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Universidade Federal de Uberlândia

História da Filosofia Antiga I — Turma F


João Pedro Cavalcante — 01191FIL253

O ser ou o existir possuía diversos significados para Sócrates e suas


concepções sobre a alma e como vem-a-ser a alma. O verbo grego “gignesthai”
significava “tornar-se”, “virar-a-ser”, “nascer”, “existir”; todas estas definições e
conceitos cabem nas hipóteses que Sócrates apresenta, por intermédio de Platão,
para “tentar provar” que a alma é imortal, abordados principalmente em “The Case
for Immortality” [69e6 - 72e1] no Fédon, o diálogo que se passa durante o último dia
de Sócrates e retrata o filósofo contemplando e discutindo com seus pupilos sobre a
natureza da vida e da vida após a morte - momentos antes de sua própria.

As hipóteses levantadas foram aprofundadas por meio de quatro argumentos.


O primeiro deles é o argumento dos opostos: se tudo o que existe foi gerado e todas
as coisas nascem e morrem, tudo que é está sempre em constante mudança, tudo
se transforma e possui um oposto, um estado contrário; por exemplo, o conceito de
“feio” somente existe porque conhecemos o que é “belo”, o que está “certo” somente
pode ser definido assim se houver o conceito do que está “errado”, o que é
“pequeno” somente é perceptível em relação ao que é “grande”, e assim por diante.
Esse primeiro argumento propõe que estas mesmas concepções de
“princípios opostos”, de “causalidade” e “movimento” e de “geração e corrupção” se
aplicam ao corpo e à alma e ao processo de viver e morrer correlativamente, de
forma que haveria de existir “alguma coisa” ou algum “processo” intrínseco ao ser
mesmo após a morte.

Sócrates afirmava que essa prática filosófica era mais “verdadeira” pois se
tratava do “verdadeiro sentido da filosofia” - ser uma espécie de “exercício de
morrer”, isto é, contemplar a existência e a morte com a consciência de que o
resultado final do processo de viver é morrer, e que a real concretização e
compreensão de nossas ideias se dá apenas “após o fim da vida”, ou apenas fora
deste “mundo material”. Assim como a maioria das pessoas desencarnadas
provavelmente se põem a buscar seus ancestrais e entes queridos no Hades, o
objetivo do amante da sabedoria deve ser buscar a verdade e conhecer as coisas
“por si mesmas”, tanto assim, no mundo inteligível dos mortos, quanto no mundo
dos pensamentos “purificados”, separados dos sentidos físicos.

O real significado e as reais virtudes da vida só poderiam, então, transcender


quaisquer concepções do que temos como um “conhecimento verdadeiro” e
quaisquer tentativas de determinar quais prazeres devemos ou podemos satisfazer
e que sacrifícios ou boas ações devemos praticar; a percepção da realidade através
dos instrumentos e dos sentidos corporais não é precisa e não é suficiente para
definir ou se conectar com esta “sabedoria verdadeira” - se é que esta pode ser
apreendida - e a real atividade filosófica possuiria definições que “fugiriam à prova”
e ela não estaria suscetível à lógica e muito menos à explicação por meio de
recursos míticos.

Mas, ainda assim, segundo esta defesa, a filosofia deve priorizar as virtudes
que dizem respeito à alma, já que o conhecimento adquirido por meio dos sentidos
e da percepção é errôneo e impreciso, e somente o pensamento pode atingir
qualquer estado de apreensão e real percepção do mundo - e as condições para
que o pensamento seja um instrumento ideal para a sabedoria precisam, de certa
forma, que a alma “se isole da mediação dos sentidos” e das “perturbações”
decorrentes dos mesmos (nossas aflições, nossas paixões, nossos prazeres,
nossos desejos).

Dado que não possuímos este conhecimento absoluto - não por intermédio
das experiências físicas - o melhor caminho seria, então, partir daquilo que
podemos apreender e conhecer, ainda que somente aproximada e
incompletamente, e empenharmo-nos nas práticas que buscam a “verdade” pelo
pensamento sem os obstáculos e impedimentos dos sentidos, ou seja, desenvolver
na mente um processo de “purificação”, treinar um pensamento “absoluto”, em um
estado de meditar e contemplar as coisas que são “por si mesmas”, abstraindo a
mente e a alma, do mundo sensível. Em outras palavras, talvez “ser o melhor que
se pode ser” nesta vida, visando que nossa existência e nosso “vir-a-ser” tem como
resultado final uma “emancipação da alma das relações com o corpo”.
Sócrates define assim a morte, na Defesa da Filosofia, como uma “libertação
e separação da alma” - fazendo analogia aqui à ideias tradicionais órficas e
pitagóricas que diziam que o corpo aprisiona a alma e que precisamos nos purificar
para livrarmo-nos desta prisão. Esse “processo de libertação” e “purificação” da
alma seria a condição ideal para se ter acesso à “verdadeira sabedoria”.
O filósofo distingue esse “exercício de morte” do “morrer” e do “estar morto”
partindo da concepção de que “purificar” o pensamento, possuir autonomia em
relação aos prazeres e desejos e priorizar “os aspectos da alma” ou da nossa
“essência” é assemelhar-se a ela, tornando-nos mais próximos e mais aptos de
obter a “sabedoria” e compreender as ciências da alma. Ele aponta também que o
processo da morte não marca o “ponto final da vida”; o “estar morto” seria apenas o
resultado final do processo de “morrer continuamente”; seria este apenas o ponto
em que a alma se isola do corpo, e cada um passa a estar “em si por si mesmo”; e
este resultado seria concomitante aos valores e virtudes conduzidos e construídos
pelo ser em vida.

Se a alma ou a nossa “essência” existe por intermédio do corpo material, e se


o que existe somente existe por tornar-se “alguma coisa”, tornando-se “alguma
coisa”, ela foi antes “coisa nenhuma”, ou seja, o argumento tratando da imortalidade
da alma afirma que ela está sempre num ciclo de geração e corrupção, de vida e
morte; de tornar-se e corromper-se; de mover-se e não-mover-se; de nascimento e
renascimento; sempre em estados opostos.
Sócrates utiliza do conceito de metempsicose, a teoria da transmigração da
alma - que já era uma crença antiga mantida pela antiga seita dos Mistérios - e a
submete a um exame mais racional por meio de argumentos, estabelecendo,
obviamente, que qualquer análise sobre a imortalidade deveria ser “delimitada
dentro do que é plausível”. Este primeiro, o argumento dos opostos, dividido em
duas ideias centrais, coloca primeiramente que “as almas dos mortos existem no
Hades”, e que elas “existem ou permanecem em alguma forma ou em algum lugar
de onde renascem”, ou seja, a alma existiria, sim, após a morte e poderia retornar a
viver, ciclicamente. Sócrates afirma que “os vivos provêm dos mortos” (e que “as
almas existem no Hades”), e que isso somente seria possível se já viveu-se
anteriormente, ou seja, se pressupomos que “estar vivo” é o estado de “união do
corpo com a alma”, e que depois da morte a alma separa-se do corpo, então é certo
que alma e corpo existem separadamente, e que a alma existe após a morte, fora
do corpo, sendo “alma em si mesma”.

O argumento propõe, então, a existência deste “devir cíclico”, um movimento


reversível, simétrico e perfeito, definindo a vida e a morte como “opostos
correlativos”, pertencentes a um único processo. Toda mudança ou transmutação
ocorridas na natureza pertencem a esse estado cíclico, e para cada estado em que
uma coisa se encontra existe outro estado que é análogo a ele, e que se relacionam
oposta e simetricamente. Ou seja, “um devir que é contínuo e cíclico pressupõe a
existência de outro estado oposto correspondente ao primeiro”; o que consideramos
“alto”, como já foi dito, só pode ser perceptível como alto em relação a algo que é
“baixo” ou “menor”, há de haver uma correlação entre os dois opostos.
Os opostos são extremos, um em relação ao outro, e Sócrates investiga se
um extremo apenas pode se originar a partir do outro, e o que há de subjacente na
transformação destes extremos - algo deve “permanecer” ou “remanescer” em
qualquer processo de transformação que parte de opostos, ou seja, “o subjacente” é
aquilo que permanece após o processo de mudança, de movimento, de gradação e
de corrupção. Subsequentemente, o “estar vivo” provém do estado oposto
correlativo, “estar morto”, e vice-versa.

“Todos os opostos são cíclicos” - argumenta, aqui, Platão - e “se todos os


opostos não fossem cíclicos, então todos terminariam tendo a mesma forma”. Mas,
“todas as coisas não possuem a mesma forma” - ele conclui - “então os opostos são
cíclicos”.
Todas as coisas naturais, então, se transformam e não se corrompem de
fato; há de haver um “equilíbrio” e uma “harmonia” orgânica na natureza para que
ela não fique “manca. Há de haver na natureza, assim como em todas as coisas
vivas, o processo de “reviver”; um “processo oposto” análogo ao outro - os opostos
provém dos opostos; os vivos provém dos mortos por meio do retorno das almas
aos corpos físicos, e os mortos provém dos vivos que, com o tempo, têm seus
corpos gradativamente destruídos, mas não as suas almas.
Se tudo permanecesse no mesmo estado torpe da morte, então todas as
coisas acabariam por não mais existirem. Se os seres vivos passassem apenas pelo
processo de adormecer, não existiria, então, o ato oposto de despertar, e estariam
todos fadados ao sono eterno.

A filosofia platônica discorre essa teoria de forma dualista, afirmando que a


sabedoria, o conhecimento e esta “reminiscência” sobre todas as coisas existem de
forma inata na alma, e que dela todas as ideias e tudo o que torna-se, é e deixa de
ser, provém.
Se retomamos que a alma é indestrutível e imortal e que somente podemos
obter uma “sabedoria verdadeira” por meio dela - ou de buscar estar o mais próximo
possível dela, purificando nossos pensamentos e nosso corpo - e se podem as
almas retornarem ao mundo sensível, ela já “conhece” ou já “teve conhecimento” de
todas as coisas “tanto da Terra quanto do Hades”, podendo assim “recordar” ou
“reter” qualquer conhecimento obtido através do aprendizado, ou seja, qualquer
coisa que aprendemos e tomamos como verdade é uma “reminiscência” (o segundo
argumento para o caso da imortalidade) da alma ou da consciência observando e
recordando tal verdade. Esta “sabedoria” poderia sobreviver e subsistir
independentemente de sua forma e em ambos esses “mundos”, e poderiam ser
“apreendidos” ou “recordados” por meio da busca pelo “conhecimento da verdade”,
da “contemplação do que é belo” e do “discernimento do que é bem e do que é mal”.

Os conhecimentos “inatos ao ser”, então, seriam uma espécie de “recordação


do subconsciente” de nossa consciência individual ou universal - algo que seria
“subjacente”, que permaneceria antes, durante e após as múltiplas experiências
sensíveis da alma no campo físico; em outras palavras, as diversas “encarnações”.
Tal ideia de que a imortalidade existe de alguma forma e que a alma se
reanima em alguma espécie de força vital ou permanece em uma espécie de
“paraíso” ou “inferno” está e sempre esteve presente na crença e na cultura dos
seres humanos, principalmente por meio dos ensinamentos teológicos de religiões
indígenas, abraâmicas, dármicas, no zoroastrismo e diversos outros sistemas
religiosos pelo mundo.
Esta concepção do que é viver e renascer, dos processos que são opostos
mas concomitantes é bastante complexa e enigmática na filosofia platônica, mas
reforça, basicamente, uma mesma ideia: de que a “essência do ser”, a “alma”, a
“consciência”, o “espírito” - este subsiste à morte do corpo, permanecendo no
processo cíclico de retomar a “existência” e retornar à natureza.

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