Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Resumo
Neste artigo explicitaremos o que chamamos de princípio finitista arquimediano que,
em sua versão heurística, captura um dos procedimentos matemáticos mais elementares
exemplificado principalmente no método diagonal de Cantor, na definição de máquina
de Turing e no conceito de ‘computabilidade’, e discutiremos seu alcance
epistemológico e lógico. Veremos que ele é equivalente ao princípio de indução finita,
o que motivará a elaboração de um sistema de axiomas para os números naturais
equivalente ao de Peano e que o incorpore como um de seus axiomas. Esse sistema
também será o ponto de partida para uma teoria abstrata que denominamos teoria dos
aritmos, onde o princípio finitista arquimediano adquire o significado algébrico do
teorema fundamental da aritmética. Nessa teoria é possível também formular uma
versão não-linear do princípio de indução finita.
Palavras-chave: Princípio finitista arquimediano, método diagonal de Cantor,
máquinas de Turing, axiomática de Peano, teoria dos aritmos.
Não é muito difícil ver que, começando-se por 0, se pode chegar a qualquer outro
dos números naturais por adições repetidas de 1, mas precisamos definir o que
entendemos por “adicionar 1” e o que entendemos por “repetidas”. (RUSSELL,
2007, p. 19)
Quais são os números que podem ser alcançados, dados os termos “0” e “sucessor”?
[...] Alcançamos 1 como o sucessor de 0; 2, como o sucessor de 1; 3, como o
sucessor de 2; e assim por diante. É esse “e assim por diante” que desejamos
substituir por algo menos vago e indefinido. Poderíamos ser tentados a dizer que “e
assim por diante” significa que o processo de avançar para o sucessor pode ser
repetido qualquer número finito de vezes”; mas o problema em que estamos
envolvidos é o de definir “número finito”, e portanto não devemos usar essa noção
em nossa definição. Ela não deve presumir que sabemos o que é número finito. (p.
39, grifo do autor)
É preciso observar que estamos tratando aqui do tipo de matéria que não admite
prova precisa, a saber, a comparação de uma idéia relativamente vaga com outra
relativamente precisa. A noção de “aqueles termos que podem ser alcançados a
partir de 0 por passos sucessivos de um para o seguinte” é vaga, embora pareça
transmitir um significado definido; por outro lado, “a posteridade de 0” é uma noção
precisa e explícita, exatamente onde a outra idéia é nebulosa. Ela pode ser tomada
como expressando o que tínhamos em mente quando falamos dos termos que podem
ser alcançados a partir de 0 por passos sucessivos. (p. 40-41, grifos do autor)
A idéia intuitiva que temos dos números naturais é que são todos os números cada
um dos quais pode ser obtido principiando com o zero e somando 1, tantas vezes
quantas forem necessárias. (BARKER, 1969, p. 79, grifo nosso)
Uma função j denomina-se recursiva primitiva, se há uma seqüência finita j1, ... ,
jk (k ³ 1) de (ocorrências de) funções (denominada uma descrição recursiva
primitiva de j), tal que cada função da seqüência ou é uma função inicial, ou uma
dependente imediata de funções precedentes da seqüência, e a última função jk é a
função j. (KLEENE, 1974, p. 203, tradução nossa)
Isto é, podemos chegar em j por um número finito de passos. Esse mesmo processo é
explicitado na definição lógico-formal de ‘demonstração’. Também, a introdução da
operação de minimização limitada na classe das funções recursivas primitivas faz
sentido se pressupomos o PFH. Com efeito, se f(x , y) é uma função recursiva primitiva,
define-se
h(x) = miny£n[f(x , y) = 0].
Essa operação encontra o menor y no intervalo de 0 a n que satisfaz a condição dada. A
possibilidade dessa busca ter sempre sucesso pressupõe o PFH.
4) A concepção de máquina de Turing (e também de máquina de Post) pede a
existência de uma fita unidimensional dividida em quadrados (o que a faz discreta) e
potencialmente infinita. Essa concepção reproduz o modelo psicológico que temos da
série dos inteiros naturais onde o PFH é válido, fato que permite supor que todo número
natural pode ser representado na fita por uma seqüência finita de 1’s.
5) Segundo Turing, “Os números ‘computáveis’ podem ser descritos de forma
breve como os números reais cujas expressões decimais são calculáveis por meios
finitos. ... De acordo com minha definição, um número é computável se seu decimal
pode ser escrito por uma máquina” (TURING apud CARNIELLI e EPSTEIN, 2006, p.
105). Nessa descrição que Turing faz de ‘número computável’ há implícita a suposição
de que todo número inteiro natural é computável, bastando, para o caso de um número
real, analisar sua parte decimal. Essa suposição é equivalente ao PFA, e é refletida na
forma de representar números naturais não nulos: “Para representar números
utilizaremos cadeias de 1’s, 111...1; para n ≥ 1 denotamos a cadeia de n 1’s por 1n”
(CARNIELLI e EPSTEIN, 2006, p. 112). Em outras palavras, os números com os que
uma máquina de Turing trabalha são os da forma m × 1 (1m na notação de Carnielli e
Epstein), e supor que eles são todos os números naturais é o PFA. Mais ainda, a
instrução “dada uma entrada n, escreva 1n” é a mais elementar no funcionamento de
uma máquina de Turing e está na base da definição de função computável.
Uma das versões mais antigas do PFA é a seguinte, dada na Definição 2 do
Livro VII d’Os Elementos de Euclides: “E número [natural, na terminologia atual] é a
quantidade composta de unidades” (EUCLIDES, 2009, p. 269). Nesse mesmo Livro VII
de Euclides podemos apreciar o uso do PFH, por exemplo na Proposição 31 que diz:
“Todo número composto é medido por algum número primo”, isto é, todo número
composto é múltiplo inteiro de algum número primo. A seguir apresentaremos a prova
para conferência.
Seja o número composto A; digo que o A é medido por algum número primo.
Pois, como o A é composto, algum número o medirá. Meça, e seja o B. E
se, por um lado, o B é primo, o prescrito aconteceria. Se, por outro lado, é composto,
algum número o medirá. Meça, e seja o C. E como o C mede o B, e o B mede o A,
portanto também o C mede o A. E se, por um lado, o C é primo, o prescrito
aconteceria. Se, por outro lado é composto, algum número o medirá. Sendo, então,
produzida uma investigação como essa, algum número primo será tomado que
medirá. Pois, se não for tomado, ilimitados números medirão o A, cada um dos quais
é menor do que um outro; o que é impossível nos números. Portanto, algum número
primo será tomado, que medirá o antes dele mesmo, que também medirá o A.
Portanto, todo número composto é medido por algum número primo; o que
era preciso provar. (EUCLIDES, 2009, pp. 291-292)
Para Poincaré (1988, p. 26), “O caráter essencial do raciocínio por recorrência é que
ele contém condensados, por assim dizer, numa única fórmula, uma infinidade de
silogismos”, isto é, traduzido em símbolos:
P(1);
P(1) Þ P(2), logo, P(2);
P(2) Þ P(3), logo, P(3);
etc.
O salto interpretativo desta formulação para a versão [usual] do princípio de
indução é um outro exemplo de salto arquimediano. Essa diferença de sentido entre
a versão [usual] e esta, reflete e dá significado à diferença entre “para cada” e “para
todos”, um problema não apenas lógico senão também epistemológico.
De outro ponto de vista, Frege considera os princípios da aritmética como
sendo todos analíticos, o que reflete seu logicismo, enquanto que Poincaré considera
o princípio de indução um típico juízo sintético a priori. Ele diz: “Essa regra,
inacessível à demonstração analítica e à experiência, é exatamente o tipo de juízo
sintético a priori” (POINCARÉ, 1988, p. 28), o que é uma expressão do caráter não
intuitivo desse princípio e abre a possibilidade de adotá-lo, por um ato de
interpretação, como constituinte da estrutura da aritmética: de fato, um salto
arquimediano. (CIFUENTES, 2011)
Uma das características, então, do salto epistemológico da versão do princípio de
indução apresentada por Poincaré para a usual de Peano, reside em transformar
potências em atos.
As considerações anteriores revelam o caráter extra-lógico do princípio de
indução finita e, por conseqüência, do PFA e do PFH pondo em evidência sua
complexidade epistemológica.
Mais ainda, a equivalência entre o PFA e o princípio de indução finita de Peano,
que provamos acima, nos induz a pensar que a metateoria da aritmética, podendo
inclusive ser considerada finitista à luz do PFH, é tão complexa como a própria
aritmética.
Se A Í N ´ N é tal que:
a) (0 , 0) Î A; e
b) ("n)("m)((n , m) Î A ® (n+1 , m) Î A Ù (n , m + 1) Î A);
então, A = N ´ N.
Essa versão, que surge a partir da teoria dos aritmos, pode ser expressa também
em termos de propriedades binárias, para dar embasamento ao raciocínio por indução
dupla:
Conclusão
A idéia dos aritmos iniciou-se com um projeto de pesquisa matemática, em nível de
iniciação à pesquisa científica, pelo método de analogia, desenvolvido com alunos do
Programa de Educação Tutorial – PET do Curso de Matemática da UFPR em 2005
visando explorar os alcances da analogia existente entre os fragmentos aditivo e
multiplicativo dos números naturais, os nossos áN , + , 0ñ e áN* , × , 1ñ. Um primeiro
relatório aparece em (CIFUENTES, 2006).
Recentemente, a partir de 2010, em colaboração com o professor Alejandro G.
Petrovich do Departamento de Matemática da Universidade de Buenos Aires – UBA,
esse projeto transformou-se numa parceria UFPR-UBA através do convênio Escala
Docente da Associação de Universidades do Grupo Montevidéu – AUGM.
Nesse estudo conjunto (CIFUENTES e PETROVICH), ainda em andamento,
obtivemos diversos resultados dentre os quais cabe destacar os seguintes:
1) Uma classe de aritmos que, na realidade, constitui uma caracterização deles, é a
dos cones positivos de grupos abelianos parcialmente ordenados, onde os
aritmos fatoriais estão intimamente relacionados com os cones positivos dos l-
grupos. Desse ponto de vista, a teoria dos aritmos pode ser interpretada como
uma teoria intrínseca dessa classe.
2) Generalizando o produto cartesiano de aritmos em forma natural, obtivemos o
seguinte resultado de representação: todo aritmo fatorial A é isomorfo ao aritmo
(aditivo) N(I) onde {ai}iÎI é o conjunto dos átomos de A, em particular, o
fragmento multiplicativo dos naturais N* é isomorfo ao aritmo N(w),
estabelecendo assim uma conexão íntima entre áN , + , 0ñ e áN* , × , 1ñ.
Referências
Bachelard, G. O Novo Espírito Científico. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
2000.
Barker, S. F. Filosofia da Matemática. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1969.
Carnielli, W. A. e Epstein, R. L. Computabilidade, Funções Computáveis, Lógica e
os Fundamentos da Matemática. São Paulo: Ed. UNESP, 2006.
Cifuentes, J. C. Heurística e Lógica na Matemática: um outro olhar sobre o Teorema
Fundamental da Aritmética. In: Cifuentes, J. C. A Matemática na Educação Matemática.
Minicurso no I Congresso de Matemática e suas Aplicações Foz2006. Foz do Iguaçu,
2006, pp. 2-10.
Cifuentes, J. C. O “Salto Arquimediano”: Um Processo de Ruptura Epistemológica no
Pensamento Matemático. Scientiae Studia – Revista Latino-Americana de Filosofia e
História da Ciência, São Paulo, vol. 9, no. 3, 2011.
Cifuentes, J. C. e Petrovich, A. G. La Teoría de los Aritmos: la aritmética detrás de la
aritmética. Em preparação.
Euclides. Os Elementos. Trad. Irineu Bicudo. São Paulo: Ed. Unesp, 2009.
Kleene, S. C. Introducción a la Metamatemática. Madri: Ed. Tecnos, 1974.
Le Lionnais, F. La Belleza en Matemáticas. In: Las Grandes Corrientes del
Pensamiento Matemático (Le Lionnais, F., Org.). Buenos Aires: Eudeba, 1965, pp.
464-494.
Poincaré, H. A Ciência e a Hipótese. 2ª Ed. Brasília: Editora da UnB, 1988.
Russell, B. Introdução à Filosofia Matemática. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.