em relação às obser-
vâncias religiosas durante todo o século XIX. Mas mesmo Inglis admite (idem, pp. 329-332) que o
ateísmo era raro entre os operários ingleses (embora pronunciado entre seus colegas do continente
europeu), e que um grande número de crianças da classe operária frequentavam as escolas dominicais.
Tal admissão pode muito bem ser perigosa, contudo, uma vez que a questão não é se os operários
ingleses eram realmente crentes, mas se continuavam a usar ideias religiosas em sua "busca da
respeitabilidade". As ideias religiosas não são necessariamente menos importantes quando se associam
às preocupações seculares. Ver a análise de secularidade e religião no contexto americano de S. M.
Lipset, The First New Nation, New York, Basic Books, 1963, pp. 151-159, e da exacerbação das
relações de classe na ausência de uma linguagem religiosa viável de Guenther Roth, The Social
Dcmocrats in Imperial Germany, New York, The Bedminster Press, 1963,passim.
21. Sidney e Beatrice Webb, The History ofTrade Unionism, New York, Longmans, Green & Co., 1926,
p. 74.
104
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII
Ele conduzirá à opinião de que não cabe aos patrões do sindicato que se sentem
prejudicados instaurar processo, mas sim ao governo. [...] Efetivamente, é preciso admitir que
a ofensa aumentou num grau e numa extensão tais que se tornou muito desencorajador a todos
os indivíduos instaurar um processo, pois as pessoas que ele processaria seriam sustentadas em
seu julgamento e durante sua prisão pelas contribuições de seus confederados, e seu próprio
negócio provavelmente seria abandonado por seus funcionários. Mas então ê claro que é devido
à inércia e à timidez dos patrões que a conspiração chegou a esse ponto, e é de se recear que
essa inércia, com a interferência do governo, em vez de diminuir, aumentará. [...] Uma vez que
julgaram que a punição de tais ofensas cabia ao governo, eles também pensarão caber ao governo
o ónus da prova, e não a eles, de modo que a futura detecção e instauração de processo contra
essas ofensas provavelmente serão mais difíceis. Ademais, [...] a imparcialidade do governo
ficaria numa situação complicada se, depois de instaurar um processo, por instância dos patrões,
contra a conspiração dos artífices, os artífices recorressem a eles para processar os mesmos
patrões por uma conspiração contra seus homens22.
Esta opinião é instrutiva, ainda que seu discernimento não possa ser consi-
derado representativo.
Seja qual for sua parcialidade em relação aos empregadores, os magistrados
são responsáveis pela manutenção da lei e da ordem. Essa tarefa é complicada
frequentemente pela relutância dos empregadores em recorrer à lei de proibição
das reuniões, por suas repetidas tentativas de induzir o governo a fazê-lo por eles,
por sua tendência a serem coniventes com essas reuniões quando lhes é convenien-
te, e finalmente por sua tendência a rejeitar toda responsabilidade pelas consequên-
cias de suas próprias ações, na crença de que no final o governo manterá a lei e a
ordem e protegerá seus interesses. Não é de surpreender que os magistrados sejam
muitas vezes muito críticos em relação aos empregadores, sustentando que estes
agem com pouco critério, que eles podem perfeitamente arcar com o pagamento
de salários mais elevados, e que as queixas dos trabalhadores são justificadas,
mesmo que suas reuniões sejam ilegais. Algumas vezes, os magistrados até agem
como mediadores informais em disputas entre empregadores e seus operários, no
interesse da manutenção da paz23. Portanto, nem a parcialidade dos magistrados,
nem o princípio da política de não-interferência, nem o evidente oportunismo dos
22. A. Aspinall (ed.), The Early English Tradc Unions, Documents from thc Home Office Papcrs in thc
Public Rccord Office, London, Batchworth Press, 1949, pp. 90-92.
23. Para exemplos desses vários aspectos, op. cit., pp. 116, 126,168-169, 192-103,216-219,229, 234-235?
237-238, 242, 259-260, 272, 283, e assim por diante.
705
REINHARD BEND1X
empregadores é equivalente à repressão, embora, na prática, pouco se faça para
atender às queixas dos trabalhadores, exceto em termos calculados para prejudicar
sua posição de membros respeitáveis da comunidade.
Nesse período de transição, Tocqueville vê uma importante ameaça revolu-
cionária. O patrão continua a esperar servilismo, mas rejeita a responsabilidade
sobre seus serviçais, enquanto estes exigem direitos iguais e se tornam intratáveis.
No nível societário, o caso inglês se aproxima desse modelo. Muitos empreende-
dores ingleses antigos certamente rejeitam qualquer responsabilidade sobre seus
empregados, embora esperem que eles obedeçam; recusam qualquer interferência
governamental na administração, embora procurem transferir ao governo a respon-
sabilidade por todas as. consequências públicas adversas de seus próprios atos24.
Funcionários do governo apoiavam os empresários em muitos casos, porque
estavam profundamente preocupados com a agitação e a truculência. Dito isto,
várias reservas devem ser acrescentadas. Há alguns fabricantes que reconhecem as
obrigações tradicionais da classe dirigente. Entre alguns magistrados, o princípio
de não-interferência pelo governo é apoiado por uma atitude desprendida e crítica,
mesmo nas primeiras décadas do século XIX. Finalmente, a demanda de igualdade
da classe trabalhadora emergente funde-se num molde mais ou menos conservador
no sentido de que na balança é acrescentada uma busca de aceitação pública de
cidadania igualitária. Em outras palavras, a sociedade inglesa provou ser capaz de
apaziguar a classe baixa como uma participante igual na comunidade política
nacional, embora mesmo na Inglaterra esse desenvolvimento tenha envolvido uma
luta prolongada, e todas as implicações de igualdade como as entendemos atual-
mente só tenham evoluído gradualmente.
Implicações teóricas
A discussão precedente limita-se aos desenvolvimentos na Inglaterra. A
industrialização pode ser iniciada apenas uma vez; depois disso, suas técnicas são
tomadas de empréstimo; nenhum outro país que desde então embarcou no processo
pode começar de onde a Inglaterra começou no século XVIII. A Inglaterra é a
exceção mais do que o modelo. Por algum tempo, a Inglaterra possuía quase o
monopólio nas mais avançadas técnicas da produção industrial, e outros países
24. Com base nisso, mesmo porta-vozes fiéis à ideologia do laissez-faire, empenhavam-se ativamente na
extensão dos controles governamentais. Sobre detalhes a esse respeito, ver Marion Bowley, Nassau
Sénior and Classical Economics, London, Allen & Unwin, 1937, pp. 237-281; S. E. Finer, The Life
and Times of Edwin Chadwick, London, Methuen, 1952, passim; J. B. Brebner, "Laissez-faire and State
Intervention in 19thCentury Britain", Journal ofEconomicHistory, VIII, Supplement 1948, pp. 59-73.
706
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII
25. Ver a seguinte declaração, extraída de um discurso do líder cartista Hartwell, proferido em 1837:
"Parece-me uma anomalia que, num país em que as artes e as ciências alcançaram tal nível, especial-
mente pela diligência, habilidade e esforços do artesão... apenas um adulto masculino em sete deva ter
um voto, que em tal país as classes trabalhadoras devam ser excluídas do seio da vida política". Citado
em M. Beer, A History ofBritish Socialism, London, Allen & Unwin, 1948, II, pp. 25-26. É instrutivo
contrastar essa declaração com a do líder nacionalista italiano Mazzini: "Sem País, não se tem nome,
símbolo, voz, nem direitos. [...] Não se iludam com a esperança de emancipação das condições sociais
injustas se não conquistarem primeiro um País para vocês. [...] Não se deixem levar pela ideia de
melhorar suas condições materiais sem primeiro resolver a questão nacional. [...] Hoje [...] vocês não
107
RE1NHARD BENDIX
Inglaterra serviu aos teóricos sociais durante um século como modelo que os outros
países presumivelmente seguiam.
A abordagem aqui proposta não é uma mera inversão da teoria marxista. Mane
considera os movimentos sociais do século XIX como protestos contra privações
psíquicas e materiais que se acumularam como resultado do processo capitalista;
ele vê nas massas um anseio fundamental por satisfações criativas numa boa
sociedade. Interpreto esses movimentos de protesto como políticos, e defino seu
caráter em termos do contraste entre uma comunidade política pré-moderna e uma
comunidade política moderna. Quando se assume esta opinião, o século XVIII
aparece como um importante hiato na história da Europa ocidental. Antes dessa
época, as massas populares eram inteiramente excluídas do exercício dos direitos
públicos; desde então, elas se tornaram cidadãos, e nesse sentido participantes na
comunidade política. A "era da revolução democrática" estende-se dessa época ao
presente. Durante esse período, algumas sociedades universalizaram pacificamente
a cidadania, enquanto outras foram incapazes de fazê-lo e, consequentemente,
sofreram vários tipos de levantes revolucionários. Assim concebido, o problema
das classes inferiores num Estado-nação moderno consiste nos processos políticos
através dos quais, ao nível da comunidade nacional, a reciprocidade de direitos e
deveres é gradualmente estendida e redefinida. É bem verdade que esse processo
foi afetado a todo momento por forças que emanavam da estrutura da sociedade.
Mas mantenho que a distribuição e redistribuição de direitos e deveres não são
meros subprodutos de tais forças, que elas são vitalmente afetadas pela posição
internacional do país, pelas concepções sobre o que a distribuição adequada na
comunidade nacional deveria ser, e pelo "toma-lá-dá-cá" na luta política26.
Minha tese está de acordo com a ênfase dada por Tocqueville à reciprocidade
dê direitos e obrigações como uma marca da comunidade política. Na Europa, a
crescente consciência da classe trabalhadora expressa acima de tudo uma experiên-
cia de alienação política, isto é, um senso de não ter uma posição reconhecida na
são a classe trabalhadora da Itália; são apenas frações dessa classe. [...] Sua emancipação não pode ter
nenhum começo prático até que o Governo Nacional [seja fundado]". Ver Joseph Mazzini, The Dutics
ofMan and Otlicr Essays, New York, E. P. Dutton, 1912, pp. 53-54.
26. Esta abordagem difere do marxismo, que trata a política e o governo como variáveis dependentes da
mudança da organização de produção, sem enfrentar a relativa autonomia das ações governamentais
nem a existência contínua das comunidades políticas nacionais. Ela também difere da abordagem
sociológica da política e das instituições formais, que constrói a primeira como meros subprodutos de
interações entre indivíduos e as segundas como uma "carapaça superficial", dentro da qual essas
interações fornecem a chave para uma compreensão realista da vida social. Ver uma análise crítica
desse reducionismo em Wolin, op. cit., caps. 9 e 10. Uma abordagem alternativa que enfatiza a
autonomia parcial, bem como a interdependência do governo e da sociedade está contida na obra de
Max Weber, como é discutida acima, nas pp. 47-50.
108
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII
comunidade cívica, ou de não ter uma comunidade cívica na qual participar. Pelo
fato de a participação política popular ter-se tornado possível pela primeira vez na
história europeia, o protesto da classe baixa contra a ordem social confia (pelo
menos no início) em códigos de comportamento prevalecentes e, portanto, reflete
uma mentalidade conservadora, mesmo onde conduz à violência contra pessoas e
propriedade27. Mais do que comprometer-se com uma busca de uma nova ordem
social, as massas recentemente politizadas protestam contra sua cidadania de
segunda classe, exigindo o direito de participação em termos de igualdade na
comunidade política do Estado-nação21*. Se esta é uma avaliação correta dos
mal-articulados impulsos e anseios característicos de muitas agitações populares
entre as classes baixas na Europa ocidental, temos então uma chave para o declínio
do socialismo. Pois a posição cívica dessas classes não é mais uma questão
preeminente em sociedades nas quais a igualdade de cidadania foi institucionali-
zada com êxito.
A seção seguinte deste capítulo analisa essa institucionalização numa base
comparativa.
Elementos de cidadania
27. Ver nessa conexão a expressão de aborrecimento de Engels em relação à arraigada "respeitabilidade"
dos trabalhadores ingleses e seus líderes, em sua carta a Sorge, de 7 de dezembro de 1889, em
Ausgewáhltc Briefe, p. 495.
28. A perspectiva apresentada acima foi desenvolvida por alguns de meus antigos alunos. O estudo de
Guenther Roth do "Isolamento da Classe Trabalhadora e a Integração Nacional" na Alemanha imperial
foi citado anteriormente. Ver também GastonRimlinger, "The Legitímationof Protest: A Comparative
Study in Labor History", Comparative Studics in Socicty andHistory, II, abril 1960, pp. 329-343, do
mesmo autor, "Social Security, Incentives and Controls in the U.S. and the U.S.S.R.", loc. cit., IV, nov.
1961, pp. 104-124, e Samuel Surace, The Status Evolution of Italian Workers, 1860-1914, tese de
doutorado, Department of Sociology, University of Califórnia, Berkeley, 1962.
29. A seção subsequente foi escrita juntamente com o Dr. Stein Rokkan, do Christian Michelsen Institute,
Bergen, Noruega. Adaptei o ensaio original mantendo-o de acordo com os propósitos deste volume.
As formulações subsequentes enfatizarão o sentido classificatório no qual o termo "classes inferiores"
é usado. A questão de quais setores das "classes inferiores" desenvolvem a capacidade para a ação
conjunta e sob que circunstâncias isso ocorre permanece em aberto. Embora, até certo ponto, uma
resposta ao protesto ou o resultado do protesto antecipado, a extensão de cidadania ocorreu com
referência a grupos ampla e abstratamente definidos, como todos os adultos acima de 21 anos, ou
mulheres ou adultos que tivessem posses especificadas, que preenchessem certos requisitos residenciais
709
REI.\'HARD BESDIX
direta é desfrutada apenas pelos grandes homens do reino. Por conseguinte, um
elemento essencial da construção da nação é a codificação dos direitos e deveres
de todos os adultos que são classificados como cidadãos. A questão é o quão
exclusiva ou inclusivamente o cidadão é definido. À parte algumas excecões
notáveis, a cidadania a princípio exclui todas as pessoas social e economicamente
dependentes. Durante o século XIX, essa restrição maciça é gradualmente reduzida
até, finalmente, todos os adultos serem classificados como cidadãos. Na Europa
ocidental, essa extensão da cidadania nacional é mantida isolada do resto do mundo
pelas tradições comuns do Stãndestaat™. A integração gradual da comunidade
nacional desde a Revolução Francesa reflete essas tradições sempre que a extensão
da cidadania é discutida em termos do "quarto Estado", isto é, em termos de
extensão do princípio de representação funcional àqueles previamente excluídos
da cidadania. Por outro lado, a Revolução Francesa também fez avançar o princípio
plebiscitário. De acordo com esse princípio, todos os poderes que intervêm entre
o indivíduo e o Estado devem ser destruídos (como Estados, corporações etc.), de
modo que todos os cidadãos como indivíduos possuem direitos iguais perante o
soberano, autoridade nacional31.
Cabe acrescentar uma palavra a respeito dos dois adjetivos "funcional" e
"plebiscitário". A expressão "representação funcional" deriva da estrutura política
medieval, na qual se considera apropriado, por exemplo, que os anciãos ou o grande
mestre de uma guilda a representem numa assembleia municipal. Aqui a função
refere-se genericamente a todo tipo de atividade considerada apropriada ao Estado.
Usado de maneira mais ampla, o termo "função" designa atividades ou direitos e
deveres específicos de grupos. Como tal, ele abrange ambas as coisas, observações
de comportamento e mandatos éticos daquilo que é considerado apropriado. O
primeiro, contudo, implica teorias muito diferentes de sociedade. Na sociedade
medieval, a posição e as funções apropriadas dos grupos constituintes são fixadas
etc. Tais grupos abrangem muitas pessoas além daquelas que têm poucas posses, renda baixa, pouco
prestígio, e que por causa dessas incapacidades são convencionalmente consideradas "pertencentes"
às classes interiores. A referência aqui é ao grupo classificatório maior de todos aqueles (incluindo as
"classes baixas") que foram excluídos de qualquer participação direta ou indireta nos processos de
tomada de decisão política da comunidade.
30. A tal ponto que o historiador Otto Hintze nega o desenvolvimento nativo do constitucionalismo em
qualquer outro lugar. Ver "Weltgeschichtliche Vorbedingungen der Reprasentativverfassung", em
Staat und Vcrfassung, Gõttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1962, pp. 140-185.
31. Esses dois modelos foram analisados em termos da distinção entre o princípio representativo e o
plebiscitário por Ernst Fraenkel, Dic rcprâscntativc und dic plebiszitãrc Komponcntc im dcmokratis-
chen Vcrfassungsstaat, Cadernos 219-220 de Rccht und Staat; Tubingen, J. C. B. Mohr, 1958. A
ideologia do plebiscitarianismo é documentada em J. L. Talmon, The Origins of Totalitarian Dcmo-
cracy, New York, Frederick A. Praeger, 1960.
110
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII
numa ordem hierárquica. Nas sociedades ocidentais modernas, essa visão antiga
foi substituída por conceitos de função de grupo que pressupõem o ideal de
igualdade, exceto nos casos em que conotações medievais subsistem. O termo
"plebiscito" refere-se ao voto direto numa questão pública importante por todos
os eleitores qualificados de uma comunidade. Quanto maior a comunidade, tanto
menores as qualificações estipuladas para os eleitores e, portanto, quanto maior o
número de pessoas que se encontram numa relação direta com a autoridade pública,
tanto maior será o conflito entre o princípio plebiscitário e o funcional. O sentido
específico de ambos os princípios varia naturalmente com as definições de ativi-
dades específicas de grupo e a extensão e qualificações de membro da comunidade.
Várias acomodações entre o princípio funcional e plebiscitário caracteriza-
ram a sequência de decretos-leis e codificações por meio dos quais a cidadania se
tornou nacional em muitos países da Europa ocidental. A fim de examinar esse
desenvolvimento comparativamente, os vários direitos de cidadania devem ser
distinguidos e analisados. Em seu estudo Citizenship and Social Class, T. H.
Marshall formula uma tipologia de direitos tripartite:
• Direitos civis como "liberdade pessoal, liberdade de palavra, pensamento e fé, o direito à
propriedade e a concluir contratos válidos, e o direito à justiça".
• Direitos políticos tais como o direito de voto e o direito ao acesso a cargo público.
• Direitos sociais que vão do "direito ao bem-estar económico e à segurança mínimos ao direito
de participar inteiramente na herança social e a viver a vida de um ser civilizado, de acordo
com os padrões prevalecentes na sociedade"32.
• Os tribunais, para a salvaguarda dos direitos civis e, especificamente, para a proteção de todos
os direitos extensivos aos membros menos articulados da comunidade nacional.
• Os corpos representativos locais e nacionais como vias de acesso à participação na tomada
de decisão e na legislação.
• Os serviços sociais, para garantir um mínimo de proteção contra a pobreza, a doença, e outros
infortúnios; e as escolas, para possibilitar a todos os membros da comunidade receberem pelo
menos os elementos básicos de uma educação.
32. O ensaio referido foi reeditado em T. H. Marshall, Class, Citizenship and Social Dcvclopmcnt, Garden
City, New York, Doubleday & Co., Inc., 1964, pp. 71-72. A discussão que se segue deve muito à análise
do professor Marshall.
111
REINHARD BENDIX
Inicialmente, tais direitos de cidadania emergem com o estabelecimento de
direitos iguais perante a lei. O indivíduo é livre para concluir contratos válidos,
adquirir e dispor da propriedade. A igualdade legal avança à custa da protecão legal
de privilégios herdados. Cada homem possui agora o direito de agir como uma
unidade independente; contudo, a lei apenas define sua capacidade legal, silencian-
do sobre sua habilidade de usá-la. Ademais, os direitos civis são estendidos aos
filhos ilegítimos, estrangeiros e judeus; o princípio de igualdade legal ajuda a
eliminar a servidão hereditária, iguala a posição de marido e mulher, circunscreve
a extensão do direito dos pais, facilita o divórcio e legaliza o casamento civil33.
Consequentemente, a extensão dos direitos civis beneficia os setores inarticulados
da população, dando um significado libertário positivo ao reconhecimento legal da
individualidade.
Entretanto, esse ganho de igualdade legal subsiste ao lado da desigualdade
social e económica. Tocqueville e outros apontam que na sociedade medieval
muitas pessoas dependentes eram protegidas de alguma maneira contra as dificul-
dades da vida pelo costume e pela benevolência paternal, embora às custas da
subserviência pessoal. A nova liberdade do contrato salarial destruiu rapidamente
toda e qualquer protecão desse tipo que existia anteriormente34. Pelo menos durante
algum tempo, nenhuma nova protecão foi instituída no lugar das antigas; conse-
qiientemente, o preconceito de classe e as desigualdades económicas prontamente
excluem a grande maioria da classe baixa do gozo de seus direitos legais. O direito
do indivíduo de afirmar e defender suas liberdades civis básicas em termos de
igualdade com os outros e pelo devido processo legal é formal, no sentido de que
os poderes legais estão garantidos, na ausência de qualquer tentativa de assistir o
indivíduo em seu uso desses poderes. Como observou Anton Menger, em 1899:
"Nossos códigos de lei privada não contêm uma única cláusula que atribua ao
indivíduo mesmo aqueles benefícios e serviços que são indispensáveis à manuten-
ção de sua existência"35. Nesse sentido, a igualdade da cidadania e as desigualdades
de classe social desenvolvem-se juntas.
33. Ver R. H. Graveson, Status in thc Common Law, London, The Athlone Press, 1953, pp. 14-32. Sobre
detalhes desses desenvolvimentos legais na Alemanha, Áustria, Suíça e França, ver J. W. Hedemann,
Die Fortschrittc dês Zivilrcchts im 19. Jahrhundcrt, Berlin, Cari Heymanns Verlag, 1910 e 1935, 2
vols. Um breve apanhado do pano de fundo e da extensão desses desenvolvimentos na Europa
encontra-se em Hans Thieme, Das Naturrccht und die europàischc Privatrechtsgeschichte, Basel,
Halbing & Lichtenhahn, 1954. Um tratamento mais abrangente encontra-se em Franz Wieacker,
Privatrechtsgeschichte der Nèuzeit, Gõttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1952, esp. pp. 197-216 e
passim.
34. Alexis de Tocqueville, Democracy in America, New York, Vintage Books, 1954, II, pp. 187-190.
35- Anlon Menger, Thc Right to thc Whole Producí of Labor, London, Macmillan and Co., 1899, pp. 3-4.
772
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII
36. O igualitarismo ideológico, bem como um interesse em demolir restrições familiares na liberdade de
ação económica, foram presumivelmente a razão pela qual a proteção foi estendida primeiramente aos
setores mais desarticulados da "classe baixa". A respeito de uma análise crítica do Código Civil alemão
de 1888 —, exclusivamente em termos dos interesses económicos a qae serviriam suas disposições, ver
Anton Menger, Das búrgcrliche Rccht und dic besitzlosen VolksiiasseiL, Tubingen, H. Laupp'sche
Buchhandlung, 1908. O livro foi publicado originalmente ern 1890. Essa perspectiva omite o interesse
auto-sustentado na legalidade formal que é obra de profissionais legais, e conduz ao prolongado conflito
entre o positivismo legal e a doutrina da lei natural. Ver a esse respeito a análise de Max Weber, Law
in Economy and Socicty, Cambridge, Harvard University Press, 1954, pp. 284-321. Ver também a
esclarecedora discussão desse ponto em Fr. Darmstaedter, Dic Grenzen der Wirksamkeit dês Rcchts-
staates, Heidelberg, Cari Winter Universitãtsbuchhandlung, 1930, pp. 52-84.
113
REINHARD BESDIX
em termos de sua capacidade legal e de seu status legal5". Para cada Estado-nação
e para cada conjunto de instituições podemos apontar com exatidão cronologias
das medidas públicas tomadas e traçar as sequências de pressões e contrapressões,
negociações e manobras, por trás de cada extensão de direitos além dos estratos
dos privilegiados tradicionalmente. A extensão de vários direitos às classes baixas
constitui um desenvolvimento característico de cada país. Uma consideração
detalhada de cada um desses desenvolvimentos notaria o considerável grau com
que os decretos-leis são negados ou violados na prática. Ela sublinharia, portanto,
como a questão da posição cívica das classes baixas era enfrentada ou burlada em
cada país, quais alternativas políticas estavam em estudo, e quais os passos
sucessivos que conduziram finalmente à extensão dos direitos de cidadania. Uma
análise completa poderia esclarecer cada passo ao longo do caminho, mas também
obscureceria o processo global da construção da nação.
Pelo fato de serem considerados em conjunto, os desenvolvimentos dos
vários países europeus também constituem a transformação desde as sociedades
patrimoniais do século XVIII até o Estado de bem-estar do século XX. Um estudo
comparativo dessa transformação do ponto de vista da cidadania nacional parecerá
inevitavelmente abstrato se for justaposto à cronologia específica e à análise
detalhada dos sucessivos decretos legislativos em cada país. Contudo, esse estudo
terá a vantagem de enfatizar a verdade que, considerados cumulativamente e a
longo prazo, os decretos legislativos estenderam os direitos de cidadania às classes
baixas e, portanto, representam um processo genuinamente comparável na Europa
dos séculos XIX e XX.
A discussão que se segue limita-se a um aspecto da construção da nação
europeia ocidental: a entrada das classes inferiores na arena da política nacional.
São consideradas apenas as políticas que têm relevância imediata para os movi-
mentos das classes baixas que procuram ingressar na política nacional38. As
decisões sobre o direito de formar associações e sobre o direito de receber um
mínimo de educação formal são básicas, pois esses direitos estabelecem a plata-
37. Quando todos os cidadãos adultos são iguais perante a lei e livres para dar seu voto, o exercício desses
direitos depende da habilidade e disposição de uma pesssoa para usar os poderes legais a que tem direito.
Por outro lado, o status legal dos cidadãos envolve direitos e deveres que não podem ser voluntaria-
mente mudados sem a intervenção do Estado. Uma discussão da distinção conceituai entre a capacidade
como "o poder legal de fazer" e o status como "o estado legal de ser" encontra-se em Graveson, op.
aí., pp. 55-57.
38. Conseqiientemente, apenas uma consideração incidental é dada às fases inicial e final nesse processo
de mudança: o colapso das sociedades patrimoniais através da extensão dos direitos civis e a codificação
e implementação finais dos direitos ao bem-estar em nossas sociedades "de consumo de massa"
modernas.
114
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII
115
RE/NHARD BEND1X
guiam-se, entretanto, do direito de formar associações religiosas ou políticas na
medida em que as associações não especificamente proibidas por lei eram legais.
Consequentemente, os decretos particularizavam trabalhadores de várias condi-
ções, mediante regulamentos especiais a fim de "preservar" o princípio de igual-
dade formal perante a lei.
A distinção entre associação e reunião não era feita, contudo, em todos os
países. Para entender esse contraste, devemos recordar a abordagem tradicional do
relacionamento amo-servo, que era semelhante em muitos países europeus. Decre-
tos estatutários foram usados para regulamentar as relações entre amos e servos e
para controlar a tendência dos amos e artífices a se reunirem, no interesse dos
preços ou salários crescentes. Tal regulamentação ganhou importância à medida
que as organizações corporativas declinaram, embora as regulamentações gover-
namentais tivessem se tornado muitas vezes ineficazes pelos novos problemas que
se originaram no acelerado desenvolvimento económico. Os esforços para enfren-
tar esses novos problemas podiam tomar várias formas.
O governo podia tentar usar uma extensão dos dispositivos tradicionais. Essa
abordagem funcionou temporariamente na Inglaterra, mas diminuiu a distinção
entre associações, que eram permitidas, e reuniões de trabalhadores, que eram
proibidas. Nos países escandinavos e na Suíça, as políticas tradicionais tiveram
mais êxito. Esses países permaneceram predominantemente agrícolas até tarde no
século XIX. Eles experimentaram uma notável proliferação de associações religio-
sas, culturais, económicas e políticas que acompanharam o declínio da sociedade
de Estado. Excetuando-se alguns casos de conflitos violentos, seus governos pouco
ou nada fizeram para restringir nem para legalizar essas atividades. Havia diferen-
ças ali também nos vários esforços para enfrentar o crescente desgoverno dos
artífices e trabalhadores agrícolas. Mas nenhum desses países foi tão longe quanto
a Inglaterra na decretação de uma legislação proibitiva especial destinada a aniqui-
lar mais do que a moderar as reuniões dos trabalhadores. Nesse cenário tradicional,
com sua ideologia patrimonial, tal proibição teria violado o amplamente aceito
direito de associação.
Tais reservas não prevaleceram na Prússia e na Áustria, onde, no final do
século XVIII, os controles absolutistas tradicionais sobre as associações de artífices
foram estendidas a uma proibição geral de todas as "assembleias secretas", como
no Código Civil prussiano de 1794. Essa proibição era dirigida principalmente
contra os maçons livres e outras formas primitivas de organizações quase políticas,
que estavam florescendo em resposta às ideias e acontecimentos da Revolução
Francesa (tal legislação era usada contra as reuniões de trabalhadores igualmente).
Uma proibição específica da última ocorreu na Prússia apenas nos anos de 1840,
776
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII
42. Citado em ILO Rcport. n. 29, p. 89. A declaração de Lê Chapelier reflete o princípio enunciado por
Rousseau: "Se. ao deliberar, as pessoas, suficientemente informadas, não tiverem mantido nenhuma
comunicação entre elas, a panir do grande total de diferenças superficiais, o [total] geral sempre dará
bom resultado, e suas resoluções serão sempre boas. Mas quando conluios e associações parciais são
formados às expensas da grande associação, a vontade de cada uma dessas associações, embora geral
cm relação a seus membros, é privada em relação ao Estado: não se pode mais dizer que há tantos
eleitores quantos forem os homens, mas apenas tantas quantas forem as associações. Desse modo, sendo
as diferenças menos numerosas, elas produzem um resultado menos geral. Finalmente, quando uma
dessas associações se torna tão grande que prevalece sobre todo o resto, não se tem mais a soma de
muitas opiniões que diferem até certo ponto umas das outras, mas um grande dissidente autoritário; a
partir desse momento, não há mais uma vontade geral, e a opinião predominante é apenas individual.
É, portanto, da maior importância, para obter a expressão da vontade geral, que nenhuma sociedade
parcial seja formada no Estado, e que cada cidadão expresse sua opinião inteiramente por si mesmo
[...]". Ver Jean-Jacques Rousseau, The Social Conlract, New York, Hafner Publishing Company, 1957,
pp. 26-27.
43. Webcr, Law in Economy andSociety, pp. 156-157 e ss. Os editores acrescentaram referências à extensa
literatura nesse campo.
119
REINHARD BEND1X
cos eram atendidos por esse novo artifício, e as objeções baseadas no conceito de
obrigação foram rapidamente superadas. A incorporação é a mais importante
brecha na posição estritamente plebiscitaria. Ela representa uma primeira limitação
daquele individualismo radical que apoia a igualdade estritamente formal perante
a lei e se opõe à formação de "interesses intermediários".
Marshall afirma que no campo dos direitos civis "o movimento foi [...] não
da representação de comunidades para a dos indivíduos [como na história do
Parlamento], mas da representação de indivíduos para a de comunidades"44. O
dispositivo da incorporação e o princípio afim da responsabilidade limitada possi-
bilitaram a uma empresa económica assumir riscos e maximizar ativos económicos
em nome e em benefício de acionistas individuais. Por intermédio de seus funcio-
nários, a empresa desempenha uma função representativa, no sentido de que toma
decisões e assume responsabilidades para a coletividade de seus investidores, que
é frequentemente composta por outros grupos incorporados bem como por indi-
víduos. Durante a maior parte do século XIX, essa função representativa da
corporação limitava-se a objetivos económicos. Contudo, conceitos como "cura-
doria incorporada", o desenvolvimento das relações públicas e a participação
política direta de muitas corporações grandes sugerem que, nas últimas décadas,
essa antiga restrição foi abandonada — um desenvolvimento cujo significado para
a cidadania ainda precisa ser explorado.
Essas considerações fornecem um fundamento útil para a compreensão da
posição especial dos sindicatos. Como Marshall observa, os sindicatos:
[...] não procuraram nem obtiveram a incorporação. Podem, portanto, exercer os direitos civis
vitais coletivamente em nome de seus membros, sem responsabilidade coletiva formal, enquanto
a responsabilidade individual dos trabalhadores em relação ao contrato é em larga medida
inexequível [...]45
Se tomarmos como ponto de partida a proibição ou a severa restrição de
reuniões, o desenvolvimento dos sindicatos também exemplifica o movimento dos
direitos civis que vai da representação de indivíduos para a de comunidades. Essa
representação coletiva dos interesses económicos dos membros surge da inabili-
dade dos trabalhadores de salvaguardar seus interesses individualmente. Os sindi-
catos procuram levantar a posição económica de seus membros. Os trabalhadores
organizam-se a fim de atingir o nível de recompensa económica ao qual sentem ter
44. Marshall, op. cit., p. 94.
45. Idcm, p. 93. A discussão seguinte baseia-se na análise de Marshall nas pp. 93-94, mas sua tónica difere
ligeiramente.
120
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII
121
RE1NHARD BENDIX
civis são facultativos mais do que obrigatórios, embora se possa dizer que ela o
violou. Essa facultatividade dos direitos civis precisa de uma ênfase especial no
presente contexto, por causa do contraste com o segundo elemento da cidadania,
os direitos sociais, aos quais nos voltaremos agora.
Um direito social básico: o direito à educação básica
O direito à educação básica é semelhante ao "direito de reunião". Enquanto
um grande contingente da população é desprovido de educação básica, o acesso às
facilidades educacionais aparece como uma precondição sem a qual outros direitos
legais permanecem inacessíveis ao analfabeto. Fornecer os rudimentos de educa-
ção aos analfabetos aparece como um ato de liberação. Todavia, os direitos sociais
são distintivos pelo fato de, comumente, não permitirem ao indivíduo decidir se
deve ou não tirar proveito de suas vantagens. Como a regulamentação legislativa
das condições de trabalho para mulheres e crianças, o seguro compulsório contra
acidentes na indústria, e medidas de bem-estar semelhantes, o direito a uma
educação básica não se distingue do dever de frequentar a escola. Em todas as
sociedades ocidentais, a educação básica tornou-se um dever de cidadania, talvez
o mais antigo exemplo de um mínimo prescrito, reforçado por todos os poderes do
Estado moderno. Dois atributos da educação básica transformaram-na num ele-
mento da cidadania: o governo tem autoridade sobre ela, e os pais de todas as
crianças de um certo grupo etário (geralmente dos 6 aos 10 ou 12 anos) são
obrigados por lei a providenciar para que os filhos frequentem a escola.
Os direitos sociais como um atributo da cidadania podem ser considerados
benefícios que compensam o indivíduo por seu consentimento em ser governado
pelas leis e pelos agentes de sua comunidade política nacional47. É importante notar
o elemento de acordo ou consenso que está na raiz da relação direta entre os órgãos
centrais do Estado-nação e cada membro da comunidade. Mas voltando agora à
consideração dos direitos sociais, descobrimos que esse princípio de igualdade
plebiscitário antes do Estado-nação soberano envolve deveres, bem como direitos.
Cada indivíduo elegível é obrigado a participar nos serviços fornecidos pelo
Estado. É um tanto inadequado igualmente usar o termo "plebiscitário" para esse
aspecto obrigatório da cidadania. Todavia, há uma semelhança familiar entre o
direito de todos os cidadãos de participar (através do direito do voto) nos processos
decisórios do governo e o dever de todos os pais de providenciarem para que seus
47. Essa formulação deve-se à percepliva análise de Joseph Tussman, Obligalion and thc Body Politic,
New York, Oxford University Press, 1960, cap. II.
722
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII
Para ensinar letras e ciências, devemos ter pessoas que façam delas uma profissão. O clero
não pode levar a mal não incluirmos os eclesiásticos, de um modo geral, nessa classe. Não sou injusto
por excluí-los dela. Reconheço com prazer que há vários [...] que são muito instruídos e muito capazes
de ensinar [...] Mas protesto contra a exclusão dos leigos. Reclamo o direito de exigir para a Nação
uma educação que dependa apenas do Estado; porque ela pertence essencialmente a ele, porque cada
nação tem um inalienável e imprescritível direito de instruir seus membros, e finalmente porque as
crianças do Estado devem ser educadas por membros do Estado51.
a Áustria, essa abordagem não se mostrou possível; na Franca, por exemplo, a tradicional pretensão
católica de supervisionar a educação foi desafiada no ano de 1760 pela supressão dos jesuítas e pelo
endosso de um sistema de educação leiga organizado nacionalmente (ver pp. 121 e s.). Ademais, em
países com Igrejas estatais protestantes (Prússia, Dinamarca, Noruega e Suécia), pouco ou nenhum
conflito foi verificado na medida em que a unidade de Igreja e Estado na pessoa do monarca concedia
ao último autoridade de governo sobre a educação básica, com ministros da Igreja agindo nesse campo
como agentes do monarca ou (depois) de um ministro da educação e negócios eclesiásticos.
51. Ver La Chalotais, "Essay on National Education", em F. de Ia Fontainerie (ed.), Frcnch Libcralism
and Education in thc Eightccnth Ccntury, New York, McGraw-HilI Book Company, 1932, pp. 52-53.
52. «em, p. 115, n. 42.
125
KEINHARD BENDIX
intermediário" separe nenhum cidadão do "bem-estar público através de interesses
corporativos", La Chalotais repete aqui a mesma ideia em seu argumento contra o
clero. Deve haver uma profissão de professores que esteja inteiramente à disposi-
ção do Estado, a fim de implementar um programa de instrução no qual nada
interfira entre as "crianças do Estado" e os professores, que são membros e
servidores do Estado.
Posteriormente, o princípio de um sistema nacional de educação básica
também se tornou aceitável à emergente força de trabalho industrial. Entre os
trabalhadores, o desejo de se educar era forte, em parte para aumentar as chances
na vida, em parte por ver que com ela os filhos tinham mais futuro que seus pais,
e em parte para dar mais peso às reivindicações políticas feitas em nome da classe
trabalhadora. Se esse desejo levou a esforços voluntários para fornecer oportuni-
dades educacionais aos trabalhadores, como ocorreu especialmente na Inglaterra e
na Alemanha, tal ação foi em grande parte uma resposta ao fato de oportunidades
de outro tipo não lhes serem acessíveis. Uma vez que tais oportunidades se
tornaram acessíveis, esforços voluntários no campo da educação dos trabalhadores
diminuíram (ainda que não tenham cessado inteiramente), outra indicação da
relativa fragilidade das tendências corporativistas.
E provável, portanto, que os sistemas de educação nacional tenham se
desenvolvido tanto pelo fato de a demanda por educação básica ter interceptado o
espectro das crenças políticas. Ele é sustentado por conservadores que temem o
inerente desgoverno do povo, que deve ser refreado pela instrução nos fundamentos
de religião e, assim, instilar a lealdade ao rei e ao país. Os liberais afirmam que o
Estado-nação requer cidadãos educados por órgãos do Estado. E os oradores
populistas protestam que as massas populares que ajudam a criar a riqueza do país
devem partilhar das amenidades da civilização.
Contudo, a educação básica compulsória torna-se uma importante c contro-
vertida questão quando a autoridade governamental nesse campo entra em conflito
com a religião organizada. Tradicionalmente, a Igreja católica encara o ensino
como um de seus poderes inerentes, sendo o trabalho de instrução conduzido por
ordens religiosas. Segundo essa opinião, o princípio corporativo é soberano, na
medida em que a Igreja administra o "estado espiritual" do homem c possui, nesse
domínio, o direito e o dever de representação exclusivos. Esse princípio foi
desafiado durante o século XVIII na França, e o conflito sobre o controle clerical
ou laico da educação durou até presentemente. Conflitos semelhantes também
persistiram nos países protestantes, nos quais a população está acentuadamente
dividida sobre as questões religiosas. Isto é, um sistema de educação básica
nacional se opôs onde quer que a Igreja ou várias congregações religiosas insisti-
726
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII
53. Ver o histórico esboço do desenvolvimento educacional inglês em Ernest Barker. The Dcvclopmcnt of
thc Public Scniccs in Western Europc, New York, Oxford University Press, 1944, pp. 85-93, e a
avaliação comparativa de Robert Ulich. Thc Education of .\ations. Cambridge, Harvard University
Press, 196l,passim.
54. A principal autoridade em história dos Estados corporativos e sua representação é ainda Otto von
Gierke, Das dcuischc Gcnosscnschaftsrccht. Berlin. Weidmann, 1868. I, pp. 534-581.
727
RE1NHARD BENDIX
não era uma assembleia dos Estados burgueses, mas um corpo de legisladores que
representavam as localidades constituintes do reino, os condados e os burgos. A
grande abertura da sociedade inglesa possibilitou a manutenção dos canais de
representação territorial, e isso, por sua vez, criou condições para uma transição
mais suave para um regime unificado de democracia igualitária55.
Apesar do princípio de representação nesses anciens regimes, apenas os
chefes de famílias economicamente independentes podiam participar na vida
pública. Essa participação era um direito que lhes advinha não de sua qualidade de
membro de alguma comunidade nacional, mas de sua qualidade de proprietários
de território ou capital ou de seu status no interior de corporações funcionais
legalmente definidas como a nobreza, a Igreja, ou as guildas de comerciantes ou
artesãos. Não havia representação de indivíduos: os membros das assembleias
representavam interesses no sistema, quer na forma de proprietários de terra ou na
forma de privilégios profissionais.
A Revolução Francesa realizou uma mudança fundamental na concepção de
representação: a unidade básica não era mais a família, a propriedade, ou a
corporação, mas o cidadão individual; e a representação não era mais canalizada
através de corpos funcionais separados, mas através de uma assembleia nacional
unificada de legisladores. A lei de 11 de agosto de 1792 chegou a conceder direito
de voto a todos os franceses do sexo masculino com mais de 21 anos que não fossem
servos, indigentes, ou vagabonds, e a Constituição de 1793 sequer excluía os
indigentes, desde que tivessem residido mais de seis meses no canton. A Restau-
ração não trouxe de volta a representação por Estados: em vez do regime censitaire
introduziu um critério monetário abstraio que interceptava decisivamente o antigo
critério do status atribuído.
Uma nova fase nesse desenvolvimento inaugurou-se com a Revolução de
1848 e a rápida difusão de movimentos pela democracia representativa através
da maior parte da Europa. Napoleão III demonstrou as possibilidades do sistema
plebiscitário, e os líderes das elites estabelecidas tornaram-se cada vez mais
divididos entre seus medos das consequências das rápidas extensões do sufrágio
às classes baixas e seu fascínio pelas possibilidades do fortalecimento dos
poderes do Estado-nação pela mobilização da classe trabalhadora a seu servi-
55. Essa questão de representação territorial vcrsus representação funcional é o cerne do debate sobre as
razões da sobrevivência do Parlamento na época de absolutismo. Otto Hintze sublinhou as continuida-
des históricas entre as formas de representação medieval e moderna e argumentou que as formas de
governo bicameral além do alcance do Império carolíngio ofereciam base mais adequada ao desenvol-
vimento do governo pluralista parlamentar. Ver sua "Typologie der stãndischen Verfassungen dês
Abendlandes", em Staatund Verfassung, pp. 120-139.
128
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII
56. Ver H. Goilwitzer, "Der Cãsarismus Napoleons III im Widerhall der óffentlichen Meinung Deutsch-
lands", Historischc Zcitschrift, vol. 152, 1952, 23-79. Em alguns países as pretensões ao sufrágio
masculino universal tornaram-se intimamente ligadas à necessidade da conscrição universal. Na
Suécia, o principal argumento para a dissolução do Riksdag de quatro Estados era a necessidade de um
fortalecimento da defesa nacional. Nos debates do sufrágio sueco, o slogan "um homem, um voto, uma
arma" reflete essa ligação entre o direito de voto e o recrutamento militar.
57. Os detalhes desses desenvolvimentos foram expostos em compêndios como o de Georg Meyer, Das
parlamcntarischc Wahlrccht, Berlin, Hacring. 1901. e o de Karl Braunias, Das parlamentarischc
Wahlrccht, Berlin, de Gruyter, 1932, vol. 2.
129
RE1SHARD BESD1X
distritos eleitorais rurais e urbanos58. A simplicidade da estrutura social deu ao
compromisso norueguês um caráter direto: a velha divisão entre os Estados rurais
e burgueses correspondia a uma divisão administrativa estabelecida em distritos
rurais e vilas privilegiadas com cartas patentes, e a única classe de eleitores
explicitamente colocados acima dessa divisão território-funcional era a dos fun-
cionários do rei, os efetivos governantes da nação por várias décadas futuras.
Compromissos muito mais complexos tinham de ser projetados em políticas
multinacionais como a Áustria. Nos velhos territórios dos Habsburgos, o Landtag
típico consistira em quatro curiae: os nobres, os cavaleiros, os prelados, e os
representantes de cidades e mercados. AFebruarpatent de 1861 manteve a divisão
em quatro curiae, mas transformou o critério de Estado em critério de repre-
sentação de interesse. Os nobres e os cavaleiros foram sucedidos pela cúria dos
maiores proprietários de terras. O Estado eclesiástico era estendido numa cúria de
Virilstimmen que representava as universidades, bem como as dioceses. O Estado
burguês não era mais representado exclusivamente por porta-vozes das cidades e
mercados, mas também através das câmaras de comércio e das profissões: este era
o primeiro reconhecimento de um princípio corporativista que viria a adquirir
importância central nos debates ideológicos na Áustria no século XX. A essas três
acrescentou-se uma divisão aldeã: isso era novo no sistema nacional; a repre-
sentação aldeã direta do tipo tão conhecido nos países nórdicos só existiram no
Tirol e em Voralberg. A característica mais interessante da sequência de compro-
missos austríacos era o controle das classes baixas, excluídas por tanto tempo da
participação na política da nação. Fiel à sua tradição de representação funcional,
os políticos austríacos não admitiam esses novos cidadãos no mesmo nível dos já
emancipados, mas colocavam-nos numa nova cúria, a quinta, die allgemeine
Wãhlerklasse. Isso, contudo, era apenas uma medida transitória: onze anos depois,
mesmo a Abgeordnetenhaus austríaca conformou-se à tendência à democracia
igualitária de massa e foi transformada numa assembleia nacional unificada basea-
da no sufrágio masculino universal59.
A ascensão do capitalismo comercial e industrial favoreceu a difusão do
regime censitaire. A base ideológica era o argumento de Benjamin Constant de
58. Ver Stein Rokkan, "Geography, Region and Social Class: Cross-Cutting Cleavages in Norwegian
Politics", em S. M. Lipset e Stein Rokkan (eds.), Party Systems and VotcrAlignments, New York, The
Free Press of Glencoe, no prelo.
59. Uma útil avaliação desses desenvolvimentos na Áustria encontra-se em Ludwig Boyer, Wahlrccht in
Õsterrcich, Vienna, 1961, pp. 80-85. É interessante comparar a mistura austríaca de orientação
medieval de Estado e o corporativismo moderno com as providências russas para a Duma em 1906;
ver a detalhada análise de Max Weber em "Russlands Úbergang zum Scheinkonstitutionalismus",
Gcsammeltcpolitische Schriftcn, Tiibingen, J. C. B. Mohr, 1958, pp. 66-126.
130
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII
que os negócios da comunidade nacional devem ser deixados àqueles com "inte-
resses reais" neles, mediante a posse de terra ou de investimentos em negócios. O
príncipe capacitaire era essencialmente uma extensão desse critério: o direito de
voto era concedido não apenas àqueles que possuíam terras ou tinham investido
em negócios, mas àqueles que haviam adquirido um interesse direto na manutenção
do Estado através de seus investimentos em capacitações profissionais e de seu
compromisso com posições de crédito público. A noção implícita é que apenas
esses cidadãos podem fazer julgamentos racionais das políticas a serem seguidas
pelo governo. Uma autoridade norueguesa em lei constitucional relaciona esses
dois elementos em sua afirmação: "O sufrágio [...] deve ser reservado aos cidadãos
que possuem discernimento suficiente para julgar quais deverão ser os melhores
representantes, e independência suficiente para apoiar sua convicção nessa ques-
tão"60.
Essa questão de critérios de independência intelectual era o cerne das disputas
entre liberais e conservadores sobre a organização do sufrágio. Os liberais defen-
diam o regime censitaire e temiam as possibilidades da manipulação eleitoral
inerente à extensão do sufrágio ao cidadão economicamente dependente. Os
conservadores, uma vez que reconheciam a importância do voto como base do
poder local, tendiam a defender a emancipação das "ordens mais baixas": tinham
bons motivos para esperar que, ao menos nos Estados patriarcais na região rural,
aqueles que estivessem em posições de dependência votariam naturalmente nos
notáveis locais. Esse conflito alcançou o auge nas discussões na Assembleia
Nacional alemã, em Frankfurt em 1848-1849. A Comissão Constitucional reco-
mendara que o direito de voto se restringisse a todos os cidadãos independentes, e
esse termo foi a princípio interpretado como excludente de todos os servos e os
que viviam de salários. Essa interpretação esbarrou em violentos protestos na
Assembleia. Havia um acordo geral de que todos os súditos que recebiam assistên-
cia pública ou estavam falidos não eram independentes e deviam ser excluídos do
direito de voto, mas havia muita dissensão sobre os direitos dos servos e trabalha-
dores. A esquerda exigia direitos totais para as classes baixas e enfrentava oposição
apenas moderada dos conservadores. O resultado foi a promulgação do sufrágio
masculino universal. Apesar disso, a lei não pôde ser cumprida na época: passa-
ram-se outros dezessete anos até que Bismarck conseguisse transformá-la na base
da organização do Reichstag na Federação da Alemanha do Norte. O chanceler
prussiano já tivera a experiência de um sistema de sufrágio universal, mas um
sistema marcantemente desigual - o sistema prussiano de sufrágio de três classes
60. T. H. Aschehoug, Norgcs nuvcrcndc Statsforfatning. Chnstiania. Aschehoug, 1875, vol. I, p. 280.
131
REINHARD BEND1X
introduzido pelo decreto real em 1849. Sob esse sistema, as "ordens mais baixas"
receberam o direito de voto, mas o peso de seus votos era infinitesimal em
comparação com o das classes médias e dos proprietários de terras. Esse sistema
servira evidentemente para amortecer o poder do Gutsbesitzer, especialmente no
Leste do Elba: a lei simplesmente multiplicara por n o número de votos à sua
disposição, pois eles confiavam que seriam capazes de controlar sem muita
dificuldade o comportamento de seus dependentes e de seus trabalhadores nas
eleições61. Bismarck detestou o sistema de três classes, por sua ênfase no critério
monetário abstrato e suas inúmeras injustiças, mas estava convencido de que uma
mudança para o sufrágio igual para todos os homens não afetaria a estrutura de
poder na área rural: ao contrário, ela fortaleceria ainda mais os interesses territoriais
contra os financeiros. Geralmente, na área rural, as extensões do sufrágio tendiam
a fortalecer as forças conservadoras62.
Havia muito mais incerteza sobre as consequências de um sufrágio extensivo
à política nas áreas urbanas. A emergência e crescimento de uma classe de
assalariados fora da família imediata do empregador levantava novos problemas
para a definição da cidadania política. Na terminologia socioeconômica estabele-
cida, seu status era de dependência, mas não ficava claro se eles acompanhariam
inevitavelmente seus empregadores no campo político. As batalhas cruciais no
desenvolvimento para o sufrágio universal referiam-se ao status desses estratos
emergentes dentro da comunidade política. Uma grande variedade de compromis-
sos transitórios eram debatidos, e vários foram realmente postos à prova. A
estratégia básica era sublinhar as diferenciações estruturais no interior do estrato
de assalariados. Algumas variedades do regime censitaire admitiam de fato os
trabalhadores mais bem pagos, especialmente se possuíssem casas próprias63. O
direito de voto do chefe de família e do inquilino na Grã-Bretanha servia igual-
mente para integrar a classe trabalhadora mais bem situada dentro do sistema c
61. Sobre uma recente e detalhada avaliação, ver Th. Nipperdey, Dic Organisalion der dcutschcn Parteien
vor 1918, Diisseldorf, Droste, 1961, cap. V. Sobre um paralelo com as condições nas áreas rurais de
estruturas semelhantes, ver o capítulo de Emilio Willems, em Arnold Rose (ed.), The Institutions of
AdvancedSocietics, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1958, p. 552: "As principais funções
ao sufrágio eram as de preservar a estrutura de poder existente. Dentro do padrão tradicional, o sufrágio
acrescentava oportunidades para demonstrar e reforçar a lealdade feudal. Ao mesmo tempo, reforçava
e legalizava o status político do proprietário de terra".
62. Ver D. C. Moore, "The Other Face of Reform", Victorian Studies, V, set. 1961, pp. 7-34 e G. Kitson
Clark, The Making of Victorian England, London, Methuen, 1962, especialmente o cap. VII.
63. Um recenseamento de tributo especial feito na Noruega em 1876 indica que mais de 1/4 dos
trabalhadores urbanos que estavam nos registros de imposto foram emancipados sob o sistema adotado
em 1814: em contraste, apenas 3% dos trabalhadores nas áreas rurais receberam direito de voto. Ver
Statistisk Centralbureau ser. C. n. 14, 1877, pp. 340-341.
132
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO X\'lll
Considerações Finais
arrecadação paga por membros dos sindicatos ingleses em Martin Harrison, Tradc Unions and lhe
LabourParty since 1945, London, Allen & Unwín, 1960, cap. 1. Os membros do sindicato que desejam
ser isentos do pagamento assinam um formulário de "renúncia" ao secretário de sua seção, mas embora
o pagamento seja nominal e o procedimento simples, houve muita controvérsia, em parte porque a
"renúncia" é um ato público que indiretamente ameaça o sigilo do voto.
135
RE1NHARD BEND1X
Os esforços para corrigir essa desigualdade assumem várias formas, entre as quais
as regras que capacitam os membros das classes baixas a se valerem do direito de
associação para a representação de seus interesses económicos. Contudo, essas
regras por sua vez não atingem aqueles indivíduos ou grupos que não tiram ou não
podem tirar proveito do direito de associação. Conseqúentemente, a igualdade
perante a lei involuntariamente divide uma população de uma nova maneira. Outras
disposições legais tentam lidar com as desigualdades remanescentes ou enfrentar
as que surgiram recentemente; por exemplo, a instituição do defensor público
quando o advogado de defesa não for capaz de usar seu direito de deliberação, ou
os esforços para proteger os direitos dos acionistas incapacitados de fazê-lo sob a
legislação vigente. Ainda assim, há apenas debates concernentes aos melhores
modos de proteger os membros de sindicatos contra possíveis violações de seus
direitos individuais pela organização que representa seus interesses económicos.
O princípio de igualdade formal legal pode ser chamada de "plebiscitaria" no
sentido de que o Estado estabelece diretamente cada "capacidade legal" do indiví-
duo. Além disso, disposições especiais procuram reduzir de vários modos as
desigualdades das oportunidades concedidas aos indivíduos de usarem seus direi-
tos perante a lei. No último caso, as autoridades judiciais "representam" os
interesses daqueles que não usam ou não podem usar seus poderes legais.
O direito e o dever de receber uma educação básica podem ser considerados
outros modos de igualar a capacidade de todos os cidadãos de se utilizarem dos
direitos a que estão habilitados. Embora a educação básica forneça apenas uma
vantagem mínima nesse aspecto, ela é talvez a implementação universalmente mais
aproximada da cidadania nacional, tendo todos os outros direitos um caráter mais
facultativo ou mais seletivo. Como tal, a educação pública básica exemplifica o
componente plebíscitário do Estado-nação, uma vez que a frequência à escola não
só é obrigatória a todas as crianças de um certo grupo etário, mas também depende
de uma contribuição financeira de todos os contribuintes66. Mas, aqui também, as
igualdades formalmente instituídas dão origem ou dão azo a novos tipos de
desigualdades. Aqueles que se preocupam com o ensino e a organização das escolas
reúnem-se por causa de seus interesses profissionais e económicos comuns. Esses
especialistas em educação desenvolvem muitas vezes organizações com sólidas
opiniões referentes à educação. Assim, os professores como um grupo enfrentam
66. O número de crianças que frequentam a escola elementar é maior do que o dos contribuintes, uma vez
que a frequência não permite isenções do mesmo modo que o sistema tributário. Efelivamente, mesmo
os filhos de estrangeiros residentes estão sujeitos a essa exigência, mas isso pode ser considerado uma
conveniência administrativa, uma medida de bem-estar, uma preparação de cidadãos potenciais, e assim
por diante, mais do que um assunto concernente ao princípio de cidadania nacional.
136
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII
pais como indivíduos, do mesmo modo que enfrentam o Estado com a influência
de sua organização em todos os assuntos que afetam seus interesses. Mais
indiretamente, a educação pública básica ajuda a articular, embora inadvertida-
mente, as divisões residenciais existentes dentro da comunidade, uma vez que as
crianças se fixarão em escolas mais próximas a sua área de residência e a
população escolar refletirá as características sociais das áreas residenciais. Esfor-
ços para contrabalançar essas consequências do princípio funcional como as
associações de pais e mestres e a redistribuição das crianças entre as diferentes
escolas distritais, como nos Estados Unidos, são exemplos do plebiscitarianismo
dentro do sistema de educação pública. Além disso, há a prolongada resistência
de grupos congregacionais contra a educação pública como tal, aos quais nos
referimos anteriormente. O princípio plebiscitário encontra resistência desde que
as agências da Igreja ou as congregações, controlando o currículo, procuram
representar os interesses religiosos ou culturais específicos dos pais como mem-
bros de suas respectivas congregações. Grupos religiosos usam, assim, o direito
de associação para implementar suas preocupações especiais no campo da educa-
ção, embora difiram grandemente em relação a confiar ou não financeiramente, e
em que medida, na manutenção através de impostos ou nos lançamentos de
impostos de suas congregações.
Com relação ao direito de voto, os conflitos entre os princípios plebiscitário
e representativo podem ser divididos nas duas fases de um direito de voto diversa-
mente restrito ou universal. As restrições que revimos são geralmente critérios
administrativos aos quais o significado funcional é imputado. Quando o direito de
voto depende de um certo nível de renda, pagamento de imposto, posse de
propriedade, ou educação, presume-se que aqueles que satisfazem os padrões
mínimos nesses aspectos também compartilham opiniões sociais e políticas com-
patíveis com a ordem social estabelecida. Também se presume que os repre-
sentantes eleitos a partir desses estratos da população serão notáveis, capazes de
pensar e agir em termos de toda a comunidade. Esse reconhecimento legal do
princípio representativo é em larga medida abandonado quando o direito de voto
se torna universal. Contudo, o princípio plebiscitário do direito à participação direta
por todos os adultos como eleitores qualificados é bastante compatível com uma
aceitação de diferenças de grupo e várias formas indiretas de representação fun-
cional. O próprio processo eleitoral é grandemente influenciado pela diferenciação
social do público votante, e é suplementado em muitos pontos por outras influên-
cias sobre a formação política, muitas das quais dependentes de grupos de interesse
especiais. A diferenciação social e os grupos de interesse resultam em modificações
do princípio plebiscitário e em novas desigualdades, que podem por sua vez
137
RE1NHARD BESDIX
provocar contramedidas a fim de proteger o princípio de igualdade plebiscitado de
todos os adultos como eleitores qualificados.
Conseqúentemente, a extensão da cidadania às classes baixas envolve em
muitos níveis uma institucionalização do critério de igualdade abstraio que dá
origem tanto a novas desigualdades como a novas medidas para lidar com essas
consequências subordinadas. O sistema de instituições representativas, caracterís-
tico da tradição da Europa ocidental, permanece intacto na medida em que perdura
essa tensão entre a ideia plebiscitaria e a ideia de representação de grupo, na medida
em que a contradição entre critérios abstratos de igualdade e as velhas e as novas
desigualdades da condição social é mitigada por compromissos sempre novos e
sempre parciais. O sistema é destruído quando, como nos sistemas totalitários da
história recente, essas resoluções parciais são abandonadas no interesse de imple-
mentar apenas o princípio plebiscitário sob a égide de um Estado de partido único.
138
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO
ESTADO-NAÇÃO
139
REI\HAKD BE\DIX
antepassados. Na prática, o vassalo muitas vezes trata as terras e direitos que lhe
são assegurados como se fossem uma propriedade sobre a qual sua família tem
direito hereditário. Assim, a autoridade governamental está tão ligada à família
quanto à propriedade. O governante e seus vassalos reivindicam um direito pres-
critivo ao exercício da autoridade, não para si mesmos como indivíduos, mas como
membros de famílias às quais aquele título pertence em virtude de linhagem real
ou aristocrática. A máxima de Edmund Burke referente à sociedade como parceria
aplica-se a esse contexto: "Como os objetivos dessa sociedade não podem ser
obtidos em muitas gerações, ela se torna uma sociedade não apenas entre os que
estão vivos, mas entre os que estão vivos, os que estão mortos, e os que estão por
nascer"1. Na concepção medieval, o "bloco de construção" da ordem social é a
família com privilégio hereditário, cuja estabilidade através do tempo é o funda-
mento do direito e da autoridade, enquanto a ordem de classificação da sociedade
e sua transformação através da herança regula as relações entre tais famílias, e entre
elas e o governante supremo.
O Estado-nação moderno pressupõe que esse vínculo entre a autoridade
governamental e o privilégio herdado nas mãos de famílias de notáveis está
quebrado. O acesso a postos políticos e administrativos importantes nos governos
dos Estados-nações pode ser facilitado pela riqueza e pela posição social elevada
através de seu efeito sobre os contatos sociais e as oportunidades educacionais.
Mas a facilidade de acesso não é como a prerrogativa que as famílias aristocráticas
na política medieval reivindicam em virtude de sua "antiguidade de sangue", para
usar a frase de Maquiavel. Pois o critério decisivo do Estado-nação ocidental é a
separação substancial entre a estrutura social e o exercício de funções judiciárias
e administrativas. As principais funções do governo, como a adjudicação de
disputas legais, a arrecadação de renda, o controle da moeda corrente, o recruta-
mento militar, a organização do sistema postal, a construção de obras públicas e
outras foram removidas da luta política, no sentido de que não podem, com base
na hereditariedade, ser apropriadas por Estados privilegiados, nem divididas entre
jurisdições concorrentes. A política deixa de ser uma luta acima da distribuição de
poderes soberanos onde quer que o domínio pacífico sobre um território e seus
habitantes é concebido como uma função de uma mesma comunidade — o Estado-
nação2. Em vez disso, a política torna-se uma luta acima da distribuição do produto
1. Edmund Burke, Rcflcctions on thc Rcvolulion in Franco, Gateway Editions, Inc., Chicago, Henry
Regnery Co., 1955, p. 140.
2. Ver Max Weber, Law in Economy andSocicty, trad. e ed. de Max Rheinstein & E. A. Shils, Cambridge,
Harvard University Press, 1954, p. 338 e passim. Ver também Max Weber, Thc Thcory of Social and
Economic Organization, New York, Oxford University Press, 1947, p. 156.
140
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO-NAÇÃO
Burocratização
141
RE1NHARD BEND1X
4. A qualificação para o ofício depende inteiramente do juízo de valor
pessoal do governante entre seus funcionários domésticos, partidários ou favoritos.
5. "Funcionários e favoritos domésticos são geralmente sustentados e equi-
pados na casa do chefe e de seus armazéns pessoais. Geralmente, sua exclusão da
própria mesa do amo significa a criação de benefícios [...]" e portanto um enfra-
quecimento do regime patrimonial como é aqui definido.
6. Através de mudanças abruptas na nomeação e de uma série de outros atos
arbitrários, o governante faz todos os esforços para evitar a identificação de
qualquer funcionário ou favorito doméstico com o ofício que ele ocupa numa
determinada época.
7. O próprio governante ou seus funcionários e favoritos que agem em seu
nome conduzem os negócios do governo quando e se o consideram apropriado,
isto é, ou por pagamento de uma comissão ou por um ato de graça unilateral 4 .
O governo é considerado uma mera extensão do domínio privado do gover-
nante. Vimos que, sob o patrimonialismo, a regra pessoal arbitrária é considerada
legitimada com base na tradição imemorial e santificada. Repetidamente, o gover-
nante patrimonial enfrenta a tarefa de equilibrar um princípio com outro. Essa
consideração aplica-se a todas as condições acima enumeradas: a delegação de
autoridade, a base do recrutamento e remuneração, a qualificação para o ofício, a
obediência dos subordinados ao governante ou a independência relativa de sua
posição, e finalmente o grau com que o governante e funcionários tratam o negócio
oficial como uni ato de indulgência pessoal ou o desempenho daquele dever que a
tradição lhes dá como incumbência. Nesses aspectos, nem a arbitrariedade pessoal
nem a adesão ao precedente santificado podem ser dispensados. Pois se a arbitra-
riedade passa a prevalecer, o patrimonialismo dá margem à tirania; se direitos
estabelecidos eliminam a vontade arbitrária do governante, o patrimonialismo dá
margem ao feudalismo ou um grande domínio se desintegra em domínios patrimo-
niais menores. O regime patrimonial perdurará enquanto essas eventualidades
forem evitadas, mas é também verdade que, dentro dessa estrutura, o regime
arbitrário ou a adesão à tradição santificada pode se tornar dominante.
A caracterização do regime patrimonial de Weber presume uma grande
diversidade de eventos históricos, e os conceitos emparelhados de arbitrariedade
santificada e de precedente santificado fornecem um dispositivo interpretativo para
4. As passagens citadas são extraídas de Max Weber, The Thcory of Social anclEconomic Organization,
op. cit., pp. 343, 344 e 345. As características da regra patrimonial remanescentes são extraídas de Max
Weber, Wirtschaft und Gcsdlschaft, Túbingen, J. C. B. Mohr, 1925, II, pp. 679-723. As discussões
relacionadas são encontradas em Max Weber, Rcligion of China, Glencoe, The Free Press, 1951, pp.
33-104.
142
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO-NAÇAO
uma análise da mudança social. Mas todo exercício concreto de autoridade por um
governante histórico é, justamente por isso, uma instância numa série de eventos
que revela um padrão apenas quando encarada em retrospecto e por um longo
prazo. Embora a conceitualização desse padrão capacite o analista a abordar todo
caso específico com um conhecimento dos "princípios de ação" que estão em
debate, aquele conhecimento é inevitavelmente afastado das ambiguidades e com-
promissos pelos quais os homens de ação abrem caminho entre princípios opostos.
É necessário, portanto, enfatizar os dilemas intrínsecos nos conceitos capitais como
a administração patrimonial, a fim de reduzir o desnível entre conceito e compor-
tamento. Por outro lado, assim como aprendemos a estimar o preço de cada linha
de ação, os prejuízos evitáveis e inevitáveis que ela provoca na consecução de seus
próprios objetivos, também reduzimos o desnível do lado da análise comportamen-
tal. Considerações paralelas aplicam-se ao sistema de administração sob o preceito
da lei.
No moderno Estado-nação do tipo ocidental a administração governamen-
tal é caracterizada por uma orientação dirigida para regulamentações legais e
administrativas. Uma vez que a definição de burocracia de Weber traça o
paralelo dos pontos apenas citados em relação à administração patrimonial,
repito-a aqui de forma abreviada. Uma burocracia tende a ser caracterizada por:
1. direitos e deveres definidos, que são prescritos em regulamentos escritos;
2. relações de autoridade entre posições que são ordenadas sistematicamente;
3. nomeação e promoção que são regulamentadas e baseadas em acordo contra-
tual; 4. treinamento técnico (ou experiência) como uma condição de emprego
formal; 5. salários monetários fixados; 6. estrita separação entre cargo e encar-
regado no sentido de que o empregado não possui os "meios de administração"
e não pode se apropriar da posição, e 7. trabalho administrativo como uma
ocupação de tempo integral5.
Cada uma dessas características representa uma condição de emprego na
administração do governo moderno. O processo de burocratização pode ser inter-
pretado como a multifacetada, cumulativa e mais ou menos bem-sucedida imposi-
ção dessas condições de emprego desde o século XIX. Os problemas de
gerenciamento que emergem desse processo podem ser caracterizados de uma
maneira geral pela comparação de cada condição de emprego burocrático com sua
contrapartida não-burocrática ou antiburocrática.
H. H. Gerth e C. W. Mills (eds.), From Meu Wcbcr: Essays in Sociolog); New York, Oxford University
Press, 1046, pp. 106-198. A discussão que se segue baseia-se em meu IÍSTO Work and Authority in
Industry, New York, John Wiley & Sons, 1956, pp. 244-248.
143
REINHARD BEND1X
O esforço para definir direitos e deveres de acordo com critérios formais
(impessoais) encontrará persistentes tentativas para interpretá-las de uma maneira
que o indivíduo interessado considera vantajosa para si mesmo.
A sistemática disposição das relações de autoridade serão opostas, embora
muitas vezes involuntariamente, por tentativas de sujeitar essas relações a uma
negociação informal usando favores de vários tipos.
Considerações pessoais semelhantes podem também afetar a nomeação e a
promoção de empregados, mesmo quando há uma evidente submissão às regras.
O treinamento técnico como uma condição de emprego está talvez menos
sujeito a tais práticas, embora, mesmo neste caso, as relações pessoais e as interpre-
tações subjetivas possam modificar o que de outra forma seria uma adesão pura-
mente formal a essa condição. Penso em fatores como a preferência pela contratação
de funcionários por candidatos que possuem certas caraterísticas pessoais, bem
como a competêricia técnica requerida. A avaliação subjetiva também entra na
avaliação da experiência, da situação profissional etc, de um candidato.
Considerações semelhantes aplicam-se aos salários monetários fixos. Embo-
ra as escalas de salário possam ser prontamente fixadas e administradas, a nomea-
ção e promoção estão sujeitas à negociação e à influência pessoal, como em todo
o sistema de classificação de trabalho sem o qual a escala de salário não tem sentido.
Além disso, há contínuos esforços para suplementar qualquer escala de salário
determinada por vários benefícios marginais que não são tão prontamente sistema-
tizados como a própria escala e, portanto, permitem a manipulação que a escala
procura eliminar.
A estrita separação entre funcionário e encarregado, entre o cargo e o
empregado, é uma condição ideal que raramente é atingida na prática, especial-
mente em relação a empregados assalariados e trabalhadores especializados. Os
encarregados dotam seu desempenho no trabalho com qualidades pessoais que vão
desde as idiossincrasias dispensáveis até habilidades intransferíveis e muitas vezes
indispensáveis, de modo que alguma medida de identificação do empregado com
essa posição é inevitável. Nas modernas condições de emprego, o indivíduo não
pode se apropriar de sua posição no sentido de que, digamos, no governo inglês
durante o século XVIII os cargos administrativos eram uma forma de propriedade
privada que uma família podia passar de uma geração à seguinte. Mas as salva-
guardas contra a demissão estabelecidas no governo moderno sob o slogan de
"estabilidade no emprego" dotaram o emprego de um caráter de quase propriedade
que é mais ou menos incompatível com a estrita separação entre o emprego e o
empregado.
144
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO-NAÇÃO
6. Ver essa formulação condicional em Weber, Law in Economy andSocicty, op. cit., p. 351.
145
REIKHARD BESDIX
procedimentos formais devem ser obedecidos se a decretação ou execução de uma
lei quiser ser considerada legal. Mas enquanto a legislação legal tende a eliminar
as idiossincrasias da lei pessoal, no interesse do desenvolvimento de um corpo de
leis coerente que seja o mesmo para todos, ela também milita contra o exercício
do julgamento no caso individual. Todavia, a atenção aos regulamentos pode, por
essas razões, engendrar um interesse no ato de legislar em causa própria - do
mesmo modo que uma preocupação exagerada com a equidade no caso individual
pode prejudicar a integridade do processo legiferante. Portanto, o Estado de direito
perdura na medida em que as soluções parciais desses imperativos conflitantes são
encontradas e que não se permite o predomínio da preocupação com a equidade
nem com os atributos formais de legislar. O básico e angustiante dilema de forma
e substância na lei pode ser aliviado, mas nunca resolvido, pois a estrutura do
domínio legal mantém suas características distintivas apenas na medida em que
esse dilema é perpetuado.
Os imperativos conflitantes da "racionalidade formal e substantiva" esten-
dem-se mesmo ao interior dos estatutos relativamente simples que governam a
administração pública, pois parece que a implementação de tais estatutos é assal-
tada por certas incompatibilidades inerentes à estrutura das organizações hierár-
quicas. O problema de comunicação é o caso em questão. A hierarquia de-postos,
indispensável em grandes organizações, envolve uma ordem de autoridade indis-
cutível. Todos os subordinados recebem suas ordens dos superiores, que por
definição conhecem mais sobre a política da organização e sua execução "apro-
priada" do que aqueles que eles comandam. Contudo, seu conhecimento superior
é limitado ou circunscrito pelo fato de que seu alto posto dentro da organização
afasta-o automaticamente da experiência do dia-a-dia com seus problemas opera-
cionais. Na terminologia da teoria da organização, isto é chamado o problema da
comunicação de mão dupla. Mas, como Florence observou, a informação, que deve
surgir da linha de autoridade a partir daqueles que estão em contato diário com
problemas operacionais, "tende a ser negligenciada pela simples razão de que ela
parte de um subordinado"7. Convém enfatizar que a razão para tal negligência não
é necessariamente a má vontade dos superiores ou a inaptidão dos subordinados.
Ela se deve, antes, ao fato de que a hierarquia de postos envolve diferentes níveis
de informação, de modo que os subordinados não estão em condições de julgar
quais os aspectos da operação do dia-a-dia são de interesse especial para seus
superiores. Tampouco é possível aos superiores explicá-lo com muitos detalhes,
7. P. Sargant Florence, The Logic ofBritish and American Industry, London, Routledge & Kegan Paul,
Ud., 1953, p. 153.
146
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO-NAÇÃO
Em seu \\vtoAdmimstrativeBchavior, New York, Macmillan Co., 1948, pp. 20-44, Simon mostrou de
que maneira tais dilemas conduziram a teorias administrativas que são tão contraditórias quanto os
provérbios. A eficiência administrativa requer especialização. Por outro lado, a especialização requer
critérios claros para uma divisão do trabalho, mas esses critérios coincidem ou colidem com outros e,
portanto, exigem coordenação, que é, muitas vezes, incompatível com a especialização. A alegação de
que laís dilemas são inevitáveis e de que, portanto, os julgamentos são indispensáveis, é inteiramente
compatível com o esforço para assentar a tomada de decisão gerencial numa base mais científica. A
substituição dos métodos mecânicos por operações manuais é obviamente um contínuo processo que
em larga medida reduziu algumas áreas de arbítrio, ainda que tais métodos também tenham criado
novas oportunidades para o julgamento discricionário. Mas, embora as mudanças organizacionais
(incluindo as baseadas em pesquisa anterior) reduzam e realoquem as áreas em que o arbítrio é possível
ou desejado, elas não podem, na minha opinião, eliminar o exercício do julgamento. De qualquer forma,
os contraditórios provérbios administrativos de Simon deverão continuar, enquanto a operação das
organizações hierárquicas requererem tais julgamentos.
147
REIXHARD BEfíDIX
benefícios e, portanto, a independência relativa em relação à família substituem
cada vez mais seu antigo arranjo. Os funcionários do governante procurarão tornar
seus benefícios hereditários, enquanto o governante tentará recuperar o benefício
como seu ao término do serviço ou pela morte do encarregado. Esse conflito será
resolvido pela luta em termos das arbitrariedades pessoais e do respeito pela
tradição que são característicos do governo patrimonial. Quando os funcionários
conseguem tornar-se independentes, dão o primeiro passo para se afastar da
completa identificação do governante e do governo. Note-se, porém, que esse
primeiro passo consiste na completa identificação do governo com muitos gover-
nantes; portanto, permanece bem no centro da estrutura do governo patrimonial.
Na Europa ocidental, essa estrutura prevaleceu por muitos séculos, mas foi aos
poucos internamente solapada, quando o desempenho das funções governamentais
perderam eficácia com a comercialização dos cargos.
Finalmente, a ideia do cargo do governo como um tipo de propriedade pessoal
herdada foi substituída pela completa separação entre o cargo e o encarregado, com
a remuneração tomando agora a forma de pagamentos de salários regulares em
lugar da antiga dependência do encarregado em relação à família do governante e
à renda proveniente do desempenho de funções oficiais. É verdade que esse novo
princípio, como o antigo, está sujeito a variáveis consideráveis. Embora as escalas
de salário sejam fixadas e os funcionários não possuam direitos de propriedade em
suas posições, essas condições do serviço administrativo estão sujeitas à negocia-
ção e à influência pessoal. Fatores como benefícios extras e estabilidade pessoal
podem muitas vezes modificar consideravelmente a escala salarial e a separação
do cargo e do encarregado. O saldo dependerá dos esforços conflitantes daqueles
que administram a escala salarial e supervisionam as condições de emprego, como
contra aqueles que usam a negociação e a influência para maximizar suas vanta-
gens. Se os primeiros obtivessem êxito completo, codificariam benefícios adicio-
nais e condições de emprego de modo suficientemente detalhado para minimizar
a negociação e a influência pessoal. Se os negociadores obtivessem êxito total,
anulariam as condições formais da moderna administração e restabeleceriam a
tomada de decisão pessoal em questões de remuneração e emprego. O grau em que
essa alternativa patrimonial se tornou impossível é uma verdadeira medida do grau
com que o tipo de administração burocrática se tornou o padrão predominante. Mas
a negociação e a influência continuam a afetar as condições do trabalho adminis-
trativo, e até este ponto o padrão burocrático predominante está sujeito a uma
alteração gradual. Se essas alterações são mutuamente compensatórias, e portanto
preservam a identidade da burocracia, se elas se acumulam em uma ou outra direção
e dão origem a padrões "neopatrimoniais" ou "neofeudais", ou se tipos inteiramen-
148
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO-NAÇÃO
Na segunda parte do epílogo com o qual conclui seu romance Guerra e Paz,
Leon Tolstói descreve a metáfora da raiz das organizações hierárquicas. Quando
os homens se unem numa ação comum, a maior parte deles participa diretamente
na ação, enquanto um número menor tem uma participação direta menor. O
comandante-chefe nunca participa diretamente, mas em vez disso toma providên-
cias gerais para a ação combinada. Para Tolstói um cone delineado com perfeição
representa o modelo de todas as organizações hierarquizadas''.
Em seu tipo ideal de um quadro administrativo sob autoridade legal, Max
Weber refere-se ao mesmo modelo ao enfatizar o tipo monocrático no qual um
"chefe" exerce autoridade suprema sobre todo o quadro administrativo. Contudo,
em sua especificação dos atributos que distinguem a administração burocrática da
patrimonial, ele concentra maior atenção nas relações de autoridade intra-organi-
zacionais. Ordenando e facilitando a implementação fiel dos comandos, a autori-
dade isola os funcionários das influências que interfeririam nessa implementação.
Temos, portanto, duas variáveis críticas. Uma refere-se à natureza da autoridade
exercida sobre o quadro administrativo, a outra com o condicionamento e isola-
mento organizacional desse quadro que afeta sua implementação de comandos.
Ambos os aspectos são igualmente importantes no exercício do poder público no
Estado-nação ocidental, mas devo concentrar-me aqui no segundo.
Ao nível da política pessoal-pública, os funcionários do governo são agora
recrutados independentemente de suas lealdades de parentesco, enquanto os privi-
légios dos Estados hereditários não mais existirem. As salvaguardas contra a
apropriação completa e o envolvimento direto com os interesses da família e da
propriedade são suplementadas pelas várias condições do emprego público, nas
quais Weber vê as características distintivas de uma burocracia moderna. Reunidas,
essas condições devem garantir que nenhuma influência extra-organizacional
interfira na implementação de comandos à medida que esta percorre a hierarquia
desde o nível de tomada de decisão, no alto, até o funcionário executivo "na linha
9. Leon Tolstói, War and Pcace, New York, The Modern Library, s. d., pp. 1128-1129 epassim.
149
REINHARD BENDIX
de fogo". Desse modo, o exercício das funções administrativas deve ser efetiva-
mente isolada da estrutura social circundante. Tipicamente ideal, a hierarquia
burocrática é uma estrutura independente: decisões políticas básicas foram alcan-
çadas antes de sua implementação administrativa, da qual foram claramente dife-
renciadas; os funcionários são assim condicionados de modo a se confinar
voluntariamente e com competência técnica para essa implementação, e o público
concorda com os estatutos resultantes e não tenta influenciar em sua formulação
ou execução. Contudo, essas hipóteses só podem ser aproximativas10. Várias
condições influem na hierarquia como um todo: a estrutura da autoridade suprema
(que, como viu Weber, é frequentemente wão-monocrática), o padrão de cultura
burocrática que forma a atitude dominante dos funcionários públicos, e os contatos
entre administradores e o público".
Consequentemente, as hipóteses do modelo weberiano (mais do que os
atributos que formam o modelo) serão modificadas na discussão seguinte, que
pretende abordar uma compreensão mais completa da autoridade administrativa
no Estado-nação moderno. A discussão enfocará duas questões críticas: a posição
legal e política dos servidores civis, e certos problemas típicos na relação entre
administradores e público.
A autoridade e o padrão burocrático de cultura
A emergência do Estado-nação é acompanhada pelo crescimento de uma
estrutura governamental em larga escala, com um quadro de funcionários que, ao
ingressar no emprego público, deve aceitar as condições de emprego estipuladas
pela autoridade pública. Na ausência de privilégios hereditários, e com o declínio
dos grupos de parentesco extensos, os funcionários públicos aceitam essas condi-
ções com suficiente boa vontade. Mas com a universalização da cidadania, traçada
no capítulo anterior, surge uma pergunta: Devem os funcionários públicos manter
todos os direitos do cidadão privado, ou devem eles sujeitar-se a algumas restrições
especiais, tendo em vista suas responsabilidades e poderes como funcionários
públicos? Geralmente, três respostas foram dadas a essas perguntas. Num extremo,
10. O próprio Weber oferece uma análise comportamental em seus escritos políticos, especialmente em
sua análise do problema burocrático na Alemanha imperial no governo Bismarck. Ver seus Gcsammeltc
politische Schriften, Tiibingen, J. C. B. Mohr, Paul Siebeck, 1958, pp. 299 e ss. Não sabemos como ele
teria desenvolvido a relação entre o típico-ideal e o nível comportamental de análise, se tivesse vivido
para completar sua sociologia do Estado.
11. Minha primeira tentativa de formular as precondições do comportamento burocrático encontra-se em
Reinhard Bendix, Higher Civil Scrvants in American Society, University of Colorado Series, Studics
in Sociology, n" l, Boulder, University of Colorado Press, 1949, cap. I.
ISO
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO-NAÇÃO
está a opinião de que os dois papéis são inteiramente compatíveis, de modo que o
funcionário público goza de plenos direitos do cidadão privado sempre que atue
na qualidade deste. Esta visão pode ser chamada de plebiscitarianismo democrá-
tico, no sentido de que trata todos os cidadãos da mesma maneira e não permite
que o status especial do funcionário prejudique os direitos universais de cidadania.
No outro extremo está a opinião de que os servidores civis são acima de tudo
servidores do Estado e, portanto, que o emprego público implica um suporte
político positivo para o governo no poder. Esta opinião pode ser chamada de
autocrática ou plebiscitarianimo totalitário, desde que a mesma exigência de
completa fidelidade seja feita a todos os cidadãos; os direitos da cidadania são
anulados sempre que interfiram com essa obediência dominante, de modo que sob
essas circunstâncias não há também nenhuma diferença entre o cidadão comum e
o funcionário público. Entre esses extremos está a posição que recomenda a todos
os funcionários públicos, especialmente aos que ocupam posições de responsabi-
lidade, o ideal da neutralidade política. Aqui, os funcionários públicos são delibe-
radamente separados dos cidadãos privados. Informalmente ou através de uma
legislação especial, eles são solicitados a aceitar restrições especiais sobre sua
expressão ou opiniões políticas e sua participação em atividades políticas, a fim de
salvaguardar a imparcialidade da administração governamental bem como a con-
fiança pública nessa imparcialidade. Nas democracias ocidentais, é muito difundi-
da a ideia de que os funcionários públicos devem renunciar a alguns de seus direitos
de cidadãos porque o emprego governamental envolve uma confiança pública que
poderia ser prejudicada por um uso imprudente desses direitos. Nos termos da
discussão precedente, essa abordagem exemplifica Q princípio funcional no sentido
de que os funcionários públicos são reconhecidos como uma ocupação que possui
direitos e deveres particulares. Portanto, com referência ao emprego público, o
princípio plebiscitário dos direitos universais de cidadania é rejeitado12. A discus-
são diretamente subsequente restringir-se-á à terceira abordagem apenas mencio-
nada. Seu propósito é mostrar o impacto da estrutura autoritária e do padrão de
cultura burocrática no esforço para definir a posição legal e política dos funcioná-
rios públicos nos Estados Unidos e na Alemanha13.
12. Para um breve levantamento exemplificando essas três abordagens com referência à França na Terceira
República, à Alemanha nazista e à Itália fascista, e à Grã-Bretanha, ver Thomas I. Emerson e David
M. Helfield, "Loyalty among Government Employees", YaleLaw Journal, vol. 58,1948, pp. 120-133.
13. A discussão que se segue deve muito a Ernst Fraenkel, "Freiheit und politisches Betàtigungsrecht der
Beamten in Deutschland und den USA", em Vcritas, lustitia, Libertas, Edição Comemorativa em Honra
ao Bicentenário da Universidade de Colúmbia transmitida pela Universidade Livre de Berlim e pela
Escola Superior de Política, Berlin, Colloquium Verlag, 1953, pp. 60-90.
757
REINHARD BEND1X
No ambiente americano, a suspeita em relação aos funcionários públicos data
do início da independência. Dentre as queixas das colónias contra as "repetidas
injustiças e usurpações" do rei da Grã-Bretanha está a declaração de que "Ele
instituiu uma multidão de cargos novos, e enviou para cá um enxame de funcioná-
rios para molestar nosso povo e arruinar sua propriedade"14. O Decreto de Direitos
de 1776 da Virgínia, bem como a correspondente declaração de direitos para
Massachusetts, Pensilvânia, e outros Estados, coloca os altos funcionários do setor
executivo do governo no mesmo pé que o legislativo com referência ao princípio
de rodízio. Funcionários nomeados, bem como os eleitos, devem retornar à vida
privada em intervalos fixos, tanto como salvaguarda contra o abuso de poder
quanto como um meio pelo qual eles podem voltar a participar das preocupações
e privações do povo. Assim, a administração do governo deve refletir diretamente
a vontade do povo, e os funcionários do governo são literalmente servidores do
público. Com base em suas observações em 1831, Tocqueville notou que, nos
Estados Unidos, o governo é considerado um mal necessário, nenhuma "semelhan-
ça ostensiva de autoridade" é desnecessariamente ofensiva, e que "os próprios
funcionários públicos estão bem conscientes de que a superioridade sobre seus
concidadãos, que emana de sua autoridade, eles só a desfrutam com a condição de
colocar-se por sua conduta no nível de toda a comunidade"15. Quando nenhum
homem no serviço público é diferenciado da população em geral, o rodízio no cargo
é visto como uma garantia de que distinções hostis não serão introduzidas no futuro,
porquanto os homens de todas as classes sociais são considerados igualmente
qualificados para ocupar um cargo público16. Este sentimento antiburocrático
manteve forte influência na administração pública americana, mesmo depois que
a Reforma do Serviço Civil de 1883 aboliu o sistema de favorecimento de
partidários políticos e introduziu algumas salvaguardas legais nos estatutos do
emprego público do governo.
Ernst Fraenkel cita duas decisões que exemplificam essa atitude generaliza-
da. No caso de Butler x Pensilvânia (51, EUA, 1850), os reclamantes argumentam
que sua nomeação para um cargo no governo baseava-se em contrato protegido
pelo art. 1a, parágrafo 10 da Constituição, que proíbe ao Estado sancionar leis "que
prejudiquem as obrigações contratuais". Mas, na opinião do tribunal,
14. Citado em Cari L. Becker, The Dcclaration of Indcpcndcnce, New York, Vintage Books, 1958, p. 12.
15. Alexis de Tocqueville, Dcmocracy in America, New York, Vintage Books, 1954, I, pp. 214-215.
16. Ver James Bryce, The American Commonwealth, Chicago, Charles H. Sergel & Co., 1891, II, pp.
127-128. A importância dessas opiniões não diminui com a descoberta de que o favorecimento de
partidários políticos não foi tão grande na administração de Andrew Jackson como se supunha. Ver S.
M. Lipset, The First New Nation, New York, Basic Books, Inc., 1963, pp. 101-102.
752
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO-NAÇÃO
a nomeação e o mandato de um cargo criado para uso público, [...] não vão além do momento
do prazo de contrato, ou, em outras palavras, os direitos privados pessoais estabelecidos que se
pretendem desse modo estar protegidos. Eles [a nomeação, e o mandato, cargo público] são
funções próprias daquela classe de poderes c obrigações aos quais os governos estão habilitados,
e a que estão obrigados, para fomentar e promover o bem geral: funções, por conseguinte, que
não se pode presumir que os governos tenham abandonado. [...]
Portanto, uma vez que os cargos em função pública não dependem de direitos
contratuais protegidos pela Constituição, o término de um emprego público não
priva o encarregado de nenhum direito, tendo em vista a importância predominante
do negócio público17.
Esse tratamento à parte e discriminatório dos funcionários públicos não foi
aplicado à esfera política, ao menos no início. O artigo l u , capítulo 6 da Constitui-
ção declara que ninguém poderá ser ao mesmo tempo funcionário nomeado e eleito.
Em princípio, essa proibição circunscrevia as atividades políticas permitidas dos
empregados do governo federal. Como apontava Thomas Jefferson em 1801, a
separação de poderes torna "impróprio que os funcionários dependentes do Exe-
cutivo [...] controlem ou influenciem o livre exercício do direito eleitoral", de modo
que a propaganda eleitoral por funcionários públicos é "considerada incompatível
com o espírito da Constituição""1. Mas não se deu atenção a essa interpretação, as
atividades políticas de funcionários federais eram geralmente aceitas como parte
17. Ver Fraenkel, op. cit., pp. 84-85. Ver também minha discussão sobre os servidores públicos americanos
como um "grupo desprivilegiado" em Highcr Civil Scrvants in American Socicty, pp. 100 e ss.
18. Citado em Joseph M. Friedman e Tobias G. Klinger, "The Halch Act: Regulation by Administrative Action
of Political Aclivities of Government Employees", The Federal Bar Journal, VII, out. 1945, p. 6.
75.?
RE1NHARD BENDIX
do sistema de favorecimento de partidários políticos, e apenas a disposição cons-
titucional era obedecida. Contudo, essa atitude clemente generalizada mudou após
a Reforma do Serviço Público de 1883. Numa instrução de 1886, o presidente
Cleveland proibiu aos funcionários federais comprometer-se em "partidarismo
importuno", apontando que "as propriedades do cargo público também os impedi-
rão de assumir a condução ativa de campanhas políticas". Vinte anos depois, o
mesmo princípio foi formalizado por Theodore Roosevelt e incorporado aos
Estatutos do Serviço Público que permaneceram em vigor até 1939, quando a Lei
Hatch estendeu os mesmos estatutos a todos os funcionários federais, bem como a
alguns funcionários do Estado e dos governos municipais19. Desde então, a Comis-
são do Serviço Público implementou essas restrições por uma detalhada especifi-
cação das atividades políticas nas quais os funcionários públicos podem participar,
bem como aquelas que lhes são vedadas 2".
As várias opiniões expressas no caso dos Trabalhadores Públicos Unidos x
Mitchell [330, EUA 75(1947)] revelam a lógica que fundamenta tais especificações.
Nesse caso, um funcionário federal havia sido demitido por sua participação ativa
na campanha política. Em sua opinião minoritária, o juiz Black sustenta que a Lei
Hatch reduz a liberdade garantida constitucionalmente de milhões de funcionários
públicos que eram impedidos de contribuir com seus argumentos e sugestões para
a livre discussão de questões públicas. Os funcionários do governo são dessa forma
transformados em cidadãos de segunda classe, meros espectadores das discussões
que resultam em ações políticas referentes ao bem-estar público. Essa consideração
baseia-se numa visão plebiscitaria que concede os mesmos direitos e deveres a
todos os cidadãos, independentemente de sua posição na comunidade. Essa opinião
é em parte esposada pelo juiz Douglas, que considera inconstitucional reduzir as
atividades políticas dos funcionários públicos comuns. Contudo, o juiz Douglas
concorda com a maioria do tribunal quando expressa o receio de que os servidores
públicos em posições administrativas possam prejudicar o funcionamento regular
do setor executivo do governo, se puderem engajar-se irrestritamente em atividades
políticas. Aqui o "princípio funcional" é aduzido em apoio a regras especiais para
a situação particular do servidor público numa posição de responsabilidade. Na
opinião da maioria do tribunal, essa mesma consideração se aplica ainda mais
amplamente, de modo que o "princípio funcional" predomina. Subscrevendo a
maioria, o juiz Reed afirma que dois perigos surgiriam se os funcionários públicos
19. Ver Milton J. Esmein, "The Hatch Act: A Reappraisal", Yalc Law Journal, vol. 60, jun. 1951, p. 998,
sobre a fonte das instruções dos presidentes Cleveland e Roosevelt.
20. Ver idem, pp. 990-991, sobre uma lista das atividades políticas sob esses dois tópicos.
154
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO-NAÇÃO
21. Hans Rosenberg, Bureaucracy, Aristocracy and Autocracy, Cambridge, Harvard University Press,
1958, p. 142.
155
RE1NHARD BENDIX
criaram-lhes oportunidades para reformas administrativas e sociais. Assim, a ideia
da ordem ilustrada, tecnicamente competente por ação de funcionários do governo
de alto nível, estava associada na Prússia com o esforço para restringir o regime
arbitrário de um autocrata real e com a promoção de reformas, em oposição aos
privilégios estabelecidos da nobreza22.
Este é o cenário no qual o antigo liberalismo alemão defendia a ideia de que
os servidores públicos devem ser protegidos contra as medidas disciplinares
arbitrárias e as demissões injustificadas. Na primeira metade do século XIX, os
porta-vozes liberais advogavam aproteção constitucional dos direitos dos servido-
res públicos, a fim de compensar a antiga subserviência dos funcionários ao
monarca. Uma vez que os funcionários gozavam da proteção legal de sua posição,
estavam aptos a proteger o público contra éditos arbitrários do monarca ou das
ações ilegais de grupos privilegiados. Consequentemente, em contraste com a
Constituição americana, as primeiras constituições alemãs continham dispositivos
que garantiam a regulamentação legal do emprego público. Um servidor público
pode ser demitido de seu cargo, ou seu salário pode ser reduzido, apenas com base
na adjudicação apropriada de seu caso. A mesma orientação liberal também deu
origem à opinião de que os servidores públicos deviam ter permissão para servir
como membros do Parlamento. Essa opinião fundamentava-se na experiência das
assembleias legislativas do Sul da Alemanha (Landtage), antes de 1848. Deputados
cuja posição no serviço público era assegurada com base em garantias constitucio-
nais demonstraram independência em relação ao governo vigente e determinados
defensores da Constituição23. Mesmo na Prússia, houve ocasiões significativas
antes de 1848 em que os servidores declaravam seu julgamento independente, sob
o risco de uma demissão instantânea. E na ausência de instituições representativas,
alguns altos funcionários interpretavam tal independência desempenhando o papel
de uma oposição constitucional num Estado absolutista.
22. Esse breve resumo baseia-se em Otto Hintze, GcistundEpochcnderprcussischcn Gcschichte, Lcipzig,
Koehler & Amelang, 1943, especialmente pp. 25-33, 537 e ss., 566 c ss.
23. Fraenkel, op. cit., pp. 87-89. Reunindo todos os deputados que eram considerados servidores públicos
na Alemanha, uma pesquisa mostra que de 1/5 a mais da metade dos representantes em assembleias
legislativas sucessivas era de servidores públicos. Sua proporção baixou de 55% de todos os deputados
na Paulskirche de 1848. Desde então, a proporção dos servidores públicos entre os representantes do
Reichstag foi de 47% em 1871, 38% em 1887, 25% em 1912, e 21% em 1930. Isto inclui professores
universitários, professores e superintendentes das escolas secundárias, oficiais do exército, clérigos,
bem como servidores públicos. Para maiores detalhes, ver Karl Demeter, "Die soziale Schichtung dês
deutschen Parlaments seit 1848", Vicrtcljahrsschrift fur Sozial- und Wirtschaftsgeschichtc, vol. 39,
1952, p. 13 epassim. Após a Segunda Guerra Mundial, a proporção dos servidores públicos nos corpos
parlamentares da República Federal cresceu novamente, inicialmente por causa da falta de candidatos
adequados para o cargo público eletivo.
156
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO-NAÇÃO
24. Ver Fritz Hartung, "Studien zur Geschichte der preussischen Verwaltung", em Staatsbildcnde Krãfte
derNeuzeit, Berlin, Duncker & Humblot, 1961, pp. 248-254. Nas páginas que se seguem Hartung faz
um detalhado balanço das políticas referentes aos "funcionários políticos" no período de 1848-1918.
157
RE1NHARD BEND1X
"afastamento temporário" era usado para substituir funcionários recalcitrantes por
outros mais aceitáveis ao partido no poder, debilitando assim a independência do
serviço público e favorecendo mais seu sectarismo do que sua neutralidade. Depois
de 1933, o endosso político do regime transformou-se num requerimento positivo
do emprego público25. Essas vicissitudes não afetaram, contudo, a perspectiva
predominante.
Até hoje, os funcionários públicos podem exercer dupla função como legis-
ladores e porta-vozes de partidos, embora muitos argumentos a favor da proibição
dessa prática tenham sido propostos durante os debates alemães sobre essa ques-
tão26. Contudo, a política que permite aos funcionários servirem no Parlamento
permanece associada não só à crença nas liberdades políticas de todos os cidadãos,
independentemente de seu status, mas, mais especificamente, à ideia de que a
independência dos servidores públicos, politicamente protegida, não deve ser
prejudicada, pois é um esteio do Estado de direito. De forma semelhante, a
manutenção do Estado de direito permanece identificada com o serviço público,
cujos membros são nomeados vitaliciamente, protegidos contra mudanças de
posições que não representam a carreira exata equivalente ao cargo anterior,
protegidos contra demissão ou transferência arbitrária do serviço (exceto em casos
de "afastamento temporário"), e habilitados a uma adequada subsistência de si
mesmos e de suas famílias27. No cenário americano, essas condições não foram
nem de longe igualadas, e além disso a posição melhorada do servidor civil
americano não incluía nada parecido ao prestígio, à segurança c à ideologia de
apoio do cargo público alemão.
As implicações dessa diferença tornaram-se evidentes quando, no fim da
Segunda Guerra Mundial, o governo militar americano procurou aplicar os precei-
tos da Lei Hatch à reorganização do serviço público alemão. Na opinião dos
observadores alemães, essa tentativa parecia motivada pela suspeita americana em
25. A prova da independência política dos servidores públicos antes de 1914 é citada por Hartung, op. cit.,
que parece, contudo, subestimar (nas pp. 273-275) o grau em que os funcionários públicos eram
obrigados a "manter-se na linha" politicamente durante a República de Weimar. Para uma pesquisa
deste último problema, ver Theodor Eschenburg, Der Beamtc in Fartei und Parlament, Frankfurt,
Alfred Metzner Verlag, 1952, caps. 2-3.
26. Ver Werner Weber, "Parlamentarische Unvereinbarkeiten", em Archiv dês õffentlichen Rechts, vol.
58, 1930, pp. 208 e ss., sobre uma análise comparativa abrangente dos argumentos apresentados e a
legislação pertinente.
27. Ver Klaus Kroeger, "'Parteipolitische Meinungsàusserungen' der Beamten", em Archiv dês òffenlli-
chen Rechts, vol. 88, jun. 1963, p. 134 a respeito das citações jurídicas pertinentes. Esse artigo contém
nas pp. 121-147 uma completa, quando não bombástica, reafirmação das opiniões caracterizadas acima.
Há indicações de que essa opinião é em larga medida compartilhada pelo povo alemão. Ver Brian
Chapman, The Profession of Government, London, George Allen & Unwin, 1959, pp. 308-310.
158
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO-NAÇÃO
28. Ernst Kern, "Berufsbeamtentum und Politik", emArchiv dês õffcntlichcn Rechts, vol. 77, 1951/1952,
p. 108.
29. Sigo aqui o argumento apresentado em Idem, pp. 109-110. O mesmo volume doArchiv contém uma
réplica de Otto Kuester (nas pp. 364-366), na qual o autor argumenta contra a posição jurídica especial
dos servidores públicos como não mais justificável atualmente, mas nenhuma referência é feita ao
problema especial das atividades políticas por servidores públicos.
30. Uma pesquisa das opiniões e das várias propostas para uma legislação que corrija essas distorções
encontra-se em Eschenburg, op. cit., pp. 59-77. O autor examina as implicações das atividades políticas
pelos servidores públicos com inúmeros exemplos extraídos do contexto alemão, nocap. 4 dessa obra.
759
RE1NHARD BEND1X
entre política e administração, ele também acrescenta uma consideração que
revela a diferença básica entre a estrutura institucional alemã e americana. A
neutralização política
fortalece presumivelmente a homogeneidade interna do funcionalismo público [alemão]. Mas
então se pergunta se isso está realmente de acordo com as intenções do governo militar [ameri-
cano]. Pois eles estão interessados em primeiro lugar em eliminar a "segregação com caráter de
casta" do funcionalismo público privilegiado (Beamtenstand). A neutralização política do fun-
cionalismo conseguiu demonstrar que era um privilégio legítimo, contudo, ainda que a proibição
do cargo eletivo para o servidor público constitua uma diminuição de seus direitos como cidadão.
Pois essa neutralização também impede a possibilidade de que o funcionalismo seja invadido por
forças externas em sua própria província ("berufsfremde" Krãftef1.
Quando existe uma posição tradicional de privilégios especiais, a neutraliza-
ção política só aumenta a distância social e psicológica entre os funcionários e o
público que as reformas deveriam supostamente reduzir. Isto contrasta com o caso
americano, em que medidas semelhantes reforçam a "cidadania de segunda classe"
dos funcionários públicos. O contexto alemão tende, portanto, a transformar o
significado da neutralidade política, como observa Ernst Fraenkel3-1. Pois a proibi-
ção de ingressar nas atividades partidárias pode significar, com efeito, que o
servidor público alemão é instruído a demonstrar acentuada ênfase na neutralidade
de sua posição e nas obrigações especiais resultantes de seus privilégios legais.
Conseqúentemente, os servidores públicos muitas vezes alegam uma confiança e
autoridade especiais como funcionários do Estado. A seus olhos, a proibição das
atividades partidárias pode ser equivalente a uma depreciação autoritária da polí-
tica como tal e, portanto, "justifica" a ideia da isenção executiva dos controles
parlamentares que "apenas" refletem o partidarismo.
A palavra alemã para as obrigações dos funcionários públicos é, caracteris-
ticamente, Treuepflicht, ou cargo de confiança, lembrando uma antiga condição na
qual os servidores públicos eram servidores pessoais do monarca. Sob a influência
do romantismo político, essa ideia foi transformada no dever especial do funcio-
nário em relação ao Estado, e isso, por sua vez, foi interpretado como significando
que ele era o guardião especial do Staatsinteresse, o que podia significar qualquer
31. "Beamte ais Abgeordnete", em Ar Mv dcs óffcntlichcn Rcchts, vol. 75, 1949, pp. 108-100. Há,
naturalmente, outras opiniões. Ver, por exemplo, Eschenburg, op. cit., p. 67, no qual a neutralização é
considerada um perigo potencial, porque, na ausência de participação política, os servidores públicos
seriam politicamente ignorantes ou indecisos e poderiam ainda ser vítimas de "tendências equivoca-
das".
32. Ver Fraenkel, op. cit., p. 80.
760
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO-NAÇAO
coisa, da política do poder ao bem-estar público. Contra esse pano de fundo, não
é de surpreender que, para alguns, restringir as atividades políticas desses "guar-
diães públicos" pudesse parecer uma eliminação da política de um grupo que estava
claramente identificado com o público e com o interesse nacional.
A discussão precedente focalizou a atenção nas atividades políticas de funcio-
nários públicos em relação a sua posição social e legal. Tais funcionários são
impedidos de ter envolvimento com lealdades de parentesco, privilégios hereditá-
rios, e interesses de propriedade pelas condições de seu recrutamento, enquanto as
relações de autoridade entre eles são estipuladas em termos impessoais. Mas, uma
vez que isto é alcançado, torna-se necessário manter esses critérios impessoais do
emprego público contra novas formas de influência. Restrições impostas sobre as
atividades políticas dos servidores públicos são um exemplo desse tipo de salva-
guarda. O isolamento de funcionários das influências da política partidária torna-se
um atributo comum do Estado-nação, onde a separação do governo em relação à
sociedade é instituída sob condições de um moderno sistema de partidos plebi-
scitados. Mas cada Estado-nação é também afetado pelo momentum de aconteci-
mentos passados que lhe são característicos. A mesma ideia de reduzir as atividades
políticas dos funcionários públicos pode ter repercussões contrastantes, como nas
estruturas sociais alemã e americana. Sem atentar para os padrões de cultura
burocrática divergentes, não podemos entender o significado para cada sociedade
da burocracia como um tipo ideal de administração sob o Estado de direito33.
A exclusão de servidores públicos da participação direta em "partidarismo
importuno" é, contudo, apenas um aspecto do problema delineado anteriormente.
Mesmo quando a política e a administração são claramente distintas, uma questão
permanece em aberto: Até que ponto o processo administrativo pode ser isolado
de influências ou pressões que afetam a implementação das políticas?
Os administradores e o público
33. Uma análise mais completa da burocracia, a partir de uma perspectiva semelhante, encontra-se na obra
de Michel Crozier. The Burcaucralic Phcnomcnon, Chicago, University of Chicago Press, 1964.
34. Políticas organizadas segundo o princípio federativo apresentam problemas especiais, naturalmente,
161
RE1NHARD BEKD1X
tâncias deixa de ser uma luta pela distribuição de poderes soberanos, tornando-sc,
em vez disso, uma luta pela distribuição do produto nacional e por princípios
norteadores da administração governamental. Com a universalização da cidadania,
as demandas no governo e, portanto, nas atividades governamentais expandem-se
muito. Esse crescimento do plebiscitarianismo refletc-se no desenvolvimento de
partidos políticos em organizações de massa. Os Parlamentos transformam-sc de
um corpo de notáveis deliberativos, que representam ou dizem representar o
público em geral, num corpo de políticos profissionais que se identificam com um
partido político e representam seu eleitorado. No campo do emprego público, as
antigas restrições baseadas na experiência familiar e na posição social são gradual-
mente substituídas pela confiança nas qualificações de instrução e educação como
o único critério de seleção. Com essas mudanças, dá-se uma importante transfor-
mação da vida pública que se origina no desenvolvimento dos meios de comuni-
cação de massa e a gradual mas profunda intromissão da publicidade em esferas
previamente consideradas confidenciais e privilegiadas35.
O uso do termo "plebiscitarianismo" com relação aos funcionários públicos
é uma questão equivocada. No contexto eleitoral, o termo significa que todos os
cidadãos como indivíduos possuem o direito de votar e concorrer às eleições. Para
estabelecer esses direitos, os poderes corporativos - os "interesses intermediários"
de Lê Chapelier-foram destruídos. Esse legado anticorporativista ajuda a explicar
o fato de as constituições ocidentais não terem, até recentemente, previsto a
existência de partidos políticos, pois estes foram considerados novos poderes
corporativos que intervinham entre os indivíduos e o Estado-nação. O mesmo
mas eles não invalidam essa caracterização geral. Comumente, as disposições constitucionais prevêem
a divisão de poderes entre o centro federal e o Estado ou as autoridades provinciais e locais, com certas
autoridades de âmbito nacional permanecendo com o centro. Embora complexas disputas ocorram com
referência a essa divisão, qualquer alteração importante requer emendas constitucionais, c essas são
relativamente raras.
35. Um breve sumário só pode apontar a complexa transformação de uma política de notáveis com sua
ênfase na representação funcional numa política de partidos plebiscitários. Ver a análise dessa
transformação n u m a base comparativa em Gerhard Leibholz, Strukturproblcme der moderncn Derno-
kratic, Karlsruhc, Verlag C. F. Mueller, 1959, pp. 78 e ss. Ver também a brilhante análise de Jiirgen
Habermas, Strukturwandcl der Õffcntlichkcit, Neuwied, Hermann Luchterhand, 1962, passim, que
examina em especial as consequências culturais e psicossociais da "universalização" da vida política.
Com respeito ao desenvolvimento americano, essa transformação ocorreu muito mais cedo do que no
continente europeu ou na Inglaterra, e, como observa o autor americano, os partidos políticos não
exercem uma disciplina sobre os representantes eleitos que seja, sob qualquer condição, comparável
àquela exercida pelos partidos europeus. Portanto, embora o político como notável tenha desaparecido
mais cedo nos Estados Unidos do que na Europa, alguns aspectos de uma política de notáveis ali
perduram, porque alguns políticos individuais conseguiram construir eleitorados seguros próprios que
os habilitam a desafiar a liderança de seu próprio partido, fenómeno que é familiar onde ele tem uma
base regional mais geral, como no Sul.
762
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO-NAÇÃO
163
RE1NHARD BEND1X
parece que avançamos firmemente para uma fase da ordem social em que todas essas relações
derivam do livre consentimento de Indivíduos3'1.
Essa formulação deve ser alterada se nos referirmos ao cidadão como um
indivíduo necessitado com direito à assistência pública. Nesse caso, a autoridade
pública reconhece seu direito social a uma subsistência mínima. Podemos adotar
a formulação de Maine segundo a qual:
Começando como que de um marco da história, de uma condição de sociedade na qual
todas as relações pessoais derivam do livre consentimento de indivíduos, parece que avançamos
firmemente para uma fase da ordem social em que as desigualdades sociais, políticas e
económicas que afetam a capacidade legal dos indivíduos se tornaram de preocupação pública
suficiente de maneira a conduzir a uma redistribuição corretiva dos direitos e deveres da
cidadania por intermédio da legislação e da administração.
Essa "redistribuição corretiva" através do governo exemplifica o aumento
das atividades governamentais de uma maneira geral, uma vez que elas afetam uma
redistribuição de direitos e deveres, mesmo que esse não seja seu propósito
explícito. Grupos de interesse ou partidos políticos são formados e se tornam ativos
como causas e como consequências dessa proliferação de governo. Podemos,
portanto, reexprimir a proposição precedente da seguinte maneira:
Partindo como que de um marco da história, de uma condição de sociedade na qual a
reciprocidade de direitos e deveres tem sua origem no livre consentimento de indivíduos, parece
que avançamos firmemente para uma fase da ordem social na qual essa reciprocidade tem sua
origem nas relações de pessoas que derivam de ações de governo. Em consequência, os cidadãos
se organizam a fim de modificar em proveito próprio os direitos e deveres que são afetados por
açóes das autoridades públicas.
Portanto, as atividades governamentais, que se desenvolvem em resposta a
demandas públicas, encorajam por sua vez a formação de grupos baseados nos
princípios do interesse comum e na "capacidade de organização", mais do que no
"privilégio herdado".
REPRESENTAÇÃO POR INTERESSES ORGANIZADOS37. A proliferação de in-
teresses organizados deu origem a uma proliferação de termos "agarrados" a esse
36. Henry Maine, Ancient Law, Everyman's Library, New York, E. P. Dutton, 1931, p. 99.
37. Esta frase é extraída do título da obra de Joseph Kaiser, Dic Rcpràscntation organisicrtcr Interessai,
Berlin, Duncker & Humblot, 1956. Apesar de uma interpretação um tanto corporativista, esta é a mais
ampla análise comparativa até a presente data.
164
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO-NAÇÃO
38. Um indício incidental mas marcante desse ponto é a discrepância entre o montante de casos judiciais
tratados pelo sistema judiciário comparado com a adjudicação administrativa. "A cada ano a Adminis-
tração de Veteranos [Americana] julga em seu âmbito processual (a Junta de Apelação dos Veteranos)
quase a metade do número de casos julgados por todo o sistema judiciário federal. Mas o julgamento
informal conduzido pela junta num ano soma mais que trinta vezes o número de casos julgados pelo
sistema judiciário federal." Ver Peter Woll, Administrativc Law, Berkeley, University of Califórnia
Press, 1%3, p. 7.
165
RE1NHARD BENDIX
bilidade administrativa" pode tomar a forma de consulta aos interesses organizados
mais diretamente envolvidos. Aqui, a responsabilidade ganha o sentido de atendi-
mento ao "público". Isso pode significar tão-somente a percepção do administrador
daquilo que o público quer ou necessita, mas tais estimativas se obscurecem nas
ideias de quais devem ser os desejos do público. Este é um campo traiçoeiro, que
muitos administradores evitarão ou evitariam se soubessem estar pisando nele. Há
o risco das repercussões negativas por parte do público e da legislatura, se a
estimativa do funcionário estiver drasticamente errada. Conscqúentemente, os
administradores procuram o amparo dos julgamentos arbitrários, que geralmente
orientam as diretivas políticas e que a complexidade organizacional do governo os
obriga a tomar.
Eles encontram esse amparo nas opiniões e no conselho especializado que
apenas os interesses organizados estão dispostos a oferecer. A essa altura há uma
notável interação entre "Estado" e "sociedade". Num amplo estudo do Government
by Committee, K. C. Wheare declara, com referência às práticas inglesas:
Às vezes acontece que, somente após ouvir as partes interessadas e reuni-las para ouvirem
uma à outra e talvez negociar um pouco entre si, o Departamento pode obter a orientação de que
precisa. Com os governos empenhados em planejar e o controle da vida económica, é essencial
obter a cooperação daqueles que são afetados pela política do Governo:'g.
Numa discussão paralela das condições americanas, somos informados que
os comités consultivos raramente são estabelecidos com o propósito apenas de uma
deliberação desinteressada. As pessoas que trabalham nesses comités geralmente
esperam permanecer em contato com os processos de fazer política do programa
sobre o qual foram consultadas, e "essa extensão do relacionamento muito além
do ponto do parecer real se encaixa nitidamente no propósito real mas não explícito
do administrador de fortalecer e validar seu programa e o apoio para este"40.
Enfatizando essa busca de apoio, o autor reconhece a função conciliadora do
administrador que "aceitou a tarefa de intermediário nas várias reivindicações das
quais o legislador desistiu"41.
Há indícios, por outro lado, de que a negociação ou consulta com autoridades
públicas tem efeitos importantes sobre os próprios interesses organizados. Numa
39. K. C. Wheare, Government by Committee, Oxford, Clarendon Press, 1955, p. 53.
40. Mort Grant, "The Technology of Advisory Committees", em Cari Friedrich e Seymour Harris (eds.),
Public Policy, Yearbook of lhe Graduate School of Public Administration, Harvard University,
Cambridge, Harvard University Press, 1960, vol. X, p. 94.
41. Idcm, ibidem. Notar também essa mesma tónica nas análises de Norton Long, The Polity, Chicago,
Rand McNally & Co., 1962, cap. 4.
766
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO-NAÇAO
carta reveladora, o professor Arnold Brecht explicou que a obrigação expressa dos
ministros alemães de consultar-se apenas com representantes das federações de
grupos de interesse (as assim chamadas associações de ponta), teve início depois
de 1918, quando cada cidadão ou associação local dirigia suas reivindicações ou
desejos pessoalmente ou por escrito aos ministérios e à Chancelaria do Reich. O
propósito desse regulamento não era dar reconhecimento privilegiado às federa-
ções, mas evitar a inundação do governo. Assim, considerações inteiramente
processuais e a preocupação com a eficiência tinham o efeito de encorajar as
federações a articular várias reivindicações locais antes de contatar o governo. Não
é preciso invocar aqui algum propósito sinistro ou teoria conspiratória. É um
exemplo especialmente claro no qual considerações inteiramente formais podem
aumentar o poder dos grupos federados e de seus funcionários-chave, e assim ter
um efeito importante na estrutura dos interesses organizados42.
A consulta a interesses organizados torna-se em si mesma um artigo de
política. Nas palavras do Comité Haldane sobre a Máquina do Governo:
A preservação da total responsabilidade dos ministros pela ação executiva não é garantia,
em nossa opinião, de que o curso da administração que eles adotam assegurará e manterá a
confiança pública, a menos que seja reconhecido como uma obrigação dos departamentos
valer-se eles mesmos do conselho e assistência dos corpos consultivos assim constituídos para
tornar disponível o conhecimento e experiência de todos os setores da comunidade afetados
pelas atividades do Departamento 41 .
42. A carta de Brecht é citada em Wilhelm Hennis, "Verfassungsordnung und Verbandseinfluss", Politis-
chc Viertcljahrschrift, II, 1961, p. 28.
43. Citado em Political and Economic Planning (PEP), Advisory Committccs in British Government,
London, Allen & Unwin, 1960, p. 6.
44. Ver Wheare, op. cit., p. 32 e PEP Report, op. c/í., p. 16. Os comités consultivos são, é claro, apenas
um dos muitos contatos entre os funcionários públicos e os interesses organizados. Um resumo do
alcance e da variedade de contatos entre funcionários públicos e cidadãos individuais, bem como com
grupos organizados, encontra-se no Report of lhe Committee on Intermediaries, Cmd. 7904, London,
H.M.S.O., 1950. Num país de 53 milhões de pessoas, as agências analisadas lidam com um excesso de
19 milhões de requerimentos anualmente (idcm, p. 8).
767
REINHARD BEND1X
funcionários de interesses organizados têm uma experiência social semelhante e,
aparentemente, um entendimento tácito das propriedades de seu relacionamento,
que os ajuda a distinguir as questões de política das questões de administração45.
As mesmas tendências aparecem em outras partes de formas diferentes. A
Constituição da República Federal da Alemanha não reconhece a existência de
interesses organizados. Mas os manuais de procedimento (Geschãftsordnungen)
dos principais ministérios estabelecem formalmente a consulta às principais asso-
ciações na preparação inicial das moções legislativas pelo governo federal. Comi-
tés consultivos são outro artifício reconhecido para canalizar as influências
recíprocas entre funcionários e associações. Além disso, o chanceler Adenauer
recebeu pessoalmente altos funcionários dos principais interesses organizados,
violando desse modo os procedimentos formais do governo federal. Esse tipo de
"democracia-chanceler" não só milita contra a responsabilidade ministerial no
executivo, mas também prejudica as funções constitucionais do Parlamento46.
Nos Estados Unidos, questões de organização e procedimento no ramo
executivo são reconhecidas pelos tribunais como pertencentes ao campo do
arbítrio administrativo. Assim, o procedimento dos tribunais administrativos, as
designações executivas de funcionários administrativos, e o funcionamento de
comités consultivos podem, de várias maneiras, levar em conta as representações
dos interesses organizados. Quando os poderes legislativos foram delegados a
grupos privados, os tribunais insistiram cm que a responsabilidade final perma-
necesse nas mãos dos funcionários públicos, embora na prática isso tenha signi-
ficado que os atos administrativos resultantes se basearam no consenso entre os
grupos de interesses e os funcionários públicos formalmente responsáveis47.
Desse modo, o contato frequente e íntimo entre os funcionários públicos e os
interesses organizados é uma parte aceita do processo administrativo. Nesse
contexto, a regulamentação legal de "conflitos de interesses" procura isolar os
administradores de influências que possam interferir com sua implementação de
diretivas políticas.
45. Ver, por exemplo, S/rRaymond Street, "Government Consultation w i t h Induslry", Public Aclminislra-
tion, vol. 37, 1959, p. 7, e S. E. Finer, "The I n d i v i d u a l Responsahilily ol' Minislers", Public Adminis-
tration, vol. 34, 1956, pp. 377 e ss. Ver também as observações de Henry E h r m a n n e Norman Chester
em Henry Ehrmann (ed.), Intcrcst Groups on Four Continenls, Pittsburgh, Universily of Pittsburgh
Press, 1958, pp. 6-7, 285, epassim.
46. Ver a excelente discussão desses pontos por Wilhelm Hennis, op. cit., pp. 23-35.
47. Ver Avery Leiserson, Administrativa Rcgiilation, Chicago, University of Chicago Press, 1942, cap. 9
epassim. Ver também a utilíssima pesquisa do mesmo autor, "Interest Groups in Administration" , em
Frilz Morstein-Marx (ed.), Elcments of Public Administration, New York, Prentice-Hall, Inc., 1946,
pp. 314-338.
16S
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO-NAÇÃO
48. Minha discussão bascia-se em Roswell B. Perkins, "The New Federal Conflict-of-Interest Law",
ilarvard Law Rcview, vol. 76, abr. 1963, pp. 1113-1169.
769
RE1NHARD BEND1X
capítulos anteriores. O desenvolvimento simultâneo de uma autoridade de âmbito
nacional, um corpo de funcionários públicos formalmente isolados das influências
"externas", e as tendências plebiscitarias no domínio político são acompanhados
pelo desenvolvimento de interesses funcionalmente definidos e organizados. Os
esforços dos funcionários públicos para obter apoio, informação e orientação dos
"públicos" relevantes combinam-se ponto por ponto com os esforços de interesses
organizados para influenciar as ações do governo, assim como para beneficiar seus
membros ou clientes49. Pode ser considerado um corolário da autoridade de âmbito
nacional, de um lado, e a proliferação de interesses organizados para influir sobre
essa autoridade, do outro, que nos Estados-nações ocidentais o consenso c elevado
em seu nível nacional. Nessas comunidades políticas, ninguém questiona seria-
mente o fato de que funções como tributação, conscrição, constrangimento legal,
a conduta dos negócios estrangeiros e outras pertencem (ou devem ser delegadas)
ao governo central, mesmo que a implementação específica de muitas dessas
funções seja controvertida5".
Embora esse alto grau de consenso nacional seja paradoxal, as comunidades
políticas nacionais são caracterizadas pelo contínuo exercício da autoridade cen-
tral. A continuidade é garantida pela despersonalização da administração governa-
mental, de modo que ela se tornou uma matéria de pouca monta em quase todos os
postos-chave, para os quais os indivíduos são nomeados. A continuidade é também
assegurada pelo consenso nacional sobre as funções essenciais do governo. Con-
seqiientemente, um governo nacional do tipo moderno representa um princípio
mais ou menos autónomo da tomada de decisão e da implementação administrati-
49. Que eu saiba, não temos nenhum estudo comparativo abrangente do grau em que esses "públicos" são
organizados. A título de ilustração, cabe, contudo, citar as estimativas de S. E. Finer para a Inglaterra.
De acordo com Fíner, 90% de todos os fazendeiros pertencem ao Sindicato Nacional dos Fazendeiros,
80% de todos os diretores ao Instituto de Diretores, 85% de todas as firmas manufatureiras à Federação
de Indústrias Britânicas, 85% de todos os médicos à Associação Médica Britânica, 80% de todos os
professores ao Sindicato Nacional de Professores, mas apenas 48% da força de trabalho aos vários
sindicatos. Ver S. E. Finer, "Interest Groups and lhe Political Process in Great Britain", em Ehrmann,
op. cit., pp. 118-124.
50. Admitidamente, essas matérias são instáveis, e existem diferenças significativas na civilização ociden-
tal. Ademais, ninguém pode duvidar das circunstâncias em que essa hipótese fundamental é questio-
nada, como na guerra civil americana, a ampla oposição ao governo constitucional na Alemanha durante
a República de Weimar, ou mais recentemente, no conflito entre o governo nacional na França e o
exército francês estacionado na Argélia. Pondo de parte esses casos extremos, o consenso sobre as
funções nacionais do governo, ou o que E. A. Shils chama de "disposição civil", é compatível com uma
separação altamente desenvolvida de poderes e a proliferação de competição e conflito. Ver a análise
geral em termos culturais de E. A. Shils, "The Theory of Mass Society", Diogcncs, vol. 39, 1962, pp.
45-66, e a análise institucional do sistema político americano de Henry Ehrmann, "Funktionswandel
der demokratischen Institutionen in den USA", em Richard Lòwenthal (ed.), Die Dcmokratie im
Wandel der Gescllschaft, Berlin, Colloquium Verlag, 1963, pp. 29-55.
170
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO-NAÇÃO
va51. Mesmo para um teórico do grupo como Emile Durkheim, somente o Estado,
nas condições modernas, pode garantir a "existência moral" do indivíduo. O Estado
pode ter esse efeito, porque ele é "um órgão distinto do resto da sociedade"52.
Provavelmente, as pessoas aceitam a jurisdição total do Estado, porque acreditam
na realização e revisão ordeira de uma total reciprocidade de direitos e deveres.
Podemos dizer que essa crença é expressa nas reivindicações que os indivíduos e
os interesses organizados fazem ao Estado. Mas se é verdade que o consenso com
respeito às instituições que podem satisfazer essas reivindicações é elevado, é
também verdade que a multidão e diversidade das reivindicações podem tornar
impossível qualquer política coerente. Com efeito, mesmo o interesse em formular
tais políticas pode declinar quando qualquer identificação do "bem-estar público"
é obrigado a funcionar cm detrimento de alguns interesses. Um alto grau de
consenso no nível nacional pode, portanto, ser totalmente compatível com uma
decrescente habilidade para alcançar acordo em questões de políticas nacionais.
Exceto em emergências, o consenso no nível nacional possui, portanto, uma
qualidade impessoal que não satisfaz ao persistente anseio por fraternidade ou
sentimento de solidariedade.
Esse anseio tampouco é satisfeito em outros níveis de formação de grupo. De
fato, o desenvolvimento de um consenso de âmbito nacional foi acompanhado por
um declínio da solidariedade social. Classes, grupos de status, e associações formais
derivam da junção de "interesses ideais e materiais". Contudo, nenhum deles
envolve um consenso comparável à aceitação por todos os cidadãos da ideia de que
o governo nacional possui autoridade soberana. Esta não é uma questão nova. Os
teóricos sociais e políticos deploraram e criticaram a perda da solidariedade social
desde o início da moderna comunidade política. Quando escritores como Tocque-
ville e Durkheim sublinham a importância de "grupos secundários", fazem-no na
crença de que esses grupos podem contrabalançar tanto o isolamento de cada homem
em relação a seus contemporâneos como a centralização do governo. Todavia, a
maior parte dessa análise permanece num nível cm que considerações de política e
um elemento de nostalgia se fundem com considerações de fato, especialmente nos
contrastes hostis sempre recorrentes entre tradição e modernidade53.
51. Nem a vida política medieval, nem os regimes absolutistas do século XVIII, nem ainda muitas das
"áreas cm desenvolvimento" do mundo moderno tiveram ou têm um governo desse tipo, porque a
adjudicação e a administração eram e são descentralizadas, pessoais, intermitentes, e sujeitas a uma
remuneração para cada serviço governamental.
52. Emile Durkheim, Professional Ethics and Civic Morais, Glencoe, The Free Press, 1958, pp. 64, 82.
53. Para um levantamento dessa linha de pensamento, ver Robert A. Nisbet, The Qucst for Community,
New York, Oxford University Press, 1053.
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RE1NHARD BEND1X
Apesar dos eminentes nomes associados a ele, devemos descartar esse legado
intelectual. A "grande transformação" que conduz à comunidade política moderna
torna inevitável o declínio da solidariedade social. Nenhuma associação baseada
numa reunião de interesses ou em filiação étnica e religiosa pode recapturar a
intensa reciprocidade de direitos e deveres que foi própria das "jurisdições autó-
nomas" de uma sociedade de Estado. A razão é que nessas "jurisdições", ou
"comunidades de lei" (Rechtsgemeinschafteri) como as chamava Max Weber, cada
indivíduo é envolvido numa sociedade de "ajuda mútua" que protege seus direitos
apenas se ele cumpre seus deveres. Essa grande coesão dentro das ordens sociais
cobra um alto preço em subordinação pessoal. Acima de tudo, ela foi uma
contrapartida à falta de integração de uma multiplicidade de jurisdições no nível
político "nacional". Nesse aspecto, os regimes absolutistas alcançaram uma inte-
gração maior através da administração real centralizada e da lealdade do povo ao
rei, embora os privilégios apropriados pela Igreja e a aristocracia também sujeitas-
sem o homem comum ao regime autocrático do senhor local. Onde esses privilégios
substituíram as "comunidades legais" dos primeiros tempos, os grupos privilegia-
dos conseguiram uma coesão social considerável, mas o povo foi privado da
proteção legal c costumeira de que gozava e, por conseguinte, excluído de sua
participação passiva anterior na reciprocidade de direitos e obrigações14. As comu-
nidades políticas modernas conseguiram uma centralização do governo maior do
que os sistemas medieval ou absolutista, e esse resultado foi precedido, acompa-
nhado ou seguido pela participação de todos os cidadãos adultos na vida política
(com base na igualdade formal do direito ao voto). Mas um preço desses resultados
é a menor solidariedade de todos os "grupos secundários".
Esse "preço" é um subproduto da separação entre sociedade e governo na
comunidade política moderna. Considerando que a solidariedade baseara-se na
participação do indivíduo numa "comunidade legal" ou em sua associação num
grupo de status privilegiado que possuía certas prerrogativas governamentais, ela
deve resultar agora da estratificação económica da sociedade, auxiliada pela
igualdade de todos os cidadãos adultos perante a lei e no processo eleitoral.
Nos sistemas legais do velho tipo, toda lei aparecia como um privilégio de indivíduos ou
objetos particulares ou de constelações de indivíduos ou objetos particulares. Esse ponto de vista
opunha-se, é claro, àquele em que o Estado aparece como uma instituição coercitiva de
54. Tocqueville tende a obscurecer essa distinção identificando essa reciprocidade nas antigas sociedades
territoriais da Europa medieval com a posterior simbiose da ordem absolutista e do privilégio
aristocrático, embora indique com presteza a tendência do absolutismo de solapar a posição aristocrá-
tica.
772
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO-NAÇÃO
abrangência total. O período revolucionário do século XVIII produziu um tipo de legislação que
procurava extirpar toda forma de autonomia associativa e particularismo legal. [...] Isso foi
efetuado por dois arranjos: o primeiro é a autonomia de associação universalmente acessível,
estreitamente limitada e legalmente regulamentada, que pode ser criada por todo aquele que
desejar fazê-lo; o outro consiste na garantia a todos do poder de criar sua própria lei mediante
o engajamento em certos tipos de transações legais privadas 53 .
Resumo
173
REINHARD BENDIX
A primeira parte do capítulo exemplifica o uso de conceitos de aplicabilidade
limitada. Nos estudos de mudança, geralmente definimos as estruturas sociais por
uma lista de atributos que se distinguem uns dos outros. Tais definições são pontos
de referência indispensáveis que nos habilitam a afirmar de forma sumária a
ocorrência de uma mudança como a da administração patrimonial para a burocrá-
tica. Contudo, cada estrutura possui um grau de flexibilidade que uma mera
listagem de seus atributos distintivos tende a obscurecer. Esse elemento de flexi-
bilidade pode ser analisado, contudo, se cada atributo for concebido como uma
questão sobre a qual os homens disputam e sobre a qual, depois de um tempo,
chegam a acordos temporários. Os historiadores lidam com essas contendas e
acordos como sequências de acontecimentos, enquanto os sociólogos analisam seu
denominador ou padrão comum. No caso da administração patrimonial, esse
denominador comum é a tensão entre a arbitrariedade sancionada do dirigente
supremo e a inviolabilidade da tradição. No caso da burocracia, é a tensão entre a
equidade, procurada por regulamentos aplicáveis universalmente, e a equidade,
procurada por dar atenção às particularidades do caso a ser decidido. Vimos que
essas tensões características refletem-se nas condições de emprego que distinguem
a administração burocrática da patrimonial.
A ênfase nessa distinção é suplementada na segunda parte do capítulo por
análises que consideram o Estado-nação e sua burocracia como dadas, mais do que<