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O QUE É A

FILOSOFIA ANTIGA?

Tradução
Dion Davi Macedo

~.
Edições Loyola
Título origina 1:
Ou'est-ce que la phifosophie antique?
© Editions Gallimard, Paris, 1995
ISBN 2-07-032760-4

Sumário

Edição: Marcos Marcionilo PREFÁCIO 15


Consultores: Mara Faury
Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento
José Eduardo Marques Baioni
Primeira cJ>arte
Atualização bibliográfica: Dion Davi Macedo fi definição platônica do filósofo e seus antecedentes
Preparação: Sandra Garcia
Diagramação: Teima dos Santos Custódio CAPÍTULO 1
Revisão: Renato da Rocha Carlos
Mauricio Balthazar Leal A FILOSOFIA ANTES DA FILOSOFIA ........... ,. .......... ,. ......... ,. .... . 27
A historia dos primeiros pensadores da Grécia ...................... . 27
A paideia ................................................................................. . 30
Os sofistas do século V ............................................................. . 32
CAPÍTULO 2
O SURGIMENTO DA NOÇÃO DE "FILOSOFAR" ...................... 35
O testemunho de Heródoto .......... ..................................... ......... 35
A atividade filosófica, orgulho de Atenas.................................. 37
A noção de sophía....................................................... .. ..... ...... 39
CAPÍTULO 3
Edições Loyola Jesuítas A FIGURA DE SÓCRATES............................................................ 47
Rua 1822,341 -lpiranga A figura de Sócrates ....... ........................................................ .. . 47
04216-000 São Paulo, SP O não saber socrático e a crítica do saber sofístico.................. 50
T 55 11 3385 8500/8501 • 2063 4275
editorial@loyola.com.br
O apelo do "indivíduo" ao "indivíduo"................................... 56
vendas@loyola.com.br O saber de Sócrates: o valor absoluto da intenção moral ....... . 60
www.loyola.com.br Cuidado de si, cuidado dos outros............................................ 65
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser
reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer CAPÍTULO 4
meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou
arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão A DEFINIÇÃO DO FILÓSOFO NO BANQUETE DE PLATÃO...... 69
escrita da Editora.
O Banquete de Platão.............................................................. 69
ISBN 978-85-15-01785-0
6' edição: 2014
2" reimpressão: 2017 5
©EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 1999
Eros, Sócrates e o filósofo.......................................................... 72 A física................................................................................... 189
Isócrates.................................................... .. ............................... 83 A teoria do conhecimento........................................................ 194
A teoria moral........................................................................ 195
Segunda Cf>arte Os exercícios............................................................................ 198
fi filosofia como modo de vida O aristotelismo........................................................................... 204
A academia platônica ................................................. :.............. 205
CAPÍTULO 5 O ceticismo ............................. ..... ............................. .... .... ........ . 209
PLATÃO E A ACADEMIA.............................................................. 89
A filosofia como forma de vida na Academia de Platão.......... 89 CAPÍTULO 8
O projeto educativo................................................................. 89 AS ESCOLAS FILOSÓFICAS NA ERA IMPERIAL........................ 213
Sócrates e Pitágoras................................................................ 92 Características gerais ................................................................. 213
A intenção política .. ... ............. ...... ... .... ..... .... ......... ..... .... ....... 93 As novas escolas..................................................................... 213
Formação e investigação na Academia.................................... 96 Os métodos de ensino: a era do comentário ............................ 217
A escolha de vida platónica.................................................... 101 A escolha de vida................................................................... 222
Exercícios espirituais............................................................... 103 Plotino e Porfirio.. ........ ............. ... ..... .... .... ..... ........................ ... 227
O discurso filosófico de Platão .... .............................................. 11 O A escolha de vida................................................................... 227
Os níveis do eu e os limites do discurso filosófico................... 235
CAPÍTULO 6 O neoplatonismo pós.plotiniano e a teurgia .............................. 243
ARISTÓTELES E SUA ESCOLA ....... ........ ... .. ........ ... ..... ..... .... ...... 119 O discurso filosófico e a vontade de harmonização entre as
A forma de vida "teorética"...................................................... 119 tradições.............................................................................. 243
Os diferentes níveis da vida "teorética".................................... 125 O modo de vida...................................................................... 245
Os limites do discurso filosófico................................................. 132
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 7 FILOSOFIA E DISCURSO FILOSÓFICO ..... ..... ........... ................ 249
AS ESCOLAS HELENÍSTICAS...................................................... 139 A filosofia e a ambiguidade do discurso filosófico..................... 249
Características gerais ................................................ :................ 139 Os exercícios espirituais............................................................. 259
O período helenístico .......................... :.................................... 139 Pré-história.............................................................................. 259
Influências orientais?.............................................................. 145 Exercícios do corpo e exercícios da alma.................................. 271
As escolas filosóficas................................................................ 148 A relação consigo e a concentração do eu ............................... 273
Identidades e diferenças: priori_dªde da escolha de um modo A relação com o cosmos e a expansão do eu........................... 290
de vida................................................................................ 154 O sábio ................................................................................... 313
Identidades e diferenças: o método de ensino........................... 155 Conclusão................................................................................... 328
O cinismo.................................................................................. 162
Pirro .......................................................................................... 165 'Terceira Parte
O epicurismo ............................................................................. 169 rf\_uptura e continuidade.
Uma experiência e uma escolha.............................................. 170 fi Idade Média e os tempos modemos
A ética .................................................................................... 171
CAPÍTULO 10
A física e a canônica............................................................. 175
Exercícios ................................................................................ 181 O CRISTIANISMO COMO FILOSOFIA REVELADA.................... 333
O estoicismo............................................................................... 187 O cristianismo definindo-se como filosofia .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. . 333
A escolha fundamental ........................................................... 187 Cristianismo e filosofia antiga................................................... 348

6 7
CAPÍTULO l l

DESAPARECIMENTOS E REAPARECIMENTOS DA CONCEPÇÃO


ANTIGA DE FILOSOFIA............................................................... 355
Ainda uma vez: cristianismo e filosofia..................................... 355
A filosofia como serva da teologia............................................. 357
Os artistas da razão .................................................................. 362
A permanência da concepção de filosofia como modo de vida .. 366

CAPÍTULO 12

QUESTÕES E PERSPECTIVAS..................................................... 381


BffiUOGRAFIA............................................................................. 397
I. Riferências dos textos citados em epígrafe......................... 397 À memória de A. f. Voelke
li. Citações de textos antigos................................................... 398
Abreviações.......................................................................... 398
m. Seleção de textos concernentes a certos aspectos da
filosofia antiga.................................................................... 402
CRONOLOGIA............................................................................. 405
Antes de Cristo ........ .............................. .... ...... .................... .... .. 405
Período helenístico ................................................................... 407
Depois de Cristo ........................................................................ 410
O Império romano .................................................................. 410
O Império cristão .................................................................... 412
ÍNDICE DE NOMES ................................................................... 415

8
Tempo virá em que para edificar-se moral-
racionalmente ter-se-á prefere_ncialmente as
Memorabilia de Sócrates à Bíblia, e em que se
há de servir de Montaigne e de Horácio como
guias para o caminho que conduz à compreen-
são do sábio e do mediador o mais simples e
imperecível de todos, Sócrates.
Nietzschê

Os antigos filósofos gregos, como Epicuro,


Zenão, Sócrates etc., permanecem muito mais
fiéis à verdadeira Ideia do filósofo do que a
que se fez nos tempos modernos.
"Quando hás de, enfim, começar a viver vir-
tuosamente?", disse Platão a um ancião que lhe
pedia escutasse algumas lições sobre a virtude.
Não se deve apenas especular, mas é necessá-
rio também, de uma vez por todas, pensar em
praticar. Mas hoje se toma por sonhador aquele
que vive de acordo com o que ensina.
Kant

L Ver as referências, p. 397.

11
É o desejo que gera o pensamento. . jamais de filósofo e só sofras se alguém te der
Plotzno
esse nome.
Epicteto
Qual é o lugar do filósofo na cidade? É o
de um escultor de homem. Há em nossos dias professores de filosofia,
Simplício
mas não filósofos.
Thoreau
Os resultados de todas estas escolas e de
todas as suas experiências pertencem a nós. Nós
Sem a virtude, Deus nao é senao uma
não aceitamos uma receita estoica com menos
palavra.
agrado porque nós já nos apropriáramos de Platina
receitas epicuristas.
Nietzsche
"Nada fiz hoje." Não vivestes então? Pois
Querer o bem é preferível a conhecer a essa é a ocupação mais fundamental e ilustre.
verdade. Montaigne
Petrarca

Penso que jamais houve alguém que tivesse


prestado pior serviço ao gênero humano do
que aquele que ensinou filosofia como um
ofício mercenário.
Sêneca

Em geral, so Imaginamos Platão e Aris-


tóteles conrgrandes túnicas de pedantes. Eram
pessoas honestas e, como as outras, rindo com
seus amigos; e, quando se divertiram em fazer
suas Leis e sua Política, fizeram-nas brincando.
Era a parte menos filosófica e menos séria de
sua vida. A mais filosófica consistia em viver
simples e tranquilamente.
Pascal
Se as teorias filosóficas te seduzem, senta-te
e te volta para ti mesmo. Mas não te chames

12 13
(j>refácio

Reflete-se muito raramente sobre o que é em si mes-


ma a filosofia 1 . Ela é extremamente difícil de definir.
Aos estudantes de filosofia faz-se sobretudo conhecer
as filosofias. Os cursos acadêmicos de filosofia propõem
regularmente, por exemplo, Platão, Aristóteles, Epicuro,
os estoicos, Plotino e, depois das "trevas" da Idade Mé-
dia, demasiadamente ignoradas nos programas oficiais,
Descartes, Malebranche, Espinosa, Leibniz, Kant, Hegel,
Fichte, Schelling, Bergson e alguns contemporâneos. Nos -
exames, é necessário redigir uma dissertação em que se
demonstre conhecer bem os problemas postos pelas teorias
deste ou daquele autor. Outra dissertação demonstrará
a capacidade que se tem de refletir sobre um problema

1. Assinalamos .a obra de G. Deleuze e F. Guattari, Qu'est-ce que la


philosophie?, Paris, 1991 [O que é a filosofia?, tradução de Bento Prado Jr.
e Alberto Alonso Muiíoz, Rio de Janeiro, ed. 34, 1992.], que está muito
distante, em seu espírito e método, da presente obra, e o pequeno livro
de A. Philonenko, Qu'est-ce que la philosophie? Kant Fichte, Paris, 1991, que,
de uma maneira muito interessante, apresenta, a propósito das cartas
de Fichte e Kant, o problema da essência da filosofia. Encontrar-se-á na
Historisches Wõrterbuch der Philosophie, T. 7 (P-Q), Bâle, 1989, cols. 572-927,
um considerável conjunto de estudos sobre a definição de filosofia desde
a Antiguidade até os nossos dias.

15
O que é a filosofia antiga?
Prefácio

qualificado de "filosófico", visto que foi em geral tratado transmitida aos estudantes por conta das necessidades do
por filósofos antigos ou contemporâneos. Em si, nada há ensino universitário. Eles têm a impressão de que todos
a dizer de novo sobre isso. Na verdade, é estudando as os filósofos estudados esforçaram-se sucessivamente para
filosofias que se pode ter uma ideia da filosofia. Portanto, a inventar, cada um de uma maneira original, uma nova
história da "filosofia" não se confunde com a das filosofias, construção sistemática e abstrata, destinada a explicar, de
caso se entenda por "filosofias" os discursos teóricos e os uma maneira ou de outra, o universo; ou, pelo menos,
sistemas dos filósofos. Ao lado da história, há lugar para caso se trate de filósofos contemporâneos, que eles pro-
um estudo da vida e dos comportamentos filosóficos. curaram elaborar uma nova discussão sobre a linguagem.
A presente obra pretende precisamente descrever em Dessas teorias, que se poderia denominar "filosofia geral",
seus traços gerais e comuns o fenômeno histórico e espi- ~r:esultarn, em quase todos os sistemas, doutrinas ou críticas
ritual que representa a filosofia antiga. O leitor me dirá: da moral que extraem as consequências, para o homem
por que se limitar à filosofia antiga, tão distante de nós? e para a sociedade, dos princípios gerais do sistema e
Eu teria várias respostas para lhe dar. Em primeiro lugar, convidam, a partir disso, a fazer uma escolha de vida, a
é um domínio no qual espero ter adquirido certa compe- adotar uma maneira de comportar-se. Isso não entra na
tência. Também, como disse Aristóteles, para compreender perspectiva do discurso filosófico.
as coisas é necessário vê-las enquanto se desenvolvem 2, é Penso que essa representação é um erro caso seja apli-
preciso apreendê-las em seu nascimento. Se agora falamos cada à filosofia da Antiguidade. Evidentemente, não se trata
de "filosofia" é porque os gregos inventaram a palavra de negar a extraordinária capacidade dos filósofos antigos
philosophia, que significa "amor pela sabedoria", e porque de desenvolver uma reflexão teórica sobre os problemas
a tradição da philosophia grega foi transmitida à Idade mais sutis da teoria do conhecimento, da lógica ou da física.
Média e posteriormente aos tempos modernos. Trata-se de Contudo, essa atividade teórica deve ser situada em uma
apropriar-se do fenômen_Q~(':m sua origem, sempre tendo perspectiva diferente da que corresponde à representação
consciência de que a filosofia é um fenômeno histórico corrente que se faz da filosofia. Em primeiro lugar, ao me-
que teve início no tempo e evoluiu até nossos dias. nos desde Sócrates, a opção por um modo de vida não
Tenho a intenção de mostrar, em meu livro, a diferença se situa no fim do processo da atividade filosófica, como
profunda que existe entre a representação que os antigos uma espécie de apêndice acessório, mas, bem ao contrário,
faziam da philosophia e a representação que se faz habitual- na origem, em uma complexa interação entre a reação crítica
mente da filosofia em nossos dias, pelo menos na imagem a outras atitudes exisúú1ciais, a visã<:>,g~o1Jª! <fe c~~ta ll1.ª11eira
de viver e .de .ver o mundo, e a própria decisão volun-
2. Aristóteles, Política, I, 2, 1252 a 24 [tradução de Roberto Leal Ferreira. • tária; e essa opção determina até certo ponto a doutrina e
São Paulo, Martins Fontes, 1991].
1 o modo de ensino dessa doutrina. O discurso filosóficq tem

16
17
O que é a filosofia antiga?
Prefácio

sua origem, portanto, em uma escolha de vida e em uma


tiver atingido s_eu a~abamen_to e sua perfeição, segundo o
opção existencial, e não o contrário. Em segundo lugar, essa
esquema que E. WeiP propoe ao escrever:
decisão e essa escolha jamais se fazem na solidão: nunca
houve filosofia nem filósofos fora de um grupo, de uma O fil~sofo não é um "sábio": ele não tem (ou não é) a sa-
comunidade, em uma palavra, de uma "escola" filosófica; e, ~ed~na; ele f~la_ e,. mesmo quando seu discu;so tem por fim
precisamente, uma escola filosófica corresponde, nesse caso unzco se supnmzr, zsso não impede que ele fale até o momento
e antes de tudo, a uma maneira de viver, a uma escolha em que tenha concluído e fora dos instantes perfeitos em que
de vida, a uma opção existencial, que exige do indivíduo tenha concluído.
uma mudança total de vida, uma conversão de todo o
ser, e, finalmente, a um desejo de ser e de viver de certa
Is~o ~ uma ~ituação análoga à do Tractatus logico-phi-
losophzcus de Wittgenstein, no qual o discurso filosófico
maneira. Essa opção existencial implica, por seu turno, cer-
do Tractatus desdobra-se finalmente em uma b d .
ta visão de mundo, e será tarefa do discurso filosófico re- ·1 · s A sa e ona
SI enc~osa . filosofia antiga admite muito bem, de uma
velar e justificar racionalmente tanto essa opção existencial
maneira ou de outra e desde o Banquete6 de Plat-
como essa representação do mundo. O discurso filosófico fil- fi - , ao, que
o oso_ o nao e um sábio, mas ela não se considera um
teórico nasce, dessa opção existencial inicial e reconduz, /
puro di_scurso que é suspenso no momento em que a
à medida do possível ou por sua força lógica e persuasiva/
à ação que quer exercer sobre o interlocutor; ele incita sabedon~ aparece; ela é, ao mesmo tempo e indissoluvel-
mestres e discípulos a viver realmente em conformidade men~ed di~cur~o ~"~~~,~~~~; g~~!~Q.dem,~aii!1J()spara
com sua escolha inicial ou, ainda, conduz de alguma ma- ~-~:._: ___ ~_r!~.s~II1J:mais <l~I~gi:Ya. Contudo, é verdade-que
neira à aplicação de um ideal de vida. ~ .Iscurso de Platao, Aristóteles ou Plotino é suspenso no
h~:mar de certas experiências que, se não são a sabedoria
Quero dizer que o discurso filosófico deve ser compreen- sao uma espécie de antegozo. '
dido na perspectiva do -medo de vida no qua~ ele é ao
mesmo tempo o meio e a expressão e, em consequência, 3· É. Weil, Logique de la philosophie, Paris, 1950, p. 13.
que a filosofia é, antes de tudo, uma maneira de viver, mas 4. Tractatus logico-philosophicus 2• ed trad - - ·
· d • . . ' ., uçao, apresentaçao e ensaio
está estreitamente vinculada ao discurso filosófico. Um dos ~~~~ou~~o de Lmz Henrique Lopes dos Santos, São Paulo, Edusp, 1994
temas fundamentais deste livro será a distância que separa 5. Cf. sobre esse ponto Gottfried Gabriel "L 1 . . .
tur ~ D 1 · · . ' a og~que comme IIttera-
a filosofia da sabedoria. A filosofia não é senão o exercício " e. e a stgmficatwn de la forme littéraire chez Wittgenstein" in L
1VOUVeau Commfffce, 82-83, 1992, p. 84. ' e
preparatório para a sabedoria. Não se trata de opor, de um
d S6. O Ba~quete, 6• e~., tradução, introdução e notas de José Cavalcante
lado, a filosofia como um discurso filosófico teórico e, de e o~za, Rio de Janeir.o, Bertrand Brasil, 1991; O Banquete, introdu ão
outro, a sabedoria como um modo de vida silencioso que ~aduçao e notas de Mana Teresa Schiappa de Azevedo Lisboa/São p ç I ,
será praticado a partir do momento em que o discurso erbo, 1~73; Um Banquete, 3a ed., seleção, introdução ~tradução de]::~
Bruna, Sao Paulo, Cu!trix, 1952 [N. do T.].

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19
Prefácio
O que é a filosofia antiga?

Insisto nesse ponto porque reencontraremos, no curso


Não se pode mais opor modo de vida dis;':rso, :orno ? deste livro, situações nas quais a atividade filosófica conti-
se eles correspondessem respectivamente a pratica : a teo-
nua a se exercer, ainda que o discurso não possa exprimir
ria. 0 discurso pode ter um aspecto práti~o à medida ~ue
essa atividade.
tende a produzir um efeito sobre o ouvm_te o~ ~ leito~.
Quanto ao modo de vida, ele pode ser nao :eonco, eVI- Não se trata de opor e separar, de um lado, a filosofia
dentemente, mas teorético, isto é, contemplativo. como modo de vida e, de outro, um discurso filosófico que
será, de algum modo, exterior à filosofia. Ao contrário,
Para ser claro, devo especificar que entendo~ pal~vr:
trata-se de mostrar que o discurso filosófico participa do
"discurso" no sentido filosófico de "pensamento discurs~vo
modo de vida. Mas, em contrapartida, é necessário reco-
expresso na linguagem escrita ou oral, e não no sentido,
disseminado em nossos dias, de "maneira de falar que nhecer que a escolha de vida do filósofo determina seu
revela uma atitude" ("discurso racista"' por exemplo). E:U discurso. Isso nos leva a dizer que não se pode considerar
contrapartida, recuso-me a confundir ~inguagem e funçao os discursos filosóficos realidades existentes em si e por
cognitiva. Citarei, a esse propósito, as hnhas esclarecedoras si mesma&, e estudar a estrutura independentemente do
filósofo que as desenvolveu. Pode-se separar o discurso de
de J. Ruffie: Sócrates da vida e da morte de Sócrates?
De fato, pode-se perfeitamente pensar _e conhecer sem lingua-
gem e talvez, para certas interpretaçoe~, conhecer me~hor. O Uma noção aparecerá frequentémente nas páginas que
pensamento reconhece a própria capaczdade de dejinzr uma se seguem, a de exercícios espirituais8 • Designo por esse
conduta racional e a faculdade de representação ment~l e de termo as práticas, que podem ser de ordem fisica, como
abstração. O animal (capaz de distinguir a forma trz~ngu­ o regime alimentar; discursiva, como o diálogo ·~· a me-
lar ou certas combinações de objetos) pensa como a crzança ditação; ou ipttti,tiva, como a contemplação, mas que são
que não fala ou o surdo-mudo que não [oi educa~o [. ..]. todas destinadas a operar modificação e transformação no
o estudo clínico demonstra que não ha ~orr~l~ça~ rttre sujeito que as pratica. O discurso do professor de filosofia
o desenvolvimento da linguagem e o da zntelzgencza: um pode, ademais, tomar a forma de um exercício espiritual,
deficiente intelectual pode falar bem, um afásico pode ser à medida que esse discurso se apresente sob uma forma
· zn
muzto · tel.zgen te [.. · ]· E no homem normal
. as faculdades tal que o discípulo, do mesmo modo que o ouvinte, o
de elaboração manifestam-se, às vezes, mazs ou menos esma- leitor ou o interlocutor, possa progredir espiritualmente
gadas pelas faculdades de expressão. As grandes descobert~s e transformar-se interiormente.
parecem sp.r feitas independentemente da li~guagem, a partzr
dos esquemas (patterns) elaborados no cerebro. 8. J.-P. Vemant utiliza também esse termo em Mythe et pensée chez les
Grecs, t. I. Paris, 1971, p. 96 [Mito e pensamento entre os gregos, 2a ed., tradução
de Haiganuch Sarian, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990, p. ll9].
7. J. Ruffié, De la biologie à la culture, Paris, 1976, P· 357.
21
20
O que é a filosofia antiga?
Prefácio

Nossa demonstração desenvolver-se-á em três etapas.


A primeira consistirá em retraçar a história dos primei- a tr~dição da direção da consciência greco-romanaro que
ros empregos da palavra philosophia e em compreender ~?oefia ob~a do filósofo estoico na perspectiva ger~l da
os o a an tlga.
o sentido da definição filosófica dessa palavra por Platão
quando, no Banquete, ele define a philosophia como o de- Tive o prazer de conhecer dois filósofos q. ue tamb,
sejo de sabedoria. Em seguida, procuraremos reencontrar estavam d d em
. '. ca a um e uma maneira independente da
as características das diferentes filosofias da Antiguidade mmha~r mt~ressados nesses problemas: o saudoso A :J
consideradas em seu aspecto de modo de vida, o que nos Voelke ' CUJos estudos sobre a filosofia como terapia d~
levará finalmente a estudar os traços comuns que as unem. alma foram publicados recentemente e meu colega pol A

J D kjl2 · ' ones


Em um terceiro momento, buscaremos expor por qual . oma~s. ' CUJa obra sobre a concepção de filosofia na
razão e em que medida a filosofia foi concebid<t a partir Ida~e Media e no Renascimento mostra como a conce ção
da Idade Média como uma aÜVíclade puramente teórica. antiga de filosofia foi ocultada, mas apenas parcial!en-
Por fim nos perguntaremos se é possível retornar ao ideal te, na Idade Média e como retornou no R .
enasCimento
antigo de filosofia. Para justificar nossas afirmações, nos por e~emplo em Petrarca e em Erasmo. Por outro lad '
apoiaremos muito sobre os textos dos filósofos antigos .. a~~~dito q.ue m~u a~'tigo intitulado "Exercices spirituels ~~
Isso representará, penso eu, um serviço aos estudantes que p I osop!ue. antique ' publicado em 1977, teve influên .
nem sempre têm fácil acesso às fontes. sobre a Ideia que M F I . Cia
, . . oucau t tmha de "cultura de si"I3.
Jha' afirmei ~lhures as convergências e as divergências que
As reflexões que apresento ao leitor são fruto de a entre nos 14•
longos trabalhos consagrados aos filósofos e à filosofia
antigos. Dois livros influenciaram-me muito no curso É ~e~ exprimir de todo o coração meu reconhecimento
dessas pesquisas. Em primeiro lugar, Seelenführung (Direção a nc Igne, que me propôs escrever esta obra, indicou-
de almas), de P. Rabbow9 , publicado em 1954, que expõe me o plano e teve comigo uma paciência exemplar. Minha
as diferentes formas qu~tomar essas práticas podem h os
10. Ilsetraut Hadot S d d. · .
epicuristas e nos estoicos, e que teve iguahnente o mérito tung Berlin 1969 ( ' ene~ un ze gnechzsch-romische Tradition der Seelenlei-
' . , - apresenta a como tese de doutoral em 1965 bl" d
de marcar a continuidade existente entre a espiritualida- sem modificaçoes, um pouco mais tarde). , pu rca a,
de antiga e a cristã, mas talvez limitando-se demasiado Hado~\~~u~;;~:~s~~9~~~losophie comme thérapie de l'âme, Préface de P.
exclusivamente aos aspectos retóricos dos exercícios 12·]. Domanski, La Philosophie théorie ou d de ·
espirituais. Em seguida, a obra de fuinha mulher, que Moyen Âge et du début d l Re . ' _ mo e vze. Les controverses du
1996. e a nazssance, Preface de P. Hadot, Fribourg/Paris,
escreveu, antes de conhecer-me, um livro sobre Sêneca e
13. M. Foucault, Le souci de sai, Paris, 1984 p 57
14 P H d t "R'fl · ' . .
9. P. Rabbow, Seelenführung, Methodik der Exerzitien in der Antike, München, v . . . a o , e exrons sur la notion de culture de soi" . M. h l
l'OUcault phzloso"he Re t 1 . , m zc e
1954. 1988. r . ncon re nternatzonale, Paris, 9: 261-269, 10, 11 janvier

22
23
O que é a filosofia antiga?

cara colega R. Hamayon, com seus conselhos e escritos,


esclareceu-me os problemas muito complexos apresentados
pelo xamanismo. Que ela encontre aqui a expressão de
minha profunda gratidão! Meus calorosos agradecimentos
a Sylvie Simon, Gwenaelle Aubry, Jeannie Carlier, Ilsetraut
Hadot, que releram esta obra para eliminar dela, tanto
quanto possível, as incorreções e os erros.

fi
do filóso tes

24
Capítulo 1

ji filosofia
antes da filosofia

A historia dos primeiros pensadores da Grécia

"A filosofia antes da filosofia." Efetivamente, as palavras


da família philosophia surgiram apenas no século V a.C. e o
termo só foi definido filosofic<lJ:n.~nte no século IV a.C. por
Platão; contudo,''Arisfótêles~~, com ele, toda a tradição da
história da filosofia consideram filósofos os primeiros filó-
sofos gregos1 que apareceram no início do século VI, na
periferia da zona de influência grega, nas colônias da Ásia
Menor, exatamente na cidade de Mileto: Tales, matemático
e físico, um dos Sete Sábios, célebre por ter predito o eclip-
se do sol de 28 de maio de 585, depois Anaximandro e
Anaxímenes. Esse movimento de pensamento estender-se-á

I. Encontrar-se-ão os fragmentos de suas obras em Les Présocratiques, Éd.


J.-P. Dumont (citado Dumont nas notas que se seguem), Paris, Gallimard,
1988, (Bibliotheque de la Pléiade) [Os Pré-socráticos, 2" ed., seleção de textos
e supervisão de José Cavalcante de Souza, traduções de José Cavalcante
de Souza et. al, São Paulo, Abril Cultural, 1978 (Os Pensadores); Gerd A.
Bornbeim (org.), Os filósofos pré-socráticos, São Paulo, Cultrix, 1988]. Veja-se
igualmente, do mesmo autor, a edição que ele estabeleceu para o público
estudantil, Les Écoles présocratiques, Paris, Gallimard (Folio Essais, 152).

27
A filosofia àntes da filosofia
A definição platônica do filósofo e seus antecedentes

cas" e a predominância de uma sobre as outras. Essa trans-


a outras colônias gregas, agora para as da Sicília e do Sul formação radical resume-se, aliás, na palavra grega physis,
da Itália. É assim que, no século VI, Xenófanes de Colofão que, em sua origem, significa ao mesmo tempo o início, 0
emigra para Eleia, que Pitágoras, originário da ilha de Sa~os de~envolvime~t~ e o resultado do processo pelo qual uma
(não longe de Mileto), fixa-se em Crotona no fim do secu- cmsa se constltm. O objeto de sua caracterizaçãb intelectual,
lo VI e depois no Metaponto. Pouco a pouco. ~ Sul ~a caracterização que eles denominam investigação 4, historia,
Itália e a Sicília tornar-se-ão o centro de uma atlVIdade m-
é a physis universal.
telectual extremamente viva, por exemplo com Parmênides
e Empédocles. As teorias racionais, em toda a tradição filosófica
grega: ~erão influenciadas por esse esquema cosmogôni-
Todos esses pensadores propõem uma explicação racio-
co ongmal. Daremos aqui apenas o exemplo de Platão,
nal do mundo, e isso é uma reviravolta decisiva na história
que, na sequência de diálogos intitulados Timev!', Crítiaf'
do pensamento. Já existiam cos,n:ogoni~s antes deles, no
e Hermócrates (projetado, mas substituído pelas Leis), quis,
Oriente Médio e também na Greoa arca1ca, mas elas eram
por sua vez, escrever um grande tratado sobre a physis,
de tipo mítico, isto é, descreviam a .história do mu~,d~ com~
em toda a sua extensão, desde a origem do mundo e do
uma luta entre entidades persomficadas. Eram geneses
no sentido bíblico do livro do Gênesi:P, "livro das gerações:', homem até a origem de Atenas. Aqui ainda reencontrare-
destinadas a conduzir um povo à memória de seus ancestrais mos um livro das "gerações" que leva os atenienses à lem-
e a uni-los às forças cósmicas e às gerações dos deuses. brança de sua origem e de seus ancestrais para enraizá-los
Criação do mundo, criação do homem, criação do povo, na ordem universal e no ato fundador do Deus criador.
tal é 0 objeto das cosmogonias. Como bem mostr~u G. Pl~tão, além do mais, não dissimula isso: ele propõe, no

Naddaf3, embora os primeiros pensadores gregos subsutuam Tzmeu, o que denomina um mito verossímil, ao introduzir
essa narração mítica por uma teoria racional do mundo, a figura mítica do Demiurgo que produz o mundo con--
eles conservam 0 esque1pa tçEQ~rio que estruturava as cos- templando o Modelo eterno que são as Ideias 7• No livro
mogonias míticas. Eles propõem uma teoria ~a ~rigei_U do X das Leis, Platão já não se satisfaz em propor uma nar-
mundo do homem e da cidade. Essa teona e racwnal ração mítica; ele quer fundar sua cosmogonia sobre uma
porque' pr~~~;a exp1lcar o mundo não por um~ luta e~:r:
os elementos, mas por uma luta entre as realidades flSl- 4. Heráclito, Fragmento 35, Dumont, p. 154; Platão, Fédon, 96 a 7.
5. Timeu, tradução de Carlos Alberto Nunes, Belém, Editora da Uni-
versidade Federal do Pará, 1986.
2. Bíblia: tradução ecumênica, São Paulo, Edições Loyola, 1994; há trans- 6. Críttas, tradução de Carlos Alberto Nunes, Belém, Editora da Uni-
criação de Haroldo de Campos do Gênesis. Br:re'shith: a cena da orige"! (e outros versidade Federal do Pará, 1986.
estudos de poética bíblica), transcriações por Haroldo de Campos, Sao Paulo, 7. Cf. P. Hadot, "Physique et poésie dans le Timée de Platon" in Reaue
Perspectiva, 1993 (Signos, 16). . . de Théologie et de Philosophie, 115: 113-133, 1983. G. Naddaf, L'origine et
3. G. Naddaf, L'origine et l'évolution du concept grec de phus1s, LeVIston/ l'évolution ... , pp. 341-442.
Queenston/Lampeter, The Edwin Mellen Press, 1992.
29
28
A filosofia antes da filosofia
A definição platônica do filósofo e seus antecedentes

- . oiada em argumentos aceitáveis da Grécia homérica, a educação dos jovens fora a grande
demonstraçao ngorosa ap . 1 retorna explicitamente preocupação da classe dos nobres, daqueles que possuem
t dos Nesse esforço racwna' " a aret~. isto é, a excelênci.él. necessária pela nobreza de
Por o- · . oncebida como " na tur eza . -processo
. "' .
à noçao de physzs, c
.
·
d es gregos ms1s 1
· · t'ndo por sua
, sa~e 11 , que se t~rD.ã;;C"mais tarde, com os filósofos, a
pelos primeiros pen~a ord'al e ori~nal desse processo. virtude, isto é, a nobreza da alma. Podemos fazer uma
arte, no car áter pnmor 1. - V• ~~~~~~-~--'-""'·~<
t>'
. . · 1 e' 0 movimento ideia dessa educação aristocrática graças aos poemas de
·P - s 0 nmord1a1 e ongma
Mas, para P1atao ' P . - automotor, isto Teógnis, que são uma compilação de preceitos morais 12 .
gera a Sl mesmo, que e
e processo que se evolucionista é substituído, assim, Essa educação é dada pelos adultos no próprio grupo
é, a alma. O esquer:na.onista· o universo já não nasce do social. Prepara-se nele para adquirir as qualidades: força
por um .esquema cn~o as da racionalidade da alma, e a f!~i_ça._, çor;:t~e~~--s~gsg" de dever e_ç!e honr~ que convêm
automausmo da physzs, ~ . · tudo identifica-
alma, como princípio pnmezro, antenor a ' aos guerreiros e se encarnam nos grandes ancestrais di-
vinos que se tomam por modelo. A partir do século V,
se à physis.
com o desenvolvimento da democracia, as cidades terão o
mesmo cuidado em formar os futuros cidadãos por meio
A paideia de exercícios corporais, ginástica e música, e por meio do
espírito. Mas a vida democrática engendra lutas pelo poder:
, de filosofia antes da filosofia a
Pode-se falar tamb em é- é necessário·saber persuadir o povo, fazê-lo tomar essa ou
, . utra corrente do pensamento grego pr aquela decisão na assembleia. É, portanto, necessário, caso
prop_o~Ito de o , ráticas e teorias que se reportam
' , socratlco: _re!l.r~-m; a~;mental da mentalidade grega, o se queira tornar:se um chefe do povo, ;~~~!!ir ª-.b-ª!2gi_~~~e
a uma exigenoa un d g o cuidado daquilo que os daJiu.gy.agem. E a essa necessidade que há de responder
. d formar e de e ucar '
d eseJO o movimento sofistico.
e . p ·a ialo Desde os distantes tempos
gregos denommavam az e .
guidade, trad. de Mário Leônidas Casanova, São Paulo/Brasília, EPU/INL,
8. Cf. id., ibid., PP· 443-.93.9..- - ral entre os gregos, cf. L Hadot, 1975], e o capítulo "The Origins of Higher Education at Athens", in]. P.
9. Sobre o início da educaçao mo "Th S 1"ritual Guide", in Cl,assical Lynch, Aristotle's School. A Study of a Greek Educational Institution, University
10 38 e da mesma autora, e P N of California Press, 1972, pp. 32-68.
Seneca .. . , PP· - • '. . G1< k Roman org. A. H. Armstrong, ew
Mediterranean Spiritualzty. Egyptzan, ee , , 11. Cf. W. Jaeger, Paideia ... , pp. 29 ss. [pp. 17 ss. da tradução brasilei-
York Crossroad, 1986, PP· 4 36-459 · , fim do se'culo V consulte-se W. ra.], que mostra muito bem a diferença entre a educação (do aristocrata,
' · Atenas ate o ' conforme o ideal de sua casta) e a cultura (do homem 1:af qual ele deveria
10. Para a Grécia arcaica e p . 1964 [Paideia. A formação
. L fi ( n de l'homme grec, ans, . set~ segundo a filosofia). ·
Jaeger, Paideza. a arma zo M p ·ra São Paulo/Brasília, Martms
tr dução de Artur · arret ' d 12. Cf. W. Jaeger, Paideia... , pp. 236-248 [N. do T.: pp. 160-172. Para
do homem grego, a. . B ília 1986]. Espera-se que se tra uza para
Fontes/Editora Umverstdade de rabs , tr ta dessa vez de Sócrates e de uma tradução de poemas de Teógnis, cf. Poesia grega e latina, ~'eü~çaÓ,.notas
, d tomo dessa o ra, que a , I M e tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo, Editora Cultrix,
o frances o segun o . 1955 Veia-se tambem H.- . arrou,
·
Platão, e fm pu ca bli da em Berhm em · "
. . , p . 1950 [História da educaçao - na A n (z- 1964 (Clássicos Cultrix)].
Histoire de l'éducation dans l'Antzquzte, ans, .
31
30
A definição platônica do filósofo e seus antecedentes A filosofia antes da filosofia

Os sofistas do século V responde a uma necessidade. O desenvolvimento da vida


democrática exige que os cidadãos, sobretudo os que que-
Com o desenvolvimento da democracia ateniense no rem chegar ao poder, possuam uma habilidade perfeita
século V, toda a atividade intelectual que se disseminara nas da palavra. Até então, os jovens eram formados segundo
colônias gregas da Jônia, da Ásia Menor e do Sul da Itália a aretê, pela synousía, isto é, pela frequentação ·do mundo
fixa-se em Atenas. Pensadores, professores e sábios afluem adulto 14, sem distinção. Os sofistas, ao contrário, inventam
para essa cidade, introduzindo modos de pensamento ainda a educação em ambiente artificial, o que se tornará uma
pouco conhecidos ali, e que são mais ou menos bem aco- das características de nossa civilização 15 • Eles são os pro-
lhidos. Por exemplo, o fato de Anaxágoras 13 , proveniente fissionais do ensino, antes de tudo pedagogos, ainda que
da Jônia, ter sido as:!J:~ªQQ~~d~::~t,~!~p.oe precisar exilar-se seja necessário reconhecer a notável originalidade de um
mostra bem que o espírito de investigação que se desenvol- Protágoras, de um Górgias ou de um Antifonte, por exem-
vera nas colônias gregas da Ásia Menor era profundamente plo. Por um salário, eles ensinavam a seus alunos receitas
insólito para os atenienses. Os famosos "sofistas" do século que lhes permitissem persuadir os ouvintes, defender, com
V são muitas vezes estrangeiros. Protágoras e Pródico são a mesma habilidade, o pró e o contra (antilogia). Platão
provenientes da Jônia; Górgias, do Sul da Itália. O mo- e Aristóteles acusaram-nos de ser comerciantes do saber,
vimento de pensamento que eles representam mostra-se negociantes no atacado e no varejo 16 • Eles, por outro lado,
ao mesmo tempo como uma continuidade e como uma ensinam não só a técnica do discurso que persuade, mas
ruptura em relação ao que os precede. Continuidade à também tudo o que pode servir para atingir a dimensão
medida que o método de argumentação de Parmênides, da visão que sempre seduz um auditório, isto é, a cultura
Zenão de Eleia ou Melisso volta a ser encontrado nos geral, pois trata-se lá também tanto de ciência, geometria
paradoxos sofísticos, continuidade ta_mb~m à med~da, que ou astronomia como de história, sociologia ou teoria do di-
os sofistas visam reunir todo saber oent1fico ou h1stonco reito. Eles não fundam escolas permanentes, mas propõem,
acumulado pelos pensadores anteriores a eles. Mas tam
bém ruptura, porque, de_uJTI lado, eles submetem es e 14. Sobre a synousía, cf. Platão, Defesa de Sócrates, 19 e [Defesa de
. saber anterior a uma crítica radical, insistindo, cada m Sócrates, 4a edição, tradução de Jaime Bruna, São Paulo, Nova Cultural,
à sua maneira, no conflito que opõe ~-·~ªtl1L~~.a~.(P1ysis) 1987 (Os Pensadores)].
15. Encontrar-se-ão os fragmentos dos sofistas nos Les Présocratiques
e as çQIUi:ellÇÕ.es.huJl!ªJJ,es Jnómoi), e porque, de 16utro (citado p. 27, n. 1), pp. 981-1178 e emJ.-P. Dumont, Les sophistes. Fragments
lado, sua atividade é especialmente dirigida à formação da et témoignages, Paris, 1969. Sobre os sofistas, cf. G. Romeyer-Dherbey, Les
juventude, tendo em vista o êxit() na política. Seu ensino Sophistes, Paris, 1985;]. de Romilly, Les grands sophistes dans l'Athenes de Péri-
cles, Paris, 1988; G. Naddaf, L'origine et l'évolution ... , pp. 267-338;]. P. Lynch,
Aristotle's School, pp. 38-46; B. Cassin, L'Effet sophistique, Paris, 1995.
13. Sobre os conflitos entre os filósofos e a cidade, cf. a antiga mas 16. Platão, Sofista, 222 a- 224 d [Sofista, 3a. edição, tradução e notas
sempre útil obra de P. Decharme, La critique des traditions religieuses chez les de Jorge Paleikat e João Cruz Costa. São Paulo, Nova Cultural, 1987 (Os
Grecs, Paris, 1904. Pensadores)]; Aristóteles, Refutações Sofisticas, 165 a 22.

32 33
A definição platônica do filósofo e seus antecedentes

mediante retribuição, séries de cursos e, para atrair os ou-


vintes, fazem sua própria publicidade dando conferências
públicas, por ocasião das quais eles provam seu saber e
Capítulo 2
habilidade. Eles são professores ambulantes que beneficiam
com sua técnica não só Atenas, mas ainda outras cidades.
Assim a aretê, a excelência, dessa vez concebída como O surgimento
competência que deve permitir desempenhar um papel na
cidade, pode tornar-se objeto de aprendizado, se o sujeito
da noção de ':filosofar"
que a aprende tem as atitudes apropriadas e se as exerce
satisfatoriamente.

O testemunho de Heródoto

É quase certo que os pré-socráticos dos séculos Vil e VI


a.C., Xenófanes ou Parmênides por exemplo, e mesmo pro-
vavelmente - apesar de certos testemunhos antigos porém
muito discutíveis-, Pitágoras1 e Heráclito2, não conheceram
o adjetivo philosophos nem o verbo philosophein (filosofar)
tampouco, com mais forte razão, a palavra philosophia. Essas
palavras, com efeito, segundo toda verossimilhança, só apa-

1. Há opiniões divergentes sobre esse assunto: R. Joly, Le theme philo-


sophique des genres de vie dans l'Antiquité classique, Bruxelles, 1956; W. Burkert,
"Platon oder Pythagoras? Zum Ursprung des Wortes 'Philosophie'", in Her-
mes, 88: 159-177, 1960; C. J. de Vogel, Pythagoras and Early Pythagoreanism,
Assen, 1966, pp. 15 e 96-102. Concordo com W. Burkert que o caso relatado
por Heráclido do Ponto (cf. Diógenes Laércio, I 12 [Vidas e doutrinas dos
filósofos ilustres, 2a ed., tradução, introdução e notas de Mário da Gama
Kury, Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1997]; Cícero, Tusculanas, V,
8; Jâmblico, Vida de Pitágoras, 58) é uma projeção sobre Pitágoras da noção
platônica de philosophia.
2. Heráclito, B 35, Dumont, p. 134, e a nota de J.-P. Dumont, p. 1236,
que emite dúvidas sobre a autenticidade da palavra "filósofo"; do mesmo
modo Diels-Kranz, Die Vorsokratiker, t. I, Dublin/Zurich, 1969, p. 159.

34 35
A definição platônica-do filósofo e seus antecedentes O surgimento da noção de "filosofar"

receram no século V, no século de Péricles, no qual Atenas Creso pergunta a Sólon qual é, para ele, o homem mais
brilha ao mesmo tempo por sua preponderância política feliz. E ele responderá que ninguém pode ser considera-
e por seu esplendor intelectual, à época de Sófocles, de do feliz antes de ter visto o fim de sua vida.
Eurípides, dos sofistas, à época também em que, por exem-
·. plo, o historiador Heródoto, originário da Ásia Menor, no Heródoto revela a existência de uma palav.ra que talvez
decorrer de suas numerosas viagens, passa a viver na céle- já estivesse na moda anteriormente mas que, em todo caso,
bre cidade. E talvez seja precisamente em sua obra que se tinha um futuro, na Atenas do século V, a Atenas da de-
encontra a primeira menção a uma atividade "filosófica". mocracia e dos sofistas. De maneira geral, desde Homero,
Heródoto narra o encontro lendário de Sólon, o legislador as palavras compostas em philo- serviam para designar a
de Atenas (séculos VII-VI), um dos que são denominados os ~~P_<?Si5'_ã~de al~~~que e~~?ní[~seu intere"sse~~~~~~~r,
Sete Sábios, com Creso, o rei da Lídia. Este, orgulhoso de seu slla~~~~()_ª-~=§:yer, na
âedicação a essa ou àquela atividade:
poder e de suas riquezas, dirige-se a Sólon nestes termos3: philv-posia, por exemplo, é o prazer e o proveito que se tem
ao beber, philo-timia é a propensão para angariar honras,
Meu caro ateniense, a notícia de tua sabedoria (sophiês) e philo-sophia será, portanto, o interesse pela sophíd'.
de tuas viagens chegou até nós. Não ignoro absolutamente
que, por amar a sabedoria (philosopheôn), percorreste muitos
países, por causa de teu desejo de conhecer. A atividade filosófica, orgulho de Atenas
Vislumbra-se aqui o que representavam naquele momen-
to a sabedoria e a filosofia. As viagens que Sólon realizou Os atenienses do século V eram orgulhosos dessa
tinham como fim conhecer, adquirir vasta experiência da atividade intelectual, desse interesse pela ciência e pela
realidade e dos homens, descobrir a um só tempo países cultura que florescia em sua cidade. Na Oração fúnebre
e costumes diferentes. Observe-se a esse respeito quanto que Tucídides 6 o faz pronunciar em memória dos pri-
isso se assemelha ao -que -os pré-socráticos caracterizam
5. Sobre a palavra philosophia, veja-se também E.· A Havelock, Preface
intelectualmente como uma historia, isto é, uma investi-
to Plato, Cambridge, Mass., 1963, pp. 280-283 [Prefácio a Platão, tradução de
gação4. Essa experiência pode fazer daquele que a possui Enid Abreu Dobránzky, Campinas, Papirus, 1996, pp. 296-299]; W. Burkert
um bom juiz nas coisas da vida humana. Eis por que (artigo citado, p. 35, nota 1), P- 172.
6. Tucídides, A Guerra do Peloponeso, II, 40, 1 [História da Guerra do
Peloponeso, 3" ed., tradução, introdução e notas de Mário da Gama Kury,
3. Heródoto, Histórias, I, 30 [tradução de J. Brito Broca, São Paulo/Rio Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1987; A Guerra do Peloponeso, Livro
de Janeiro/Porto Alegre, W. M. Jackson, s.d. (Clássicos Jackson).]. I, introdução, tradução e notas de Anna Lia Amaral de Almeida Prado, tese
4. Cf. acima, p. 29; se Heráclito fala efetivamente de filósofos em seu de Doutorado em Letras. São Paulo, USP, 1972; Oração Fúnebre de Péricles,
fragmento 35 (cf. p. 35, nota 2), observe-se, então, que ele vincula filosofia in Eloquência grega e latina, seleção, tradução, introdução e notas liminares
e investigação. de Jaime Bruna, São Paulo, Ediouro, s.d., pp. 9-15]_

36 37
A definição platônica do filósofo e seus antecedentes O surgimento da noção de "filosofar"

meiros soldados que tombaram na guerra do Peloponeso, opondo seus discursos a propósito temas sem vinculação
Péricles, o homem de Estado ateniense, faz nestes termos com um problema particular, jurídico ou político, mas
o elogio do modo de vida que se pratica em Atenas: revelavam sua cultura geral.
"Somos amantes da beleza sem extravagâncias e filosofa-
mos sem indolência". Os dois verbos empregados são
~, compostos de philo-: philokaleil( e philosophein. Aqui, logo A noção de sophía
notamos, é simplesmente proclamado o triunfo da
democracia. Já não são apenas as personalidades de ex- As palavras philo-sophos e philo-sophein supõem outra
ceção ou os nobres que conseguem alcançar a excelência noção, a de sophía, mas antes é necessário reconhecer que
( aretê), mas todos os cidadãos podem atingir esse fim, na época não existia definição filosófica dessa noção.
na medida em que amam a beleza ou se entregam ao
amor da sophía. No início do século V, o orador Isócrates, Para definir sophía, os intérpretes modernos sempre
em seu Panegírico7 , retomará o mesmo tema: foi Atenas hesitam entre a noção d~-~aber e a de sabedori_:;!-· O sophós
que revelou ao mundo a filosofia. é aquele que sabe muitas coisas, que viu muitas coisas, que
viajou muito, ou o que sabe se conduzir bem na vida e
Essa atividade engloba tudo o que se refere à cultura
é feliz? Será sempre necessário repetir tudo isso no curso
intelectual e geral: as especulações dos pré-socráticos, as
desta obra, as duas noções estão longe de excluir-se:_ ()Ver-
ciências nascentes, a teoria da linguagem, a técnica retórica,
dadeiro saber é, :finalmente, um saber-fazer, e o verdadeirQ
a arte de persuadir. Às vezes ela se refere mais precisamen-
saber-fazer é um saber-fazer o bem. -
te à arte de argumentação, e é o que se supõe por uma
alusão do sofista Górgias em seu Elogio de Helena!'. Ela, diz Desde Homero, as palavras sophía e sophós foram em-
ele, não é responsável por seu ato, pois foi induzida a agir pregadas nos contextos mais diversos, a propósito de con-
assim por causa da vontade dos deuses, ou sob pressão de dutas e de inclinações que, aparentemente, não têm nada
violência, ou ainda pela fQrç_ade persuasão, ou enfim por a ver com as dos "filósofos" 10 • Na Ilíada, Homero11 fala do
paixão. E distingue três formas de persuasão pela lingua- carpinteiro que, graças aos preceitos de Palas Atena, se
gem, uma consistindo nos "combates dos discursos dos
mostra sagaz em toda sQé~z'q!..~~~() ~' <:!!1. t,oçlo_w§é);~~I"~f~~r: . De
filósofos" 9 • Trata-se, sem dúvida, de discussões públicas nas
quais os sofistas enfrentavam-se para mostrar seu talento, 10. B. Gladigow, Sophia und Kosmos, Hildesheim, 1965; G. B. Kerferd,
"The Image of the Wise Man in Greece in the Period before Plato", in
7. Isócrates, Panegírico, § 47. Images of Man, Mélanges Verbeke, Louvain, 1976, pp. 18-28.
8. Elogio de Helena, Tradução de Maria Cecília Coelho, in Maria Cecília 11. Ilíada, 15, 411 [tradução de Carlos Alberto Nunes, São Paulo,
Coelho, Górgias: verdade e construção discursiva, dissertação de mestrado em Ediouro, s. d.; MHNIS. A ira de Aquiles. Canto I da Ilíada de Homero, tra-
Filosofia, São Paulo, USP, 1997, pp. 83-89. dução de Haroldo de Campos e Trajano Vieira, transcrição visual de José
9. Ibid., 13. Roberto Aguilar, São Paulo, Nova Alexandria, 1994].

38 39
A definição platônica do filósofo e seus antecedentes O surgimento da noção de "filosofar"

maneira análoga, o hino homérico A HermeP, após ter bre a língua e sobre os lábios daquele que elas escolheram
narrado a invenção da lira, acrescenta que o próprio deus um orvalho suave, um doce mel:
modela o instrumento de uma sophía além da arte da lira,
a saber, a siringe. Trata-se aqui, portanto, de uma arte, de Todas as gentes o olham decidir as sentenças
um saber-fazer musical. com reta justiça e ele, firme, falando na ágora.
As palavras do poeta também mudam os corações:
A julgar por esses dois exemplos, pode-se perguntar legi-
timamente se, tanto no caso do fabricante de navios como Feliz é quem as Musas
no do músico, a palavra sophía não designa, de preferência, Amam, doce de sua boca flui a voz.
: atividades e práticas que são submetidas à medida e à regra13 Se com angústia no ânimo recémjerido
e supõem um ensino e uma aprendizagem mas, por outro alguém aflito mirra o coração e se o cantor
lado, exigem também o concurso de um deus, uma graça servo das Musas hineia a glória dos antigos
divina, que revela ao artesão ou ao artista os segredos de e os venturosos Deuses que têm o Olimpo,
fabricação e ajuda-os no exercício de sua arte. logo esquece os pesares e de nenhuma aflição
se lembra, já os desviaram os dons das Deusas.
Da mesma maneira, sophiê é empregada por Sólon 14 no
século VII a.C. para designar a atividade poética, que é Já aparece aqui a ideia, fundamental na Antiguidade,
fruto, sempre ao mesmo tempo, de um longo exercício e do valo~ psicagógico do discurso e da importância capital
da inspiração das Musas. Essa potência da palavra poética, da hab1hdade da palavra 16 • Palavra que opera em dois
inspirada pelas Musas que dão seu sentido aos aconteci- registros aparentemente muito diferentes, o da discussão
mentos da vida humana, aparece mais claramente em juú~ico-política: os reis decidem a justiça e põe;ri"fi;- â
Hesíodo, no início do século VII. Se não utiliza literalmen- discórdia, e o do encanto poético: os poetas, com seus
te a palavra sophía, ele exprime com muita força o conteú- cantos, ml!~~~_?-~gi<:':ç~~ dos h2m.ens. Mnemosyne, mãe
das Musas, é "oblívio de malê~s e pausa de aflições"I7 Nesse
do da sabedoria poética. Testemunha bastante interessante,
en~<l!l:~o,~p~~e-se descobrir um esboço do que serão mais
pois põe em paralelo a sophía do poeta e a do rei 15 • São
tarde os exercícios espirituais filosóficos, sejam eles da
as Musas que inspiram o rei sensato. As Musas vertem so-
~rdem do discurso ou da contemplação. Porquanto não
12. Homero, A Hermes, I, 511. e somente pela beleza dos cantos e das histórias que nar-
13. J. Bollack, "Une histoire de sophie' (c. r. de Gladigow, ver-se p. 39, ram que as Musas fazem esquecer os males, mas porque
nota 10), in Revue des études grecques, t. 81, 1968, p. 551.
14. Sólon, Elegias, I, 52. 16. Cf. G. Romeyer-Dherbey, Les Sophistes, pp. 45-49; P. Lain Entralgo,
15. Hesíodo, 1êogonia, 80-103 [N. do T.: Teogonia. A origem dos deuses, The Therapy of the Word in Classical Antiquity, New Haven, 1970 (c. r. de F.
2a edição, estudo e tradução de Jaa Torrano, São Paulo, Iluminuras, 1991 Kudlien, in Gnomon, 1973, pp. 410-412).
(Biblioteca Pólen). Vali-me dessa tradução para todas as citaçôes.]. 17. Hesíodo, Teogonia, 55.

40 41
A definição platônica do filósofo e seus antecedentes

fazem os poetas e aquele que escuta ascender a uma visão Vê-se a riqueza e variedade dos componentes da noção
cósmica. Se "elas a Zeus pai hineando alegram o grande de sophía. Eles se reencontram na representação lendária e
espírito" 18 , é porque cantam para ele e fazem-no ver "o popular e, de resto, histórica que se fez da figura dos Sete
que é, o que será e o que foi", e é prec~samente isso que Sábios 22 , cujos traços já se encontram em alguns. poetas do
cantará o próprio Hesíodo em sua Teogonia. Uma sentença século VI, e depois em Heródoto e em Platão. Tales de
epicurista atribuída a Metrodoro, discípulo de Epicuro, Mileto (fim do século VII-VI) possui, antes de tudo, um
dirá: "Lembra-te de que, nascido mortal e com uma vida saber que poderíamos qualificar de científico: prevê o eclip-
limitada, subiste, graças à ciência da natureza, ao infinito se do sol de ...28 de maio de 585, afirma que a Terra repou-
do espaço e do tempo, e que viste o que é, o que será e sa sobre a água; mas ele tem igualmente um saber técnico:
o que foi" 19 . E, antes dos epicuristas, Platão já dissera que se lhe atribui o desvio do curso de um rio; enfim, ele de-
a alma, a quem pertence a elevação de pensamento e a
monstra possuir perspicácia política: procura salvar os gregos
contemplação da totalidade, não considera a morte uma
da Jônica, propondo-lhes formar uma federação. De Pítacos
coisa a temer20 .
de Mitilene (século VII) atestou-se apenas uma atividade
A sophía pode, por outro lado, também designar a política. Sólon de Atenas (século VII-VI) é também, já vimos,
habilidade com a qual se sabe conduzir com outrem, ha- um homem político, cuja benéfica legislação deixa uma
bilidade que pode chegar até a astúcia e a dissimulação. grande lembrança, mas é também um poeta que exprime
Por exemplo, na compilação de sentenças que codifica a em seus versos seu ideal ético e político. Quílon de Esparta,
educação aristocrática escrita por Teógnis no século VI a.C. Periandro de Corinto, Bias de Priene (os três do início do
e dirigida a Cirnos, encontra-se o conselho21 : século VI) são igualmente homens políticos, célebres por
Cirnos, apresenta a cada um dos teus amigos um aspecto algumas leis que editaram ou por suas atividades oratória
diferente de ti mesmo. Matiza-te conforme os sentimentos de e judiciária. As indicações concernentes a Cleóbulo de
cada um. Um dia te ligues a um e depois procura a propósito Lindos são as mais incertas: sabemos somente que se lhe
mudar de personagem. Porquánto a habilidade (sophiê) é atribui certo número de poemas. Atribuem-se aos Sete Sábios
melhor mesmo do que uma grande excelência (are tê). algumas máximas, "frases breves e memoráveis", diz Platão23,
pronunciadas por cada um deles no momento em que,
18. ld., ibid., 37. reunidos em Delfos, quiseram oferecer a Apolo, em seu
19. Cf. Epicuro. Lettres, maximes, sentences, traduit et commenté par J.-F.
Balaudé, Paris, 1994, p. 210 (sentença 10).
templo, as primícias de sua sabedoria e dedicaram-lhe
20. Platão, A República, VI, 486 a [A República, 2a ed., tradução de
Carlos Alberto Nunes e introdução de Benedito Nunes, Belém, Editora da 22. B. Snell, Leben und Meinungen der Sieben Weisen, München, 1952.
Universidade Federal do Pará, 1988; A República, 2a ed., tradução de Jacó 23. Platão, Protágoras, 343 a-b [Protágoras, tradução, estudo introdutório
Guinsburg, São Paulo, Difel, 1973]. e notas de Eleazar Magalhães Teixeira, Fortaleza, Edições Universidade
21. Teógnis, Poemas elegíacos, 1072 e 213. Federal do Ceará, 1986].

42 43
A definição platônica do filósofo e seus antecedentes
O surgimento da noção de "filosofar"

as inscrições que todo mundo repete: "Conhece-te a ti


Quanto aos sofistas, eles serão atraídos por conta de
mesmo", "Nada em demasia". Efetivamente, uma lista de sua intenção de ensinar aos jovens a sophía: "Meu ofício"
máximas que se diz ser obra dos Sete Sábios foi gravada -diZia o epitáfio de Trasí1Jlaco - "é a sophía" 26 • Para os
próximo ao templo de Delfos, e o costume de inscrevê-las sofistas, a palavra sophia significa, em primeiro lugar, um
para que fossem lidas por todos os que passassem nas dife- saber-fazer n~-~~<l política, mas implica também tõaõs
rentes cidades gregas foi disseminado. É assim que se des- "üs"Cümponentes que-entreVimos, notadamente a cultura
cobriu em 1966, em Ai Khanun, na fronteira do atual científica, ao menos na medida em que ela faz parte da
Meganistão, nessa época, perto de uma escavação feita em cultura geral.
uma cidade de um antigo reino grego, o Bactriano, uma
estela mutilada que, como mostrou L. Robert, continha
originalmente uma série completa de cento e quarenta
máximas délficas. Foi Clearco2\ discípulo de Aristóteles, que
as fez gravar no século III a.C. Vê-se aqui a importância
que o povo grego atribuía à educação morai2 5 .
A partir do século VI, outro componente será acrescido
à noção de sophía, com o desenvolvimento das ciências "exa-
tas", a medicina, a aritmética, a geometria, a astronomia.
Já não há somente "especialistas" (sophoi) no domínio das
··artes ou da política, mas também no domínio científico.
Por outro lado, desde Tales de Mileto, uma reflexão cada
vez mais específica desenvolveu-se no domínio do que os
gregos denominavam physis, -isto é, o fenômeno de brota-
ção dos seres vivos, do homem, mas também do universo,
reflexão que esteve desde então, muitas vezes, intimamente
misturada a arrazoados éticos, como em Heráclito, por
exemplo, ou sobretudo em Demócrito.

24. L. Robert, "De Delphes à l'Oxus. Inscriptions grecques nouvelles


de la Bactriane", in Académie des inscriptions et belles-lettres, Comptes rendus,
1968, pp. 416-457.
25. Cf. I. Hadot, "The Spiritual Guide", pp. 441-444.
26. Trasímaco, A VIII, Dumont, p. 1072.

44
45
Capítulo 3

fi figura de Sócrates

A figura de Sócrates teve influência decisiva sobre a


definição do "filósofo" que Platão. propôs em seu diálogo
Banquete, uma verdadeira tomada de consciência da situa-
ção paradoxal do filósofo no meio dos homens. Por essa
razão, devemos nos deter longamente não no Sócrates
histórico, dificilmente cognoscível, mas na figura mítica
de Sócrates tal qual apresentada pela primeira geração
de seus discípulos.

A figura de Sócrates

Comparou-se muitas vezes Sócrates a Jesus 1 . Entre outras


analogias, é verdade que eles tiveram imensa influência
histórica, embora tenham exercido sua atividade em um
espaço e um tempo limitados em relação à história do
mundo: uma pequena cidade ou um pequeno país, e te-
nham tido um número muito pequeno de discípulos. Os

I. Th. Dennan, Socrate etjésus, Paris, 1944. Sobre Sócrates, cf. F. Wolff,
Socrate, Paris, 1985 [Sócrates: o sorriso da razão, 4• ed., tradução de Franklin
Leopoldo e Silva. São Paulo, Editora Brasiliense, 1987 (Encanto Radical).];
E. Martens, Die Sache des Sokrates, Stuttgart, 1992.

47
A definição platônica do filósofo e seus antecedentes A figura de Sócrates

·~
dois não escreveram nada, mas possuímos sobre eles teste- essas escolas: com elas aparece o conceito, a ideia de filo_ . ,
munhas "oculares": sobre Sócrates as Memoráveiil de Xeno- sofia, concebida, nós o veremos, como um discurso vin-
fonte, os diálogos de Platão; sobre Jesus os Evangelhos3 , e, culado a um modo de vida e como um modo de vida
mesmo assim, é muito difícil para nós definir com certeza i vinculado a um discurso.
o que foram o Jesus histórico e o Sócrates histórico. Após
sua morte, seus discípulos4 fundaram escolas para difundir Talvez tivéssemos outra ideia de quem foi Sócrates se
sua mensagem, mas as escolas fundadas pelos "socráticos" a~ o~ras pr~duzidas em todas as escolas fundadas por seus
parecem muito mais diferentes umas das outras do que os ~Iscipulos tivessem sobrevivido e, especialmente, se toda a
cristianismos primitivos, o que nos permite decifrar a com- h~eratura ~os diálogos "socráticos", que põem em cena
plexidade da atitude socrática. Sócrates inspirou, ao mesmo Socrates dialogando ~om seus interlocutores, tivesse sido
tempo1 Antístenes - o fundador da escola cínica, que conservada até nós. E necessário lembrar, em todo caso,
preconizava a tensão e a austeridade e dey~ria influenciar que o dado fundamental dos diálogos de Platão, a ence-
profundamente o estoicismo - e Aristipo - fundador da nação de diálogos ~os quais Sócrates desempenha, quase
escola de Cirene, para quem a arte de viver consistia em sempre, o papel de mterrogador, não é invenção de Platão
tirar o melhor partido possível das situações que se apre- mas que seus famosos diálogos pertencem a um g~nero ~
sentavam concretamente, que não desdenhava o repouso diálogo "socrático", que foi verdadeira moda en't;~ os ais-
e o prazer e deveria, também, exercer influência consi- cí~ulo~ de Sócrates_5. O sucesso dessa forma literária. per-
derável sobre o epicurismo -; mas ele inspirou igualmen- nute _VIslumbrar a ~mpressão extraordinária que a figura
te Euclides - fundador da escola de Megara, célebre por de Socrates produzm sobre seus contemporâneos e sobre-
sua dialética. Um único de seus discípulos, Platão, triun- tudo sobre seus discípulos, e a maneira pela qual conduzia
fou na história, seja porque soube conferir a seus diálogos suas _c~nversa~ ~om seus concidadãos. No caso dos diálogos
um imperecível valor literário, seja antes porque. a escola socraticos redig~dos por Platão, a originalidade dessa forma
que fundou sobreviveu àurante séculos, salvando assim literária consiste menos na utilização de um discurso divi-
seus diálogos e desenvolvendo ou mesmo deformando sua dido em questões e respostas (visto que o discurso dialéti-
doutrina. Em todo caso, um ponto parece comum a todas co existia bem antes de Sócrates) do que no papel de
personagem central assinalado a Sócrates. Disso resulta
2. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates, 4• ed., tradução de Líbero Rangel uma relação muito particular entre o autor e sua obra, de
de Andrade, São Paulo, Nova Cultural, 1987 (Os Pensadores).
3. A Bíblia de Jerusalém. São Paulo, Ediçôes Paulinas, 1991; Bfblia- tra-
5. Aristóteles, Poética, 1447 b 10 [Poética, 4• ed. tradução comenta' ·
dução ecumênica. São Paulo, Ediçôes Loyola, 1994; Bíblia- tradução ecumêni- ' d" 1' · , , nos
e m 1ces ana 11lco e onomástico de Eudoro de Souza, São Paulo, Nova Cul-
ca. Versão completa em CD-ROM. São Paulo: Loyola Multimídia, 1997. tural, 1987 (Os Pensadores); Poética, in A Poética Clássica 5• ed tr d - -
4. Leia-se em F. Wolff, Socrate, pp. 112-128, "L'album de famille", que d J · B - ., ., a uçao
e arme _runa, Sa_o Paulo, Cultrix, 1995]. Cf. C. W. Müller, Die Kurzdialo e
caracteriza excelentemente as diferentes personagens. der Appendzx Platonzca, Munich, 1975, pp. 17 ss. ~

48 49
A definição platônica do filósofo e seus antecedentes
A figura de Sócrates

um lado, e entre o autor e Sócrates, de outro. O autor si-


precedente, possuem a sabedoria i , . •/
mula não intervir em sua obra, visto que se contenta apa- mens de Estad ' sto e, o saber-fazer.4 ho-
rentemente em reproduzir um debate que opôs duas teses o, poetas, artesãos - ~ --~~ ---*-
que fosse mais 'b· ' para descobnr alguém
adversas: pode-se, quando muito, supor que ele prefere a sa IO que ele. Percebe entã
pessoas que acreditam tud b - o que todas as
tese que faz Sócrates defender. Ele toma, de alguma ma- . o sa e r na o sabem nad D.
conclru que é o mais sábio or - a. Isso
A

neira, a máscara de Sócrates. Tal é a situação que se en- sabe. O que , I .p .que nao cre saber o que não
o oracu o qrus dizer é ta -~-
contra nos diálogos de Platão. Jamais o "eu" de Platão sábio dos humanos é " ' por nto, que o mais
aparece. O autor não intervém sequer para dizer que foi · , . quem compreendeu oue b
d o na e verdadeirament a· "" ~ . " " :-:t - sua ~a e-
ele que compôs o diálogo, e não se põe em cena na dis- ", . e esproVIda do mínimo val "7 rr. '"I.. -
sera, precisamente a d fi . - or .. .~.a
B
A •

cussão entre os interlocutores. Contudo, evidentemente, diálogo intitulad e mçao platomca do filósofo no
não especifica o que remete a Sócrates e o que remete a o anquete: o filosofo nada b ,
consciente de seu não sa b er. sa e, porem é
ele próprio nos temas debatidos. Portanto, quase sempre
é extremamente difícil distinguir em certos diálogos a A tarefa
--~. .
de Sócra t es, que Ih e fOI. confiad d. D
parte socrática e a parte platônica. Sócrates aparece, assim, pelo oraculo de Delfos isto é -I . .a, IZ a e.fesa,
A

pouco tempo após sua morte, como uma figura mítica. deus Apolo será fazer q'u ' em u tima mstancia, pelo
.A ' e os outros homens t
Mas foi precisamente esse mito que marcou com traços nencia de seu próprio _ b - ornem cons-
p ara realizar essa missãonao S-
sa er, de sua não b d .
. , . sa e ona.
indeléveis toda a história da filosofia. . ' ocrates agira como qu d
sab e, Isto é, com ingenuidad É . . em na a
a ignorância dissimulada o e~r : fad~dosa Iroma socrática:
I . ' can I o com o qual
O não saber socrático e a crítica do saber sofístico e~e.mp o, ele Investigou para saber se h . I , ' p~r
sabw que ele Como a· aVIa a guem mais
. . Iz uma personagem da RepúblicdJ:
Na Defesa de Sócrates, na qual Platão reconstitui, à sua
Ez-la, a habitual ironia de Sócrates t Eu 'á b . .
maneira, o discurso que -Sóc.r-ates pronuncia diante de seus a esses jovens que não q . · 1 sa za e predzssera
juízes por ocasião do processo em que foi condenado, ele . uererzas responder. que s · l .
zgnorância que tud fi . _ ' zmu arzas
narra que um de seus amigos, Querefonte 6 , perguntara ao , o arzas para nao responder às p
que te fossem apresentadas! erguntas
oráculo de Delfos se existia alguém mais sábio (sophós) que
Sócrates, e o oráculo teria respondido que não. Sócrates se É porque, nas discussões, Sócrates é s .
questiona, então, sobre o que o oráculo quis dizer, lançan- rogador: "é que ele c empre o mter-
con1essa nada sabe "
do-se em uma longa investigação junto às pessoas que, se- Aristóteles 9• "Sócrates d . d . . r ' como nota
' eprenan o-se a SI mesmo" - diz
gundo a tradição grega e de quem falamos no capítulo
7. Id., ibid., 23 b.
6. Platão, Defesa, 20-23. :· Pl~tã?, República, I, 337 a.
. Anstoteles, Refutações sofísticas, 183 b 8.
50
51
A definição platônica do filósofo e seus antecedentes
A figura de Sócrates

Cícero - , "não permite que seus interlocutores digam queteu, Sócrates chega atrasado ois
· senão o que ele quer refutar: assim, pensando em uma imóvel e em p, " P permaneceu a meditar
e, ocupando seu ' · '
coisa e dizendo outra, tinha prazer em usar habitualmente Tão 1 I espinto consigo mesmo"
ogo e e faz sua entrada 1 A - .
essa dissimulação que os gregos denominavam 'ironia"' 10 • anfitrião . na sa a, gatao, que é o
' conVIda-o a sentar-se perto dele "a fi d
Na verdade, não se trata de uma atitude artificial, de um ao teu contato desfrute eu da sáb' .d . ' m e que
parti pris de dissimulação, mas de uma espécie de humor em frente de casa" "S . b Ia I eia que te ocorreu
\ · ena om A t- "
que recusa levar totalmente a sério tantos os outros como Sócrates _ "se d ' ga ao - responde
a si mesmo, porque, precisamente, tudo o que é humano, e . . , essa natureza fosse a sabedoria
r_nais cheio escorresse ao mais vazio" O 1 que. do
mesmo tudo o que é filosófico, é coisa bem pouco assegu- e que o S<!JJ~r ~ã.P.~_ !:1:1ll C>P.eto fabric que e e quer ~zer
rada, de que não se pode ter muito orgulho. A missão de acabado transmi , I d. · ~L.···· - ~ -ªgo, um conteudo
' ssive Iretamente pel .
Sócrates é fazer que os homens tomem consciência de seu não importa qual discurso. a escntura ou por
não saber. Trata-se aqui de uma revolução na concepção '-<-,,-~~=- "-------~,~~

de saber. Sem dúvida, Sócrates pode dirigir-se a estranhos, . Quando Sócrates pretende saber um , . .
e o faz com prazer, dizendo-lhes que têm apenas um saber seJa, que nada sabe é a umca coisa, ou
convencional, que só agem sob a influência de precon- dicional de saber. S~u !~:~~: ~~e r_:~usa a c~n~e_rç~o tra-
ceitos sem fundamento refletido, para mostrar-lhes que transmitir um saber o . . . oso co consistira nao em
seu pretenso saber não repousa sobre nada. Mas ele se discípulos mas ao c'ontq~~ exig~n_a responder às questões dos
' ' rano em znterrorr di ,
dirige sobretudo aos que estão persuadidos, por sua cul- ele mesmo não tem nad 'd. 1 caros SCipulos, pois
a a 1zer- hes nada ·
tura, de possuir "o" saber. Até Sócrates, houve dois tipos de conteúdo teórico d b A . '. a ensmar-1hes
e sa er 1ron1a ' ·
de personagens desse gênero: de um lado os aristocratas em simular aprender ai .. socratica consiste
do saber, isto é, os mestres de sabedoria ou de verdade, levá-lo a descobrir que gu~a COihsa de seu interlocutor, para
nao con ece nada no d , . d
como Parmênides, Empédocles ou Heráclito, que opu- que pretende ~er sábio. omimo o
nham suas teorias à ignor-ância da multidão; de outro,
Mas essa crítica do saber
dupla significação. De um la!:r:~te~ente negativa, tem
os democratas do saber, que pretendiam poder vender
o saber a todo mundo: os sofistas. Para Sócrates, o saber
verdade, como já vislumbramos' de poe que o saber e a
não é um conjunto de proposições e fórmulas feitas que
pelo próprio indivíduo p . s', vem ser engendrados
se pode escrever ou vender; como mostra o início do Ban- ue se c : or Isso ocrates afirma, no Teetetd2
q ontenta, na discussão co . .. · · · '
10. Cícero, Lúculo, 5, 15. Sobre a ironia socrática, cf. R. Schaerer, "Le nhar o papel de parteiro. Ele mes:oo~~:msa'bem ddesem~e­
mécanisme de l'ironie dans ses rapports avec la dialectique", in Revue de ena aenao
métaphysique et de morale, 48: 181-209, 1941; V. Jankélévitch, L1ronie. Paris, 11. Banquete, 174 d-175 d.
1964; ver também G. W. F. Hegel, Leçons sur l'histoire de la philosophie, T. II, 12. Teeteto, tradução dé 'C;ir'!ü Alb
Paris, 1971, pp. 286 ss. sidade Federal do Pará, 1988. s erto Nunes, Belém, Editora Univer-

52 53
A definição platônica do filósofo e seus antecedentes
A figura de Sócrates

· a nadal3 , mas contenta-se em questionar, e· são 1suas


ens1n
questões, suas interrogações, que auxiliam seus mt~r ocu- existência passada. Quando se chega lá, Sócrates não te
tores a panr. "sua" verdade · Essa imagem nos permite en- deixa partir antes de ter, bem a fundo e de uma bela ma-
tender bem que é na alma que se encontra o saber e que neira, submetido tudo à prova de seu exame [. .. } É para
mim uma alegria frequentá-lo. Eu não vejo nenht{m mal que
ao indivíduo cabe descobri-la, até que ele descu~ra, graças
me faça recordar o bem ou o mal que eu tenha feito ou
a Sócrates, que seu saber era vazi~. ~a- pe~s~ectlva de seu
ainda faça. Aquele que faz isso será necessariamente mais
\ próprio pensamento, Platão expnmira mlti~ar_ne~te. essa prudente no resto de sua vida.
ideia, dizendo que todo conhecimento é remm.Iscenna. de
. - qu e a alma teve em uma existênCia, antenor.
uma VIsao Sócrates leva seus interlocutores a examinar-se, a tomar
Será necessário aprender a recordar-se. Para Socra~es, ao consciência de si mesmos. Como "um tavão" 15, fustiga seus
contrário, a perspectiva é muito diferente. As questoes de "interlocutores com questões que os põem em questão, que
Sócrates não conduzem seu interlocutor a saber alguma os obrigam a prestar atenção a si mesmos, a tomar cuidado
,,~ coisa e a chegar a conclusões que se possam form~lar sob consigo mesmos 16: ·

,':':\a forma de proposições sobre este_ ~u aquele objet~. ~


Meu caro, tu, um ateniense da cidade mais importante e mais
'I diálogo socrático chega, ao contrano, a uma apona,.
f~ impossibilidade de concluir e de formular um s~be~. ?u; reputada por sua cultura e poderio, não te pejas de cuidares
de adquirir o máximo de riquezas, fama e honrarias, e de não
antes, é porque o interlocutor descobrirá quão Ilusono e
te importares nem cogitares da razão, da verdade e de melhorar
seu saber que ele descobrirá ao mesmo tempo s~a ~e~da~e, quanto mais a tua alma?
isto é, que, passando do saber a si mesmo, pnnnpiara a
pôr-se a si mesmo em questão. Dito de outro ~odo: no Trata-se bem menos de questionar o saber aparente
diálogo "socrático", a verdadeira questão que esta emJog.o que se acredita possuir do que de se questionar a si mesmo
não é isso de que se fala, mas aquele que fala, como o diz e os valores que dirigem nossa própria vida. No fim das
Nícias, personagem de Pl_a!.'l-- 0 14.·_ contas, após ter dialogado com Sócrates, seu interlocutor
já não sabe muito bem por que age. Ele toma consciência
Não sabes que aquele que se aproxima muito perto de Sócrates
das contradições de seu discurso e de suas própriás con-
e entra em diálogo com ele, mesmo que tenh_a começado, no
tradições internas. E vem a saber, como Sócrates, que nada
início a falar com ele de outra coisa, ele nao se constrang;e
em se~ conduzido em círculo por esse discurso, até que s~a
sabe. Mas, fazendo isso, toma distância em relação à si
necessário dar razão de si mesmo tanto quanto da. manezra mesmo, desdobra-se, uma parte de si mesmo identificando-
pela qual se vive presentemente e daquela que vzveu sua se, de agora em diante, com Sócrates no acordo mútuo
que este exige de seu interlocutor em cada etapa da discus-
13. Ibid., 150 d.
14. Laques, 187 e 6.

54
55
A definição platônica do filósofo e seus antecedentes
A figura de Sócrates

sao. Opera-se nele uma tomada de consciência de si; ele questão. É isso que d-
se põe a si mesmo em questão. Ba , . a a entender Alcibíades no fim do
nquete. E no elogio a Sócrates pronunciado por Alcib' d
O verdadeiro problema não é, portanto, saber isso ou que surge, pela primeira vez arece . - . Ia es
sentação do I d' 'd p . ' na histona, a repre-
aquilo, mas ser desta ou daquela maneira17: n IV1 uo, caro a Kierkegaa d d I di ,
como personalidade , . . r ' o . n VIduo
Eu que, negligenciando o de que cuida toda gente- rique- umca e Inclassificável E · I I
malmente diz AI0 'b' d 18 • XIstem nor- 1
\ zas, negócios, postos militares, tribunas e funções públicas, '
podem dispor os indivíd
Ia es , diferentes tipos
.

.
nos qua1s se
1

conchavos e lutas que ocorrem na política, coisas em que me uos, por exemplo o " d
neral, nobre e corajoso" como A .I ' gran e ge-
considero de Jato por demais pundonoroso para me imiscuir ricos como B - ·d ' qm es, nos tempos homé-
' rasi as, o chefe espart
sem me perder [. .. ] Eu que me entreguei à procura de cada porâneos; ou ainda o ti o "h ano, entre os contem-
um de vós em particular, a fim de proporcionar-lhes o que e prudente"· N t p ornem de Estado, eloquente
declaro o maior dos benefícios, tentando persuadir cada um nossos dias .M esS~r no te-~po de Homero, Péricles em
. as ocrates e Impossível de I 'fi -
de vós a cuidar menos do que é seu que de si próprio para se pode compará-lo a nenhum outro h c assi car. Nao
vir a ser quanto melhor e mais sensato. aos silenos e aos sátiros EI , , ornem, quanto mais
Esse apelo ao "ser", Sócrates o exerce não somente te. ' absur~Eo, inclassificá~el, ee:q~~~h:~ ~~a~~t~;o exdtrr·raa_vadgean~ r
mesmo· u t ' s1
por suas interrogações, sua ironia, mas também e sobre- - . sou o ta1mente esquisito ( átopos) - .
tudo por sua maneira de ser, seu modo de vida, seu ser senao aporia (perplexidade) "19. ~. e nao cno
mesmo. Essa personalidade única tem ai d .
ce uma espécie de atraçã - . S go : fascmante, exer-
mordem o - o magica. eus discursos filosóficos
coraçao como uma víb ·
O apelo do "indivíduo" ao "indivíduo" diz Alcibíades um estad d ora_ e provocam na alma,
embria ez filos , . o _e possessao, um delírio e uma
, . ~ . . ~fica, Isto e, uma subversão totaFo É
Filosofar não é mais, como queriam os sofistas, adquirir cessano msistlr amda nesse ponto2I S, . ne-
' ; um saber, ou um saber-fazer, uma sophía, mas é pôr-se a si neira irracional sobre aqu I . ocrates age de ma-
mesmo em questão, pois experimenta-se o sentimento de e es que o ouvem pel -
que provoca, pelo amor que inspira. Em u 'd"t emoça?
não ser o que se deveria ser. Tal será a definição de filó- to por um discípulo d S , , m Ia ogo escn-
sofo, do homem que deseja a sabedoria, no Banquete de ,
socrates e ocrates Esquines d E D
diz, a propósito de AI ·b- d e s etos,
Platão. E esse sentimento provém do fato de que se encon- .;"w·JB o Ia es, que, se ele, Sócrates,
trou uma personalidade, Sócrates, que, apenas por sua ( 184 anquete, 221 c-d.
presença, obriga aquele que se aproxima dele a pôr-se em J'g· Teeteto, 149 a.
20. JI;;;;q~-;;te, 215 c e 218 b.
21. Cf. A. M. Ioppolo, O'P · ·
17. Ibid., 36 c. p. 163. znzone e scienza, Napoli, Bibliopolis, 1976,

56
57
A figura de Sócrates
. - l , . do filósofo e seus antecedentes
A defimçao p atomca

. al o de útil a Alcibíades (o que não redigidas por Xenofonte 26, de que, para aprender o ofício
não é capaz de ensmar g S, t s nada sabe) ele crê ao de sapateiro, de carpinteiro, de ferreiro ou de estribeira,
te dado que ocra e ' .
é surpreend en ' amor que expen- deva-se procurar um mestre, e mesmo para domar cava-
menos poder tomá-lo m_elhor, gra~as aom ele22 No Teages, los e bois, mas que, quando se trata da justiça, não se
1 , edida que vwe co .
menta por e e e a ~ ,d Platão mas escrito entre 369 deva procurar um mestre. No texto de Xenofonte, Hípias,
diálogo falsamente atnbm 0 a ' Platão ainda era vivo, o sofista, recorda a Sócrates que ele sempre repete as
a C 23 provavelmente enquanto bi'do mesmas palavras sobre as mesmas coisas. E Sócrates ad-
e 345 · · ' mo sem ter rece
discí ulo diz a Sócrates que, mes . elo mite, com evidente prazer, que é isso que lhe permite
:alquetensinamento de Sócrates!, elare pqo:: ~r::: ~ de fazer seu interlocutor dizer que ele, Hípias, ao contrário,
. c. d star no mesmo ug
sllllples J.ato e e . , Ban uete lhe diz e o repete, os se esforça para sempre dizer algo de novo, mesmo que
poder tocá-lo. O Alobi~des do f, .tq erturbador sobre ele24: se trate da justiça. Sócrates bem que gostaria de saber o
encantos de Sócrates tem um e ei o p , . que Hípias pode dizer de novo sobre um tema que não
. parecia não ser posszvel vzver deveria mudar nunca, mas Hípias recusa-se a responder
De tal modo me sentza q1_1ehme[ ] Pois me fiorça ele a admi-
d" -es como as mzn as ... antes que Sócrates lhe permitisse conhecer sua opinião
em con zço d ,-h ciente em muitos pontos
tir que, embora sendo eu mesmo. ep sobre a justiça:
. da, de mim mesmo me descuzdo.
azn Há muito que zombas dos outros, interrogando e refutando
- . . Sócrates seja mais eloquente e sempre, sem jamais querer prestar contas a ninguém nem sobre
Isso nao sigmfica que o contrário, diz Alcibíades, à
brilhante que os ~utros. ~~m a os parecem completamente nada expor tua opinião.
primeira impressao seus Iscurs
Ao que Sócrates responde:
ridículos25 :
d a de ferreiros, de sapateiros, Como! Hípias, não vês que não cesso de mostrar o que penso
Pois ele fala de bestas e carg ' mesmas palavras dizer ser o justo? Se não por palavras defino-o por atos.
de correeiros, e sempre parece com as ""''"''"-=~,_,,_..,"'-,_~~,~~'r-''"""""'-=8.-'''''"'

as mesmas coisas. _ Ele quer dizer que, por fim, a existência e a vida do
. Al 'b' des faz alusão à argumentaçao homem justo determinam melhor o que é a justiça.
Parece que aqm Cl Ia emórias sobre Sócrates
habitual de Sócrates, presente nas m É essa individualidade poderosa de Sócrates que pode
despertar à consciência a individualidade de seus interlo-
. hines von Sphettos und die Frage
22. K Dõring, "Der Sokrates ~es r~sc 112· 16-30 1984. Cf. também cutores. Mas as reações deles são extremamente diferentes.
· · h Sok.rates", In nermes, · ' ·· 1975 Vimos acima a alegria que Nícias experimentava ao ser
nach dem histonsc en . A endix Platonica, Munchen, , P·
C. W. Müller, Die Kurzdwloge der pp
questionado por Sócrates. Ao contrário, Alcibíades, por sua
233, nota 1. O d Cf C W. Müller, op. cit., P· 128, nota 1.
23. Teages, 13 · · ·
24. Banquete, 215 c-e; 216 a. 26. Xenofonte, Memoráveis, N, 4, 5.
25. Ibid., 221 e.
59
58
A definição platônica do filósofo e seus antecedentes A figura de Sócrates

parte, procura resistir à sua influência: diante dele experi- Es~á~ enganado, homem, se pensas que um varão de algum
menta tão somente vergonha e, para escapar dessa atração, prestzmo deve pesar as possibilidades de vida e morte em vez
,algumas vezes chega a desejar sua morte. Em outras pala- ~e considC:~r apenas este aspecto de seus atos: se o que faz· é
tvras, Sócrates só pode convidar seu interlocutor a examinar- JUsto ou zn:;usto, ·de homem de brio ou de covarde.
.1: se, a pôr-se à prova. Para que se instaure um diálogo que

1
: conduza o indivíduo, como o dizia Nícias, a dar razão de , N:sta perspectiva, o que aparece como um não saber
e a piOr morte 28 :
si mesmo e de sua vida, é necessário que aquele que fala
com Sócrates aceite com o próprio Sócrates submeter-se C~"! efeito, se;:hor~s, temer a morte é o mesmo que se supor
às exigências do discurso racional, digamos: às exigências sa~zo q~em nao o e, porque é supor que sabe o que não sabe.
da razão. Em outras palavras, o cuidado de si, o pôr-se a Nznguem sabe ~ que é a morte, nem se, porventura, será para
si mesmo em questão nascem justamente numa superação o homem o mazor dos bens; todos a temem, como se soubessem
da individualidade que se eleva ao nível da universalidade, ser ela o maior dos males. A ignorância mais condenável não
representada pelo lógos comum aos dois interlocutores. é essa de supor saber o que não se sabe?
Sócrates, por sua parte, sabe nada saber sobre a morte
O saber de Sócrates: mas, em contrapartida, afirma que sabe alguma coisa sobre
o valor absoluto da intenção moral outro assunto:

Sei, porém, que é mau e vergonhoso praticar o mal, desobede-


Vislumbramos o que pode ser, para além de seu não
cer a u"! melhor que eu, seja deus, seja home7n;por isso, na
1 saber, o saber de Sócrates. Sócrates diz e repete que nada
alternatzva com males que conheço como tais, jamais fugirei
sabe, que nada pode ensinar aos outros, que os outros
de medo do que não sei se será um bem.
1
devem pensar por si mesmos, descobrir sua verdade por
si mesmos. Mas pode~se muito bem perguntar, em todo É muito interessante constatar que aqui o não saber e
caso, se não há um saber que o próprio Sócrates descobriu o saber condduzem não a conceitos, mas a valores: 0 valor _ /1 ~·
por si mesmo e em si. Uma passagem da Defesa27 , na qual d.a morte,_ e um lado, o valor do bem moral e do mal
saber e não saber são opostos, permite-nos conjeturar isso. n;~ral, ~e ~utro. Sócrates nada sabe do valor que é neces-
Sócrates evoca o que alguns poderiam dizer-lhe: "Não te sano at~~bm.r à morte, pois ela não está em seu poder, pois
pejas, ó Sócrates, de te haveres dedicado a uma ocupação a_ expenenna de sua própria morte lhe escapa por defini-
que te põe agora em risco de morrer?". E ele formula çao. Mas ele sabe o valor da ação moral e da intenção
assim o que poderia responder-lhe: moral, pois elas dependem de sua escolha, de sua decisão,

27. Defesa, 28 b. 28. Ibid., 29 a-b.

60 61
A definição platônica do filósofo e seus antecedentes
A figura de Sócrates

de seu empenho; elas têm, portanto, sua origem. ~ele


v~luntariamente 30 , ou ainda: a virtude é saber31 ; ele quer
mesmo. Ainda aqui o saber não é uma série de propos1çoes,
d1zer que, se o homem comete o mal moral, é porque crê
uma teoria abstrata, mas a certeza de uma escolha, de uma
encontrar o bem, e se ele é virtuoso é que sabe com toda
decisão, de uma iniciativa; o saber não é um saber tout
a sua alma e todo seu ser onde está o verdadeiro bem. 0
court, mas um saber-que-é-necessári~-escolher, ~or;anto u~
\ papel do filósofo consistirá em permitir a seu interlocutor
isaber-viver. E esse saber do valor e que o gu1ara nas dls- "realizar", no sentido mais forte da palavra, o verdadeiro
1cussões travadas com seus mter
. 1ocutores29..
bem, o verdadeiro valor. No fundo do saber socrático, há
amor do bem32 •
E, se algum de vós redarguir que se importa, não me zrez
embora deixando-o, mas o hei de interrogar, examinar e con- O conteúdo do saber socrático é, no essencial, "o
fundir e, se me parecer que afirma ter adquirido a virtude e v~lor ab~(>ll:lt? da intençãoj,rrH>ral" e a certeza de que pro-
não a adquiriu, hei de repreendê-lo por estimar menos o que cura a escolha desse valor. Evidentemente, a expressão é
vale mais e mais o que vale menos. moderna. Sócrates não a teria empregado. Mas ela talvez
Esse saber do valor é extraído da experiência interior s:ja útil para ~essaltar todo o alcance da mensagem socrá-
de Sócrates, da experiência de uma escolha que o compro- tica. Pode-se d1zer que um valor é absoluto para um homem
mete totalmente. Ainda não há aqui um saber senão em quando ele está prestes a morrer por esse valor. É preci-
samente a atitude de Sócrates, quando se trata do "que é
uma descoberta pessoal que vem do interior. Essa interio-
o melhor", isto é, da justiça, do dever, da pureza moral.
ridade é, em contrapartida, reforçada pela representação
Ele repete várias vezes na Defesd 3 : pr-efere a morte e
do daímon, dessa voz divina que, diz ele, nele fala e o im- 0
perigo a renunciar a seu dever e à sua missão. No Críton34
pede de fazer certas coisas. Experiência mística ou imagem
Platão imagina que Sócrates faz falar as leis de Atenas'
mítica, é algo difícil de dizer, mas nela podemos v~r, e~
que o fazem compreender que, se quiser evadir-se e esca~
todo caso, uma espécie de figura do que se chamara ma1s
par à sua condenação, prejudicará toda a cidade, dando
tarde consciência moral.
Parece que Sócrates admitiu implicitan:ente e~istir em . 3.0. Sócr~tes, em Aristóteles, Ética a Nicômaco, VII, 2, 1145 b 21-27 [Ética
a Mcomaco, 4 ed., tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim, São
todos os homens umdes{:j() in(ltoc!:].gp<:m:~~ tambem nesse Paulo, Nova Cultural, 1987 (Os Pensadores)].
sentido que se aprese~;;~~ ~~~o um simples parteiro, cu~o 31. Sócrates, em Aristóteles, Ética a Eudemo, I, 5, 1216 b 6-8; Xenofon-
te, Memoráveis, III, 9, 5.
papel limitava-se a fazer que seus interlocutores descobns-
32. A.-:J. Voelke, L'id~e de volon~é dans le stoiCisme, Paris, 1973, p. 194,
sem suas possibilidades interiores. Compreende-se melhor, para o .te~a .do pretenso mtelecrualismo socrático: "La dialectique socrati-
então, a significação do paradoxo socrático: ninguém erra que umt md1ssolublement la connaissance du bien et le choix du bien".
33. Defesa, 28 b ss.

29. Ibid., 29 e. 34. ?ríton, 50 a [ Críton, 3a ed., seleção, introdução e tradução de Jaime
Bruna, Sao Paulo, Cultrix, 1952],

62
63
A definição platônica do filósofo e seus antecedentes
A figura de Sócrates

I
o exemplo de desobediência a suas leis: ele não deve pôr /lucidez, esse rigor para olhar a si mesmo pode dar sentido
sua própria vida acima do que é justo. E como diz Sócrates /à vida37:
no Fédon35 :
Uma vida sem exame não é vida digna de um ser humano.
Há muito que estes mesmos ossos e músculos estariam lá para
Encontramos aqui, talvez ainda confuso e indistinto um
as bandas de Megara ou da Beócia, levados por certa noção
esboço da ideia a ser desenvolvida mais tarde em ;utra
do "melhor': se eu não estivesse convicto de que era mais justo
problem~tica, J?or Kant: a moralidade constitdi-se na pu-
e mais belo submeter-se às leis da cidade, qualquer que fosse a reza_ de mtençao que dirige a ação, pureza que consiste
pena que me é imposta, de preferência a evadir-me e fugir. preosamente em conferir um valor absoluto ao bem moral
Esse valor absoluto da escolha moral aparece também renunciando totalmente ao próprio interesse. '
em outra perspectiva, quando Socrates
, 36 d ec1ara: "N-
ao h'a, .Tudo leva a pensar, por outro lado, que esse saber ja-
para o homem bom, nenhum mal, quer na vida, quer na m~Is po?e ser adquirido. Não é somente aos outros, mas
morte". Isso significa que todas as coisas que parecem a SI mesmo que Sócrates não cessa de submeter a exame.
males aos olhos dos homens, a morte, a doença, a pobre- A pureza da intenção moral deve sem cessar ser renovada
za, não são males para ele. A seus olhos, há apenas um e ~estabelecida. A transformação de si jamais é definitiva.
mal, a falta moral, há apenas um bem, um único valor, a Ex1ge uma e?~R_~tl1a Tt;conquista.
vontade de fazer o bem, o que supõe que ele não recusa
examinar sem cessar e rigorosamente sua maneira de viver,
a fim de ver se ela é sempre dirigida e inspirada por essa Cuidado de si, cuidado dos outros
vontade de fazer o bem. Pode-se dizer, até certo ponto,
.. Falando da estranheza da filosofia, M. Merleau-Pont:fs
que o que interessa a Sócrates não é definir o que pode
dlZla que ela 'jamais está totalmente no mundo, e jamais,
ser o conteúdo teórico e objetivo da moralidade: é neces- entretanto, fora do mundo". Do mesmo modo com
0
sário saber se se quer real-e-concretamente fazer o que se estranho, o inclassificável Sócrates. Ele não está nem no
considera justo e bom: ç:Q~~_se <:lt::v:~agiE: Na Defesa, Sócrates mundo, nem fora.
não dá nenhuma razão teónêa para explicar por que se
obriga a examinar sua própria vida e a vida dos outros. _ De um lado, ele propõe, aos olhos de seus concida-
daos, uma total reversão dos valores que lhe parecem
Contenta-se em dizer, por um lado, que é a missão que incompreensíveis 39 :
lhe foi confiada pelo deus e, por outro, que somente tal
(37_--~~~.:-~~) -
p. 38.'3&-M~eau-Ponty, Eloge de la philosophie et autres essais, Paris, 1965 ,
35. Fédon, 98 e [Fédon, 3' ed., seleção, introdução e tradução de Jaime
Bruna, São Paulo, .Çultrix, 1952].
36. Defesa, 41 d. 39. Defesa, 38 a.

64 65
A definição platônica do filósofo e seus antecedentes A figura de Sócrates

Se vos disser que para o homem nenhum bem supera o discorrer exortam Sócrates a não se deixar levar pela tentação de
cada dia sobre a virtude e outros temas de que me ouvistes evadir-se da prisão e fugir para longe de Atenas, fazendo-o
praticar quando examinava a mim mesmo e a outros, e que compreender que sua salvação egoísta será uma irúustiça
vida sem exame não é vida digna de um ser humano, acre- ~~ra com Atenas. Essa atitude -não é de conformismÕ,
ditareis ainda menos em minhas palavras. porquanto Xenofonte faça dizer a Sócrates que se pode
Seus concidadãos não podem perceber seu convite bem "obedecer às leis aspirando que elas mudem, como
para examinar seus valores, sua maneira de agir, para se vai à guerra aspirando a paz". Merleau-Ponty40 ressaltou
tomar cuidado consigo mesmo, como também para uma bem: "Sócrates tem uma maneira de obedecer que é uma
ruptura radical com a vida cotidiana, com os hábitos e as maneira de resistir", submete-se às leis para provar, no
convenções da vida corrente, com o mundo que lhes é fa- interior da cidade, a verdade de sua atitude filosófica e o
miliar. Mas, de outro lado, esse convite para tomar cuidado valor absoluto da intenção moral. Não é necessário dizer,
consigo mesmo não será um apelo para afastar-se da cidade, então, com Hegel, que "Sócrates retira-se para si mesmo
vindo de UJJl"-lte~em que está, de alguma maneira, fora para buscar a justiça e o bem", mas, com Merleau-Ponty4 \
do mund{ átopo:J ou seja, ~ue é es~~nho, i~classificáv:l, "ele pensava que não se pode ser justo sozinho, do mesmo
absurdo? Sócr-ates não sera o protot1po da Imagem tao modo como o ser sozinho cessa de ser".
disseminada e, por outro lado, afinal tão falsa do filósofo
O cuidado de si é, portanto, indissoluvelmente cuidado
que foge das dificuldades da vida, para refugiar-se em sua
da cidade e cuidado dos outros, como se vê pelo exemplo
boa consciência?
do próprio Sócrates, cuja razão de viver é ocupar-se com
Contudo, o retrato de Sócrates, tal qual desenhado por os outros. Há em Sócrates42 um aspecto ao mesmo tempo
Alcibíades no Banquete de Platão, e também por Xenofonte, "missionário" e "popular", que se reencontrará posterior-
revela-nos, ao contrário, um homem que participa plena- mente em certos filósofos da época helenística:
mente da vida da cidade como ela é, um homem quase
comum, cotidiano, com-muther e filhos, que conversa Eu estou à disposição tanto do pobre como do rico, sem
com todo mundo, nas ruas, nas oficinas, nos ginásios, um distinção [. .. ] Podeis reconhecer que sou bem um homem
bon vivant capaz de beber mais que qualquer outro sem dado pelo deus à cidade por esta reflexão: não é conforme à
embriagar-se, um soldado corajoso e paciente. natureza do homem que eu tenha negligenciado todos os meus
interesses [. .. }para me ocupar do que diz respeito a vós [. .. }
_ O cuidado de si não se opõe ao cuidado da cidade. De
para persuadir cada um a tornar-se melhor.
~maneira igualmente notável, na Defesa de Sócrates e no Criton,
·o que Sócrates proclama como seu dever, como aquilo pelo S40. M. Merleau-Ponty, op. cit., p. 44.
'que deve a tudo sacrificar, mesmo sua vida, é a obediência ) 41. Id., ibid., p. 48.
às leis da cidade, as "Leis" personificadas que, no Criton, 42. Defesa, 32 b e 31 b.

66 67
A definição platônica do filósofo e seus antecedentes

Assim Sócrates está, ao mesmo tempo, fora do mundo


e no mundo transcendendo os homens e as coisas por sua
exigência m~ral e pelo empenho que ela implica: ~isturado Capítulo 4
aos homens e às coisas, porque somente no cotidiano dele
pode compreender a verdadeira filosofia. E, s_em dúvida,
em toda a Antiguidade, Sócrates permanecera o modelo
do filósofo ideal cuia obra filosófica é justamente sua
' :J 44 . , . d
fi definição do filósofo
vida e sua morté3• Como escreveu Plutarco no Imcw o
século II d.C.:
no l;Banquete de rJ>latão
A maior parte das pessoas imagina que a filosofia consiste em
discutir do alto de uma tribuna e dar cursos sobre textos. Mas
0 que escapa totalmente a essas pessoas é a filos_ofia inin_terrupta
que se vê exercer a cada dia de uma manezra perfeztamente Não sabemos com evidência se Sócrates chegou, em
igual a si mesma [. .. ] Sócrates não prepara degraus para suas discussões com seus interlocutores, a empregar a pa-
os ouvintes, não se firma sobre uma tribuna professora[; ele lavra philosophia. É provável, em todo caso, que, caso ela já
não tem horário fixo para discutir ou para passear com seus existisse, ele teria utilizado essa palavra dando-lhe o senti-
discípulos. Mas é algumas vezes gracejando com aqueles, ou do corrente da época, isto é, ele a teria empregado, como
bebendo ou indo à guerra ou à ágora com esses, e finalmente se fazia então, para designar a cultura geral que os sofistas
indo para a prisão e bebendo o veneno, que ele filosofou. Ele e outros poderiam conceder a seus alunos. É esse sentido
\ Voi 0 primeiro a mostrar que, em todos os tempos e em todos que encontramos, por exemplo, nos raros empregos da
\\os lugares, em tudo o que n~s _c~ega
e em tudo o que Jazemos, palavra philosophia que se encontra nas Memoráveis, as me-
\!a vida cotidiana dá a posstbthdade de filosofar. mórias de Sócrates reunidas por seu discípulo Xenofonte.
Mas é certo que é sob a influência da personalidade e do
ensinamento de Sócrates que Platão há de conferir,
no Banquete, à palavra "filósofo", e, portanto, também à
palavra "filosofia", um novo sentido.

O Banquete de Platão
43. CL A-J)ihle, Studien zur griechischen Biographie, 2• ed. Gõttingen,
1970, pp.J3-20. '',\ O Banquete é, com a Defesa, um monumento literário
44. Plutarco, ~e a política é ofício dos velhos, 26, 796 d. dedicado à memória de Sócrates, um monumento maravilho-

68
69
A definição platônica do filósofo e seus antecedentes A definição do filósofo no Banquete de Platão

sa e habilmente construído, como Platão sabia fazer tão bem, meceu Aristófanes e, quando já se fazia dia, Agatão. Sócrates
entrelaçando com arte temas filosóficos e símbolos míticos. [. .. 1 levantou-se e partiu; [. .. 1 chegado ao Liceu ele asseou-se
Como na Defesa, a parte teórica é reduzida ao mínimo: encon- e, como em qualquer outra ocasião, passou o dia inteiro, depois
tram-se apenas algwnas páginas, extremamente importantes, do que, à tarde, foi repousar em casa.
que se referem à visão da Beleza, e o essencial é dedic~do a
Esse fim do diálogo fez sonhar os poetas. Pensa-se aqui
descrever o modo de vida de Sócrates, que se revelara pre-
nos versos de Hõlderlin 2 sobre o sábio que sabe suportar
cisamente como o modelo do filósofo. A definição do filósofa!,
a intensidade da felicidade que lhe oferece o deus:
proposta no curso do diálogo, terá alguns sentidos.
A cada um sua medida. Pesada é a força da infelicidade,
A figura de Sócrates domina todo o diálogo, apresenta-
mais pesada ainda a felicidade. Houve um sabia, contudo, que
do como a narração de certo Aristodemo que relata como
soube permanecer lúcido no banquete, do meio até o coração
Sócrates lhe pede que o acompanhe ao banquete oferecido da noite, e até as primeiras luzes da alva.
pelo poeta Agatão em honra de sua vitória no concurs?
de tragédia. Sócrates chega atrasado de algum lugar pms É com a mesma serenidade, nota Nietzsche, que ele
permanecera durante certo tempo plantado na praça medi- deixa o banquete e sabe entrar na morteS:
tando. Na série de discursos que os participantes do banquete
Ele foi para a morte com a mesma calma com que, na descrição
desenvolverão em honra de Eros, a intervenção de Sócrates
de Platão, ele, o último dos convivas, deixa o banquete ao
é tão longa quanto a de todos os outros oradores reunidos.
despontar da madrugada, para começar um novo dia; enquan-
Quando no fim do banquete chega Alcibíades, embriagado,
to atrás dele, sobre os bancos ou no chão, ficam para trás os
coroado de flores, acompanhado de uma flautista, este
adormecidos companheiros de mesa, para sonhar com Sócrates,
último fará um longo elogio a Sócrates, detalhando todos
o verdadeiro erótico. Sócrates morrendo tornou-se o novo ideal,
os aspectos de sua personalidade. E, nas últimas linhas da
nunca antes contemplado, da nobre juventude grega.
obra, a personagem de Sócrates é a única lúcida e serena,
no meio de convivas adorme_çidos, embora tenha bebido Como bem mostrou D. Babut4 , os menores detalhes
mais que os outros. têm sua importância na construção do diálogo destinado
Agatão, Aristófanes e Sócrates eram os únicos que ainda esta-
2. Hõlderlin, Le Rhin, trad. G. Bianquis, Paris, 1943, pp. 391-393.
vam despertos, e bebiam de uma grande taça que passavam 3. Nietzsche, O nascimento da tragédia, § 13 [N. do T.: vali-me da tradu-
da esquerda para a direita. Sócrates conversava com eles [. .. 1 ção de Rubens Rodrigues Torres Filho, O nascimento da tragédia, 4a ed., São
ForçaV(J,-OS Sócrates a admitir que é de um mesmo homem o Paulo, Nova Cultural, 1987 (Os Pensadores); O nascimento da tragédia ou
helenismo e pessimismo, tradução, notas e posfácio de Jacó Guinsburg, São
saber Jazer uma comédia e uma tragédia [. .. 1 Primeiro ador- Paulo, Companhia das Letras, 1992].
4. D. Babut, "Peinture et dépassement de la réalité dans le Banquet de
l. Sobre os empregos da palavra philosophia e das palavras correlatas Platon", in Revue des études anciennes, 82: 5-29, 1980, artigo republicado in
em Platão, cf. M. Dixsaut, Le Naturel philosophe, Paris, 1985. Parerga, Choix d'articles de D. Babut, Lyon, 1994, pp. 171-196.

70 71
A definição platônica do filósofo e seus antecedentes A definição do filósofo no Banquete de Platão

ao mesmo tempo a pintar Sócrates e a idealizá-lo. A le que fez antes dele o elogio do Amor e, notadamente,
companhia daqueles que bebem delineia um progr~ma declara que o Amor é belo e gracioso. Sócrates principia
que determina simultaneamente o modo como se. ~a de por interrogar Agatão perguntando-lhe se o amor é desej()
beber e o tema dos discursos que cada um dos participan- do que se possui ou do que não se possui. Se é necessário
tes há de pronunciar. O assunto será o Amor. Narrando admitir que o Amor é desejo do que não se possui, e se
o banquete ao qual assistia Sócrates, o diálogo relata,rá, o amor é desejo de beleza, não se deve concluir que o
portanto, a maneira pela qual os convivas darão co~ta de amor não pode ele próprio ser belo, uma vez que não
sua tarefa, em que ordem os discursos suceder-se-ao e o possui a beleza? Depois de ter obrigado Agatão a admitir
que dirão os diferentes oradores. Segun~~ D. B~~ut, os essa posição, Sócrates deverá igualmente expor sua teoria
cinco primeiros discursos, de Fedro, Pausamas, Eruamaco,
do Amor, mas referindo-se a quem o fez compreender o
Aristófanes e Agatão, por uma progressão dialética, pre-
tema do Amor, Diotima, a sacerdotisa de Mantineia, em
param o elogio do Amor por Diotima, a sacerdotisa de
uma conversa que teve alhures com ela. Uma vez que é
Mantineia de quem Sócrates, logo que chega sua vez,
relativo a outra coisa, e a uma coisa da qual é privado,
referirá as palavras.
o Amor não pode ser um deus, como imaginaram sem
De uma extremidade a outra do diálogo, mas sobretu- razão todos os outros convivas que haviam feito até então
do no discurso de Diotima e no de Alcibíades, percebe-se o elogio do Amor; Eros é propriamente um d~ímon,um
que os traços da figura de Eros e os da figura de Sócrates ser intermediário entre os deuses e os homens;~ entre os
tendem a confundir-se. E, finalmente, se eles se entre- imortais e os mortais 5• Não se trata apenas de uma posição
meiam tão estreitamente, a razão é que Eros e Sócrates mediana entre duas ordens de realidades opostas, mas
personificam, um de maneira mítica, outro de maneira de uma situação de mediador: o daímon está em relação
histórica, a figura do filósofo. Tal é o sentido profundo com os deuses e os homens, desempenha um papel nas
do diálogo. iniciações aos mistérios, nos encantos que curam os males
da alma e do corpo, nas comunicações que vêm dos deuses
aos homens, tanto na vignia como no sono. Para melhor
Eros, Sócrates e o filósofo fazê-los compreender essa representação de Eros, Diotima6
propusera a Sócrates uma narração mítica do nascimento
O elogio de Eros por Sócrates é clara e evidentemente desse daímon. No dia do nascimento de Mrodite, houve
composto segundo a maneira propriamente socrática. _Isso um banquete entre os deuses. No fim da refeição, Penia,
quer dizer que Sócrates não fará, como os outros conviVas, a saber, "Pobreza", "Privação", aproxima-se para mendigar.
um discurso no qual afirmará que o Amor tem esta ou
aquela qualidade. Não falará ele próprio, pois nada sabe,
5. Banquete. 202 e.
mas fará falar os outros, e em primeiro lugar Agatão, aque- 6. Ibid., 203 a e ss.

72 73
A definição platônica do filósofo e seus antecedentes A definição do filósofo no Banquete de Platão

Poros, a saber, "Recurso", "Riqueza", "Expediente", esta- No início do diálogo, vimos que, para 1r ao banquete,
va ainda adormecido, embriagado de néctar, no jardim Sócrates, excepcionalmente, banhara-se e calçara-se. Os
de Zeus. Penia estende-se a seu lado a fim de remediar pés descalços e o velho manto de Sócrates eram os temas
sua pobreza tendo um filho dele. E assim ela concebe o favoritos dos poetas cômicos8 • E o Sócrates descrito pelo
Amor. Segundo Diotima, a natureza e o caráter do Amor cômico Aristófanes em suas Nuvenf é um digno filho de
explicam-se por essa origem. Nascido no dia do nascimen- Poros: "linguarudo, ousado, resoluto, velhaco[ ... ] charlatão,
to de Mrodite, é apaixonado pela Beleza. Filho de Penia, raposa". Em seu elogio de Sócrates, Alcibíades também
é sempre pobre, indigente, mendicante. Filho de Poros, é faz alusão à sua impudência, e já antes dele, no início do
inventiva e astucioso. diálogo, Agatão fizera a mesma alusão 10 • Para Alcibíades,
Sócrates é também um verdadeiro mágico 11 , que enfeitiça
A descrição mítica de Diotima, de uma maneira mui-
as almas por suas palavras. Quanto à robustez de Eros, é
to hábil e plena de humor, aplica-se ao mesmo tempo a
encontrada no retrato de Sócrates em armas que Alcibíades
Eros, a Sócrates e ao filósofo. A Eros, em primeiro lugar,
traça: resiste ao frio, à fome, ao medo, tudo sendo capaz
o laborioso:
de suportar, tão bem o vinho quanto as privações 12 •
Ele é sempre pobre, e longe está de ser delicado e belo, como a
maioria imagina, mas é duro, seco, descalço e sem lar, sempre Ora, esse retrato de Eros-Sócrates é, a um só tempo,
por terra e sem forro, deitando-se ao desabrigo, às portas e o retrato do filósofo, na medida em que, filho de Poros e
nos caminhos. de Penia, Eros é pobre e deficiente, mas sabe, por sua
habilidade, compensar sua pobreza, sua privação e sua de-
Mas também, qual um digno filho de Poros, esse Eros ficiência. Para Diotima, Eros é filó-sofo, pois está a meio
amoroso é um "caçador terrível": caminho entre a sophía e a ignorância. Platão 13 não define
Ele é insidioso com o que é belo e bom, e corajoso, decidido e aqui o que entende por sabedoria. Permite-nos apenas en-
enérgico, caçador terrível, serrtpre a tecer maquinarias, ávido tender que se trata de um es_tado transc~!ldente, visto que
de sabedoria e cheio de recursos, afilosofar por toda a vida, a seus olhos, propriamente f~landÔ, somente os deuses são
terrível mago, feiticeiro, sofista.
".8. Encontrar-se-ão alguns exemplos em Diógenes Laércio, Vida dos
Mas a descrição aplica-se a Sócrates, que é também jilósof% II, 27-28.
esse amoroso, esse caçador miseráveF. No fim do diálogo, '··j 9. 1\nstófanes, As Nuvens, 445 ss. [As Nuvens, 4a ed., tradução e notas
Alcibíades o descreverá, participando da expedição militar de Gilda Maria Reale Strazynski, São Paulo, Nova Cultural, 1987 (Os Pen-
sadores)].
de Potideia, atormentado pelo frio de inverno, pés descalços, 10. Banquete, 175 e, 221 e.
coberto por uma roupagem grosseira que mal o protegia. 11. Ibid., 215 c.
12. Ibid., 220 a-d.
7. Ibid., 174 a e 203 c-de 220 b. Cf. V.Jankélévitch, L'Ironie, pp. 122-125. 13. Ibid., 203 e ss.

74 75
A definição platônica do filósofo e seus antecedentes A definição do filósofo no Banquete de Platão

sábios 14 • Pode-se admitir que a sabedoria representa a per- Ainda aqui, reconhece-se logo sob os traços de Eros
feição do saber identificado à virtude. Mas, como já dissemos não só o filósofo, mas Sócrates que, aparentemente, nada
e como deveremos tornar a dizê-lo 15 , na tradição grega o sabe, como os ignorantes, mas que, ao mesmo tempo, é -
saber ou sophía é menos um saber puramente teórico que consciente de nada saber: ele é diferente dos ignorantes,
um saber-fazer, um saber-viver, e nele se reconhecerão tra- pelo fato de, consciente de seu não saber, desejar saber,
ços da maneira de viver, não o saber teórico, de Sócrates
mesmo que, como vimos 16 , sua representação do saber seja
filósofo, que Platão evoca precisamente no Banquete.
profundamente diferente da tradicional. Sócrates ou o
Há, diz Diotima, duas categorias de seres que não filo- filósofo é Eros: privado de sabedoria, de beleza, do bem,
sofam: os deuses e os sábios, por serem eles precisamente deseja, ama a sabedoria, a beleza, o bem. Ele é Eros, o
sábios, e os ignorantes, por crerem ser sábios: que significa que ele é o Desejo, não um desejo passivo e
Nenhum deus filosofa ou deseja ser sábio (sophós) -pois já nostálgico, mas um desejo impetuoso, digno desse "caçador
é -, assim como, se alguém mais é sábio, não filosofa. Nem terrível" que é Eros.
também os ignorantes filosofam ou desejam ser sábios; pois Aparentemente, não há nada mais simples e mais na-
é nisso mesmo que está o difícil da ignorância, no pensar, tural do que essa posição intermediária do filósofo. Ele
quem não é um homem distinto e gentil, nem inteligente, que está a meio caminho entr,e o saber e.. ~ tgn~rância. Pode-se
lhe basta assim. Não deseja portanto quem não imagina ser pensar que lhe· bastará pratíêar sua atividade de filósofo
deficiente naquilo que não pensa lhe ser preciso.
para superar definitivamente a ignorância e alcançar a
Mas Sócrates pergunta ainda: "Quais então, Diotima, sabedoria. Mas as coisas são muito mais complexas.
os que filosofam, se não são nem os sábios nem os igno-
Com efeito, no segundo plano dessa oposição entre
rantes?", ao que responde Diotima:
sábios, filósofos e ignorantes, é possível vislumbrar um es-
São os que estão entre esses dois extremos, e um deles seria o quema lógico de divisão de conceitos que é muito rigoroso
Amor. Com efeito, uma das co1sas mais belas é a sabedoria, e e não autoriza uma perspectiva tão otimista. Diotima opôs
o Amor é amor pelo belo, de modo que éforçoso o Amor serfilósofo os sábios e os não sábios, o que quer dizer que ela fez uma
e, sendo filósofo, estar entre o sábio e o ignorante. E a causa oposição de contradição que não admite nenhum interme- ·----'-''*
dessa sua condição é sua origem: pois é filho de um pai sábio
(sophós) e rico e de uma mãe que não é sábia e pobre.
diário: ou seéé sábÍÕ ou
não, não há meio-termo. Desse
ponto de vista, não se pode dizer que o filósofo seja um
intermediário entre o sábio e o não sábio pois, se não se
14. Cf. Fedro, 278 d [Fedro, tradução de Carlos Alberto Nunes, Belém,
Ed. Universidade Federal do Pará, 1975; Fedro, introdução, tradução e notas é "sábio", se é necessária e decididamente "não sábio". Ele
de José Ribeiro Ferreira, Lisboa/São Paulo, Verbo, 1973.
15. Cf. pp. 39 e 384. 16. Cf. pp. 60 ss.

76 77
A definição platônica do filósofo e seus antecedentes A definição do filósofo no Banquete de Platão

está votado a jamais alcançar a sabedoria. Mas nos não portanto, segundo o Banquete, não é a sabedoria, mas um
sábios Diotima introduziu uma divisão: há os que são in- modo de vida e um discurso determinados pela ideia de
fconscientes de sua não sabedoria, e estes são propriamente sabedoria.
os ignorantes, e há os que são conscientes de sua não
sabedoria, e estes são os filósofos. Dessa vez, pode-se con- Com o Banquete, a etimologia da palavra philosophia, "o
siderar que, na categoria dos não sábios, os ignorantes, amor, o desejo da sabedoria", torna-se o programa da filo-
inconscientes de sua não sabedoria, são o contrário dos sofia. Pode-se dizer que, com o Sócrates do Banquete, a fi-
sábios e, segundo esse ponto de vista, isto é, conforme essa losofia toma definitivamente na hist(ria uma tonalidade a
oposição de contrariedades, os filósofos são intermediários um só teiilP? irônica e trágica. Irônica porque o verdadei-
entre os sábios e os ignorantes, na medida em que são não ro filósofÓ ~~;á· sémpre aquele que sabe nada saber, que
sábios conscientes de sua não sabedoria: eles não são sábios sabe que não é sábio e que não é sábio nem não sábio,
nem ignorantes. Essa divisão é paralela a outra que fora que não está, por sua vez, no mundo dos ignorantes nem
, muito corrente na escola de Platão, a distinção entre "o no mundo dos sábios, nem totalmente no mundo dos ho-
que é bom" e "o que não é bom". Entre os dois não há mens nem totalmente no mundo dos deuses, inclassificável,
meio-termo, pois se trata de uma oposição de contradição. portanto, sem casa ou lugar, como Eros e Sócrates. Trágico,
Mas, nisso que não é bom, pode-se distinguir entre o que também, porque esse ser bizarro é torturado e dilacerado
não é bom nem mau e o que é mau. Agora, a oposição de pelo desejo de alcançar essa sabedoria que lhe escapa e
contrariedade estabelecer-se-á entre o bom e o mau, e que ama. Como Kierkegaard19 , o cristão que gostaria de
haverá um intermediário entre o bom e o mau, a saber, o ser cristão mas sabe que somente Cristo é cristão, o filóso-
que não é "nem bom nem mau" 17 . Esses esquemas lógicos fo sabe que não pode alcançar seu modelo e que jamais
tiveram importância muito grande na escola de Platão 18 • será totalmente o que deseja. Platão instaura, assim, uma
Com efeito, eles servem para distinguir as coisas que só se distância insuperável entre a filosofia e a sabedoria. A filo-
conhecem mais ou menos e as que são suscetíveis de graus ~ofià define-se por ser aquilo do que é privada, isto é, por
de intensidade. O sábio ou o -qüe é bom são absolutos, eles uma norma transcendente que lhe escapa e, contudo, que
não admitem variações: não se pode ser mais ou menos
possui em si de certa maneira, segundo a célebre fórmula
sábio ou mais ou menos bom. Mas o que é intermediário,
pascaliana, tão platônica: "Não me procurarias se já não
o que não é "nem bom nem mau", ou o "filósofo", é sus-
me houvesses achado" 20 • Dirá Plotino 21 : "O que é totalmen-
cetível de mais ou menos: o filósofo jamais atingirá a sabe-
te privado do bem jamais procurará o bem". É porque o
doria, mas pode progredir em sua direção. A filosofia,
19. Kierkegaard, L'Instant, § 19, in CEuvres completes, t. XIX, pp. 300-
17. Platão, Lísis, 218 b 1.
301.
18. H.J Krãmer, Platonismus und hellenistische Philosophie, Berlin, 1971, 20. Pascal, Pensées, § 553 Brunschvicg (Classiques Hachette).
pp. 174-175 e 229-230.
21. Plotino, Eneadas, III, 5 (50), 9, 44; p. 142 Hadot.

78
79
A definição platônica do filósofo e seus antecedentes A definição do filósofo no Banquete de Platão

,Sócrates do Banquete apresenta-se a um só temp? como te de fora do mundo. Como Alcibíades pôde ver na ex-
aquele que pretende não ter nenhuma sabedona e co- pedição de Potideia, Sócrates tem a capacidade de per-
mo um ser de quem se admira a maneira de viver. Porque manecer contente em todas as circunstâncias, de poder,
o filósofo não é um intermediário, mas um mediador, como na expedição militar de Potideia, aproveitar a abundância
Eros. Ele revela aos homens alguma coisa do mundo dos quando há abundância e sobrepujar os outros na arte de
deuses, do mundo da sabedoria. Ele é como os moldes de beber sem embriagar-se e, contudo, quando há escassez, '
silenos22 que, exteriormente, parecem grotescos e ridículo~ suportar corajosamente a fome e a sede, suportar com
mas, apenas abertos, vê-se que têm estátuas de deuses. E facilidade quando não há nada para comer e quando há
assim que Sócrates, por sua vida e por seu discurso, que abundância, suportar facilmente o frio, nada temer, mos-
têm efeito mágico e daimônico, obriga Alcibíades a pôr-se a trando considerável coragem no combate. Ele é indife-
si mesmo em questão e a dizer-se que sua vida não merece rente a todas as coisas que seduzem os homens, beleza,
ser vivida, caso ele se comporte dessa maneira. Notemos, riqueza, vantagem ou outra coisa qualquer, e que lhe
rapidamente, na esteira de L. Robin 23, que é também o
pareça sem valor. Mas é também alguém que pode absor-
próprio Banquete, isto é, a obra literária que Platão escreveu
ver-se totalmente na meditação, retirando-se de tudo o
com esse título, que é semelhante a Sócrates, ele também
que o cerca. Durante-ã~expedição de Potideia, seus com-
um sileno esculpido que, com ironia e humor, dissimula
panheiros de armas viram-no refletir, em pé e imóvel,
as mais profundas concepções.
durante uma jornada inteira. Também desse modo ele
Não é apenas a figura de Eros que é, assim, desvalo- chega ao início do diálogo e é isso que explica seu atra-
rizada e desm:itificada no Banquete, passando do posto de so ao banquete. Platão talvez queira, com isso, dar a
deus ao de daímon, é também a figura do filósofo, que entender que Sócrates fora iniciado pela sacerdotisa de
não é mais o homem que recebe dos sofistas um saber Mantineia nos mistérios do amor e que aprendeu a ver
acabado, mas qualquer um que tenha consciência de sua a verdadeira beleza; aquele que teve essa visão atingirá,
deficiência e, ao mesmo tempo, do desejo que existe em diz a sacerdotisa de Mantineia, a única via que vale a pena
si e que o atrai para o belo e para o bem. ser vivida e obterá, dessa maneira, a excelência ( aretê), a
O filósofo, que toma consciência de si mesmo no virtude verdadeira 25 • A filosofia aparece, dessa vez, torna-

Banquete, assim como o Sócrates que descrevemos maiS • 24
acnna , remos a repetir isto 26, como uma experiência de amor. ~
aparece, não sendo totalmente do mundo, nem totab:~en- Assim, Sócrates revela-se como um"ser qU.e, mesmo
não
sendo um deus, pois apresenta-se antes de tudo como um
22. Banquete, 215 b-c. homem comum, é superior aos homens: é um daímon,
23. L. Robin, introdução, p. CV, nota 2, in Platão, Le Banquet, Paris,
1981 (1"ed.1929). 25. Banquete, 211 d-212 a.
24. Cf. acima pp. 65 ss. 26. Cf. adiante pp. 108 ss.

80 81
A definição platônica do filósofo e seus antecedentes Adfi'-
e mçao do filósofo no Banquete de Platão

amálgama de divindade e humanidade; mas um amálgama de maneira geral b d · ,


, não existe por si, ele é necessariamente ligado a uma es- , a sa e ona sera como um ideal .
e atrai o filósofo e sobretudo fil fi , que gma
j tranheza, quase a um desequilíbrio, a uma dissonância um exerocio, ' d .
de sab ' ,a . oso a sera conSI"derad a
interna. . e o na, pratica de um modo d .d
Essa Ideia será forte ainda em Kant2s , . , : VI a.
Essa definição do filósofo no Banquete terá importância todos os filósofos que defi . I ' : esta Imphota em
capital em toda a história da filosofia. Para os estoicos, por como o amor da sabedo ~e~ etJmo ogic~mente a filosofia
exemplo, da mesma maneira que para Platão, o filósofo ao menos o modelo donaS. , que os filosofas retiveram,
. ' ocrates do B t
é, por essência, diferente do sábio e, na perspectiva dessa Ironia e humor ao qu I c , anque e, em sua
' a Laz eco o Socrates da d
oposição de contradição, o filósofo não se distingue do Banquete de Xenofonte29 El - . . nçante o
comum dos mortais. Pouco importa, dirão os estoicos, vados disso de . . . es sao tradiCIOnalmente pri-
que se encontre a um côvado ou a cento e cinquenta percebeu-o bem;ue mais tiveram necessidade. Nietzschéo
braças na água, não se estará menos afogado 27 • Há, de
Sobre o Fundador do . .
alguma maneira, uma diferença de essência entre o sábio , !'
e o sorrzr q t
crzstzanismo, a vantacrem de S, t
~:o ocra es
e o não sábio, .no sentido em que somente o não sábio é fi ue a enua sua gravidade e a sabedoria plena de
mais ou menos suscetível, enquanto o sábio corresponde nura que dá ao homem o melhor estado de al
ma.
a uma perfeição absoluta que não admite graus. O fato
de o filósofo ser não sábio, porém, não quer dizer que
não haja diferenças entre o filósofo e os outros homens. Isócrates
O filósofo é consciente de seu estado de não sabedoria,
pois deseja a sabedoria, procura progredirpa direção da A oposição entre filosofia e sabedori
outro lado em u d a reencontra-se, por
sabedoria, que, para os estoicos, é uma espécie de estado ' m os contemporâne d Pl -
Isócrates Constatas os e atao, o orador
transcendente que só pode sex atingido por uma mutação . - e ne1e, antes de tudo I -
concepção de filos fi - , , ' uma evo uçao na
brusca e inesperada. E, por outro lado, o sábio não existe o a em relaçao a epoca dos sofistas31:
ou existe muito raramente. O filósofo pode progredir,
A ji~sojiad [. :. 1 que nos deu uma formação em vista da ação
mas sempre para o interior da não sabedoria. Ele tende que zntro uzzu a doç l _ '
para a sabedoria, mas de maneira assintótica, sem jamais . . . ura nas re açoes mútuas, que distin iu
as znfilzczdades provocadas pela ion A • d gu
~:o .• orancza aquelas que p
poder atingi-la. A

vem da necessidade, que nos ensinou a evitar as p . . ro-


rzmezras e
As outras escolas filosóficas não terão uma doutrina tão
precisa sobre a distinção entre filosofia e sabedoria, mas, 28. Cf. adiante pp. 373-380.
29. X:nofonte, Banquete, II, 17-19.
30. Nietzsche ' Humano' sdema .d h
z a o u m a0n o · ·
27. Cícero, Dos termos extremos do bem e do ma~ III, 14, 48. 31. Isócrates, Panegírico, § 47. · vzayante e sua sombra, § 86.

82
83
A definição platônica do filósofo e seus antecedentes
A definição do fil, c
osolo no Banquete de Platão

a suportar as segundas com coragem, essa filosofia, portanto, Platão. Poder-se-á falar de hu .
foi revelada para nossa cidade. da palavra "I , , . . mamsmo no sentido clássico
· socrates esta mtJ.m
A filosofia é sempre a glória e o orgulho de Atenas, podemos nos tornar melhores amente convencido de que
mas seu conteúdo mudou consideravelmente. Na descrição com a condição de tratar de" aprendendo a falar bem",
servem à humanidade e r assuntos el~vados, belos, que
de Isócrates, já não se trata apenas de cultura geral e cien-
A filosofia , . eferem-se ao Interesse geral"33
tífica, mas de uma formação para a vida, que transforma e assim par 1 · d. ·
bem-dizer e 'de be' . a e e, m Issoluvelmente, a arte de
as relações humanas e nos prepara para a adversidade. m VIver.
Contudo, Isócrates 32 introduz sobretudo uma distinção
capital entre a sophía (ou epistême) e a philosophia:
Visto que não é da natureza do homem possuir um saber
(epistême), de tal modo que, se o possuíssemos, saberíamos
o que é necessário Jazer e o que é necessário dizer, eu consi-
dero sábios (sophói), nos limites do que permanece possível,
aqueles que, graças a suas conjeturas, podem obter o mais
possível a melhor solução. E eu considero filósofos (philo-
sophoi) aqueles que se entregam aos exercícios graças aos
quais obterão o mais rapidamente possível essa capacidade
. de julgamento.
Isócrates distingue, antes de tudo, uma sabedoria ideal,
a epistême, concebida como um saber-fazer perfeito na
condução da vida, que se fundará sobre uma capacidade
de julgar totalmente infalível, logo uma sabedoria prática
(sophía), que é um saber-fazer marcado por uma sólida
formação do julgamento, que permite poder tomar deci-
sões razoáveis, mas conjeturais, nas situações de todo tipo
que se apresentam e, enfim, a formação do próprio jul-
gamento, que é justamente a filosofia. Trata-se, por outro
lado, de outro tipo de filosofia em comparação com a de
33· I. Hadot, Arts libérau · .
32. Isócrates, A Mudança, § 271. 1984, pp. 16-18. x et phzlosophze dans la pensée antique, Paris,

84
85
Capítulo 5

Platão e aficademia

O Banquete de Platão imortalizou a figura de Sócrates


como filósofo, isto é, como o homem que procura, a
um só tempo por seu discurso e por seu modo de vida,
aproximar-se e fazer aproximarem-se os outros dessa ma-
neira de ser, desse estado ontológico transcendente que é
a sabedoria. Assim a filosofia de Platão e posteriormente
todas as filosofias da Antiguidade, mesmo as mais distan-
tes do platonismo, terão em comum a particularidade de
vincular estreitamente, nessa perspectiva, discurso e modo
de vida filosóficos. ··

A filosofia como forma de vida


na Academia de Platão

O projeto educativo
Devemos ainda retornar ao estreito vínculo que liga
Sócrates e Eros, o filósofo e o amor, no Banquete de
Platão. O amor aí aparece não só como o desejo do que é !
sábio e do que é belo, mas como o desejo de fecundidade, _./
isto é, de imortalizar-se produzindo. Em outras palavras,
o amor é criador e fecundo. Há duas fecundidades, diz

89
Platão e a Academia

Diotimal, a do corpo e a da alma. Aqueles cuja fecundi- indefinido, e rapidamente uma escola filosófica, assim como
dade reside no corpo procuram se imortalizar gerando Platão concebera a sua, em sua época presente e como conti-
filhos; aqueles cuja fecundidade re:i~e 1_1a al~a pr~cur_a~ nuidade da tradição.
imortalizar-se em uma obra de intehgenoa, sep ela hterana Descobrimos, assim, outro aspecto capital da nova de-
ou técnica. A mais alta forma de inteligência, porém, é o finição de filosofia que Platão propôs no Banquete e que
domínio de si e a justiça, e ela se exerce na organização marcará de maneira definitiva a vida filosófica da i\.ntigui-
das cidades ou de outras instituições. Vários historiadores dade. A filosofia pode realizar-se só pela comunidade de
viram aqui, nessa menção das "instituiç?es", ur~:1a alusão vida e de diálogo entre mestres e discípulos no seio de uma
à fundação por Platão de sua escola, po1s, nas lmhas qu: escola. Vários séculos mais tarde, Sêneca5 exaltará ainda a
seguem, Platão dá claramente a entender que a fecundi- importância filosófica da vida em comum:
dade da qual quer falar é a de um educa,~or, que: como
A palavra viva e a vida em comum te serão mais proveitosas
Eros, filho de Poros, é "cheio de recursos (euporez), para
que o discurso escrito. É a uma realidade que te seja presen-
meditar em "discursos sobre a virtude, sobre o que deve
te que precisas ir; antes de tudo porque os homens acreditam
ser 0 homem bom e o que deve tratar" 2. No Fedro, Platão
mais em seus olhos que em seus ouvidos, em seguida porque
falará de semear os espíritos", de longa é a via dos preceitos, curta e infalível a dos exemplos.
[. .. j semear discursos que possuem gérmen, donde, em índoles Cleanto [o estoico] não teria feito reviver seu mestre Zenão em
diferentes, nascem outros discursos, capazes [.:.I de conceder pessoa caso não tivesse se tornado seu ouvinte: ele se misturou
- dentro das limitações humanas - o mazs alto grau de à sua vida, penetrou em seus pensamentos secretos, observou
felicidade a quem o possui 3 • de perto se Zenão vivia em conformidade à sua própria regra
de vida. Platão e Aristóteles e esse grupo de sábios que deve-
L. Robin4 resumiu esses temas platônicos: ria enxamear em correntes opostas tiraram mais proveito dos
A alma fecunda só pode fecundar e frutificar por seu corr:ér- costumes. de Sóc~ates que df.. ~~us en~ir~:a!!JfLn(os. Se Metrodoro,
cio com outra alma, na qual serão reconhecidas as qualzda- !lermârco·"-(tPÕlúno]oram gra~des homens, isso não foi por
causa dos cursos de Epicuro que escutaram, mas por causa
des necessárias; e esse comércio pode instituir-se pela palavra
da comunidade de vida que tiveram com ele.
viva, pela conversa diária que supõe uma vida comum,
organizada em vista de fins espirituais, e por um futuro É verdade, tornaremos a repetir, que Platão não foi o
único, nessa época, a fundar uma instituição escolar con-
1. Banquete, 208 e. sagrada à educação filosófica. Outros discípulos de Sócrates,
2. Ibid., 209 b-c. Antístenes, Euclides de Megara, Aristipo de Cirene, ou uma
3. Fedro, 277a. . ;,(;.
4. L. Robin, introdução, em Platão, Le Banquet, Pans, 1981 (1 a ed.
5. Sêneca, Cartas a Lucílio, 6, 6.
1929), p. XCII.

90 91
A filosofia como modo de vida Platão e a Academia

personagem como Isócrates, o fizeram ao mesmo tempo matemi!ll;,as e de uma aplicação possível dessas oencias
em que ele, mas a Academia de Platão terá notoriedade ao conhecimento da natureza, a elevação do pensamento,
: considerável, tanto em sua época como na posteridade, o ideal de uma comunidade de vida entre filósofos. É in-
. pela qualidade de seus membros e perfeição de sua orga- discutível que Platão conheceu os pitagóricos: ele os põe
nização. Em toda a história da filosofia posterior, encontrar- algumas vezes em cena em seus diálogos. Mas, dàda a incer-
se-ão a memória e a imitação dessa instituição e das teza de nossos conhecimentos sobre o pitagorismo antigo,
discussões e debates que ali ocorreram6 • "Academia" porque não podemos definir exatamente a parte do pitagorismo
as atividades da escola realizavam-se nas salas de reunião na formação de Platão. Uma coisa é certa, em todo caso:
que se encontravam em um ginásio dos arredores de Atenas, 9
na República , Platão elogia Pitágoras dizendo tê-lo amado
denominado precisamente Academia, e porque Platão porque propôs aos homens e às gerações futuras uma :"Ígt",
havia adquirido, próximo do ginásio, uma pequena pro-
~~':. regr~~~~~"~çl~.2.~!!2!!!!!!a~.~ :'p~~g2rka:, que distingue
priedade na qual os membros da escola podiam reunir-se
dos outros homens aqueles que a praticam, e que existia
ou mesmo viver em comum7 •
ainda no tempo de Platão. As comunidades pitagóricas
desempenharam efetivamente importante papel político nas
Sócrates e Pitágoras
cidades do Sul da Itália e da Sicília. Pode-se legitimamente )
Os antigos diziam que a originalidade de Platão consis- pensar que a fundação da Academia inspirou-se simultanea- .
tia no fato de ter realizado, de algum modo, uma síntese mente no modelo da forma de vida socrática e no modelo 1
entre Sócrates, que conhecera em Atenas, e o pitagorismo, da f~rma de vida pitagórica, mesmo que não possamos j'
que teria conhecido em sua primeira viagem à Sicília8 • De defimr com certeza as características desta última10 •
Sócrates, teria recebido o método do diálogo, a ironia, o
interesse voltado aos problemas da condução da vida; de A intenção política
Pitágoras, teria herdado a ideia de uma formação pelas
A intenção inicial de Platão é política: ele crê na possi-
bilidade de mudar a vida política pela educação filosófica
6. Cf. a importante obra de H.:J. Krãmer, Platonismus und hellenistische
Philosophie, Berlin, 1971. dos homens influentes na cidade. O testemunho autobio-
7. Cf. M.-F. Billot, art. "Académie", in Dictionnaire des philosophes antiques, gráfico que Platão dá na Carta VIP 1 merece atenção. Ele
Éd. R. Goulet, T. L, Paris, 1994, pp. 693-789. narra como gostaria, em sua juventude, de se ocupar com
8. Por exemplo, Dicearco, em Plutarco, Questões de Convivas, VIII, 2,
719 a; Cícero, Da República, I, 15-16 [Da República. 2" ed. Tradução de os assuntos da cidade e como descobriu, então, pela morte
Amador Cisneiros, São Paulo, Abril Cultural, 1980 (Os Pensadores)]; Dos
termos extremos ... , V, 86-87; Agostinho, A Cidade de Deus, VIII, 4 [A Cidade de 9. República, X, 600 b.
Deus, 3" ed., tradução de Oscar Paes Leme, Petrópolis, Vozes, 1991]; 10.]. P. Lynch, Aristotle's School, p. 61.
Numênio, fr. 24, éd. e trad. des Places; Prado, Comentário sobre o Timeu, t. 11. Cartas, tradução de Carlos Alberto Nunes, Belém, Editora Univer-
I, 7, 24 Dihel, p. 32, trad. Festugiêre. sidade Federal do Pará, 1975.

92 93
A filosofia como modo de vida Platão e a Academia

de Sócrates e por seu exame das leis e dos costumes, a necessário forçar os filósofos a ser reis 14 • Descrevendo a
que ponto é difícil administrar corretamente os assuntos da vi~a ?a Ac~d~mia de Platão, Dicearco 15 , o discípulo de
cidade, para reconhecer finalmente que todas as cidades de Anstoteles, ms1ste no fato de seus membros viverem como
sua época, absolutamente todas, tinham um mau regime uma comunidade de homens livres e iguais, na medida
político. É porque, diz ele, "fui irresistivelmente levado a em que aspiravam igualmente à virtude e à investigação
louvar a verdadeira filosofia e a proclamar que, somente .à em comum. Platão não pede honorários a seus alunos
sua luz, se pode reconhecer em que lugar a justiça está na :U: virtu~e do princípio de que é necessário dar o qu~
, vida pública e na vida privada". Mas não se trata simples- e I~al aquel_:s. que são iguais. Segundo os princípios
.imente de discorrer abstratamente. Para Platão, seu "ofício pohtH:os. p~:tomcos: trata-se, então, de uma igualdade
ide filósofo" cons~t~.~.!D...~_gü::,,.Se ele prõZ~~a~(f~sempenhar-· geometr:Ka , que da a cada um segundo seus méritos e
um papel político em Siracusa, é para não passar, a seus necessidades. Vislumbra-se aqui que, persuadido de que
próprios olhos, "por um belo palrador", incapaz de agir 12 . o homem só pode viver como homem em uma cidade
Muitos alunos da Academia desempenharam efetivamente per~eita~ Platão gostaria de fazer, para tornar possível sua
um papel político em diferentes cidades, seja como con- reahzaçao, que seus discípulos vivessem nas condições
selheiros de soberanos, seja como legisladores, seja ainda de uma cidade ideal, e gostaria ainda que, embora não
como opositores da tirania13 . Os sofistas pretenderam for- pudess~m. governar uma cidade, eles pudessem governar
mar os jovens para a vida política, Platão quis fazer isso s_eu propno eu segundo as normas dessa cidade ideaP 7•
dotando-os de um saber bem superior àquele que os sofistas E isso o que procurará fazer a maior parte das escolas
poderiam fornecer-lhes, de um saber que, de uma parte, filosóficas posteriores 18 • _ _

será fundado sobre um método racional rigoroso e, de


outra, segundo a concepção socrática, será inseparável do Em vez de entregar-se a uma atividade política, os mem-
amor do bem e da transformação interior do homem. Ele bros da escola consagraram-se a uma vida desinteressada )
não quer somente formar hábeis políticos, mas homens. de estudos e de prática espiritual. Como os sofistas, mas
Para realizar sua intenção política, Platão deve fazer um por outras razões, Pl~tão cria, um me1Õ·e·ouêãtivõ-rei~ti-:;;=·/
imenso desvio, isto é, criar uma comunidade intelectual mente separado da ndade. Socrates, por seu turno, tinha
e espiritual que será encarregada de formar, levando o uma concepção de educação. À diferença dos sofistas
tempo necessário, os novos homens. Nesse imenso desvio, considerava que a educação deveria realizar-se não em u~
as intenções políticas arriscam-se, porém, a ser esquecidas,
14. República, VII, 519 d.
e talvez não seja indiferente escutar Platão dizer que será
15. K Gaiser, Philodems Academica, Stuttgart, 1988, pp. 153 ss.
16. Leis, Vl, 756e-758 a .
.TI~ Carta VIL 328 b-329 c, trad. Brisson. 17. República, IX, 592 b.
13. J. P. Lynch, op. cit., p. 59, nota 32 (bibliografia); M. Isnasdi Paren- ~8. Cf.. B. Frischer, The Sculpted Word. Epicureanism and Philosophical
te. L'eredità di Platone nell'Accademia antica, Milano, 1989, pp. 63 ss. Recruztment tn Anczent Greec, University of California Press, 1982, p. 63.

94 95
A filosofia como modo de vida Platão e a Academia

meio artificial mas, como fora o caso da tradição antiga, Axioteia22 usava sem vergonha a túnica simples dos filóso-
misturando-se à vida da cidade. Contudo, precisamente, o fos, o que nos permite supor que os membros da Academia,
que caracteriza a pedagogia de Sócrates é que ela atribuía como outros filósofos da época, tinham esse costume que
importância capital ao contato vivo entre os homens, e os distinguia dos outros homens. Pode-se pensar, a julgar
agora Platão partilha dessa convicção. Torna-se a encon- pelas tradições posteriores da escola, que, fora das discus-
trar em Platão essa concepção socrática de educação pelo sões, dos cursos e dos trabalhos científicos, algumas refei-
contato vivo e pelo amor, mas, como disse Lynch19 , Platão, ções feitas em comum eram previstas pela organização
de alguma maneira, institucionalizou-a em sua escola. A da escola23 •
educação será feita no seio de uma comunidade, de um
Falamos de membros mais velhos, associados a Platão
grupo, de um círculo de amigos, no qual reinará uma
na investigação e no ensino. Conhecemos deles certo
atmosfera de amor sublime.
número: Espeusipo, Xenócrates, mas também Eudoxo
de Cnide, Heráclido do Ponto, Aristóteles. Este último,
Formação e investigação na Academia
por exemplo, permanece na Academia durante 20 anos,
Conhecemos pouca coisa sobre o funcionamento insti- como discípulo, posteriormente ensinando. Trata-se de
tucional da Academia20 • Como tornaremos a dizer, não se filósofos e de cientistas, notadamente astrônomos e ma,-
deve representar, como se fez demasiadas vezes, a Academia temáticos de primeiro time, como Eudoxo e Teeteto.
e as outras escolas filosóficas de Atenas como associações Nossa representação da Academia e do papel que nela
religiosas, adoradoras das Musas. Sua função corresponde desempenhava Platão seria, provavelmente, muito diferen-
apenas à utilização do direito de associação em vigor em te se as obras de Espeusipo, de Xenócrates e de Eudoxo
Atenas 21 • Havia, parece, duas categorias de membros, de tivessem sido conservadas.
um lado os mais velhos, investigadores e professores,
de outro os mais jovens, os estudantes. Estes últimos, por A geometria e as outras ciências matemáticas desem-
exemplo, parecem ter desempenhado, com seus votos, penhavam papel de primeiro plano na formação. Mas elas
papel decisivo na eleição de Xenócrates como o segundo representavam apenas uma primeira etapa na formação
sucessor de Platão. O primeiro sucessor, Espeusipo, teria do futuro filósofo. Eram praticadas na escola de Platão de
sido escolhido pelo próprio Platão. Na Antiguidade, era maneira totalmente desinteressada, sem qualquer conside-
·significativo o fato de duas mulheres, Axioteia e Lasteneia, ração de utilidade 24, mas, destinadas a purificar o espírito
terem sido alunas de Platão e de Espeusipo. Conta-se que das representações sensíveis, tinham também finalidade

19.]. P. Lynch, op. cit., p. 63. 22. K Gaiser, Philodems Academica, p. 154.
20. Sobre esse tema, cf. id., ibid., pp. 54-63 (e p. 63). 23. Plutarco, Questões de Convivas, VIII, 1, 717 b.
21. Cf. adiante pp. 149-150. 24. República, VII, 522-534.

96 97
A filosofia como modo de vida Platão e a Academia

ética25 • A geometria não era somente o objeto de um en- respondê-las, confessando sempre nada saber" 28 • A dialética
sino elementar, mas de investigações aprofundadas. Foi na não ensinava só a atacar, isto é, a conduzir judiciosamente
Academia que as matemáticas conheceram seu verdadeiro as interrogações, mas também a responder frustrando as
nascimento. Lá foi descoberta a axiomática matemática armadilhas do interrogador. A discussão de uma tese será
que formula as pressuposições de raciocínios: princípios, a forma habitual de ensino 29 até o século I a.C ..
axiomas, definições, postulados, e põe em ordem os teo- A formação para a dialética era absolutamente necessária,
remas e os deduz uns dos outros. Todos esses trabalhos na medida em que os discípulos de Platão eram destinados
conduziram, meio século mais tarde, à redação por Euclides a desempehhar seu papel na cidade. Em uma civilização
de seus famosos Elemento52 6 • que tinha por centro o discurso político, era preciso formar
Segundo a República27 , os futuros filósofos só deveriam para um perfeito domínio da palavra e do raciocínio. Aos
dedicar-se à dialética quando tivessem adquirido certa olhos de Platão, ela era, em contrapartida, perigosa, pois
maturidade, e eles o faziam durante cinco anos, de trinta arriscava-se a fazer que os jovens acreditassem que se poderia
a trinta e cinco anos. Não sabemos se Platão aplicava essa defender ou atacar qualquer posição. A dialética platônica
não é um exercício puramente lógico. Ela é, antes de tudo,
regra em sua escola. Mas, necessariamente, exercícios dia-
um exercício espiritual que exige dos Iiii~rtocutores uma
léticos tiveram lugar no ensino da Academia. A dialética
ascese, uma transformação deles mesmos. Não se trata de
era, à época de Platão, uma técnica de discussão subme-
uma luta entre dois indivíduos na qual o mais hábil imporá
tida a regras precisas. Uma "tese" era apresentada, isto é,
seu ponto de vista, mas de um esforço realizado em comum
uma proposição interrogativa do tipo: pode-se ensinar a
por dois interlocutores que querem estar de acordo com as
virtude? Um interlocutor atacava a tese, outro a defendia.
exigências racionais do discurso sensato, do lógos. Opondo
O primeiro atacava interrogando, isto é, apresentando
seu método ao dos erísticos contemporâneos que praticavam
ao defensor da tese questões habilmente escolhidas para a controvérsia por si mesma, Platão30 escreve:
obrigá-lo a respostas tais que fosse levado a admitir a
contraditória da tese que queria defender. O próprio in- Quando dois amigos, como tu e eu, fazem humor, é neces-
terrogador não tinha uma tese. Por isso Sócrates tinha o sário usar isso de uma maneira mais doce e mais dialética.
costume de desempenhar o papel do interrogador, como Entendo por "mais dialética" não só o Jato de dar respostas
diz Aristóteles: "Sócrates costuma fazer perguntas e não verdadeiras, mas também fundar sua resposta sobre aquilo
que o interlocutor reconhece saber.
25. Ibid., VII, 526 e; Plutarco, Questões de Convivas, VIII, 718 e-f, cf. I.
Hadot, Arts libéraux .. . , p. 98. 28. Aristóteles, Refutações sofísticas, 183 b 7.
26. Cf. P. Lasserre, La naissance des mathématiques à l'époque de Platon, 29. a., adiante pp. 156-157, e veja-se P. Hadot, "Philosophie, Dialectique,
Fribourg/Paris, 1990. Rhétorique dans l'Antiquité", in Studia Philosophica, 39: 139-166, 1980.
27. República, 539 d-e. 30. Mênon, 75 c-d.

98 99
A filosofia como modo de vida Platão e a Academia

Um verdadeiro diálogo não é possível se não se quer outras expos1çoes de Espeusipo e de Eudoxo que expri-
realmente dialogar. Graças a esse acordo entre interlocu- miam pontos de vista muito diferentes. Havia investigação
tores, renovado a cada etapa da discussão, já não é um em comum, mudança de ideias, e isso era, ainda uma
dos interlocutores que impõe sua verdade ao outro; bem vez, uma espécie de diálogo. Platão34 concebia, ademais,
ao contrário, o diálogo ensina-lhes a pôr-se no lugar do o pensamento como um diálogo:
outro, a superar seu próprio ponto de vista. Graças a seu Pensamento e discurso são a mesma coisa, salvo que é o ·
esforço sincero, os interlocutores descobrem por eles mes- diálogo interior e silencioso da alma consigo mesma que
mos, e neles mesmos, uma verdade independente deles, na denominamos pensamento.
medida em que se submetem a uma autoridade superior, o
lógos. Como em toda a filosofia antiga, a filosofia consiste A escolha de vida platônica
aqui no movimento pelo qual o indivíduo se transcende
em alguma coisa que o supera, para Platão, no lógos, no Essa ética do diálogo explica a liberdade de pensamento
discurso que implica uma <:;X,.igência de racionalidade e de que, pode-se vislumbrar, reinava na Academia. Espeusipo,
universalidade. Além disso, esse lógos não representa uma .. Xenócrates, Eudoxo ou Aristóteles professavam teorias que
espécie de saber absoluto; trata-se, de fato, do acordo que não estavam totalmente de acordo com as de Platão, nota-
se estabelece entre interlocutores que são levados a admitir damente sobre o tema da doutrina das Ideias, e mesmo
certas posições em comum, acordo no qual eles superam da definição do bem, pois sabemos que Eudoxo pensava
seus pontos de vista particulares31 • que o bem supremo fosse o prazer. Essas controvérsias
intensas entre os membros da escola-deixaram traços não
Essa ética do diálogo não se traduz necessariamente por só nos diálogos de Platão ou em Aristóteles, mas em toda
um perpétuo diálogo. Sabemos, por exemplo, que certos a filosofia helenística35 , senão em toda a história da filoso-
tratados de Aristóteles, que se opõem, por seu turno, à fia. Seja como for, podemos concluir que a Academia era
teoria platônica das ideias, são apontamentos para as aulas um lugar de .livre discussão e que não havia ortodoxia na
orais que Aristóteles fazia mrAcademia; ora, eles se apre- escola, nem dogmatismo.
sentam como um discurso contínuo, sob forma didática32 •
Se é assim, pode-se perguntar sobre o que poderia se
Mas parece que, conforme um hábito que se perpetuou
fundar a· unidade da comunidade. Pode-se dizer, creio, que,
em toda a Antiguidade, os ouvintes podiam exprimir suas
se Platão e os outros professores da Academia tinham desa-
opiniões após a exposição33 • Houve, certamente, algumas
cordo sobre pontos de doutrina, todos eles admitiam, apesar
31. Cf. E. Heitsch, Erkenntnis und Lebensführung, Mainz/Stuttgart, Aka-
de tudo, graus diversos de escolha do modo de vida, da
demie der Wissenschaften und der Literatur, 1994, fase. 9.
32. I. Düring, Aristoteles, Heidelberg, 1996, p. 9. 34. Sofista, 263 e 4.
33. Cf. adiante p. 225. 35. Cf. a obra de H.:J. Krãmer, citada na p. 92, nota 6.

100 101
A filosofia como modo de vida Platão e a Academia

forma de vida, proposta por Platão. Essa escolha de vida na alma. Quando Sócrates, como vimos 40 , dizia que a vir-
consistia, parece, antes de tudo em aderir a essa ética do tude é um saber, ele não entendia por saber o puro co-
diálogo, da qual acabamos de :fular. Trata-se precisamente, nhecimento abstrato do bem, mas um conhecimento que
para retomar a expressão de J. Mittelstrass36, de uma "forma escolhia e queri~ o bem, isto é, uma disposição interior na
de vida" que é praticada pelos interlocutores, pois, na me- qual pensamento, vontade e desejo são apenas um. Para
dida em que, no ato do diálogo, eles se põem como sujeitos, Platão também, se a virtude é ciência, a própria ciência é
mas também se superam a si mesmos, fazem a experiência virtude. Pode-se pensar que havia na Academia uma con-
do lógos, que os transcende, e, finalmente, do amor do Bem, cepção comum de ciência, como formação do homem,
que supõe todo esforço de diálogo. Nessa perspectiva, o como lenta e difícil educação do caráter, como "desenvol-
objeto da discussão e o conteúdo doutrinai têm importância vimento41 harmonioso de toda a personalidade humana",
finalmente como modo de vida, destinado a "assegurar
secundária. O que conta é a prática do diálogo e a trans-
[ ... ] uma vida boa e, portanto, a 'salvação' da alma" 42 .
formação à qual ela conduz. Às vezes a função do diálogo
será chocar-se com a aporia e revelar os limites da linguagem, Aos olhos de Platão, a escolha do modo de vida filo-
a impossibilidade na qual algumas vezes se encontra de sófico era o essencial. É o que atesta a narração de Er na
comunicar a experiência moral e existencial. República, que apresenta miticamente essa escolha como
realizada na vida anterior43 :
Finalmente, trata-se, sobretudo, para retomar a expres-
são de L. Brisson37, de "aprender a viver de modo filosó- É aí, parece, que reside, para o homem, o risco capital; eis por
fico", em uma vontade comum de praticar uma investigação que cada um de nós, pondo de lado qualquer outro estudo,
desinteressada, em oposição tencionada ao mercantilismo deve preocupar-se sobretudo em buscar e cultivar aquele, em
sofístico38 • É já uma escolha de vida. Viver de modo filo-
ver se está em situação de conhecer e descobrir o homem que
lhe dará a capacidade e a ciência de discernir as boas e as
sófico é, principalmente, voltar-se para a vida intelectual e
más condições, bem como escolher sempre, e em toda parte, a
espiritual, realizar uma conye_rsão39 que põe em jogo "toda
melhor, na medida do possível.
a alma", isto é, toda a vida moral. A ciência ou o saber
jamais são para Platão um conhecimento puramente teóri- Exercícios espirituais
co e abstrato, que se poderá "introduzir de modo acabado"
Na Carta VII, Platão declara que, caso não se adote
36. J. Mittelstrass, "Versuch über den sokratischen Dialog", in Der Ges- esse modo de vida, a vida não vale a pena ser vivida, e isso
prãch Éd. K. Stierle und R. Warning Munich, 1984, p. 26.
37. L. Brisson, "Présupposés et conséquences d'une interprétation 40. Cf. p. 63, nota 31.
ésotériste de Platon", in Les Études philosophiques, 1994, n. 4, p. 480. 41. I. Hadot, Arts libéraux .. . , p. 15
' 38. Aristóteles, Metafísica, 1004 b 25. 42. L. Brisson, "Presupposés ... ", p. 480.
39. República, VII, 518 c. 43. República, X, 618 b.

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A filosofia como modo de vida Platão e a Academia

porque é necessário decidir-se imediatamente a seguir essa revelam, por exemplo, os desejos "terríveis e selvagens" de
"via", essa "via maravilhosa". Esse gênero de vida supõe, violação e de morte que existem em nós. Para não se ter
ademais, um esforço considerável, que é necessário a cada esses sonhos, é necessário preparar-se à tarde esforçando-se
dia renovar. É em relação a esse gênero de vida que se para estimular a parte racional da alma com seus discursos
distinguem aqueles que "filosofam realmente" daqueles interiores e investigações que a orientem para assuntos
que "não filosofam realmente", estes últimos não tendo elevados, entregando-se à meditação, acalmando, assim,
senão um verniz exterior de opiniões superficiais44 • Platão o desejo e a cólera. Note-se, por outro lado, que Platão49
faz alusão a esse gênero de vida45 quando evoca a figura recomenda dormir pouco: "Não se deve dormir muito,
de seu discípulo Díon de Siracusa. Ele consiste "em dar apenas o que é necessário para a saúde; ora, isso não será
mais importância à virtude que ao prazer", em renunciar muito, uma vez que venha a ser um hábito".
aos prazeres dos sentidos, em também observar um regime Outro exercício consiste em saber conservar a calma na
alimentar, em "viver cada dia de tal modo que se torna infelicidade, sem revoltar-se 50 , utilizando, para isso, máximas
cada dia o mais possível senhor de si". Como bem mostrou capazes de mudar nossas disposições interiores. Dir-se-á as-
P. Rabbow46 , parece bem que certas práticas espirituais, sim que não se sabe o que é bom e o que é mau nesses tipos
cujos traços encontramos em várias passagens dos diálogos, de acidentes, que em nada ajuda indignar-se, que nenhuma
estiveram em uso na Academia. coisa humana merece que se lhe atribua muita importância
Nas últimas páginas de seu diálogo Timeu47 , Platão e que, como no jogo de dados, é necessário considerar as
afirma que é necessário exercer a parte superior da alma, coisas tais como são, e agir em consequência51 •
que é justamente o intelecto, de tal modo que ela se A mais célebre prática é o exercício para a morte, ao
harmonize com o universo e assimile-se à divindade. Mas qual Platão faz alusão no Fédon, que narra precisamente a
ele não dá detalhes sobre a maneira de praticar esses morte de Sócrates. Sócrates declara que um homem que
exercícios. É em outros diálo_gos que se podem encontrar passou sua vida na filosofia tem, necessariamente, coragem
especificações interessantes. para morrer, pois a filosofia é apenas um exercício para a
Poder-se-ia falar de "preparação para o sono", quando morte 52 • E ela é um exercício para a morte pois a morte
Platão 48 evoca as pulsões inconscientes que os sonhos nos é a separação entre alma· e corpo, e a filosofia dedica-se a
',-~,~---
''1,4. Carta VII, 340 c-d. 49. Leis, XII, 808 b-c.
45. Ibid., 327 b, 331 d, 336 c. 50. República, X, 604 b-c.
46. P. Rabbow, Paidagogia. Die Grundlegung der abendliindischen Erziehun- 51. Sobre um exercício do mesmo gênero no Críton, cf. E. Martens,
gskunst in der Sokratik. Gõttingen, 1960, p. 102. Die .Sache des Sokrates, p. 127.
47. Timeu, 89d-90a. 52. Fédon, ~.:i a. Cf. R. di Giuseppe, La teoria della morte nel Fedone
48. República, IX, 571-572. platonico, I! Mulino, 1993.

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A filosofia como modo de vida Platão e a Academia

desligar sua alma de seu corpo. O corpo, com efeito, da morte, na Repúblicd'6 ele aparece como uma espécie de
causa-nos mil problemas, por causa das paixões que engendra, voo da alma ou de olhar desde o alto sobre a realidade:
das necessidades que nos impõe. É necessário que o filó-
A mesquinhez de espírito é quiçá o que mais repugna a uma
sofo se purifique, isto é, que se esforce para concentrar e
unir a alma, para libertá-la da dispersão e da distração que
alma que deve tender incessantemente a abraçar, no seu con-
lhe impõe o corpo. Deve-se pensar, aqui, nas longas me- junto e na sua totalidade, as coisas divinas e as humanas.
ditações de Sócrates sobre si mesmo evocadas no Banquete, [. .. ] Mas acreditas que um homem dotado de elevação de
durante as quais permanece imóvel, sem beber ou comer. pensamento e a quem é dado contemplar todos os tempos e todos
Esse exercício é indissoluvelmente ascese do corpo e do os seres possa encarar a vida humana como algo de grande?
pensamento, despojamento das paixões para alcançar a Assim, não pensará que a morte seja coisa a temer.
pureza da inteligência. O diálogo é, em certo sentido, já Ainda aqui, o exercício que consiste em mudar radical-
um exercício para a morte. Pois, como disse R. Schaerer53 , mente de ponto de vista e abraçar a totalidade da realida-
"a individualidade corporal cessa de existir no momento de em uma visão universal permite vencer o medo da
em que se exterioriza no lógos". Esse foi um dos temas morte. A grandeza de alma revelar-se-á, assim, como o fru-
favoritos do pensamento do saudoso B. Parain54 : "A lin- to da universalidade do pensamento. A filosofia descrita no
guagem só se desenvolve sobre a morte dos indivíduos".
TeetetrP tem o mesmo olhar do alto para as coisas aqui
Na perspectiva da narração da morte de Sócrates que é o
embaixo. Seu pensamento passeia em toda parte como um
Fédon, vê-se, assim, que o "eu" que deve morrer se trans-
voo, nos astros e sobre a Terra. Eis por que Platão o des-
cende em um "eu" de agora em diante estrangeiro à
creve com humor, como um estrangeiro perdido no mun-
morte, pois é identificado ao lógos e ao pensamento. É o
do humano, demasiado humano, que se arrisca, como Tales,
que dá a entender Sócrates no fim do diálogo 55 :
o sábio, a cair em um poço. Ele ignora as lutas pelas ma-
Não há meio, meus amigos, de convencer Críton de que o gistraturas, os debates políticos, as festas embelezadas por
verdadeiro Sócrates é este que-vos está falando e dispondo suas torneios de flautas. Ele não sabe pleitear no tribunal, nem
ideias uma por uma ... Imagina-me já esse cadáver que serei injuriar, nem lisonjear. As maiores propriedades lhe parecem
em breve, por isso pergunta como deve enterrar-me. pouca coisa, "habituado que é a abraçar com o olhar a
Se no Fédon esse exercício é apresentado como um exer- Terra inteira". Ele zomba da nobreza, pretensamente asse-
cício para a morte, que precisamente liberta a alma do medo gurada pelas longas genealogias. Como bem notou P.
Rabbow5 8, não há aqui distinção entre a vida contemplativa
53. R. Schaerer, La Question platonicienne, p. 41.
54. B. Parain, "Le langage et l'existence", na coletânea L'Existence, 56. República, VI, 486 a-b.
Paris, 1945, p. 173. "; ·57. Teeteto, 173-176.
55. Fédon, 115 e. 58. P. Rabbow, Paidagogia .. ., p. 273.

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A filosofia como modo de vida Platão e a Academia

e a vida ativa, mas opos1çao entre dois modos de vida, o que o atrai por meio do objeto amado. O filósofo esforçar-
modo de vida do filósofo, que consiste em "tomar-se justo se-á para sublimar seu amor, procurando tomar melhor o
e bom na claridade da inteligência", que é simultaneamente objeto de seu amor61 • Seu amor, como diz o Banquet!'2, dar-
ciência e virtude, e o modo de vida dos não filósofos; estes lhe-á a fecundidade espiritual que se manifestará na prática
são deixados à vontade na cidade pervertida somente por- do discurso filosófico. Pode-se notar aqui, em Platão, a pre-
que se comprazem com as :fulsas aparências de habilidade sença de um elemento irredutível à racionalidade discursiva,
e de sabedoria, porque só se deixam arrastar pela força herdada do socratismo, o poder educativo da presença amo-
bruta59 • O Teeteto quer dizer que o filósofo parece um es- rosa63: "Só se aprende quando se ama" 64•
trangeiro ridículo na cidade só aos olhos do homem comum
Por outro lado, sob o efeito da atração inconsciente
que a cidade corrompeu e que só reconhece como valor a
da Forma da beleza, a experiência do amor, diz Diotima
astúcia, a habilidade e a brutalidade.
no Banquet!'5 , elevar-se-á da beleza que existe nos corpos
Em certa medida, a ética do diálogo, que é, em Platão, o para a que existe nas almas, depois para as ações e para as
exercício espiritual por excelência, está ligada a outra marca ciências, até a visão repentina de uma beleza maravilhosa
fundamental, a sublimação do amor. Segundo o mito da e eterna, visão análoga à que o iniciado experimenta nos
preexistência das almas, a alma viu, quando ainda não tinha mistérios de Elêusis, visão que excede toda enunciação, toda
descido para o corpo, as Formas, as Normas transcendentes. discursividade, mas gera na alma a virtude. A filosofia toma-
Caída no mundo sensível, ela as esqueceu, nem sequer pode se, então, a experiência vivida de uma presença. Da
reconhecê-las intuitivamente nas imagens que se encontram experiência da presença do ser amado, eleva-se à experiên-
no mundo sensível. Mas somente a Forma da beleza ainda cia de uma presença transcendente.
tem o privilégio de aparecer nessas imagens de si mesma
Afirmamos acima que a ciência, em Platão, jamais é
que são os belos corpos. A emoção amorosa que a alma
puramente teórica: ela é transformação do ser, é virtude;
sente diante de um belo corpo é provocada pela recordação
podemos dizer agora que é também afetividade. Poder-se-
inconsciente da visão que a alma teve em sua existência
ia aplicar a Platão a fórmula de Whitehead66 : "O conceito
anterior60• Quando a alma prova o mais humilde amor ter-
restre, é essa beleza transcendente que a seduz. Aqui reen-
'"61. Fedro, 253 a.
contramos o estado do filósofo do qual fala o Banquete, 62. Banquete, 209 b-c.
estado de estranheza, de desequilibrio interior, pois aquele 63. Cf. acima pp. 57-58.
que ama é dilacerado por seu desejo de unir-se carnalmente 64. Goethe, Conversas com Eckermann, 12 de maio de 1825.
65. Banquete, 210-212.
ao objeto amado e seu impulso para a beleza transcendente 66. Citada por A. Parmentier, La philosophie de Whitehead et le probteme
de Dieu, Paris, 1968, p. 222, nota 8: "O conceito é sempre revestido de
59. Teeteto, 176 b-c. emoção, isto é, de esperança ou de temor, ou de repulsão, ou de ardente
60. Fedro, 249 b ss. aspiração, ou de prazer de análise ... "

108 109
A filosofia como modo de vida Platão e a Academia

é sempre revestido de emoção". A ciência, mesmo a geo- Pode-se perguntar por que Platão escreveu diálogos. O
metria, é um conhecimento que envolve toda a alma, que discurso filosófico falado é, com efeito, a seus olhos bem
é sempre ligada a Eros, ao desejo, ao impulso e à escolha. superior ao discurso filosófico escrito. É que, no discurso
"A noção de conhecimento puro, isto é, de puro entendi- oral69 , há a presença concreta de um ser vivo, um verdadeiro
mento"- diz ainda Whitehead67 - , "é totalmente estranha diálogo que liga duas almas, uma troca na qual 6 discurso,
ao pensamento de Platão. A era dos professores ainda como diz Platão, pode responder às questões que se lhe
não chegou". põem e defender-se por si mesmo. O diálogo é, portanto,
personalizado, ele se dirige a essa pessoa e corresponde
a suas possibilidades e necessidades. Como na agricultu-
O discurso filosófico de Platão ra, é necessário tempo para que a semente germine e se
desenvolva, é necessário muita conversa para fazer nascer
Até agora falamos apenas do diálogo oral, tal qual de- na alma do interlocutor um saber que, como dissemos,
veria ser praticado na Academia, mas do qual só podemos será idêntico à virtude. O diálogo não transmite um saber
acabado, uma informação, mas o interlocutor conquista seu
fazer uma ideia por exemplos de diálogos que encontramos
saber por seu esforço próprio, descobre-o por si mesmo,
na obra escrita de Platão e, várias vezes, para simplificar,
pensa por si mesmo. Ao contrário, o discurso escrito não
nós os citamos empregando a fórmula " ... diz Platão".
pode responder às questões, é impessoal, e pretende dar
Contudo, essa figura é muito inexata pois, em sua obra
imediatamente um saber acabado, mas que não tem a
escrita, Platão nada diz em seu próprio nome. Enquanto
dimensão ética que representa uma adesão voluntária. Só .·
antes dele Xenófanes, Parmênides, Empédocles, os sofistas há verdadeiro saber no diálogo vivo. p-~p~·
e Xenofonte não deixam de falar na primeira pessoa, ele
faz falar personagens fictícias em situações fictícias. Apenas Se, apesar de tudo isso, Platão escreveu diálogos, tal-
na Carta VII faz alusão à sua filosofia, descrevendo-a antes vez seja, antes de mais nada, porque quis dirigir-se não
de tudo como um modo de _vida e sobretudo declarando só aos membros de sua escôla, mas aos ausentes e desco-
que sobre o objeto de suas preocupações nunca redigiu nhecidos. "O discurso escrito rola por todos os lugares." 70
obra escrita e que jamais fará isto, pois trata-se de um Os diálogos podem ser considerados obras de propagan-
saber que não pode, absolutamente, ser formulado como da, ornadas com todos os prestígios da arte literária, mas
os outros saberes, mas que brota da alma, no momento em destinadas a converter à filosofia. Platão os lia nas sessões de
que ela teve uma longa familiaridade com a atividade em que
69. Fedro, 275-277. Comparar com Político, 294 c - 300 c [Político, tra-
consiste e à qual consagrou sua vida68 • dução e notas de Jorge Paleikat e João Cruz Costa, 4a ed., São Paulo, Nova
Cultural, 1987 (Os Pensadores).], sobre os inconvenientes da lei escrita e
67. Id. ibid., p. 410, n. 131. as vantagens da palavra real.
68. Carta VII, 341 c. 70. Fedro, 275 e.

llO lll
A filosofia como modo de vida Platão e a Academia

leituras públicas que eram, na Antiguidade, os meios de Deve-se reconhecer, porém, que essa presença irônica
fazer-se conhecer. Mas os diálogos eram conhecidos tam- e amiúde lúdica de Sócrates torna a leitura dos diálogos
bém longe de Atenas. É assim que Axioteia, mulher de bastante embaraçosa para o leitor moderno, que gostaria de
Fliunte, tendo lido um dos livros da República, vai a encontrar neles o "sistema" teórico de Platão. Acrescentem-se
Atenas para tornar-se aluna de Platão 71 , e os historiadores a isso as numerosas incoerências doutrinais que. podem ser
antigos afirmaram que ela durante muito tempo escondeu notadas quando se passa de um diálogo a outro 74 . Todos os
o fato de ser mulher. Em uma Vida de Platão72 datada da historiadores, além disso, são, afinal, obrigados a admitir,
segunda metade do século IV a.C., encontramos a por diversas razões, que os diálogos só nos revelam muito
seguinte observação: imperfeitamente o que poderia ser a doutrina de Platão
Ao compor seus diálogos, ele exortou muitas pessoas a filoso- "aquém da filosofia platônica" 75 , e "que só nos transmite~
far mas, por outro lado, permitiu que muitos filosofassem de uma imagem particularmente empobrecida e restrita da
maneira superficial... atividade de Platão na Academia"76 •

Contudo, para converter a esse modo de vida que é a . y ~oldschmidt1 , a quem não se pode imputar querer
7

filosofia, é necessário dar uma ideia do que é a filosofia. m1mm1zar o aspecto sistemático das doutrinas, propôs a
Platão escolhe, para tanto, a forma do diálogo, e isso por melhor explicação desse fato dizendo que os diálogos não
dois motivos. Em primeiro lugar, o gênero literário do foram escritos para "informar", mas para "formar". Tal é, ·
diálogo "socrático", isto é, que põe em cena como inter- desse modo, a intenção profunda da filosofia de Platão.
locutor principal Sócrates, estava muito em voga na época. Sua filosofia não consiste em construir um sistema teórico
E precisamente o diálogo "socrático" permite valorizar a da realidade e em "informar" imediatamente seus leitores
ética do diálogo praticada na escola de Platão. Pode-se, escrevendo um conjunto de diálogos que expõe metodica-
ademais, legitimamente supor que certos diálogos nos dão mente esse sistema, mas consiste em "formar", isto é, em
um eco do que foram a~ <:lis<:ussões no interior da Aca- transformar os indivíduos, fazendo-os experimentar, no
demia. Observe-se somente que, muito viva nos primeiros exemplo do diálogo ao qual o leitor tem a ilusão de assistir
diálogos, a personagem de Sócrates tende a tornar-se cada as exigências da razão e, finalmente, a norma do bem. '
vez mais abstrata nos diálogos mais tardios, para esvanecer-se
finalmente nas Leis73 • esse a,~agamento ~a ~gura ~e Só:r:tes, da_passage:U do diálogo ao monólogo,
e da forma de VIda filosofica a pesqmsa filosofica profissional".
74. R. Schaerer, op. cit., p. 67.
71. Cf. R. Goulet, art. "Axiothea", in R. Goulet, Dictionnaire des philosophes 75. Id., ibid., p. 174: estas são, como diz Aristóteles, Poética 1447 b
antiques, T. I, Paris, 1994, p. 691. obras miméticas e poéticas. ' '
72. K Gaiser, Philodems Academica, p. 148. 76. L. Brisson, "Presupposés ... ", p. 480.
73. Cf. R. Schaerer, La Question platonicienne, p. 171; J. Mittelstrass, ?7. V. G?ldschmidt, Les Dialogues de Platon, Paris, 1947, p. 3 (trad. br.
"Versuch über den sokratischen Dialog", p. 26, assinala o perigo, ligado a de Dwn DaVI Macedo, São Paulo, Loyola, no prelo).

112 113
A filosofia como modo de vida Platão e a Academia

Nesta perspectiva de formação, o papel do diálogo mas não são necessariamente coerentes uns com os outros.
escrito consiste, antes de tudo, em ensinar a praticar É notável que vários diálogos, como o Parmênides ou o
precisamente os métodos da razão, métodos dialéticos e Sofista por exemplo, tenham por objeto as condições de
também geométricos, que permitirão aprende,r em todos possibilidade do diálogo: eles se esforçam exatamente para
os domínios a arte da medida e da definição. E isso o que explicitar todos os pressupostos implicados n~ ética do
nos dá a entender Platão, a propósito da longa discussão verdadeiro diálogo, isto é, na escolha do modo de vida
que introduziu no Político78 : platônico. Para que se possa compreender isso, melhor
Nas classes onde se aprende a ler, quando se pergunta a alguém ainda, para que se possa compreender escolhendo o bem,
de que letras é formada esta ou aquela palavra, Jazemo-lo é necessário supor, com efeito, a existência de "valores
com o intuito de levá-lo a resolver esse problema particular normativos", independentes das circunstâncias, das con-
ou com o intuito de torná-lo mais apto a resolver todos os venções e dos indivíduos, que fundam a racionalidade e a
problemas gramaticais possíveis? - Todos os problemas po~sí­ retitude do discurso 80 :
veis, evidentemente. - Que diremos, então, de nossa pesquzsa Imagina que alguém se recusa a determinar para cada objeto de
sobre o político? É ela ditada diretamente pelo interesse que discussão uma Forma, umaldeia definida. Então, não saberá
nos inspira, ou existe para nos tornar melhores dialéticos a mais para onde voltar seu pensamento, pois não pretendeu
propósito de todos os assuntos possíveis? - Aqui, ainda,
senão que a Ideia de cada ser seja sempre a mesma. Então,
evidentemente para a formação geral. - [. .. 1 E, quanto
a possibilidade mesma de discutir fica anulada.
à solução do problema apresentado, encontrá-la de maneira
mais fácil e pronta possível deve ser apenas uma preocupação A afirmação das Formas é inerente a todo diálogo
secundária e não uma finalidade primordial, se dermos crédito digno desse nome. Mas então se apresenta o problema de
à razão, que nos aconselha a preferir e a colocar em primeiro seu conhecimento"".( elas~:r!~<lJ1Qd~.msçr- conhecidas. de uma
lugar o método [. . .]. ~~:r!~i(a ~"eJ1SÍ1rel) e op~oblema de sua exÍstênci~· (~l~; não
Isso não exclui o fato de ~ue os diálogos tenham tam- podem ser objetossensívej§L Platão será,"~assim~·lêvaõü"a
bém certo conteúdo doutrinaF9 , visto que eles apresentam, propor sua~teconadas"formas inteligíveis, isto é, não sen-
em geral, um problema preciso e propõem ou tentam síveis, e será, por consequência, conduzido à discussão de
procurar uma solução. Cada um forma um todo coerente, problemas que supõem sua existência e suas relações com
as coisas sensíveis. O discurso filosófico de Platão funda-se
78. Político, 285 c-d.
numa escolha intencional de dialogar numa experiência
79. Sobre os diálogos de Platão, veja-se o excelente resumo de L. concreta e vivida do diálogo falado e vivo. Ele conduz
Brisson em seu artigo "Platon", in M. Labmne et L. Jaffro, Gradus philoso- essencialmente à existência de objetos imutáveis, isto é, de
phique, Paris, 1994, pp. 610-613, que me inspirou para as págin:S que se~~m
[ Gradus philosophicus: a construção da filosofia ocidenta~ traduçao de Cnstma
Murachco, São Paulo, Mandarim, 1996]. 80. Parmênides, 135 b.

114 115
A filosofia como modo de vida
Platão e a Academia

Formas não senslVeis, garantias da retitude do discurso e


a prática de um modo de vida; de outra, um discurso filo-
da ação, e também à existência no homem de uma alma
sófico que, a um só tempo, é parte integrante desse modo
que, mais do que o corpo, assegura a identidade do indi-
de vida e explícita os pressupostos teóricos implícitos nesse
víduo81. Constata-se na maior parte dos diálogos, por outro
modo de vida, um discurso filosófico, contudo, que apare-
lado, que as Formas são sobretudo valores morais, que ce como incapaz de exprimir o essencial - para Platão, as
fundam nossos juízos sobre as coisas da vida humana: Formas, o Bem, isto é, isso que se experimenta de uma
trata-se, antes de tudo, de procurar determinar, na vida maneira não discursiva no desejo e no diálogo.
do indivíduo e da cidade, graças a um estudo da medida
própria a cada coisa, esta tríade de valores que aparece
de uma ponta a outra dos diálogos: o que é o belo, o que
é o justo e o que é o bem82 . O saber platônico, como o
socrático, é, antes de tudo, um saber dos valores.
R. Schaerer83 escreveu: "A essência do platonismo é e
permanece, portanto, o supradiscursivo". Ele gostaria de
dizer por isso que o diálogo platônico não diz tudo, não
diz o que são as Normas, não diz o que são as Formas,
, nem a Razão, nem o Bem, nem a Beleza: tudo isso é inex-
primível pela linguagem e inacessível a toda definição. Isso
se experimenta ou se mostra no diálogo, mas também no
! desejo. Mas nada se pode dizer a respeito.

Esse modelo socrático-platônico de filosofia desempe-


nhou papel capital. Ao longo- ae toda a história da filosofia
antiga vamos encontrar esses dois polos de atividade filosó-
fica que acabamos de distinguir: de uma parte, a escolha e

81. Cf. L. Brisson, "Platon", Gradus philosophique, p. 611.


82. Esta triade aparece no Eutifron, no Criton, no Teeteto, no Político, no
Fedro, no Primeiro Alcibíades [Primeiro Alcibíades, tradução de Carlos Alberto
Nunes, Belém, Editora Universidade Federal do Pará, 1975; Eutifron, seleção,
introdução e tradução de Jaime Bruna. São Paulo, Cultrix, 1952], no Górgias,
na República, no Timeu, nas Leis, na Carta VIL
83. R Schaerer, op. cit, p. 247.

116
117
Capítulo 6

firistóteles e sua escola

A forma de vida "teorética"

A representação que se faz habitualmente da filosofia


de Aristóteles parece contradizer totalmente a tese fun-
damental que defendemos nesta obra, segundo a qual a
filosofia foi concebida pelos antigos como um modo de
vida. Não se pode negar, com efeito, que Aristóteles afirme
vigorosamente que o saber mais elevado é escolhido por
si mesmo, aparentemente sem nenhuma relação com o
modo de vida daquele que sabe 1 .
Contudo, essa afirmação deve ser reposta no quadro
geral da representação que Aristóteles se fazia dos modos
de vida e que se revela no fim que ele assinala para a es-
cola que funda. Vimos que Aristóteles fora membro da.
Academia de Platão durante vinte anos, o que significa que
participou durante muito tempo do modo de vida platôni-
co. É pouco provável que, quando em 335 ele funda, em
Atenas, sua própria escola filosófica, cuja atividade realizava-
se nos limites do ginásio denominado Liceu, não tenha sido

1. Aristóteles, Metafisica, I, 982 a 15.

119
A filosofia como modo de vida Aristóteles e sua escola

influenciado pelo modelo da Academia, mesmo que dese- ra de organizar a cidade. Aristóteles distingue entre a fe-
jasse propor à sua escola fins diferentes dos fins da escola licidade que o homem pode encontrar na vida política, na
vida ativa - é a felicidade que pode conduzir à prática da
de Platão.
virtude na cidade - , e a felicidade filosófica que corres-
Pode-se notar na origem da escola de Aristóteles, como ponde à theoría, isto é, a um gênero de vida consagrado
na origem da Academia, a mesma vontade de criar uma totalmente à atividade do espírito5 . A felicidade política e
instituição durável2 • A escolha do sucessor de Aristóteles prática só é felicidade, aos olhos de Aristóteles, de modo
se fazia por eleição, e sabemos também que um dos me~­ secundário6 • Já a filosófica encontra-se na "vida segundo o
bros da escola era encarregado da administração matenal espírito" 7, que se situa na excelência e na virtude mais
3
da instituição, o que supõe uma vida comum • Como na elevada do homem, correspondente à parte mais elevada
Academia, há duas espécies de membros, os anciãos, q~e do homem, o espírito, e subtraída aos inconvenientes que
participam do ensino, e os jovens; e há, como na A~a~em1a, comporta a vida ativa. Ela não é submetida às intermitên-
certa igualdade entre os anciãos, por exemplo ~nstotele~, cias da ação, não produz prostração. Conduz a prazeres }
Teofrasto, Aristoxeno e Dicearco. O acesso a escola e, maravilhosos, que não são misturados a dor ou a impure-
também, inteiramente livre. za, mas estáveis e sólidos. Esses prazeres são, por outro
lado, maiores para aqueles que alcançam a verdade e a
Mas há profunda diferença entre o projeto da esco!a
realidade do que para aqueles que ainda a buscam. Ela
de Aristóteles e o projeto platônico. A escola de Platao assegura a independência em relação ao outro, na medida
tem essencialmente, uma finalidade política, mesmo sen- em que, especifica Aristóteles, em contrapartida, se assegu-
do lugar de intensa atividade de investigação matemática ra a independência em relação às coisas materiais. Aquele
e de discussão filosófica. Platão considera suficiente ser que se consagra à atividade do espírito depende unicamen-
filósofo para poder dirigir a cidade; a seus olhos, há, te de si mesmo: sua atividade será, talvez, melhor caso
unidade entre filosofia e política. Ao contrário, a escola tenha colaboradores; porém, quanto mais se é sábio, mais
4
de Aristóteles, como bem mostrou R. Bodéüs , só forma se poderá ser só. A vida segundo o espírito não procura
para a vida filosófica. O ensino prático e político dirigir-se-á outro resultado senão a si mesma, é amada por si mesma,
a um plÍbllco mais amplo, a homens políticos, de fora d~
escola, mas que desejam se instruir sobre a melhor mane1- 5. Aristóteles, Política, Vll, 2, 1324 a 30; M.-Ch. Bataillard, La Structure
de la doctrine aristotélicienne des vertus éthiques, these, Université de Paris IV -
Sorbonne, p. 348, que distingue, na realidade, três graus éticos em Aristóteles,
2.]. P. Lynch, Ari.stotle's School, pp. 68-105.
''o homem médio", o "homem belo e bom" e o "contemplativo"; P. Demont,
3. Diógenes Laércio, Vida dos filósofos, V, 4.
4. R. Bodéüs, Le Philosophe et la cité. Recherches sur les rapports. entr~, m(}- La cité grecque archai'que et classique et l'idéal de tranquillité, Parill, 1990, p. 349;
rale et politique dans la pensée d"Aristote, Paris, 1982, ~· 17~; G. B1en, D~ G. Rodier. Études de philosophie grecque, Paris, 1926, p. 215.
Theorie-Praxis Problem und die politische Philosoph1e be1 Plato und Aris- 6. Aristóteles, Ética a Nicômaco, X, 1178 a 9.
toteles", in Philosophisches Jahrbuch, 76: 264-314, 1968-1969. 7. Id., ibid., X, 1177 a 12-1178 a 6.

120 121
A filosofia como modo de vida Aristóteles e sua escola

é para si mesma seu próprio fim e, poder-se-ia dizer, sua Em certo sentido, o paradoxo inerente à vida do espírito
própria recompensa. em Aristóteles corresponde ao paradoxo inerente à noção
de sabedoria, oposta à filosofia, no Banquete de Platão. A
A vida segundo o espírito conduz também à ausência
sabedoria ali foi descrita como um estado divino, por si
de perturbação. Praticando as virt~d_:s morais, env~lve-se
inacessível ao homem, e, entretanto, o filósofo, aquele
cada vez mais na luta contra as parxoes, mas tambem em
que ama a sabedoria, a deseja. Sem dúvida, Alistóteles
muitos cuidados materiais: para agir na cidade, é necessário
não afirma que essa vida do espírito seja inacessível e que
misturar-se às lutas políticas; para <Yudar os outros, é ne-
se deva contentar-se em progredir para ela, mas ele reco-
cessário ter dinheiro; para praticar a coragem, é necessário
nhece que não a podemos atingir "senão na medida do
ir à guerra. Ao contrário, a vida filosófica se ~~de viver no 10
possível" , isto é, tendo em consideração a distância que
ócio no distanciamento dos cuidados matena1s.
' separa o homem de Deus e, diríamos, o filósofo do sábio;
Essa forma de vida representa a forma mais elevada de ele reconhece também que só a podemos atingir em raros
felicidade humana, mas pode-se dizer, ao mesmo tempo, momentos. Quando Aristóteles 11 quer fazer compreender
que essa felicidade é sobre-humana8 : o que é o modo de vida do primeiro princípio, o Pensa-
mento, pelo qual se sustentam o mundo dos astros e o da
Não será na medida em que é homem que ele viverá assim,
natureza sublunar, declara que
mas na medida em que possui em si algo de divino.
[. .. ] seu modo de vida é comparável àquilo que, para nós, é
Paradoxo que corresponde à ideia paradoxal e enigmáti-
o modo de vida melhor, visto que não podemos viver senão por
ca que Aristóteles tem do intelecto e do espírito: o intelecto
pouco tempo; pois ele permanece sempre nesse estado, quando
é o que existe de mais essencial no homem~' ao mesmo
isso para nós é impossível.
tempo, é alguma coisa de divino que se manifesta para o
homem, de modo que é o que transcende o homem e ~ q':e Para Deus, o ato de contemplação é a beatitude so-
constitui sua verdadeira personalidade, como se a essenCia berana. ·
- -- • . 9
do homem consistisse em ser supenor a SI mesmo :
Se Deus, portanto, está perpetuamente em um estado de ale-
O espírito é o próprio homem, já que é sua parte dominante gria comparável àquele a que nós algumas vezes conseguimos
e a melhor dentre as que o compõem. chegar, isto é admirável; e, se ele está em um estado de maior
Como em Platão, a escolha filosófica conduz o eu in-
alegria ainda, isto é ainda mais maravilhoso.
dividual a ultrapassar-se em um eu superior, a elevar-se a Assim, o cume da felicidade filosófica e da atividade
um ponto de vista universal e transcendente. do espírito, isto é, a contemplação do Intelecto divino, só é

8. Id., ibid., X, 1177 b 27 e Geração dos animais, IX, 737 a 9-10. 10. Ibid., X, 1177 b 33.
9. Ética a Nicômaco, X, 1178 a 2. 11. Metafísica, XII, 7, 1072 b 14 e 25.

122 123
A filosofia como modo de vida Aristóteles e sua escola

acessível ao homem em raros momentos, pois é próprio (theoriai) e as reflexões que têm seu fim em si mesmas e se
da condição humana não poder ser em ato de maneira desenvolvem em vista de si mesmas...
contínua12 . Isso supõe que, no resto do tempo, o filósofo Nas linhas que seguem, Aristóteles dá a entender que o
deve contentar-se com a felicidade inferior que consiste modelo dessa ação contemplativa é Deus e o universo, que
em investigar. Há graus diversos na atividade de theoría. não exercem nenhuma ação voltada para o exterior, mas
Parece que para Aristóteles a filosofia consiste em um se tomam a si mesmos como objeto dé sua ação. Afigura-se
modo de vida "teorético". Em relação a isso, é importan- aqui, ainda uma vez, que o modelo de um conhecimento
te não confundir "teorético" com "teórico". "Teórico" é que não procura nenhum outro fim senão a si mesmo é
uma palavra que tem precisamente origem grega, _mas o Intelecto divino, o Pensamento que se pensa, que não
não aparece em Aristóteles, e significa, em outro regiStro tem outro oQjeto nem outro fim além de si mesmo, e não está
que não o filosófico, "o que se refere ao que se vê". Na interessado em outra coisa.
linguagem moderna, "teórico" opõe-se à "prático", como
o que é abstrato, especulativo, em oposição ao que tem Nesta perspectiva, a filosofia "teorética" é, ao mesmo
relação com a ação e o concreto. Poder-se-á, portanto, tempo, uma ética. Assim como a práxis virtuosa consiste
nessa perspectiva, opor um discurso filosófico puramente em escolher como fim tão somente a virtude 14, em que-
teórico a uma vida filosófica praticada e vivida. Mas o pró- rer ser um homem bom, sem procurar outro interesse
~prio Aristóteles só emprega a palavra "teorético", e a utiliza particular, da mesma maneira a práxis teorética - é o
para designar, por um lado, o modo de conhecimento que próprio Aristóteles que nos induz a arriscar essa fórmula
tem por fim o saber pelo saber e não um fim exterior a aparentemente paradoxal - consiste em escolher como
si mesmo e, por outro, o modo de vida que consiste em fim apenas o conhecimento, em querer o conhecimento
consagrar sua vida a esse modo de conhecimento. Neste por ele mesmo, sem perseguir outro interesse particular
último sentido, "teorético" não se opõe a "prático"; em e egoísta estranho ao conhecimento. É uma ética do de-
outras palavras, "teorético" pode aplicar-se a uma filosofia sinteresse e da objetividade.
prática, vivida, ativa, que leva à felicidade. Aristóteles diz
explicitamente13 :
A vida prática não é necessariamente voltada para o outro, Os diferentes níveis da vida "teorética"
como o pensam alguns, e não são somente os pensamentos
que visam resultados produzidos pelo agir que são "práticos", Como conceber essa vida segundo o espírito? Deve-se,
pois são ''práticas", bem mais ainda, as atividades do espírito com I. Düring15 , defini-la como uma vida de sábio? Caso se

14. Ética a Nicômaco, VI, 1144 a 18.


12. Ética a Nicômaco, X, 1175 a 4 e 26.
15. I. Düring, Aristoteles, Heidelberg, 1996, p. 472.
13. Política, VII, 3, 8, 1325 b.

124 125
A filosofia como modo de vida
Aristóteles e sua escola

considerem as atividades realizadas na escola de Aristóteles, dade se faz em certo espírito, que se poderia ousar definir
é bem verdade que se será obrigado a reconhecer que a como uma paixão quase religiosa pela realidade, em todos
vida filosófica apresente-se nela sob os traços do que se os seus aspectos, sejam eles humildes ou sublimes, por-
poderia denominar grande empresa científica. Aristóteles quanto em todas essas coisas se encontra um traço do
revela-se, nesta perspectiva, um grande organizador de d~vi~o. Nada de mais instrutivo sobre isso que as primeiras
pesquisa 16• A escola de Aristóteles dedica-se a uma imensa pagmas do tratado de Aristóteles Das partes dos animais1 9,
caça de informações em todos os domínios. Reúnem-se no qual ele apresenta simultaneamente os domínios e as
todas as espécies de dados históricos (por exemplo, a m~tivações da investigação. Depois de ter distinguido, nas
lista dos vencedores dos Jogos Píticos), sociológicos (as c01sas naturais, as que, não geradas e incorruptíveis, exis-
constituições das diferentes cidades), psicológicos ou filo- tem por toda a eternidade, e as que são submetidas à
sóficos (as opiniões dos antigos pensadores). Coletam.:Se geração e à destruição, Aristóteles opõe os meios que temos
também inumeráveis observações zoológicas ou botânicas. para conhecê-las. Sobre o que é feito de substâncias eter-
Esta tradição continuará sendo valorizada, no curso dos nas, isto é, os astros e as esferas celestes, nossos conheci-
anos, na escola aristotélica. Esses materiais, porém, não são mentos são bem escassos, apesar do grande desejo que :
destinados a satisfazer uma curiosidade vã. O investigador temos de conhecê-los, ao passo que, sobre as substâncias
aristotélico não é um simples colecionador de fatos 17 . Com- perecíveis, que estão a nosso alcance, dispomos de muitos
piladores são para fazer comparações e analogias, instaurar dados. E a razão pela qual Aristóteles convida a consagrar-
uma classificação dos fenômenos, fazer que se percebam se ao estudo desses dois domínios da realidade é o prazer
as causas, em estreita colaboração entre a observação e o ao qual seu conhecimento 20 conduz:- ·
raciocínio, na qual, por outro lado, diz Aristóteles, é neces-
Os dois estudos têm cada um seu atrativo. Para os seres eter-
sário fiar-se mais à observação dos fatos que ao raciocínio,
nos, mesmo que tenhamos pouco contato com eles, contudo,
e ao raciocínio somente à medida que ele concordar com
em razão da excelência desse conhecimento, ele nos dá mais
os fatos observados 18 •
alegria do que aquele que podemos extrair das coisas que
Portanto, é indiscutível que a vicia do espíti!?• para estão ao nosso alcance, do mesmo modo que a visão furtiva
Aristóteles, consiste, em grande mé"did~) "c:m obser::él:! irÍ-. e parcial das pessoas amadas nos dá mais alegria do que a
vestigar e refletir sobre essas observações. Mas essa ativi- ob~ervação precisa de muitas outras coisas, por maiores que
sryam. Contudo, de outro lado, pela extensão e certeza dos
16. Cf. W. Jaeger, Aristotle, Oxford University Press, 1967 (1 a ed. conhecimentos, a ciência das coisas terrestres tem vantagem.
1934), capítulo XIII, "The Organization ofResearch"; I. Düring, Aristoteles,
pp. 524 ss. 19. Das partes dos animais, 644 b 22 ss.
17. L. Bourgey, Obseroation et expéri.ence chez Aristote, Paris, 1955, pp. 69 ss.
20. Ibid., 644 b 31. Vejam-se, para este texto, a tradução e as notas de
18. Geração dos animais, 760 b 30.
J.-M.Le blond, Aristote, philosophe de la vie, Paris, 1945, pp. 116 ss.

126 127
A filosofia como modo de vida Aristóteles e sua escola

Alguns, continua Aristóteles, dirão talvez que, para de seu amor move o amante. Os astros e as esferas celestes
estudar a natureza viva, é necessário ocupar-se com reali- que são princípios de atração, nos dão tanto prazer quan~
dades desprezíveis. Aristóteles responde a essa inquietação do os observamos quanto a visão furtiva e imprecisa da
evocando ainda o prazer da contemplação: pessoa amada. Quanto ao estudo da natureza, ele nos dá
prazer na medida em que nele descobrimos uma arte di-
Verdadeiramente, certos seres não oferecem um aspecto agra-
vina. O artista apenas imita a arte da natureza, e, em
;dável; contudo, a natureza que os fabricou com arte produz
certo sentido, a arte humana é apenas um caso particular
prazeres inestimáveis para aqueles que, quando os contemplam,
da arte fundamental e original que é a da natureza. A
, podem conhecer as causas, e que são os filósofos de verdade.
!:~!.~~!!,_gatural é superior a toda beleza artística. Mas, dir-
E, por outro lado, seria insensato e absurdo encontrarmos
se-á, existem coisas repulsivas. Sim, mas elas não se tornam
prazer ao contemplar as imagens desses seres, porque neles
belas para nós quando a arte as imita? 22 Se temos prazer
nós colhemos ao mesmo tempo a arte, por exemplo, do escultor
~o ver a rep_rodução pelo artista de coisas feias e repulsivas,
ou do pintor que os fabricou, mas, examinando-os fabrica-
e que admiramos a arte com a qual o artista as imitou.
dos pela natureza, nós experimentamos uma alegria maior
No:e~os,_ r~~idamente, que é precisamente na época he-
ainda por essa contemplação, ao menos se pudermos colher
lemstlca, miCia~a no tempo de Aristóteles, que a arte gre-
as causas. Não se pode, portanto, deixar possuir por uma
ga torna-se realista, representando temas vulgares, persona-
repugnância pueril pelo estudo dos animais menos nobres,
gens de classe inferior ou animais de todo gênero 2\ No
visto que, em todas as obra da natureza, há alguma coisa
entan~~' se nessas obras de arte temos prazer em observar
de maravilhoso. Assim como se diz que Heráclito, quando
a habilidade do artista, por que não admirar na realidade
estrangeiros vieram visitá-lo e o encontraram aquecendo-se
de suas produções a habilidade da natureza, tanto mais
junto à lareira, ordenou-lhes que entrassem sem temor, pois
~ue é do interior que ela faz criar os seres vivos, que ela
ali também havia deuses, do mesmo modo deve-se abordar sem
e, de alguma maneira, uma arte imanente? Encontraremos
aversão o estudo de cada espécie de animal: pois em todos se
praz:r em :studar todas as obras da natureza se procurarmos )
manifesta algo de natural e belo.
sua mtençao, a finalidade que ela buscou em sua ação. I
Percebem-se neste texto as tendências profundas que
Se~~do A;istóteles, pressentimos na natureza uma pre-
animam a vida segundo o espírito, o modo de vida teoré-
sença d1Vlna. E o sentido da palavra de Heráclito que ele
tico. Se experimentamos alegria ao conhecer tanto os astros
evoca. Os. estrangeiros que visitam o filósofo aguardam para
como os seres da natureza sublunar, é porque nisso encon-
ser recebidos no compartimento principal da casa, no qual
tramos, direta ou indiretamente, um signo da realidade
que nos atrai de maneira irresistível, o primeiro princípio,
22. Poética, 1448 b 10.
que move todas as coisas, diZ Aristóteles21 , como o objeto 23. J. Onias, Art and Thought in the Hellenistic Age. The Greek World View
350-50 BC, London, 1979, p. 29: relação entre a filosofia de Aristóteles e a
21. Metafísica, XII, 1072 b 4. arte helenística.

128 129
t
7 i

A filosofia como modo de vida Aristóteles e sua escola

se encontra o salão em que arde o fogo em honra de forma do ser natural; mas com sua ex1stencia, "sem que
:. Réstia, mas Heráclito convida-os a ir até a lareira da cozi- um atrativo sensorial tenha participação nisso ou também
nha2\ pois todo fogo é divino. Isso significa que o sagrado ligue isso a qualquer fim". O prazer que se tem com a be-
não é mais delimitado a certos lugares, o altar de Réstia, leza da natureza é, de alguma maneira e paradoxalmente,
por exemplo, mas é toda a realidade física, o universo in- um interesse desinteressado. Na perspectiva aristotélica,
esse desinteresse corresponde ao afastamento de si, pelo
teiro que é sagrado. Os seres mais humildes têm sua parte
qual o indivíduo se eleva ao nível do espírito, do intelec-
de maravilhoso, de divino. to, que é seu verdadeiro eu, e toma consciência da atra-
Afirmamos, a propósito de Platão25 , que o conhecimento ção que exerce sobre ele o princípio supremo, desejável
é sempre ligado ao desejo e à afetividade. Podemos tornar a supremo e inteligível supremo.
dizer isso em relação a Aristóteles. O prazer experimentado Pode-se, definitivamente, definir a vida "teorética"
na contemplação dos seres é o prazer que se experimen- como uma "vida de sábio"? Em minha opinião a noção
ta ao contemplar o ser amado. Para o filósofo, todo ser de "sábio", em seu sentido moderno, é demasiado limita-
é belo, pois ele sabe situá-lo na perspectiva do plano da da para abarcar atividades tão diversas quanto a redação
natureza e do movimento geral e hierarquizado de todo o do catálogo dos vencedores nos Jogos Píticos e a reflexão
universo para o princípio que é o desejável supremo. Essa sobre o ser enquanto ser, a observação dos animais e a
demonstração da existência de um princípio primeiro do
estreita ligação entre conhecimento e afetividade exprime-
movimento do universo. É difícil considerar atividade de
se na fórmula da Metafísica26 : "O desejável supremo e "sábio" uma atividade do espírito que, segundo Aristóteles,
o inteligível supremo se confundem". Novamente, o modo é análoga, em certos instantes privilegiados, à atiY,i.d,a<fe do
de vida teorético revela sua dimensão ética. Se o filósofo princípio primeiro, que é pensamento do pensamento. Já
encontra seu prazer no conhecimento dos seres, é que ele vimos 28 como Aristóteles procura fazer compreender o que
nada deseja, afinal, além disso que o conduz ao desejável pode ser a beatitude do pensamento divino comparando-a
supremo. Pode-se exprimir -~~~a ideia retomando a obser- ao que experimenta, em raros momentos, o intelecto hu-
vação de Kant27 : "Tomar um interesse imediato pela beleza da mano. Parece que a beatitude do intelecto humano chega
natureza [ ... ] é sempre sinal de uma boa alma". A razão a seu ponto mais elevado quando, em certos momentos,
disso é, diz Kant, que essa alma tem prazer não só com a ela pensa, em uma intuição indivisível, na indivisibilidade
da beatitude divina29 • Não há nada mais distante da teoria
que a teorética, isto é, a contemplação.
24. L. Robert, "Héraclite à son fourneau", in id., Scripta Minora, pp.

Cf. pp. 108-110.


····"~··${N••·•.;;ll':'l. 28. Cf. pp. 123-124.
26. Metafísica, XII, 1072 a 26 ss. 29. Metafísica, Xll, 1075 a 5. "Comme il en est à certains moments pour
27. Crítica da faculdade do juízo, § 42 [tradução de Valerio Rohden e l'intellect humain, au moins lorsqu'il n'a pas [conjectura muito provável de
Antônio Marques, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1993]. Diauo em sua edição da Metafísica, Bari, 1948] pour oJ<iet des choses composées

130 131
A filosofia corno modo de vida Aristóteles e sua escola

Antes que de uma vida de sábio é necessário falar da concerta o leitor moderno, não só por sua concisão muitas
"vida dedicando-se à sabedoria", da "vida filosófica", na vezes exasperante, mas sobretudo pela incerteza de seu
medida em que a sabedoria representa, para Aristóteles, pensamento no que concerne aos pontos de vista mais
a perfeição da theoría. Para ele, o intelecto humano está importantes de sua doutrina, por exemplo a teoria do
distante de possuir essa perfeição, da qual só se aproxima intelecto. Não se encontra nele uma exposição exaustiva
em certos instantes. A vida teorética comporta múltiplos e coerente de teorias que constituiriam as diferentes par-
níveis hierarquizados, do mais humilde ao mais elevado, tes dos sistema de Aristóteles 31 •
e, por outro lado, o próprio Aristóteles, como vimos, ao Para explicar esse fenômeno é necessário, antes de
falar da felicidade da theoría, considera que a felicidade tudo, retornar ao ensinamento do filósofo no interior da
daquele que procura é inferior à daquele que sabe. O elo- escola da qual é inseparável. Como Sócrates, como Platão,
gio que Aristóteles faz da vida segundo o espírito é, a um o que ele quer antes de tudo ~formar discípulos. Seu
só tempo, a descrição de um gênero de vida efetivamente ensinamento oral e süâoora escrita dirigem-se sempre a
praticado por ele mesmo e pelos membros de sua escola, um auditório determinado. A maior parte de seus tratados,
e um programa ideal, um projeto, um convite a elevar-se salvo talvez os de moral e de política, sem dúvida destinados
por meio de degraus para um estado, a sabedoria, que é a um público mais amplo, são o eco das lições orais que
mais divino que humano 30 : "Somente Deus pode desfrutar deu em sua escola. Entre essas obras, muitas não formam
i esse privilégio". unidade; por exemplo, a Metafísica ou o tratado Do Céu
são a reunião artificial de escritos que correspondem a
cursos dados em momentos muito -diferentes. Foram os
Os limites do discurso filosófico sucessores de Aristóteles, e sobretudo seus comentadores32 ,
que realizaram esse agrupamento e interpretaram sua obra,
As obras de Aristóteles são fruto da atividade teorética como se ela fosse a exposição teórica de um sistema de
do filósofo e de sua escola. Mas o discurso filosófico des- explicação de toda a realidade.
Quando Aristóteles elabora um curso, não se trata,
(car ce n'est pas en telle ou telle partie qu'il possede le bien, mais dans une como bem disse R. Bodéüs33, "de um 'curso' no sentido
certaine totalité indivisible qu'il a le bien le plus haut, qui est différent de
lui), il en est de mêrne, pour toute l'étemité, pour la Pensée qui est pensée
moderno do termo, curso ao qual assistiram alunos preo-
d'elle-rnêrne". Veja-se também Teofrasto, Metafísica, 9 b 15, trad. J. Tricot: cupados em tomar notas do pensamento do mestre, em vista
"Ce qui est peut-être plus vrai, c'est que la conternplation des Réalités de de Deus sabe qual estudo posterior". Não se trata de "in-
ce genre se fait au moyen de la raison elle-rnêrne, qui les saisit imrnédiate-
ment et entre cornrne ·en contact avec elles,ce qui explique qu'il ne puisse
formar", de entornar no espírito dos ouvintes um conteúdo
y avoir aucune erreur à leur sujet" [N. do T.: corno o autor procurou fazer,
nesta passagem, urna comparação entre as traduções de Diano e de Tricot, 31. I. Düring, Aristoteles, pp. 29-30.
'~mos por manter as duas citações em francês.]. 32. R. Bodéüs, Le Philosophe et la cité, p. 26.
"30. Metafísica, I, 982 b 30. 33. Id. ibid., op. cit., p. 162.

132 133
A filosofia como modo de vida Aristóteles e sua escola

teórico, mas "de formá-los", e trata-se também de realizar seu contrário. Quando se trata de substâncias simples,
uma investigação comum: é essa a vida teorética. Aristóteles como o Intelecto primeiro, que é o princípio de movimen-
espera de seus interlocutores uma discussão, uma reação, to de todas as coisas, o discurso não pode dizer sua essên-
um juízo, uma crítica34• O ensino permanece sempre e cia, mas somente descrever seus efeitos ou proceder por
fundamentalmente um diálogo. Os textos de Aristóteles, comparação com a atividade de nosso próprio intelecto.
tal qual nos chegaram, são notas de preparação de cursos Apenas em raros momentos o intelecto humano pode
aos quais se acrescem correções e modificações do próprio elevar-se à intuição não discursiva e instantânea dessa re-
Aristóteles ou de suas discussões com os outros membros alidade, à medida que pode imitar, de algum modo, a
da escola. E os cursos destinam-se, antes de tudo, a fami- indivisibilidade do Intelecto divino 36 •
liarizar os discípulos com os métodos do pensamento. Aos
Os limites do discurso filosófico são provenientes
olhos de Platão, o exercício do diálogo era mais importan-
também de sua incapacidade de transmitir, por si só, a
te que os resultados obtidos nesse exercício. Do mesmo
seu ouvinte o saber,. C01Il mais forte razão a convicção. O
modo, para Aristóteles a ~iSÇ!JSSâO dos v:robklllas é,-!lQ_r
discurso pÕrSíllãü'"'pod~ ;g;; ~~bre o ouvinte se não há
fim, mais formadora qu~"sua solução. Nesses cursos, ele
colaboração da parte dele.
mostra de modo exemplar por qual marca de pensamento,
por qual método, devem-se investigar as causas dos fenô- Já na ordem teorética, não basta entender um discur-
menos em todos os domínios da realidade. Agrada-lhe so, nem mesmo repeti-lo, para saber, isto é, para chegar
abordar o mesmo problema sob ângulos diferentes, partin- à verdade e à realidade. É necessário, primeiramente,
do de diferentes pontos de partida. para compreender o discurso, que- o ouvinte já tenha
uma experiência dissq~A'p'rett;ala o discurso, uma fami-
Ninguém mais que Aristóteles foi consciente dos limi- liaridade com seu oq)eto 37 . Precisa-se, a seguir, de uma
tes do discurso filosófico como instrumento de conheci- lenta assimilação, capa~ de criar, na alma, uma disposição
mento35. Seus limites lhe chegam, antes de tudo, da própria permanente, um habitus:
realidade. Tudo o que é sírnples é inexprimível na lingua-
gem. A discursividade da linguagem só pode exprimir o Os que apenas começaram a aprender uma ciência podem ali-
que é composto, o que pode ser dividido sucessivamente nhavar suas proposições sem, todavia, conhecê-la. Para ser real-
em partes. Mas a linguagem nada pode dizer dos indivisí- mente conhecida, é necessário que elas sejam partes integrantes
veis, por exemplo o ponto na ordem da quantidade;
36. Cf. p. 131, nota 29; cf. P. Aubenque, "La pensée du simple dans la
quando muito o pode de maneira negativa, negando
Métaphysique (Z, 17 e Q, lO), in Études sur la Métaphysique d'Aristote, org. P.
Aubenque, Paris, 1979, pp. 69-80; Th. De Koninck, "La noêsis et l'indivisible
\ i 34. Bodéüs (p. 162) apoia-se, para afirmar isso, no capítulo inicial da selon Aristote", in La Naissance de la raison en Grece. Actes du Congres de Nice,
\~~a.Jlicômaco, no qual o ouvinte aparece como um juiz, 1094 b 27 ss. maio 1987, org. J.-F. Mattéi, Paris, 1990, pp. 215-228.
i · 35. R. Bodéüs, op. cit., pp. 187 e ss. 37. Ética a Nicômaco, VI, 1142 a 12 e ss.; cf. R. Bodéüs, op. cit., p. 190.

135
A filosofia como modo de vida Aristóteles e sua escola

de nossa natureza [literalmente: que elas cresçam conosco]. É necessário trabalhar muito tempo o hábito da alma do ou-
Ora, isso é uma coisa que demanda tempo 38 • vinte, de modo que ela exerça bem suas propensões e repulsões,
do mesmo modo que retorna para a terra quem deve nutrir
Como para Platão 39 , o verdadeiro saber, aos olhos
a sementeira.
de Aristóteles, só nasce por uma longa frequentação os
c;onceitos, os métodos, mas também os fatos observados. Aristóteles considera que esse trabalho de educação
E necessário experimentar demoradamente as coisas pàra cabe à cidade realizar, pela coação de suas leis e pela coer-
conhecê-las, para familiarizar-se tanto com as leis gerais da ção. Portanto, é papel do homem político e do legislador
natureza como com as necessidades racionais ou as exigên- assegurar a virtude de seus concidadãos, e também sua
cias do intelecto. Sem esse esforço pessoal, o ouvinte não felicidade, pois, ao organizar uma cidade ou os cidadãos,
assimilará os discursos e eles lhe serão inúteis. eles poderão, por um lado, efetivamente ser educados de
modo a tornar-se virtuosos e, por outro, assegurar no seio
Isso é ainda mais verdadeiro na ordem prática, na qual
da cidade a possibilidade de ócio que permita aos filósofos
não se trata somente de saber, mas de praticar e de exercer
ascender à vida teorética. Eis por que Aristóteles não sonha
a virtude. Os discursos filosóficos não bastam para tornar 3
em fundar uma moral individual sem relação com a cidade4 ,
virtuosos 40 • Há duas categorias de ouvintes. Os primeiros já
têm predisposições naturais para a virtude ou receberam mas, na Ética a Nicômaco, ele se dirige aos homens políticos
uma boa educação. Para estes, os discursos morais podem e aos legisladores, para formar seu juízo, descrevendo-lhes
ser úteis: eles os ajudarão a transformar suas virtudes, na- os diferentes aspectos da virtude e da felicidade do homem,
turais ou adquiridas pelo hábito, em virtudes conscientes e a fim de que possam legislar de modo a dar aos cidadãos
acompanhadas de prudência41 • Nesse caso, pode-se dízer, em a possibilidade de praticar a vida virtuosa ou, para certos
certo sentido, que só se prega a convertidos. Os segundos privilegiados, a vida filosófica. Como diz excelentemente R.
são escravos de suas paixões e, neste caso, o discurso moral Bodéüs44, a finalidade das Éticas e da Política é "uJ!LQPjt:1:iJQ
não terá nenhuma influência sobre eles 42 : par;;t~além do saber"; não se trata somente "de expor em
um discurso a verdade sobre certo número de questões
Quem é inclinado a obedecera suas paixões escutará em vão e particulares", mas ainda, para além disso, de contribuir
sem proveito, pois o fim não é o conhecimento, mas a ação. para a perfeição do devir humano.
A esse gênero de ouvintes será necessário algo além Aristóteles, como Platão, funda nos homens políticos \
de discursos para formá-los para a virtude: sua esperança de transformar a cidade e os homens. Mas
Platão considerava que os filósofos devem ser eles próprios
38. Ética a Nicômaco, VII, 1147 a 21-22. os homens políticos que realizarão essa obra. Ele propu-
39. Carta VII, 341 c.
40. Ética a Nicômaco, X, 1179 b 4-5.
41. Cf. M.-Ch. Battaillard (citado acima, p. 121, nota 5), pp. 355-356. 43. Cf. id., ibid., op. cit., p. 225; I. Düring, Aristoteles, p. 435.
42. Cf. R. Bodéüs, op. cit., pp. 185-186. 44. R. Bodéüs, op. cit., p. 16.

136 137
A filosofia como modo de vida

nha aos filósofos uma escolha de vida e uma formação


que os tornariam ao mesmo tempo contemplativos e ho-
mens de ação, saber e virtude implicando-se mutuamente. Capítulo 7
Para Aristóteles, ao contrário, a atividade do filósofo na
c~dade deve restringir-se a formar o juízo dos políticos:
sao estes, por seu turno, que deverão agir pessoalmente,
legislando, para assegurar a virtude moral dos cidadãos. O
jls escolas helenísticas
filósofo, por sua parte, escolherá uma vida consagrada à
investigação desinteressada, ao estudo e à contemplação e,
deve-se reconhecê-lo, independente da azáfama da vida
política. A filosofia é, para Aristóteles, como para Platão, a Características gerais
um só tempo um modo de vida e um modo de discurso.
O período helenístico

A palavra "helenística" designa tradicionalmente o


período da história grega que se estende de Alexandre
Magno, o Macedônio, até a dominação romana, portanto
do fim do século IVa.C. ao fim do sécul? Ia:C. Graças
à extraordinária e~pediZão~d;Al~~;;J;~,; ""(}~~ ~~;tenderá
a influência grega desde o Egito até Samarcanda e Tachkent
e também até a Índia, abre-se uma nova época da história.
Pode-se dizer que a Grécia começa então a descobrir a
imensidade do mundo. É o início de trocas comerciais
intensas, não só com a Ásia central, mas também com a
China, a África e igualmente com o Oriente europeu. As
tradições, as religiões, as ideias, as culturas se misturam,
e esse encontro marcará com um cunho indelével a cul-
tura do Ocidente. Com a morte de Alexandre, seus gene-
rais disputam entre si seu imenso império. Essas lutas
resultam na formação de três grandes reinos, reunidos em
torno de três capitais: Pele na Macedônia, que exercia sua
autoridade sobre a Macedônia e a Grécia, Alexandria

138 139
A filosofia como modo de vida As escolas helenísticas

no Egito e Antioquia na Síria, onde a dinastia dos selêu- ter-se-iam resignado então a propor aos homens, privados
cidas reina não só na Ásia Menor, mas também sobre a da liberdade política, Ml!L=refíí~,.ua. . . Yi~,~:Íll::~~rÜ~F- Essa
Babilônia. Deve-se acrescentar a isso o reino de Pérgamo representação da época helenística, que remonta, creio,
e o reino grego de Bactriano, que se estende até a Índia. ao início do século XX2, continua a falsear a ideia que se
Concorda-se em demarcar como fim do período helenís- faz da filosofia desse período.
tico o suicídio de Cleópatra, rainha do Egito, no ano Com efeito, é totalmente errôneo representar essa épo-
30 a.C., após a vitória em Actium do futuro imperador ca como um período de_sJ-e.s:1J:~gg<::!!!· O epigrafista Louis
Augusto. Desde o fim do século III a.C., os romanos tinham Robert, ao estud~tamente as inscrições encontradas
entrado em contato com o mundo grego e tinham desco- nas ruínas das cidades gregas da Antiguidade, mostrou
berto pouco a pouco a filosofia. Em nossa exposição, muito bem, em toda sua obra, que todas as cidades continua-
deveremos quase sempre fazer alusão a filósofos que vive- ram a ter, tanto sob as monarquias helenísticas como depois
ram sob o Império romano, pouco depois do ano 30 a.C., no Império romano, intensa atividade cultural, política,
porque eles nos permitiram conhecer documentos concer- religiosa e mesmo atlética. Ademais, as ciências exatas e as
nentes à filosofia helenística. Contudo, como teremos opor- técnicas conheceram então um desenvolvimento extraordi-
tunidade de repetir1 , as características da filosofia na era nário. Notadamente, sob a influência dos Ptolomeus, que l
imperial são muito diferentes das da época helenística. reinaram em Alexandria, essa cidade tornou-se de alguma
maneira o centro vivo da civilização helenística3 . Organiza-
Apresentou-se muitas vezes o período helenístico da do por Demétrio de Falera, fiel à tradição aristotélica que
filosofia grega como uma fase de decadência da civilização privilegiava os estudos científicos, o Museu de Alexandria
grega corrompida pelo contato com o Oriente. Várias cau- foi um importante lugar de investigação no domínio de ,
sas podem explicar esse juízo severo: em primeiro lugar, o todas as ciências, da astronomia à medicina, e, nessa mesma 1\
preconceito clássico que fixa a priori um modelo ideal de cidade, a Biblioteca reunia toda a literatura filosófica \\
cultura e decide que some11~e_ a Grécia dos pré-socráticos, e científica. Grandes sábios exerceram aí sua atividade: o
dos trágicos e, a rigor, de Platão merece ser estudada; em médico Herófilo e o astrônomo Aristarco de Samos, por
segundo lugar, a ideia segundo a qual, com a passagem exemplo. Basta, além disso, citar o nome de Arquimedes de
do regime democrático ao regime monárquico e o fim da Siracusa, ao mesmo tempo matemático e mecânico, para
liberdade política, a vida pública das cidades gregas ter-se-
ia extinguido. Os filósofos, abandonando o grande esforço 2. Notadamente G. Murray, FourStages ofGreekReligion, NewYork, 1912
especulativo de Platão e de Aristóteles e a esperança de (3" ed. 1955), pp. 119 ss., "The Failure ofNerve". Quase todos os trabalhos
de historiadores da filosofia posteriores a G. Murray (Festugiere e Bréhier,
formar homens políticos capazes de transformar a cidade, por exemplo) estão contaminados por esse preconceito. .
3. Cf. a excelente obra de B. Gille Les Mécaniciens grecs, Paris, 1980,
1. Cf. adiante, pp. 213 ss. notadamente o capítulo sobre a escola de Alexandria, pp. 54 ss.

140 141
A filosofia como modo de vida As escolas helenísticas

perceber a extraordinária atividade científica que se desen- pudesse ir em socorro da justiça sem perder-se, mas que, ao
volve durante todo esse período. contrário, como um homem caído no meio de animais ferozes,
que se recusa a participar de seus crimes e é, além disso, inca-
A pretensa perda de liberdade das cidades não provocou
a diminuição da atividade filosófica. E porventura pode-se
paz de resistir sozinho a estes seres selvagens, pereceria antes
dizer que o regime democrático lhe foi mais favorável? de ter servido à pátria e aos amigos, inútil a si mesmo e aos
Não foi a Atenas democrática que instaurou um processo outros: penetrado por tais reflexões, mantém-se quieto e ocupa-
de impiedade contra Anaxágoras e Sócrates? se de seus próprios afazeres; semelhante ao viajar que, duran-
te uma témpestade, enquanto o vento levanta turbilhões de
Não houve, na orientação da própria atividade filosó- poeira e chuva, se abriga atrás de um pequeno muro, ele vê
fica, uma transformação tão radical quanto se gostaria de os outros manchados de iniquidades e é feliz se consegue viver
:'fazer acreditar. Diz-se e repete-se que os filósofos da época
a sua vida neste mundo isento de injustiça e atos ímpios, e
helenística, diante de sua incapacidade de agir na cidade,
abandoná-lo, sorrindo e tranquilo, com uma bela esperança.
teriam desenvolvido uma moral do indivíduo e teriam se
voltado para a interioridade. As coisas são muito mais com- Quando o filósofo se dá conta de que é totalmente
plexas. De uma parte, se é verdade que Platão e Aristóteles impotente para dar ao mundo o menor remédio para a
têm cada um à sua maneira preocupações políticas, não corrupção da cidade, que pode ele fazer além de praticar
há dúvida de que a vida filosófic~.,~JL~~ et~.?y.l!!ll .meio a filosofia? É infeliz a situação na qual se encontram quase
de libertar-se da corrupção política. A vida segúndo "ü"es: todos os filósofos da AntiguidadeS em relação ao mundo
pÍrito, 'que±e'ü"illõ'ilüde vfdâ ila escola aristotélica, escapa político, e mesmo Marco Aurélio, que, embora imperador,
aos compromissos da vida na cidade. Quanto a Platão, de também exprimiu seu sentimento de impotência diante da
algum modo ele formulou definitivamente, para todos os incompreensão e da inércia dos súditos6 •
filósofos da Antiguidade, a atitude que o filósofo deve ter
em uma cidade corrompida4 : Contudo, em contrapartida, os filósofos da época hele-
nística, mesmo os epicuristas7, jamais se desinteressaram
Bem diminuto, ó Adimanto, é, pois, o número restante dos que
da política, desempenhando sempre o papel de conselhei-
podem ter dignamente comércio com a filosofia [... ] Ora, den-
tre este pequeno número, aquele que se tornou filósofo e saboreou 5. Cf. L Hadot, "Tradition stoicienne et idées politiques au temps des
a doçura e a felicidade que proporciona a posse da sabedoria, Gracques", in Rcvue des études !atines, 48: 146-147, 1970; Le probleme du néÇJ-
que viu bem a loucura da multidão e como não há por assim platonisme alexandrin. Hiérocli!s et Simplicius, Paris, 1978, p. 37.
dizer ninguém que faça algo de sensato no domínio dos neg~ 6. P. Hadot, La Citadelle intérieure. Introduction aux Pensées de Marc Auri!-
le. Paris, 1992, pp. 308 ss.
cios públicos, aquele que sabe não possuir aliado com o qual 7. Por exemplo, Amínias de Samos e Apolófanes de Pérgamo. Vejam-
se os verbetes de B. Puech sobre esses filósofos in R. Goulet, Dictionnaire
des philosophes antiques, t. 1.

142
A filosofia como modo de vida As escolas helenísticas

ros dos príncipes ou embaixadores de uma cidade, como ças às imitações feitas pelos romanos. Mas, para citar um
testemunham as inscrições muitas vezes gravadas em sua único exemplo, o filósof~"':i'~Jj~~~~um dos fundadores do
honra. Os filósofos estoicos tiveram papel importante na estoicismo,/ teria escrito pelo menos uns setecentos tratados.
elaboração de reformas políticas e sociais em vários Estados; Nenhum ~eles foi conservado, apenas alguns r:aros frag-
por exemplo, o estoico Esfairos exerce forte influência mentos nqs foram transmitidos nos papiros d~scobertos
sobre os reis de Esparta, Ágis e Cleômeno; o estoico Blóssio em Hercul, ano e graças às citações feitas por autores da
1
sobre o reformador romano Tibério Graco8 • Algumas vezes, época romana. Nossa visão da história da filosofia está
eles se opõem corajosamente aos imperadores romanos. irremediavelmente falseada por essas contingências histó-
De maneira geral, os filósofos jamais renunciaram à espe- ricas. Teríamos dela uma representação totalmente dife-
rança de transformar a sociedade, ao menos pelo exemplo rente se as obras de Platão e de Aristóteles tivessem de-
de sua vida. saparecido, e se as dos estoicos Zenão e Crisipo tivessem
A vida filosófica foi extremamente vigorosa na época sido conservadas. Seja como for, foi graças aos autores
helenística, mas, desgraçadamente, só a conhecemos de que viveram no mundo romano, seja no tempo da Repú-
maneira imperfeita; teríamos outra representação se todas blica, como Cícero, Lucrécio e Horácio, seja no tempo
as obras filosóficas escritas durante esse período tivessem do Império, como Sêneca, Plutarco, Epiteto e Marco
sido conservadas até hoje. Os escritos dos filósofos não Aurélio, que preciosas informações sobre a tradição filo-
eram, como em nossos dias, editados em milhares de exem- sófica helenística foram preservadas. Eis por que seremos
plares amplamente disseminados. Repetidamente copiados, levados a citar esses autores, embora tenham pertencido
o que era um manancial para numerosos erros (isso obri- a uma época posterior.
ga os especialistas modernos a um enorme trabalho crítico
quando querem estudar esses textos), eles eram muitas Influências orientais?
vezes, sem dúvida, vendidos em livrarias, mas as obras mais
técnicas eram simplesmente-C-Onservadas nas bibliotecas das A expedição de Alexandre teve alguma influência
diferentes escolas filosóficas. No decorrer dos séculos, mui- sobre a evolução da filosofia grega? É certo que ela favo-
to desse precioso material se perdeu, notadamente em receu o desenvolvimento científico e técnico, graças às
Atenas, por ocasião do saque da cidade por Silas em mar- observações geográficas e etnológicas que permitiu realizar.
ço de 86 a.C., mas também em Alexandria. Milhares de Sabe-se que a expedição de Alexandre tornou possível
obras desaparecem assim, e outros cataclismos que puseram encontros entre sábios gregos e sábios hindus. Notada-
fim ao período helenístico também destruíram tesouros de mente, um filósofo da escola de Abdera, Anaxarco, e seu
poesia e de arte, cuja existência vislumbramos apenas gra- al~no, Pirro de Élis, acompanharam o conquistador até
a India, e conta-se que Pirro, ao retornar, viveu retirado
8. Cf. o artigo de I. Hadot, "Tradition stoicienne ... ", pp. 133-161. do mundo, porque teria ouvido um indiano dizer a

144 145
A filosofia como modo de vida As escolas helenísticas

Anaxarco que este era incapaz de ser u \ mestre, pois der abstratamente todas as demonstrações feitas sobre o
frequentava os cursos reais 9 • Nesses contat<j>s, não parece sofrimento". Contudo, sem chegar a essas situações dra-
que ele tenha sofrido realmente mudanças\ de ideias, de máticas, o que os antigos nos relatam do modo de vida
confrontação de teorias. Pelo menos não temos disso de Pirro aponta esse grau de indiferença ante todas as
nenhum sinal evidente. Mas os gregos ficaram impressio- coisas que não se pode deixar de pensar que eles se es-
nados pelo modo de vida10 daqueles que eles denomina- forçavam para imitar o que viram na Índia. Observe-se,
vam os "ginosofistas", os "sábios nus". O historiador e por outro lado, o extremo subjetivismo de Anaxarco 14, que
filósofo Onesícrito, que também participara da expedição, dizia que os seres existentes não eram mais reais que um
ao escrever uma narrativa pouco tempo depois da morte cenário de teatro, e que eles se assemelhavam às imagens
de Alexandre, relata muitos detalhes sobre seus costumes que aparecem a quem sonha ou está em estado de loucu-
e sobre seu suicídio com fogo. Os filósofos gregos tiveram ra. Poder-se-ia pensar aqui em alguma fonte oriental, mas
a impressão de encontrar entre os ginosofistas a maneira não se deve esquecer que seu mestre Demócrito 15, fun-
de viver que eles próprios recomendavam: a vida sem dador da escola de Abdera, já opunha radicalmente a
convenção, segundo a pura natureza, a indiferença total realidade em si, isto é, os átomos, e as percepções subje-
ao que os homens consideram desejável ou indesejável, tivas dos sentidos. A expedição de Ale:Jfandr~uà!LpaLece~ j~
bom ou mau, indiferença que conduzia a uma perfeita t~r PE2Y2S:'!cl9 g;!·ançls:_i__!.ftrocessos rrª'_t.rª!Jiç_i!Q __:fjJosJifica,
paz interior, à ausência de perturbação. Demócrito, o A filosofia helenística corresponde, efetivamente, a um
mestre de Anaxarco, preconizara essa tranquilidade de desenvolvimento natural do movimento intelectual que a
alma11 . Os cínicos fingiam desprezar todas as convenções precedeu e torna a defrontar-se muitas vezes com temas
humanas, mas descobriram entre os ginosofistas essa pré-socráticos; porém, sobretudo, ela é profundamente
12 marcada pelo __esE!rgo soq_ático. Talvez seja a própria ex-
atitude levada ao extremo. Como dirá o estoico Zenão ,
provavelmente a propósito do suicídio do sábio hindu periência do encont~trê'õspovos que lhe tenha per-
13
Calano, que entrara erri coritãto com Alexandre : "Pre- mitido desempenhar certo papel no desenvolvimento da
firo ver um único indiano queimar a fogo lento a apren- noção de cosmopolitismo16 , isto é, da ideia do homem
como cidadão do mundo.
9. Diógenes Laércio, Vida dos filósofos, IX, 61-63.
10. Cf. C. Muckensturm, "Les gymnosophistes étaient-ils des cyniques 14. Sexto Empírico, Contra os lógicos, I, 87-88; cf. R. Goulet, art. "Anaxar-
modeles?", in Le cynisme ancien et ses prolongements, org. M.-0. Goulet-Cazé que d'Abdere", in Dictionnaire des philosophes antiques, t. L, pp. 188-191.
et R. Goulet. Paris, 1993, pp. 225-239. 15. Demócrito, fr. 9, in Les Présocratiques, p. 485.
11. Demócrito, fr. 191, in Les Présocratiques, p. 894. 16. Cf. H.-C. Baldry, "The Idea of the Unity of Mankind", in H. Schwabl
12. Clemente de Alexandria, Stromáteis, IT, 20, 125, l. e H. Diller, Grecs et Barbares. Entretiens sur l'Antiquité classique, T. VIII, Geneve,
13. Cf. C. Muckensturm, art. "Calanus", in Dictionnaire des philosophes Fondation Hardt, 1962, pp. 169-204;]. Moles, "Le cosmopolitisme cynique",
antiques, t. li, pp. ]57-160. in Le cynisme ancien et ses prolongements, pp. 259-280.

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A filosofia como modo de vida As escolas helenísticas

As escolas filosóficas tinagem, de manhã entra por fanfarrice, com um bando de


Já descrevemos os modos. de vida que caracterizam as pândegas, na escola do platônico Xenócrates e, seduzido por
escolas de Platão e Aristóteles. Mas devemos voltar a esse seu. discurso, decide tornar-se filósofo e torna-se mais tarde
fenômeno muito particular que representam as escolas filo- chefe da escola: anedota edificante, sem dúvida, mas que
sóficas na Antiguidade e não esquecer que as condições do poderia ser perfeitamente verossímiP 8 • ·

ensino de filosofia eram, então, profundamente diferentes Por volta do fim do século IV, quase toda a atividade ).
das de nossos dias. O estudante moderno só estuda filosofia filosófica co~centra-se em_ Atena~as quatro escolas funda-
porque é uma disciplina do programa dos últimos anos das por Platao (a Academia), Anstoteles (o Liceu), Epicuro
da escola secundária. Ele pode terminar o curso, quando (o Jardim) e Zenão (a Stoa). Essas instituições continuaram
muito, apenas interessado em um primeiro contato com vivas por quase três séculos. Com efeito, à diferença de
essa disciplina e desejando passar nos exames dessa matéria.
grupos transitórios que se formavam ao redor dos sofis-
De qualquer forma, é o acaso que decidirá o fato de ele
tas, elas eram instituições permanentes não só enquanto
encontrar um professor que pertença à "escola" fenome-
viviam seus fundadores, mas muito tempo depois de sua
nológica, existencialista, desconstrucionista, estruturalista
morte. Os diferentes chefes das escolas que assim sucedem
ou marxista. Talvez um dia ele adote intelectualmente
ao fundador são escolhidos o mais das vezes por um voto
um desses ismos. Seja como for, tratar-se-á de uma ade-
dos membros da escola ou designados por seu predeces-
são intelectual, que não envolverá sua maneira de viver,
sor. A instituição se sustenta no chefe da escola e, pela
salvo talvez no caso do marxismo. Para nós, modernos, a
lei civil, a escola não tem personalidade jurídica::. O fato
~ noção de escola ~losófica evoca u~i:ame~t~ a ideia de uma aparece claramente nesses documentos muito inter~ssantes
{ tendência doutnnal, de uma pos1çao teonca.
que são os testamentos dos filósofos: temos os de Platão
Na Antiguidade isso acontece de outra maneira. Nenhu- Aristóteles, Teofrasto, Estratão, Lícon e Epicuro 20, e pode-'
ma obrigação universitária orienta o futuro filósofo para esta mos constatar que não se encontra nesses textos nenhum
ou aquela escola, mas é em função do modo de vida que sinal de propriedade da escola. Não se deve imaginar, como
nela se pratica que o futuro filósofo passa a assistir a aulas se faz, que as escolas filosóficas, para ter personalidade
na instituição escolar (skholê) de sua escolha17 • A menos que jurídica, devessem organizar-se em confrarias religiosas
o acaso conduza-o a uma sala de aula, ele não se converte consagradas às Musas. De fato, a legislação ateniense sobre
de maneira imprevista a essa filosofia ao escutar um professor. o direito de associação não exigia estatuto particular para
É o que se conta de Polêmon, que, após uma noite de liber- as instituições de ensino.

17. Sobre o vocabulário grego técnico que designa a escola como ins- 18. Diógenes Laércio, Vida dos filósofos, IV, 16.
tituição e como tendência doutrinal, cf. J. Glucker, Antiochus and the Late 19. Cf. J.-P. Lynch, Aristotle's School, pp. 106-134.
Academy, Gõttingen, 1978, pp. 159-225. 20. Diógenes Laércio, op. cit., III, 41; V, 11. 51. 61. 69; X, 16.

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A filosofia como modo de vida
As escolas helenísticas

A atividade dessas escolas realiza-se, em geral, nessas discípulos, chamados os "familiares", os "amigos" ou os
complexas e múltiplas instituições que eram os ginásios: a "companheiros", divididos em jovens e velhos. Os verda-
Academia, o Liceu, ou em outros lugares públicos como deiros discípulos vivem muitas vezes em comunidade ou
a Stoa Poikilê (o Pórtico), nos quais era possível reunir-se próAximos uns dos outros. Relata-se dos discípulos de
para ouvir conferências ou discutir. A escola tomou preci- Pol~mon, o aluno de Xenócrates do qual falamos, que cons-
samente seu nome do lugar de reunião. trmram cabanas para viver perto dele 22 . Ademais, verifica-
Há, quase sempre, ao menos até o fim da época hele- se na Academia, no Liceu e na escola de Epicuro o costume
nística, coincidência entre a escola como tendência doutri- de fazer refeições comuns em intervalos regulares. Talvez
nai, a escola como lugar no qual se ensina e a escola como pela organização dessas reuniões existia na Academia e
instituição permanente organizada por um fundador que no Liceu um cargo de responsabilidade que todos os
é precisamente a origem do modo de vida praticado pela membros da escola deveriam assumir alternadamente du-
escola e da tendência doutrinai à qual está ligada. A des- rante vários dias 23 .
truição da maior parte das instituições escolares atenienses Temos menos detalhes sobre a escola estoica, fundada
em seguida mudará a situação. p~r _volta de 3~0 por Zenão de Citium, que ensinava no
Essas escolas são amplamente abertas ao público. A Port1co denommado Stoa Poikilê. Os historiadores antigos
maior parte dos filósofos, mas nem todos, tem como pon- rela~am que ele tinha muitos alunos e notadamente que
to de honra ensinar sem receber honorários. É isso o que o re1 da Macedônia Antígonos Gonatas escutava-o quando
os opõe aos sofistas. Os recursos pecuniários são pessoais ele residia em Atenas. Como nas outras escolas há na de
ou provenientes de benfeitores, como os de Idomeneu Zenão uma distinção entre os simples ouvintes ~ os verda-
para Epicuro. As necessidades da escola eram supridas deiros discípulos, Perseu por exemplo, que morava em sua
por uma cotização diária de dois óbolos: dois óbolos eram casa e que ele envia à corte de Antígonos Gonatas24. A
"o salário de um escravo que trabalhava diariamente, e evolução da atitude da cidade de Atenas com relação à
bastava apenas", como diz-Menandro, "para pagar uma filosofia, desde o tempo em que ela condenara Anaxágoras
tisana" 21 . Entre os que frequentam a escola, distinguem-se, e Sócrates, evidencia-se claramente no texto do decreto
em geral, os simples ouvintes e o grupo de verdadeiros que os atenienses promulgaram em 261 a.C. em honra de
Zenão, a bem-dizer sob a pressão de Antígonos Gonatas.
21. C. Diano, "La philosophie du plaisir et la société des amis", in id., Esse decreto 25 honrava Zenão com uma coroa de ouro e
Studi e saggi di filosofia antica. Padova, 1973, pp. 368-369. Epicuro. Opere,
G. Arrighetti. Torino, 1973, pp. 443 e 471. Sobre a organização da escola
22. Diógenes Laércio, op. cit. (doravante citado D. L.), N, 19.
epicurista, cf. N. W. de Witt, Epicurus and his PhilosiJjlhy, University of Min- 23. D. L., V, 4; J.-P. Lynch, op. cit., p. 82.
nesota Press, 1954 (2a ed., Westport/Connecticut, 1973); "Organization and 24. D. L., VII, 5-6 e 36.
Procedure in Epicurean Groups", in Classical Philology, 31: 205-211, 1936; I.
25. Trad. Festugiere, in La Révélation d'Hermes Trismégiste. T. II. Paris,
Hadot, Seneca ... , pp. 48-53. 1949, pp. 269 e 292-305.

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151
A filosofia como modo de vida As escolas helenísticas

mandava construir para ele um túmulo a expensas da ci- Existiram, em Atenas, entre os séculos N e I, quatro
dade. O motivo era notável: escolas de filosofia, que assumiram, de um modo ou de
Observou-se que Zenão, filho de Mnaseas, de C~tium, q~e outro, uma forma institucional e tiveram, de maneira geral,
por muitos anos viveu segundo a filosofia na czdade, nao métodos análogos de ensino. Isso não quer dizer que não
somente mostrou ser um homem bom em toda ocasião mas, tenha havido escolas de filosofia em outras cidades, mas
particularmente, por seus incentivos à virtude e à temperança, elas não tiveram o pre~~2~~.~~~.}l!~l!t~}');ses. É necessário
estimulou os jovens que procuravam entrar em sua escola para
que tivessem a melhor conduta, ofere~endo a todos o .m~d~lo
~~,. -
acrescentar duas outrãs correntes que parecem extrema-
mente diferentes das quatro escolas: o~:t;ll.o, .ou me-
de uma vida que sempre se harmonzzava com os pnnczpzos lhor, o E~rronisl}lo - porquanto a ideia de ceticismo é um
que ensinava. fenômeno relativamente tardio - e o cinismo. Ambas não
têm organização escolar. Nenhuma das duas têm dogmas.
Aqui, não se louva Zenão por ~uas teori~s, mas pela
Mas são dois modos de vida - o primeiro proposto por
educação que dá à juventude, pelo genero de VIda que !e:a,
Pirro, o segundo por Diógenes, o Cínico - e, desse pon-
pelo acordo entre sua vida e seus discursos. As comedias
to de vista, inteiramente duas haíreseis21,. dl!(lS éltÜ.lJd.~s ~e
da época aludem à sua vida austera26:
Rensamento e cl,~.xi&la. Como há de. ~;~;~~e; um ''céi:l~~"
A filosofia desse homem é de Jato original,~ ele ensina a ter d~-épõêitãrcii~, o médico Sexto Empírico28 :
fome e consegue discípulos. Apenas um pao, um figo como
sobremesa, e água para beber. Caso se diga que uma escola (haíresis) é uma adesão a nu-
merosos dogmas que têm coerência uns em relação aos outros
Observa-se aqui que a palavra '',~gosofi.~".~.~~~~2~ [. .. 1 diremos que o cético não tem escola. Em contrapartida,
convenient~~:.~.!,<:,~~l!l~v,,!!!~~~i~a de ~':~,r A instituiç~o caso se diga que é uma escola (haíresis) um modo de vida
escolar estoica é muito menos monohtiCa que a esco a que segue um certo princípio racional, de acordo com aquilo
epicurista. As linhas de emine variam_ nelas, e ~obretudo que nos aparece [. .. 1 dizemos que é uma escola.
diferentes tendências doutrinais se manifestam apos a morte
de Zenão· Aríston de Quíos, Cleanto, Crisipo professam Os céticos desenvolvem, por outro lado, uma argumen-
sobre muitos pontos opiniões diferentes. Essas opo~ções tação para mostrar que é necessário suspender o juízo,
entre tendências continuarão durante toda a duraçao da recusar sua adesão a todo dogma e alcançar, assim, a tran-
escola estoica, isto é, até os séculos II e III d.C. Temos quilidade da alma. Os cínicos, por sua vez, não argumen-
pouquíssimos detalhes sobre a atmosfera que reinava nas
27. Eleição, escolha [N. do T.].
diferentes escolas estoicas.
28. Sexto Empírico, Fizpotipos~s pirronianas, I, 16-17, trad. M.-0. Goulet-
Cazé, in "Le cynisme est-il une philosophie?", in Contré Platon, I. Le Plato-
26. D. L., VII, 27. nisme dévoilé, Paris, Éd. M. Dixsaut, 1993, p. 279.

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A filosofia como modo de vida
As escolas helenísticas

tam e não oferecem nenhum ensino. ~ sua. própria vida


de valor: todas essas filosofias se querem terapêuticas 29 •
que tem, em si. mesma, seu sentido e Imphca toda uma
Contudo, para ml!~~rseus juí~gs9g .Yalor,.Q.llDI!l,ell!sl~~e
doutrina.
razer u~ã•.escolha ·~adTcâT: .mudar toda sua maneira
4~:J2e~§~:iei.'fg;a.ça:s····a·~~;;~~1hã,·'i~fil;;s·~fi~:··q~;
Identidades e diferenças: prioridade da escolha
ele atingirá a paz interior, a tranquilidade da alma.
de um modo de vida
Contudo, por trás dessas similitudes aparentes, deli-
Como vimos a propósito de Sócrates, de Platão e de
neiam-se profundas diferenças. É necessário distinguir, antes
Aristóteles, e como tornaremos a ver ao tratar das esc~las
de tudo, entre as escolas dogmáticas, para as quais a terapia
helenísticas, cada escola ~iJ:!l~:~c::pgr lJJ:!l:<l~wç:§c~lha d~ ~~a,
:.~~,~·,·:~s,eil~Ial. consiste em.._t.t<msforlJ2.ªr.os.juil;.Q§.!!$;.Y~~2'!:...~.Q.S...céti.cos, para
por Ul!lªQ.p,ç,ª,Q.~Xl ..J ... M...... A filosofia é. amor e mvesugaçao
do os quais se trata sowent~ .. Q.~.. §~"'çDdê-los. E, sobretudo,
da ~~bedoria, e a sabedoria é, precisamente, u~ mo se as escolas dogmáticas concordam em reconhecer que a
de vida. A escolha inicial, própria a cada escola, e a esco- escolha filosófica fundamental deve corresponder a uma
lha de um tipo de sabedoria. tendência inata no homem, deve-se distinguir, entre elas,
A bem-dizer, à primeira vista poder-se-ia pergun.tar se de uma parte, o epicurismo, para o qual é a investigação
as concepçoes- de sabedoria eram tão diferentes , . assim de
uma escola para outra. Todas as escolas helemstlcas parecem,
com efeito, defini-la quase nos mesmos te~os e, antes de
::p;;~~;;~;:~~~:;;~~~~;,~;~
segundo a tradição socrát!5.~h o amor do Bem é o instin-

tudo, como um estado de perfeita tranqmlidade da a:m~. to.·: ··~'·:··-;;:rrifct~";~;··h~~ano.
.~ p~•••••••·•·•d••x•••••Ah·.,· ; ···••••·•·
~o·errranlo;·;··f1·*·~':àr···
p
dessa'"
Nessa perspectiva, a filosofia aparece ~o~o uma terape~~­ identidade de intenção fundamental, essas três escolas se
ca dos cuidados, das angústias e da misena huma~~' mise- fundam em escolhas existenciais radicalmente diferentes
umas das outras.
ria provocada pelas convenç~:s e obrigações sociais, para
os c' icos, pela investigação dosfalsos prazeres, para ?s
....W d · t resse egms Identidades e diferenças: o método de ensino
.· epicuristas, pela perseguiçã~•.. ~.g.J?~~_:.~~--~~~~l!L~ ··-~· -
ta segundo. ós'esf'õteõS:·epelas falsas opmwes, segun~~ os Identidades e diferenças reencontram-se nos métodos
.~~ticos. Quer:··r-eM~quem ou não a heranç~ socrauca, de ensino. Nas três escolas que, acabamos de dizer, se pren-
todas as filosofias helenísticas admitem, com Soc:a~es, que dem à tradição socrática, o platonismo, o aristotelismo e o
:'\os homens estão submersos na miséria, na an~ustla _e no estoicismo, o ensino sempre teve, apesar da transformação
; )mal, porquanto estão na ignorância: o mal nao :sta nas das condições políticas, a dupla finalidade que tivera na
icoisas, mas nos juízos de valor que os homens atnb~er_n a
~ elas. Trata-se de os homens cuidarem de mudar seus JUIZOS 29. A.:J. Voelke, La philosophie comme thérapie de l'âme. Études de philosophie
hellénistique, Fribourg/Paris, 1993.

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A filosofia como modo de vida
As escolas helenísticas

época de Platão e Aristóteles: formar, direta ou indireta- :estre era comentar textos. Veremos as razões históricas
mente, os cidadãos, melhor ainda, se possível, os dirigentes essa mudança. Por ora citemos um texto d ,
políticos, mas formar também os filósofos. A formação para - · d· essa epoca
mais ta~ Ia,,~ dos comentadores, escrito no século II a. C
a vida na cidade visa atingir a habilidade da palavra por pelo anstotehco Alexandre de Afrod' . 3o .
meio de numerosos exercícios retóricos e, sobretudo, dialé-
ticos, e extrair, no ensino do filósofo, os princípios da ciên-
:.;o
, . , . ISia em seu comen-
sobre os Tófncos de Aristóteles, e que descreve bem a
I erença entre a discussão de teses método d .
cia de governar. Eis por que muitos alunos se dirigem para Própri o. a, epoca
- ' e ensino
que estudamos, e o comentário p , .
Atenas, vindos da Grécia, do Oriente Próximo, da África e da segumte: , ropno
da Itália, para receber uma formação que lhes permita
posteriormente exercer uma atividade política em sua pátria. Essa forma ~e discurso [a discussão de "teses''] era habitual
Esse será o caso de muitos homens de Estado romanos, entre os ~ntzgos, e é dessa maneira que eles davam suas
.l como Cícero, por exemplo. Ali eles aprendem, ademais, au~as, nao c~mentando os livros como é o caso agora (com
•,llnão só a governar, mas a governar-se a si próprios, pois a efezto, nessa epoca não havia livros desse gênero) mas send
,!{formação filosófica, isto é, o exercício da sabedoria, é des- posta uma tese, eles argumentavam a favor ou ~ontr~ par~
! 'tinado a realizar plenamente a opção existencial da qual exerce: sua fac~~dade de criar argumentações, apoiand~se em
premzssas admztzdas por todos.
falamos, graças à assimilação intelectual e espiritual dos
princípios de pensamento e de vida nela implicados. Para A argu_n:entação da qual fala Alexandre é exatamente
alcançar isso, o diálogo vivo e a discussão entre mestre e ~m ~xerocw puramente dialético, no sentido aristoté-
discípulos são indispensáveis, segundo a tradição socrática Ico a pala~ra._ ~as a discussão das teses pode tomar
e platônica. Sob a influência dessa dupla finalidade, o uma forma dialetica ou retórica e também d , .
-· ogmatica ou
ensino tende a tomar sempre uma forma dialógica e dia- ap~retica. Na argumentação dialética, a discussão da tese
lética, isto é, a sempre preservar, mesmo nas exposições se az por perguntas e respostas, portanto num diálogo
magistrais, o procedimento de um diálogo, de uma P or exemplo A ·1 ·
fil , fi ' rquesi au, que considerava o discurso
sucessão de questões e respostas, o que supõe uma re,lação oso co puramente crítico, pedia que seu ouvinte ro-
constante, ao menos virtual, com indivíduos determi- puseslse uma tese e ele a refutava, apresentando quesfões
nados aos quais o discurso do filósofo se dirige. Apresen- que evavam pouco a ·
d' , . pouco o mter1ocutor a admitir o
tar uma questão, denominada "tese" ("A morte é um mal?", co~ra Itono ~~tese que ele propusera3I. Mas os estoicos,
"O prazer é o bem supremo?", por exemplo) e discútl.-la, em ora dogmaticos, também praticavam, em seu ensino, o
tal é o esquema fundamental de todo ensino filosófico
nessa época. Essa particularidade a distingue radical- 30. Alexandre de Afr d' · I A . .
W:all'Ies, m
. CAG o !Sla, n rzstotelzs Topica comment P 27, 13
, t. II, 2. Berlin, 1891. ., ·
mente do ensino valorizado na época posterior, isto é, na
. 3L Cf. P. Hadot, "Philosophie, Dialectique, Rhétori ue d ' . . ,,
era imperial, a partir do século II d.C., na qual o ofício do m Studza Phzlosophica, t. 39, 1980, pp. 147 ss. q ans l Anuqmte ,

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A filosofia como modo de vida As escolas helenísticas

método dialético do jogo de questões e respostas. Cícero çado habitual do pensamento consistia em remontar aos
reprova-lhes não dar lugar suficiente aos desenvolvimentos princípios gerais, lógicos ou metafísicos, a partir dos quais
oratórios e retóricos, os únicos capazes, a seus olhos, de essa questão poderia ser resolvida.
demover e persuadir32 : Contudo, existia outro traçado. dedutivQ e si.stewático,
Eles vos picam, como com dardos, com curtas interrogações no.... ~pi~l1risrrw -~--Ilo~-es.tQicismo. Na escola eoicurista, o
pontuadas. Mas aqueles que lhes respondem "sim" [na argu- exercício teciiTêo da dialética não desempenha'va nenhum
mentação dialética, quem apresentou a tese deve contentar-se papel. Os discursos filosóficos tinham ali uma forma re-
em responder sim ou não] não são transformados em sua solutamente dedutiva, isto é, partiam de princípios para
chegar às consequências desses princípios: vê-se isso, por
alma e se vão como vieram. É que, se os pensamentos que
os estoicos experimentam talvez sejam verdadeiros e sublimes, exemplo, na ,.2!!;~ !ferg~~t~?----~~~!.g]!ll~~ ({esses <:li~çl}rsos
eram postos a d1spos1çao do d1Sc1pulo sob a forma escrita,
eles não são tratados por eles como deveriam ser, mas de um
para que este pudesse aprender de cor. Como mostrou
modo um tanto amesquinhado.
I. Hadot33 , o ensino epicurista começa, com efeito, pela
A argumentação pode ser também retonca, quando leitura e memorização de breves resumos da doutrina de
um ouvinte apresenta uma questão, fornecendo também Epicuro, apresentada sob a forma de sentenças bem cur-
a tese, isto é, o tema da discussão, e o mestre responde tas, depois o discípulo toma conhecimento de resumos
por um discurso contínuo e desenvolvido, seja provando mais desenvolvidos como a Carta a Heródoto e, finalmente,
sucessivamente os prós e os contras - trata-se, então, de se o deseja, pode abordar a grande obra de Epicuro Da
um puro exercício escolar, ou de uma vontade de mostrar natureza, em trinta e sete livros. Mas ele sempre deve
a impossibilidade de toda afirmação dogmática-, seja pro- voltar aos resumos, para não se perder nos detalhes e ter
vando ou refutando a tese, conforme ela corresponda ou sempre presente ao espírito a intuição da totalidade. Há
não à sua doutrina - é então um ensino dogmático que um vaivém contínuo entre a extensão dos conhecimentos
expõe os dogmas da escola. À medida que se praticava o e a concentração sobre o núcleo essencial.
exercício da "tese", portanto um método pedagógico fun- Se, acabamos de ver, os estoicos utilizavam o método
dado em um esquema questão-resposta, o ensino filosófico àialético em seu ensino, não é menos verdade que também
poderia consistir em desenvolver por elas mesmas as teorias, se esforçavam para apresentar sua doutrina seg]!ndo enca-
independentemente das necessidades do auditório, pois o deamento rigorosamente sistemático, que, por outro lado,
discurso era obrigado a desenvolver-se no campo limitado atraía a admiração dos antigos, e que eles igualmente exi-
de uma questão apresentada por detenninado ouvinte. O tra-
33. Cf. I. Hadot, "Épicure et I' enseignement philosophique hellénistique
32. Cícero, Dos termos extremos ... , IV, 3, 7 [Carta a Heródoto, in Diógenes et romain", in Actes du VIlle Congres de l'Association Guillaume Budé. Paris,
Laércio, op. cit., pp. 291-302]. 1969, pp. 347-354.

158 159
A filosofia como modo de vida As escolas helenísticas

giarn de seus discípulos que tivessem sempre presente ao Isso não quer dizer que toda discussão seja abolida nessas
espírito, por um esforço constante da memória, o essencial escolas; a escola estoica, notadamente, fragmentou-se rapi-
dos dogmas da escola. damente em diferentes tendências. Mas as divergências e
Vê-se aqui a significação de que se reveste a noção de· as polêmicas deixam subsistir a opção original e os dogmas
sistema. Não se trata de urna construção conceitual que que a exprimem. Elas conduzem tão somente a pontos se-
seria um fim em si e teria, corno por acaso, consequências cundários, por exemplo as teorias concernentes aos fenô-
éticas sobre o modo de vida estoico ou epicurista. O sistema menos celestes ou terrestres, ou o modo de demonstração
tem por finalidade reunir sob forma condensada os dogmas e de sistematização dos dogmas, ou ainda os métodos de
fundamentais, ligá-los juntamente por urna argumentação ensino. E esses discursos são reservados aos que progridem,
rigorosa, a fim de formar um núcleo sistemático muito aos que assimilaram bem os dogmas essenciais34•
concentrado, muitas vezes mesmo reunidos em urna curta Eis por que as filosofias dogmáticas como o epicurismo
sentença, que terá, assim, maior força persuasiva, melhor e o estoicismo têm um caráter popular e missionário: as
eficácia rnnernotécnica. Ele tem, antes de tudo, um valor discussões técnicas e teóricas, sendo ofício de especialistas,
psicagógico: é destinado a produzir um efeito na alma podem ser resumidas para os iniciantes e os que progridem
do ouvinte ou do leitor. Isso não quer dizer que esse em um pequeno número de fórmulas fortemente encadea-
discurso teórico não responda às exigências de coerência das, que são essencialmente regras para a vida prática.
lógica: bem ao contrário, é ela que faz sua força. Mas, ao Essas filosofias reencontram, assim, o espírito "missionário"
exprimir ele próprio urna escolha de vida, quer conduzir e "popular" de Sócrates. Enquanto o platonismo e o aris-
a urna escolha de vida. totelismo são reservados a uma elite que tem "ócio" para
O leitor moderno se admirará certamente da extraor- estudar, investigar e contemplar, o epicurismo e o estoicis-
dinária estabilidade dos princípios metodológicos ou dos mo dirigem-se a todos os homens, ricos ou pobres, homens
ou mulheres, livres ou escravos35 • Quem adota o modo de
dogmas na maior parte dall -~scolas filosóficas da Antigui-
dade do século IV a.C. até os séculos 11 ou III da nossa era. vida epicurista ou estoico, quem o põe em prática, será
Pois, precisamente, filosofar é escolher um modo de vida, considerado um filósofo, mesmo que não desenvolva, por
e a esse modo de vida correspondern tanto um método escrito ou oralmente, um discurso filosófico. Em certo
sentido, o cinismo é, também, uma filosofia popular e
crítico, por exemplo o dos céticos ou o dos acadêmicos,
dos quais tornaremos a falar, corno dogmas que justificam missionária. Desde Diógenes, os cínicos foram ardentes
o próprio modo de vida. Para os filósofos dogmáticos, corno propagandistas, dirigindo-se a todas as classes da sociedade,
o epicurismo ou o estoicismo, o sistema, isto é, o conjunto
34. Cf. I. Hadot, op. cit., pp. 351-352.
coerente de dogmas fundamentais, é intangível, porque
35. Cf. P. Hadot, "Les modeles de bonheurs proposés par les philoso-
intimamente ligado ao modo de vida epicurista ou estoico. phies antiques", in La Vie spirituelle, 147 (698): 40-41, 1992.

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A filosofia como modo de vida As escolas helenísticas

instruindo por exemplos, para denunciar as convenções preza o dinheiro, não hesita em mendigar, não procura
sociais e propor o retorno à simplicidade da vida confor- nenhuma posição estável na vida; "sem cidadé8, sem casa,
me a natureza. privado de pátria, miserável, errante, vive o dia a dia". Seu
alforje contém apenas o estritamente necessário para sua
sobrevivência. Não teme as autoridades e exprime-se em
O cinismo todos os lugares com uma provocadora liberdade de expres-
são39 (parrhesia).
Questiona-se se Antístenes, discípulo de Sócrates, foi o
Na perspectiva que nos interessa, a natureza exata da
fundador do movimento cínico. Em todo caso, concorda-se filosofia no mundo antigo, o cinismo nos fornece um
em reconhecer em seu discípulo Diógenes a figura mais exemplo muito revelador, pois representa uma situação-
marcante desse movimento que, embora jamais tenha sido limite. Um historiador40 , na Antiguidade, perguntava-se se
revestido de um caráter institucional, permaneceu vivo até o cinismo poderia ser considerado uma escola filosófica,
o fim da Antiguidade. e se ele não era somente um modo de vida. É verdade
O modo de vida cínico36 opõe-se de maneira espetacular que os cínicos, Diógenes, Crates, Hipárquia, não deram
não só ao dos não filósofos, mas mesmo ao dos outros filó- nenhum ensino escolar, mesmo que se possa perceber,
eventualmente, uma atividade literária, notadamente poé-
sofos. Estes, com efeito, apenas se diferenciam de seus con-
tica. Eles formam, não obstante, uma escola, na medida
cidadãos em certos limites, por exemplo porque consagram
em que se pode reconhecer entre os diferentes cínicos
sua vida à investigação científica, como os aristotélicos, ou
uma relação de mestre e discípulo 41 .- E, em toda a Anti-
porque levam uma vida simples e retirada, como os epicu-
guidade, concordou-se em considerar o cinismo uma filo-
ristas. A ruptura do cínico com o mundo é radical. O que sofia, mas na qual o discurso filosófico era reduzido ao
ele rejeita é o que os homens consideram as regras elemen- mínimo. Considere-se, por exemplo, este episódio simbó-
tares, as condições indispensáveis da vida em sociedade, a lico: como certa pessoa afirma que o movimento não
propriedade, o governo, apolíl:ica: Ele pratica um impudor existe, Diógenes contenta-se em ficar em pé e andar42 • A
deliberado, masturbando-se ou fazendo amor em público, filosofia cínica é unicamente uma escolha de vida, a esco-
como Diógenes, Crates ou Hipárquia37; ele não se ocupa lha da liberdade, ou da total independência (autarkeia)
absolutamente com as conveniências sociais e a opinião, des-
38. D. L., VI, 38.
36. Compilação de testemunhos in L. Paquet, Les Cyniques grecs. Fragments 39. ld., VI, 69.
et térnoignages, prefácio de M.-0. Goulet-Cazé, Paris, 1992. Veja-se também 40. Id., VI, 103; cf. o artigo de M.-0. Goulet-Cazé, "Le cynisme est-il
M.-0. Goulet-Cazé, L'Ascese cynique, Paris, 1986, e as Atas do colóquio Le une philosophie?", citado na p. 153, nota 28.
cynisrne ancien et ses prolongernents (citado na p. 146, nota 10). 41. D. L., VI, 36, 75-76, 82-84.
37. D. L., VI, 46, 69, 97. 42. Id., VI, 38-39.

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A filosofia como modo de vida As escolas helenísticas

das necessidades inúteis, a recusa do luxo e da vaidade Platão 44 teria dito de Diógenes: "É o Sócrates enlouque-
(typhos). Essa escolha implica, de maneira evidente, certa cido". Autêntica ou não, a fórmula pode nos fazer refletir.
concepção de vida, mas ela, provavelmente definida nas Em certo sentido, Sócrates anunciava os cínicos. Os poetas
conversas entre mestre e discípulo ou nos discursos públi- · cômicos também zombavam do modo de andar de Sócrates,
cos, jamais é justificada diretamente nos tratados filosóficos de seus pés e de seu velho manto. E se, como· vimos, a
teóricos. Há conceitos filosóficos tipicamente cínicos, porém figura de Sócrates se confunde no Banquete com a de Eros
não são utilizados em uma argumentação lógica, mas servem mendigando, Diógenes, vagando sem eira nem beira com
para designar atitudes concretas correspondentes à escolha seu próprio alforje, não é ele outro Sócrates, a figura he-
de vida: a ascese, a ataraxia (ausência de perturbação), a roica do filósofo inclassificável e estrangeiro no mundo?
autarquia (independência), o esforço, a adaptação às cir- Outro Sócrates que, ele também, se considera investido
de uma missão, f<tzer que os h()r,nens reflitam? denunciar,
cunstâncias, a impassibilidade, a simplicidade ou ausência
por seus at~quc:;s . .mordazes. e· por seu modo d-e·Viaa; õs
de vaidade (atyphia), o impudor. O cínico escolhe seu gêne-
víciós·e-Õs· erros. Seu cuidado de si é, indissoluvelmente,
ro de vida por considerar que o estado de natureza (physis),
um cuidado dós outros. Mas se o cuidado de si socrático,
tal qual se pode reconhecer no comportamento do animal ao fazer chegar à liberdade interior, dissolve a ilusão das
ou da criança, é superior às convenções da civilização ( nómos). aparências e das falsas semelhanças ligadas às convenções
Diógenes joga fora sua tigela e sua taça ao ver crianças que sociais, preserva sempre certa urbanidade sorridente que
dispensam esses utensílios, e se sente assegurado em sua desaparece em Diógenes e com os cínicos.
maneira de viver ao ver um rato escondido comer algumas
migalhas de pão. Essa oposição entre natureza e convenção
fora objeto de longas discussões teóricas na época sofística, Pirro
• mas para os cínicos não se trata de especulações, mas de
uma decisão que envolve toda a vida. Sua filosofia é total- Pirro 45 - contemporâneo de Diógenes e de Alexandre,
mente exercício ( áskesis) e __~sforço, pois os artifícios, as qu~ acompanhou o Macedônio em sua expedição para
convenções e comodidades da civilização, o luxo e a vaidade a India, tendo ali se encontrado com sábios orientais
enfraquecem o corpo e o espírito. Eis por que o gênero de - bem pode, também, ser considerado um Sócrates
vida cínico consistirá em uma preparação quase atlética, mas bastante extravagante. Ele merece, em todo caso, nossa
refletida, para suportar a fome, a sede, as intempéries, a fim atenção, pois estamos ainda uma vez na presença de um
de adquirir a liberdade, a independência, a força interior, filósofo que, embora não tenha se consagrado ao ensino,
a ausência de cuidados, a tranquilidade de uma alma que
{44dd., VI, 54.
será capaz de se adaptar a todas as circunstâncias43 • · 45. Id., IX, 61-70. Compilação de testemunhos in Pirrone. Testimonianze.
Napoli, Éd. F. Decleva Caizzi, 1981; M. Conche, Pyrrhon ou l'apparence, Villers-
43. Id., VI, 22. sur-Mer, 1973.

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A filosofia como modo de vida As escolas helenísticas

pode discutir habilmente, um filósofo que nada escreveu, O comportamento de Pirro corresponde a uma escolha
que se contenta em viver e atrair discípulos que imitem de vida que se resume perfeitamente em uma palavra: a
seu modo de vida. indiferença. Pirro vive em uma perfeita indiferença a todas
as coisas. Ele permanece sempre no mesmo estado 48 , isto é,
Seu comportamento é totalmente imprevisível. Às vezes se
não experimenta nenhuma emoção,· nenhuma transforma-
retira para uma completa solidão, ou ainda parte em viagem
ção de suas disposições, sob a influência das coisas exterio-
sem avisar ninguém, tomando como companheiros de rota e
res; não dá nenhuma importância ao fato de estar presente
de conversação pessoas que encontra ao acaso. Contra toda nesse ou naquele lugar, de encontrar essa ou aquela pessoa;
prudência, afronta todos os tipos de riscos e perigos. Con- não faz nenhuma distinção entre o que é considerado ha-
tinua a falar, mesmo que seus ouvintes tenham partido. bitualmente perigoso ou, ao contrário, inofensivo, entre
Vendo um dia seu mestre Anaxarco caído num pântano, tarefas julgadas superiores ou inferiores, entre o que se
passa sem o socorrer, e Anaxarco o felicita, louvando sua denomina sofrimento ou prazer, a vida ou a morte. Pois os
indiferença e impassibilidade. E, contudo, à diferença dos juízos que os homens atribuem ao valor dessa ou daquela
cínicos, ele parece comportar-se de uma maneira completa- coisa são fundados apenas em convenções. Com efeito, é
mente simples e perfeitamente conforme à dos outros ho- impossível saber se essa coisa é boa ou má. E o mal dos
mens, como o dá a entender um historiador antigo 46 : "Pirro homens é proveniente do modo como querem obter o que
viveu piedosamente em companhia de sua irmã, uma par- acreditam ser um bem ou fugir do que acreditam ser um
teira, de acordo com o testemunho de Eratóstenes em sua mal. Caso se recuse a fazer esse gênero de distinções entre
obra Da Riqueza e da Pobreza, em que o autor narra que às as coisas, caso se abstenha de emitir juízos de valor sobre
vezes Pirro levava conforme a ocasião pequenas aves e leitões elas e de preferir uma coisa a outra, caso se diga: "Não mais
para vender no mercado, e tirava o pó das coisas da casa isto que aquilo", estará então em paz, com tranquilidade
com absoluta indiferença. Conta-se ainda que ele dava outra interior, e não terá mais necessidade de falar sobre essas
prova de indiferença lavando um porquinho". Notemos ra- coisas. Pouco importa o que se faça, a partir do momento
pidamente que esse relato-evo-ca, sem que possa haver rela- em que se o faça com uma disposição interior de indife-
ção histórica com ela, o que Tshuang-tsé relata de lie-tsé, rença. O fim da filosofia de Pirro consiste em firmar-se em
filósofo chinês: "Durante três anos fica enfermo, fazendo um estado de igualdade perfeita consigo mesmo, de indi-
trabalhos domésticos para sua mulher e servindo os alimen- ferença total, de independência absoluta, de liberdade
tos, servindo aos homens; ele se toma indiferente a tudo e interior, de impassibilidade, estado que ele considera divi-
elimina todo ornamento para encontrar a simplicidade" 47 •
du moine Citrouille-amere, trad. e comentário de P. Ryckmans, Paris, 1984. P.
46. D. L., IX, 66. Ryckmans define, com esse exemplo, p. 12, a suprema simplicidade taoísta,
47. Tshuang-tsé, in Philosophes taoistes, textos traduzidos por Liou Ria que é pura virtualidade e ausência de desejos.
Hway e B. Grynpas, Paris, 1980, p. 141; em Shitao, Les propos sur la peinture 48. D. L., IX, 63.

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As escolas helenísticas

no 49 • Em outras palavras, para ele tudo é indiferente, salvo mesmo; como lhe perguntassem por que agia assim, res-
a indiferença que se tem pelas coisas indiferentes e que
pondeu: "Eu me exercito para ser um homem bom". Seu
é, finalmente, a virtude5°, donde seu valor absoluto. Ad-
discípulo Fílon de Atenas53 assim o descrevia: "Foge dos
quirir essa indiferença não é tarefa fácil: trata-se, como diz
homens, não se preocupa com a vanglória e com as discus-
Pirro 51 , de "desvencilhar-se inteiramente da debilidade
sões acirradas". Como a de Sócrates, como a dos cínicos,
humana", isto é, libertar-se totalmente da perspectiva hu-
a filosofia de Pirro é, antes de tudo, uma filosofia vivida,
mana. Essa fórmula é, talvez, muito reveladora. Será que
um exercício de transformação do modo de vida.
ela não quer dizer que, "desvencilhando-se do homem", o
filósofo transforma completamente sua percepção do uni-
verso, ultrapassando a perspectiva limitada do humano
O epicurismo
demasiado humano, para elevar-se a uma visão de uma
perspectiva superior, visão de alguma maneira sobre-huma- Epicuro54 (c. 342-271) funda em 306 em Atenas uma
na, que revela a nudez da existência, para além das opo-
escola que permanecerá viva nessa cidade pelo menos
sições parciais e de todos os falsos valores que o homem
até o século II d.C. O poema de Lucrécio, Da naturezrf5,
lhe acrescenta, para talvez atingir um estado de simplici-
ou as gigantescas inscrições que o epicurista Diógenes56
dade anterior a todas as distinções?
mandou gravar na cidade de Oinoanda em data incerta
Caso o homem se ocupe com a prática desse despoja- (século I a.C. ou século II d.C.) para permitir que seus
mento total, é necessário que ele se exercite nela por meio concidadãos conhecessem os escritos e a doutrina de
do discurso interior, isto é, que rememore o princípio do Epicuro testemunham o fervor missionário com o qual seus
"não mais isto que aquilo" e os argumentos que podem discípulos, mesmo distantes, esforçavam-se para difundir
justificá-lo. Pirro e seus discípulos também praticavam mé- sua mensagem.
todos de meditação. Relata-sé 2 do próprio Pirro que ele
buscava a solidão, e qu~ COllVefsava em VOZ alta COnsigo 53. Id., IX, 69.
54. Epicuro. Lettres, maximes, sentences, introd., trad. e com. de. J.-F.
Balaudé, Paris, 1994, citado, Balaudé nas notas seguintes. Essa obra é uma
49. Cf. os versos de seu discípulo Tímon, in Sexto Empírico, Contra os
excelente introdução ao conhecimento do epicurismo. Para o texto grego
moralistas, 20: "A natureza do divino e do bem sempre permanece, a partir
com tradução italiana, veja-se Epicuro, Opere, Torino, Ed. G. Arrighetti,
da qual advém ao homem uma vida sempre igual a si mesma". Pirro aparece 1973, citado: Arrighetti nas notas seguintes [Antologia de textos, 2a ed.,
aqui como um dogmático, como bem ressaltou F. Decleva Caizzi, Pirrone, tradução e notas de Agostinho da Silva, São Paulo, Abril Cultural, 1980
pp. 256-258, e W. Gõrler, resenha do livro de F. Decleva Caizzi, Archiv Jür (Os Pensadores)].
Geschichte der Philosophie, t. 67, 1985, pp. 329 ss.
55. Da Natureza, 2a ed., tradução e notas de Agostinho da Silva, São
50. Cícero, Dos termos extremos ... , II, 13, 43 e IV, 16, 43.
Paulo, Abril Cultural, 1980 (Os Pensadores).
51. D. L., IX, 66.
56. Diógenes de Oinoanda., The Epicurean Inscription., Napoli, Ed. M.
52. Id., IX, 63-64.
F. Smith., 1992.

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A filosofia como modo de vida As escolas helenísticas

Uma experiência e uma escolha nha consCiencia e sem que o estado de consciência se
reproduza, por sua vez, na "carne".
No ponto de partida do epicurismo, existe uma experiên-
cia e uma escolha. Uma experiência, a da "carne": Uma experiência, mas também uma escolha: o que
importa, antes de tudo, é libertar a "carne" de. seu. sofri-
A voz da carne diz: não se deve sofrer a fome, a sede e o frio; mento, o que lhe permite atingir o prazer."'~a Ep1c'::~~~-·
aquele que é senhor disso, e tem a esperança de possuí-lo ·no a escolha socrática e platônica em favor do amord.O-nem
futuro, pode lutar até mesmo com Zeus pela felicidade 57• é uma ilusão: na realidade, oj,J1ª"\YiiU2~..~~*!!!2JÍ!l<2."ill2~!1.~-§-.... ~ #

A "carne", aqui, não é uma parte anatômica do corpo, pela procura ..p.Laze;r;.•eJ:lt::,~~!J;j.r;tteresse .. No entanto,
mas, em um sentido quase fenomenológico e totalmente 0 - ape da filosofia consistirá em saber procurar o prazer
novo, parece, em filosofia é o sujeito da dor e do prazer, de maneira racional, isto é, em I?E~~.':!E~I.5~..\!ni~!l:Pfazer.ver-...
é, o indivíduo. Como bem mostrou C. Diano58 , Epicuro dadeiro, ()J?,1ll2 pr~~eç1e.existir, pois toda a infelicidade,
deveria falar de "sofrimento", de "prazer" e de "carne" para t~d3:'~3:'·re~a dos homens provém de que eles ignoram o
exprimir sua experiência, pois verdadeiro prazer. Procurando o prazer, são incapazes de
atingi-lo, pois não conseguem satisfazer-se com o que têm,
[. .. ] não há outro meio de atingir e de mostrar profundamente ou porque procuram o que está fora de seu ~lca~ce, ou
o homem na pura e simples historicidade de seu ser no mundo porque arruínam o prazer pensando o tempo 1_nte1ro que
e de descobrir, enfim, o que denominamos "indivíduo': esse hão de perdê-lo. Pode-se dizer, em certo sentido, que o
indivíduo sem o qual não se pode falar de pessoa humana sofrimento dos homens é proveniente principalmente de
[. .. ]Pois é somente na "carne" que sofre ou se apazigua que suas opiniões vazias, portanto de suas almas59 • A missão Ada
nosso "eu" - nossa alma - emerge e revela-se a si mesmo e filosofia, a missão de Epicuro será, antes de tudo, terapeu-
ao outro [. .. 1 Eis por que as maiores obra de caridade [. .. 1 tica: será necessário curar a doença da alma e ensinar o
são as que têm por objeto a carne, saciando a fome, matando homem a viver o prazer.
a sede [. .. 1.
A "carne" não está, então, separada da "alma", se é A ética
verdade que não há prazer ou sofrimento sem que se te- A escolha fundamental será justificada, então, em um
discurso teórico sobre a ética, que proporá uma definição
57. Epicuro, Sentenças vaticanas, § 33, Balaudé, p. 213. Retomo a tradu- do verdadeiro prazer e uma ascese do desejo. Nessa teoria
ção de J.-F. Balaudé acrescentando-lhe a menção a Zeus, sem dúvida, uma
adição ao texto dos manuscritos, mas que me parece justificada pelo kan
que precede no texto grego. 59. Cícero, Dos termos extremos... , I, 18, 57- 19, 63. Cf. A.:J. Voelke, La
58. C. Diano, "La philosophie du plaisir et la société des amis", p. 360 philosophie comme thérapie de l'âme... , pp. 59-72, "Opinions vides et troubles
(citado na p. 150, nota 21). de l'âme".

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A filosofia como modo de vida As escolas helenísticas

epicurista do prazer, os historiadores da filosofia descobrem, '


VlVa "62 . O ~=>
r.r•V7Pr --l~C
Pct-'Í.xu;;,l-"ceiDJ)atw:eza~~ereuU:
··· .•..dar·R.cttHreza
com razão, um eco das discussões sobre o prazer que ocor- d~prazere~..!l2QY~!.~,. Ele se opõe ao indeterminado e ao infi-
riam na Academia de Platão60 e das quais testemunham nito, como o repouso ao movimento, como o que é fora do
o diálogo de Platão intitulado Filebo e o livro X da Ética tempo ao que é temporal63 • Talvez seja admirável ver atribuir
a Nicômaco de Aristóteles. Segundo Epicuro, há prazeres essa transcendência à simples supressão da fome ou da sede
"em movimento", "doces e lisonjeiros" que se propagam e à satisfação das necessidades vit.ais. Pode-se, porém, pensar
na carne e provocam uma excitação violenta e efêmera. que esse estado de supressão do sofrimento do corpo, esse
É por procurar unicamente esses prazeres que os homens estado de equilíbrio, abre à consciência um sentimento global,
encontram a insatisfação e a dor, porquanto esses prazeres cenestésico, da própria existência: tudo se passa então como
se, suprimindo o estado de insatisfação que o consumia na
são insaciáveis e, tendo chegado a certo grau de intensi-
procura de um objeto particular, o homem ficasse livre enfim
dade, tornam a trazer sofrimentos. É necessário distinguir
para poder tomar consciência de alguma coisa extraordinária,
totalmente desses prazeres móveis o prazer estável, o prazer
que já estava presente nele de maneira inconsciente, o prazer
em repouso como um "estado de equilíbrio". É o estado de sua existência, da "identidade da pura existência", para
do corpo apaziguado e sem sofrimento, que consiste em retomar a expressão de C. Diano64• Esse estado tem alguma
não ter fome, nem sede, nem frio 61 : analogia com a "felicidade suficiente, perfeita e plena" de que
A finalidade de todas as nossas ações é nos livrar do sofrimento fala Rousseau65 em Les Rêveries du promeneur solitaire.
e do temor, e quando atingimos esse objetivo desaparece toda a De que gozar em uma situação semelhante? De nada exterior a si,
tempestade da alma, porquanto a criatura viva não tem ne- de nada senão de si mesmo e de sua própria existência, contanto
cessidade de buscar algo que lhe falta, nem de procurar coisas que esse estado dure ou baste para si mesmo como Deus.
com que possa realizar o bem da alma e do corpo. Sentimos Acrescentemos que esse estado de prazer estável e de
necessidade do prazer somente quando sofremos pela ausência equilíbrio corresponde também a um estado de tranquili-
do prazer, mas quando não ~srifremos não sentimos mais neces- dade da alma e ausência de perturbação.
sidade do prazer.
O método para alcançar esse prazer estável consistirá
Nessa perspectiva, o prazer, como supressão do sofrimento, em uma Com efeito, se os homens são
é um bem absoluto, isto é, que não pode crescer, ao qual
não se pode acrescentar um novo prazer, "do mesmo modo 62. Sêneca, Cartas a Lucílio, 66, 45. Cf. C. Diano, "La philosophie du
que um céu limpo não é suscetível de uma claridade mais plaisir et la société des amis", p. 358.
63. H.:J. Krãmer, op. cit., p. 218.
64. C. Diano, "La philosophie du plaisir et la société des amis", p. 364.
60. H.:J.
Krãmer, Platonismus und hellenistische Philosophie, pp. 164-170, 65. J.:J. Rousseau. Les Rêveries .... Paris, Flammarion, 1978, Cinquiême
188~211,216-220. promenade, p. 102 (G. F.) [ed. br.: Devaneios do caminhante solitário, Brasília,
61. Epicuro, Carta a Meneceu, § 128, Balaudé, p. 194. UnB, s.d.].

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A filosofia como modo de vida As escolas helenísticas

infelizes, é porque são torturados por desejos "imensos e A física e a canônica


66
vazios" : a riqueza, a luxúria, a dominação. A ascese dos
desejos será fundada na distinção entre os desejos naturais Mas uma grave ameaça pesa sobre a felicidade do
e necessários, os desejos naturais e desnecessários e enfim homem. Pode o prazer ser perfeito se o medo da morte
os desejos vazios, os que não são naturais nem necessários 67, e das decisões divinas neste mundo e no outro podem
distinção que já se esboçava, por outro lado, na República turvá-lo? Como mostra J.:~~":~!;;i2?2~~ÇSlUl~rig:gr~~~~ ~ ~~~,~c.~~"
de Platão68 • !llQIJ.t çt!le.~eslá .Jlª···º·~~"'fle .. !()g.~~ . . ';l;.~. ,E~~.ões . ~e tornam
o.s. . homens ini~Fz.t;§,c E para curar o homem desses terro-
São naturais e necessários os desejos que levam à satis- res que Epicuro propõe seu discurso teórico sobre a física.
fação de libertar-se de uma dor e correspondem às neces- Não se deve, sobretudo, representar a física epicurista como
sidades elementares, às exigências vitais. São naturais, mas uma teoria científica, destinada a responder a interrogações
desnecessários os desejos de comidas suntuosas ou ainda objetivas e desinteressadas. Os antigos já tinham notado que
o desejo sexual. Não são nem naturais nem necessários, os epicuristas eram hostis à ideia de uma ciência estudada
mas produzidos por opiniões vazias, os desejos sem limites por ela mesma72 • Ao contrário, a teoria filosófica, aqui, é
de riqueza, de glória ou de imortalidade. Uma sentença apenas a expressão e a consequência da escolha da vida
epicurista resumirá bem essa divisão dos desejos 69:
original, um meio de atingir a paz da alma e o. prazer
Graças sejam rendidas à bem-aventurada Natureza que fez puro. Epicuro repete com prazer73 :
com que as coisas necessárias sejam fáceis de alcançar e que
Se não nos perturbássemos por causa de nossas angústias
as coisas difíceis de alcançar não sejam necessárias.
ante os fenômenos celestes e a morte, temendo que esta última
ascese dos desejos consistirá em limitá-los, suprimin- seja algo para nós, por causa de nossa ignorância dos limites
do os que não são naturais nem necessários, limitando o da dor e dos desejos, não teríamos necessidade do estudo da
mais possível os que são naturais mas desnecessários, pois natureza.
eles não suprimem um sofrimento real, visam apenas às Não pode afastar o temor que importa para aquilo a que
variações no prazer e podem arrastar a paixões violentas damos maior importância quem não saiba qual é a nature-
e desmedidas 70 • Essa ascese dos prazeres determinará um za do universo e tenha a preocupação das fábulas míticas:
modo de vida que iremos descrever. Por isso não se podem gozar prazeres puros sem a ciência da
natureza.
66. Cícero, Dos termos extremos... , I, 18, 59.
67. Epicuro, Carta a Meneceu, §§ 127-128, Balaudé, pp. 116 e 194. 71. Lucrécio, Da natureza, III, 31 e ss.
68. Platão, República, VIII, 558 d. 72. Cf. A.:J. Festugiere, Épicure et ses dieux, Paris, 1946, pp. 51-52.
69. Arrighetti, p. 567 [240]. 73. Epicuro, Máximas Principais, XI, XII, e Carta a Pítocles, ~ 85; veja-se
70. Epicuro, Máximas Principais, § XXX, Balaudé, p. 204; Porfírio, Da a tradução de J.-F. Balaudé, pp. 175 e 201, e de Festugiere, Epicure et ses
abstinência, I, 49. dieux, p. 53.

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[. .. ] Não há outra consequência a ser extraída do conheci- muito às teorias "naturalistas" dos pré-socráticos, em espe-
mento dos fenômenos celestes que a paz da alma e uma firme cial à de Demócrito: o Todo não tem necessidade de ser
segurança, como é igualmente o objetivo de todas as outras criado por uma potência divina, pois é eterno, porquanto o
investigações. ser não pode ser proveniente do não-ser. mais que
o não-ser não pode ser proveniente do ser. Esse univer-
Como resulta claro na Carta a Pítocles7\ há, para Epicuro, so eterno é constituído pelos corpos e pelo espaço, isto
dois domínios bem distintos nas investigações sobre os é, o vazio, no qual se movem. Os corpos que vemos, os
fenômenos físicos. Há, de um lado, o núcleo sistemático corpos dos seres vivos, mas também os corpos da Terra
indiscutível, que justifica a opção existencial, por exemplo e dos astros, são constituídos por corpos indivisíveis e
a representação de um universo eterno constituído pelos imutáveis, em número infinito, os átomos, que, caindo
átomos e o vazio no qual os deuses não intervêm; de outro, com força igual em linha reta, graças a seu peso, se
as investigações sobre os problemas de importância secun- unem e geram corpos compostos, no momento em que
dária, por exemplo os fenômenos celestes, meteorológicos, se desviam infimamente de sua trajetória. Os corpos e os
que não permitem o mesmo rigor, mas admitem uma plu- mundos nascem, mas também se desagregam, em con-
ralidade de explicações. Nos dois domínios, as investigações sequência do movimento contínuo dos átomos. Na infi-
são conduzidas unicamente para assegurar a paz da alma, nitude do vazio e do tempo, há uma infinitude de
seja graças aos dogmas fundamentais que eliminarão o mundos que aparecem e desaparecem. Nosso universo é
medo dos deuses e da morte, seja, nos problemas secun- apenas um dentre eles. A noção de desvio dos átomos
dários, graças a uma ou várias explicações que, ao mostrar tem dupla finalidade: de uma parte, explicar a formação
que esses fenômenos são puramente físicos, suprimirão a dos corpos, que não poderiam constituir-se se os átomos
perturbação do espírito. se contentassem em cair em linha reta com força igual 75 ;
Trata-se de suprimir o medo dos deuses e da morte. de outra, ao introduzir o "acaso" na "necessidade", dar
Para tanto, Epicuro, sobTetudo nas Cartas a Heródoto e a um fundamento à liberdade humana 76 • Ainda aqui é
Pítocles, mostrará, de um lado, que os deuses nada têm a claro que a física é pensada em função da escolha
ver com a produção do universo, que eles não se preocu- de vida epicurista. De um lado, o homem deve ser senhor de
pam com o que acontece com o mundo e os homens e, seus desejos: para poder atingir o prazer estável, é neces-
de outro, que a morte nada é para nós. Com esse objeti- sário que ele seja livre; mas de outro, se sua alma e seu
vo, Epicuro propõe uma explicação do mundo que deve intelecto são formados de átomos materiais movidos por

74. Epicuro, Carta a Pítocles, §§ 86-87 [Carta a Pítocles, in Diógenes 75. Cícero, Dos termos extremos... , I, 6, 18-20.
Laércio, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, pp. 302-310.]; veja-se Balaudé, 76. Id., Do destino, 9, 18; 10, 22; 20, 46; Da natureza dos deuses, I, 25,
pp. 106-111 e 176. 69. Veja-se Arrighetti, pp. 512-513.

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A filosofia como modo de vida As escolas helenísticas

um movimento sempre previsível, como poderia o hom~~ quando a morte sobrevém. Por que então temer algo que
ser livre? A solução consistirá precisamente em ~d~1~r nada tem a ver conosco?
que é exatamente nos átomos qu~ se_ situ~ um pnnCI~l~ Dessa física materialista deduz-se a teoria do conhe-
de espontaneidade interna, que nao e senao ;ssa ~ossibi­ cimento (canônica). Todos os objetos materi'ais emitem
lidade de desviar-se de sua trajetória, o que da, assim,, um fluxos particulares que tocam nossos sentidos e, graças
fundamento à liberdade do querer e a torna possiVel. à continuidade desse fluxo, nos dão a impressão de so-
Como diz Lucrécio 77 : lidez, da resistência dos corpos. A partir de sensações
múltiplas provenientes de corpos que se reúnem, por
Se a própria mente não tem, em tudo o que faz, uma Jata~
exemplo as advindas de diferentes indivíduos, produzem-
lidade interna, e não é obrigada, como contra a vont~de, a
se na alma imagens e noções gerais que nos permitem
passividade completa, é porque existe um pequeno desvz~ dos reconhecer as formas e identificá-las, ainda mais pelo
átomos, sem ser em tempo determinado, e volta para tras. fato de que a essas noções estão ligadas as palavras e a
Inútil acrescentar que, desde a Antiguidade até. n~ssos linguagem. Com a linguagem manifesta-se a possibilidade
dias, esse desvio sem causa, esse abandono do detenmmsmo, do erro. Para reconhecer a verdade de um enunciado,
sempre escandalizou os historiadores da filosofia7s. será necessário verificar se ele está de acordo com os
critérios de verdade que são as sensações e as noções
Assim, de um lado, 0 homem não teme os deuses, pois gerais. O pensamento poderá assim, como dizem os epi-
eles não exercem nenhuma ação sobre o mundo e sobre curistas, "projetar-se" para a frente: para intuir o que não
os homens, e, de outro, o homem não deve mais temer a está presente, por exemplo para afirmar a existência do
morte porque a alma, composta de átomos, desagrega-se vazio, que, por definição, é invisível, mas cuja existência
como 'o corpo, quando morre, e perde toda sensibilidad~. é necessária para explicar a existência do movimento.
"A morte nada é para nós, visto que nos bastam~s a ~o.s Essa projeção sempre deverá ser controlada pela experiên-
mesmos; a morte nada ée,-quando a morte é, nao existi- cia, portanto pela sensação80 •
mos mais"79, é dessa maneira que Diano resume as afirma- O edificio teórico da física não tem por único objetivo
ções da Carta a Meneceu: nós não somos mais nós mesmos libertar o homem do medo dos deuses e da morte. Ele
abre também o acesso ao prazer da contemplação dos
77 · Lucrécio ' Da natureza, li, 289-293. " deuses. Porque os deuses existem, o conhecimento que
78 Cícero Dos termos extremos ... , I, 6, 19: Nada e' mais
· vergouh osopara
um físi~o do q~e dizer de um fato que ele se produz sem causa". ,D .. Sedley, temos deles é, com efeito, uma clara evidência que se
"E icuru's Refutation of Determinism", in SUZHTHSIS,. Studz sull epzcurezsmo manifesta na preconcepção geral dos deuses presente em
gr!o e romano offerti a Marcello Gigante. Contributi, Napoli, 1983, ~P· ~:-51.
79. Epicuro, Carta a Meneceu, §§ 124-125 [ Cart~ a Meneceu, m Dwgenes
80. Balaudé, p. 32.
Laércio, op. cit., pp. 311-314.]; Balaudé, p. 192; Dmno, p. 362.

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A filosofia como modo de vida
As escolas helenísticas

toda a humanidadé1 • O raciocínio exige também e neces-


destruí-los e do que é perigoso para si. Os deuses são os
sariamente que exista uma natureza superior a tudo e
amigos dos sábios, e os sábios são os amigos dos deuses.
soberanamente perfeita. Os deuses existem, embora não
Para os sábios, o bem maior é contemplar o esplendor
tenham nenhuma ação sobre o mundo, ou melhor, porque
dos deuses. Eles nada têm a pedir-lhes mas,. apesar de
eles não têm nenhuma ação sobre o mundo, esta é a
tudo, o pedem com uma oração de louvor84 : é à perfeição
condição de sua perfeição 82 •
dos deuses que suas homenagens se dirigem. Pôde-se falar
O ser bem-aventurado e imortal não tem perturbações nem sobre isso de "puro amor", de um amor que nada exige
perturba outro ser; por isso é imune a movimentos de ira ou de em troca85 •
gratidão, pois todo movimento desse tipo implica fraqueza.
Com essa representação de deuses que realizam 0 modo
Essa é uma das grandes intuições de Epicuro: ele não de vid~ epicurista, a física torna-se, assim, uma exortação
concebe a divindade como um poder de criar, de dominar, a pra_ticar concretamente a opção inicial da qual é a ex-
de impor sua vontade aos inferiores, mas como a perfei- pressao. ~la con~u~, com isso, à paz da alma e à alegria
ção de ser supremo: felicidade, indestrutibilidade, beleza, de estar hgado a VIda de contemplação que os próprios
prazer, tranquilidade. A filosofia encontra na representa- de~ses l~vam. O sábio, como os deuses, mergulha seu olhar
ção dos deuses a um só tempo o prazer maravilhado que na mfimtude dos mundos inumeráveis; o universo fechado
se pode experimentar admirando-se a beleza, e o recon- se abre para o infinito.
forto que pode proporcionar a visão do modelo de sabe-
doria. Nessa perspectiva, os deuses de Epicuro são a Exercícios
projeção e a encarnação do ideal de vida epicurista. A
vida dos deuses consiste em gozar de sua própria perfei- Para chegar à cura da alma e a uma vida de acordo com
ção, do puro prazer de existir, sem necessidade, sem a escolha fundamental, não basta ter tomado conhecimento
perturbação, na mais dQçe__(],as sociedades. Sua beleza fí- do discurso filosófico epicurista. É necessário exercitar-se
sica é a beleza da figura humâna83 • Poder-se-ia pensar, ~ontinuamente. Antes de tudo, é necessário meditar, isto
com alguma razão, que os deuses ideais são representações e, compenetrar-se intimamente, tomar consciência intensa
imaginadas pelos homens, e que unicamente aos homens dos dogmas fundamentais 86 :
devem sua existência. Entretanto, Epicuro parece concebê-
Medi:a em todos esses ensinos dia e noite, em toda parte, e
los como realidades independentes, que se mantêm eter-
tambem com um companheiro semelhante a ti. Assim, não
namente no ser, pois sabem afastar-se do que poderia
84. Id., ibid., p. 98.
81. Epicuro, Carta a Meneceu, § 123; Balaudé, p. 192.
85. P. Decharme, La critique des traditions religieuses chez les Grecs Paris
82. Máximas Principais, I, Balaudé, p. 199. 1904, p. 257. ' '
83. A.-:J. Festugiere, Épicure et ses dieux, p. 95.
86. Epicuro, Carta a Meneceu, §§ 124 e 135; Balaudé, pp. 192 e 198.

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A filosofia como modo de vida
As escolas helenísticas

_ nem em son hos nem em vigília,


experimentarás perturbaçao
mas viverás como um deus entre os hom~ns. , - A meditação e a ascese não podem ser praticadas na
Habitua-te a pensar que a morte nada e para nos. solidão. Como na escola platônica, a amizade é, na escola
epicurista, o meio, o caminho privilegiado para obter a
A sistematização dos d og~as, sua reunião, -losemmais
resumos
per- transformação de si mesmo. Mestres e discípulos devem
, d . d preCisamente a torna
e sentenças e. estma a. e mais. f'ac eis de ter na memória, <Yudar-se mutuamente para alcançar a cura de suas almas 89 •
. dmiráveis
suasiVos, mais a " , lo remédio" destina~ a assegu- Nessa atmosfera de amizade, o próprio Epicuro assume
como o famoso quadrup 1 se resume o. essencial do o papel de um diretor de consciência e, como Sócrates
rar a salvação da alma, no qua -- .
. . ta87 : e Platão, conhece bem o papel terapêutico da palavra.
discurso filosófico epiCuns
Essa direção espiritual só tem sentido em uma relação de
Os deuses não são feitos para temer, indivíduo para indivíduo90:
a morte não é feita para amedrontar,
o bem não é fácil de conquistar, Essas coisas, não é à multidão que as digo, mas para ti. Cada
nem o mal, de suportar 88 . um de nós é um ouvinte muito vasto para o outro.

Contudo, a leitura dos tratados d~gmáticos de Eb~icuro;:- Ele sabe, notadamente, que a culpa91 tortura a consciên-
d 1 pode ahmentar tam em a cia moral e que é possível libertar-se dela reconhecendo
de outros mestres a esclo a a intuição fundamental. as próprias faltas e aceitando as repreensões, mesmo que
ditação e impregnar a a ma com
elas provoquem algumas vezes um estado de "contrição".
, . praticar
Sobretudo, é necessano · a disciplina
e édos dese-
fácil de O exame de consciência, a confissào; a correção fraterna
. , , . b r contentar-se com o qu ..
JOS, e necessano sa ~atisfaz as necessidades fundamentais
são exercícios indispensáveis para obter a cura da alma.
alcançar, com o que , , fluo Fórmula simples, Possuímos fragmentos de um texto do epicurista Filodemo
do ser, e renunc~ar ado qlu_ e e su~:a al~eração radical da intitulado Da liberdade da palavra. Trata nele da confiança
ão deiXa e_eyar a . 1 e da abertura que deve reinar entre mestre e discípulos
mas que n --.das sim les roupas simp es,
vida· contentar-se com comi p ' 'blicos e entre os discípulos. Se exprimir-se livremente é, para
.
renunciar , h o nras ' aos cargos pu
às riquezas, as '
o mestre, não temer repreender, para o discípulo é não
viver retirado.
hesitar em reconhecer suas faltas ou mesmo não ter receio

87. Filodemo, in Papyrus Herculan, N 1005 , licol1.983,


IV 10-14, texto restau-
(2" ed.), nota 35 a;
rad o por M· Gl.gante ' Ricerche Fzlodemee, apo • 89. A.j. Festugiere, op. cit., pp. 36-70; C. Diano, "La philosophie du
plaisir et la société des amis", pp. 365-371.
Arrighetti, p. 548.
- d Ph'l 1 d lpho Menezes.
H,a tradução de outros poemas
- 90. Sêneca, Cartas a Lucz1io, 7, 11; C. Diano, p. 370.
88. Traduçao e a e . , lo VII a c a v d. C. seleçao,
· (ffi 0 u Palatma: secu s · · ' . 91. Cf. S. Sudhaus, "Epikur als Beichtvater", in Archiv für Heligionswissens-
in Poemas da Antologza ega , p São Paulo Companhia das chajt, 14, 1911, pp. 647-648; W. Schmid, "Contritio und 'Ultima linea rerurn'
tradução, notas e posfácio de Jose Pau1o aes, ,
Letras, 1995 [N. do T.]. in neuen epikureischen Texten", in Rheinisches Museum, 100: 301-327, 1957;
I. Hadot, Seneca ... , p. 67.

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As escolas helenísticas
A filosofia como modo de vida

Prazer da discussão, como diz a carta enviada a Ido-


de fazer conhecer a seus amigos as próprias faltas. Uma meneu por Epicuro antes de morrer97:
das principais atividades da escola consistia em um diálogo
A essas dores, eu contraponho a alegria da alma que experi-
corretivo e formador.
menta a lembrança de nossas conversas filosóficas.
A personalidade de Epicuro nela desempenhava papel
92 . Mas também o prazer da amizade. Temos, a esse res-
de destaque. O próprio Epicuro pusera o princípio : "Faze
tudo como se Epicuro te visse", e os epicuristas lhe faziam peito, o testemunho de Cícerogs:
eco93: "Nós obedecemos a Epicuro, cuja forma de vida Epicu:o diz da ami~ade que, de todas as coisas que a sa-
escolhemos". Talvez por isso os epicuristas dessem tanta bedorz.a nos proporczona para viver felizes, não há nada
importância aos retratos de seu fundador, que figuram superzor~ mais. f~cundo, mais agradável que a amizade.
94
não só nos quadros, mas também nos anéis . Epicuro E ele ~ao se lzmztou a declarar isso, mas o confirmou em
aparecia para seus discípulos como um "deus entre os s~~ vzda, tanto por seus atos como por seus costumes. Na
homens" 95 , isto é, a encarnação da sabedoria, o modelo unz~a casa ~e Epicuro, uma pequena casa, aquele grupo de
que era necessário imitar. amzgo: re~nzdos por ele, unidos sentimentalmente por aquela
Contudo, em tudo isso era necessário evitar o esforço conspzraçao de amor!
e a tensão. Ao contrário, o exercício fundamental do epi- , Pra~erde uma vida em comum que não menospreza
curista consistia na calma, na serenidade, na arte de gozar al~m disso, a participação de escravos e mulheres. Verda~
os prazeres da alma e os prazeres estáveis do corpo. deira revolução, que d_en?ta uma transformação completa
Prazer do conhecimento, antes de tudo
96
:
da atmosfera, em relaçao a homossexualidade sublimada da
esco~~ de Platão. As mulheres, então, já excepcionalmente
No exercício da sabedoria (a filosofia), o prazer é equivalente admi_tidas na escola de Platão, agora fazem parte da co-
ao conhecimento. Pois não se tem prazer após ter aprendido, mumdade e, entre elas, não só as mulheres casadas por
mas é simultaneamente qae se aprende e que se tem prazer. exemplo Temístia, a mulher de Leonteus de Lam;saco
O prazer supremo é contemplar a infinitude do universo ~as também as cortesãs, como Leôntion (a Leoa), que ~
pmtor Teoro representará em meditação99.
e a majestade dos deuses.

92. Sêneca, Cartas a Lucílio, 25, 5. 97. Ar~ghe:ti, P· 427 [52], e veja-se Marco Aurélio, Meditações, IX
93. Philodemi Peri Parrhesias, Ed. A. Olivieri, Leipzig, 1914, p. 22; M. 41 [Medztaçoes, 2 ed., tradução e notas de Jaime Bruna São Paulo Ab ·i
Gigante, "Philodême, Sur la liberté de paroU!', Congrês Budé (citado na p. Cultural, 1980 (Os Pensadores).]. ' ' n
159, nota 33), pp. 196-217. 98. Cícero, Dos termos extremos ... , I, 20, 65.
94. É o tema do livro de B. Frischer, The Sculpted Word. 99. Plínio o Velho, História Natural XXXV 144 (e 99)· N w D Wi
'' ( · d ' ' , · . e Itt
95. Epicuro, Carta a Meneceu, § 135; Balaudé, p. 198. Erzcurus... Cita o na p. 150, nota 21), pp. 95-96. '
96. Id., Sentenças vaticanas, § 27, Balaudé, p. 212.
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A filosofia como modo de vida
As escolas helenísticas

Prazer, enfim, de tomar consciência do que existe de O estoicismo


maravilhoso na existência. Saber, antes de tudo, governar
o próprio pensamento para representar-se as coisas agra- A escola estoica, fundada por Zenão 102 no fim do século
dáveis, ressuscitar a memória dos prazeres do passado e IV a.C., ganha novo impulso por volta da metade do sécu-
gozar os prazeres do presente, reconhecendo quanto esses lo I~I, sob ~ direção de Crisipo. Muito .cedo, preservando
prazeres são grandes e agradáveis, escolher deliberadamente notavel umdade quanto aos dogmas fundamentais ela
a calma e a serenidade, viver em gratidão profunda para cinde-se em tendências opostas, que continuarão a dividir
com a natureza e a vida que nos oferecem sem cessar, caso ~s estoic~s no decorrer dos séculos 103 . Dispomos de poucas
saibamos encontrá-los, o prazer e a alegria. mfor:naçoes sobre a história da escola a partir do século I
a.C. E certo que, até o século II d.C., a doutrina estoica era
A meditação sobre a morte serve para despertar na
ainda florescente no Império romano: basta citar Sêneca
alma imensa gratidão pelo dom maravilhoso da exis- Musônio, Epíteto e Marco Aurélio. '
tência100:

Convence-te de que cada novo dia que nasce será para ti o último. A escolha fundamental
É então com gratidão que tu receberás cada hora inesperada. A propósito do epicurismo, falamos de uma experiên-
Recebe cada momento do tempo que se acrescenta reconhe- cia, a da "carne", e de uma escolha, a do prazer e do in-
cendo todo seu valor, como se acontecesse graças a um acaso teresse individual transfigurado em puro prazer de existir.
incrível. ~evemos ag~~a falar de experiência e de escolha a propó-
sito do estOICismo. A escolha é fundamentalmente a de
E. Hoffmann recuperou admiravelmente a essência da Sócrates que, na Defesa de Sócrates escrita por Platão1o4,
escolha de vida epicurista quando escreveu101 :
A existência deve, então, ser considerada um puro acaso, . 102. Os. fragmentos dos estoicos foram reunidos por H. von Arnim.
para poder em seguida -ser vivida totalmente como uma Stozcorum Veterum Fragmenta. I-IV. Leipzig, 1905-1924 (reedição Stuttgart:
Teubner, 196_4). J. Mansfield prepara uma nova edição dos fragmentos.
maravilha única. É necessário agir bem, pois a existência, Encontrar-se-a uma tradução muito útil de certo número de textos estoicos
inexoravelmente, não tem lugar senão para uma vez, para em (Sêneca, Epiteto e Marco Aurélio, e testemunhos sobre o estoicismo em
seguida festejar o que ela tem de insubstituível e de único. Diógenes Laércio, Cícero e Plutarco) em Les Stoi'ciens, Éd. É. Bréhier et
P.-M. s_:~uhl. Paris, Gallimard, 1964 (Bibliothêque de la Pléiade) (citado
Les Stozczens nas notas seguintes) [Sêneca, A vida feliz, tradução de André
Bartholomeu, apresentação de Denis Diderot, Campinas, Pontes, 1991].
100. Horácio, Cartas, I, 4, 13; Filodemo, Da morte, livro IY, col. 38, 24, 103.].-P. Lynch, Aristotle's School, p. 143. I. Hadot, "Tradition sto!cienne
citado in M. Gigante, Ricerche Filodemee, Napoli, 1983, pp. 181 e 215-216. et idées politiques au temps des Grecques", in Revue des Études Latines 48·
101. E. Hoffmann, "Epikur", in M. Dessoir, Die Geschichte der Philosophie, 161-178, 1971. , .
T. I, Wiesbaden, 1925, p. 223. 104. Defesa, 41 d, vejam-se também 30 b e 28 e.

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A filosofia como modo de vida As escolas helenísticas

declara: "Não há, para o homem bom, nenhum mal, quer e o que não depende de nós 105 , mas de causas exteriores
na vida, quer na morte". Pois o homem bom considera do destino, e é indiferente. A vontade de fazer o bem é ~
que não há mal senão o mal moral e que não há bem cidadela interior inexpugnável que cada um pode edificar
senão o bem moral, ou seja, o bem ou virtude; é o valor em si mesmo. Lá é que se encontrará a liberdade, a in-
supremo pelo qual não se deve hesitar em enfrentar a dependência, a invulnerabilidade e, valor eminentemente
morte. A escolha estoica situa-se, assim, na linha reta da estoico, a coerência consigo mesmo. Poder-se-ia dizer tam-
escolha socrática e é diametralmente oposta à escolha bém que a escolha de vida estoica consiste na coerência
epicurista: a felicidade não consiste no prazer ou no inte- consigo mesmo. Sêneca resumiu essa atitude pela fórmula 106:
resse individual, mas na exigência do bem, ditada pela "Sempre querer a mesma coisa, sempre recusar a mesma
razão e que transcende o indivíduo. A escolha estoica coisa", pois, explicava, "a mesma coisa não pode univer-
opõe-se igualmente à escolha platônica, na medida em que sal e constantemente agradar senão o que é moralmente
pretende que a felicidade, isto é, o bem moral, seja aces- direito". Essa coerência consigo é própria da razão: todo
sível a todos neste mundo. ~iscurso racional só pode ser coerente consigo mesmo;
VIver segundo a razão é submeter-se a essa obrigação de
A experiência estoica consiste em uma tomada de cons-
coerência. Zenão 107 definia desta maneira a escolha de vida
ciência aguda da situação trágica do homem condicionado
estoica: "Viver de maneira coerente, isto é, segundo uma
pelo destino. Aparentemente não somos livres para nada,
regra de vida una e harmoniosa, pois aqueles que vivem
pois não depende absolutamente de nós ser belos, fortes,
na incoerência são infelizes".
com boa saúde, ricos, experimentar o prazer ou escapar
ao sofrimento. Tudo isso depende de causas exteriores a A física
nós. Uma necessidade inexorável, indiferente a nosso in-
teresse individual, destrói aspirações e esperanças; estamos , . O dis_c~rso filosófico estoico comporta três partes, a
entregues sem defesa a()1; acidentes da vida, aos reveses da flSlca, a logtca e a ética. O discurso filosófico concernente
fortuna, à doença, à morte~-Tudo em nossa vida nos esca- à física justificará a escolha de vida da qual acabamos
pa. Disso resulta que os homens são infelizes, porquanto de falar, e explicitará a maneira de ser no mundo que
procuram com paixão adquirir os bens que não podem ela acarreta. Como entre os epicuristas, a física entre
obter e fugir dos males que são, contudo, inevitáveis. os estoicos não é desenvolvida por si mesma, mas tem
Contudo, há uma coisa, uma única coisa, que depende finalidade ética ros:
de nós e que nada nos pode tirar: a vontade de fazer o
bem, a vontade de agir de acordo com a razão. Haverá, 105. E~iteto, Manua~ § 1; Conversações, I, 1, 7; I, 4, 27; I, 22, 9; II, 5, 4.
106. Seneca, Cartas a Lucílio, 20, 5.
então, oposição radical entre o que depende de nós e
107. Stoicorum Veterum Fragmenta (citado SW nas notas que seguem), I, 179.
pode ser bom ou mau, porque objeto de nossa decisão, 108. SVF, III, § 68 (Les Stoiciens, p. 97).

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A filosofia como modo de vida
As escolas helenísticas

A física é ensinada somente para que se possa ensinar a dis-


razão do Todo, do qual ela é apenas parte. Viver de acordo
tinção que é necessário estabelecer entre os bens e os males.
com a razão será viver de acordo com a natureza de acor-
Pode-se dizer, antes de tudo, que a física estoica é d_? com a Lei universal, que move do interior ~ revolu-
indispensável à ética, pois ensina o homem a reconhecer çao do mundo. Universo racional, mas ao mesmo tempo
que há coisas que não estão em seu poder, mas dependem total~e.nte materi~l, a raz~o estoica é idêntic'a ao Fogo
de causas exteriores a ele que se encadeiam de maneira ~erachnano, matenal, tambem aqui, em razão da escolha de
necessária e racional. VIda estoica, como pensaram G. Rodier e V. Goldschmidtlll
qu: . explicam esse materialismo pelo desejo de tornar ~
Ela tem também uma finalidade ética na medida em
fehn~ade acessível a todos, neste mundo mesmo, que não
que a racionalidade da ação humana funda-se na racio- se opoe a um mundo superior.
nalidade da natureza. Na perspectiva da física, a vontade
de coerência consigo, fundamento da escolha estoica, . Justificando racionalmente suas opções radicalmente
aparecerá no seio da realidade material como uma Lei diferentes, estoicos e epicuristas propõem físicas radical-
fundamental, interior a todo ser e ao conjunto dos seres 109 • mente opostas. Para os últimos, se os corpos são formados
De repente, desde o primeiro instante de sua existência, o de .agregados de átomos, eles não formam uma verdadeira
ser vivo é conciliado consigo mesmo: tende a conservar-se umdade e o ~niverso é apenas uma justaposição de ele-
a si mesmo e a amar sua própria existência e tudo o que mentos que nao se fundem simultaneamente: cada ser é
pode conservá-la. Mas o próprio mundo é um. único ser uma individualidade, de alguma maneira atomizada isola-
vivo, também ele conciliado consigo mesmo, coerente con- da, em relação às outras; tudo está fora de tudo ~ tudo
sigo mesmo, no qual, como em uma unidade sistemática e acontece por acaso: no vazio infinito, forma-se uma infini-
orgânica, tudo tem relação com tudo, tudo está em tudo, dade de mundos. Para os estoicos, ao contrário, tudo está
tudo tem necessidade de tudo. em tudo, os corpos são todos orgânicos, o Mundo é um
A escolha de vida estQica postula e exige, a um só todo orgânico, e tudo acontece por necessidade racional·
tempo, que o universo seja ;acíonal. "É possível que sub- no .tempo infinito, há um único cosmos que se repete uma in~
sista alguma ordem em ti, mas desordem no universo?" 110 fimdade de vezes. Duas físicas contrárias e, contudo uma
A razão humana que quer a coerência lógica e dialética proposição análoga, pois as duas escolas tendem a f~ndar
consigo mesma e põe a moralidade deve fundar-se em uma na própria natureza a possibilidade da escolha existencial
Os ~picurist~s :onsideravam que a espontaneidade da~
109. Cícero, Dos termos extremos ... , III, 4, 16-22, 75; veja-se o comentário parhculas atomiCas poderia desviar-se de sua tr~etória e
notável desse texto por V. Goldschmidt, Le Systeme stoiâen et l'idée de temps, tornar possível a liberdade humana e a ascese dos desejos.
Paris, 1977, pp. 125-131; I. Hadot, Seneca ... , pp. 73-75.
110. Marco Aurélio, Meditações, IV, 27 (citado Marco Aurélio nas notas
seguintes).
111. ?·Rodier, ~tudes de philosophie grecque, Paris, 1926, pp. 254-255; v.
Goldschmidt, Le Systeme stoiCien ... , p. 59, nota 7.

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A filosofia como modo de vida As escolas helenísticas

Os estoicos fundam a razão humana na natureza concebi- acontecem. A Razão universal não pode agir de maneira
da como a Razão universal. Mas sua explicação da possi- diferente da que age, precisamente porque ela é perfei-
bilidade de liberdade humana é muito mais complexa. tamente racional.

Para explicar a possibilidade de liberdade, não basta Mas então como uma escolha moral é possível? O
simplesmente fundar a razão humana na razão cósmica. preço a pagar para que a moralidade seja possível será a
Isso porque a razão cósmica corresponde a uma necessidade liberdade de escolha, isto é, a possibilidade para o homem,
rigorosa, ainda mais porque os estoicos a representam sobre recusando-se a aceitar o destino, de revoltar-se contra a
modelo heraclitiano de uma força, o Fogo112 , sopro e calor ordem universal e de agir ou pensar contra a Razão uni-
0
vital que, misturando-se totalmente à matéria, gera todos versal e a natureza, isto é, de separar-se do universo, de
os seres, como uma semente na qual todas as sementes tornar-se um estrangeiro, um exilado da grande cidade
estão contidas e a partir da qual elas se desenvolvem. De do mundo 114 • Essa recusa, por outro lado, não mudará em
acordo consigo mesmo, coerente consigo mesmo, o cosmos, nada a ordem do mundo. Segundo a fórmula do estoico
como razão, se quer necessariamente como é, a ponto de Cleanto, retomada por Sêneca115 :
repetir-se em um ciclo eternamente idêntico, no qual o Os destinos guiam quem os aceita, arrastam quem a eles resiste.
fogo, ao transformar-se nos outros elementos, volta a ser
finalmente ele mesmo. Se o cosmos se repete eternamente A Razão inclui-se, com efeito, no plano do mundo e
idêntico, é porque é racional, é "lógico", é porque é o único faz que contribuam para seu êxito todas as resistências,
cosmos simultaneamente possível e necessário que a Razão todas as oposições, todos os obstáculos 116 •
pôde produzir. Ela não pode produzir um melhor ou um Mas, ainda uma vez, pode-se perguntar como essa liber-
pior. E, nesse cosmos, tudo se encadeia necessariamente, dade de escolha é possível. É que a forma da razão própria
113
de acordo com o princípio de causalidade : ao homem não é a razão substancial, formadora, imediata-
Não há movimento sem causa: se assim é, tudo acontece por mente imanente às coisas, que é a Razão universal, mas uma
causas que dão a impulsã~; se não é assim, tudo acontece razão discursiva que, nos juízos, nos discursos que enuncia
sobre a realidade, tem o poder de dar um sentido aos acon-
pelo destino.
t~cimentos que o destino lhe impõe e às ações que ela produz.
O menor acontecimento envolve toda a série de causas, E nesse universo de sentido que se situam tanto as paixões
o encadeamento de todos os acontecimentos anteceden- humanas como a moralidade. Como disse Epiteto117:
tes e, finalmente, todo o universo. Queira o homem ou
não todas as coisas acontecem necessariamente como elas 114. Marco Aurélio, VIII, 34.
' 115. Sêneca, Cartas a Lucílio, 107, 11.
116. Marco Aurélio, VIII, 35.
112. SW, li, §§ 413-421.
113. Id., li, § 952; Les Sto'iciens, p. 481. 117. Epiteto, Manual, § 5; Les Sto'iciens, p. 1113.

192 193
A filosofia como modo de vida As escolas helenísticas

Não são as coisas [em sua materialidade] que nos perturbam, Se em pleno ~ar percebo um trovão e os relâmpagos da
mas os juízos que jazemos sobre as coisas [isto é, o sentido tempestade, nao posso negar que vejo esses estrondos
que lhes damos]. aterrorizantes: é a representação compreensiva e objetiva.
Essa sensação é o resultado de todo o encadeamento de
A teoria do conhecimento causas, portanto do destino. Se me contento em· constatar
A teoria estoica do conheciménto tem duplo aspecto. interiormente que, graças ao destino, sou posto frente a
De uma parte, afirma que os objetos marcam com seu frente com uma tempestade, isto é, se meu discurso interior
sinal nossa faculdade de sensação e que não podemos corresponde exatamente à representação objetiva, estou
absolutamente duvidar de certas representações que levam na verdade. Mas a percepção desses estrondos pode, sem
uma marca de evidência indiscutível; são as denominadas ~úvi~~' submergir no terror, o que é uma paixão. Sob 0
representações compreensivas ou objetivas. Elas não depen- illlpeno da emoção, eu poderia me dizer interiormente:
dem absolutamente de nossa vontade. Mas nosso discurso "Eis-me aqui submerso na desgraça, corro o risco de morrer,
interior enuncia e descreve o conteúdo dessas representa- e a morte é um mal". Se dou meu assentimento ao discurso
ções e damos ou não nosso assentimento a esse enunciado. interior. pro:?cado ~elo terror, estarei no erro enquanto
É aí que se situa a possibilidade de erro e a liberdade 118 • um estmco, Ja que mmha opção existencial fundamental é
Para fazer compreender esse aspecto subjetivo e voluntá- precisamente que não há outro mal além do mal moraP2o.
rio ·da representação, Crisipo comparava-a ao cilindro 119 • De maneira geral, o erro, mas também a liberdade situam-
Todo o encadeamento de causas e de acontecimentos, isto se nos juízos de valor que atribuo aos acontecimentos. A
é, o destino, pode pôr em movimento um cilindro, mas atitude moral correta consistirá em reconhecer como bom
um cilindro somente rolará de acordo com sua própria ou mau apenas o que é bom ou mau moralmente e em
forma de cilindro. Da mesma maneira, o encadeamento considerar nem bom nem mau, portanto indiferente, 0
de causas pode provocar em nós essa ou aquela sensação, que não é bom nem mau moralmente.
dando-nos assim ocasião_ d_e enunciar um juízo sobre essa
sensação e de dar ou não nosso assentimento a esse juízo, A teoria moral
mas esse assentimento não terá menos sua forma própria,
Pode-se definir de outro modo a opos1çao entre 0
independente e livre.
domínio da "moral" e o domínio do "indiferente". Será
Para melhor compreender o que querem dizer os estoi- mo~~l, e_ntão, isto é, bom ou mau, o que depende de nós;
cos, pode-se desenvolver um exemplo proposto por Epíteto. sera md1ferente o que não depende de nós. A única coisa
dependente nós é, com efeito, nossa intenção moral, 0
118. SVF, li, § 91 = Sexto Empírico, Contra os lógicos, li, 397, traduzido
in P. Hadot, La Citadelle intérieure, Paris, 1992, p. 124. 120. Aulo Gé!io, Noites áticas, XIX, 1, 15-20, traduzido in P. Hadot La
119. Cícero, Do destino, 19, 43; cf. P. Hadot, op. cit., p. 124. Citadelle intérieure, p. 120. '

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A filosofia como modo de vida As escolas helenísticas

sentido que atribuímos aos acontecimentos. O que não Mas pode-se perguntar corno o estoico orienta-se na
depende de nós corresponde ao encadeamento necessário vida, se tudo é indiferente exceto a intenção moral. Deve-se
de causas e efeitos, isto é, ao destino, ao curso da natureza, casar, exercer uma atividade política ou um ofício, servir
às ações dos outros homens. São, assim, indiferentes a vida à pátria? Aqui aparece uma parte essencial da doutrina
e a morte, a saúde e a doença, o prazer e o sofrimento, a estoica: a teoria dos "deveres" (não a do dever em geral)
beleza e a fealdade, a força e a fraqueza, a riqueza e a po- ou das "ações apropriadas" 123 • Essa teoria vai permitir à
breza, a nobreza e o vulgo, as carreiras políticas, porque vontade boa encontrar matéria de exercício, para ser guiada
tudo isso não depende de nós. Tudo isso deve, em princí- por um código de conduta prática, e combinar um valor
pio, nos ser indiferente, isto é, não devemos introduzir aí relativo às coisas indiferentes, que são, em princípio, sem
diferenças, mas aceitar o que acontece corno determinado valor.
pelo destino 121 :
Para fundar essa teoria dos "deveres", os estoicos retor-
Não deseja que o que acontece aconteça como queres, mas queiras nam à sua intuição fundamental, a do acordo instintivo e
que o que acontece aconteça como acontece, e serás feliz. original do ser vivo consigo mesmo, que exprime a vontade
Há aí urna inversão total da maneira de ver as coisas. profunda da natureza. Os seres vivos têm uma propensão
Passa-se de urna visão "humana" da realidade, visão na qual original a conservar-se e a repelir o que ameaça sua inte-
nossos juízos de valor dependem de convenções sociais gridade. Com a aparição da razão no homem, o instinto
ou de nossas paixões, a uma visão "natural", "física" das natural tornar-se-á coisa refletida e raciocinada: o amor
coisas que repõe cada acontecimento na perspectiva da pela vida, por exemplo, o amor pelas crianças, o amor pe-
natureza e da Razão universaP 22 • A indiferença estoica é los concidadãos, fundado no instinto de sociabilidade. Casar-
profundamente diferente da indiferença pirroniana. Para se, ter uma atividade política, servir à pátria, todas essas
o pirrônico, tudo é indiferente porque não se pode saber ações serão apropriadas à natureza humana e terão um
se uma coisa é boa ou má. Não há aqui nada que não valor. O que caracteriza a "ação apropriada" é que em parte
seja indiferente, é a própria indiferença. Para o estoico, ela depende de nós, pois supõe uma intenção moral, e em
há uma única coisa que não é indiferente: a intenção parte não depende, pois seu êxito depende não só de nossa
moral, que se põe como boa ou má e leva o homem a vontade, mas dos outros homens ou das circunstâncias, dos
modificar-se a si mesmo e à sua atitude com relação ao acontecimentos, do destino enfim. Essa teoria dos deveres
mundo. E a indiferença consiste em não fazer diferença,
ou ações apropriadas permite ao filósofo orientar-se na
mas em querer, amar mesmo, de maneira igual, tudo o
que é determinado pelo destino. 123. Empresto essa tradução de I. G. Kidd, "Posidonius on Emotions",
in Problems in Stoicism, Ed. A. A. Long, London, 1971, p. 201. Sobre as ações
121. Epíteto, Manual, § 8; Les Stoi'ciens, p. 1114. apropriadas, cf. I. Hadot, Seneca ... , pp. 72-78; V. Goldschmidt, Le Systi!me
122. Cf. P. Hadot, op. cit., pp. 122-123 e pp. 180 e ss. stoii:ien, pp. 145-168; P. Hadot, op. cit., pp. 204-206.

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A filosofia como modo de vida As escolas helenísticas

incerteza da vida cotidiana, ao propor escolhas razoáveis, vamente tardios, mas nos revelam, segundo toda verossi-
que nossa razão pode aprovar sem jamais ter a certeza de milhança, uma tradição anterior, da qual se pode ver
fazer bem. O que conta, com efeito, não é o resultado, traços em certos fragmentos de Crisipo e mesmo de Zenão.
sempre incerto, não é a eficácia, mas a intenção de fazer Parece, assim, que no estoicismo fazem parte da filosofia
bem 124 • O estoico age sempre "sob reserva", ao dizer a si não só discursos teóricos, mas também temas de exercício
mesmo: "Eu quero fazer isto se o destino o permitir". Se que devem ser praticados concretamente, caso se queira
o destino não o permite, buscará o êxito de outra maneira viver como um filósofo.
ou aceitará o destino, "querendo o que acontece".
É assim que a lógica não se limita a uma teoria abstrata
O estoico age sempre "sob reserva", mas age, toma parte do raciocínio, nem mesmo a exercícios escolares silogísticos,
na vida social e política. Esse também é um ponto muito mas haverá uma prática cotidiana da lógica aplicada aos
importante que o separa dos epicuristas, que se retiram, problemas da vida de todos os dias: a lógica aparecerá,
em princípio, de tudo o que pode causar preocupação. então, como um domínio do discurso interior. Isso será
Ele age não em seu próprio interesse material ou mesmo tanto mais necessário na medida em que, de acordo com
espiritual, mas de maneira desinteressada, a serviço da o intelectualismo socrático, os estoicos consideravam que
comunidade humana125 : as paixões humanas correspondem a um mau uso desse
Nenhuma escola tem mais bondade e doçura, nenhuma tem discurso interior, isto é, de erros de juízo e de raciocínio.
mais amor pelos homens, mais atenção pelo bem comum. O Será preciso vigiar os discursos para verificar se um juízo
fim que ela nos assinala é ser útil, ajudar os outros e ter de valor errado não se introduziu neles, acrescentando,
cuidado, não somente de si mesmo, mas de todos em geral e assim, à representação compreensiva algo de estranho.
de cada um em particular. Marco Aurélio aconselha que se faça, de alguma maneira,
uma definição "física" do objeto que se apresenta, isto é,
Os exercícios do acontecimento ou da coisa que provoca nossa paixão 126 :
Em consequência da perda da maior parte dos escritos "Para vê-la tal qual é na essência, nua e por inteiro distinta
dos fundadores da corrente, Zenão e Crisipo, temos, no no seu todo, e dizer, de si para consigo, o nome que a
caso do estoicismo, muito menos testemunhos sobre os designa". Com efeito, esse exercício consiste em conside-
exercícios espirituais praticados na escola do que no caso rar a realidade tal qual ela é, sem acrescentar-lhe juízos
do epicurismo. Os mais interessantes, os de Cícero, Fílon de valor inspirados pelas convenções, os preconceitos ou
de Alexandria, Sêneca, Epíteto e Marco Aurélio, são relati- as paixõesm:

124. Cf. id., ibid., pp. 220-224. 126. Marco Aurélio, III, 11; cf. acima p. 196, nota 122.
125. Sêneca, Da clemência, II, 3, 3. 127. Id., VI, 13.

198 199
A filosofia como modo de vida As escolas helenísticas

Essa púrpura [imperial] é pelo de uma ovelha tinto com o san- como uma lei fundamental da ordem universal, pois, final-
gue de um molusco. A união dos sexos é uma fricção de ventre mente, a física, como exercício espiritual, conduz o filóso-
com ejaculação, num espasmo de um líquido gosmento. fo a aceitar com amor os acontecimentos desejados pela
Razão imanente ao cosmos 130 •
Aqui o exercício lógico ligou-se de novo ao domínio da
física, pois essa definição se situa na perspectiva da natureza, Não se pode, contudo, apenas aceitar os acontecimentos
sem nenhuma consideração subjetiva e antropomórfica. É quando eles acontecem, mas é necessário preparar-se para
que a física estoica, não mais que a lógica, não é só uma eles. Uma das práticas espirituais estoicas mais famosas con-
teoria abstrata, mas um tema de exercício espiritual. sistia no "pré-exercício" (praemeditatio) dos males, digamos,
Para pôr em prática a física, um primeiro exercício no exercício preparatório para as experiências 131 • Trata-se
consistirá em reconhecer-se como parte do Todo, em de representar-se o avanço das dificuldades, os reveses da
elevar-se à consciência cósmica, em imergir na totalidade fortuna, os sofrimentos e a morte. Fílon de Alexandria132
do cosmos. Deve haver um esforço, quando se medita na dizia a esse respeito:
física estoica, para ver todas as coisas segundo o ponto de Não se curvem sob os golpes da sorte, mas calculem o avanço
vista da Razão universal e, por isso, se praticará o exercício dos ataques, pois, entre as coisas que acontecem sem que se
da imaginação, que consiste em ver todas as coisas por um queira; mesmo as mais penosas são atenuadas pela previsão,
olhar de longo alcance por sobre as coisas humanas 128 . quando o pensamento nada mais encontra de inesperado nos
Na mesma perspectiva, exercitar-se-á para ver em cada acontecimentos, mas embota a percepção, como se se tratasse
instante as coisas enquanto se metamorfoseiam129 : de coisas antigas e usadas.
De que modo se transformam todas as coisas umas nas outras? Esse exercício é tão complexo que essa descrição não
Procura um método de investigá-lo, presta atenção e trata permite entendê-lo. Ao praticá-lo, o filósofo não quer ape-
de exercitar-te nesse particular: nada contribui tanto para a nas abrandar o choque da realidade; ao penetrar bem nos
elevação dos sentimentos. ___ _ princípios fundamentais do estoicismo, quer restaurar em
Detém-te sobre cada ser sob teus olhos e reflete que já se está si mesmo a tranquilidade e a paz da alma. Não se pode
dissolvendo, já entrou numa transformação, por exemplo em ter medo de pensar no avanço dos acontecimentos que os
putrefação ou dispersão, ou na espécie de morte natural a outros homens consideram infaustos; é necessário sempre
cada um. pensar neles para convencer-se, antes de tudo, de que os
Essa visão da metamorfose universal conduzirá à medi-
130. Crisipo, in SW, t. li, § 912, fala do consentimento que dão os
tação sobre a morte, sempre iminente, mas que se aceitará sábios ao destino; Marco Aurélio, UI, 16, 3; VIII, 7.
131. Sobre esse exercício, cf. I. Hadot, Seneca... , pp. 60-61; P. Hadot,
128. Cf. adiante pp. 297-299. La Citadelle .. ., pp. 220-224.
129. Marco Aurélio, X, 11 e 18. 132. Fílon, Das leis especiais, li, 46.

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A filosofia como modo de vida As escolas helenísticas

males futuros nao são males, pms nao sao presentes, e, eles, um ato único, que era necessano praticar a cada
sobretudo, de que os acontecimentos, como a doença, a instante, em uma atenção (prosokhé) incessantemente re-
pobreza e a morte, que os outros homens percebem como novada atenção a si mesmo e ao momento presente. A
males, não são males, pois não depende~ de nós e não atitude fundamental do estoico é essa atenção contínua,
são da ordem da moralidade. O pensamento da morte imi- que é uma tensão constante, uma consciência, uma vigi-
nente transformará de maneira radical a maneira de agir, lância em cada instante. Graças a essa atenção, o filósofo
fazendo que se tome consciência do valor infinito de cada está sem cessar perfeitamente consciente, não só do que
instante 133 : "É necessário realizar cada ação da vida como faz, mas do que pensa - é a lógica vivida - , e do que é,
se fosse a última". isto é, de seu lugar no cosmos - é a física vivida. Essa
consciência de si é, antes de tudo, uma consciência moral;
Com o exercício de previsão dos males e da morte passa-se ela procura realizar a todo instante uma purificação e uma
impassivelmente da física praticada à ética praticada. Essa correção da intenção, recusa-se a cada instante a admitir
previsão está intimamente ligada à ação assim como o filó- outro motivo da ação além da vontade de fazer o bem.
sofo estoico a pratica. Quando age, ele prevê os obstáculos Contudo, essa consciência de si não é somente moral,
e nada acontece contra sua expectativa. Sua intenção moral também é cósmica e racional: o homem atento vive sem
permanece intacta, mesmo que smjam obstáculos 134 • cessar na presença da Razão universal imanente ao cosmos,
Acabamos de perceber, em uma filosofia pratiçada, os vendo todas as coisas na perspectiva dessa Razão e acei-
limites entre as partes da filosofia se ocultando. O exercício tando alegremente sua vontade.
da definição é, a um só tempo, lógico e físico; o pensa- A essa filosofia praticada, a esse exerCicw, ao mesmo
mento da morte ou o exercício de previsão das dificulda- tempo único e complexo, da sabedoria, os estoicos opõem
des, simultaneamente físico e ético. Misturando assim as o discurso teórico filosófico, formado de proposições, que
partes da filosofia, os estoicos queriam provavelmente compreende como partes distintas a lógica, a física e a ética.
responder a Aríston de Qufos; estoico da primeira geração, Eles querem dizer com isso que, quando se quer ensinar
que suprimia as partes física e lógica da filosofia para filosofia e convidar à sua prática, é necessário antes discor-
deixar subsistir apenas a ética135 • Para eles, Aríston tinha rer, isto é, expor a teoria física, a teoria lógica e a teoria
razão em considerar a filosofia uma prática, mas as partes ética num conjunto de proposições. Mas, quando se trata
lógica e física da filosofia não eram puramente teóricas; de exercer a sabedoria, isto é, de viver filosoficamente, tudo
correspondiam a uma filosofia vivida. A filosofia era, para o que foi enunciado separadamente no ensino deve agora
ser vivido e praticado de maneira inseparáveP 36 •
133. Marco Aurélio, II, 5, 2.
134. Cf. P. Hadot, La Citadelle.. . , pp. 216-220. 136. D. L., VII, 39 e 41. Cf. P. Hadot, "Les divisions des parties de
135. SW, I, Aríston, §§ 351-352. D. L., VI, 103. la philosophie dans l'Antiquité", in Museum Helveticum, 36: 201-223, 1979;

202 203
A filosofia como modo de vida As escolas helenísticas

Para eles é a mesma razão que atua na natureza (e na a hipótese de que o Sol e as estrelas são imóveis e de que
física), na comunidade humana (e na ética) e no pensamento os planetas giram em torno do Sol, cada um em torno de
individual (e na lógica). O ato único do filósofo preparando- seu eixo. Encontram-se em Estratão de Lampsaco, que
se para a sabedoria coincide com o ato _único da Razão professava uma física materialista, certas tentativas para uma
universal presente em todas as coisas e harmonizando-se física experimental, notadamente a propósito do vazio.
consigo mesma. Temos pouquíssimos testemunhos sobre a ética de modera-
ção das paixões preconizada pelos aristotélicos dessa época
e sobre sua atitude com relação à condução da vida139.
O aristotelismo

Os aristotélicos 137 da época helenística são sobretudo A academia platônica


sábios. Apenas Teofrasto, primeiro sucessor de Aristóteles,
parece ser, como seu mestre, ao mesmo tempo um contem- Por volta da metade do século III a.C., quando
plativo e um organizador de investigação, notadamente no Arquesilau torna-se chefe da escola, a Academia platônica
domínio de história natural. Em consequência disso, a es- realiza uma espécie de retorno à escolha de vida socrá-
cola parece ter-se especializado na investigação enciclopé- tica140. O discurso filosófico volta a ser essencialmente
dica e sobretudo na erudição histórica e literária: biografia, crítico, interrogativo e aporético. Eis por que Arquesilau
etnologia, caracterologia, em investigações físicas, na elabo- nada escreve. Seu método de ensino consiste em refutar
ração da lógica e em exercícios retóricos, uma obra imen- por sua argumentação a tese que os ouvintes são convida-
sa da qual conservamos apenas uns poucos fragmentos. O dos a propor-lhe 141 . Qualquer que seja a tese, ele se dedi-
astrônomo Aristarco de Samos138 (século III a.C.) formula ca a demonstrar que a tese oposta também pode ser
provada, o que mostra a impossibilidade de faz~r afirmações
"Philosophie, discours philosophique et divisions de la philosophie chez que atinjam a certeza e a verdade absolutas. E necessário,
les sto1ciens", in Reuue Internationale de-.Philosophie, 45: 205-219, 1991, e "La
portanto, suspender todo juízo, o que significa coibir toda
philosophie éthique: une éthique ou une pratique", in Problemes de morale
antique, Éd. P. Demont, Faculté des Lettres, Université de Picardie, 1991, investigação e toda atividade crítica. Retorno ao socratismo,
pp. 7-37. Vejam-se as observações de K Ierodiakonou, "The Stoic Division of portanto, pois Sócrates dizia, na Defesa, que o bem supremo,
Philosophy", in Phronesis, 38: 59-61, 1993 que, parece-me, apenas confirma a seus olhos, era pôr tudo em exame, e que uma vida que
minha interpretação.
137. Os fragmentos foram reunidos por F. Wehrli, Die Schule der Aristoteles, não se entregasse a essa investigação não mereceria ser vivi-
Dez fascículos e dez suplementos, Bãle, 1944-1959, 1974-1978. J. P. Lynch,
Aristotle's Schoo~ Berkeley, 1972, estudo de conjunto: J. Moreau, Aristote et son 139. Sobre essa questão, cf. I Hadot, Seneca ... , pp. 40-45.
école, Paris, 1962. 140. A.-M. Ioppolo Opinione e scienza, Napoli, 1986, pp. 44-50; 53-54
138. Cf. R. Goulet, "Aristarque de Sarnas", in Dictionnaire des philosophes (citado Ioppolo nas notas seguintes).
antiques, t. 1, p. 356. 141. Cícero, Dos termos extremos ... , li, 1, 1-4.

204 205
A filosofia como modo de vida As escolas helenísticas

da, a felicidade consistindo, assim, nessa busca que jamais encontrar a espontaneidade de tendências naturais ante-
findava 142 • Mas também, finalmente, retorno à definição riores a toda especulação: caso se sigam essas tendências,
platônica de filosofia, como consciência de nada saber e às quais é racional ceder146, a ação moral será justificada.
de ser privado de sabedoria, esta pertencente somente aos Na Antiguidade, concordava-se em reconhecer a extraor-
deuses 143 • Aos olhos de Arquesilau, Platão compreendeu dinária bondade de Arquesilau, a delicadeza com a qual
que os homens não podem chegar ao saber absoluto. Co- praticava a beneficência 147 .
mo Sócrates, Arquesilau nada ensina, mas, também como A Academia, com os sucessores de Arquesilau, Carneada
Sócrates, perturba e fascina seus ouvintes, ensinando-os a e Fílon de Larissa, evoluiu na direção do probabilismo.
libertar-se de seus preconceitos, convidando-os, como Admite-se que, se não se pode alcançar a verdade, pode-
Sócrates, a questionar-se 144 • se ao menos atingir o verossímil, isto é, soluções que se
Pode-se, não obstante, descobrir uma diferença em pode racionalmente aceitar tanto no domínio científico
relação ao socratismo. Sócrates e Arquesilau denunciam o como, sobretudo, no da prática moraP 48 • Essa tendência
falso saber, as falsas certezas. Mas Sócrates criticava as opi- filosófica teve grande influência sobre a filosofia moderna
niões e os preconceitos de "filósofos", que eram, para ele, graças ao imenso sucesso, no Renascimento e nos tempos
modernos, das obras filosóficas de Cícero. Põe-se em obra
os sofistas, e de não filósofos. Em Arquesilau, a crítica se
essa filosofia acadêmica que dá ao indivíduo a liberdade de
exerce antes de tudo contra o falso saber e as falsas certe-
escolher, em cada caso concreto, a atitude que ele julgue
zas dos filósofos dogmáticos. A filosofia consiste, para ele,
a melhor conforme as circunstâncias, lllesmo que inspira-
em mostrar as contradições de um discurso filosófico, como
da pelo estoicismo ou pelo epicurismo ou outra filosofia,
o dos estoicos e o dos epicuristas, que pretende atingir
sem impor-lhe· a priori uma conduta a seguir, ditada por
certezas sobre as coisas divinas e humanas. A vida moral
princípios anteriormente fixados. Cícero 149 elogia seguidas
não tem necessidade de ser fundada em princípios e jus-
vezes a liberdade do acadêmico, que não é vinculada a
tificada por um discurso filos()fico. Como Sócrates e Platão, nenhum sistema:
Arquesilau admite que existe, no homem, um desejo fun-
damental e original do bem e uma tendência natural para Nós outros, os acadêmicos, vivemos o dia a dia (isto é, julgamos
agir de maneira boa145 • Ao purificar-se de toda opinião, em função do caso particular) [. .. ]Eis por que somos livres.
ao suspender totalmente seu juízo, o filósofo tornará a Desfrutamos da maior liberdade, somos mais independentes; nosso
poder de julgar não conhece entraves, não temos de obedecer a
142. Platão, Defesa, 23 b, 38 a, 41 b-c.
143. Cf. C. Lévy, "La nouvelle Académie a-t-elle été anti-platonicienne?", 146. Id, pp. 135-146.
in Contre Platon, l. Le platonisme dévoilé, pp. 144-149 e Ioppolo, p. 49. 147. Sêneca, Sobre os benfeitores, II, I O, l.
144. Id., pp. 162-165. 148. Ioppolo, pp. 203-209.
145. Id., p. 139, citando Plutarco, Contra Calotes, 1122 c-e. 149. Cícero, Tusculanas, V, 11, 33; Lúculo, 3, 7-8.

206 207
A filosofia como modo de vida As escolas helenísticas

nenhuma prescrição, a nenhuma ordem, e até diria que nenhu- apenas meios, fragmentários e passageiros, utilizados "no
ma obrigação se nos impõe de defender uma causa qualquer. dia a dia", em função de sua maior ou menor eficácia na
4
prática concreta da vida filosófica.
A filosofia aparece, aqui, essencialmente como uma ativi-
dade de escolha e de decisão pela qual o indivíduo assume
toda a responsabilidade 150 • É ele que escolhe o que convém
O ceticismo
à sua maneira de viver, nos diferentes discursos filosóficos
que lhe são propostos. As opções morais encontram sua
Com o ceticismo 15\ a distinção entre filosofia e discurso
justificação em si mesmas, independentemente de hipóteses
filosófico chega a seu extremo, pois, como mostrou com
metafísicas construídas pelos discursos filosóficos, do mesmo
propriedade A.:J. Voelke 155 e como tomaremos a afirmar,
modo que a vontade humana é, também, independente de
o discurso filosófico cético finda por sua própria autossu-
causas exteriores e encontra sua causa em si mesma 151 •
pressão, por não dar lugar a um modo de vida e porque
Na Academia de Arquesilau e de Cameada, da qual Cícero se quer, além disso, não filosófico.
mas também filósofos ainda mais tardios como Plutarco 152 e A filosofia cética, isto é, o modo de vida, a escolha
Favorino (século li d.C.) são adeptos, a distinção entre o de vida dos céticos, é a da paz, da tranquilidade da alma.
discurso filosófico e a filosofia é particularmente nítida. A Como todos os outros filósofos da época helenística, o
filosofia é, antes de tudo, uma arte de viver153 • Ou, como cético fornece, "por amor aos homens" 156, um diagnóstico
quer Arquesilau, os discursos filosóficos teóricos não podem sobre as causas da infelicidade dos homens e propõe um
fundar nem justificar essa arte de viver, e apenas um discurso remédio para o sofrimento, uma terapêutica de cura157 :
crítico pode nela se introduzir, ou, como pensam Carneada
e Cícero, os discursos filosóficos teóricos e dogmáticos são Aquele que acredita que uma coisa é bela ou feia por natureza
não deixa de ser inquieto. Quando vem a faltar-lhe o que ele
150. Sobre o ecletismo, cf. I. Hadot, "Du bom et du mauvais usage du crê ser um bem, ele se imagina padecendo os piores tormentos
terme 'écletisme' dans l'histoire-de-la- philosophie antique", in Herméneu- e se lança à perseguição do que crê ser um bem. Quando já o
tique et ontologie. Hommage à Pierre Aubenque, Éd. R. Brague J.-F. Courtine,
Paris, 1990, pp. 147-162. Sobre o ecletismo na época das Luzes, concebido
possui, enfim, eis que submerge em múltiplas inquietações que
como atitude que consiste em pensar por si mesmo, sem obedecer às
"autoridades", cf. H. Holzhey, "Der Philosoph für die Welt? Eine Chimàre 154. Principal fonte: a obra de Sexto Empírico. Encontrar-se-ao os prin-
der deutschen Auflklàrung?", in Esoterik und Exoterik der Philosophie, Ed. H. cipais textos reunidos in CEuvres choisies de Sextus Empiricus, trad. J. Grenier
Holzhey, Bâle, 1977, p. 132. et G. Goron, Paris, 1948, e J.-P. Dumont, Les Sceptiques, textes choisis, Paris,
151. Cícero, Do destino, ll, 24-25. 1966 (citado Dumont nas notas seguintes).
152. Cf. D. Babut, "Du scepticisme au dépassement de la raison. Philo- 155. A.:J. Voelke, La philosophie comme thérapie de l'âme, pp. 107-126.
sophie et foi religieuse chez Plutarque", in Parerga. Choix d'articles de D. Babut. 156. Sexto Empírico, Hipotiposes, 111, 280, Dumont, p. 212. Á.:J. Voelke
Lyon, 1994, pp. 549-581. comparou essa "filantropia" à dos médicos antigos, op. cit., p. 109.
153. Plutarco, Questões de Convivas, I, 2, 613 b. 157. Sexto Empírico, Hipotiposes, I, 27-30, Dumont, pp. 13-14.

208 209
A filosofia como modo de vida As escolas helenísticas

excitam nele uma busca sem medida e, pelo medo de um rever- contradições das percepções dos sentidos e das crenças:
so da fortuna, Jaz de tudo para que não lhe seja arrebatado diversidade de costume e de práticas religiosas; diversidade
o que acredita ser um bem. Enquanto aquele que não se pro-_ de reações diante de fenômenos raros ou, ao contrário,
nuncia sobre o que é naturalmente bom nem sobre o que e frequentes; diversidade de percepções segundo os órgãos
naturalmente mau não foge de nada e não se consome em vãs de percepção nos animais e nos homens, ou conforme as
perseguições. Também conhece ele a quietude. . circunstâncias e as disposições interiores dos indivíduos,
Em suma, aconteceu ao cético o que, se diz, aconteceu ao pzntor ou ainda conforme se considere as coisas em grande ou
Apeles. Um dia, ao pintar um cavalo e querendo representar pequena escala, de perto ou de longe, sob esse ou aquele
em seu quadro o suor do animal, ele de~iste, furioso, ~ jo~a ângulo; mistura e relação de todas as coisas com todas as
sobre sua pintura a esponja com a quallzmpava se~s ~zncezs, coisas, donde a impossibilidade de percebê-las em estado
o que teve por efeito deixar um traço de cor 1ue_ zmzta~a o puro; ilusões dos sentidos. Outro cético, Agripa159 , posterior
suor do cavalo. Os céticos, também, esperam atzngzr a quzetu- a Enesídemo, propunha cinco outros argumentos contra os
de divididos pelo julgamento da contradição entre o que _nos lógicos dogmáticos: os filósofos se contradizem; para provar
aparece e as concepções do espírito e, caso ~ão alcancem zsso, alguma coisa é necessário ir ao infinito ou mesmo fazer
suspendem seu juízo. Por felicidade, a quzetude acompanha um círculo vicioso, ou postular sem fundamento princípios
a suspensão do juízo como a sombra o corpo. indemonstráveis; enfim, tudo é relativo, todas as coisas se
supõem mutuamente, e é impossível tanto conhecê-las em
Do mesmo modo que Apeles consegue realizar a perfei- seu co~unto como em seus detalhes.
ção da arte renunciando à arte, o cético consegue re_alizar
a obra de arte filosófica, isto é, a paz da alma, renunnando O discurso filosófico conduz à epokhé, isto é, à suspensão
à filosofia, entendida como discurso filosófico. da adesão aos discursos filosóficos dogmáticos, e chega até a
compreender o próprio discurso cético que, como um pur-
Com efeito, é necessário um discurso filosófico para gativo, evacua-se em seus humores dos quais provocou a
eliminar o discurso filosófico. Conhecemos o discurso evacuação160 • A.J. Voelke comparou com razão essa atitude
cético graças a Sexto Empírico, médico que escrevia no com a de Wittgenstein, rejeitando, como uma escada que se
fim do século li d.C. e nos deu preciosas indicações sobre tomou inútil, no fim do Tractatus, as proposições do Tractatus,
a história do movimento cético. Os céticos consideravam e opondo a filosofia como patologia à filosofia como cura161 •
Pirro o modelo do modo de vida cético. Mas parece que O que resta, então, depois da eliminação do discurso filosó-
a argumentação técnica do discurso filosófico cético só foi fico pelo discurso filosófico? Um modo de vida que será,
158
formulada mais tarde, talvez no século I a.C.: Enesídemo
enumerava dez tipos de argumento que justificam a sus- 159. D. L., IX, 88.
pensão de todo juízo. Eles se fundam na diversidade das 160. Sexto Empírico, Hipotiposes, I, 206; II, 188; A.-:J. Voelke, op. cit.,
pp. 123 ss.
158. Hipotiposes, I, 36-39, Dumont, p. 49; D. L., IX, 79-88. 161. Id., ibid., p. 116.

210 211
A filosofia como modo de vida

então, um modo de vida não filosófico. É a vida162 ela mesma,


isto é a vida de todos os dias, a vida que levam todos os
hom~ns, é essa vida que será a regra de vida do cético: Capítulo 8
utilizar tudo simplesmente, como os leigos, seus recursos
naturais seus sentidos e suas inteligências, conformar-se aos
costum~s, às leis, às instituições de seu país; seguir suas
disposições e tendências naturais: comer ~ua~do s: t~m fis escolas filosóficas
fome, beber quando se tem sede. Retorno 1~genuo a sim-
plicidade? Talvez, mas de um filósofo_ ~ue e ~udo menos
na era imperial
ingênuo. Pois está persuadido de que e 1mpossiVel saber _se
essa coisa ou esse acontecimento é melhor que outra cmsa
ou outro acontecimento, graças à suspensão de todo juízo
de valor sobre as coisas, suspensão que diminuirá, caso seja Características gerais
levado a sofrê-las, suas dores e seus sofrimentos, evi~n~o
com isso acrescentar à dor ou ao revés da fortuna a 1de1a As novas escolas
torturante que se trata de um mal. Ele se limitará, em todas
as coisas, a descrever o que experimenta, o que lhe apare- Durante o período helenístico e no início da conquista
romana, as instituições escolares filosóficas estiveram, como
ce sem nada acrescentar ao que são ou ao que valem as
coisas· contenta-se em descrever a representação sensível vimos, concentradas em Atenas. Ora, todas, salvo a dos
que é' a sua e em enunciar o estado de sua sensibilidade, epicuristas, desapareceram no fim da -República romana
sem a elas acrescentar seu parecer163 • Como os epicuristas ou no início do Império em consequência de um con-
ou os estoicos, o cético utilizará, então, para renovar a todo junto muito complexo de circunstâncias históricas, entre
momento sua escolha de Vld_a_ê. .~.ormulas eVI"dent es 164,
curtas C' as quais a destruição de Atenas por Silas (87 a.C.) talvez
por exemplo "não mais isto dÕ que aquilo", "talvez", "tudo seja a mais importante. A partir do século I a.C., abrem-
é indeterminado", "tudo escapa à compreensão", "a todo se escolas filosóficas em ~umerosas cidades do Império
argumento opõe um argumento igual", "eu _s~spendo meu romano, notadamente na Asia e sobretudo em Alexandria
1
juízo". O modo de vida cético exige exerocws do pe~sa­ e Roma . Isso resulta em uma transformação profunda nos
mento e da vontade. Pode-se dizer que é a escolha de VIda métodos de ensino de filosofia. Há sempre quatro grandes
filosófica de um modo de vida não filosófico. escolas, tomando desta vez o termo "escola" no sentido
de tendência doutrinai, o platonismo, o aristotelismo, o
162. Sexto Empírico, Contra os moralistas, 141-166, Dumont, pp. 206-212.
163. Hipotiposes, I, 15 e 197 Dumont, pp. 12 e 43.
l. Cf. J.-P. Lynch, Aristotle's School, pp. 154-207;]. Glucker, Antiochus and
164. Hipotiposes, I, 188-205, Dumont, pp. 41-48. the Late Academy, pp. 373-379.

212 213
A filosofia como modo de vida As escolas filosóficas na era imperial

estmosmo e o epicurismo, acompanhadas de dois fen~­ tende cada vez mais a generalizar-se na era imperial. Esse
menos mais complexos, o ceticismo e o cinismo. A partir movimento encontra seu apogeu e sua consagração quando
dos séculos III e IV, estoicismo, epicurismo e ceticismo o imperador Marco Aurélio funda, em 176 a.C., quatro
vão, então, pouco a pouco quase desaparecer totalmente, cátedras imperiais, remuneradas pelo Tesouro imperial, nas
para dar lugar ao que se denomina o neoplatonismo, quais serão ensinadas as quatro doutrinas tradicionais: pla-
que é, em certo sentido, uma fusão do aristotelismo e do tonismo, aristotelismo, epicurismo e estoicismo. As cátedras
platonismo. Essa tendência começara a esboçar-se desde criadas por Marco Aurélio não tiveram nenhuma relação
o início do século I, na Academia platônica, com Antíoco de continuidade com as antigas instituições atenienses,
de Ascalon 2, mas só foi definitivamente admitida a partir mas são, por parte do imperador, uma tentativa de fazer
do século III d.C., com Porfírio e em seguida com o neo- com que Atenas seja novamente um centro de cultura
platonismo pós-porfiriand. filosófica. E, de fato, os estudantes afluíram novamente
O ensino de doutrinas filosóficas não é mais ministrado para a antiga cidade. Há certa probabilidade de que a
nas instituições escolares que mantiveram uma relação de cátedra aristotélica de Atenas tenha tido, no fim do século
continuidade com seu fundador. Em cada cidade impor- li, um titular célebre, o grande comentador de Aristóteles,
tante, há instituições nas quais se pode aprender o ~ue Alexandre de Afrodísia6 •
é o platonismo, o aristotelismo, o estoicismo ou o. epicu- Ao lado desses funcionários municipais ou imperiais,
rismo. Assiste-se ao término de um processo que tivera o houve sempre professores particulares. de fUosofia, que
início de seu esboço no fim da época helenística: a funcio- abriam uma escola, por vezes sem sucessor, nessa ou na-
nalização do ensino de filosofia4 • O movimento começou quela cidade do Império, por exemplo, Amônia Sacas em
na Atenas do século li a.C., quando a instituição oficial
Alexandria, Plotino em Roma, Jâmblico na Síria. É necessá-
da efebia ateniense pôs em seu programa de ensino aulas
rio ter claro que a escola platônica de Atenas, a de Plutarco
de filosofia escolhidas provavelmente por representantes de
5 de Atenas, de Siriano e de Proclo, do século IV ao VI,
uma ou de outra das quatFo-grandes correntes . Por essa
é uma instituição privada, sustentada pelos subsídios de
participação em um serviço público, a cidade dava possi-
ricos pagãos, que nada teve a ver com a cátedra imperial
velmente uma remuneração a seus filósofos. Seja como for,
de platonismo fundada por Marco Aurélio 7• Essa escola
um ensino filosófico municipal remunerado pelas cidades
platônica de Atenas chega a ressuscitar artificialmente a
2. Cícero, Novos livros acadêmicos, 4, 15-12, 43.
3. Cf. I. Hadot, Le probleme du néoplatonisme alexandrin. Hiérocles et Sim- 6. R. Goulet e M. Aouad, "Alexandros d'Aphrodisias", in Dictionnaire
des philosophes ... , t. I, pp. 125-126; P. Thillet, "Introduction" a Alexandre de
plicius, Paris, 1978, pp. 73-76. , . .
4. Cf. id., Arts libéraux et philosophie dans la pensee anttque. Pans, 1984, Mrodísia, Traité du Destin, Paris, 1984, pp. XLIX-L.
, 7. J.~P. Lynch, Aristotle's School, pp. 177-189. I. Hadot, Le probleme du
pp. 215-261. neoplatonzsme... , pp. 9-10.
5. Id., ibid., pp. 217-218.

214 215
A filosofia como modo de vida As escolas filosóficas na era imperial

organização da antiga Academia e a restabelecer proprie- Em primeiro lugar, os acadêmicos, como Arquesilau ou
dades análogas às da escola de Platão, que os escolarcas Cameada, e os céticos consagraram a maior parte de seu ensi-
transmitem uns aos outros. Eles se nomeiam como outro- no a criticar as ideias, mas também, frequentemente, os
ra os "diádocos", os sucessores, e os membros da escola textos das escolas dogmáticas. A discussão de texto tornara-
esforçam-se para viver segundo o modo de vida pitagó- se, uma parte do ensino. Além disso, com o avanço dos
rico que era, pensavam eles, o dos antigos acadêmicos. séculos; os textos dos fundadores das escolas tornaram-se
Tudo isso é uma recriação, não a continuação de uma mais difíceis de ser compreendidos pelos aprendizes de
tradição que era viva e ininterrupta. filósofos, e, sobretudo, tornaremos a repetir, representava-se
agora a verdade como fidelidade à tradição recebida das
O fenômeno da dispersão de escolas filosóficas teve
"autoridades".
consequências para o próprio ensino. Pode-se falar, sem
dúvida, em uma espécie de democratização, com as vanta- Nessa atmosfera escolar e professora!, será muito fre-
gens e os riscos que essa situação pode comportar. Onde quente a tendência em satisfazer-se com o conhecimento dos
quer que se encontre no Império, não é mais necessário dogmas das quatro grandes escolas, sem se preocupar em
viajar muito longe, doravante, para iniciar-se nessa ou na- adquirir uma verdadeira formação pessoal. Os aprendizes
quela filosofia. Mas essas múltiplas escolas já não têm, em de filósofos terão muitas vezes a tendência de interessar-
sua maior parte, uma relação viva de continuidade com as se mais pelo aperfeiçoamento de sua cultura geral do
grandes ancestrais: suas bibliotecas já não contêm os textos que pela escolha de vida existencial que a filosofia supõe.
das aulas e das discussões dos diferentes chefes de escolas, Não obstante, muitos testemunhos dão a entender que a
que eram comunicados apenas aos adeptos, e já não há filosofia continua, nessa época, a ser concebida como um
uma cadeia ininterrupta de chefes de escola. esforço de progresso espiritual, como um meio de trans-
formação interior.
É necessário, agora, voltar às fontes. O ensino vai
consistir em explicar os textos das "autoridades", por
exemplo os diálogos de Platão, os tratados de Aristóteles, Os méwdos de ensino: a era do comentário
as obras de Crisipo e de seus sucessores. Enquanto na Possuímos numerosos testemunhos que nos revelam
época precedente a atividade escolar consistia, antes de essa mudança radical na maneira de ensinar que deve ter
tudo, em formar os alunos nos métodos de pensamento principiado a esboçar-se no fim do século II a.C.: sabemos,
e de argumentação, e os membros importantes da escola por exemplo, que Crasso, um político romano, teria lido
frequentemente tinham opiniões muito diferentes, nessa em Atenas em 110 a.C. o Górgias de Platão sob a direção
época o ensino de uma ortodoxia torna-se essencial. A do filósofo acadêmico Carmadas 8 • É necessário contudo
liberdade de discussão, que sempre existira, é muito mais ' '
restrita. As razões dessa transformação são múltiplas. 8. Cícero, Do orador, I, 11, 47.

216 217
A filosofia como modo de vida As escolas filosóficas na era imperial

especificar que o gênero literário do comentário filosófico diz Tauro, trata-se de tornar-se melhores e mais temperan-
era muito antigo. O platônico Crantor teria composto, tes. Essa perspectiva não parece, contudo, entusiasmar
por volta de 300 a.C., um comentário sobre o Timeu de particularmente os ouvintes.
Platão9 • A mudança radical que se opera por volta do sé-
Muitos outros testemunhos nos confirmam o fato de
culo I a.C. consiste no fato de que, doravante, é o próprio
que o curso de filosofia é, doravante, consagrado antes
ensino de filosofia que, no essencial, toma a forma de um
de tudo à leitura e à exegese dos textos. Por exemplo, os
comentário de texto. alunos de Epíteto, o estoico, comentam Crisipo 11 . No curso
Temos sobre isso um precioso testemunho proveniente do neoplatônico Plotino, a aula tinha início pela leitura dos
de um escritor latino 10 do século li d.C. Ele nos narra comentadores de Aristóteles e de Platão, e depois Plotino
que o platônico Tauro, que ensinava em Atenas nessa propunha sua exegese do texto comentado 12 •
época, evocava com nostalgia a disciplina que reinava na No período precedente, o ensino situava-se quase
comunidade pitagórica primitiva, opondo-a à atitude dos totalmente na esfera da oralidade: mestre e discípulos
discípulos modernos, que, dizia ele, "queriam decidir eles dialogavam; o filósofo falava, os discípulos falavam e
mesmos a ordem na qual aprenderiam filosofia": exercitavam-se para falar. Pode-se dizer que, de alguma ma-
neira, aprendia-se a viver aprendendo-se a falar. Doravante,
Um arde para começar pelo Banquete de Platão por causa da aprende-se filosofia pela leitura de textos, mas não se trata
orgia de Alcibíades; outro pelo Fedro por causa do discurso de de uma leitura solitária: os cursos de filosofia consistem
Lísias. Há mesmo quem queira ler Platão não para tornar sua em exercícios orais de explicação de textos escritos. Mas,
vida melhor, mas para apurar sua língua e seu estilo, não para fato muito característico, em sua quase totalidade as obras
tornar-se mais temperante, mas para adquirir mais charme. filosóficas, sobretudo a partir do século III d.C., são o re-
Portanto, ensinar filosofia é, para os platônicos, ler gistro escrito, seja pelo mestre, seja por um discípulo, de
um comentário oral de texto, ou, ao menos, como muitos
Platão e, acrescentemos, para os-aristotélicos, ler Aristóteles,
tratados de Plotino, dissertações sobre "questões" levantadas
para os estoicos, ler Crisipo, para os epicuristas, ler Epicuro. pelo texto de Platão.
Percebemos igualmente nesse relato que, na escola de
Tauro, quando se lê Platão, se o lê em certa ordem, que Já não se discutem os próprios problemas, já não se
corresponde ao programa de ensino, isto é, às etapas do fala diretamente das coisas, mas do que Platão, Aristóteles
progresso espiritual. Com efeito, graças a essa leitura, nos
11. Epíteto, Manual, § 49; alusões aos comentários de textos durante
o curso, Conversações, I, 10, 8; I, 26, 13.
9. Cf. Proclo, Comentário sobre o Timeu, t. I, p. 76, 1 Diehl, trad. Festu- 12. Porfírio, Vida de Plotino, 14, lO, in Porfírio, Vie de Plotin, T. II, trad.
giere, t. I, p. 1ll. et comm. par L. Brisson, Paris, 1992, p. 155, e o estudo de M.-0. Goulet-
10. Aulo Célio, Noites Áticas, I, 9, 8. Cazé, t. I, pp. 262-264.

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A filosofia como modo de vida As escolas filosóficas na era imperial

ou Crisipo disseram dos problemas e das coisas. A questão revelada. De uma parte, como já pensavam os estoicos 14,
"O mundo é eterno?" substituí-se pela questão exegética existem em todos os homens noções inatas, postas neles
"Pode-se admitir que Platão considera o mundo eterno, se pela Natureza ou pela Razão universal: essas centelhas do
ele admite um artífice do mundo no Ti meu?". Tratando-se lógos permitem um primeiro conhecimento das verdades
essa questão posta sob forma exegética, discutir-se-á, final- fundamentais que o discurso filosófico se esforçará para
mente, a questão básica, fazendo que os textos platônicos, desenvolver e elevar a um nível científico. Mas a essa reve-
aristotélicos ou outros digam o que se quer que digam. lação natural se acresce aquilo em que os gregos sempre
acreditaram: as revelações feitas pelos deuses a certos ho-
O essencial é, doravante, sempre tomar seu ponto de mens inspirados, de preferência na origem de diferentes
partida em um texto. M.-D. Chenu13 definiu excelentemente povos, operantes em legisladores, em poetas e finalmente
a escolástica da Idade Média como uma "forma racional de em filósofos como Pitágoras. Hesíodo relata em sua Teogo-
pensamento que se elabora consciente e voluntariamente a nia o que lhe disseram as Musas. Nas origens, segundo o
partir de um texto tido como autoritativo". Caso se aceite Timeu de Platão 15 , Palas Atena revelou aos primeiros ate-
essa definição, pode-se dizer que o discurso filosófico, a nienses as ciências divinas: a adivinhação, a medicina.
partir do século I a.C., começa a tornar-se uma escolástica Procura-se sempre remontar às origens da tradição, de
da qual a escolástica da Idade Média será a herdeira. Vi- Platão a Pitágoras, de Pitágoras a Orfeu. Ao lado dessas
mos que, sob certo ponto de vista, essa época assiste ao revelações, devem-se ter em conta também os oráculos
nascimento da era dos professores. dos deuses, proclamados de diferentes maneiras em diferen-
É também a era dos manuais e dos resumos, destinados tes santuários, notadamente os de Delfos, sabedoria antiga,
seja a servir de base a uma exposição escolar oral, seja a mas também os oráculos mais recentes, como os de Dídimo
iniciar os estudantes e talvez o grande público nas doutrinas ou os de Claros 16 • E buscam-se também as revelações feitas
de um filósofo. Possuímos, por exemplo, um Platão e sua pelos bárbaros, pelos judeus, pelos egípcios, pelos assírios
doutrina, obra do célebre _Iet~~ latino Apuleío, uma Lição ou pelos habitantes da Índia. Os Oráculos caldaicos parecem
sobre as doutrinas de Platão, composta por Alcínoo, um Resumo ter sido escritos e apresentados como uma revelação no
(dos dogmas das diversas escolas), de Ária Dídimo. século li d.C. Os neoplatônicos consideravam-nos uma
Escritura sagrada. Quanto mais uma doutrina filosófica ou
Em certo sentido, pode-se dizer que o discurso filosó-
religiosa é antiga, mais próxima está do estado primitivo
fico dessa época, sobretudo sob a forma da qual se reves-
te no neoplatonísmo, considera finalmente a verdade como 14. D. L., VII, 53-54.
15. Timeu, 24 c.
16. Cf. L. Robert, 'Trois oracles de la Théosophie et un prophete d'Apollon",
13. M.-D. Chenu, Introduction à l'étude de saint Thomas d'Aquin, Paris, in Académie des inscriptions et belles-lettres, comptes rendus de l'année 1968, pp.
Vrin, 1954, p. 55. 568-599; "Un oracle gravé à Oinoanda", ibid., année 1971, pp. 597-619.

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A filosofia como modo de vida As escolas filosóficas na era impe1ial

da humanidade, no qual a Razão ainda se fazia presente alunos por explicarem os textos apenas para aparecer, di-
em toda a sua pureza, e é mais verdadeira e venerável. A zendo-lhes: "Antes de exaltar-me, quando alguém me pede
tradição histórica é a norma da verdade; verdade e tradi- que comente Crisipo, eu me ruborizo se não posso mostrar
ção, razão e autoridade se identificam. Um polemista uma conduta que se assemelhe a seus ensinamentos e a
anticristão, Celso, intitulará sua obra O Verdadeiro Lógos, eles se harmonize".
querendo dizer com isso "Norma antiga", "Verdadeira
Tradição". A investigação da verdade pode consistir apenas Segundo Plutarco, Platão e Aristóteles faziam culminar
na exegese de um dado preexistente e revelado. A esco- a filosofia numa "epóptica" 19 , isto é, como nos mistérios,
lástica dessa época há de esforçar-se para conciliar todas na revelação suprema da realidade transcendente. Parece
essas autoridades, para extrair disso uma espécie de siste- que desde o início do século II d.C., e vários testemunhos
ma geral de filosofia 17 . no-lo provam 20 , a filosofia foi concebida como um itinerá-
rio espiritual ascendente, que corresponde a uma hierarquia
A escolha de vida das partes da filosofia. A ética assegura a purificação inicial da
alma; a física revela que o mundo tem uma causa trans-
Ensina-se a filosofia comentando textos e, especifiquemos,
cendente e induz, assim, a que se estudem as realidades
comentando-os de uma maneira ao mesmo tempo muito
incorpóreas; a metafísica ou teologia, denominada também
técnica e muito alegórica, mas - e aqui tornamos a en-
epóptica - pois ela é, como nos mistérios, o termo
contrar a concepção tradicional de filosofia -, finalmente,
da iniciação - leva finalmente à contemplação de Deus.
como dizia o filósofo Tauro, para tomar-nos "melhores e
Na perspectiva do exercício do comentário_será necessário,
mais temperantes". Ensinar filosofia, mesmo lendo e co-
para percorrer esse itinerário espiritual, ler em certa ordem
mentando os textos, é, simultaneamente, ensinar um modo
os textos a comentar.
de vida e praticá-lo. Considerado formalmente, em si mes-
mo, o exercício do comentário já é, assim como o era o Para quem é partidário de Platão, deve-se principiar
exercício da dialética, um exercício formador, na medida pelos diálogos morais, sobretudo por Alcibíades, que trata
em que é um exercício da razão, um convite à modéstia, do conhecimento de si, e pelo Fédon, que convida a sepa-
um elemento da vida contemplativa. Mas, além disso, o rar-se do corpo; continuar pelos diálogos físicos, como o
conteúdo dos textos comentados, quer se trate de textos Timeu, para aprender a separar-se do mundo sensível, e
de Platão, Aristóteles, Crisipo ou Epicuro, convida a uma
transformação da vida. O estoico Epiteto 18 repreenderá seus 19. De epoptéia (contemplação dos misté1ios) e epoptikós (aquilo que
concerne ao mais elevado grau de iniciação, isto é, a contemplação); optei
17. Cf. P. Hadot, "Thélogie, exégese, révélation, écriture dans la philo- por transliterar a palavra grega [N. do T.].
sophie grecque", in Les Régles de l'interprétation, Éd. par M. Tardieu, Paris, 20. Plutarco, Ísis e Osíris, 382 d. Cf. P. Hadot, "La division des parties
1987, pp. 13-34. de la philosophie dans l'Antiquité", in Museum Helveticum, 36: 218-221, 1979
18. Conversações, III, 21-23; Manual, § 49. (bibliografia).

222 223
A filosofia como modo de vida As escolas filosóficas na era imperial

elevar-se enfim aos diálogos teológicos, como o Parmênides as palavras finais que Simplício, exegeta neoplatônico
ou o Filebo, para descobrir o Uno e o Bem. Eis por que de Aristóteles e de Epíteto, pôs no fim de alguns de
quando Porfírio, aluno de Plotino, edita os tratados de seus comentários e que sempre enunciam o benefício
seu mestre, até então só acessíveis aos discípulos confirma- espiritual que se pode extrair da exegese deste ou da-
dos, ele não os apresenta segundo sua ordem cronológica quele escrito, por exemplo a grandeza de alma, lendo o
de aparição, mas segundo as etapas do progresso espiri- tratado Do céu de Aristóteles, ou a retificação da razão,
tual: a primeira Eneada, isto é, os nove primeiros tratados, lendo o Manual de Epíteto.
reúne os escritos de caráter ético, a segunda e terceira
O antigo costume que fazia dialogar mestre e alunos
Eneadas referem-se ao mundo sensível e ao que nele cor-
no decorrer da aula, presente tanto na escola platônica
responde à parte física; a quarta, a quinta e a sexta Eneadas
como na aristotélica, parece ter sido mantido nas escolas
têm por objeto as divinas: a alma, o Intelecto e o Uno,
filosóficas do fim da Antiguidade, à margem do exercício
e correspondem à epóptica. As questões de exegese pla-
principal que era o comentário. Por exemplo, o texto que
tônica tratadas por Plotino nas diferentes Eneadas corres-
denominamos Conversações de Epíteto é composto justa-
pondem muito bem à ordem de leitura dos diálogos de
mente das notas tomadas por seu aluno Arriano durante
Platão proposta nas escolas platônicas. Essa noção de pro-
as discussões que se seguiam à aula propriamente dita,
gresso espiritual significa que os discípulos só podem
isto é, que aconteciam depois da explicação do texto. Aulo
empreender o estudo de uma obra quando chegam ao
Gélio relata-nos, por exemplo, que seu mestre, o platôni-
nível intelectual e espiritual que lhes permita extrair pro-
co Tauro, permitia a seus ouvintes, depois da aula, propor-
veito dela. Certas obras são reservadas aos iniciantes, outras
lhe as questões que quisessem. O próprio Aulo Gélio tinha
aos que progridem. Não serão expostas em uma obra
perguntado a Tauro se o sábio se encoleriza, ao que o
destinada aos iniciantes questões complexas reservadas aos
filósofo lhe teria respondido longamente 22 • Plotino tam-
que progridem 21 •
bém, nós o sabemos por seu discípulo Porfírio, encoraja-
Por outro lado, cada comentário é considerado um va seus ouvintes a propor questões, o que ocasionava
exercício espiritual, não só porque a investigação do senti- muita tagarelice, acrescenta Porfírio 23 • Ora, vemos pelas
do de um texto exige qualidades morais de modéstia e de Conversações de Epiteto, e entrevemos nos escritos de
amor pela verdade, mas também porque a leitura de cada Plotino, que as respostas do mestre eram, na maior parte
obra filosófica deve produzir uma transformação no ouvin- do tempo, destinadas a incitar o discípulo a mudar de vida
te ou no leitor do comentário, como atestam, por exemplo, ou a progredir espiritualmente.

21. L Hadot, Le probleme du néoplatonisme... , pp. 160-164; da mesma 22. Aulo Gélio, Noites Áticas, I, 26, 1-11. Para Epiteto, cf. J. Souilhé,
autora, "Introduction" (cap. III) a Simplício, Commentaire sur le Manuel "Introduction" a Epiteto, Conversações, T. I, Paris, 1948, p. XXIX.
d'Épictete, Leyde, 1995. 23. Porfírio, Vida de Plotino, 3, 35.

224 225
A filosofia como modo de vida As escolas filosóficas na era imperial

De maneira geral, o professor de filosofia continua, morais, definições teóricas e prescrições rituais 27 • Próximo
como nos séculos precedentes, não somente a animar o da era cristã, assiste-se a uma renovação do pitagorismo,
grupo de discípulos reunidos a seu redor, que faziam com análoga à das outras escolas. Uma literatura pitagórica
ele em certas circunstâncias refeições comuns24 e muitas apócrifa se desenvolve: nessa época são compostos os fa-
vezes viviam perto do mestre, mas também a cuidar de mosos Versos de ourrr8 • Nas numerosas Vídas de Pítágoras,
cada um deles. A comunidade de vida é um dos elementos notadamente as de Porfírio 29 e de Jâmblico, descreve-se a
mais importantes da formação. O professor não se contenta vida filosófica idílica que se levava na escola do mestre e
em ensinar, mas desempenha o papel de um verdadeiro a maneira pela qual era organizada a comunidade pita-
diretor de consciência, que cuida dos problemas espirituais górica primitiva: a escolha de candidatos; o noviciado, que
consistia em um silêncio de vários anos; a comunidade
de seus alunos.
de bens entre os membros do grupo; sua ascese, mas
Nesse contexto, é necessário assinalar o renascimento, também sua vida contemplativa30 • Nas comunidades pita-
nessa época, da tradição pitagórica. É verdade que desde góricas recriam-se, então, as especulações sobre os núme-
a época de Pitágoras sempre houve comunidades que se ros que se desenvolvem, e o platônicos têm a tendência
vinculavam a ele, que se distinguiam do comum dos mortais a considerar, em virtude do princípio de continuidade da
por certo gênero de vida: os adeptos não comiam carne e tradição de verdade, que o platonismo é o prolongamen-
praticavam uma vida asséptica, na expectativa de ter uma to do pitagorismo.
sorte melhor na vida futura25 • Seu costume, sua abstinência
eram um dos alvos favoritos dos autores cômicos26 :
Plotino e Porfírio
Eles são vegetarianos, nada bebem além de água
Um eterno manto no qual fervílha a vermína, A escolha de vida
E o terror do banho: nínguém em nossa época
Acabamos de falar do renascimento do pitagorismo.
Poderia suportar esse regíme.-
Reencontramos esse fenômeno evocando o tratado inti-
0 gênero de vida dos pitagóricos parece ter consisti-
do em praticar a akysmata, conjunto de máximas em que 27. W. Burkert, Lore and Science, pp. 150-175.
28. P. C. Van der Horst, Les Vers d'or pythagoriciens, edição comentada,
se misturavam interditos alimentares, tabus, conselhos Leyde, 1932; M. Meunier, Les Vers d'or, Hiérocles, Commentaire sur les Vers
d'or, Paris, 1979.
24. Aulo Gélio, Noites Áticas, XVII, 8, e VII, 13. 29. Porfírio, Vie de Pythagore, Éd. et trad. É. des Places, Paris, 1982·
25. W. Burkert, Lore and Science in Ancient Pythagoreanism, Harvard Jãmb!ico, Pythagoras, tradução de M. von Albrecht, Darmstadt, 1985. '
University Press, 1972, p. 199. 30. Tauro, in Aulo Gélio, Noites Áticas, I, 9; cf. A.-:J. Festugiere, Études
26. Aristofonte, in O Pitagorista, citado in Les Présocratiques, Éd. J.-P. de philosophie grecque, Paris, 1971, pp. 437-462: "Sur le De vita pythagorica de
Dumont, p. 612. Jamblique".

226 227
A filosofia como modo de vida As escolas filosóficas na era imperial

tulado Da abstinência, que Porfírio, o discípulo de Plotino, A theoría, a contemplação que nos conduz à felicidade, não
escrevera para reconduzir Castrício, outro membro da consiste em um acúmulo de raciocínios nem em uma massa
escola, à prática do vegetarismo. Porfírio 31 repreende de conhecimentos aprendidos, como se poderia crer. Ela não
Castrício por ser infiel às leis ancestrais da filosofia, isto se edifica, com isso, pedaço por pedaço. A quantidade de
é, à filosofia de Pitágoras e de Empédocles, do qual ele raciocínios não a Jaz progredir.
fora adepto: Porfírio quer aqui simplesmente designar o
platonismo concebido como idêntico à filosofia revelada E Porfírio retoma o tema aristotélico: nao basta
desde as origens da humanidade. Mas precisamente essa adquirir conhecimentos, mas é necessário que esses
filosofia apresenta-se como um modo de vida que engloba conhecimentos "se tornem natureza em nós", "que eles
todos os aspectos da existência. Porfírio tem perfeitamente cresçam conosco" 34 • Só há contemplação, diz Porfírio,
consciência do fato de que esse modo de vida distingue-se quando nossos conhecimentos se tornam em nós "vida"
radicalmente daquele do restante dos homens. Ele não e "natureza". Ele reencontra, por outro lado, essa con-
se dirige, afirma 32 , aos homens "que exercem ofícios cepção no Timeu35 , que afirmava que quem contempla
manuais, nem aos atletas, nem aos soldados, nem aos mari- deve se tornar seinelhante ao que contempla e fazer,
nheiros, nem aos oradores, nem aos políticos", assim, um retorno a seu estado anterior. É por meio des-
mas a quem refletiu sobre essas questões: "Quem sou eu? De sa assimilação, dizia Platão, que se atinge o objetivo da
onde venho? Para onde vou?", e a quem se fixou no alimento vida. A contemplação não é conhecimento abstrato, mas
e em outros domínios, em princípios diferentes dos que regem transformação de sP 6 :
os outros gêneros de vida. Caso a felicidade srga obtida escrevendo discursos, seria possível
33
O modo de vida que Porfírio recomenda, e que é o atingir esse fim sem ter o cuidado de escolher seu alimento ou
da escola de Plotino, consiste, como era o caso na escola realizar certos atos. Mas, porque é necessário mudar nossa
de Aristóteles, em "viver segundo o espírito", isto é, segun- vida atual para outra vida, purificando-nos simultaneamente
do a parte mais elevada de nós mesmos que é o intelecto. pelos discursos e pelas ações, examinemos quais discursos e
Platonismo e aristotelismo- -se fundem aqui. Ao mesmo quais ações predispõem para essa outra vida.
tempo, a perspectiva de uma ação política dos filósofos, Essa transformação de si é, por outro lado, como o
que existia na Academia e também no pitagorismo pri-
queria Aristóteles37, um retorno ao verdadeiro eu, que não
mitivo, desaparece ou, ao menos, passa a segundo plano.
é senão o espírito em nós, o divino em nós 38 :
A vida segundo o espírito não se reduz a uma atividade
puramente racional e discursiva: 34. Cf. acima p. 136, nota 38.
35. Timeu, 90 a.
31. Porfírio, Da abstinência, I, 2, 3 e 3, 3. 36. Porfírio, Da abstinência, I, 29, 6.
32. ld., ibid., I, 27, 1. 37. Cf. acima p. 123.
33. ld., ibid., I, 29, 1-6. 38. Da abstinência, I, 29, 4.

228 229
A filosofia como modo de vida As escolas filosóficas na era imperial

O retorno não se Jaz a outra coisa senão a nosso verdadeiro tão estrita em Plotino quanto entre os estoicos. Como nota
eu, e a assimilação [literalmente: a conaturalidade, symphysis] Porfírio 43 em sua Vida de Platina:
nos assimila precisamente a nosso verdadeiro eu. Nosso ver-
Sua atenção a si mesmo jamais relaxa, senão durante o sono,
dadeiro eu é o espírito, e o fim que buscamos é viver Se[!;Undo
o que o impede, ademais, até mesmo de alimentar-se. pobre-
o espírito.
mente (muitas vezes ele não comia sequer pão) e a contínua
Encontramos aqui a passagem de um eu inferior ao orientação de seu pensamento para o Espírito.
eu verdadeiro e transcendente que tornamos a verificar Isso não impede que Plotino se ocupe do outro. Ele é
ao longo de toda a história da filosofia antiga. tutor de numerosas crianças que os membros da aristocracia
Porfírio descreverá o modo de vida próprio ao filóso- romana lhe confiam até sua morte, e ocupa-se também de
fo: separar-se da sensação, da imaginação, das paixões, dar sua educação e de seus bens.
ao corpo apenas o estrito necessário, afastar-se da agitação Parece aqui que a vida contemplativa não abole o cuida-
da multidão, como o fizeram os pitagóricos e os filósofos do do outro, e que esse cuidado pode conciliar-se também
que Platão 39 descreve no Teeteto. A vida contemplativa com a vida segundo o espírito. Tudo estando à disposição
implica uma vida ascética. Mas essa vida ascética tem tam- de todos 4\ "ele jamais relaxa, no estado de vigília, sua
bém valor em si mesma: ela é, enfim, boa40 para a saúde, atenção para o Intelecto", "ele está totalmente presente
como testemunha a história da conversão do discípulo de simultaneamente a si mesmo e aos outros". "A si mesmo"
Plotino, Rogaciano, membro do Senado romano, que significa "ao seu verdadeiro eu", isto é, ao Intelecto.
renuncia a suas funções, a sua casa, a seus servidores, No tratado Da abstinência, Porfírio afirmava que o
alimenta-se apenas a cada dois dias, e cura-se, assim, da fim procurado pelos filósofos é viver segundo o espírito,
doença da gota41 • segundo o intelecto, que se pode escrever tanto com
Essa ascese será destinada- sobretudo a impedir que a minúscula como com maiúscula, porque se trata a um
só tempo de nossa inteligência e da Inteligência divina,
parte inferior da alma atraia para si a atenção que deve ser
da qual nossa inteligência participa. Mas em sua Vida de
orientada para o espírito. Pois "é pela totalidade de nós
Platina lemos45 que
mesmos que exercemos nossa atenção" 42 • O modo de vida
ascético destina-se a permitir uma disciplina da atenção, [. .. ] o fim e o início são, para Platina, ser unido ao Deus
supremo e aproximar-se dele.
39. Cf. acima pp. 107-108.
40. Plotino, Eneadas, li, 9 (33), 14, 11. 43. Vida de Platina, 8, 20.
41. Id., Vida de Platina, 7, 31. 44. Ibid., 9, 18 e 8, 19.
42. Da abstinência, I, 41, 5. 45. Ibid., 23, 7-18.

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A filosofia como modo de vida As escolas filosóficas na era imperial

O Deus supremo é superior ao Intelecto porque, como mas os dois são um; com efeito, tu não podes mais distingui-
afirma Porfírio, está estabelecido acima do Intelecto e los a partir do momento em que Ele está aí: a imagem disso
do inteligível. Poder-se-ia então pensar que há dois tipos são os amantes e os amados neste mundo que querem muito
de vida contemplativa e dois objetivos diferentes para a fundir-se um no outro), quando a alma não tem mais consciên-
vida. Mas o discurso filosófico plotiniano nos explicará cia de seu corpo, nem que se encontra neste corpo e ela não
essa diferença de nível no mundo divino e nos fará com- diz mais que é diferente Dele: homem ou animal ou ser ou tudo
preender que os dois objetivos são, no fundo, idênticos. (pois olhar as coisas é, de alguma maneira, Jazer diferenças,
Porfírio especifica que Plotino atingiu esse "objetivo" da e, por outro lado, ela não tem prazer em voltar-se para elas
união com o Deus supremo quatro vezes, durante os seis nem em desejá-las; mas, depois de tê-Lo buscado, quando Ele
anos nos os quais frequentou a escola de Plotino, e que está presente, vai a Seu encontro e é para Ele que ela olha em
ele mesmo o alcançou uma vez, em toda sua vida, quando vez de para si mesma, e ela não tem prazer em ver quem é, ela
tinha 68 anos. Ele fala de experiências muito raras, que que olha), porquanto certamente ela não trocaria nenhuma de
se podem qualificar de "místicas" ou "unitivas". Esses ins- todas as outras coisas por Ele, mesmo se lhe fosse dado o céu
tantes privilegiados e excepcionais destacam-se, de alguma inteiro, pois sabe que nada há de mais precioso e melhor que
maneira, contra o fundo de uma atividade continuamente Ele (pois ela não pode subir mais alto, e todas as outras coisas,
voltada para o Intelecto. Se essas experiências são raras, mesmo que estejam no alto, são para ela descenso de modo que
nem por isso são menos fundamentais para o modo de nesse momento lhe foi dado julgar e conhecer perfeitamente
vida plotiniano, que nos aparece agora como o limite do que "é Ele" que ela desEjava, e afirmar que nada há que srja
surgimento imprevisível desses momentos privilegiados que preferível a Ele (pois lá engano nenhum épossível: encontrar-
conferem todo seu sentido à vida. se-á onde mais verdadeiramente o verdadeiro? E o que ela diz,
portanto: ''É Ele!': é mais tarde que o pronuncia, agora é ~eu
Plotino faz a descrição dessas experiências em vários silêncio que o diz, e, plena de alegria, não se engana, precisa-
lugares de seus escritos. Daremos apenas um exemplo 46 : mente porque plena de alegria, e nada diz, não por causa do
E quando a alma temaclrance de encontrá-Lo, quando Ele prazer que lhe acomete o corpo, mas porque ela se transformou
vem a ela, melhor ainda, quando Ele lhe aparece presente, naquilo que era outrora quando era feliz) [. .. ] Se acontecesse
quando ela se desvia de toda outra presença, estando prepa- que todas as coisas ao seu redor fossem destruídas, seria isso
rada para ser a mais bela possível e tendo chegado assim à mesmo o que ela haveria de querer, contanto somente que esti-
semelhança com Ele (pois essa preparação, essa ordenação, são vesse com Ele: tão grande é a alegria que ela alcançou.
bem conhecidas por quem aspratica), O vê aparecer subita-
Há aqui uma tonalidade e uma atmosfera relativamente
mente em si (pois nada mais há entre eles e já não são dois,
novas na história da filosofia antiga. Aqui o discurso filo-
sófico serve apenas para mostrar sem exprimir o que o ul-
46. Plotino, Eneadas, VI, 7 (38), 34, 9-37; vejam-se as notas e o comen-
tário in P. Hadot, Plotino, Traité 38, Paris, 1988. trapassa, isto é, uma experiência na qual todo discurso se

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A filosofia como modo de vida As escolas filosóficas na era imperial

anula, na qual também não há mais consciência do eu in- plação, que tem por objeto supremo o Pensamento do
dividual, mas somente um sentimento de alegria e presença. Pensamento, que reside a felicidade do homem. Se não
Essa experiência inscreve-se, contudo, em uma tradição que falamos aqui do grande comentador de Aristóteles que foi
remonta, pelo menos, ao Banquete de Platão47, em que se Alexandre de Mrodísia, é porque sabemos pouco sobre o
fala da visão súbita de "algo de maravilhosamente belo em que foram sua vida e seu ensino, e nada resta do que se
sua natureza" que é justamente o Belo em si, visão que poderia50 classificar de aristotelismo místico, a propósito
Platão assimila à que aparece aos olhos do iniciado nos da representação que Alexandre fazia da união de nosso
mistérios de Elêusis. E, por outro lado, se a experiência intelecto com o Intelecto divino.
"mística" é denominada "mística", é por causa dos "mistérios", Com a experiência mística, estamos na presença de ou-
isto é, das visões "secretas" de Elêusis que se apresentam, tro aspecto da vida filosófica, não mais a decisão, a opção
também, como uma visão inesperada. Essa visão, diz Platão, por um modo de vida, mas, para além de todo discurso,
é o ponto da vida no qual a vida vale a pena ser vivida, e, a experiência indizível que invade o indivíduo e arruína
se o amor pela beleza humana pode nos levar para além de toda consciência do eu, por um sentimento de presença
nós mesmos, qual não será a potência do amor provocado
inexprimível.
por essa Beleza? 48 Encontram-se traços dessa tradição em
Fílon de Alexandria49 , por exemplo neste texto em que o
Os níveis do eu e os limites
caráter passageiro da experiência é fortemente marcado:
do discurso filosófico
Quando o intelecto do homem é possuído pelo amor divino, Podem-se extrair dos cinquenta e quatro tratados de
quando ele despende todos os seus esforços para chegar ao Plotino uma teoria que explique a gênese da realidade a
santuário mais secreto, quando ele age com todo seu empenho e partir de uma unidade primordial, o Uno ou o Bem, pela
com todo seu zelo, atraído por Deus, esquece-se de tudo, esquece- aparição de níveis de realidade mais e mais inferiores e
se de si mesmo, não se lembra senão de Deus e se liga a ele mesclados de multiplicidade: o Intelecto, depois a alma,
[. ..1 Mas, quando o entusiasmo declina e quando o desejo depois as coisas sensíveis. Com efeito, como Aristóteles e
diminui em seu fervoi; torna a ser homem, distanciando-se
Platão, Plotino não escreve para expor um sistema, mas
das coisas divinas, reencontrando então as coisas humanas
para resolver questões particulares, apresentadas por seus
que são como ciladas no vestíbulo do templo.
ouvintes a propósito de seu ensino51 • Isso não significa que
Não se deve esquecer, contudo, que essa tendência não Plotino não tenha uma visão unificada da realidade, mas
é estranha ao aristotelismo, na medida em que é na contem- suas obras são escritos de circunstância. Por uma parte

47. Banquete, 210 e 4. 50. Ph. Merlan, Monopsychism, Mysticism, Metaconsciousness, Problems ofthe
48. Ibid., 211 d-e. Soul in the Neoristotelian and Neoplatonic Tradition, La Haye, 1963, pp. 35 ss.
49. Fílon, Dos sonhos, II, 232. 51. Porfirio, Vida de Platina, 4, 11 e 5, 5.

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A filosofia como modo de vida As escolas filosóficas na era imperial

também, elas têm por fim exortar o ouvinte ou o leitor a é ela, isto é, tornar-se concreta e conscientemente o que
tomar uma atitude, a adotar um modo de vida. O discurso ela foi sem o saber54 : "Restringe-te e examina-te", "Tira o
filosófico de Plotino, para todos os níveis da realidade, que é supérfluo [ ... ] não cesses de esculpir tua própria
conduz a uma ascese e a uma experiência interiores que estátua". Para tanto, é necessário que o próprio eu se se-
são o verdadeiro conhecimento, pelo qual o filósofo eleva- pare do que foi acrescentado à alma racional e se veja tal
se para a realidade suprema alcançando progressivamente qual se tornou.
níveis mais e mais elevados e mais e mais interiores da Mas nem o discurso filosófico nem o itinerário interior
consciência de si. Plotino retoma o velho adágio 52 "somente podem deter a alma racional. O discurso filosófico é co~s­
o semelhante conhece o semelhante". Mas isso significa para trangido a admitir, como fizera Aristóteles, que a alma nao
ele que é somente se tornando espiritualmente semelhante pode raciocinar e pensar se não tem. ~i~nte de si u~ ~eu­
à realidade que se quer conhecer que se pode colhê-la. A sarnento substancial que funde a poss1b1hdade de racwcmar
filosofia de Plotino revela assim, por outro lado, o espírito e de conhecer. Desse pensamento, desse Intelecto trans-
do platonismo, isto é, a indissolúvel unidade do saber e cendente, a alma reconhece os traços em si mesma, sob a
5
da virtude: só há saber em e pela progressão existencial forma de princípios que lhe permitem raciocinar5 . A vida
na direção do Bem. segundo o Espírito, em Plotino, como em Aristóteles, situa-
se em dois níveis hierarquizados. Começa no nível da alma
A primeira etapa da ascensão é a tomada de consciên-
racional iluminada pelo Intelecto e consiste, então, na
cia, pela alma racional, do fato de que ela não se confun-
atividade dos raciocínios filosóficos e na prática das virtudes,
de com a alma irracional, que, encarregada de animar o guiada pela razão. Mas, se a reflexão filosófica a conduz
corpo, é perturbada pelos prazeres e pelas penas que re- para o Intelecto, ela terá, ainda aqui: duas vias ~e acesso
sultam da vida do corpo. O discurso filosófico pode expor a essa realidade: de uma parte, o d1scurso filosofico, de
argumentos sobre a distinção entre alma racional e alma outra a experiência interior. Ela terá, ainda, como afirma
irracional, mas o que importa não é chegar à conclusão Plotino, duas formas de conhecimento de si: de uma parte,
de que há uma alma raGional, mas que o próprio eu viva um conhecimento de si como alma racional dependente
como uma alma racional. O discurso filosófico pode esfor- do Intelecto, mas que permanece no plano da razão, e, de
çar-se para pensar a alma53 "considerando-a no estado puro, outra, um conhecimento de si como se ela mesma se tor-
porque toda adição a uma coisa é um obstáculo ao conhe- nasse o Intelecto. Plotino a descreve da seguinte maneira:
cimento da coisa". Mas somente a ascese permite ao eu
conhecer-se efetivamente como alma separada do que não Então, conhecer-se a si mesmo é conhecer-se não mais como
homem, mas como tornado totalmente outro, como se se tivesse
52. Empédocles B 109; Demócrito B 164, Les Présocratiques, Dumont,
pp. 417 e 887. 54. Ibid., IV, 7 (2), 10, 30, e I, 6 (1), 9, 7.
53. Eneadas, N, 7 (2), 10, 27 ss. 55. Ibid., V, 3 (49), 4, 14 e ss.

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A filosofia como modo de vida As escolas filosóficas na era imperial

arrastado a si mesmo para o alto, para exercer apenas o melhor Ideias; isso implica que cada Forma é o Intelecto, que o
da alma 56 • Intelecto é a totalidade das Formas que se pensa a si
mesma, que cada Forma é, à sua maneira, enquanto Ideia
O eu descobre, então, que o que há de mais elevado na de Homem, ou Ideia de Cavalo, a totalidade das Formas:
alma é Intelecto e Espírito e que ela vive constantemente no Intelecto, tudo é interior a tudo. "Tornar-se Intelecto"
e de maneira inconsciente a vida do Intelecto. E precisa- é pensar-se na perspectiva da totalidade, é pensar-se não
mente, como dissera Aristóteles57, e como tornara a dizer mais como indivíduo, mas como pensamento da totalida-
Porfírio, o objetivo da vida é a "vida segundo o Espírito", a de; não particularizando essa totalidade, mas, ao contrário,
"vida segundo o Intelecto". É necessário tomar consciência experimentando a concentração, a interioridade, o acordo
dessa atividade inconsciente, é necessário voltar a atenção profundo59 • "É necessário ver o Espírito como nosso pró-
para essa transcendência que se abre ao eu58 : prio eu", diz Plotino 60 • "Tornar-se Intelecto" é, finalmente,
Isto é como um homem que está à escuta de uma voz que chegar a um estado do eu no qual se atinja essa interio-
ridade, esse recolhimento em si mesmo, essa transparência
deseja ouvir; descartará todos os outros sons, voltará os ouvidos
para si mesmo, que caracterizam o Intelecto, simbolizados
para o som por que anseia para saber se ele se aproxima; da
pela ideia de uma luz que se vê a si mesma e por si mes-
mesma maneira, precisamos deixar de lado os ruídos provenien-
ma61. "Tomar-se Intelecto" é atingir um estado de perfei-
tes do mundo sensível, a não ser em caso de necessidade, para
ta transparência na relação consigo mesmo, cerceando
olhar a potência da consciência da alma pura e preparada
precisamente o aspecto individual do eu, ligado a uma
para escutar os sons que vêm do alto. alma e a um corpo, pata deixar subsistir apenas a interio-
Chegamos, aqui, a um primeiro grau da experiência ridade pura do pensamento 62 :
mística, pois há aí um excesso da atividade própria à alma Transforma-se a si mesmo em Intelecto quando, separando
racional, um "tomar-se outro", um "desenraizamento" para de si as outras coisas, olha-se o Intelecto por esse Intelecto,
o alto. O eu, depois de ser identificado à alma racional, olha-se a si mesmo por si mesmo.
identifica-se agora ao Intelect<J,-toma-se Intelecto. Mas como
representar o que quer dizer "tomar-se Intelecto"? Plotino Tomar-se um indivíduo determinado é separar-se do
concebe o Intelecto a partir do modelo do Pensamento aris- Todo acrescentando uma diferença que, diz Plotino 63 , é
totélico, isto é, como um conhecimento de si perfeitamente
59. Cf. P. Hadot, "Introduction" a Plotino, Traité 38, Paris, 1988, pp.
adequado e transparente. Ao mesmo tempo, ele considera
31-43.
que o Intelecto contém em si todas as Formas, todas as 60. Eneadas, V, 8 (31), 10, 40.
61. Ibid., V, 3 (49), 8, 22; cf. É. Bréhier, La Philosophie de Plotin, Paris,
56. Ibid., V, 3(49), 4, 10. 1982, p. 98.
57. Cf. acima pp. 121-123. 62. Eneadas, V, 3 (49), 4, 29.
58. Eneadas, V, 1 (10), 12, 14. 63. Ibid., VI, 5 (23), 12, 20.

238 239
A filosofia como modo de vida As escolas filosóficas na era imperial

uma negação. Separando-se de todas as diferenças indivi- va. A experiência do Intelecto correspondia a um estado
duais e de sua própria individualidade, torna-se o Todo. do eu no qual se chega à interioridade e à transparência
Tornar-se o Intelecto é ver-se a si mesmo e a todas as coisas perfeita consigo mesmo. A experiência do Uno corres-
na perspectiva totalizante do Espírito divino. ponde a um novo estado do eu no qual aquele que
Chegado a esse ponto, o eu não é, contudo, o termo chega, poder-se-ia dizer, se perde e se reencontra.· Ele se
de sua ascensão. Segundo a imagem plotiniana, o Intelec- perde porque experimenta a impressão de não ser mais
to no qual estamos submersos e' como uma on d a64 que, ele mesmo 67 , nem para si mesmo, mas ser a possessão de
armando-se, nos ergue para uma nova visão. outro. Mas, ao mesmo tempo, esse estado de anulação
da identidade pessoal é percebido 58 como "uma manifes-
Ainda aqui o discurso filosófico pode demonstrar que, tação de si", como uma "intensificação de si". "Separan-
para além da Uni-totalidade que representa o Intelecto e do-se de todas as coisas" 69 , não se encontra mais nesse
que é apenas uma unidade derivada, é preciso admitir uma nível a Totalidade, mas a Presença que está no fundo de
unidade absoluta e primeira65 • Mas o discurso filosófico todas as coisas e de si mesmo, anterior a toda determi-
chega também a seu limite, pois ele não pode exprimir nação e individuação.
o que é a Unidade absoluta, já que falar é ligar os com-
plementos ou os atributos aos sujeitos por intermédio dos Essa experiência é indizível e, ao descrevê-la, Plotino
verbos; ora, o Uno não pode ter complementos ou atributos, nada pode dizer sobre o Uno, ele descreve unicamente o
sendo absolutamente um. Dele, não se pode sequer dizer estado subjetivo de quem a experimenta. Contudo, essa
o que não é. E se nos afiguramos atribuir-lhe predicados experiência é .o que conduz realmente a:o Uno. Plotino
positivos, dizendo, por exemplo: "O Uno é causa de tudo", distingue muito nitidamente aqui ensino discursivo e
não dizemos o que é ele mesmo, mas o que somos em experiência não discursiva. A teologia, que só pode ser
relação a ele, isto é, que somos seus efeitos. Em outras discursiva, nos proporciona um ensino, uma instrução
palavras, acreditando falar _çlçle, não falamos senão de sobre o Bem e o Uno, mas o que nos conduz ao Uno é a
nós 66 • O relativo que somos é sempre relativo a si mesmo virtude, a purificação da alma, o esforço para viver a vida
e não alcança o absoluto. segundo o Espírito. O ensino é como um poste indicador
que nos diz para qual direção se deve ir, mas para chegar
O único acesso que temos a essa realidade transcen- ao Uno é necessário andar efetivamente por uma estrada
dente é a experiência não discursiva, a experiência uniti- que só se trilha sozinho, rumo ao Só 70 •

64. Ibid., VI, 7 (38), 36, 19. 67. Ibid., VI, 9 (9), 10, 15 e 11, 11.
65. Ibid., VI, 9 (9), 1-4, veja-se a tradução in P. Hadot, Plotino, Traité 68. Ibid., VI, 9 (9), 11, 22.
9, Paris, 1994. 69. Ibid., v, 3 (49), 17, 37.
66. Eneadas, VI, 9 (9), 3, 37-54. 70. Ibid., VI, 7 (38), 6-10; VI, 9 (9), 4, 11-16.

240 241
A filosofia como modo de vida
As escolas filosóficas na era imperial

Não obstante, o discurso filosófico pode reaparecer


Quando se diz "Deus, sem praticar realmente a virtude,
para explicar como essa experiência do Uno é possível.
''Deus" não passa de uma palavra.
Se o eu pode atingir o Uno, é precisamente porque vive
a vida do Espírito. Pois há no Espírito, no Intelecto, , Apenas. a experiência moral ou mística pode dar con-
dois níveis: de uma parte, o nível do Intelecto pensante, teudo ao discurso filosófico.
que corresponde ao estado do Intelecto completamente
constituído, pensando-se a si mesmo como totalidade das
Formas, e, de outra, o nível do Intelecto nascente, que O neoplatonismo pós-plotiniano e a teurgia
ainda não é Intelecto, ainda não pensa, mas emana do
Uno como uma irradiação e encontra-se, desse modo, em O discurso filosófico e a vontade de harmonização
entre as tradições
contato imediato com ele. Como consequência de tocar
o Uno, diz-nos Plotino, o Espírito é "inflamado de amor", O neoplatonismo posterior a Plotino, representado
"inebriado de néctar", "ele se regozija no gozo" 71 . Tornar-se sobret.udo por Jâ~bli~o, _Siriano, Proclo e Damásquio,
Intelecto pensante já é para o eu uma experiência mística. pod~na parecer, a pnmeira vista, um desenvolvimento
Mas tornar-se Intelecto amante é elevar-se a uma experiên- do Slstema_ hierárquico de Plotino. Mas, com efeito, ele
cia mística superior, é situar-se no ponto de origem em se carac~enza, como dissemos, por um gigantesco esfor-
que todas as coisas emanam do Bem e que é apenas o ço ~e- smtese_ entre os mais disparatados elementos da
Intelecto nascente; pode-se representar imaginativamente tradiçao filosofica e religiosa de toda a Antiguidade. De
um ponto situado sobre um raio que chegaria a coincidir acor?o corou uma longa tradição, o platonismo identifica-se
com o ponto no qual o raio emana do centro: o ponto de ~o pltagonsmo; por outro lado, o aristotelismo é reconci-
nascimento do raio está infinitamente próximo do centro ha~o- com o platonismo, na medida em que os escritos de
e, contudo, infinitamente separado, pois não é o centro, Aristoteles, desde então interpretados em sentido platônico
mas um ponto de emanação?~, Tal é a relação do relativo repr_es~ntam uma p~meira etapa no curso geral do ensin~
ao absoluto. platomco, que consiste na explicação de certo número de
trata~os de Aristóteles 74 e também dos diálogos de Platão7s,
As relações que existem em Plotino entre o discurso em VIrtude das etapas do progresso espiritual.
filosófico e a opção existencial estão bem resumidas nesta
frase de Plotino, dirigida contra os gnósticos 73 : 7;. So~re a harrnon~zação entre Platão e Aristóteles, cf. I. Hadot, "Aristote
dans l enseignement philosophique néoplatonicien" in Revue de Th, l .
de Philosophie, -1~4: 407-425, 1992; sobre a represe~tação que os c~::~:~~
71. Ibid., VI, 7 (38), 35, 19-33, veja-se o comentário in P. Hadot, Plotino,
dores neoplatomcos faziam da obra de Aristóteles cf I Had t s· l' .
Traité 38, pp. 37-43 e 343-345. Co t · l C , . , · · o , 1rnp !Cio.
mmen azre sur es ategorzes, Fase. I, Leyde 1990 63-107
72. Cf. P. Hadot, Plotino, Traité 9, pp. 37-44. 75. Cf A -:J F " ' · ' . ' pp. ·
73. Eneadas, 11, 9 (34), 15, 39-40. · · · . estugiere, Etudes de phzlosophze grecque, pp. 535-550, "L' ordre
de lecture des dialogiies de Platon aux Ve-Vle siecles".

242
243
As escolas filosóficas na era imperial
A filosofia como modo de vida

Mas a harmonização não se detém aí. Busca-se igual- A atividade dos neoplatônicos posteriores a Plotino foi
mente fazer concordar entre si a tradição filosófica e as consagrada sobretudo à exegese dos textos de Aristóteles
tradições reveladas pelos deuses que são os escritos órficos e de Platão. Certo número de seus comentários sobre
e os Oráculos caldaicos. Trata-se, assim, de sistematizar todo Aristóteles serão traduzidos ao latim e desempenharão
dado revelado, o orfismo, o pitagorismo, o caldaísmo, com considerável papel na interpretação que se proporá desse
a tradição filosófica, pitagórica e platônica. filósofo na Idade Média.

Chega-se, dessa maneira, ao que pode nos parecer O modo de vida


charlatanices inverossímeis. Os neoplatônicos são capazes
de encontrar as diferentes classes de deuses dos Oráculos Para os neoplatônicos, como para Plotino, o discurso
caldaicos em cada uma das articulações da argumentação filosófico está estreitamente ligado a práticas concretas e
dialética que se refere às famosas hipóteses sobre o Uno a um modo de vida. Mas, para Plotino, a vida segundo o
desenvolvidas no Parmênides de Platão. Por outro lado, as Espírito consistia em uma vida filosófica, isto é, na ascese
hierarquias de noções extraídas artificialmente dos diálogos e na experiência moral e mística. Para os neoplatônicos
de Platão correspondem termo a termo às hierarquias de posteriores isso tudo é muito diferente. Eles conservam,
entidades órficas e caldaicas. Assim, as revelações caldaicas sem dúvida, a prática filosófica da ascese e da virtude 76 ,
e órficas penetram no discurso filosófico neoplatônico. Não mas consideram igualmente importante ou mesmo, apa-
se deve, contudo, imaginar por isso que o discurso filosófico rentemente no caso de Jâmblico, mais importante ainda o
neoplatônico seja somente uma miscelânea confusa. Com que eles denominam prática "teúrgica". A palavra "teurgia"
efeito, toda escolástica é um esforço racional de exegese aparece apenas no século II d.C.; parece ter sido criada
e de sistematização. Ela obriga o espírito a uma ginástica pelo autor ou pelos autores dos Oráculos caldaicos, para
intelectual que é, finalmente, formadora e que desenvolve designar ritos capazes de purificar a alma e seu "veículo
a capacidade de analisar os conceitos e o rigor lógico: só imediato", o corpo astral, a fim de permitir-lhe contemplar
se pode admirar a tentativa--de Proclo quando procura os deuses 77 • Esses ritos comportavam abluções, sacrifícios
expor more geometrico as etapas da processão dos seres em e invocações que utilizavam palavras rituais frequentemen-
seus Elementos de teologia. Os comentários de Proclo sobre te incompreensíveis. O que diferencia a teurgia da magia
Platão são notáveis monumentos de exegese. E, para tomar é que ela não pretende forçar os deuses, mas, ao contrário,
outro exemplo, as reflexões de Damásquio sobre as aporias
76. Cf. por exemplo R. Masullo, "Il Tema degli 'Esercizi Spirituali'
implicadas na noção de "Princípio de tudo" alcançam gran-
nella Vita Isidori di Damascio", in Talariskos. Studia Graeca Antonio Garzya
de profundidade. Não é de espantar que o "siste~a", ~e sexagenario a discipulis oblata, Napoli, 1987, pp. 225-242.
Proclo tenha tido uma influência capital em toda a h1stona 77. Cf. H. Lewy, Chaldean Oracles and Theurgy, 2a ed., Paris, 1978 (uma
do pensamento ocidental, sobretudo no Renascimento e 3a ~d. está no prelo); H.-D. Saffrey. Recherches sur le néoplatonisme apres Plotin.
Pans, 1990, pp. 33-94; P. Hadot, "Théologie, exégese, ... ", pp. 26-29.
na época do romantismo alemão.
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244
A filosofia como modo de vida As escolas filosóficas na era imperial

ela se submete à sua vontade efetuando os ritos que su- ao divino. Então, enquanto Plotino considerava que a alma
postamente eles mesmos fixaram. Não é a filosofia teórica, humana está sempre em contato inconsciente com o Inte-
diz Jâmblico 78 , mas os ritos que não compreendemos os lecto e o mundo espiritual, os neoplatônicos posteriores
únicos que podem operar nossa união com os deuses. Não consideram que a alma, porque caiu no corpo, tem neces-
é por uma atividade de pensamento que podemos realizá- sidade de passar por ritos materiais e sensíveis pará poder
los, pois sem isso sua eficácia dependeria de nós. São os voltar ao divino. Há aí, em suma, um traço análogo ao do
deuses que têm a iniciativa e escolheram os signos mate- cristianismo, segundo o qual é necessário ao homem, cor-
riais, os "sacramentos", poder-se-ia dizer, que atraem os rompido pelo pecado original, a mediação do Lógos encar-
deuses e permitem o contato com o divino, e a visão das nado e dos signos sensíveis, os sacramentos, para poder
formas divinas. Estamos aqui diante de uma espécie de entrar em contato com Deus. Para os dois movimentos es-
doutrina da graça salvífica. Nessa concepção, a ideia de pirituais que dominam o fim da Antiguidade e se opõem
uma união mística não desaparece, mas é compreendida um ao outro, o neoplatonismo e o cristianismo, o homem
na perspectiva geral da teurgia. Como os outros deuses, o não pode salvar-se por suas próprias forças; ele tem neces-
Deus supremo pode manifestar-se também eventualmente sidade da iniciativa divina.
à alma na experiência mística79 , por intermédio do que
Proclo denomina "o uno da alma", isto é, da parte supre-
ma e transcendente da alma; o "uno da alma" correspon-
deria então, de alguma maneira, ao signo, que, na prática
teúrgica ordinária, atrai os deuses para a alma.
Essa invasão da teurgia no platonismo é para nós muito
enigmática. É difícil compreender por que o neoplatonismo
do fim da Antiguidade introduziu as práticas teúrgicas na
prática filosófica. Como bem-r-essaltou H.-D. Saffreyw, pode-
se explicar essa atitude pela representação que os neopla-
tônicos posteriores fazem do papel do homem em relação

78. Jâmblico, Les Mysteres d'Égypte, Éd. É. des Places, Paris, 1966, li,
11, p. 96.
79. Cf. A. Sheppard, "Proclu's Attitude to Theurgy", in Classical Qua-
terly, 32: 212-224, 1982; H.-D. Saffrey, "From Iamblichus to Proclus and
Damascius", in Classical Mediterranean Spirituality, Ed. A. H. Armstrong, New
York, 1986, pp. 250-265.
80. H-D. Saffrey, Recherches sur le néoplatonisme apres Plotin, pp. 54-56.

246 247
Capítulo 9

/Filosofia e discurso filosófico

A filosofia e a ambiguidade
do discurso filosófico

Os estoicos distinguiam a filosofia, isto é, a prática


vivida das virtudes - que era para eles a lógica, a física
e a ética1 - , do "discurso segundo a filosofia", isto é, o
ensino teórico da filosofia, dividido em teoria da física,
teoria da lógica e teoria da ética. Essa distinção, que tem
um sentido muito preciso no sistema -estoico, pode ser
utilizada de maneira mais geral para descrever o fenômeno
da "filosofia" na Antiguidade. Reconhecemos, ao longo
de nosso estudo, de um lado, a existência de uma vida
filosófica, mais precisamente de um modo de vida que se
pode caracterizar como filosófico e se opõe radicalmente
ao modo de vida dos não filósofos, e, de outro, a existência
de um discurso filosófico que justifica, motiva e influencia
essa escolha de vida.
Filosofia e discursos filosóficos apresentam-se assim
simultaneamente como incomensuráveis e inseparáveis.

1. Cícero, Dos termos extremos ... , III, 72; D. L. VII, 39 e 41, cf. acima
pp. 198-204.

249
Filosofia e discúrso filosófico
A filosofia como modo de vida

Incomensuráveis, em primeiro lugar, porque, para os recer como teórico 4 • Filósofo também, embora não tenha
antigos, se é filósofo não em função da originalidade ou da lecionado, o senador Rogaciano 5, discípulo de Plotino, do
abundância do discurso filosófico que se inventou ou de- qual falamos acima, que, no dia em que deveria assumir
senvolveu, mas em função da maneira pela qual se vive. suas funções de pretor, renuncia a seus cargos políticos e
Trata-se, antes de tudo, de tornar-se melhor. E o discurso a suas riquezas.
só é filosófico quando se transforma em modo de vida. Isso Vida filosófica e discurso filosófico são incomensuráveis
é verdade para a tradição platônica e aristotélica, p~r~ a sobretudo porque de ordem totalmente heterogênea. O que
qual a vida filosófica culmina na vida segundo o espir.Ito. faz o essencial da vida filosófica, a escolha existencial de um
Mas também é verdadeiro para os cínicos, para os quais o modo de vida, a experiência de certos estados, de certas
discurso filosófico reduz-se ao mínimo, quase que a alguns disposições interiores, escapa totalmente à expressão do dis-
gestos; nem por isso são eles considerados menos filóso- curso filosófico. Isso aparece mais claramente na experiência
fos, sendo tomados até como modelos de filoso~a. Outro platônica do amor, talvez mesmo na intuição aristotélica
exemplo: homem de Estado romano, Catão2 da Utica, que das substâncias simples, e sobretudo na experiência unitiva
se opunha à ditadura de César e pôs fim a s~a vida por plotiniana, totalmente indizível em sua especificidade, pois
um suicídio famoso, foi admirado pela postendade como quem fala dela, assim que a experiência é finda, já não se
um filósofo, e mesmo como um dos raros sábios estoicos situa no mesmo nível psíquico de quando vivia a experiên-
que existiram: é que em sua atividade política e~e prat~ca cia. Mas isso é verdade também para a experiência de vida
com rigor exemplar as virtudes estoicas. Is~o se da tam~em epicurista, estoica ou cínica. A experiência vivida do prazer
com outros políticos romanos, como Rutího Rufo e Qumt? puro, ou da coerência consigo mesmo e com a Natureza,
Múcio Escávola Pontífice, que praticaram à letra o estOI- é de ordem distinta da ordem do discurso que a prescreve
cismo mostrando uma desvinculação exemplar na adminis- ou a descreve do exterior. Essas experiências não são da
traçã~ de províncias, ou sendo os únicos a levar a sério as ordem do discurso ou das proposições.
prescrições das leis editadas -contra o luxo, defende~~o-se
Incomensuráveis, mas também inseparáveis. Não há
diante dos tribunais sem fazer apelo aos recursos retoncos,
discurso que mereça ser denominado filosófico se está se-
mas num estilo estoico3 • Pode-se também evocar o impera-
parado da vida filosófica; não há vida filosófica se não está
dor Marco Aurélio, chamado oficialmente "o filósofo" por
estreitamente vinculada ao discurso filosófico. Aí, contudo,
seu modo de viver, quando ainda se ignorava, contudo,
reside o perigo inerente à vida filosófica: a ambiguidade
que ele escrevera as Meditações e quando não poderia apa-
do discurso filosófico.
2. Sêneca, Da constância do sábio, 7, 1; Da providência, li, 9.
3. Cf. I. Hadot, "Tradition sto1cienne et idées politiques au temps des 4. Cf. P. Hadot, La Citadelle intérieure, Paris, 1992, pp. 16.31.
5. Porfírio, Vida de Platina, 7,32.
Grecques", in Revue des études /atines, 48: 174-178, 1970.

250 251
A filosofia como modo de vida Filosofia e discurso filosófico

Todas as escolas denunciaram o perigo que corre o sófica e discurso filosófico de três maneiras diferentes e
filósofo, se imagina que seu discurso filosófico pode bastar- por outro lado, estreitamente ligadas. Em primeiro luga;,
se a si mesmo, sem estar de acordo com a vida filosófica. o discurso justifica a escolha de vida e desenvolve todas
São constantemente atacados, para retomar os termos do as suas implicações: poder-se-ia dizer que é uma espécie
platônico Polêmon6 , os que procuram se fazer admirar de causalidade recíproca; a escolha de vida determina
por sua habilidade na argumentação silogística, mas se o discurso, e o discurso determina a escolha de vida
contradizem na conduta de sua vida, ou, como afirma uma j~stificando-a teoricamente. Em segundo lugar, para poder
sentença epicurista7, os que desenvolvem discursos vazios, VIver filosoficamente, é necessário exercer uma ação sobre
os que, como afirma o estoico Epiú~to 8 , dissertam sobre a si mesmo e sobre os outros, e o discurso filosófico, se é
arte de viver como homens, em vez de viver eles mesmos realmente a expressão de uma opção existencial, é, nesta
como homens, que fazem, segundo a expressão de Sêneca, perspectiva, um meio indispensável. Enfim, o discurso fi-
do amor pela sabedoria (philosophia) um amor pela palavra losófico é mesmo uma das formas de exercício do modo
(philologia) 9 • Tradicionalmente, os que desenvolvem um de vida filosófico, sob a forma do diálogo com outrem ou
discurso aparentemente filosófico, sem procurar pôr sua consigo mesmo.
vida em relação com seu discurso e sem que seu discurso
Em primeiro lugar, o discurso filosófico justifica teori-
emane de sua experiência e de sua vida, são denomina-
camente a escolha de vida. Constatamos isso de uma ex-
dos "sofistas" pelos filósofos, desde Platão e Aristóteles 10
tremidade a outra da história da filosofia antiga: para
até Plutarco, que declara que, uma vez que os sofistas se fundar a racionalidade de sua escolha de vida, os filósofos
distanciam de suas cátedras e põem de lado seus livros devem recorrer a um discurso que vise, tanto quanto pos-
e manuais, eles não são melhores que os outros homens sível, a uma racionalidade rigorosa. Quer se trate, em
"nos atos reais da vida" 11 • Platão, da escolha do Bem, ou, entre os epicuristas, da
Ao contrário, a vida filosófica não pode passar sem o escolha do prazer puro, ou, entre os estoicos, da escolha
discurso filosófico, com a-condição de que esse discurso da intenção moral, ou ainda, em Aristóteles e Plotino da
seja inspirado e animado por ela. Ele é parte integrante escolha de vida segundo o Intelecto, será necessário ~ada
dessa vida. Pode-se considerar a relação entre vida filo- vez desembaraçar com precisão os pressupostos, as impli-
cações, as consequências dessa atitude; por exemplo, como
6. D. L., N, 18. vimos para o estoicismo ou para o epicurismo, investigar,
7. In Porfírio, Carta a Marcela, § 31. na perspectiva da opção existencial, o lugar do homem no
S. Epiteto, Conversações, Til, 21, 4-6. mundo e elaborar, desse modo, uma "física" (coroada ou
9. Sêneca, Carta a Lucílio, 128, 23. Cf.J. Pépin, "Philologos/Philosophos",
in Porfírio, Vida de Platina, t. li, pp. 477-501 (citado p. 219, 12). não por uma teologia), definir também as relações do
10. Cf. acima pp. 32-34. homem com seus semelhantes e elaborar, assim, uma "éti-
11. Plutarco, Como escutar, 43 f. ca", definir, enfim, as próprias regras do raciocínio utiliza-

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A filosofia como modo de vida
Filosofia e discurso filosófico

das na física e na ética, e elaborar ainda uma "lógica" e neiras. É assim que o discurso puramente "teórico" e
uma teoria do conhecimento. Deve-se utilizar uma lingua- dogmático, reduzido - poder-se-ia dizer - a si mesmo,
gem técnica, falar de átomos, ou dos incorpóreos, ou das pode já operar isso, de alguma maneira, apenas com a
Ideias, ou do Ser ou do Uno, ou das regras lógicas da força da evidência. Por exemplo, por sua forma sistemáti-
discussão. Mesmo para a escolha de vida cínica, na qual o ca rigorosa, pelos traços atraentes da forma de vida que
discurso filosófico é muito reduzido, pode-se evidenciar, propõem e pela figura do sábio que desenham, as teorias
em última instância, uma reflexão sobre as relações entre epicuristas induzem, de alguma maneira, a que se faça a
a "convenção" e a "natureza". Um esforço de conceituali- escolha de vida que elas acarretam.
zação e de sistematização mais ou menos grande é reco-
nhecível de um extremo a outro da filosofia antiga. Mas elas podem ainda ampliar seu vigor persuasivo
concentrando-se em resumos muito densos, como o quá-
Em segundo lugar, o discurso é um meio privilegia- druplo remédio dos epicuristas. Eis por que estoicos e
do graças ao qual o filósofo pode agir sobre si mesmo e epicuristas aconselham seus discípulos a rememorar dia
sobre os outros, pois, se ele é a expressão de uma opção e noite, não apenas n;entalmente, mas por escrito, seus
existencial daquele que o sustenta, sempre tem, direta ou dogmas fundamentais. E nessa perspectiva que se deve com-
indiretamente, uma função formadora, educadora, psicagó- preender o exercício que constituem as Meditações de Marco
gica, terapêutica. É sempre destinado a produzir um efeito, Aurélio. Nessa obra, o imperador-filósofo formula para si
a criar na alma um habitus, a provocar uma transforma- mesmo os dogmas do estoicismo. Mas não se trata de um
ção do eu. É a esse papel criador que Plutarco faz alusão resumo ou de um sumário que bastaria reler; não se trata
quando escreve 12 : de fórmulas matemáticas, recebidas de u~a vez por todas
e destinadas a ser aplicadas mecanicamente. Também não
O discurso filosófico não esculpe estátuas imóveis, mas tudo
se trata de resolver problemas teóricos e abstratos, mas de
o que toca, ele o quer tornar ativo, eficaz e vivo, ele inspira render-se novamente às regras de tal modo que se sinta
impulsos motores, juízos_ger(],d,ores de atos úteis, escolhas em obrigado a viver como um estoico. Não basta reler as "pa-
favor do bem [. .. ]. - lavras", mas é necessário, sempre de novo, formular de
Nesta perspectiva, pode-se defini-lo como um exercício maneira notável máximas que instiguem à ação; o que conta
espiritual, isto é, como uma prática destinada a operar uma é o ato de escrever, de falar-se para si mesmo 13 • De maneira
mudança radical do ser. geral, pode-se dizer que a vantagem da estrutura sistemática
das teorias estoica e epicurista é que os refinamentos dou-
Os diferentes tipos de discursos filosóficos esforçar-se-ão trinais podem ser reservados aos especialistas, mas que o
para realizar essa transformação do eu de diferentes ma- essencial da doutrina é acessível a um público mais amplo:
12. Plutarco, A filosofia deve conversar sobretudo com os grandes, 776 c-d.
13. P. Hadot, La Citadelle Intérieure, pp. 64-66.

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A filosofia como modo de vida Filosofia e discurso filosófico

há aí uma analogia com o cristianismo, no qual, se as dis- exigências e normas da razão, da investigação da verdade
cussões são reservadas aos teólogos, o catecismo basta ao e, finalmente, reconhecer o valor absoluto do Bem. É sair
povo cristão. Essas filosofias podem, portanto, como dissemos, de seu ponto de vista individual para elevar-se a um ponto
tornar-se "populares". Elas são "missionárias". de vista universal, esforçar-se para ver as coisas na perspec-
tiva do Todo e do Bem, e transformar, com isso, sua: visão
Existe outro tipo de discurso, aparentemente tam-
do mundo e a própria atitude interior.
bém de ordem teórica: são os que tomam a forma de
interrogação, de investigação, da própria aporia, que não O discurso filosófico pode, então, tomar também a
propõem dogmas nem sistema, mas obrigam os discípulos forma de uma exposição contínua, de um discurso de
a um esforço pessoal, a um exercício ativo. Esses discur- exortação ou de consolação no qual todos os recursos da
sos tendem também a produzir uma atitude, um habitus retórica serão utilizados para provocar a transformação
na alma do interlocutor e a conduzi-lo a uma escolha de da alma.
vida determinada.
Enfim, terceiro aspecto das relações entre filosofia e
No diálogo de tipo socrático, no qual o mestre simula discurso filosófico, o discurso filosófico é uma das formas
nada saber e nada ensinar a seu interlocutor, este último do exercício do modo de vida filosófico. Como acabamos
é finalmente posto em questão: ele deve dar razão de si de ver, o diálogo é parte integrante do modo de vida
mesmo e da maneira pela qual vive e pela qual viveu. As platônico. A vida na Academia implica uma constante
interrogações socráticas levam-no a tomar cuidado consigo mudança intelectual e espiritual no diálogo, mas também
mesmo e, por consequência, a mudar de vida. na investigação científica. Essa comunidade de filósofos é
também uma comunidade de sábios que praticam as ma-
O diálogo platônico, por exemplo o Sofista ou o Filebo,
temáticas ou a astronomia e a reflexão política.
é um exercício mais intelectual, porém, tem-se de reco-
nhecer, é antes de tudo um "exercício". Como vimos, ele Mais ainda que a escola platônica, a escola aristotélica
não tem por objetivo princÍp-al e único resolver o proble- é uma comunidade de sábios. A escolha de vida aristotéli-
ma proposto, mas fazer o participante "tornar-se melhor ca é, com efeito, "viver segundo o Intelecto", isto é, en-
dialético". E, precisamente, ser melhor dialético não é . contrar o sentido de sua vida e seu prazer na investiga-
apenas ser hábil em inventar ou denunciar as sutilezas do ção; é portanto, finalmente, levar uma vida de sábio e de
raciocínio, mas antes de tudo saber dialogar, com todas as contemplativo, fazer investigações, muitas vezes coletivas,
exigências que isso demanda: reconhecer a presença e os sobre todos os aspectos da realidade humana e cósmica.
direitos do interlocutor, fundar sua resposta sobre o que O discurso filosófico e científico, que, para Aristóteles, não
o interlocutor reconhece saber, pôr-se em acordo com ele pode ser somente dialógico, é, então, também para ele, um
em cada etapa da discussão; é sobretudo submeter-se às elemento essencial da vida segundo o espírito. Atividade de

256 257
A filosofia como modo de vida Filosofia e discurso filosófico

sábio que pode, por outro lado, exceder-se em uma intuição Os exercícios espirituais
mística, quando o intelecto humano entra em contato em
um contato não discursivo com o Intelecto divino. Ao longo de nossa investigação, encontramos em todas
as escolas, mesmo nas céticas, "exercícios" ( áskesis, meletê),
Torna-se a encontrar em outras escolas essa comunida-
isto é, práticas voluntárias e pessoais destinadas a operar
de de investigação, de discussão, de cuidado de si e dos
uma transformação do eu. Elas são inerentes ao modo de
outros, de correção mútua, tanto, como vimos, na amiza-
vida filosófico. Analisarei, agora, as tendências comuns que
de epicurista como na direção de consciência estoica ou
podem ser verificadas nas práticas das diferentes escolas.
neoplatônica.
Reconhece-se também um exercício do modo de vida Pré-história
filosófico no discurso de meditação, que é, de alguma
Jamais houve início absoluto na história do pensamen-
maneira, um diálogo do filósofo sozinho consigo mesmo,
to. Pode-se supor que existiu uma pré-história dos exercí-
que já encontramos acima. O diálogo consigo mesmo
cios espirituais nos pensadores pré-socráticos e na Grécia
é um uso comum em toda a Antiguidade. Sabe-se, por
arcaica. Infelizmente, tudo o que conhecemos dos pré-
exemplo, que Pirro surpreendia seus concidadãos porque
socráticos é extremamente lacunar, os testemunhos são
falava em voz alta consigo mesmo1\ e que o estoico Cleanto
muito tardios e os fragmentos conservados bastante difíceis
se fazia censuras da mesma maneira. A meditação silen-
de interpretar, porque nem sempre podemos entender com
ciosa pode ser praticada em pé e imóvel - à maneira de
certeza o sentido das palavras empregadas; Por exemplo,
Sócrates - ou passeando, como dizem o poeta Horácio 15 :
Empédocles 17 fala da seguinte maneira de uma personagem
"Tu andas silencioso, a passo lento através dos bosques
fora do comum que talvez seja Pitágoras:
salubres, tendo na cabeça todos os pensamentos dignos de
um sábio e de um homem bom?", e o estoico Epiteto 16 : E vivia entre eles um homem de extremo saber,
"Passeia sozinho, conversa contigo mesmo". A meditação que o maior tesouro adquiriu de entranhados pensamentos
faz parte de um conjunto de práticas que nem sempre são (prapidôn),
da ordem do discurso, mas que sempre são o testemunho em toda espécie de obras sábias altamente capaz;
do envolvimento pessoal do filósofo e, para ele, um meio pois sempre que se retesava em todas as entranhas (prapi-
de transformar-se e influenciar-se a si mesmo. São esses os dessin),
exercícios espirituais que iremos agora evocar. fácil ele de todos os seres se punha a ver cada um,
não apenas em dez, mas em vinte tempos de vida humana.
14. D. L., IX, 64, e VII, 171.
15. Horácio, Epístolas, I, 4, 4-5. 17. Les Présocratiques, Empédocles, B CXXIX, Dumont, p. 428 [Fragmento
16. Epíteto, Conversações, 111, 14, l. 129 da tradução brasileira.].

258 259
A filosofia como modo de vida Filosofia e discurso filosófico

Quis-se ver aqui uma alusão aos exercícios de memória da existência de "técnicas de controle respiratório" apoia-se
praticados por Pitágoras 18 , o que tornaremos a ver, mas para unicamente na ambiguidade da palavra prapides; ora, nada
o momento podemos considerar que essa rememoração prova que a palavra designe o diafragma nessa frase de
se faz por "entranhados pensamentos". A palavra prapides, Empédocles.
empregada duas vezes nesse texto, significava originalmen-
Não quero dizer aqui que não tenham existido técnicas
te o diafragma, na tensão para segurar a respiração e, de
de controle respiratório na tradição filosófica grega. A con-
maneira figurada, a reflexão, o pensamento. Como a pala-
cepção de alma como um sopro 22 bastaria para fazer supor
vra "coração", que tem, a um só tempo, uma significação
isso. Supor-se-ia que o exercício platônico, que consiste em
fisiológica e psicológica. J.-P. Vernant19 , em continuidade
concentrar a alma comumente dispersa ein todas as partes
a L. Gernet20 , considera que o texto de Empédocles faz
do corpo23 , deva ser compreendido nessa perspectiva. É
alusão a um "exercício espiritual" de rememoração, que
espantoso também constatar que, nas narrativas referentes às
consiste em "técnicas de controle do sopro respiratório,
mortes de filósofos, por exemplo a de dois cínicos, Diógenes
pelo diafragma, que devem permitir à alma concentrar-se
e Métroclo 24, mencionam-se frequentemente personagens
para libertar-se do corpo e viajar para longe". Mas pode-se
que teriam posto fim a seus dias prendendo a respiração,
admitir que a palavra prapides, quando se trata do esforço
o que permite supor que práticas desse gênero eram evo-
de rememoração, tenha um sentido fisiológico, se duas
cadas nas tradições biográficas. Mas quero somente dar
linhas antes ao designar as reflexões e os pensamentos
aqui um exemplo entre outros das incertezas e dificuldades
atribui a eles um sentido psicológico? Em outro texto de
que pesam sobre todas as reconstruções e- hipóteses que se
Empédocles21 :
extraem dos pré-socráticos e da Grécia arcaica.
Feliz o que de entranhas divinas (prapidôn) adquiriu tesouro,
J.-P. Vernant25 acrescenta que as técnicas de controle
e mísero o que sobre deuses obscura opinião mantém,
da respiração serão reconstituídas na tradição "xamanista".
encontra-se o mesmo sentido-''psicológico" de prapides, con- O xamanismo 26 é um fenômeno social fundamentalmente
firmado, por outro lado, pela oposição desse termo a um
termo significando "opinião". A afirmação, nesse contexto, 22. J.-P. Vemant, op. cit., t. li, p. 111.
23. Cf. acima pp. 107-108.
24. D. L., VI, 76 e 95.
18. J.-P. Vemant, Mythe et pensée chez les Grecs, Paris, 1971, t. I, p. 114 25. J.-P. Vemant, op. cit., t. I, p. 96, e t. li, p. 111 [N. do T.: p. 362 da
[p. 138 da tradução brasileira.]. tradução brasileira.].
19. Id., ibid., p. 114 e 95-96 [pp. 138 e 119-120 da tradução brasileira, 26. R. N. Hamayon, La chasse à l'ârne. Esquisse d'une théorie du charnanis-
respectivamente.]. me sibérien. Paris: Société d'Ethnologie, 1990. Nas linhas que se seguem,
20. L. Gemet, Anthropologie de la Grece antique, Paris, 1982, p. 252. sirvo-me da exposição sobre o xamanismo apresentada por R. N. Hamayon,
21. B CXXXII, Dumont, p. 429 [Fragmento 132 da tradução brasi- "Le chamanisme sibérien: réflexion sur un médium", in La Recherche, 275:
leira.]. 416-422, abril 1995.

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A filosofia como modo de vida Filosofia e discurso filosófico

vinculado às civilizações da caça; ele permaneceu um Em segundo lugar, parece-me que os historiadores da
fenômeno central na sociedade apenas na Sibéria e na filosofia fazem do xamanismo uma representação fortemen-
América do Sul, mas adaptou-se e misturou-se a outras te idealizada e espiritualizada, o que permite ver exemplos
culturas e religiões em datas mais ou menos remotas, dele por toda parte. Pode-se, por exemplo, falar realmente
tendo o substrato permanecido mais visível na Escandi- de Sócrates, dizendo com H. Joly30 :
návia ou na Indonésia. Ele é centrado na figura do Que Sócrates tenha sido o último xamã e o primeiro filósofo Jaz
xamã, personagem que sabe, graças a uma ação ritual, parte, doravante, das verdades antropologicamente admitidas.
entrar em contato com o mundo dos espíritos de animais
ou de homens, vivos ou mortos, para permitir a caça, O que são "verdades antropologicamente admitidas"?
a criação de animais ou a cura das almas dos vivos ou Pode-se dizer realmente que ele foi o primeiro filósofo? E
dos mortos. Desde K. Meuli 27 e E. R. Dodds 28 , quis-se o que quer dizer aqui a palavra "xamã"? Significaria que,
ver no xamanismo a origem das representações dos fi- de acordo com o que é a essência do xamanismo - isto
lósofos gregos sobre a alma, sobre a separação entre é, na perspectiva da caça e da pesca, a aliança entre as
alma e corpo, também sobre a origem das técnicas de almas humanas e os espíritos animais, concebidos a partir
concentração espiritual, das representações de viagens do modelo matrimonial -, Sócrates tem uma esposa ritual,
da alma fora do corpo, desde M. Eliade 29 , a origem que seria um espírito feminino do mundo nutriz: filha de
espírito doador de caça, é denominada espírito da floresta,
igualmente das técnicas de êxtase. Serei extremamente
filha de espírito aquático, doador de peixe? O tempo do
reticente sobre esse gênero de explicação, por duas
ritual é animalizado por sua relação e seu comportamento?
razões principais.
E o macho dá saltos e gritos, repele seus rivais e acasala-se
Em primeiro lugar, mesmo que se admita essa pré- com sua fêmea? Faço alusão aqui a uma descrição da ati-
histórica xamanista, não é menos verdade que os exercícios vidade do xamã dada recentemente por meu colega R. N.
espirituais que nos interessam nada têm a ver com os rituais Hamayon31 • Ele também, parece-me, iluminou admiravel-
xamanistas, mas respondem,--ao contrário, a uma rigorosa mente a ambiguidade inerente ao uso do termo "transe",
necessidade de controle racional, a qual aparece para nós que é bastante próximo de "êxtase", para reagrupar o con-
com os primeiros pensadores da Grécia, e com os sofistas junto das condutas corporais xamanistas32 • Ele se contenta
e Sócrates. Uma comparação muito estreita arrisca-se a em dizer que o xamã está "em transe", sem descrever porme-
falsear a representação que se faz da filosofia grega. norizadamente seus gestos. Mas o que importa é precisa-

27. K Meuli, "Scythica", in Hermes, t. 70, 1935, pp. 137 ss. 30. H. Joly, Le Renversement platonicien, Paris, Vrin, 1974, pp. 67-69.
28. E. R Dodds, Les Grecs et l'irrationnel, Paris, Aubier, 1965, pp. 135-174. 31. R. N. Hamayon, "Le chamanisme sibérien ... ", pp. 418-419.
29. M. Eliade, Le chamanisme et les techniques archaiques de l'extase, Paris, 32. Id., "De la portée des concepts de 'transe, extase [ ... ]' dans l'étude
1968 OU ed. 1951). du chamanisme", in Études mongoles et sibériennes, T. 25, 1994.

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A filosofia como modo de vida Filosofia e discurso filosófico

mente o detalhe dos gestos corporais: tremer ou dar saltos rado, "supostas" ou "possíveis" seria mais exato como
não exprimem o mesmo tipo de relação e dirigem-se a tipos ~mos. Pens?, por minha parte, que, caso se queira me-
de espíritos diferentes33 : ditar tranqmlamente, deve-se permanecer imóvel e silencio-
so, e que essa conduta nada tem a ver com o "retrato" do
O simbolismo da aliança com espíritos animais, pelo Jato de
xamã. Dodds fala, em relação a isso, de um "retrato"
que implica a animalização ritual do xamã, é suficiente para
religioso, período de arrebatamento rigoroso na solidão
dar conta da estranheza de seu comportamento. Ele permite
descrever sua natureza normal ou patológica e o caráter ar- e no jejum e que pode incluir uma mudança psicológica
tificial ou espontâneo de sua conduta. Nenhuma necessidade de. sexo. Depois desse período, a alma do xamã pode
de apelar a um psiquismo particular, nem a um condicio- deixar seu corpo, viajar para longe, para o mundo dos
namento físico. O xamã comunica-se, pelos movimentos de espíritos. Mas as realidades são muito mais complexas,
seu corpo, com os espíritos animais, como o Jazem entre si estando sempre ligadas a certa relação ritual com os es-
espécies diferentes sem linguagem comum. Dando saltos ou píritos animais ou as almas dos mortos. Eliade e Dodds
estendendo-se inerte, não fica fora de si, não desmaia nem representam o xamanismo como o poder que um indiví-
fica histérico ou cataléptico: ele desempenha seu papel. Não duo tem de modificar como quer as relações de sua alma
se trata, para ele, de atingir um estado ou de viver uma e de seu corpo, ao passo que se trata antes da arte de
experiência como o querem certas interpretações ocidentais, praticar uma conduta simbólica, em relação com certas
mas de realizar a ação esperada pelos seus. Não há lugar situações concretas. E, pelo que é o retrato do xamã, cito
para Jazer apelo ao vocabulário do transe, do êxtase, ou de aqui ainda R. N. Hamayon36 :
estados alterados de consciência, vocabulário ambíguo que A aliança com um espírito animal funda o aspecto selvagem
implica, entre estado físico, estado psíquico e ato simbólico,
e espontâneo da conduta ritual do xamã. Funda também as
um lugar que nada experimenta.
condutas informais que envolvem sua carreira: fugas, recusa
Para poder falar de Sócrates como um xamã, é neces- de comida, sonolência etc. Manifestadas à puberdade, essas
sário, parece-me, eliminarâ-ã-noção de xamã tudo o que condutas levam a exprimir a entrada em contato com os es-
lhe confere sua especificidade. Para H. Joly3\ o fato de píritos animais e a constituir uma prova de virilidade.
Sócrates ficar à parte e permanecer imóvel para meditar,
Quase não se vê em tudo isso uma relação com o com-
o fato de que ele "ocupava seu espírito consigo mesmo" 35,
portamento de Sócrates. Dodds quis ver também traços de
prova que ele recorria a "técnicas bem conhecidas de con-
xamani~mo nas histórias que se relatam sobre personagens
trole da respiração". "Bem conhecidas" parece-me exage-
como Abaris, Arísteas de Proconeso, Hermotimo de
33. R. N. Hamayon, "Le chamanisme sibérien ... ", p. 419.
Clazômenas ou Epimênides, que teriam vicyado fora de seu
34. H. Joly, op. cit., p. 69.
35. Banquete, 174 d. 36. R. N. Hamayon, "Le chamanisme sibérien ... ", p. 419.

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A filosofia como modo de vida Filosofia e discurso filosófico

corpo. A descrição que oferece um escritor tardio, da se- Talvez se possam descobrir traços de xamanismo em
gunda metade do século II d.C., portanto nove séculos certos aspectos religiosos e rituais da Grécia arcaica, mas é
depois de Arísteas, da aventura deste último poderia, por necessário, sem dúvida, observar a mais extrema prudência
outro lado, parecer confirmar a representação idealizada quando se trata de interpretar pelo xamanismo as figuras e
que se fazia habitualmente do xamanismo 37: as práticas desses sábios, de Arísteas a Pitágoras, que teriam
possuído o domínio de sua alma, graças a uma disciplina
jazendo sobre o solo, respirando penosamente, sua alma aban- de vida ascética. ~arece que, nesse domínio, é igualmente
do~ando seu corpo vagueia como um pássaro e vê tudo o que legítimo hesitar. E o que faz J.-P. Vernant quando escreve,
esta sob ela, a terra, o mar, os rios, as cidades, os costumes e a propósito de personagens como Ábaris ou Arísteas 39 :
as paixões dos homens, as naturezas de todo gênero. Depois
disso, tornando a entrar em seu corpo eJazendo-o levantar-se, De nossa parte, mais do que com os Jatos de xamanismo,
servindo-se novamente dele como um instrumento, ela narra estaríamos tentados a estabelecer uma aproximação com as
o que viu e percebeu. técnicas de tipo ioga.

J. D. P. Bolton38 mostrou, graças a um estudo minucio- Podemos agora voltar ao texto de Empédocles do qual
extraímos algumas partes. Ele nos deixa vislumbrar dois
so, ~u~ foi sob a influência de um discípulo de Platão,
fatos bem conhecidos, em primeiro lugar que Pitágoras
Herachdo do Ponto, interessado nesse gênero de fenô-
acreditava nas reencarnações, em seguida que tinha o
menos, que a história de Arísteas fora interpretada dessa
poder de rememorar suas existências anteriores. Dizia-se
m~neira. Mas,_ segundo Bolton, tudo leva a pensar que
que ele tinha a lembrança de ter sido Euforbo 40 , filho de
Ar1steas, que VIVeu no século VII a.C., teria feito realmente
Pantoos, que Menelau ocultou durante a guerra de Troia.
uma viagem de exploração para o Sul da atual Rússia e
Os Antigos diziam também que os pitagóricos praticavam,
para as estepes da Ásia, e que, ao retornar, teria escrito
pela manhã ou pela tarde, exercícios de rememoração,
um poema intitulado "Arimaspea" relatando sua aventura.
pelos quais se duplicavam todos os acontecimentos do dia
Parece que, no caso de-Aristeas, ele não fez nenhuma
ou da vigília41 • Pensou-se que esses exercícios tinham como
viagem psíquica, mas uma autêntica viagem terrestre.
finalidade última permitir reenviar para a memória as vidas
Ausente durante seis anos, foi considerado morto. Pensou-
anteriores42 • Essa interpretação pode apoiar-se sobre um
se, então, ter sido sua alma que fizera essa viagem em um
estado de morte aparente. Vê-se aqui, ainda, a incerteza que
39. J.-P. Vernant, Mythe et pensée chez les Grecs, t. I, pp. 114; t. II, p. 110,
pesa sobre esse gênero de interpretações "xamanistas". nota 44 [p. 362, nota 44 da tradução brasileira.].
40. Porfírio, Vida de Pitágoras, § 45. W. Burkert, Lore and Science ... , pp.
37. Máxü!lo de Tiro, Discursos, XVI, 2, p. 60 Dübner, in Theophrasti 139-141.
Characteres .. .. Ed. F. Dübner, Paris, Didot, 1877. 41. Jâmblico, Vida de Pitágoras, §§ 164-165.
38.]. D. P. Bolton, Aristeas of Proconnesus, Oxford, 1962. 42. J.-P. Vernant, Mythe et pensée.. ., t. I, p. 111.

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A filosofia como modo de vida Filosofia e discurso filosófico

umco testemunho muito tardio, o de Hiérocles, escritor teza é, em primeiro lugar, que os pitagóricos do tempo
do século V a.C., comentador de um apócrifo neopitagórico, de Pitágoras e depois dele exerceram influência política
os Versos dourados, no qual se encontram, entre outras sobre várias cidades do Sul da Itália, fornecendo com
coisas, conselhos concernentes à prática do exame de isso um modelo à ideia platônica de uma cidade orga-
consciência. Hiérocles, depois de ter mostrado a impor- nizada e governada por filósofos 47 . Também podemos
tância moral dessa prática, acrescenta43 : dizer que, após o revés dessa atividade política, existiram,
Essa lembrança da vida cotidiana torna-se um exercício tanto no Sul da Itália como no restante da Grécia, co-
apropriado para que rememoremos o que fizemos em nossas munidades pitagóricas que levavam uma vida ascética, da
vidas anteriores e para que possamos nos dar o sentimento qual falamos acima48 •
de nossa imortalidade. Sabemos muito pouco sobre as práticas espirituais que
Notar-se-á, contudo, que duas testemunhas anteriores, poderiam estar em uso em outros pré-socráticos. Pode-se
Diodoro da Sicília44 e Cícero, quando evocam a prática somente notar que, para tratar de um de seus temas favo-
pitagórica de rememoração dos acontecimentos da jor- ritos, a tranquilidade da alma, filósofos como Sêneca e
nada precedente e dos dias anteriores, falam unicamente Plutarco49 aludiram a uma obra de Demócrito consagrada
de exercícios destinados a intensificar as capacidades da à euthymia, isto é, a boa disposição da alma, que equivale
memória. Para Porfírio 45 , trata-se antes de um exame de à alegria. Segundo Sêneca, ele a procurava em um estado
consciência, pois é necessário se dar conta a· si mesmo de equilíbrio da alma. Pode-se chegar a esse estado pro-
dos acontecimentos passados e também prever como se curando adaptar a própria ação ao que se é capaz de fazer.
agirá no futuro. Trata-se de "ocupar-se de seus negócios": Úma ação sobre
si mesmo é possível, portanto. É igualmente notável que
Possuímos muitas descrições da vida na escola de
uma abundante compilação de sentenças morais tenha
Pitágoras. Infelizmente, elas são muitas vezes uma projeção
sido posta sob o nome de Demócrito 50 • Por outro lado,
do ideal de vida filosófica próprio às escolas bem posterio-
ele teria escrito também uma obra intitulada Tritogeneia,
res ao pitagorismo. Não se po-de fiar nelas para reconstruir
que é um dos epítetos da deusa Palas Atena, identificada
o modelo de vida pitagórico. Sabemos que Platão 46 elogia-
por ele à sabedoria ou prudência, definindo essa sabedo-
va esse modo de vida na República, mas não nos dá detalhes
sobre seu conteúdo. Tudo o que podemos dizer com cer-
47. Cf. W. Burkert, Lore and Science ... , pp. 109-120 e 192-208.
48. Cf. acima pp. 226-227
43. M. Meunier, Pythagrm, Les Vers d'or, Hiérocles, Comentário sobre os 49. Sêneca, Da tranquilidade da alma, 2, 3; Plutarco, Da tranquilidade da
Versos dourados, versos XL-XLIV, p. 226. alma, 465 c; Diógenes Laércio, IX, 45; cf. I. Hadot, Seneca ... , pp. 135 ss.; P.
44. Diodoro da Sicília, Biblioteca histórica, X, 5, 1; Cícero, Da velhice, 11, 38. Demont. La cité grecque archai'que et classique et l 'idéal de tranquillité. Paris,
45. Porfírio, Vida de Pitágoras, § 40. 1990, p. 271.
46. Platão, República, X, 600 a-b. 50. Demócrito, B XXXV ss., Les Présocratiques, Dumont, pp. 862-873.

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A filosofia como modo de vida Filosofia e discurso filosófico

ria como a arte de bem raciocinar, de bem falar e de fazer não se sabe qual outra vida, mas não esta, e, enquanto fazem
o que é necessário fazer 51 • isso, o tempo é perdido. Não se pode pôr em jogo a vida como
Entre os sofistas, Antifonte52 apresenta o interesse bem um dado que se torna a jogar.
particular de ter proposto uma terapêutica que consistia em Imagina-se já ouvir Epicuro ou Sêneca dizer: "Enquanto
cuidar das mágoas e das penas pela palavra. Não sabemos se espera viver, a vida passa".
como fazia isso, mas podemos encontrar nos fragmentos
conservados de suas obras preciosas indicações sobre seu Conjetura-se assim, graças a alguns exemplos, ter exis-
conhecimento da psicologia humana. Assinalaremos aqui tido toda uma pré-história da vida filosófica e das práticas
apenas alguns exemplos. Ele sabia, por exemplo, que não a ela vinculadas55 . Mas, diante da pobreza de fragmentos
é possível tornar-se sábio sem que a própria pessoa tenha conservados e da dificuldade de interpretá-los, descrever
experimentado o que é vergonhoso ou mau, isto é, sem com precisão essas práticas demandaria, acabamos de vê-lo,
que tenha obtido uma vitória sobre si mesma. Também um estudo muito longo.
sabe que quem, querendo fazer o mal a seu próximo, não
o faz imediatamente, por medo de não se sair bem ou de Exercícios do corpo e exercícios da alma
ver surgir consequências desagradáveis, termina frequen-
temente por renunciar a seu projeto 53 • Isso significa que Embora muitos textos façam alusão a ele, não exis-
a prudência consiste em refletir, em tomar certa distância te nenhum tratado sistemático codificando de maneira
da ação. Vislumbra-se, com isso, o papel que desempenha exaustiva uma teoria e uma técnica do exercício ( áskesis)
a reflexão na conduta da vida. Por outro lado, Antifonte filosófico. Pode-se supor que as práticas faziam, antes de
tinha a reputação de ser um admirável intérprete dos tudo, parte de um ensino oral e eram vinculadas ao uso
sonhos. Observe-se esta advertência sobre a unicidade e a da direção espiritual. Notar-se-á somente que existiram
gravidade da vida54 : tratados Sobre o exercício agora perdidos. Sob esse título
possuímos apenas um pequeno tratado do estoico Musônio
Há pessoas que não vivem a vida presente: é tudo como se elas Rufo 56 • Depois de ter afirmado que os que principiam
se preparassem, consagranào=lhe todo o seu ardor, para viver a filosofar têm necessidade de exercitar-se, distingue
exercícios próprios à alma e exercícios comuns à alma
51. Demócrito, B II, Les Présocratiques, Dumont, p. 386.
52. Antifonte, o Sofista, A VI-VII, Les Présocratiques, Dumont, pp. 1094-
e ao corpo. Os primeiros consistirão, de um lado, em
1095. Cf. G. Romeyer-Dherbey. Les Sophistes. Paris, 1985, pp. 110-115; M. "sempre ter à sua disposição", portanto em meditar, as
Narcy, "Antiphon le Sophiste", in Dictionnaire des philosophes antiques, t. I, pp.
225-244; W. D. Furley, "Antiphon der Sophist. Ein Sophist als Psychotera- 55. Sobre essa pré-história, cf. I. Hadot, "The Spiritual Cuide", in
peut?", in Rheinisches Museum, 135: 198-216, 1992; P. Demont, La cité grecque Classical Mediterranean Spirituality, New York, 1986, pp. 436-444; da mesma
archaique... , pp. 253-255. autora, Seneca... , pp. 10 ss.
53. Antifonte, B LVIII-LIX, Dumont, p. 1114. 56. In A.:J. Festugiere, Deux prédicateurs de l'Antiquité: Téles et Musonius,
54. Antifonte, B LIII e LII, Dumont, p. 1112. Paris, Vrin, 1978, pp. 69-71.

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A filosofia como modo de vida Filosofia e discurso filosófico

demonstrações que estabelecem os dogmas fundamentais e reconhecer que eles reconduzem finalmente a dois
que regem a ação, e igualmente em representar-se as movimentos de tomada de consciência de si, opostos e
coisas em outra perspectiva; e, de outro, em querer e complementares: concentração e dilatação do eu. O que
procurar apenas os bens verdadeiros, entendamos: a pu- unifica essas práticas é o desígnio do mesmo ideal: a figura
reza da intenção moral. Praticaremos exercícios comuns do sábio que, apesar das aparentes diferenças, as diversas
à alma e ao corpo, "caso nos acostumemos ao frio, ao escolas representavam com muitos traços comuns.
calor, à sede, à fome, à frugalidade da alimentação, à du-
reza da cama, à abstinência das coisas agradáveis, a A relação consigo e a concentração do eu
suportar as coisas penosas". O corpo tornar-se-á assim
A ascese
impassível à dor e disposto para a ação, mas a própria
alma, graças a seus exercícios, se fortificará, tornando-se Quase todas as escolas propõem exercícios de ascese
corajosa e moderada. (a palavra grega áskesis significa precisamente "exercício")
Essas observações de Musônio são preciosas porque nos e de domínio de si: há a ascese platônica, que consiste
em renunciar aos prazeres dos sentidos e em praticar um
permitem entrever que a representação de um exercício
regime 'alimentar, em certas circunstâncias chegando, sob
filosófico enraíza-se no ideal do atletismo e da prática
a influência do neopitagorismo, até a abstinência da car-
habitual da cultura física nos ginásios. Do mesmo modo
ne de animais, ascese destinada a enfraquecer o corpo
que, graças aos exercícios corporais repetidos, o atleta
pelos jejuns e pelas vigílias, para melhor viver a vida do
dá a seu corpo uma força e uma forma novas, graças aos
espírito; há a ascese cínica, praticada também por alguns
exercícios filosóficos o filósofo desenvolve sua força de
estoicos, que faz suportar a fome, o frio, as injúrias, su-
alma, e transforma-se a si mesmo. A analogia pode ficar
primir todo luxo, todo conforto, todos os artifícios da
ainda mais evidente caso se considere que era precisa-
civilização, para adquirir resistência e conquistar indepen-
mente no gymnasion, isto é, no lugar onde se praticavam
dência; há a ascese pirrônica, que se aplica a considerar
os exercícios físicos, que-se -davam muitas vezes também
todas as coisas indiferentes, pois não se pode dizer se são
as aulas de filosofia57 . Exercício do corpo e exercício da
boas ou más; há a dos epicuristas, que limitam seus desejos
alma concorrem para esculpir o homem verdadeiro, livre,
para chegar ao prazer puro; há a dos estoicos, retificando
forte e independente.
seus juízos sobre os objetos e reconhecendo que não se
Demos numerosos exemplos dessas práticas a propó- deve prender-se às coisas indiferentes. Todas elas supõem
sito de diferentes escolas. Mostraremos agora o profundo um desdobramento, pelo qual o eu recusa confundir-se
parentesco que se pode evidenciar entre esses exercícios com seus desejos e apetites, distancia-se dos objetos
de sua cobiça e toma consciência de seu poder de desli-
57. J Delorme, Gymnasion, Paris, 1960, pp. 316 ss., e p. 466.
gar-se deles. Ele se eleva, com isso, de um ponto de vista

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A filosofia como modo de vida Filosofia e discurso filosófico

injusto e parcial58 a uma perspectiva universal, seja ela da aparência na estátua. Da mesma maneira, tu também tira
natureza ou do espírito. tudo o_que é supérfluo, corrige o que é torto, purificando tudo
o que ~ tenebroso para torná-lo mais brilhante, e não cesses de
O eu, o presente e a morte esculpzr tua própria estátua até que brilhe em ti a luz divina
da virtude. ·
Os exercícios espirituais correspondem quase sempre
ao movimento pelo qual o eu se concentra em si mesmo, O exercício do qual acabamos de falar encontra-se
descobrindo que não é o que acreditava ser, que não se também nos estoicos, por exemplo em Marco Aurélio61.
confunde com os objetos aos quais se prendia. Ele se exorta a "separar-se de si mesmo" isto é diz ele
de "seu pensamento", do que os outros fazem' ' dizem '
ou
O pensamento da morte desempenha aqui um papel
decisivo. Vimos que Platão definia a filosofia como um do q~e ele próprio fez ou disse no passado, a separa;
exercício para a morte, na medida em que, sendo a morte ~am~e~ de seu eu todas as coisas futuras que podem
uma separação da alma e do corpo, o filósofo separava-se mqmeta-lo, seu corpo e mesmo a alma que anima seu
espiritualmente do corpo. Na perspectiva platônica, somos corpo, os acontecimentos provenientes do encadeamento
assim reconduzidos à ascese que consiste em descobrir o das causas universais, isto é, do destino, as coisas que se
eu puro e em superar o eu egoísta fechado em sua indi- prenderam a ele, visto que ele se prendeu a elas· e ele
vidualidade, separando-o de tudo o que a ele se prendia e promete a si mesmo, c?m isso, caso se separe do 'tempo
ao qual estava preso, e que o impede de tomar consciência passado e .~o futuro e VIVa no presente, atingir um estado
de si mesmo, como o deus marinho Glauco, coberto de de tranquihdade e serenidade.
conchas, algas e seixos, do qual fala Platão 59 • A tomada Nesse exercício, o eu é totalmente circunscrito no
de consciência é um ato de ascese e de desligamento, como pres~nte, ele se prepara para viver somente 0 que vive,
é patente também em Plotino, que aconselha ao eu que Isto e, o presente: ele se "separa" do que fez e disse no
se separe do que lhe é estranho60 : passado e do que viverá no futuro. "Cada um vive apenas
Se tu não vês ainda tua própria beleza, faze como o escultor o presente momento infinitamente breve. O mais da vida"
de uma estátua que deve ser bela: tira isto, raspa aquilo, dei- - diz Marco Aurélio 62 -, "ou já se viveu ou está na in-
xa tal lugar liso, limpa tal outro, até fazer aparecer uma bela c~rteza.~ O passado não me diz mais respeito; o futuro
am~a nao me diz respeito 63 • Encontramos aqui a oposição
58. O autor faz um jogo de palavras que não é possível reproduzir em estmca entre o que depende e o que não depende de nós.
português: partial e partiel. Partial remete ao ato de cometer uma injustiça
quando se toma partido de alguém ou de uma causa; partiel aplica-se ao que . 61. Marco Aurélio, Meditações, XII, 3, 1 ss. Cf. P. Hadot, La Citadelle
é uma parte de um todo, àquilo que constitui uma parte [N. do T.]. Inteneure, pp. 130 ss. e pp. 148-154.
59. República, X, 611 d. 62. Meditações, III, 10, 1.
60. Plotino, Eneadas, I, 6 (1), 9, 7 ss. 63. Sêneca, Cartas a Lucílio, 78, 14.

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A filosofia como modo de vida Filosofia e discurso filosófico

O que depende de nós é o presente, lugar da ação, da A consciência de si não passa da consciência de um
decisão, da liberdade; o que não depende de nós são o eu que age e vive no momento presente. Marco Aurélio
passado e o futuro, ante os quais nada podemos. O pas- por exemplo, não cessa de repetir: é necessário que e~
sado e o futuro podem representar para nós penas ou concentre minha atenção no que penso neste momento
prazeres imaginários 64 . no que faço neste momento, no que me acontecé nest~
Deve-se compreender bem esse exerooo de concen- momento, de modo que eu veja as coisas como elas se
tração no presente e não imaginar que o estoico não a~res_entam. a mim neste momento, de modo que eu
se lembre de nada e jamais pense no futuro. O que ele d1recwne mmha intenção para a ação que estou em vias
recusa não é o pensamento do futuro e do passado, mas de fazer, querendo fazer apenas o que serve à comunida-
as paixões que ele pode ocasionar, as vãs esperanças, as de humana, de modo que eu aceite, como determinado
penas vãs. O estoico se quer como homem de ação e, para pelo destino, o que me acontece neste momento e não
viver, para agir, é necessário fazer projetos e considerar o depende de mim 66.
passado para prever suas ações. Mas, precisamente, porque
só há ação no presente, é apenas em função da ação, na O exercício da consciência de si remete, assim a um
medida em que o pensamento pode ter qualquer utilidade e~ercício de _atenção 67 a si mesmo (prosokhé) e de ~gilân­
para a ação, que se deve pensar no passado e no futuro. na, que supoe que se renova, a cada instante a escolha
É, portanto, a escolha, a decisão, a própria ação que de- de vida, isto é, a pureza da intenção, a confo~idade da
limita a densidade do presente. Os estoicos distinguiam vontade do indivíduo com a vontade da Natureza univer-
duas maneiras de definir o presente. A primeira consistia sal, e que se te~ham presentes ao es:r:írito os princípios
em compreendê-lo como o limite entre o passado e o e :s regra~ de VIda ~ue o exprimem. E necessário que o
futuro. Desse ponto de vista, jamais há tempo presente, filosofo seJa, a cada mstante, perfeitamente consciente do
visto que o tempo é divisível ao infinito. Mas trata-se aí que é e do que faz.
de uma divisão abstrata, de -ordem matemática, o presente
Essa conce~tra~ão no momento presente supõe também,
reduzindo-se então a um instante infinitesimal. A segunda
como a consoenoa de si platônica, um "exercício para a
maneira de conceber o presente consistia em defini-lo
morte". O pensamento da possibilidade da morte confere
em relação à consciência humana: ele representaria uma
seu valor e sua gravidade em todo momento e em toda
densidade, uma duração, que corresponderia à atenção da ação da vida68 :
consciência vivida65 • É desse presente vivido que se trata
quando se fala de concentração no presente.
66. Marco Aurélio, Meditações, VII, 54.
67. Cf. Epíteto, Conversações, N, 12.
64. Marco Aurélio, Meditações, VIII, 36 e XII, 1. 68: Marco Aurélio, Meditações, II, 11; 11, 5, 2; VIl, 69; Epíteto, Manual
65. Cf. P. Hadot, La Citadelle intérieure, p. 152. § 21; Seneca, Cartas, 93, 6; 101, 7. '

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A filosofia como modo de vida Filosofia e discurso filosófico

Em todos os teus atos, ditos e pensamentos, procede como se No momento de ir dormir, falamos da alegria e do regozijo: "Eu
houvesses de deixar a vida dentro de pouco. , . vivi, cumpri a carreira que me assinalou a fortuna". Se um
Desempenha cada ação de tua vida como se fosse a ultzma, deus nós dá o dia seguinte a mais, recebemo-lo com regozijo. É
isenta de toda leviandade. , . plenamente feliz, tem a tranquila possessão de si mesmp, quem
É da perfeição moral passar cada dia ~amo se fosse o ultzmo, espera o dia seguinte sem inquietude. Todo aquele que se diz
sem comoções, nem torpores, nem jingzmento. . . . ''Eu vivi" vive cada dia como um benefício inesperado.
Que a morte esteja diante de teus olhos a cad~ dza e !amazs Apressa-te para viver e considera cada dia uma vida acabada
terás algum pensamento baixo ou algum deseJO excesszvo. [. .. } Aquele para o qual cada dia a sua vida foi completa
possui a paz da alma.
Nessa perspectiva, quem dedica toda sua atenção e
consciência ao presente considerará que tem tudo no Vê-se, assim, como esse exerooo conduz a olhar o
momento presente, porquanto tem, neste momento e ao tempo e a vida de maneira totalmente diferente, e che-
o o valor absoluto da existência e o valor ga .a uma verdadeira transformação do presente. Isso é
mesmo temp , · al'
absoluto da intenção moral. Nada tem a desejar . em tanto mais interessante de constatar quanto, nessa marca
. T da a duração de uma vida e toda a etermdade espiritual, epicurismo e estoicismo se encontram em mais
d ISSO. o . . d d 69 "S 1 ém
não poderiam trazer-lhe mais fehc!" a e : e a g_u de um ponto.
tem a sabedoria por um instante, nao a aband~nara,em No epicurismo73 há também uma concentração em si
favor daquele que a possui desde toda a etermda~e . A e uma tomada de consciência de si ligadas a uma ascese
felicidade é inteiramente felicidade, como um orcul_o que consiste em limitar os próprios desejos àqueles naturais
continua sendo um círculo, quer seja pequeno, quer seja e necessários que assegurem à carne, isto é, ao indivíduo,
imenso7o. À diferença do espetáculo de danç~ ou da pe~a um prazer estável. Aristóteles 74 teria dito: "Sentir que se
de teatro, inacabados caso sejam interrompidos, a açao vive é um prazer". Mas viver é precisamente sentir. É
moral é inteiramente perfeita a cada momento71. Esse _mo- necessário dizer: "Sentir que se sente é um prazer". Há,
mento presente equivale a toda uma vida. ~ode-se dizer: para Epicuro, uma espécie de tomada de consciência por
. . min
rea1Izei . ha Vl·da , tive tudo o que podena esperar da si mesmo do ser senciente, que é precisamente o prazer
vida. Posso morrer72 : filosófico, o puro prazer de existir.
69. Crisipo, in Plutarco, Das noções comuns contra os estoicos, 1062 a, in Mas, para atingir essa consciência de SI, e necessano
Les Stoi'ciens, éd. É. Bréhier, P· 140. .. . 1990 ainda uma vez separar o eu do que lhe é estranho, isto é,
, C rt 7. cf. J. Kristeva, Les Samourazs, Pans, , P~
7O. Seneca, a as, 74 ' 2 ' . d ' feliz porque e
380: "O círculo perfeito, quer seja pequeno ou gran e, e
73. Sobre o presente no estoicismo e no epicurismo, cf. P. Hadot, "Le
justo". . . présent seul est notre bonheur", in Diogime, 133: 58-81, jan.-mar. 1986.
71. Marco Aurélio, Medztaçoes, XI, 1, l.
72. Sêneca, Cartas, 12, 9; 101, 10. 74. Ética a Nicômaco, IX, 1170 b L

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A filosofia como modo de vida Filosofia e discurso filosófico

não as pmxoes provocadas pelo corpo, mas as paixões Como para os estoicos, o exerooo espiritual funda-
provocadas pelos desejos vãos da alma. E tornamos ~ en- mental consiste, para os epicuristas, em concentrar-se no
contrar aqui ainda a concentração no presente, pms, se presente, isto é, na consciência do eu no presente, e em
nos deixarmos arrastar e perturbar pela expectativa e pela evitar projetar seus desejos sobre o futuro. O presente
esperança do futuro, é que a alma pensa no p~ssado e ~o basta para a felicidade, pois permite satisfazer os desejos
futuro 75 , porque ela não é cerceada pelos deseJOS que nao mais simples e mais necessários, aqueles que proporcionam
são nem naturais nem necessários, por exemplo a perse- um prazer estável. É esse um dos temas favoritos do poeta
guição de riquezas e de honras que só pode ser satisfeita Horácio79 :
76
por um longo esforço, tão penoso quanto incerto :
Que a alma, feliz no presente, recuse inquietar-se com o que
Os insensatos vivem à espera de bens futuros. Sabendo que virá em seguida.
são incertos, são consumidos pela ansiedade e pelo medo. E, O presente, sonho para bem dispor, de um espírito sereno.
mais tarde - é o pior de seus tormentos -, apercebem-se de Todo o restante levado como um rio.
que foi inutilmente que se apaixonaram pelo dinheiro, pelo
poder ou pela glória. Pois eles não retiraram nenhum prazer Como para os estoicos, esse exercício está, por outro
de todas essas coisas cuja esperança que os tinha inflamado lado, estreitamente ligado ao pensamento da morte. É ele
e pela conquista das quais trabalharam tão penosamente. que dá seu valor a cada instante e a cada dia da vida. Eis
A vida do insensato é ingrata e inquieta. Ela se rói comple- por que é necessário viver cada momento como se fosse
tamente pelo futuro. o último 80 :
Os epicuristas admitem que se pode proporcionar um Enquanto falamos, o zeloso tempo fugiu, colhe então d dia,
prazer estável, mas apenas na medida em que o que é sem te fiar no amanhã!
78
do passado o "reatualiza" 77 . É assim que Epicuro escreve Convence-te de que cada novo dia que se leva será para ti o
que suas dores físicas são atenuadas pela lembrança dos último. Então, é com gratidão que hás de receber cada hora
raciocínios filosóficos discutidos com seus discípulos, o inesperada.
que pode significar, por outro lado, não somente que a
lembrança do prazer passado lhe proporciona um prazer "Com gratidão", porque cada instante se manifesta, na
presente, mas que os raciocínios filosóficos que rememora perspectiva da morte, como um dom maravilhoso, como
lhe permitem também superar seu sofrimento. uma graça inesperada, em sua unicidade8 1:

75. D. L, X, 137; cf. J.-F. Balaudé, ÉpicuTe, p. 135. 79. Horácio, Odes, II, 16, 35, e III, 29, 33.
76. Cícero, Dos tmnos extmmos ... , I, 18, 60; Sêneca, CaTtas, 15, 9. 80. Id., ibid., I, 11, 7; Epístolas, I, 4, 13.
77. Cf. J.-F. Balaudé, Épicure, p. 135. 81. Filodemo, Da morte, 37, 20, in M. Gigante, Ricerche Filodemee, Napo-
78. D. L, X, 22; cf. Balaudé, p. 128. li, 1983, pp. 181 e 215-216.

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A filosofia como modo de vida Filosofia e discurso filosófico

Receber, reconhecendo todo o seu valor, cada momento do ~empo um movimento que se desenrola no tempo, não depende
que se acresce, como se chegasse por uma chance maravzlhosa da duração. É uma realidade em si que não se situa na
categoria do tempo. Do prazer epicurista, como da virtude
e incrível.
estoica, pode-se dizer que sua quantidade e sua d:uração
Deve-se tomar consciência do esplendor da existências2; em nada mudam sua essência: um círculo é um círculo
a maior parte dos homens são inconscientes e consomem-se quer seja imenso ou minúsculo. Eis por que esperar do
em desejos vãos, que ocultam sua próp~ia vida.. Sêneca, ~ futuro um aumento do prazer é ignorar a própria nature-
estoicos3 ' dissera: "Enquanto se espera VIver, a .VIda. passa
84.
. za do prazer. Só há verdadeiro prazer estável e pacificador
Ele parece assim fazer eco a esta sentença epKunsta para quem sabe limitar-se ao que pode alcançar no mo-
Só se vive uma vez, duas vezes não é permitido. Portanto, mento presente, sem deixar-se arrastar pela volúpia des-
é necessário que não durmamos por toda a eternidade, mas, medida dos desejos. Virtude estoica e prazer epicurista são,
tu, que não és senhor do amanhã, tu ainda mandas a ale- assim, perfeitos e acabados em cada momento. Como o
gria para 0 dia seguinte. A vida, contudo, se conso~e e"! estoico, o epicurista pode dizer com Horácio87 : "Senhor
vão nessas esperas e cada um de nós morre sem ter 1amazs de si e feliz é quem pode dizer a cada dia: Eu vivi". "Eu
vivi" porque eu conheci a atemporalidade do prazer, a
usufruído a paz. perfeição e o valor absoluto do prazer estável; "eu vivi",
Como 0 estoico, 0 epicurista encontra a perfeição ~o também porque tomei consciência da atemporalidade do
momento presente. Para ele, o prazer desse moment~ ~ao ser. Nada poderá impedir, com efeito, _que eu esteja no
tem necessidade de durar para ser perfeito. Um ~mco ser, que eu tenha chegado ao prazer de me sentir existir88 •
instante de prazer é tão perfeito quanto ~ma _eter~_1dade A meditação epicurista da morte é destinada simultanea-
de prazerBs. Epicuro é aqui o herdeiro da teona anstotelica do mente a fazer tomar consciência do valor absoluto da
prazers6. Para Aristóteles, da mesma manei~a ~ue o ato de existência e do nada da morte, a proporcionar o amor da
ver é completo e acabado - em sua espenfi:1da~e - em vida e a suprimir o medo da morteB9 : "É uma e a mesma
cada momento de sua duraçao-,-0 prazer tambem e em _:ad~ coisa o exercício do bem viver e o exercício de bem mor-
momento especificamente acabado. O prazer nao e rer". Bem morrer é compreender que a morte enquanto
não-ser, nada é para nós, mas é também regozijar-se a cada
82. Sobre a paz fundada na identidade do ser, do seHe, da ipseidade e do instante por ter chegado a ser e saber que a morte não
sentit~se existir, cf. a bela página de M. Hulin, La Mystzque sauvage, p. 237. pode diminuir em nada a plenitude do prazer de ser. Como
83. Sêneca, Cartas, I, 1-3. . , , .
84. Sentenças vaticanas, § 14, m J.-F. Balaude, Epzcure, P· 210·
85. Máximas capitais, XIX, Balaudé, p. 202; Cícero, Dos termos extremos... , 87. Horácio, Odes, III, 29, 42.
88. C. Diano, "La philosophie du plaisir et la société des amis", in id.,
I 19 63; li, 27, 87. .T Kr"
' '86. Aristóteles, Ética a Nicômaco, X, 3, 1174 a 17 ss. Cf. H.'J. amer, Studi e saggi di filosofia antica. Padova, 1973, p. 364.
Platonismus und hellenistische Philosophie, Berlin, 1971, PP· 188 ss. 89. Epicuro, Carta a Meneceu, § 126, Balaudé, p. 193.

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A filosofia como modo de vida Filosofia e discurso filosófico

bem notou C. Diano, por trás da ideia segundo a qual a de ver as coisas. Ter consciência de si é ter consnencia
morte nada é para mim, há uma intuição ontológica pro- do estado moral no qual se encontra. É o que a tradição
funda: o ser não é o não-ser, não há passagem do ser ao da espiritualidade cristã denomina exame de consciên-
nada. Wittgenstein90 pensa em Epicuro quando escreve: cia, prática muito disseminada nas escolas filosóficas da
An.t1gu1'dad e 92 . Essa prática enraíza-se, em primeiro ·lugar,
A morte não é um evento da vida. A morte não se vive.
Se por eternidade não se entende a duração temporal infinita, no simples fato de que o início da filosofia, em todas as
mas a atemporalidade, então vive eternamente quem vive no escolas, é a tomada de consciência do estado de alienação,
presente. de dispersão, de infelicidade, no qual alguém se encontra
antes de converter-se à filosofia. Ao princípio epicurista93: "O
Percebe-se aqui que Espinosa91 não tinha razão, em cer-
conhecimento do erro é o início da salvação", responde 0
to sentido, ao opor a meditação da morte à meditação da
princípio estoico94: "O ponto de partida da filosofia [ ... ] é
vida. Elas são, com efeito, inseparáveis uma da outra, são,
no fundo, idênticas, e condição indispensável da tomada a consciência de sua própria fragilidade". Mas não se trata
de consciência de si. Desse ponto de vista também, não somente de pensar nas próprias faltas, trata-se também de
se terá razão em opor radicalmente o exercício. da morte constatar os progressos realizados.
em Platão, por um lado, e entre estoicos e epicuristas, por Em relação aos estoicos, sabemos que o fundador da
outro. Pois, de um lado e de outro, trata-se sempre, graças escola, Zenão, recomendava ao filósofo que examinasse seus
ao pensamento da morte, de uma tomada de consciên- sonhos, para se dar conta dos progressos da alma, o que
cia de si, visto que, de uma maneira ou de outra, o que permite supor uma prática de exame de consciência95 :
pensa sua morte se pensa na atemporalidade do espírito
ou na atemporalidade do ser. Pode-se dizer que, em certo Ele pensava que cada um poderia, graças a seus sonhos, tomar
sentido, um dos exercícios filosóficos mais fundamentais é consciência dos progressos que fazia. Esses progressos serão
o exercício da morte. reais caso não se veja mais em sonho vencido por alguma
paixão vergonhosa, ou ainda consentindo com uma coisa má
Concentração em si e exame de consciência ou injusta ou mesmo cometendo-a, mas as faculdades de re-
Na perspectiva da filosofia vivida que acabamos de ex- presentação e de afetividade da alma, suavizadas pela razão,
por, tomar consciência de si é um ato essencialmente ético,
. 92. Cf. H. Jaeger, "L'examen de conscience dans les religions non chré-
graças ao qual se transforma a maneira de ser, de viver e
tJennes et avant !e christianisme", in Numen, 6: 175-233, 1959, e Dictionnaire
de spiritualité, IV, 2, 1961, cols. 1792-1794; I. Hadot, Seneca... , pp. 66-71.
90. Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus, 6.4311 [N. do T.: vali-me 93. Sêneca, Cartas, 28, 9; citando um texto epicurista.
da tradução brasileira.]. 94. Epiteto, Conversações, II, 11, 1.
91. Espinosa, Ética, IV, proposição 67. 95. Plutarco, Como perceber que se progride na virtude, 82 f.

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A filosofia como modo de vida Filosofia e discurso filosófico

resplandecem como num oceano diáfano de serenidade que Essa p~sagem dos Versos dourados será depois frequen-
nenhuma vaga vem perturbar. temente Citada ou evocada, em apoio da prática do exame
Platão96 , como vimos, já constatara que os sonhos per- de consciência, pelos estoicos como Epíteto, por um filó-
mitem desvelar o estado da alma. O tema reaparecerá na s~f~ independente como Galeno e sobretudo pelos neopla-
espiritualidade cristã97 • tomcos, como Porfírio e Jâmblico, que descrevem a vida das
comunidades pitagóricas como o modelo ideal da vida
Embora não seja atestado explicitamente nos textos, filosófica. O médico Galeno 100, independente de toda esco-
pode-se legitimamente supor que o exame de consciên- la filo_sófica, preocup~do em cuidar não só dos corpos mas
cia tenha sido praticado na escola epicurista, pois ele é tambem das almas, VIncula o exame de consciência à dire-
quase inseparável da confissão e da correção fraternal ção espiritual. Aconselhava que se deveria deixar advertir
nela valorizadas. por suas faltas por um homem mais velho e experimentado
Encontra-se um traço disso no século II a.C., na Carta e também examinar-se a si mesmo, pela manhã e à tarde.
10! fi .
a ArísteaSJ8, que afirma ser um dever do bom rei divulgar SA
eneca a rma que ele mesmo pratica esse exercício
todos os seus feitos e gestos do dia, para corrigir o que e qu~ nis~~ segue o. exemplo de um filósofo de inspiração
porventura tenha feito de mal. neop1tagonca, Sexuo, que vivia no tempo de Augusto:
No início da era cristã, o neopitagorismo retoma em É necess~riopedir a cada dia à alma a apresentação das
sentido moral os exercícios de memória que praticavam os contas. E o que fazia Sextio: após a jornada, uma vez
antigos pitagóricos, como se vê nos Versos douradoSJ 9 : tendo se retirado a seu quarto, interroga-va sua alma: ''De
qual mal te curaste hoje? Qual vício combateste? Em que
Não deixa o sono cair sobre teus olhos lassos
melhoraste?" Existe algo mais belo do que escrutar toda uma
Antes de ter pesado todos os atos do dia:
jornada? Q~al sono se seg;ue a esse exame, que é tranquilo,
Em que falhei? Que fiz, qual dever omiti?
profundo e lzvre, quando o espírito é elogiado ou advertido,
Começa por aí e prosseg;ue o-exame: após o que
qu.ando ele se faz o observador e o juiz secreto de seus pró-
Condena o malfeito, alegra-te pelo bem.
prws costumes! Uso esse poder e a cada dia defendo minha
96. República, IX, 571 d.
causa diante de mim mesmo. Quando se levantou a luz e
97. Evágrio, o Pôntico, Tratado prático do monge, §§ 54-56; cf. F. Refoulé, minha mulher, já habituada à minha maneira de agir, se
"Revês et vie spirituelle d'aprês Évrage le Pontique", in Supplément de la Vie
Spirituelle. 59: 470-516, 1961. 100 ..Galeno, Do ~iqgnóstico e do tratam;nto das paixões próprias da alma de
98. Carta a Aristeas, § 298; cf. I. Hadot, Seneca ... , pp. 68-69. Trata-se de um cada um, m Galeno, L'Ame et ses passions, Ed. et trad. V. Barras, T. Birchler,
texto de origem judaica do século ll a.C., influenciado pela filosofia grega. A.-F. Morand, Paris, 1995, p. 23.
99. Porfírio, Vida de Pitágoras, § 40. Epíteto, Conversações, III, 10, 3 101. Séneca, Da cólera, III, 36, 1-3; P. Rabbow, Seelenführung. .. (citado
(tradução Souilhé). p. 24, nota 9), pp. 180-181.

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A filosofia como modo de vida Filosofia e discurso filosófico

matou, examino toda a minha jornada e meço meus atos e o poder da razão. Constata-se, por exemplo, em Marco
ditos; não escondo nada, não perco nada. 107
Aurélio , que se exorta a si mesmo a preparar-se para
Sêneca desenvolve alhures esta comparação com o pro- as dificuldades que encontrará com os outros hqmens e
cedimento judiciário102 : "Faze a função de acusador de ti recorda-se das regras de vida fundamentais que regem
mesmo, depois de juiz, em último lugar de advogado". Vê-se as relações com o outro. Da mesma maneira Galeno 108
aparecer aqui a noção de "tribunal interior" da consciência, recomenda, no momento de levantar-se e antes de exe-
que se encontrará entre outros em Hiérocles 103 ao comentar cutar as atividades do dia, que se pergunte se é melhor
os Versos dourados pitagóricos, o "tribunal interior" de que viver na escravidão das paixões ou, ao contrário, utilizar
falará Kantl 04 ao observar, a esse propósito, que, nessa si- o raciocínio em todas as coisas. Epiteto 109 , também, acon-
tuação de juiz de si mesmo, o eu se desdobra em um eu selha a que se examine pela manhã para recordar-se não
inteligível, que se dá a si mesmo a sua própria lei, pon~o­ só do progresso que se deve fazer, mas dos princípios que
se em um ponto de vista universal, e em um eu sensiVel devem guiar a ação:
e individual. Reencontramos aqui ainda o desdobramento Pela manhã, tão logo te levantes, pergunta-te: "O que me
implicado na ascese e na tomada de consciência de si. O resta fazer para conquistar a impassibilidade e a ausência
eu identifica-se aqui com a Razão imparcial e objetiva. de perturbação? O que eu sou? Um corpo? Uma fortuna?
Pode-se supor que o exame algumas vezes era praticado Uma reputação? Nada disso. Mas o quê? Sou um ser racio-
nal?" Então, o que se exige de tal ser? Repassa no espírito
por escrito, quando se vê Epiteto 105 aconselhar a que. se
tuas ações: "O que negligenciei em relação ao que conduz à
observe exatamente a frequência dos erros, se se encolenza
felicidade? O que fiz de contrário à amizade, às obrigações
todos os dias ou a cada dois, três ou quatro dias 106 •
da sociedade, às qualidades do coração? Que dever omiti
Mas o exame de consciência não se perde habitual- nesses assuntos?"
mente nessas minúcias. Ao contrário, é muito menos um
Entreveem-se mesmo perspectivas ainda maiores, quan-
balanço, positivo ou negativ-o-,- do estado da alma do que
do Epiteto 110, exortando o filósofo a saber viver apenas
um meio de restabelecer a consciência de si, a atenção a si,
consigo mesmo, lhe dá o exemplo de Zeus, que, quando
estava só após a conflagração periódica do universo, e
102. Sêneca, Cartas, 28, 10. ,
103. Hiérocles, In Aureum [. .. ]Carmen Commentarius. XIX, (40-44), Ed. antes do início de uni novo período cósmico, "descansa
F. Kõhler, Stuttgart, 1974, pp. 80, 20; Commentarius sur les Vers d'or, p. 222, em si mesmo, reflete sobre a natureza de seu próprio
trad. M. Meunier.
104. Kant, Métaphysique des mreurs, II. Premiers Príncipes métaphysiques de 107. Marco Aurélio, Meditações, II, 1.
la doctrine de la vertu, I, 1, § 13, trad. A. Renaut, Paris, 1994, t. II, p. 295. 108. Galeno, Do diagnóstico ... , p. 19.
105. Epiteto, Conversações, II, 18, 12. 109. Epiteto, Conversações, N, 6, 34.
106. I. Hadot, Seneca .. . , p. 70; P. Rabbow, Seelenführung... , p. 182. llO. Id., ibid., III, 13, 6.

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A filosofia como modo de vida Filosofia e discurso filosófico

governo e entretém-se com pensamentos dignos dele". na todo o Universo" 112, enquanto o corpo continua apenas
Assim continua Epiteto: a habitar a cidade:
Também nós devemos conversar com nós mesmos, saber passar O pensamento, considerando inane e sem valor todas as coisas
sem os outros, não nos enredar pela maneira de ocupar nossa merecedoras apenas de desdém, paira acima de tudo, son(lando
vida, devemos refletir sobre o governo divino, sobre nossas re- os abismos da terra e medindo sua superfície, contemplando os
lações com o restante do mundo, considerar qual foi até hOje astros para além do céu, a perscrutar a natureza em universal
nossa atitude em face dos acontecimentos, qual é ela agora, e cada ser em sua totalidade, sem jamais descer a ocupar-se
quais são as coisas que nos afligem, como também podemos com o que se passa a seu lado 113 •
remediar isso, como se pode extirpá-las.
A contemplação aristotélica da natureza, indo do olhar
Aqui o exame de consciência aparece como parte de amoroso voltado para a natureza ao prazer maravilhoso
um exercício muito mais vasto que o da meditação. O que proporcionam as obras da Natureza, provoca a mesma
movimento de concentração em si e de atenção a si está elevação de pensamento.
estreitamente ligado a um movimento inverso, o de dilata-
Há igualmente uma expansão do eu no cosmos entre
ção e expansão pelo qual seu eu se repõe na perspectiva
do Todo, de sua relação com o restante do mundo e com
os epicuristas; ela proporciona a volúpia de mergulhar no
infinito. O mundo que vemos é, para o epicurista, apenas
o destino que se manifesta nos acontecimentos.
um dos mundos inumeráveis que se estendem no espaço
infinito e no tempo infinito 114:
A relação com o cosmos e a expansão do eu
É nos espaços inumeráveis, infinitos, que o espírito alça seu voa e
A expansão do eu no cosmos
abre-se para percorrê-los em todas as direções, de modo que jamais
Vimos como um dos exercícios espirituais recomendados veja termo algum, nenhum limite no qual possa deter-se.
por Platão consistia em uma espécie de dilatação do eu na Visto que o espaço se estende ao infinito para .além das muralhas
totalidade do real. A alma-deve "tender incessantemente a deste mundo, o espírito procura saber o que se encontra nesta
abraçar, em seu conjunto e em sua totalidade, as coisas imensidão na qual pode mergulhar seu olhar tão longe quanto
divinas e as humanas", "contemplar todos os tempos e todos possa, e na qual possa voar com um voa livre e espontâneo.
os seres"m. Desse modo a alma se estende, de alguma As muralhas do mundo se desvanecem. Vejo no imenso vazio
maneira, para a imensidão, "caminha pelo espaço e gover- nascer as coisas [. .. ] A terra não me impede de distinguir

111. República, VI, 486 a. Sobre esse tema, cf. P. Hadot, "La terre vue 112. Fedro, 246 b-c.
d'en haut et le voyage cosmique", inJ. Schneider et Monique Léger-Orine, 113. Teeteto, 173 e.
Frontieres et conquête spatiale. La philosophie à l'épreuve, Dordrecht, Kluwer 114. Cícero, Da natureza dos deuses, I, 21, 54; Lucrécio, Da natureza, II,
Academic Publishers, 1988, pp. 31-40. 1044-1047, e III, 16 e 30.

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A filosofia como modo de vida Filosofia e discurso filosófico

tudo o que, sob os meus pés, realiza no vazio. Ante esse espe- A alma atinge a plenitude e o acabamento da felicidade que
táculo, sinto-me tomado por um frêmito de prazer divino. pode atingir a condição humana quando ganha as alturas
Notemos de passagem que, como pensam alguns histo- e chega ao interior do seio da natureza [. .. 1 ela se apraz em
riadores, não será necessário esperar Copérnico para que planar no meio dos astros [. .. 1 Tendo chegado ao alto, ela
"as muralhas do mundo se desvaneçam" e para que se se alimenta e avulta dele: liberta de seus entraves, regressa
passe do "mundo fechado ao universo infinito" 115 • à sua origem.
A alma percorre o mundo inteiro e o vazio que o rodeia e sua
Como a consciência da existência, a contemplação
forma, e estende-se na infinitude do tempo infinito e abraça
epicurista da natureza é uma elevação à atemporalidade,
e concebe o renascimento periódico do tempo.
como diz uma sentença epicurista116 :
Abraçar pelo olhar os cursos dos astros como se eles te do-
Lembra-te de que tu, nascido mortal e tendo recebido uma minassem com suas revoluções e constantemente pensar as
vida limitada, tu, contudo, te elevaste, graças à ciência da transformações dos elementos uns nos outros. Tais representações
natureza, até a eternidade, e que viste infinitas coisas, as purificam as manchas da vida terrestre.
que serão e as que são. ConstantertJ,ente imaginar a totalidade do mundo e a totali-
Entre os estoicos, há também um exercício de expan- dade da realidade.
são do eu, e essa expansão se faz, igualmente, no infinito,
porém não mais no infinito dos universos inumeráveis, pois Na tradição platônica, na qual domina a memória da
para eles o mundo é finito e único, mas na infinitude do República, do Fedro e do Teeteto, o voo da alma nos espaços
tempo, no seio do qual se repete eternamente o mesmo cósmicos é um tema. muito frequente 118 :
desenrolar de acontecimentos que constitui o mundo. O Aspirando a uma vida de paz e de serenidade, eles comple-
eu mergulha na totalidade do mundo, da qual experimenta mentam a natureza e tudo o que se encontra nela [. .. 1 eles
com alegria já que é parte integrante 117:
acompanham pelo pensamento a lua, o sol, as evoluções dos
Diz-nos antes quão natu~al é ao homem estender seu pensa- outros astros errantes ou fixos; seus corpos permanecem sem
mento no infinito. Ele não-admite limites senão aqueles que dúvida sobre a terra, mas eles dão asas às suas almas, por-
são comuns com o próprio Deus[. .. 1 Sua pátria é a que encer- quanto, elevando-se no éter, elas observam as potências que
ra por seu movimento circular o céu e o mundo [. ..1 aí se encontram, como convém a homens que se tornaram
cidadãos do mundo.
115. Para retomar o título do livro de A. Koyré. Du monde elos à
l'univers infini. Paris, 1973 [Do mundo fechado ao universo infinito, tradução O astrônomo Ptolomeu, no qual se encontram ecos das
de Donaldson M. Garschagen, São Paulo/Rio de Janeiro, Edusp/Forense doutrinas platônica, estoica e aristotélica, exprime também,
Universitária, 1979].
116. Sentenças vaticanas, 10, Balaudé, p. 210. em um epigrama que lhe é atribuído com alguma verossimi-
117. Sêneca, Cartas, 102, 21; Questões naturais, I; Prólogo, 12; Marco
Aurélio, Meditações, XI, 1, 3; VII, 47, 1; X, 17. 118. Fílon de Alexandria, De specialibus legibus, 11, § 45.

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A filosofia como modo de vida Filosofia e discurso filosôfico

lhança, a impressão que experimenta ao unir-se à vida di- O olhar do alto


vina, quando voa pelo pensamento nos espaços celestes 119 :
Das alturas às quais se eleva pelo pensamento, do alto o
Eu o sei, .sou mortal e não duro senão um dia. Mas quando filósofo lança um olhar à terra e aos homens e os julga por
acompanho, em seu curso circular, as filas rápidas dos astros, seu justo valor. Como diz um texto de filosofia chinesa122:
meus pés não tocam mais a terra, vou à presença do próprio "Ele vê as coisas à luz do Céu". A visão da totalidade do
Zeus me fartar de ambrosia como os deuses. ser e do tempo, da qual fala a República de Platão, conduz
Em todas as escolas que o praticam, esse exercício de a que se despreze a morte. E, no Teeteto, para o filósofo
pensamento e de imaginação consiste, finalmente, para que percorre toda a vastidão do real, todos os negócios
o filósofo, em tomar consciência de seu ser no Todo, humanos são mesquinharias e nada, e ele considera bem
como ponto minúsculo e de frágil duração, mas capaz de pequenas as posses dos homens, ele que está habituado 123
dilatar-se no campo imenso do espaço infinito, e de colher "a abraçar com o olhar a terra inteira".
em uma única intuição a totalidade da realidade. O eu Esse tema é reencontrado no famoso Sonho de Cipião,
há de experimentar, assim, um duplo sentimento, o da
no qual Cícero narra como Cipião Emiliano viu aparecer
pequenez, ao ver sua individualidade corporal perdida
em sonho seu avô Cipião, o Africano. Transportado então
no infinito do espaço e do tempo, e o de sua grandeza,
para a Via Láctea donde contempla todo o universo, ele vê
ao experimentar seu poder de abraçar a totalidade das
do alto a terra que lhe parece como um ponto, de modo
coisas 120 • Pode-se dizer que se trata aí de um exercício de
que tem vergonha das pequenas dimensões do Império
desligamento, de distanciamento, destinado a nos ensinar
a ver as coisas com imparcialidade e objetividade. É o romano. Seu avô o faz observar a existência de vastas ex-
que os modernos denominarão o ponto de vista de Sírio. tensões desérticas, para fazê-lo sentir como é minúsculo
Renan 121 escreverá em 1880: o espaço no qual pode estender-se o renome ao qual se
atribui tanto valor124 •
Quando se põe no ponto-de vista do sistema solar, nossas
revoluções mal têm a amplitude de movimentos do átomo. Do Sob a influência de uma fonte neopitagórica, Ovídio 125,
ponto de vista de Sírio, ainda menos. no fim das Metamorfoses, põe estas palavras na boca de
Pitágoras:
Inútil dizer que essa visão racional e universal nada
tem a ver com o pretenso transe do xamã. 122. Fong Yeou-Lan, Précis de philosophie chinoise, Paris, 1952, p. 128.
123. Teeteto, 174 e.
119. Tradução A.j. Festugiere, La Rioélation d'Hermes Trismégiste, T. I, 124. Cícero, República, VI, 9, 9. Veja-se A.j. Festugiere. La Rioélation
Paris, 1944, p. 317; Antologia palatina, IX, 577. d'Hermes Trismégiste, T. II, Paris, 1944, pp. 441-459.
120. Cf. P. Hadot, La Citadelle intérieure, pp. 195-198. 125. Ovídio, Metamorfoses, XV, 147 ss. [Metamorfoses, in Maria da Glória
121. E. Renan, illuvres completes, T. II, Paris, 1948, p. 1037. Novak (org.), Poesia lírica latina, 2a ed., São Paulo, Martins Fontes, 1992].

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A filosofia como modo de vida Filosofia e discurso filosófico

Quero encontrar meu caminho entre os astros supremos, quero universo, na totalidade da natureza, sem lhes acrescentar
abandonar a terra, moradia inerte; quero me Jazer levar pelas os falsos valores que emprestam a elas nossas paixões e
nuvens [. .. ] do alto eu veria os homens errando ao acaso e as convenções humanas. O olhar a partir do alto muda
tremendo, por falta de razão, ante a ideia da morte. nossos juízos de valor sobre as coisas. O luxo, o poder, a
guerra, as fronteiras, os cuidados da vida cotidiana tornam-
Os epicuristas e os estoicos recomendam também essa
se ridículos.
atitude. Do alto das regiões serenas, Lucrécio 126 volta seu
olhar para os homens e os vê "errar por um lado e outro Vê-se, a tomada de consoencia de si, quer seja no
e procurar ao acaso o caminho da vida". Para Sêneca127, movimento de concentração em si ou no movimento de
a alma do filósofo, transportada para o meio dos astros, expansão para o Todo, requer sempre o exercício da
lança do alto do céu um olhar à Terra, que lhe parece um morte, que é, de alguma maneira, desde Platão, a essência
ponto. As guerras por fronteiras que os homens fazem entre da filosofia.
si parecem ridículas, e as tropas que invadem os territórios
são apenas formigas que combatem num espaço estreito. A física como exercício espiritual
É isso o que pensa o cínico Menipo na brilhante nar- Já falamos do exercício espiritual da física 128 • A ex-
ração de Luciano intitulada Icaromenipo, quando, tendo pressão soa estranha a nossos ouvidos modernos, mas
chegado à lua, vê os homens brigar estupidamente pelos corresponde exatamente à representação que se fez tra-
limites de um país e os ricos orgulhar-se de suas terras dicionalmente da física na filosofia antiga, ao menos a
que, diz ele, não são maiores que um átomo de Epicuro. partir de Platão.
Ele também, ao ver do alto os homens, compara-os a for-
migas. Em outra obra, intitulada Garante, o barqueiro dos De maneira geral, a física antiga não pretende propor
mortos, Caronte, olha de uma altura vertiginosa a vida um sistema de natureza totalmente rigoroso em todos os
dos homens sobre a Terra e a loucura de suas ações, e as detalhes. Há, indiscutivelmente, alguns princípios gerais
examina pensando que -ioga--os l:i:omens morrerão. de explicação, por exemplo, a oposição entre a escolha
do melhor e a necessidade, no Timeu, ou o vazio e os
Precisamente, não é indiferente que esse observador
átomos, em Epicuro; há também uma visão global do
seja o barqueiro dos mortos. Olhar do alto é olhar as coisas
universo. Mas para a explicação de fenômenos particulares
na perspectiva da morte. Nos dois casos, olham-se as coi-
sas com afastamento, distância, recuo, objetividade, tais o filósofo antigo não pretende alcançar a certeza; ele se
quais são em si mesmas, repondo-as na imensidão do contenta em propor várias ou uma única explicação veros-
símil ou razoável, que lhe satisfazem o espírito ou lhe
126. Lucrécio, Da natureza, 11, 8.
127. Sêneca, Questões naturais, I, Prólogo, 7-10. 128. Cf. acima p. 200.

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A filosofia como modo de vida Filosofia e discurso filosófico

proporcionam prazer. A propósito dos metais, Platão faz reconhecida. Isso já é verdadeiro no Timeu. Platão 131 convida
esta observação 129 : a alma humana a imitar, no movimento de seus pensamen-
tos, a alma do mundo e a atingir, assim, o objetivo da vida
Não é nada difícil explicar as outras substâncias desse tipo
humana. Para Aristóteles, a prática da investigação leva a
(de metais), sempre de acordo com o mito verossímil; esse ti-
alegria à alma e fá-la atingir assim a felicidade suprema da
po de narração dá a todo homem que se entrega a um prazer
vida: muitas vezes o filósofo atingirá apenas o verossímil, o
sem remorso, à guisa de recreação, pondo de lado os discur-
eulogon, o que não satisfaz o espírito, mas lhe proporciona
sos relativos às realidades que sempre são e considerando a
uma alegria132 • Para Epicuro, o exercício da ciência da na-
verossimilhança das coisas sujeitas ao devir, a possibilidade
tureza liberta do medo dos deuses e do temor da morte.
de pôr em sua vida um momento de recreação moderada e
razoável. É em um texto de Cícero, inspirado pela filosofia da Nova
Academia, que se encontrará talvez a melhor descrição da
Aqui, como sempre, é necessário ter em conta a ironia
ffsica concebida como exercício espiritual. Como bom discí-
platônica, que simula não levar a sério o que lhe está no
pulo de Arquesilau e de Cameada, ele começa por retomar
coração; mas não resta dúvida que Platão considera que as
as reflexões platônicas sobre as incertezas ligadas ao conhe-
coisas naturais, produzidas pelos deuses, por fim, escapam
cimento da natureza, e notadamente sobre as dificuldades
a nosso conhecimento. De maneira geral, pode-se dizer
da observação e da experimentação. Mas as investigações
que os escritos da Antiguidade que se reportam à física
não são tratados nos quais, de uma vez por todas, seria físicas não têm menos uma finalidade moraP 33 :
exposta uma teoria definitiva e sistemática dos fenômenos Não penso que seja necessário renunciar- às questões dos fí-
físicos examinados por si mesmos. Sua finalidade é outra. sicos. A observação e a contemplação da natureza são uma
Ensina-se a tratar os fenômenos de maneira metódica, caso espécie de alimento natural para as almas e os espíritos. Nós
de Aristóteles, ou a consagrar-se ao que Epicuro denomina nos corrigimos, ampliamos (leio latiores), olhamos do alto as
o exercício (energêma) con_tí11uo da ciência da natureza coisas humanas e, contemplando as coisas superiores e celestes,
(physiologia), exercício, diz ele 130; "que conduz ao ponto desprezamos nossas coisas humanas, como mesquinhas e estrei-
mais alto a serenidade nesta vida", ou, ainda, a elevar o tas. A investigação das coisas que são as maiores e ao mesmo
espírito pela contemplação da natureza. tempo as mais obscuras nos dá prazer: se, nessa investigação,
Esse exercício tem finalidade moral, cuja tônica é dife- alguma coisa de verossímil se nos apresenta, nosso espírito é
rente, sem dúvida, nas diversas escolas, mas que é sempre tomado por um nobre prazer humano.

129. Timeu, 59 c-d. Cf. J. Mittelstrass, Die Rettung der Phiinomene, Berlin, 131. Timeu, 90 a.
1962, p. llO. 132. J.-M. Le Blond, Aristote, philosophe de la vie, Paris, 1944, p. 71.
130. Epicuro, Carta a Heródoto, 36, Balaudé, p. 152. 133. Cícero, Lucullus, 41, 127.

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A filosofia como modo de vida Filosofia e discurso filosófico

No início de suas Questões naturais, Sêneca134 também universo inteiro. É que, em cada acontecimento presente,
vê na elevação da alma a principal justificação da física: o universo inteiro está implicado 137 :
Contemplar essas coisas, estudá-las, consagrar-se a elas, absorver- O que quer que te aconteça estava para ti preparado desde a
se nelas, não é exceder a condição mortal e ter acesso a uma eternidade, e a urdidura das causas desde o tempo infinito
condição superior? Qual proveito, tu me dizes, poderás tirar de havia entretecido tua substância com sua ocorrência.
teus estudos? Se não por outra coisa, certamente por isso: saberei Deves conformar-te com o que te acontece, por duas razões:
que tu és pequeno, quando eu tomar a medida de Deus. primeira, porque foi Jeito para ti, prescrito para ti e, de certo
modo, se relacionava contigo desde o alto, na urdidura das
Além disso, acompanhada ou não de um esforço de
causas mais veneráveis.
explicação racional, a contemplação da natureza tem uma
Tudo o que te acontece estava, desde o início, determinado e
significação existencial. É a maior felicidade na Terra,
urdido para ti desde o Todo.
segundo o poeta Menandro 135 , talvez influenciado por
Epicuro: Assim, a concentração do eu no presente e a dilatação
do eu no cosmos realizam-se em um único instante. Como
A maior felicidade, a meus olhos [. .. 1 antes de retornar bem
o diz Sêneca138 :
rápido de onde vimos, é ter contemplado sem perturbação seres
augustos: o Sol que brilha sobre todos, os astros, a água, as Ele gozava do presente sem depender do que ainda não existe
nuvens, o Jogo. Viva-se cem ou alguns anos, sempre o mesmo [. .. 1 Ele é sem esperança e sem desejo, não se lança para um
espetáculo se oferece a nós e jamais se verá outro que seja objetivo problemático, pois se satisfaz com o que possui. Ele
mais digno de homenagem. não se satisfaz com pouca coisa, pois o que possui é o universo
Trata-se aqui de uma tradição constante na filosofia
[. .. 1 Como Deus ele diz: "Tudo é para mim".
antiga: o que confere sentido e valor à vida humana é a Em todo momento, ao encontrar-me ante cada aconte-
contemplação da Natureza, e é graças a essa contemplação cimento, estou em relação com todo o desenrolar passado
que cada dia é uma festa p.i.ra o homem bom136 • e futuro do universo. E a escolha de vida estoica consiste
É no estoicismo que o exercício da física ganha todo precisamente em dizer "sim" ao Universo em sua totalida-
seu valor. Mais que de qualquer outra coisa, o estoico tem de, em querer que o que acontece aconteça como aconte-
consciência de estar a cada instante em contato com o ce. Marco Aurélio 139 diz ao Universo: "Temos o mesmo
amor". Ora, é a física que faz compreender que tudo está
134. Sêneca, Questões naturais, I, Prol. 17.
135. Tradução de A:J. Festugiêre, La Révélation d'Herrnes Trismégiste, t. 137. Marco Aurélio, Meditações, X, 5; V, 8, 12; IY, 26.
II, pp. 165 e 169. 138. Sêneca, Dos benefícios, VII, 2 e 3, 3.
136. Plutarco, Da tranquilidade da alma, 477 c-e. 139. Marco Aurélio, Meditações, X, 21.

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A filosofia como modo de vida Filosofia e discurso filosófico

em tudo e que, como diz Crisipo 140 , uma única gota de vinho Que lugar terá o filósofo na cidade? Será o de um escultor de
pode misturar-se a todo o mar e estender-se ao mundo homens e de um artesão que fabrica cidadãos leais e dignos.
inteiro. O consentimento ao destino e ao Universo, renova- Ele não terá outro ofício além de purificar-se a si mesmo e
do por ocasião de cada acontecimento, é a física praticada purificar os outros para viver a vida conforme a natureza que
e vivida. Esse exercício consiste em pôr a razão individual convém ao homem; será o pai comum e o pedagogo de todos
em acordo com a Natureza, que é a Razão universal, isto os cidadãos, seu reformador, seu conselheiro e seu protetor,
é, em igualar-se ao Todo, a mergulliar no Todo141 , em não ser oferecendo-se a todos para cooperar na realização de todo o
mais "homem", mas "Natureza". Essa tendência ao despo- bem, regozijando-se com os que têm felicidade, compadecendo-se
jamento do homem é constante nas mais diversas escolas,
dos que são afligidos e consolando-os.
desde Pirro que, como vimos, dizia que era difícil despojar
o homem, até Aristóteles, para quem a vida segundo o No que concerne à educação moral geral, como Ja
espírito é sobre-humana, e até Plotino 142 , para quem na entrevimos, a filosofia tomou o partido da cidade. A cida-
experiência mística não se é mais "homem". de grega, como bem mostrou L Hadot145 , preocupava-se
especialmente com a formação ética dos cidadãos, como
A relação com o outro atesta, entre outros, o uso de erigir nas cidades estelas nas
Ao longo de toda nossa apresentação das diferentes quais fossem gravadas as máximas da sabedoria délfica. Cada
escolas filosóficas, encontramos o problema das relações escola filosófica quis retomar à sua maneira essa missão
do filósofo com os outros homens, seu papel na cidade, educativa, seja, como entre os platônicos e os aristotélicos,
sua vida com os outros membros da escola. Reconhece-se, agindo sobre os legisladores e os governantes, considerados
antes de tudo, a importância capital da direção espiri- os educadores da cidade, seja, como entre os estoicos, os
tuaP43. Isso comporta dois aspectos: de uma parte a ação epicuristas ou os cínicos, procurando converter os indivíduos
de educação moral em geral, de outra a relação que liga por uma propaganda missionária que se dirigia a todos os
individualmente um mestre a um discípulo. Sob esses dois homens, sem distinção de sexo ou de condição social.
aspectos, a filosofia antiga é-direção espiritual. Como dirá
A direção espiritual apresenta-se como um método de
Simplício 144, no fim da história do pensamento antigo:
educação individual. Ela tem duplo fim. Trata-se, antes de
140. Plutarco, Das noções comuns, 37, 1078 e, in Les Stoiâens, Éd. E.
tudo, de permitir ao discípulo tomar consciência de si, isto
Bréhier, p. 169. é, de seus defeitos e progressos. Esse era, segundo Marco
141. Sêneca, Cartas, 66, 6. Aurélio, o papel que teria desempenhado em sua vida o
142. Plotino, Eneadas, V, 3 (49), 4, 10, e VI, 7 (38), 34, 16-17.
143. I. Hadot, "The Spiritual Guide", in Classical Mediterranean Spirituality.
estoico Júnio Rústico 146 : "A compreensão de que devia
Egyptian, Greek, Roman, New York, Ed. A H. Armstrong, 1986, pp. 436-459.
144. Simplício, Commentaire sur le Manuel d'Épictete, XXXII, ligne 154, 145. I. Hadot, "The Spiritual Guide", pp. 441-444.
Éd. I. Hadot, Leyde, Brill, 1995. 146. Marco Aurélio, Meditações, I, 7, 1.

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A filosofia como modo de vida Filosofia e discurso filosófico

corrigir e cultivar meu caráter". Trata-se, depois disso, de O próprio Platão apresenta, na Carta VII, os princípios
ajudar o discípulo a fazer as escolhas particulares razoáveis que devem reger tanto a direção espiritual como a ação
na vida de todos os dias. Razoáveis, isto é, quanto possível política149 :
boas, pois a maior parte das escolas concordam em reco-
Quando se dão conselhos a um homem doente que segue uma
nhecer que, quando se trata de decidir pelas ações que
má dieta, a primeira coisa a fazer para restituir-lhe a saúde
não dependem inteiramente de nós, navegar, travar guer- é mudar seu modo de vida.
ra, casar-se, ter filhos, não podemos esperar ter a certeza
para que possamos agir, mas devemos fazer nossas escolhas É necessária uma mudança de vida para poder ser
conforme as probabilidades. Um conselheiro é, então, tratado. A quem aceita essa mudança de vida, podem-se
dar alguns conselhos:
frequentemente indispensável.
Com semelhantes sentimentos, sempre que alguém me consulta
P. Rabbow e I. Hadot147 analisaram muito bem os méto-
acerca de alguma questão vital, ou seja, sobre a posse de
dos e as formas da direção espiritual individual cuja prática
riqueza, ou os cuidados que devemos dar ao corpo e à alma,
é atestada em quase todas as escolas filosóficas. Tal qual
se seu modo de vida me parecer aceitável e que ele acolherá
se nos revela nos Diálogos de Platão ou nas Memoráveis de
bem meus conselhos na matéria consultada, com a melhor boa
Xenofonte, Sócrates pode ser considerado o modelo do vontade lhe direi o que penso, sem cingir-me a uma resposta
diretor espiritual que, por seus discursos e sua maneira de superficial por mero desencargo de consciência.
ser, provoca um golpe ou um choque na alma daquele a
quem se dirige, e obriga-o assim a pôr em questão a pró- Reencontra-se aqui o princípio da êtica do diálogo:
pria vida. Pode-se também qualificar com o mesmo termo só se pode dialogar com alguém que queira sinceramente
a influência que Platão exerce sobre Díon de Siracusa e os dialogar. Não se deve constranger quem se recusa a mudar
de modo de vida. Não se deve irritá-lo nem liso~eá-lo,
conselhos morais e políticos que lhe concede. A tradição
nem fazer-lhe vãs reprimendas nem ajudá-lo na satisfa-
menciona, além disso, que__ Platão era atento ao caráter
ção de desejos que se desaprovam. E isso também vale
particular de cada um de seus discípulos. Ele teria dito a
para a cidade que se recusa a mudar de modo de vida.
propósito de Aristóteles 148 : "Ele tem necessidade de rédea",
O filósofo poderá dizer que desaprova a depravação da
e a propósito de Xenócrates: "Tem necessidade de espora". cidade, se nisso houver alguma utilidade. Mas que não
Ele repetia constantemente a Xenócrates, que era sempre use de violência!
severo e grave: "Sacrifica às Graças!"
Quando não é possível assegurar a realização de um regime
147. P. Rabbow, Seelenjührung, pp. 260-279; I. Hadot, "The Spiritual político melhor sem banir e sem matar homens, é melhor
Guide", pp. 444-459.
148. D. L., IV, 6. 149. Carta VII, 330 c-331 a, trad. Brisson, pp. 176-177.

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A filosofia como modo de vida
Filosofia e discurso filosófico

manter-se tranquilo e formular votos pelo seu bem pessoal discípulo Apolonides. É necessário que a admoestação seja
e pelo da cidade. serena, sem faltar à benevolência. Note-se que Filodemo
Em relação aos nmcos, conhecemos alguns casos em também acrescenta que o filósofo não deve temer dirigir
que o mestre desaprova esse ou aquele discípulo humilhan- repreensões aos homens políticos.
do-o ou repreendendo-o 150 • Da escola de Epicuro, temos
Na escola de Epicuro, temos um exemplo de direção
preciosos testemunhos sobre a prática da di_:~ção espi?tu~l,
espiritual na carta que um de seus discípulos, Metrodor0 I5 3,
notadamente sob a forma epistolar. A pratrca da d1reçao escreve ao jovem Pítocles:
espiritual chegava a ser, nessa escola, o objeto de um ensi-
namento, como atesta o tratado de Filodemo
• 151 sobre a z·z- Tu me dizes que o aguilhão da carne te leva a abusar dos
berdade de palavra, extraído das aulas dadas sobre o tema prazeres do amor. Se não infringes as leis e não perturbas de
pelo epicurista Zenão 152 • A franqueza .de linguagem, ~o nenhum modo os bons costumes estabelecidos, se não incomodas
mestre aparece aí como uma arte defimda como aleatona nenhum de teus vizinhos, se não esgotas tuas forças e não dis-
(estocástica), na medida em que ele deve ter em conta os mo- sipas tua fortuna, entrega-te sem escrúpulos à tua inclinação.
mentos e as circunstâncias. O mestre deverá esperar os reve- Entretanto, é impossível não ser preso por ao menos uma dessas
ses, procurar e tornar a procurar corrigir a conduta do barreiras: os prazeres do amor não oferecem nenhum proveito
discípulo, compadecendo-se de suas dificuldades. Mas para para ninguém, já é muito quando não prejudicam.
tanto é necessário que o discípulo não hesite em reconhe-
Pouco sabemos sobre a direção de consciência no
cer suas dificuldades e seus erros e que fale com liberdade
antigo estoicismo. Podemos, em todo caso, supor que os
absoluta. Como se vê, a tradição epicurista reconhece o
tratados estoicos de casuística escritos por Antipater de
valor terapêutico da palavra. Como con~rapartida, o n:es~e
Tarso e Diógenes da Babilônia, cujos vestígios reencon-
deve escutar com simpatia, sem zombana ou malevolenna.
tramos no tratado Dos deveres de Cícero, resumem uma
Em resposta à "confissão" do discípulo, o mestre deverá,
longa experiência de direção de consciência. Seja como
também, falar livremente par-a admoestar o discípulo, fa-
for, a história do estoicismo apresenta-nos várias figuras de
zendo-o compreender a verdadeira finalidade de suas re-
diretores de alma: Sêneca, em suas Cartas a Lucílio; Musônio
primendas. Epicuro, nota Filodemo, não hesi_t~u. em fazer
Rufo, em seus escritos; Epiteto, nas Conversações referidas
repreensões bastante vivas em uma carta d1ng1da a seu
por Arriano. A direção espiritual de Sêneca é muito lite-
rária. De uma extremidade a outra de suas cartas as fór-
150. Cf. a atitude de Crates com relação a seu discípulo Zenão, in L.
Paquet, Les Cyniques grecs, Paris, 1992: p. 16~; . , . , mulas notáveis, as imagens, as próprias sonoridades são
151. Sobre esse tratado, d. M. G1gante, Philodeme. Sur la lzberte de pa- escolhidas intencionalmente. Mas as observações psicoló-
rai!!', in Actes du VIJie Congri!s (1969), Paris, Association Guillaume Budé, 1970,
pp. 196-220, e Ricerche Filodemee, 2• edizione, Napoli, 1983, pp. 55-113.
153. Trad. Festugiere, in Épicure et ses dieux, p. 40; Sentenças vaticanas
152. P. Rabbow, Seelenführung... , pp. 269-270. LI, Balaudé, p. 216. '

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307
A filosofia como modo de vida
Filosofia e discurso filosófico

gicas e a descrição dos exercícios estoicos também são Um texto de Plutarco 156 resumirá oportunamente tudo
nelas muito preciosas. Tudo leva a pensar que o mestre
que ac~~an:os de entrever sobre o fenômeno da direção
0
estoico de Marco Aurélio, Júnio Rústico, foi para ele um de c~nsoenoa nas escolas filosóficas e a liberdade de ex-
diretor de consciência, com o qual o futuro imperador se pr_essao nelas valorizada. No caso, diz ele, em que quem
irrita muitas vezes, sem dúvida por causa da franqueza de
vai ~scutar ~m filósofo é perturbado por algumà coisa
linguagem desse filósofo.
particular, Seja. u~a paixão inflamada, que tem necessida-
Na Vida de Platina escrita por Porfírio, e nas outras _de ~e ser re~nmida,_ s_eja um sofrimento, que precisa ser
Vidas de filósofos do fim da Antiguidade, muitos rela- apaziguado, e necessano então mostrá-la aos olhos de todo
tos deixam entrever práticas de direção espiritual. Por o mundo e dela cuidar.
exemplo, nelas se encontra a célebre história de Plotino
Se um golpe de cólera, um acesso de superstição, um desa-
aconselhando a viajar154 um Porfírio tomado por pen-
cordo agudo _com o que nos rodeia, ou um desejo apaixo-
samentos suicidas. Também conhecemos um pormenor
nado _pr~duzz~o pelo amor; fazendo vibrar fibras de nosso
interessante sobre a maneira pela qual Edésio, filósofo
coraçao ;amazs vibradas, turva nossos pensamentos, não se
que lecionava em Pérgamo no século IV, corrigia a arro-
deve procurar falar de outra coisa com 0 mestre para evitar
gância de seus alunos 155 :
ser censu~a~o, mas é precisamente os discursos que tratam
Edésio tinha uma maneira de ser afável e próxima do povo. dessas pazxoes que é necessário escutar durante as aulas e
Após as justas dialéticas, saía para passear em Pérgamo com terminada a aula, é necessário ir encontrar em particular 0 ;
seus discípulos mais notáveis. Ele queria que seus discípulos m~stres apresentando-lhes questões suplementares. É necessário
tivessem na alma um sentimento de harmonia e de responsa- evztar faze: o inverso: à imagem da maior parte das pessoas:
bilidade em relação ao gênero humano; quando via que eles elas apreczam os filosofas e os admiram quando eles falam
se tornavam injuriosos e altivos por causa do orgulho que de outros assuntos, mas se os filósofos, deixando os outros
tinham de suas opiniões, fq,~ja cair suas asas, não no mar, temas_ de lado, lhes falam em particular, com franqueza, sobre
mas na terra e no seio da vida numana. Caso encontrasse as cozsas que são importantes para elas e as recordam disso
uma vendedora de legumes, tinha prazer nisso, detinha-se elas mal os suportam e os consideram indiscretos. '
para conversar com ela sobre os preços, sobre o dinheiro que
ganhava, sobre a produção de legumes. Ele agia do mesmo A maior parte das pessoas, continua Plutarco, vê os filó-
modo com um tecelão, um ferreiro, um carpinteiro. sofos apenas como sofistas, que, uma vez fora das tribunas
e longe de seus livros e manuais de iniciação, são inferiores
154. Porfírio, Vida de Platina, 11, 13. aos outros .homens "nos atos reais da VI·da" , e VIvem
· outro
155. Eunapo, Vida de filósofos e de sofistas, p. 57, 10-18 Giangrande; veja- modo de VIda que o dos verdadeiros filósofos.
se R. Goulet, "Aidésius de Cappadoce", in id., Dictionnaire des philosophes
antiques, t. I., p. 74. 156. Plutarco, Como escutar, 43 d.

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A filosofia como modo de vida
Filosofia e discurso filosófico

Os filósofos antigos desenvolveram todos os tipos de


de Aristóteles, nas quais elas se destinam a esclarecer o
prática de terapia da alma, exercitando-se por meio ~e di-
legislador sobre a maneira de governar os homens. Vimos
ferentes formas de discurso, quer se trate da exortaçao, da
que o tratado epicurista Sobre a liberdade de palavra estudava
reprimenda, da consolação ou da instrução. S~be-se qu~
com.~recisão os sen~mentos que nascem no indivíduo por
na Grécia, desde Homero e Hesíodo, era possiVel modi-
ocas1ao das exortaçoes, da confissão e da culpabilidade.
ficar as decisões e as disposições interiores dos homens
Encontra-se no epicurista Lucrécio e no estoico Sêneca uma
escolhendo habilmente as palavras capazes de persuadir 157 •
notável descrição de torturas que a alma humana sabe se
É nessa tradição que na época dos sofistas se constituirão
infligir: "Cada um procura fugir a si próprio [ ... ] mas fica
as regras da arte retórica. A direção espiritual filosófica e
preso à força a esse eu que odeia" 159 , por esse aborrecimen-
também os exercícios espirituais pelos quais o indivíduo to que vai "até a náusea" e faz dizer: "Até quando as mesmas
esforça-se para influenciar-se e modificar-se a si mesmo 160
coisas?" , ou ainda da hesitação em converter-se à filosofia
utilizarão muitos procedimentos retóricos para provocar que Sêneca descreve no prólogo de seu tratado Sobre a
a conversão e operar a convicção. tranquilidade da alma, ao fazer falar seu amigo Sereno
Sobretudo, o uso da direção espiritual e a terapia das confessando-se de certa forma a Sêneca161:
almas conduzirão as filosofias antigas a um grande conhe- Observando atentamente, descobri em mim certos defeitos muito
cimento do "coração humano", de suas motivações, cons- afar_entes, os quais poderia tocar com o dedo, outros que se
cientes ou inconscientes, de suas intenções profundas, puras dzsszmulam nas regiões profundas, outros enjim que não são
ou impuras. O Fedro de Platão permitiu que se vislumbrasse, contínuos, mas reaparecem somente em intervalos [. .. ] A
mas sem entrar em detalhes, a possibilidade de uma retó- disposição que me surpreende ser a mais frequente (porquanto
rica que saberia adaptar seus gêneros de discurso aos dife- não me abriria a ti mesmo como a um médico!) é a de não
rentes tipos de alma. Há nele, além disso, um programa de ter francamente me libertado de meus medos e de minhas
direção de consciência. O livro II da Retórica158 de Aristóteles repugnâncias de outrora, nem mesmo sob seu império.
realiza em parte esse prújefo--ao descrever tudo o que é
Sereno analisa longamente todos os aspectos de sua
necessário conhecer das disposições do ouvinte, por exem-
irresolução, suas hesitações entre a vida simples e a vida
plo as influências que exercem sobre ele as paixões, o es-
de luxo, entre a vida ativa a serviço dos homens e o lazer
tado social ou a idade. Muito importantes também s~o as que leva à tranquilidade, entre o desejo de imortalizar-se
descrições das virtudes e dos vícios nas diferentes Eticas em uma obra literária e a vontade de escrever apenas por
utilidade moral.
157. Cf. J. de Romilly, ''Patience mon cmur!" L'Essor de la psychologie dans
la littérature grecque classique, Paris, 1984. _
159. Lucrécio, Da natureza, III, 1068.
158. Arte Retórica, tradução de Antonio Pinto de Carvalho, Sao Paulo, 160. Sêneca, Cartas, 24, 26.
Difusão Europeia do Livro, 1959.
161. Sêneca, Da tranquilidade da alma, I, 1.

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A filosofia como modo de vida
Filosofia e discurso filosófico

Encontram-se também observações muito fecundas no


modo, quando se quer fazer bem ao outro, a intenção
longo comentário que o neoplatônico Simplício consagrou
de beU: fazer ~penas será verdadeiramente pura caso seja
ao Manual de Epiteto.
espon?-nea e mconsciente. s> benfeitor perfeito é aquele
Essa prática tradicional da direção de consciência levou que nao sabe que o fazl63: "E necessário ser como aqueles
a compreender melhor tudo o que a pureza da ação moral que fazem o bem inconscientemente". Chega-se ~qui ao
exige. Tomaremos como exemplo as Meditações de Marco supr~mo paradoxo: um querer de tal modo forte que se
Aurélio, nas quais se encontra uma descrição ideal da ma- supnme c?mo querer, um hábito que se torna natureza e
neira pela qual é necessário praticar a ação sobre o outro. esponta,?eidade. Ao mesmo tempo, parece que a perfeição
Só se pode admirar, por exemplo, a extrema delicadeza da relaçao com o outro culmina no respeito e no amor pelos
com a qual Marco Aurélio define a atitude que se deve ter outros. Para todas as escolas, o que motiva profundamente
para agir sobre a consciência de outrem, a benevolência sua escolha de -yida, assim como seu discurso, é o amor
de que se deve dar demonstração a quem cometeu uma pelos homens. E esse amor que inspira tanto o Sócrates
falta, como se deve dirigir a ele 162 : da. Def~sa ou do ~utífronl64 de Platão como a propaganda
epicunsta ou estmca, e mesmo 0 discurso céticoi65.
não insultando nem dando demonstração de minha constância,
mas com nobreza e sinceridade [. .. ] com simpatia, sem ironia, O sábio
sem humilhar, mas com afeição, com um coração isento de
amargura, nem em tom de mestre-escola, nem para se Jazer A figura do sábio e a escolha de vida
admirar por alguém que tenha assistido à conversa, e sim para
A sabedoria é considerada em toda a Antiguidade um
ele só, embora estefam algumas outras pessoas presentes.
mo~ o de ser, um estado no qual o homem é de .maneira
Marco Aurélio vislumbra aqui que a simpatia é coisa rad~c~lmdente diferente dos outros homens, no qual é uma
tão delicada que mesmo querer ser simpático já seria dei- espene ': super-homem. Se a filosofia é a atividade pela
xar de ser simpático, porqu-e -todo artifício e toda afetação qual_ o. fi!osofo prepara-se para a sabedoria, esse exercício
destroem a simpatia. Por outro lado, age-se eficazmente consistira necessariamente não só em falar e e d"
d . m Iscorrer
sobre os outros quando se procura agir sobre eles, quando e certa. maneira, mas em ser, agir e ver o mundo de cer-
se evita toda violência, mesmo espiritual, que pudesse ser ta maneira. Se a filosofia não é somente um discurso
Ih d . 'mas
feita ou a si mesmo ou aos outros. É essa simpatia pura, é ~n:a es:o a e VIda, uma opção existencial e um exercício
essa delicadeza, que tem o poder de fazer mudar de opi- VIVIdo, e porque ela é desejo de sabedoria. É verdade que,
nião, de converter, de transformar os outros. E, do mesmo
163. Marco Aurélio, Meditações, v, 6, 3.
164. Platão, Eutífmn, 3, d 6.
162. Marco Aurélio, Meditações, XI, 13, 2, e XI, 18, 18; cf. P. Hadot, La
165. Sexto Empírico, Hip tp p· ·
Citadelle intérieure, p. 241. Sceptiques, p. 212. o z ases zrronzanas, III, 280; Dumont, Les

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A filosofia como modo de vida
Filosofia e discurso filosófico

na noção de sabedoria, está inclusa a ideia de um saber


daria consiste em sempre querer e em se -
perfeito. Não obstante, como vimos a propósito de Platão a mesma coisa. mpre nao querer
e de Aristóteles, esse saber não consiste na posse de infor-
mações sobre a realidade, mas é também um modo de vida É. que precisamente o sábio encontra sua felicidad
que corresponde à atividade mais elevada que o homem em SI me ' . e
• s~o e e, portanto, mdependente (autarkês) das
A

pode exercer e está estreitamente ligada à excelência, à nrcunstannas e das coisas exteriores, como Sócrates que
virtude da alma. s:gundo as Memoráveis de Xenofonte, vivia por bastar-se ~
Em cada escola, a figura do sábio é a norma transcen- ~I mesmo, sem embaraçar-se com coisas supérfluas. Essa
e uma das características do sábio segundo Pl t- 167
dente que determina o modo de vida do filósofo. E deve- f S' a ao ' que
az ocrates afirmar: "Mas podemos tamb, d" .
se constatar que, na descrição dessa norma, há, para além · em Izer que pnn-
1
~Ipa mente esse. homem se basta para ser feliz e necessita
das diferenças que aparecem nas diversas escolas, acordos
profundos, tendências comuns que se pode descobrir. e outrem mmto menos que os outros" E d
Ari - I 16s , . • , segun o
Reencontramos aqui o mesmo fenômeno que descrevemos stote es . ' o sabw le~a a vida contemplativa porque não
a propósito dos exercícios espirituais. tem necessidade de cmsas exteriores para se exercitar e
porque encontra, com isso, em si a felicidade e a perfeita
Em primeiro lugar, o sábio permanece idêntico a si mdepe~dência. _s~ depende de si, basta-se a si mesmo,
mesmo, em uma perfeita igualdade de alma, isto é, feliz, e ~eduZir ao n:aximo _suas necessidades é especialmente
quaisquer que sejam as circunstâncias. Assim Sócrates, no o Ideal dos filosofas cmicos. Os epicuristas por sua vez
Banquete de Platão, mantém as mesmas disposições, quer c~ega~ a is~o limitando e dominando seu~ desejos; ele~
seja obrigado a suportar a fome e o frio, quer, ao contrário, nao. sao mais dependentes da necessidade. Quanto aos
se encontre na abundância. Ele sabe, com o mesmo desem- estmcos, prefer~U: dizer que é a virtude que basta a si só
baraço, abster-se e usufruir as coisas. Dizia-se de Aristipo 166, para obter a fehndade.
um dos discípulos de Sócrates,-que ele se adaptava a todas
as situações, sabendo usufruir os bens que se lhe apresen- b Se ~ sábio permanece sempre idêntico a si e se ele se
tavam e não sofrer pela ausência dos que lhe faltavam. asta, e po~que, ao menos para Pirro, para os cmicos e
Quanto a Pirro, sempre permanecia no mesmo estado in- para os estmcos: as coisas exteriores não podem perturbá-
terior, o que quer dizer que, se as circunstâncias exteriores lo, porque considera que as coisas não são boas nem ,
e po - mas,
mudavam, ele não modificava em nada suas resoluções e rqu~, por razoes diversas, se recusa a enunciar sobre
disposições. A coerência consigo e a permanência de iden- elas um JUizo de valor e as declara indiferentes. Para Pirro
tidade também caracterizam o sábio estoico, pois a sabe- por exemplo, tudo é indiferente, porquanto somos incapa~

167. República, UI, 387 d 12.


166. D. L. II, 66.
168. Aristóteles, Ética a Nicômaco, X, 1177 a 27.

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A filosofia como modo de vida Filosofia e discurso filosófico

zes de saber se as coisas são boas ou más; não podemos ser muito diversa. Aos olhos de Platão, é o corpo, por
fazer diferença entre elas. Para os estoicos, todas as coisas seus desejos e paixões, que introduz a desordem e a in-
que não dependem de nós são indiferentes; há uma única quietude na alma. Mas há também os cuidados da vida
coisa que depende de nós e não é indiferente, é o bem privada e sobretudo da vida política. Xenócrates 169 teria
moral, isto é, a intenção de fazer o bem porque é o bem. dito que "a filosofia foi inventada para fazer cessar a per-
Por si mesmas, todas as outras coisas não são boas nem turbação que produzem os cuidados". A vida contempla-
más, mas depende de nós servir-nos de maneira boa ou tiva aristotélica, distanciada dos negócios da política e das
má, por exemplo das riquezas ou da pobreza, da saúde incertezas da ação, introduzirá a serenidade. Segundo
ou da doença. Seu valor depende do uso soberano que Epicuro, são os terrores vãos da morte e dos deuses que
delas faz o sábio. A indiferença do sábio não é um desin- inquietam os homens, mas também os desejos desordena-
teresse por tudo, mas uma conversão do interesse e da dos e o comprometimento com os negócios da cidade.
atenção para algo diverso do que domina a atenção e o Para o sábio que saiba limitar seus desejos e sua ação, que
cuidado dos outros homens. Do sábio estoico, por exem- saiba suprimir suas dores, a serenidade da alma, assim
plo, pode-se dizer que a partir do momento em que ele adquirida, permitirá viver na Terra "como um deus entre
descobriu que as coisas indiferentes não dependem de os homens". Pirro encontrava a paz recusando-se a decidir
sua vontade, mas da vontade da Natureza universal, elas se as coisas são boas ou más. E para os céticos a tranqui-
ganham para ele um interesse infinito, ele as aceita com lidade interior seguia "como uma sombra" a suspensão
amor, mas todas com um amor igual; considera-as belas, do juízo, isto é, a recusa a atribuir juízos de valor às coi-
mas todas com a mesma admiração. Ele diz "sim" ao uni-
sas. Segundo os estoicos, enfim, o sábio sabe conciliar a
verso inteiro e a cada uma de suas partes, a cada um de
eficácia na ação e a serenidade interior, porque, na incer-
seus acontecimentos, mesmo que essa parte ou esse acon-
teza do êxito, sempre age aceitando o destino e velando
tecimento pareçam molestos ou repugnantes. Reencontra-
para obter uma intenção pura.
se aqui a atitude de Aristó!eJ~s com relação à Natureza:
não se deve ter uma aversão pueril por essa ou aquela A figura do sábio aparece como uma espécie de núcleo
realidade produzida pela Natureza, pois, como dizia de liberdade indomável e inexpugnável que o famoso texto
Heráclito, mesmo na cozinha há deuses. Essa indiferença de Horácio bem descreve 170 :
do sábio corresponde a uma transformação total da rela-
ção com o mundo. O homem justo e firme em sua resolução, nem a fúria dos
cidadãos ordenando o mal, nem a face de um tirano que
Igualdade de alma, ausência de necessidade, indiferen-
ça às coisas indiferentes: as qualidades do sábio fundam 169. Xenócrates, fr. 4, Heinze (R. Heinze, Xenocrates, Darstellung der
sua tranquilidade de alma e sua ausência de perturbação. Lehre und Sammlung der Fragmente, Leipzig, 1892).
A origem das perturbações da alma pode, por outro lado, 170. Horácio, Odes, III, 3, 1-8.

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A filosofia como modo de vida Filosofia e discurso filosófico

ameaça abalar e consumir seu espírito, não mais que Austero, Catão. Caso também de outros autores de vidas de filósofos
chefe turbulento do tempestuoso Adriático, não mais que a como Porfírio ao falar de Plotino. . '
grande mão de Júpiter fulminante,· que o mundo se rompa e
Os historiadores da filosofia não ressaltaram muito
desabe, seus restos hão de maravilhar sem aterrorizar.
talvez, o lugar considerável que tinha na filosofia antig~
Reencontramos na figura do sábio o duplo movimento o discurso que consistia em descrever o sábio. Tratava-se
que evidenciamos a propósito dos exercícios de sabedoria. menos de delinear os traços de figuras concretas de sábios
O sábio toma consciência de si mesmo como de um eu que ou de filósofos particularmente notáveis - papel das vidas
pode, por seu poder sobre seus próprios juízos, dirigindo- de filósofos - do que de definir o comportamento ideal
os ou suspendendo-os, assegurar sua perfeita liberdade do sábio. "O que faria o sábio nessa ou naquela circunstân-
interior e sua independência de todas as coisas. Mas essa cia?" Esse é, contudo, muitas vezes o meio, nas diferentes
liberdade interior não é uma liberdade arbitrária, ela não escolas, de descrever, sob forma ideal, as particularidades
do modo de vida que lhes é próprio.
é inexpugnável e inatacável senão quando se situa ou se
põe, assim, na perspectiva da natureza ou do espírito, ou, Os estoicos davam grande importância em seu ensino
ao menos, no caso dos céticos, da razão crítica. à discussão de "teses" sobre os paradoxos do sábio. Não só
demonstravam que o sábio é o único ser infalível, correto,
O discurso filosófico sobre o sábio impassível, feliz, livre, belo e rico, mas que ele é também
o único a ser real e excelentemente estadista, legislador,
A figura do sábio desempenha papel decisivo na esco-
general, poeta e rei. Isso quer dizer que o sábio é, pelo
lha de vida filosófica. Mas ela se oferece ao filósofo como
exercício perfeito da razão, o único capaz de exercer todas
um ideal descrito pelo discurso filosófico antes que co- essas funções 171 •
mo um modelo encarnado em uma personagem viva.
Os estoicos diziam que o sábio é extremamente raro, há Deu-se muita importância a esses paradoxos, consideran-
poucos deles, talvez um, talvez--nenhum. Aqui quase todas do-os tipicamente estoicos, mas parece que eles correspondiam
as outras escolas estão bem próximas da mesma opinião, a :e~as d~ ~xercícios puramente escolares, que talvez já
salvo os epicuristas, que não hesitam em venerar Epicuro eXIstissem a epoca dos sofistas, mas que parecem, em todo
como o sábio por excelência. O único sábio universalmente caso, haver sido praticados na Academia de Platão. Esses temas,
durante os cursos, eram discutidos sob a forma de "tese" isto
reconhecido pelas outras escolas é Sócrates, este sábio per-
é, de questões sobre as quais se pode argumentar. Foi ~sim
turbador que não sabe que é sábio. Mas, evidentemente, ' 172 d
que X enocrates eu uma vez um curso sobre a tese: "Ape-
esse ou aquele filósofo se apraz em ver como sábio perfeito
um de seus mestres ou alguma figura famosa do passado.
171. É. Bréhier, Chrysippe, pp. 216-218.
Caso de Sêneca quando fala, por exemplo, de Sextio ou 172. Xenócrates, in Plutarco, Apotegmas lacônicos, 220 d.

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A filosofia como modo de vida Filosofia e discurso filosófico

nas o sábio é um bom general". Eudamidas, rei de Esparta, entre os homens". E, de outra, os deuses de Epicuro, isto
fora esse dia à Academia escutar Xenócrates. O espartano, é, os deuses da tradição, os deuses do Olimpo, mas reinter-
com muito bom-senso, diz após a aula: "O discurso é admi- pretados por Epicuro, vivem como os sábios. Dotados de
rável, mas o discursador pouco crivei, pois jamais ouviu o forma humana, vivem no que os epicuristas denominam
som das trombetas", denunciando assim o perigo desses dis- os intermundos, nos espaços vazios entre os mundos, es-
cursos nos quais se discutem abstratamente teorias sobre a capando assim à corrupção inerente ao movimento dos
sabedoria sem praticá-la efetivamente. Pode-se supor, também, átomos. Como o sábio, eles estão mergulhados em uma
uma alusão a esse gênero de exercício na oração final do perfeita serenidade, não estando misturados de nenhuma
Fedro de Platão, no qual Sócrates sustenta estar conven- maneira à criação e à administração do mundo 176 :
cido de que o sábio é rico. Ao longo de toda a história da
A natureza divina goza necessariamente de uma duração
filosofia antiga, encontra-se esse gênero de questões sobre o
eterna com paz suprema e está afastada e distante de tudo o
sábio: o sábio pode ser amado? Pode ele misturar-se aos ne-
gócios políticos? Encoleriza-se? que se passa conosco. Sem dor nenhuma e sem nenhum perigo,
apoiada em seus próprios recursos, nada precisando de nós,
Há, contudo, um paradoxo estoico muito mais signi- não a impressionam os benefícios nem a atinge a cólera.
ficativo: ninguém se torna sábio pouco a pouco, mas por
Essa concepção de divindade foi destinada, como vimos,
uma transformação instantânea173• A sabedoria, como vimos,
a suprimir no homem o temor dos deuses. É na escolha de
não é suscetível de ser maior ou menor. Eis por que a
vida epicurista que se funda a necessidade de conferir, no
passagem da não sabedoria à sabedoria não se pode fazer
discurso filosófico, uma explicação materialista da gênese
por um progresso, mas por uma mutação brusca.
do universo, a fim de persuadir a alma de que os deuses
Esse paradoxo nos põe na via de outro paradoxo que não se ocupam do mundo. Mas nos parece agora que
se encontra em todas as escolas: se o sábio representa um essa representação também tinha por fim propor o divino
modo de ser diferente do modo de ser do comum dos como ideal de sabedoria, na medida em que a essência
mortais, não se pode dizer que a figura do sábio 174 tende do divino consiste, para ela, na serenidade, na ausência de
a aproximar-se da de Deus ou dos deuses? Pode-se observar preocupação, no prazer e na alegria. De alguma maneira,
esse movimento mais claramente no epicurismo. De uma os deuses são sábios imortais e os sábios, deuses mortais.
parte, aos olhos de Epicuro 175, o sábio vive como um "deus Para os sábios, os deuses são amigos e iguais. O sábio en-
contra sua alegria na presença dos deuses 177 :
173. SW, lll, 221 e 539-542; Plutarco, Conw perceber que se progride... , 75 c.
174. Cf. P. Hadot, "La figure du sage dans l'Antiquité gréco-latine", in 176. Lucrécio, Da natureza, Il, 646; veja-se também Balaudé, p. 114.
G. Gadoffre. Les Sagesses du monde. Paris, 1991, pp. 9-26. 177. Trad. Festugiere, in Épicure et ses dieux, p. 98 (texto de Filodemo,
175. Epicuro, Carta a Meneceu, § 135, Balaudé, p. 198. De dis, Ill, p. 16, 14 Diels).

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A filosofia como mqdo de vida Filosofia e discurso filosófico

Ele admira a natureza e a condição dos deuses, ele se esforça mítica do Artesão, do Demiurgo do mundo e, enfim, a alma
por aproximar-se dela, aspira, por assim dizer, a tocá-la, a do mundo. Mas, da perspectiva que nos ocupa, Platão
viver com ela, e nomeia os sábios amigos dos deuses e os enunciou, em todo caso, um pnncípio fundamental. Ir na
deuses amigos dos sábios. direção oposta ao mal, ir na direção da sabedoria, é "assi-
milar-se a Deus na medida do possível: ora, assimila-se a ele
Os deuses não se ocupam das coisas humanas: o sábio
tornando-se justo e bom na clareza do espírito" 178 . A divin-
não invocará os deuses para obter algum benefício, mas
dade aparece aqui como o modelo da perfeição moral e
encontrará sua felicidade ao contemplar sua serenidade, intelectual do homem. Por outro lado, de maneira geral,
sua perfeição e ao associar-se à sua alegria. Platão apresenta Deus ou os deuses dotados de qualidades
O sábio, segundo Aristóteles, consagra-se ao exerc1c10 morais que poderiam ser as de um sábio. Ele é verídico,
do pensamento e à vida do espírito. Aqui ainda o divino é sábio e bom; não tem nenhuma inveja e quer sempre pro-
o modelo do sábio. Pois, como nota Aristóteles, a condição duzir o que há de melhor.
humana torna frágil e intermitente essa atividade do espí- A relação entre o sábio e Deus situa-se, em Plotino,
rito, dispersa no tempo e exposta ao erro e ao esquecimen- em dois níveis. Em primeiro lugar o Intelecto divino, em
to. Mas pode-se representar, indo ao limite, um espírito sua relação de pensamento, de identidade e de atividade
cujo pensamento se exercerá perfeita e continuamente em consigo mesmo, possui, confundidas com sua essência, as
um eterno presente. Seu pensamento se pensará, assim, a quatro virtudes: o pensamento ou prudência, a justiça, a
si mesmo, em um ato eterno. Ele conhecerá eternamente força e a temperança, que, neste estado, são os modelos
a felicidade e o prazer que o espírito humano conhece transcendentes da sabedoria, e ele vive uma vida179 "so-
apenas em raros momentos. Essa é precisamente a descrição beranamente sábia, isenta de falta e de erro". Mas, visto
que Aristóteles dá de Deus, como primeiro motor, causa que a alma, segundo Plotino, às vezes se eleva, em raros
final do universo. O sábio vive, assim, de maneira intermi- momentos, na experiência mística, a um nível superior ao
tente o que Deus vive de modo contínuo. Ao fazê-lo, ele Intelecto, encontram-se também na descrição do Uno ou
vive uma vida que excedea c-ondição humana e que, não Bem os traços do sábio: a independência, a ausência de
obstante, corresponde ao que há de mais essencial no ho- necessidade, a identidade consigo mesmo. Há nele muito
mem: a vida do espírito. claramente, uma projeção da figura do sábio sobre a re-
As relações entre a ideia de Deus e a de sábio são me- presentação do divino.
nos claras em Platão, provavelmente porque a ideia do di- É provavelmente porque a figura do sábio e a figura
vino em Platão apresenta-se sob uma forma extremamente de Deus nelas são identificadas que as filosofias de Platão,
complexa e hierarquizada. O "divino" é uma realidade di-
fusa, que compreende as entidades situadas em níveis 178. Teeteto, 176 b.
diversos, como o Bem, as Ideias, o Intelecto divino, a figura 179. Eneadas, V, 3 (49), 17, l.

322 323
A filosofia como modo de vida Filosofia e discurso filosófico

de Plotino, de Aristóteles e de Epicuro representam Deus sa", mas corresponde antes, para retomar a expressão de
antes como força de atração que como força criadora. Nietzsche, a uma reversão total dos valores183 recebidos e
Deus é o modelo que os seres procuram imitar e o Valor convencionais, apresentando-se sob as formas mais diversas,
que orienta sua escolha. Como observa B. Frischer, o sábio como pudemos observar a propósito de diferentes escolas
e os deuses epicuristas são os motores imóveis, como o filosóficas.
Deus de Aristóteles: eles atraem os outros, transmitindo-
lhes suas imagens 180 • Basta, para dar um novo exemplo, evocar a descrição
do estado "natural", isto é, não corrompido, da sociedade
O sábio dos estoicos conhece a mesma felicidade que que Zenão, o estoico, dava em sua República. Ela possuía
a Razão universal personificada alegoricamente por Zeus, algo de escandaloso, precisamente porque a apresentava
porque deuses e homens têm a mesma razão, perfeita nos como a vida de uma comunidade de sábios. Havia uma
deuses, perfectível nos homens 18\ e porque precisamente única pátria, o próprio mundo; não havia leis, pois a ra-
o sábio atingiu a perfeição da razão, fazendo coincidir sua zão do sábio basta para prescrever-lhe o que deve fazer;
razão com a Razão divina, sua vontade com a vontade divina. não havia tribunais, pois ele não comete faltas; não havia
As virtudes de Deus não são superiores às do sábio. templos, pois os deuses não têm necessidade disso e por-
A teologia dos filósofos gregos é, pode-se dizer, uma que é um contrassenso ter por sagradas obras feitas por
teologia do sábio, contra a qual protestou Nietzsche 182 : mãos humanas; não havia dinheiro, não havia leis sobre
o casamento, mas a liberdade de unir-se com quem se
Afastemos a suprema bondade do conceito de Deus: ela é indigna queira, mesmo de maneira incestuosa; não havia leis sobre
de um deus. Afastemos do mesmo modo a suprema sabedoria a sepultura dos mortos.
-foi a vaidade dos filósofos que se tornou culpável por essa
extravagância de um deus monstro da sabedoria: ele deveria A contemplação do mundo e do sábio
lhe parecer tanto quanto possível. Não, Deus, o poder supremo
- isso basta! Disso emana-tudo, disso emana o "mundo". B. Grrethuysen184 insistiu sobre um aspecto muito particu-
lar da figura do sábio antigo, sua relação com o cosmos:
Onipotência ou bondade? Não discutiremos esse pro-
blema, mas devemos afirmar vigorosamente que, contraria- A consciência que ele tem do mundo é algo de particular ao
mente ao que Nietzsche parece entender, o ideal do sábio sábio. Unicamente o sábio não deixa de ter o todo constante-
nada tem a ver com uma moral ética "clássica" ou "burgue- mente presente ao espírito, jamais se esquece do mundo, pensa
e age em relação ao cosmos [. .. ] O sábio Jaz parte do mundo,
180. B. Frischer, The Sculpted Word, p. 83.
181. Sêneca, Cartas, 92, 27; SVF, III, §§ 245-252. 183. Cf. Oswaldo Giacóia Júnior, Labirintos da alma: Nietzsche e a autossu-
182. Nietzsche, Fragments posthumes, Automne 1887, 10 [90], in CEuvres pressão da moral, Campinas, Ed. da Unicamp, 1997.
philosophiques complêtes, T. XIII, Paris, 1976, p. 151. 184. B. Grcethuysen, Anthropologie philosophique, Paris, 1952, p. 80.

324 325
A filosofia como modo de vida Filosofia e discurso filosófico

ele é cósmico. Ele não se deixa desviar do mundo, afastar do con- Um novo aspecto da relação do filósofo com o tempo
junto cósmico [. .. ] O tipo do sábio e a representação do mun- aparece-nos aqui. Não se trata somente de perceber e de
do formam, de alguma maneira, um conjunto indissolúvel. viver cada momento do tempo como se fosse o último, é
necessário também percebê-lo como se fosse o primeiro,
Como vimos, a consciência de si é inseparável de em toda estranheza estupefaciente de seu surgimento.
uma expansão no todo e de um movimento pelo qual o
Como diz o epicurista Lucrécio 187 :
eu se repõe em uma totalidade que o engloba, mas que,
longe de aprisioná-lo, há de permitir-lhe estender-se em Se tudo isto aparecesse agora pela primeira vez aos mortais,
um espaço e em um tempo infinitos 185 : "Tu podes abrir se de improviso se apresentasse diante deles, que se poderia di-
a ti mesmo largo espaço para abarcar com o pensamento zer de mais admirável que tudo isso ou que menos ousariam
o universo inteiro". Aí ainda, a figura do sábio convida a os homens ter acreditado?
uma transformação total da percepção do mundo. Tudo leva aqui a pensar que Sêneca preparava-se para
Existe um texto notável de Sêneca no qual são as- encontrar a ingenuidade do olhar ao contemplar o mundo,
sociadas a contemplação do mundo e a contemplação a menos que isso seja aqui apenas a expressão fugaz de uma
do sábio 186 : espécie de experiência espontânea de "mística selvagem",
para retomar a expressao- d e M. H u 1·m 188 .
Por minha parte, tenho o hábito de tomar muito tempo a
contemplar a sabedoria: eu a olho com a mesma estupefação O que explica essa íntima ligação entre a contempla-
com a qual, em outros momentos, olho o mundo, esse mundo ção do mundo e a contemplação do sábio é, ainda uma
que me acontece muitas vezes de olhar como se o visse pela vez, a ideia do caráter sagrado, isto é, sobre-humano,
primeira vez. quase inumano, da sabedoria. Como diz alhures Sêneca,
na profundidade de um bosque antigo, na solidão selva-
Reencontramos aqui dois exercícios espirituais, um
gem, no manancial dos grandes rios, diante da insondável
que conhecemos bem: a contemplação do mundo, outro que
profundidade de lagos de águas sombrias, a alma vivencia
acabamos agora de entrever: -a--contemplação da figura do
o sentimento da presença do sagrado. Mas ele também
sábio. A julgar pelo contexto, a figura que Sêneca contem-
experimenta isso admirando o sábio 189 :
pla é a de Sextio: "Ao te revelar os segredos da vida feliz,
ele não te tirará a esperança de atingi-la". Notação abso- E se tu vês um homem que o perigo não assusta em nada, que
lutamente capital: para contemplar a sabedoria, como para as paixões não tocaram, que, feliz na adversidade, plácido no
contemplar o mundo, é necessário fazer-se um novo olhar. meio de tempestades, vê do alto os homens, e vê os deuses no mes-

185. Marco Aurélio, Meditações, IX, 32. 187. Lucrécio, Da natureza, II, 1031 ss.
186. Sêneca, Cartas, 64, 6. Cf. P. Hadot, "Le Sage et !e monde", in Le 188. M. Hulin, La Mystique sauvage, Paris, 1993.
Temps de la réjlexion X: 175-188, 1989. 189. Sêneca, Cartas, 41, 3-4. Cf. L Hadot, Seneca ... , p. 94.

326 327
A filosofia como modo de vida Filosofia e discurso filosófico

mo nível, por acaso não serás possuído de veneração? [. .. ] gravidade e de consequências, de preparar-se efetivamente
Em cada homem bom, um deus habita. Qual é ele? Nenhuma para a sabedoria, merecem nosso respeito, mesmo que seus
certeza; mas é um deus. progressos tenham sido mínimos. Trata-se de saber, para
retomar a fórmula da qual J. Bouveresse194 se serve pa-
Contemplar o mundo e contemplar a sabedoria é, final-
ra exprimir uma ideia de Wittgenstein, "qual preço p~ssoal
~en:e, filosofar, é, com efeito, operar uma transformação
eles tiveram de pagar" para ter o direito de falar de seu
mtenor, uma mutação da visão, que me permite reconhecer
esforço para a sabedoria.
ao m:smo tempo duas coisas às quais raramente se presta
atençao, o esplendor do mundo e o esplendor da norma Apesar de minhas reticências contra a utilização do
que e- o sa'b'1019o : "O ceu
- estrelado acima de mim e a lei comparatismo em filosofia, gostaria de tenninar este capítulo
moral em mim". ressaltando até que ponto a descrição, inspirada pelo budis-
mo, que M. Hulin deu das raízes existenciais da experiência
mística parece-me próxima das características do ideal do
Conclusão sábio antigo, de tal modo as semelhanças entre as duas
indagações espirituais pareceram-me evidentes. Mas qual
É fácil ironizar esse ideal do sábio quase inacessível e não foi minha surpresa ao reler o Crysippe de É. Bréhier195
que o filósofo não chega a atingir. Os modernos não se e encontrar um delineamento análogo ao que eu gostaria
privara~ e não deixaram de falar "do irrealismo nostálgico de fazer! Após ter escrito:
e c~nsnente de sua quimera" 191 ; os antigos, como 0 satírico Essa concepção de um sábio superior à humanidade, isento de
Lun~n0 , zombaram do infeliz que, tendo passado toda
192
faltas e de infelicidades, não é particular aos estoicos nessa
sua Vlda esforçando-se e em vigi1ia, nem sempre alcançou época, e chega mesmo a ser, desde os cínicos [teria sido possível
a sabedoria. Assim fala o senso comum, que não com- para ele, por outro lado, dizer: "desde Sócrates e Platão"],
preendeu todo o alcance da definição de filósofo como não uma concepção comum a todas as escolas,
sábio no Banquete de Platão~ -definição que, não obstante
permitirá_ a Kant193 compreender o verdadeiro estatuto d~ ele cita em nota esta descrição budista do sábio:
filósofo. E fácil zombar disso. Ter-se-ia o direito de 0 fazer Vitorioso, conhecendo e compreendendo tudo, livre do peso do
~e os filósofos se tivessem contentado em tagarelar sobre 0 acontecimento e da existência, sem nenhuma necessidade, tal
Ideal do sábio. Mas se eles tomaram a decisão, prenhe de é aquele que se pode glorificar como sábio [. .. 1 O viajante

190. Kant, Critique de la raison pratique, trad. Gibelin Paris 1983 175 194.]. Bouveresse. Wittgenstein, la rime et la raison. Paris, 1973, p. 74,
191 p v: "In ' ' ' p. .
· · :rne, troduction", in Sêneca, Ent:retiens, Lettres à Lucilius, p. ex. cf. abaixo, p. 368.
192. Luciano, Hermotimo, cap. 77. 195. Crysippe, p. 219, nota l (Bréhier cita Sutta Nipata. Trad. Oldenberg,
193. Cf. abaixo pp. 373-380. Deutsche Rundschau, Januar 1910).

328 329
A filosofia como modo de vida

solitário não se inquieta nem com o louvor nem com o vitu-


pério [... ] condutor dos outros, e não conduzido pelos outros,
tal é aquele que se pode celebrar como sábio.
Ora, foi precisamente esta ideia do "depósito do fardo"
que atraiu minha atenção para a descrição de M. Hulin
e pareceu-me apresentar uma analogia com a experiên-
cia espiritual que inspira a figura ideal do sábio antigo.
M. Hulin 196 mostra que, na primeira das quatro "nobre
verdades" do budismo, "Tudo é sofrimento", a palavra
"sofrimento" significa menos o sofrimento que "a alternân-
cia das penas e das alegrias, sua inextricável mistura, seu
contraste, seu condicionamento mútuo". O fardo é essa
oposição que a afirmação da individualidade enclausurada
em si instaura entre o agradável e o desagradável, entre
o "bom-para-mim" e o "mau-para-mim", e que obriga o
homem a sempre ocupar-se de seus interesses. Por trás
dessa oposição, percebe-se a permanência de uma "surda
insatisfação sempre renascente" que é, poder-se-ia dizer,
uma angústia existencial. E precisamente, para libertar-se
dessa "insatisfação", é necessário ousar "depor o fardo":
Assim voltados e ocupados na perseguição de nossos interesses
mundanos, temos ao menos a ideia da imensa consolação que
representará depositar o fardo~- isto é, a renúncia a nos afirmar a
todo custo contra a ordem do mundo e a expensas do outro.

196. M. Hulin, La Mystique sauvage, pp. 243 e 238-242.

330
Capítulo 10

O cristianismo
como filosofia revelada

O cristianismo definindo-se como filosofia

Em suas origens, o cristianismo, tal qual se apresenta


nas palavras de Jesus, anuncia a iminência do fim do
mundo e o advento do reino de Deus, uma mensagem
totalmente estranha à mentalidade grega e às perspectivas
da filosofia, pois ele se inscreve no universo de pensamen-
to do judaísmo, que sem dúvida, subverte, dele conser-
vando certas noções fundamentais. Nada, aparentemente,
poderia deixar .prever que um século após a morte de
Cristo alguns cristãos apresentariam o cristianismo não
somente como uma filosofia, isto é, um fenômeno da
cultura grega, mas mesmo como a filosofia, a filosofia
eterna. Contudo, não se deve esquecer que existiam,
havia muito tempo, relações entre o judaísmo e a filosofia
grega, sendo o exemplo mais famoso Fílon de Alexandria,
filósofo judeu contemporâneo da era cristã. Nessa tradição,
a noção de um intermediário entre Deus e o Mundo
denominado Sophía ou Lógos desempenhava papel cen-
tral. O Lógos era, para ela, a Palavra criadora (Deus diz:

333
Ruptura e continuidade. A Idade Média e os tempos modernos O cristianismo como filosofia revelada

"Que a luz seja"), mas também reveladora de Deus. É e guia o pensamento humano. O neoplatônico Amélio 2,
nessa perspectiva que é necessário compreender o famo- discípulo de Plotino, considerava, por outro lado, esse
so prólogo do Evangelho de Joãol:
prólogo um texto filosófico quando escrevia:
No início [ou "No Princípio·~ isto é, em Deus, como 0 E portanto está aí o Lógos, graças ao qual todas as coisas
compreendem certos exegetas] era o Verbo, e o Verbo estava
geradas foram produzidas, que é então sempre ele mes~o,
voltado para Deus, e o Verbo era Deus [. .. ].
como disse Heráclitrr, e também o Bárbaro [= o evangeltsta
Tudo foi feito por meio dele;
João] diz que ele é "voltado para Deus" e que ele "é Deus·~
e sem ele nada se fez do que foi Jeito.
Nele estava a vida, estabelecido no lugar e na dignidade do princípio, que "tudo
e a vida era a luz dos homens [. .. j foi Jeito por meio dele': que "ele estava no mundo .e' por
E o Lógos se fez carne ele, o mundo foi Jeito·: que ele cai no corpo e, revestzndo a
e habitou entre nós carne, toma a aparência de homem, mas de tal modo que ao
e nós vimos sua glória, mesmo tempo mostra sua grandeza, e que, libertado, de novo
é divinizado, é Deus, tal qual era antes de cair no mundo
glória essa que, Filho único cheio de graça e de verdade, ele
tem da parte do Pai. dos corpos e de descer na carne e no homem.

Por causa da ambiguidade da palavra Lógos é que uma Para Amélio4, o evangelista João, que ele denomina o
fil~sofia cristã .foi possível. Desde Heráclito, a noção de Lógos Bárbaro, descreveu em seu prólogo a Alma do Mundo, que
fm um conceito central da filosofia grega, na medida em é divina, mas misturada de alguma maneira ao corpo. Pouco
que poderia significar igualmente "palavra", "discurso" e importa, contudo, a interpretação proposta por ~élio; o
"raz~o". Muito ~specialmente, os estoicos imaginavam que que nos interessa aqui é o parentesco, reconhecido p.elo
o Lagos, concebido como força racional, era imanente ao filósofo neoplatônico, entre o vocabulário do evangelista
mundo,. à n~tureza humana_ e__ a cada indivíduo. Eis por e o vocabulário próprio à filosofia.
que ao Identificar Jesus, o Lógos eterno e o Filho de Deus Desde o século II d.C., os escritores cristãos, denomina-
o .P~ól~go do Evangelho de João permite apresentar ~ dos apologistas porque se esforçaram para apresentar o
cnstiamsmo como uma filosofia. A Palavra substancial de cristianismo sob uma forma compreensível ao mundo greco-
Deus poderia ser concebida como Razão que cria o mundo
romano, utilizaram a noção de Lógos para definir o cristia-

1..T?das as citações bíblicas foram extraídas da Bíblia: tradução ecumênica, 2. Amélio, in Eusébio, Preparação evangélica, XI, 19.
das Ed1ço~s Loyola. Cf. também a tradução oitocentista em decassílabos do 3. Heráclito, B 1, Les Présocratiques, trad. Dumont, p. 1~5.
h~'ro de ]o por José Elói Ottoni. O Livro de Jó, estudo introdutório e fixa- ,
4. Cf. L. Brisson, "Amélius. Sa vie, son ceuvre, sa doctnne, son sty1e ,
ç~o do texto por Haroldo de Campos, São Paulo, Edições Loyola/Editora in Aufstieg und Niedergang der romischen Welt, Ed. W. Haase und H. Tempo-
Gwrdano, 1993 (Memória Brasileira, 15).
rini, II, vol. 36. 2, pp. 840-843.

334
335
Ruptura e continuidade. A Idade Média e os tempos modernos O cristianismo como filosofia revelada

nismo como a filosofia. Os filósofos gregos, dizem eles, até rão um tipo de ensinamento igualmente análogo ao das
aqui possuíram apenas frações do Lógof', isto é, elementos escolas filosóficas contemporâneas. Do mesmo modo que
do Discurso verdadeiro e da Razão perfeita, mas os cristãos os platônicos propunham um curso de leitura dos diálo-
estão na posse do Lógos, isto é, do Discurso verdadeiro e da gos de Platão que correspondia às etapas do progresso
Razão perfeita encarnada em Jesus Cristo. Se filosofar é espiritual, os cristãos, como Orígenes, farão seus disCípulos
viver conforme a Razão, os cristãos são filósofos, já que vivem lerem na ordem o livro bíblico de Provérbios, o Eclesiastes8
conforme o Lógos divino 6 • Essa transformação do cristianis- e depois o Cântico dos Cânticos, que correspondem res-
mo em filosofia há de acentuar-se ainda em Alexandria, no pectivamente, segundo Orígenes, à ética, que proporciona
século III, com Clemente de Alexandria 7, para quem o uma purificação prévia, à física, que ensina a desvencilhar-
cristianismo, revelação completa do Lógos, é a verdadeira se das coisas sensíveis, e à epóptica ou teologia, que leva
filosofia, aquela que "nos ensina a conduzir-nos de modo à união com Deus 9 • Vislumbra-se aqui que a leitura de
a nos assemelhar a Deus e a aceitar o plano divino como textos é, como entre os filósofos dessa época, uma leitu-
princípio diretor de toda nossa educação". ra "espiritual" em estreita relação com o progresso da
alma. A noção filosófica de progresso constitui o arcabou-
Assim como a grega, a filosofia cristã há de apresentar- ço da formação e do ensinamento cristãos. Como o dis-
se a um só tempo como discurso e como modo de vida. curso filosófico antigo para o modo de vida filosófico, o
Na época do nascimento do cristianismo, nos séculos I e discurso filosófico cristão é um meio de realizar o modo
II, o discurso filosófico, de maneira preponderante, toma- de vida cristão.
ra nas várias escolas, como vimos, a forma de uma exege-
Poder-se-ia dizer, talvez, e com razão, que há mesmo
se dos textos dos fundadores. O discurso da filosofia
uma diferença, pois a exegese cristã é uma exegese de textos
cristã será, também e muito naturalmente, exegética, e as
sagrados e a filosofia cristã funda-se numa revelação: o Lógos
escolas de exegese do Antigo e do Novo Testamento, como
é, precisamente, a revelação e a manifestação de Deus. A
as que o mestre de Clemente de Alexandria ou ainda o
teologia cristã constitui-se pouco a pouco nas controvérsias
próprio Orígenes tinham a5eilo em Alexandria, oferece-
dogmáticas, sempre fundadas na exegese do Antigo e do
Novo Testamento. Mas existia completamente, na filosofia
5.Justino, Apologia, II, 8, 1 e 13, 3 (cf. A. Wartelle. Saint]ustin, Apologies.
lntr., texte, trad. e comm. Paris, 1987).
grega, uma tradição de teologia sistemática, inaugurada pelo
6. Id., ibid., I, 46, 3-4.
7. Clemente, Stromáteis, I, 11, 52, 3 (trad. Mondésert, Cerf, collection 8. Qohélet/0-que-sabe. Eclesiastes, poema sapiencial, transcriação de Haroldo
Sources chrétiennes, abreviado SC nas notas seguintes). Veja-se também o de Campos, São Paulo, Perspectiva, 1991 (Signos, 13).
interessante texto de Gregório Taumaturgo, Agradecimento a Orígenes, que 9. Orígenes, Commentaire sur le Cantique des Cantiques, Prologue, 3, 1-23.
descreve a escola de Orígenes como uma escola filosófica tradicional, com Éd. et trad. L. Brézard, H. Crouzet et M. Borret. Paris, SC, 1991, t. I, pp.
o amor entre mestre e discípulo, os exercícios dialéticos, mas também a 128-143; cf. L Hadot, "Introduction" a Simplício. Commentaire sur les Catégo-
submissão da filosofia à teologia cristã. ries. Fase. L Leyde, 1990, pp. 36-44.

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Ruptura e continuidade. A Idade Média e os tempos modernos O cristianismo como filosofia revelada

Timeu e pelo livro X das Leis de Platão e desenvolvida no tuais, que eram próprios à filosofia profana. Por exemplo,
livro XII da Metafísica de Aristóteles, tradição que distin- Clemente de Alexandria13 poderia escrever isto:
guia as diferentes fontes de revelação, os modos de ação
É necessário que a lei divina inspire o temor, a fim de que o
e os diferentes graus da realidade divina, e que integrará
todos os tipos de revelação na época do neoplatonismo filósofo adquira e conserve a tranquilidade da alma (amerim-
posterior. A filosofia grega podia, mesmo desse ponto de nia), graças à prudência (eulabeia) e à atenção (prosokhê)
vista, servir de modelo para a filosofia cristã10 • consigo mesmo.

Mas se certos cristãos podem apresentar o cristianismo Nesta frase, entrevê-se todo o universo de pensamento
como uma filosofia, como a filosofia, isso não é totalmente da filosofia antiga. A lei divina é, a um só tempo, o Lógos
porque o cristianismo propõe uma exegese e uma teologia dos filósofos e o Lógos cristão; ela inspira a circunspecção
análogas à exegese e à teologia pagãs, mas porque ele é na ação, a prudência, a atenção consigo mesmo, isto é, a
um estilo de vida e um modo de ser e porque a filosofia atitude fundamental do estoico, que proporciona a tranquili-
antiga fora um estilo de vida e um modo de ser. Como dade da alma, disposição interior que todas as escolas
bem notou Dom Jean Leclerq 11 : "Na Idade Média mo- procuram. Ou ainda, em Orígenes 1\ encontra-se o exer-
nástica, tanto quanto na Antiguidade, philosophia designa cício muito filosófico do exame da consciência quando
' '
comentando o Cântico dos Cânticos: "Se não o sabes, tu,
não uma teoria ou uma maneira de conhecer, mas uma
a mais bela das mulheres" 15 , ele o interpreta como um
sabedoria vivida, uma maneira de viver segundo a razão",
convite para a alma examinar-se atentamente. A alma deve
isto é, segundo o Lógos. A filosofia cristã consiste precisa-
dirigir seu exame para seus sentimentos e ações. Propõe-
mente em viver segundo o Lógos, isto é, segundo a razão,
se ela o bem? Procura as diferentes virtudes? Está ela em
a tal ponto que, segundo Justino 12 , "aqueles que antes de
progresso? Reprimiu totalmente, por exemplo, as paixões
Cristo levaram uma vida acompanhada de razão ( lógos)
da cólera, da tristeza, do medo ou do amor à glória? Qual
são cristãos, tendo passado por ateus, tais como Sócrates,
Heráclito e seus semelhantei''~- é sua maneira de dar e receber, de julgar pela verdade?
Entre os Padres da Igreja do século IV, os que se situam
Com essa assimilação do cristianismo a uma filosofia
' na tradição de Clemente de Alexandria e de Orígenes,
veem-se aparecer no cristianismo práticas, exercícios espiri-
por exemplo Basílio de Cesareia, Gregório Nazianzeno,
10. Cf. P. Hadot, "Théologie, exégese, révélation, écriture dans la Gregório de Nissa, Evágrio Pôntico, em certo sentido
philosophie grecque", in Les Regles de l'interprétation, Éd. par M. Tardieu,
Paris, 1987, pp. 13-34. 13. Clemente de Alexandria, Stromáteis, II, 20, 1 Mondésert (SC).
11.]. Leclerq, "Pour l'histoire de l'expression 'philosophie chrétienne"' 14. Orígenes, Comentário sobre o Cântico dos Cânticos, II, 5, 7, t. I, p. 359,
in Mélanges de scíence religieuse, 9: 221-226, 1952. ' Brézard, Crouzel et Borret.
12. Justino, Apologia, I, 46, 3 Wartelle. 15. Cântico dos Cânticos 1,8.

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Ruptura e continuidade. A Idade Média e os tempos modernos O cristianismo como filosofia revelada

Atanásio de Alexandria e monges mais tardios, como de paixões 19 , a "vida conforme a natureza e a razão" 20 •
Doroteu de Gaza, que escreve no século VI, não deixaram Como a filosofia profana, a vida monástica apresentar-se-á
de interpretar no sentido da "filosofia cristã" o fenômeno então como a prática de exercícios espirituais21 dos quais
do monaquismo que se desenvolve a partir do início do alguns serão especificamente cristãos, mas cuja maioria
século IV no Egito e na Síria. É então que alguns cristãos será herdada da filosofia profana.
começam a querer atingir a perfeição cristã por uma prá- Tornar-se-á a encontrar assim a atenção consig·o mesmo
tica heroica de conselhos evangélicos e imitação da vida que era a atitude fundamental dos estoicos e, por outro lado,
de Cristo, retirando-se para os desertos e levando uma dos neoplatônicos 22 • Essa é para Atanásio de Alexandria23 a
vida consagrada totalmente a uma ascese rigorosa e à própria definição da atitude monástica. Narrando, em sua
meditação. Não se tratava de pessoas cultas, e eles não Vida de Antão, como Antão se converteu à vida monástica,
pensavam absolutamente em qualquer relação com a filo- ele se contenta em dizer que se pôs a dar atenção a si
sofia. Encontraram seus modelos no Antigo e no Novo mesmo, e fará referência a estas palavras de Antão dirigidas,
Testamento, talvez também- isso não deve ser excluído no dia de sua morte, a seus discípulos:
a priori - nos exemplos do ascetismo budista ou mani-
queu16. É necessário também recordar que já na época de Vivei como se devêsseis morrer cada dia, dando atenção a vós
Fílon e de Jesus existiam comunidades de ascetas contem- mesmos e vos recordando de minhas exortações.
plativos, como os Terapeutas, que Fílon de Alexandria17 Gregório Nazianzeno 24 falará muito mais de "concen-
descreve em seu tratado Da vida contemplativa e nomeia tração em si mesmo". Atenção a si, concentração no pre-
"filósofos", ou ainda como a corrente judaica de Qumrân. sente, pensamento da morte serão constantemente vincu-
Mas, para os defensores da "filosofia cristã", que vão, lados na tradição monástica, como na filosofia profana.
aliás, praticar o monaquismo - é o movimento que
L. Bouyer 18 denomina "o monaquismo sábio" - , a "filo- 19. Numerosos exemplos em Gregório Nazianzeno, Lettres, T. I-ll, Éd.
sofia" há de designar, doravante, precisamente o modo P. Gallay, Paris, Belles Lettres, 1964-1967, t. I, pp. 39, 60, 71, 74, 114; t. II,
de vida monástico como perfeição da vida cristã, mas essa pp. 14, 85. Cf. H. Hunger, Die Hochsprachliche profane Literatur der Byzantiner,
T. I, Munich, 1978, pp. 4-10 (bibliografia abundante); A.-M. Malingrey,
"filosofia" continuará a estar estreitamente ligada a algu-
Philosophia. Paris, 1961.
mas categorias profanas como a paz da alma, a ausência 20. Atanásio, Vie d'Antoine, 14, 4, Éd. G.]. M. Bartelink, Paris (SC),
1994, p. 175 e 20, 56, pp. 189-191; Evagro, Traité pratique du moine. Éd. A.
16.]. Gribomont, "Monasticism and Asceticism", in Christian Spirituality, et Cl. Guillaumont, Paris (SC), 1971, § 86, p. 677.
Ed. M. McGinn, ]. Meyendorff and]. Leclerq, New York, Clossroad, 1986, 21. Rufino, Historia Monachorum, 7 e 29, Patrologia latina, 21, 410 e 453
p. 91. d. Cf.]. Leclerq, "Exercices spirituels", in Dictionnaire de spiritualité. Paris, t.
17. Cf. a introdução de F. Daumas a Fílon de Alexandria, De vita con- N, cols. 1902-1908.
templativa, Paris (SC), 1963, notadamente p. 31. 22. Cf. acima, pp. 202 e 230-231.
18. L. Bouyer, La Spiritualité du Nouveau Testament et des Peres, Paris, 23. Atanásio, Vida de Antão, 3, 1, p. 137 e 91, 3, p. 369.
1960, pp. 400-472. 24. Gregório Nazianzeno, Cartas, t. II, p. 45 (Carta 153).

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Ruptura e continuidade. A Idade Média e os tempos modernos O cristianismo como filosofia revelada

Antão aconselha, por exemplo, que seus discípulos desper- A atenção a si mesmo supõe a prática do exame de
tem pensando no que talvez não tenham alcançado no dia consciência que o célebre Antão aconselhava que seus
anterior, e que durmam pensando que não despertarão, e discípulos praticassem por escrito28 : "Que cada um anote
Doroteu de Gaza adverte os seus dizendo 25 : por escrito as ações e os movimentos de sua alma, como
se os devesse fazer conhecer aos outros". Preciosa notação
Demos atenção a nós mesmos, irmãos, sejamos vigilantes, pois
temos muito tempo [. .. } Desde o início de nossa conversa, psicológica: o valor terapêutico do exame de consciência
dispensamos duas ou três horas e nos aproximamos da morte, será maior se for exteriorizado graças à escritura. Assim
mas notemos sem terror que perdemos tempo. como teríamos vergonha de cometer faltas em público, a
escritura dá-nos a impressão de estar em público: "Que a
É bastante evidente que essa atenção a si mesmo é, com escritura assuma o lugar do ouvido do outro". Seja como
efeito, uma conversão, uma orientação para a parte superior for, o exercício do exame de consciência deve ser muito
de si. Isso aparecerá muito claramente em um sermão de frequente e muito regular. Doroteu de Gaza29 recomendava
Basílio de Cesareia que toma por tema um texto bíblico26 : que todos se examinassem às seis horas, mas também que
"Guarda-te de ter em teu coração um pensamento vil".
fizessem um balanço do estado da alma a cada semana, a
No comentário de Basílio, encontrar-se-ão todos os temas
cada mês, a cada ano.
do estoicismo e do platonismo. Guardar-se a si mesmo é
animar em nós os princípios racionais de pensamento e de A atenção a si mesmo e a vigilância supõem também,
ação que Deus pôs em nossa alma, é velar por nós mesmos, como vimos, exercícios de pensamento: trata-se de meditar,
isto é, por nosso espírito e nossa alma, e não pelo que é de rememorar, de ter constantemente "à mão" os princípios
nosso, isto é, nosso corpo e nossos bens, é velar também da ação, resumidos, tanto quanto possível, em curtas sen-
pela beleza de nossa alma, examinando nossa consciência e tenças. É a essa necessidade que respondem na literatura
conhecendo-nos a nós mesmos. Corrigiremos assim os juízos monástica os Apojtegmas e o que se denomina Kephalaia.
que lançamos sobre nós mgsmos, reconhecendo ao mesmo Os Apoftegmail0 foram, como os dos filósofos profanos
tempo nossa verdadeira pobreza e nossa verdadeira riqueza, reunidos por Diógenes Laércio, pronunciados por mestres
os esplendores que nos oferece o cosmos, nosso corpo, a espirituais, em uma circunstância determinada. Os Kephalaia
Terra, o céu, os astros e, sobretudo, o destino da alma27 .
28. Atanásio, Vida de Antão, 55, 9, p. 285. Cf. M. Foucault, "L'Écriture
25. Atanásio, Vida de Antão, 19, 3, p. 187; Doroteu de Gaza, Obras de soi", in Corps écrit, 5, pp. 3-23, e minhas observações sobre esse texto de
espirituais, § 114, 1-15 (SC). Foucault, in Michel Foucault philosophe, Paris, 1989, pp. 262-266.
26. Deuteronômio 15,9. 29. Doroteu de Gaza, CEuvres spirituels, Éd. L. Regnault etJ. de Préville,
27. Basílio de Cesareia, In illud attende tibi ipsi, Patrologia graeca, 31, cols. Paris (SC), 1963, §§ 111, 13 e 117, 7, pp. 353 e 365.
197-217; edição crítica de S. Y Rudberg, Acta Universitatis Stockholmensis, 30. Cf. Les Apopthegmes des Peres, Collection Systématique, chap. I-IX.
Studia Graeca Stockholmensia, T. 2, Stockholm, 1962. Introd., texte, trad. et notes par J.-C. Guy. Paris (SC), 1993.

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Ruptura e continuidade. A Idade Média e os tempos modernos O cristianismo como filosofia revelada

(pontos capitais) são coleções de sentenças relativamente Por sorte, chega enfim a não ter mais vontade própria, mas,
curtas, agrupadas quase sempre em centenas. A meditação seja o que for que lhe aconteça, isso o contenta, como isso
dos exemplos e das sentenças deverá, como na filosofia lhe viesse dele mesmo.
profana, ser constante. Epicuro e Epíteto recomendavam Aquele que não tem vontade própria Jaz sempre o que quer, tudo
que se cresça nisso dia e noite. Doroteu de Gaza31 tam- o que acontece o satisfaz e ele se acha a Jazer constantemente
bém aconselha meditar sem cessar, a fim de ter à mão os sua vontade a ele mesmo, pois não quer que as coisas sejam
princípios da ação no momento oportuno, e que se possa como ele qu~ mas quer que as coisas sejam tais quais são.
"aproveitar todos os acontecimentos", isto é, reconhecer o
que se deve fazer diante de cada acontecimento. Reconhece-se aí o eco da célebre oitava sentença do
Manual de Epíteto:
A atenção a si mesmo traduz-se por um domínio, um
controle de si, que só se pode obter pelo hábito e pela Não deseja que o que acontece aconteça como tu queres;
perseverança nas práticas ascéticas, destinadas a realizar o mas quezras que o que acontece aconteça como acontece, e
triunfo da razão sobre as paixões, atacadas até sua erra- serás feliz.
dicação radical. Trata-se de aplicar aqui uma terapêutica Como o estoico, o monge quer cada momento presente
das paixões. O caminho que leva a essa libertação total tal qual é.
( apatheia) passa pelo desvinculamento dos objetos ( apros-
patheia), isto é, a supressão progressiva dos desejos que Segundo outro conselho da filosofia tradicionaP\ os
têm por objeto as coisas indiferentes. Como o estoico principiantes esforçar-se-ão para combater uma paixão, por
Epíteto, mas também como o platônico Plutarco, que es- exemplo a luxúria, com uma paixão a ela oposta,
crevera tratados aconselhando exercícios de domínio da por exemplo a busca da boa reputação, antes de poder
curiosidade e da tagarelice, Doroteu de Gaza recomenda combater diretamente essa paixão praticando a virtude que
começar por habituar-se -a Stiprimir pequenas coisas, uma lhe é oposta35 •
vã curiosidade, uma palavra inútil, para preparar-se pouco São antes as concepções platônicas e neoplatônicas
a pouco para grandes sacrifícios32 • Para Doroteu de Gaza, que exercem sua influência em Evágrio Pôntico36 , que fora
graças a essas práticas, é a vontade egoísta, a vontade discípulo de Gregório Nazianzeno, por exemplo quando
própria, a vontade que busca seu prazer nos objetos, que ele utiliza a .tripartição platônica da alma para definir o
será pouco a pouco suprimida33 : estado de virtude:

31. Doroteu de Gaza, § 60, 27-30. 34. Cícero, Tusculanas, IV, 75.
32. Id., § 20, 1~33, e Epiteto, Conversações, I, 18, 18 e Manual, 12, 2. 35. Evágrio, Tratado prático, § 58 (SC).
33. Doroteu de Gaza, § 20, 28 e § 187, 14-16. 36. Id.; ibid., § 86.

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Ruptura e continuidade. A Idade Média e os tempos modernos O cristianismo como filosofia revelada

A alma racional age segundo a natureza quando sua parte assim tua alma, tanto quanto possas, seja do corpo (sôma ),
desejante (epithymêtikon) deseja a virtude, quando sua seja do túmulo (sêma) - para falar como Platão. Se tu
parte guerreira (thymikon) combate pela virtude, e quan- filosofas dessa maneira [. ..1 aprenderás muito a filosofar em
do sua parte racional (logistikon) chega à contemplação teu sofrimento.
dos seres.
Quanto ao discípulo de Gregório, Evágrio Pôntico,
A ascese é frequentemente concebida também, de é nestes termos claramente neoplatônicos que retoma o
maneira platônica, como uma separação do corpo e mesmo tema39 :
da alma, que é a condição preliminar para a visão de
Separar o corpo da alma pertence apenas Àquele que os uniu;
Deus. O tema aparece já em Clemente de Alexandria37 ,
mas separar a alma do corpo pertence precisamente àquele que
para quem a "real piedade para com Deus consiste em
tende à virtude. Pois nossos Padres denominam anacorese [a
separar-se sem retorno do corpo e de suas paixões: Eis
vida monástica] o exercício para a morte e fuga do corpo.
por que talvez a filosofia tenha sido denominada a justo
título 'exercício para a morte' por Sócrates". É necessário Porfírio escrevera40 :
renunciar a utilizar os sentidos para poder reconhecer as
O que a natureza ligou, ela o desligou, mas o que a alma
verdadeiras realidades. Gregório Nazianzeno repreende um
amigo doente por lamentar-se de seu sofrimento como se ligou, é a alma que o desliga. A natureza ligou o corpo
fora algo irremediável, e o exorta38 : na alma, a alma ligou-se a si mesma no corpo: portanto, a
natureza desliga o corpo da alma, mas a alma desliga-se
É necessário, ao contrário, que tu filosofes [isto é, que tu te a si mesma do corpo.
exercites para viver como um filósofo] em teu sofrimento, é ao
mais alto grau o momento de purificar teu pensamento, de Ele opunha, assim, o laço natural do corpo com a
revelar-te superior aos laços que te prendem [isto é, ao corpo], alma, que o faz viver, ao laço afetivo que vincula a alma
de ver em tua doença uma ''fieaagogia" que te conduz ao que ao corpo, laço que pode ser tão estreito que a alma se
é útil para ti, isto é, a desprezar o corpo e as coisas corpóreas identifique ao corpo e cuide apenas de satisfazê-lo. Segundo
e tudo o que se vende, e que é fonte de perturbação e de pe- Evágrio, a morte para a qual se prepara o filósofo que é
recimento, a fim de que possas pertencer inteiramente à parte monge é a total erradicação das paixões que ligam a alma
que está no alto, [. .. ] fazendo desta vida aqui embaixo - é ao corpo, para alcançar a perfeita separação do corpo que
o que diz Platão - um exercício para a morte, libertando proporciona a apatheia, a ausência de paixões.

37. Clemente de Alexandria, Stromáteis, V, 11, 67, 1, Éd. A. Le Boulluec, 39. Evágrio, Tratado prático, § 52, veja-se in SC o comentário de A. e
Paris (SC), 1981, p. 137. C. Guillaumont.
38. Gregório Nazianzeno, Cartas, XXXI, t. I, p. 39. 40. Porfírio, Sententiae, cc. 8 e 9.

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Ruptura e continuidade. A Idade Média e os tempos modernos O cristianismo como filosofia revelada

Cristianismo e filosofia antiga do cristianismo? A essa questão complexa, não podemos


oferecer uma resposta certa e exaustiva, pois seria necessá-
Se os cristãos puderam retomar a palavra grega philo- rio, antes de tudo, definir de maneira rigorosa o que fora
sophia, para designar essa perfeição da vida cristã que é o o cristianismo primitivo, e isso ultrapassa nossa competência
monaquismo, é que essa palavra designava bem um modo e o objetivo deste livro. Gostaríamos somente de observar
de vida, de maneira que, retomando-a, os "filósofos cris- alguns pontos que nos parecem essenciais.
tãos" foram levados a introduzir no cristianismo práticas e
Em primeiro lugar, e é isso o mais importante, não se
atitudes herdadas da filosofia profana. Isso não deve causar
deve esquecer que, se a espiritualidade cristã tomou em-
espanto: vida filosófica profana e vida monástica teriam,
prestados da filosofia antiga certos exercícios espirituais,
finalmente, muitas analogias. Sem dúvida, o filósofo anti-
eles passam a encontrar seu lugar em um mais vasto con-
go não se retira para o deserto, nem para o claustro, ao
junto de práticas especificamente cristãs. A vida monástica
contrário, vive no mundo, no qual exerce algumas vezes
supõe sempre o auxílio da graça de Deus, e também uma
uma atividade política. Mas, se é realmente um filósofo, ele
disposição fundamental de humildade, que se manifesta
teve de se converter, fazer profissão de filósofo, fez uma
escolha de vida que o obriga a transformar toda sua vida muitas vezes nas atitudes corporais que marcam a submis-
no mundo, e, em certo sentido, ele se separa do mundo. são e a culpabilidade, como a prostração diante dos outros
Entra em uma comunidade sob a direção de um mestre monges. A renúncia à vontade própria realiza-se por uma
espiritual, na qual será levado a venerar o fundador da obediência absoluta às ordens do superior. O exercício
escola, a participar muitas vezes das refeições comuns com para a morte está ligado à memória da morte de Cristo,
os membros da escola; ele vai examinar sua consciência a ascese é compreendida como uma participação em sua
' Paixão. Do mesmo modo, é Cristo que o monge vê em
talvez mesmo confessar suas faltas, como era costume na
escola epicurista; levar uma vida ascética, renunciar a todo cada homem41 : "Tu não tens vergonha de te encolerizar e
conforto e toda riqueza, se é um cínico; seguir um regime de falar mal de teu irmão! Não sabes que ele é Cristo e
vegetariano, se pertence a uma escola pitagórica; e, se é que é a Cristo que fazes desonra?". A prática das virtudes
neoplatônico, consagrar-se à contemplação, procurar a ganha, então, outro sentido.
união mística.
Por outro lado, os "filósofos cristãos" procuraram cris-
O cristianismo é, indiscutivelmente, um modo de vida. tianizar o emprego que faziam de temas filosóficos profa-
Que seja apresentado como uma filosofia não implica, por- nos, procurando dar a impressão de que os exercícios que
tanto, nenhum problema. Mas, ao fazê-lo, ele adota certos aconselhavam já tinham sido recomendados pelo Antigo
valores e certas práticas próprias à filosofia antiga. Isso era
legítimo? Essa evolução correspondia ao espírito original 41. Doroteu de Gaza, Vida de Dositeu, § 6.

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Ruptura e continuidade. A Idade Média e os tempos modernos O cristianismo como filosofia revelada

ou pelo Novo Testamento. Por exemplo, se o Deuteronômio O cristianismo é a doutrina de Cristo, nosso Salvador; ela se
emprega a expressão "Guarda-te", Basílio conclui disso compõe da prática, da física e da teologia.
que o livro bíblico aconselha o exercício filosófico da
"atenção a si mesmo". Essa atenção a si mesmo será de- Reconhecemos aí, enumeradas segundo sua ordem
nominada também "Guarda teu coração", por causa de as três partes da filosofia valorizadas na escola platônic~
um texto de Provérbios 42 : "Guarda teu coração com toda ao menos desde Plutarco 46 , que correspondiam às três
a vigilância". Como se encontra na Segunda Epístola aos etapas do progresso espiritual. É bastante admirável apren-
Coríntios 43 a exortação: "Fazei vós mesmos vossa autocrí- der que Cristo propôs uma prática, uma física e uma
tica", ver-se-á aí um chamado ao exame de consciência, :eologi~. Evidentemente, poder-se-ia admitir, a rigor, que
e na Primeira Epístola aos Coríntios, nas palavras 44 "Todos e poss1vel reconhecer essas três partes da filosofia nos
os dias eu morro", o modelo do exercício para a morte. conselhos morais e nos ensinamentos sobre o fim do
mundo e sobre Deus.
Contudo, é evidente que essas alusões aos textos escritu-
rísticos não podem impedir que os "filósofos cristãos" Mas é ainda mais admirável quando Evágrio define mais
descrevam, como vimos, os exercícios espirituais de que precisamente as três partes da filosofia. Parece que para ele
falam utilizando o vocabulário e os conceitos da filosofia a fisica é o reino dos céus e a teologia o reino de Deus47.
profana. As alusões aos textos bíblicos se fundam muitas Temos, então, a surpresa de tornar a encontrar aqui a no-
vezes apenas em uma interpretação alegórica, que consis- ção evangélica de reino de Deus que era designada por suas
te finalmente em atribuir aos textos o sentido que se lhes expressões sinônimas: o reino dos céus e o reino de Deus.
deseja atribuir, sem levar em conta a intenção do autor. Essa noção provinha do judaísmo, no qual correspondia à
Muitos filósofos modernos utilizam esse modo de inter- perspectiva futura de um reino de Deus e de sua Lei sobre
pretação para explicar os textos da Antiguidade. Seja como todos os povos da Terra. Na mensagem de Jesus, o reino é
for, é por esse procedimento que os Padres da Igreja a um só tempo presente e iminente, pois começa a realizar-
puderam, por exemplo, interpFetar expressões evangélicas se segundo o espírito, e não segundo a letra, pela conversão,
tais como "reino dos céus" ou "reino de Deus" como se pela penitência, pelo amor ao próximo, pelo cumprimento
designassem partes da filosofia. É o que se encontra nas da vontade de Deus. Identificar a noção de reino de Deus
primeiras linhas do Tratado prático de Evágrio Pôntico, ou de reino dos céus a partes da filosofia, da física e da
que começa por escrever45 : teologia é realmente atribuir a essas noções um sentido
totalmente inesperado. Sob a influência de Orígenes, por
42. Provérbios, 4, 23; Atanásio, Vida de Antão, 21, 2, p. 192. outro lado, as noções evangélicas de reino dos céus e de
43. 2Cor 13, 5; Atanásio, Vida de Antão, 55, 6, p. 283.
44. 1Cor 15, 31; Atanásio, Vida de Antão, 19, 2, p. 187. 46. Cf. acima p. 223 e 337.
45. Evágrio, Tratado prático, § 1. 47. Evágrio, op. cit., §§ 2-3.

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Ruptura e continuidade. A Idade Média e os tempos modernos O cristianismo como filosofia revelada

reino de Deus tornam-se dois estados da alma ou duas a si mesma, que o espaço não divide e o tempo não trans-
etapas do progresso espiritual. Após a prática, purificação forma". A ética fará descobrir que unicamente a alma
preliminar graças à qual começa-se a adquirir a impassibi- racional e intelectual é capaz de usufruir a contemplação
lidade (apatheia) diante das paixões, o iniciante pode abor- da eternidade de Deus e de nele encontrar a vida eterna49 •
dar a física, a contemplação das "naturezas" (physeis), isto é, Tal é, para Agostinho, a essência do platonismo, e também
dos seres criados por Deus, visíveis e invisíveis. É enquanto a do cristianismo, como ele afirma citando certo número
"criados" que o iniciante os contempla, isto é, em sua rela- de passagens do Novo Testamento, opondo o mundo vi-
ção com Deus. Com essa contemplação, consolida-se a sível e o mundo invisível, a carne e o espírito. Mas, dir-se-á,
impassibilidade. É o que Evágrio denomina o "reino dos qual é então a diferença entre o cristianismo e a filosofia
céus". Indo além disso, o iniciante atingirá então o "reino platônica? Para Agostinho, ela consiste no fato de que o
de Deus", isto é, a contemplação do mistério de Deus em platonismo não pôde converter as massas e desprendê-las
sua Trindade. Essa será a etapa da teologia. Essa interpretação das coisas terrestres para orientá-las para as coisas espiri-
dos termos "reino dos céus" e "reino de Deus" não é, con- tuais; por essa razão, desde o nascimento de Cristo, homens
tudo, própria de Evágrio. Já esboçada desde Clemente de de toda condição adotaram esse modo de vida e assistiram
Alexandria e Orígenes, é abundantemente atestada nos a uma verdadeira transformação da humanidade. Se Platão
escritores posteriores48 • voltasse à Terra, diria: "Eis o que não ousei anunciar às
massas". Se as almas, "cegas pelas máculas corporais", pu-
Nos anos que se seguirão à sua conversão, Agostinho deram "sem o auxílio das discussões filosóficas", "entrar
de Hipona confrontou, em seu livro Sobre a verdadeira religião, em si mesmas e olhar para sua pátria", é que Deus, na
platonismo e cristianismo. A seus olhos, o essencial das Encarnação, desceu até o corpo humano a autoridade da
doutrinas platônicas e o essencial das doutrinas cristãs se Razão divina50 • Nessa perspectiva agostinista, o cristianismo
sobrepõem. A lógica platônica ensina a reconhecer que as tem o mesmo conteúdo que o platonismo: trata-se de se-
imagens sensíveis enchem nossa alma de erros e de opiniões parar-se do mundo sensível para poder contemplar Deus
falsas, e que é necessário curá-la dessa doença, para que e a realidade espiritual, mas unicamente o cristianismo
ela possa descobrir a realidade divina. A física nos ensina pôde fazer adotar esse modo de vida pelas massas popu-
que todas as coisas nascem, morrem e desaparecem, tendo lares. Nietzsche 51 teria podido apoiar-se em Agostinho
existência apenas graças ao ser verdadeiro de Deus que as
formou. Separando-se das coisas sensíveis, a alma poderá 49. Agostinho. De vera religione. III, 3 (Bibliotheque Augustinienne,
fixar seu olhar na Forma imutável que dá forma a todas CEuvres de saint Augustin, 8, 1re série: Opuscules. VIII. La Foi chrétienne. Éd.
et trad. Pegon. Paris, 1951).
as coisas e na Beleza "sempre igual e em tudo semelhante
50. Agostinho, Devera religione, IV, 7.
51. Nietzsche, Para além de bem e mal, prefácio [4a ed., tradução e notas
48. Orígenes, De oratione, 25; veja-se a nota de A. e C. Guillaumont in de Rubens Rodrigues Torres Filho, São Paulo, Nova Cultural, 1987 (Os
Evágrio, Tratado prático, t. II, pp. 499-503 (SC). Pensadores)].

352 353
Ruptura e continuidade. A Idade Média e os tempos modernos

para justificar sua fórmula: "O cristianismo é um p~atonis­


mo para o povo".
Capítulo 11
É necessário reconhecer que, sob a influência da filo-
sofia antiga, certos valores que eram apenas secundários,
se não inexistentes, vieram a ocupar o primeiro plano no
cristianismo. À ideia evangélica da irrupção do reino de cfJesaparecimentos e reaparecimentos
Deus substitui-se o ideal filosófico de uma união com Deus,
de uma deificação, alcançada pela ascese e pela contempla- da concepção antiga de filosofia
ção. Algumas vezes a vida cristã torna-se menos a vida de
um homem que a de uma alma, torna-se uma vida segundo
a razão, análoga à dos filósofos profanos, e mesmo, mais
especialmente ainda, uma vida segundo o Espírito, análoga Se a filosofia antiga vinculava tão estreitamente discurso
à dos platônicos: tratar-se-á agora de fugir do corpo para filosófico e forma de vida, como se deveria hoje, no ensino
voltar-se para uma realidade inteligível e transcendente e, habitual de história da filosofia, apresentar a filosofia antes
se possível, atingi-la em uma experiência mística. Em todo de tudo como um discurso, quer se trate de um discurso
caso, a atenção a si, a busca da impassibilidade, da paz da teórico e sistemático ou de um discurso crítico, sem relação
alma, da ausência de cuidado e, muito especialmente, a direta com a maneira de viver do filósofo?
fuga do corpo tornaram-se os objetivos primordiais da vida
espiritual. Doroteu de Gaza52 não hesitará em afirmar que
a paz da alma é tão importante que se deve, caso isso seja Ainda uma vez: cristianismo e filosofia
necessário, renunciar ao que se persegue para não perdê-la.
Foi essa espiritualidade, marcada fortemente pelo modo A razão dessa transformação é, antes de tudo, de ordem
de vida das escolas filosófiGas--antigas, que o modo de vida histórica. Ela se deve ao progresso do cristianismo.
cristão da Idade Média e dos tempos modernos herdou. O cristianismo, acabamos de ver, apresentou-se muito cedo
como uma filosofia no sentido antigo da palavra, isto
é, como uin modo e uma escolha de vida implican-
do certo discurso, a escolha de vida segundo Cristo. Nesse
modo de vida cristão e também no discurso cristão, muitos
elementos da filosofia tradicional greco-romana foram
absorvidos e integrados. Mas, pouco a pouco, por razões
52. Doroteu de Gaza, §§ 58-60. que ainda iremos expor, efetuou-se, no seio do cristianismo,

354 355
Ruptura e continuidade. A Idade Média e os tempos modernos Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia

especialmente na Idade Média, um divórcio entre o modo anteriores 3• Continuo, sem dúvida, a pensar que esse fe-
de vida e o discurso filosófico. Certos modos de vida fi- nômeno está intimamente ligado às relações entre filosofia
losóficos próprios às diferentes escolas da Antiguidade e cristianismo, notadamente como definidas nas universi-
desapareceram totalmente, por exemplo o epicurismo; os dades medievais. Mas, por outro lado, devo reconhecer
outros, como o estoicismo ou o platonismo, foram absor- que a redescoberta da filosofia como modo de vida não é
vidos pelo modo de vida cristão. Se é verdade que, até tão tardia quanto eu afirmara, sendo necessário admitir
certo ponto, o modo de vida monástico foi denominado que começou a esboçar-se também nas universidades me-
"filosofia" na Idade Média\ não é menos verdade que dievais. Em contrapartida, é necessário aduzir nuances e
esse modo de vida, embora integrasse exercícios espiri- especificações na descrição dessa redescoberta da filosofia
tuais próprios às filosofias antigas, viu-se separado do como modo de vida.
discurso filosófico ao qual se ligara anteriormente. Por-
tanto, subsistiram unicamente os discursos filosóficos de
certas escolas antigas, sobretudo os do platonismo e do A filosofia como serva da teologia
aristotelismo; mas, separados dos modos de vida que os
inspiraram, foram reduzidos ao plano de um simples Escrevendo nos últimos anos do século XVI suas Dis-
material conceitual utilizável nas controvérsias teológicas. putationes Metaphysicae, obra que exercerá considerável
A "filosofia", posta a serviço da teologia, é doravante influência sobre muitos filósofos desde o século XVII até
o século XIX, o autor escolástico F. Suárez4 declara:
apenas um discurso teórico, e quando a filosofia moder-
na conquistar sua autonomia, no século XVII, e sobretu- Nesta obra, ponho-me no papel de um filósofo, tendo bem
do no século XVIII, terá sempre tendência a limitar-se a presente ao espírito que nossa filosofia deve ser uma filosofia
esse ponto de vista. Disse bem, "ela terá tendência", pois, cristã, e serva da divina teologia.
como teremos oportunidade de repetir, a concepção
Para Suárez, uma filosofia "cristã" é a que não contradiz
original e autêntica da filosofia greco-romana jamais será
os dogmas do cristianismo e pode ser utilizada na eluci-
totalmente esquecida.
dação de problemas teológicos. Isso não quer dizer que
Graças aos trabalhos de J. Domanski2, pude corrigir a essa filosofia seja especificamente cristã nas doutrinas que
apresentação demasiadamente breve e inexata que propu-
sera desse processo de "teorização" da filosofia em estudos 3. P. Hadot, Exercices spirituels et philosophie antique, 3• ed. Pa1is, pp.
56-57 e 222-225.
4. Fr. Suárez, Disputationes Metaphysicae, in Opera omnia. Vives, 1861, t.
1. Cf. acima p. 340. XXV, Ràtio et discursus totius operis, citado por É. Gilson, L'Esprit de la philo-
2. J. Domanski, La philosophie, théorie ou maniere de vivre.... Fribourg/ sophie médiévale, Paris, 1944, p. 414, no qual se encontrará uma compilação
Paris, 1996. de textos sobre a noção de filosofia cristã.

356 357
Ruptura e continuidade. A Idade Média e os tempos modernos Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia

professa. Ao contrário, trata-se, essencialmente, da filosofia mosaica de outra, substituindo evidentemente a filosofia
aristotélica tal qual assimilada e adaptada ao cristianismo de Moisés pela de Cristo8 •
pela escolástica do século XIII.
Mas é necessário considerar que a filosofia grega pos-
Essa representação da filosofia, serva, escrava, de uma ta aqui em questão é aquela que se reduz ao disc.urso fi-
teologia ou sabedoria superior, fez uma longa história5 . losófico. O cristianismo apresentou-se a si mesmo, confor-
Desde o início de nossa era, encontrar-se-á em Fílon de me vimos, como um modo de vida, o único modo de vida
Alexandria, que propusera um esquema geral da formação válido. Mas em face desse modo de vida cristão, por vezes
e do progresso espiritual. A primeira etapa era, segundo tingido por nuances emprestadas à filosofia profana, per-
o programa da República de Platão, o estudo do ciclo das sistem os discursos filosóficos das diferentes escolas ou
ciências, como a geometria, a música, mas também a '
mais exatamente, o discurso filosófico do neoplatonismo, '
gramática e a retórica. Comentando o livro do Gênesis, pois a partir do século III d.C. o neoplatonismo é, como
Fílon identifica essas ciências a Hagar, a escrava egípcia à síntese do aristotelismo e do platonismo, a única escola
qual Abraão deve unir-se antes de se unir a Sara, sua es- filosófica que subsiste. É esse discurso filosófico neopla-
posa6. O ciclo das ciências deve ser concebido como es- tônico que os Padres da Igreja, depois de Clemente de
cravo da filosofia. Mas a filosofia deve, por seu turno, ser Alexandria e de Orígenes, hão de utilizar para desenvolver
considerada escrava da sabedoria, ou verdadeira filosofia, sua teologia. Desse ponto de vista, a filosofia será desde a
que é para Fílon, a Palavra de Deus revelada por Moisés 7• Antiguidade cristã, a serva da teologia, uma serva que
Os Padres da Igreja, como Clemente de Alexandria e aduzirá seu saber-fazer, mas que deverá também adaptar-se
sobretudo Orígenes, retomarão essa relação de proporção às exigências de sua senhora. Haverá, assim, uma conta-
estabelecida por Fílon entre o ciclo das ciências e a filo- minação. Na Trindade, o Pai revestir-se-á bastante dos
sofia grega, de uma parte, e a filosofia grega e a filosofia traços do primeiro Deus neoplatônico, o Filho será con-
cebido sobre o modelo do segundo Deus de Numênio ou
do Intelecto plotiniano. Mas a evolução das controvérsias
5. Encontrar-se-á uma história da noçao in B. Baudoux, "Philosophia
Ancilla Theologiae", in Antonianum, 12: 293-326, 1937; É. Gilson, "La teológicas conduzirá à representação de uma Trindade
servante de la théologie", in Études de philosophie médiévale. Strasbourg, consubstanciai. A lógica e a ontologia aristotélicas, que o
1921, pp. 30-50. Vejam-se também as observações de A. Cantin, em sua neoplatonismo integrara, fornecerão os conceitos indispen-
introdução a P. Damião, Lettre sur la Toute-Puissance divine, Paris (SC), sáveis para formular os dogmas da Trindade e da Encarna-
1972, p. 251, nota 3 [N. do T.: cf. Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento,
"A serva da teologia e a dama dos salões", in Humanidades, Brasília: 8(3): ção, permitindo distinguir natureza, essência, substância,
281-287, 1992.]. hipóstase. E como recompensa, por efeito do refinamento
6. Fílon de Alexandria, De congressu, § ll; cf. I. Hadot, p. 282.
7. Fílon de Alexandria, op. cit., §§ 79-80; cf. I. Hadot, p. 284, M. 8. Vejam-se os textos de Clemente e de Orígenes in M. Alexandre, pp.
Alexandre, pp. 71-72. 83-97, e I. Hadot, pp. 287-289.

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Ruptura e continuidade. A Idade Média e os tempos modemos Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia

das discussões teológicas, a ontologia aristotélica tomar-se-á A partir do século XIII, dois novos fatos terão grande
mais aperfeiçoada e precisa. influência sobre a evolução do pensamento da Idade
Segundo Fílon e Orígenes, as artes liberais eram uma Média. Trata-se, de uma parte, da aparição das universi-
propedêutica à filosofia grega, e a filosofia grega uma pro- dades e, de outra, da ampla disseminação das traduções
pedêutica à filosofia revelada. Mas pouco a pouco as etapas de Aristóteles. O fenômeno da constituição das universi-
preparatórias tiveram tendência de fundir-se entre si. Por dades corresponde ao progresso das cidades e a um
exemplo, quando Agostinho de Hipona em seu De doctrina declínio das escolas monásticas que, como diz M.-D.
christiana enumera os conhecimentos profanos necessários Chenu 13 , "preparavam sem ambiÇão o jovem monge à
ao exegeta cristão, praticamente põe no mesmo plano, de leitura da Bíblia e ao serviço divino". A universidade que
um lado, as artes liberais, como as matemáticas, a dialética, é, ao mesmo tempo, no seio da cidade, a corporação
e, de outro, a filosofia9 • Reencontra-se esse nivelamento no intelectual de estudantes e de professores e, na Igreja,
início da Idade Média, por exemplo na época carolíngia, um corpo dependente da autoridade eclesiástica, orga-
em Alcuíno 10 • niza um curso escolar, um ano letivo, aulas, exercícios
de discussão, de exames. O ensino é reunido em duas
Do século IX ao XII, a filosofia grega, graças a certas
obras de Platão, de Aristóteles, de Porfírio, conhecidas por faculdades, a Faculdade de Artes, na qual se ensinam,
intermédio de traduções e comentários realizados no fim em princípio, as artes liberais, e a Faculdade de Teologia.
da Antiguidade por Boécio, Macróbio, Marciano Capela, É igualmente no século XIII que se descobre grande
há de continuar, como no tempo dos Padres da Igreja, a parte da obra de Aristóteles e de seus comentadores
ser utilizada nas discussões teológicas, mas servirá também gregos e árabes, graças às traduções -latinas de textos
para elaborar uma representação do mundo. O platonismo árabes e gregos. A filosofia de Aristóteles, e entendamos
da escola de Chartres é um fenômeno bem conhecido 11 • por isso o discurso filosófico de Aristóteles, há de desem-
Durante esse período, as artes liberais farão parte do ciclo penhar papel capital nas duas Faculdades. Os teólogos
de estudos nas escolas monásticas e catedrais 12 . utilizarão a dialética de Aristóteles, mas também sua teo-
ria do conhecimento e sua física que opõe forma e ma-
9. Agostinho. De doctrina christiana. 40, 60 (Bibliotheque Augustinienne, téria, para responder aos problemas que põem à razão
CEuvres de saint Augustin, 11, 1" série: Opuscules, XI, Le Magistere chrétien.
os dogmas cristãos. Na Faculdade de Artes, o ensino da
Éd. et trad. Combes et Farges, Paris, 1949, p. 331).
10. Alcuíno, Epistulae, 280, in Monumenta Germaniae Historica, Epistulae, filosofia de Aristótele~, isto é, o comentário das obras
vol. IV, p. 437, 27-31 Dümmler; cf. J. Domanski, La philosophie, théorie ou dialéticas, físicas e éticas, daquele que se nomeou "o
maniere de vivre... , chap. li.
Filósofo", há de substituir-se em três grandes partes ao
11. Cf. É. Jeauneau, "Lectio Philosophorum", in Recherches sur l'école de
Chartres. Amsterdam, 1972.
12. Cf. Ph. Delhaye, Enseignement et morale au XIIe siecle, Fribourg/Paris, 13. M.-D. Chenu Introduction à l'étude de saint Thomas d'Aquin Paris,
1988, pp. 1-58. 1954, p. 16.

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Ruptura e continuidade. A Idade Média e os tempos modernos
Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia

ensino das artes liberais 14 • A filosofia será identificada, nível. Poder-se-ia dizer que é a representação clássica, es-
assim, com o aristotelismo, e a atividade, o ofício do
colar, universitária, de filosofia. Inconsciente ou conscien-
professor de filosofia consistirá em comentar as obras de temente, nossas universidades são sempre as herdeiras da
Aristóteles, em resolver os problemas de interpretação
"Escola", isto é, da tradição escolástica.
que elas apresentam. Denominou-se essa filosofia (e tam-
bém essa teologia) de "escolástica". Em si, como vimos 15 , A "Escola", aliás, continua viva até em nosso século XX,
a escolástica é apenas a herdeira do método filosófico na medida em que o tomismo foi tradicionalmente prote-
valorizado no fim da Antiguidade, do mesmo modo que gido nas universidades católicas pelos papas dos séculos
os exercícios escolares da lectio e da disputatio apenas XIX e XX. E, precisamente, pode-se constatar que os de-
prolongam os métodos de ensino e de exercício valori- fensores da filosofia neoescolástica ou tomista continuaram,
zados nas escolas da Antiguidade 16 • como na Idade Média, a considerar a filosofia uma postura
puramente teórica. Eis por que, por exemplo, no debate
consagrado ao problema da possibilidade e da significação
Os artistas da razão de uma filosofia cristã que se estabeleceu por volta de 1930,
jamais foi apresentado, que eu saiba, o problema da filo-
Empresto a expressão "artista da razão" de Kantl 7, que sofia como modo de vida. Um filósofo neoescolástico como
designa por essa fórmula os filósofos que se interessam É. Gilson formulava em termos puramente teóricos:
apenas pela especulação pura. Essa representação de uma o cristianismo introduziu ou não na tradição filosófica
filosofia reduzida a seu conteúdo conceitual sobreviveu até novos conceitos e uma nova problemática? 18 Com a clare-
nossos dias: pode ser encontrada cotidianamente tanto nos za de espírito que o caracterizava, via o essencial do pro-
cursos universitários como nos livros didáticos de qualquer blema quando escrevia: "A posição filosófica mais favorável
não é a do filósofo, mas a do cristão", a grande superiori-
14. Cf. J. Domanski, La philosophie, théorie ou maniere de vivre... , chap. II dade do cristianismo consistindo em não ser "um simples
(com a bibliografia detalhada na nota_l 7 desse capítulo II). conhecimento abstrato da verdade, mas um método eficaz
15. Cf. acima p. 220.
16. Cf. P. Hadot, "La Préhistoire des genres littéraires philosophiques
de salvação". Sem dúvida, reconhece ele, a filosofia fora,
médiévaux dans l'Antiquité", in Les Genres littéraires dans les sources théologiques a um só tempo, ciência e vida na Antiguidade. Mas, aos
et philosophiques médiévales, Actes du Colloque International de Louvain-la- olhos do cristianismo, mensagem de salvação, a filosofia
Neuve, 1981, Louvain-la-Neuve, 1982, pp. 1-9.
antiga representa apenas pura especulação, ao passo que
17. Kant, Critique de la raison pure, trad. Tremesaygues et Pacaud Paris,
1944 (nouv. éd. 1986), p. 562; Lógica. Trad. Guillermit. Paris, 1966 (nouv. o cristianismo é "uma doutrina que oferece ao mesmo
éd. 1989), p. 24 [Critica da razão pura, 3a ed., tradução de Valerio Rohden tempo todos os meios para pôr-se em prática a si mesmo" 19 :
e Udo Baldur Moosburger, São Paulo, Nova Cultural, 1987, § 867, "A
arquitetônica da razão pura" (Os Pensadores); Lógica, tradução de Fausto
18. É. Gilson, L'Esprit de la philosophie médiévale, pp. 1-38.
Castilho, Campinas, IFCH/Unicamp, 1991 (Primeira Versão, 35)].
19. Id., ibid., op. cit., p. 25.

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Ruptura e continuidade. A Idade Média e os tempos modernos Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia

não se pode afirmar mais claramente que a filosofia mo- duo para transformá-lo na totalidade de sua personalidade,
derna veio a constituir-se como uma ciência teórica, já que e a universidade, que tem por missão conceder diplomas,
a dimensão existencial da filosofia não tinha mais sentido correspondendo a certo nível de saber objetivável. Evi-
na perspectiva do cristianismo que era, simultaneamente,
doutrina e vida.
a
dentemente, perspectiva hegeliana de uma universidade
a serviço do Estado não pode ser generalizada. Mas é
Mas não há somente a "Escola", isto é, a tradição da necessário reconhecer ainda que só há universidade por
teologia escolástica, há também as escolas, não as comuni- iniciativa de uma autoridade superior, quer seja o Estado
dades filosóficas da Antiguidade, mas as universidades, que, ou as diversas comunidades religiosas, católicas, luteranas,
apesar da diversidade de suas fundações e de seus funciona- calvinistas ou anglicanas. A filosofia universitária encontra-
mentos, nem por isso são menos herdeiras da universidade se sempre na situação em que se encontrava na Idade
medieval. E, do mesmo modo que na Antiguidade houve Média, isto é, é sempre serva, por vezes da teologia, nas
estreita interação entre a estrutura social das instituições universidades nas quais acontece de a Faculdade de Filo-
filosóficas e a concepção que elas faziam da filosofia, do sofia não passar de uma Faculdade inferior à Faculdade
mesmo modo houve, desde a Idade Média, uma espécie de Teologia; por vezes da ciência; sempre, em todo caso,
de causalidade recíproca entre a estrutura das instituições dos imperativos da organização geral do. ensino ou, na
universitárias e as representações que elas fizeram da na- era contemporânea, da investigação científica. A escolha
tureza da filosofia. de professores, matérias, exames, é sempre submetida a
É o que permite vislumbrar um texto de Hegel, citado critérios "objetivos", políticos ou financeiros, com muita
por M. Abensour e P.:J. Labarriere20 em sua excelente in- frequência, infelizmente, alheios à filosofia.
trodução ao panfleto de Schopenhauer, intitulado Contra
A isso é necessário acrescentar que a instituição uni-
a filosofia universitária. Nesse texto, Hegel lembra que a
filosofia não é mais, versitária leva a fazer do professor um funcionário cujo
ofício consiste, em grande parte, em formar outros funcio-
[. .. ] como entre os gregos, exercida como uma arte particular, nários; já não se trata, como na Antiguidade, de formar
mas tem uma existência oficial que concerne ao público; ela no ofício de homem, mas formar no ofício de clérigo
está, principal ou exclusivamente, a serviço do Estado. ou de professor, isto é, de especialista, de teórico, deten-
É necessário reconhecer que há uma oposição radical tor de certo saber, mais ou menos esotérico21 • Mas esse
entre a escola filosófica antiga, que se dirige a cada indiví- saber não põe mais em jogo toda a vida, como gostaria
a filosofia antiga.
20. M. Abensour e P.·:J. Labarriere, prefácio a Schopenhauer, Contre la
philosophie universitaire, Paris, 1994, p. 9. Todo esse prefácio é importante 21. Cf. as páginas que J. Bouveresse, em seu livro Wittgenstein, la rime et la
na perspectiva das ideias que aqui desenvolvemos. raison, Paris, 1973, pp. 73-75, consagra ao ofício de professor de filosofia.

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Ruptura e continuidade. A Idade Média e os tempos modernos Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia

1: B.ouveress~ 22 analis?u admiravelmente, a propósito universitária, mais frequentemente em reação a ela e em


das 1de1as de yY"Ittgenstem sobre a carreira de professor meios que lhe são estranhos, como certas comunidades
de filosofia, o nsco de "perdição intelectual e moral" que religiosas ou profanas, algumas vezes também de maneira
espreita o professor: solitária, certos filósofos, desde a Idade Média até nossos
dias, permaneceram fiéis à dimensão existencial e vital da
Não há, em certo sentido, servidão mais intolerante do que a filosofia antiga.
que constrange um homem a ter por profissão uma opinião no
caso er:z que ele não possui, forçosamente, a menor qualidade Dissemos acima que os mestres da Faculdade de Artes
para zsso. E o que está em questão aqui, do ponto de vista puderam, graças às traduções de Aristóteles, feitas a partir
de Wittge~stein, nã~ ~ o "saber" do filósofo, isto é, o estoque do grego ou do árabe, ler a obra quase completa de um
de conheczmentos teorzcos de que dispõe, mas o preço pessoal filósofo da Antiguidade. E é igualmente significativo que
que teve de pagar pelo que acredita poder pensar e dizer[. .. ] eles tenham redescoberto, graças a esses textos, que a fi-
Uma filos~fia não pode ser, afinal de contas, outra coisa que losofia não é somente um discurso, mas um modo de vida23 •
a expressao de uma experiência humana exemplar [. .. ]. O fato é ainda mais interessante porque se trata precisa-
mente de Aristóteles, o filósofo considerado comumente
Por outro lado, o domínio do idealismo sobre toda a um puro teórico. Mas os comentadores de Aristóteles viram
filosofia universitária, desde Hegel até o advento do existen- com muita perspicácia que, para o "Filósofo", o essencial
cialismo, e em seguida a voga do estruturalismo contribuí- da filosofia é precisamente consagrar-se à vida de investi-
r~m a:Uplamen~e para disseminar a ideia segundo a qual gação, à vida de contemplação e, sobretudo, ao esforço de
nao ha verdadeira filosofia senão teórica e sistemática. assimilação ao Intelecto divino. É assim que, retomando
Tais são, parece-me, as razões históricas que levaram a as famosas afirmações de Aristóteles no fim do livro X da
conceber a filosofia como pura teoria. Ética a Nicômaco, Boécio da Dácia24 considera que o fim
do homem e sua felicidade consistem em viver segundo a
parte mais elevada de seu ser, isto é, segundo a inteligência,
A permanência da concepção de filosofia destinada a contemplar a verdade. Essa vida é conforme à
como modo de vida ordem da natureza, que subordinou as potências inferiores
às potências superiores. Unicamente o filósofo, que con-
Apesar de tudo, essa transformação não é tão radical sagra sua vida à especulação da verdade, vive segundo a
quanto possa parecer. Pode-se constatar na história da fi-
23. Cf. J. Domanski, La philosophie, théorie ou maniere de vivre... , chap.
losofia ocidental certa permanência, certa sobrevida da 11 et III.
concepção antiga. Por vezes no próprio seio da instituição 24. Boécio da Dácia, De summo bano, tradução in Philosophes médiévaux.
Anthologie de textes philosophiques (XIIe-XIVe siecle), S. d. R. Imbach et M.-H.
22. J. Bouveresse, Wittgenstein, la rime et la raison, p. 74. Méléard, Paris, 1986, pp. 158-166.

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Ruptura e continuidade. A Idade Média e os tempos modernos Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia

natureza e leva uma vida muito deleitável. A esse texto faz importante querer o bem que conhecer a verdade". Encon-
eco a declaração de Aubry de Reims25: tra-se a mesma atitude em Erasmo, quando afirma muitas
vezes que só é filósofo quem vive de maneira filosófica, como
Quand~ se sabe que se chefiOU ao termo, deve-se apenas saborear
o fizeram Sócrates, Diógenes, o Cínico, Epiteto, mas também
e expenmentar o prazer. E isso o que se denomina sabedoria
João Batista, Cristo e os apóstolos31 • É necessário, por outro
e~se s~bor que se soube provar talvez s~a amado por si mesm:,· lado, especificar que, quando Petrarca ou Erasmo falam de
ezs az a filosofia, é aí que se deve demorar.
vida filosófica, eles pensam, como certos Padres da Igreja e
Encontraremos atitudes análogas em Dante e em certos monges, em uma vida filosófica cristã, admitindo,
Eckhart26 . Essa corrente de pensamento vai conceder contudo, como acabamos de ver, que os filósofos pagãos
como escreve J. Domanski27, "à filosofia uma autonomi~ também puderam realizar o ideal do filósofo.
completa, sem considerá-la uma simples propedêutica à
No Renascimento assistir-se-á a uma renovação não
doutrina cristã".
somente das tendências doutrinais, mas das atitudes con-
, ~o século XN, Petrarca28 rejeitará a ideia de uma ética cretas da filosofia antiga: o epicurismo, o estoicismo, o
teonca e descritiva, constatando que o fato de ler e de co- platonismo, o ceticismo. Nos Ensaios de Montaigne, por
mentar os tratados de Aristóteles sobre esse assunto não exemplo, vê-se o filósofo procurar praticar os diferentes
32
tomou ninguém melhor. Por essa razão ele se recusa a de- modos de vida propostos pela filosofia antiga : "Meu
nominar "filósofos" os professores "sentados numa cátedra" ofício, minha arte, é viver". Seu itinerário espiritual vai
e reserva esse nome somente àqueles que confirmam por assim levá-lo do estoicismo de Sêneca aoprobabilismo de
seus atos o que ensinam29 . Sobretudo essa fórmula tem im- Plutarco33 , passando pelo ceticismo, para terminar final e
portância capital na perspectiva que nos ocupa3o: "É mais 34
definitivamente no epicurismo :

p . 25. Aubry de Reims, citado por A de Libera, Penser au Moyen Âge "Nada fiz hoje." Não vivestes então? Pois essa é a ocupação
ans, 1991, p. 147. ---- ' mais fundamental e ilustre. [. .. ] Nossa grande e gloriosa
26. Cf. id., ibid., pp. 317-347, sobretudo pp. 344-347.
27. a. J. Domanski,. ~a fhilosophie, théorie ou maniere de vivre... , chap. m.
31. Erasmo, Adagia, 2201 (3, 3,1), in Opera omnia, Amsterdam, 1969, II,
28. P.etra_rca, De suz ipszus et multorum ignorantia, in id., Prose, Ed. G.
Martellottr, Milano, 1955, p. 744. Para tudo 0 que se segue cf.J. Doma ki 5, pp. 162, 25 - 166, 18. Cf. J. Domanski, capítulo N, nota 44.
chap. N. • ns , 32. Montaigne, Essais, II, 6, Éd. Thibaudet, Paris, Gallimard, 1962, p.
359 (Bibliothêque de la Pléiade) [p. 179 da edição brasileira citada.].
D · . . De vita solitaria' II ' 7' Pnosa, pp · 524-526· Corno ob serva J
29. Petrarca,
_oman~~ (capitulo rv, nota 5), a expressão os "professores sentados num~ 33. Cf. D. Babut, "Du scepticisme au dépassement de la raison. Philo-
catedra e proveniente de Sêneca, Da brevidade da vida, X, 1. sophie et foi religieuse chez Plutarque", in Parerga. Choix d'articles de D.
" . 30. Petrarca, De sui ipsius et multorum ignorantia, in Prosa, pp. 746-748· Babut, Lyon, 1994, pp. 549-581.
Satms 34. Ensaios, III, 13, pp. 1088 e 1096 [N. do T.: pp. 220 e 224]. Cf. H.
· · 1est"Qautem bonum velle quam verum nosce" [N · do T... em 1atrm · no·
ongma: uerer o bem é preferível a conhecer a verdade".]. Friedrich, Montaigne, Paris, 1949, p. 337.

368 369

:1-
Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia
Ruptura e continuidade. A Idade Média e os tempos modernos

descreve seus sentimentos, ele quer, de fato, que seu lei-


obra-prima é viver por motivo. Saber lealmente gozar do pró- tor percorra as etapas da evolução interior por el~ d~s­
prio ser, eis a perfeição absoluta e divina. critas: em outras palavras, o "eu" empregado nas Medztaçoes
~
' d e .Lato,
M. Foucault35 queria fazer começar com Descartes, e e, um "tu " que se dirige ao leitor.
. .Reencontramos
não na Idade Média, a "teorização" da filosofia. Como já aí 0 movimento, tão frequente na Antigmdade, pelo qual
disse alhures, se estou de acordo com ele quando diz: se passa do eu individual a um eu elev~do ao plano da
"Antes de Descartes uma pessoa não poderia ter acesso à universalidade. Cada Meditação trata umcament~ de u~
verdade a menos que realizasse em si, antes de tudo, um tema, por exemplo, a dúvida metódica na primeira Medz-
trabalho que o tornasse suscetível de conhecer a verdade" tação, a descoberta do eu como realidade pensante, ~a
- basta recordar o que eu disse acima36 a propósito de segunda. Por isso o leitor pode a~si~ilar b~m o e~~yocw
Aristóteles e de Porfírio -, distancio-me dele quando praticado em cada Meditação. Aristoteles dissera: E pre-
acrescenta que, segundo Descartes, "para chegar à verda- ciso tempo para que 0 que aprendemos se :orne n~s~a
de basta que eu seja, não importa em qual condição, natureza". Descartes, por sua parte, sabe que e necess~r~a
capaz de ver o que é evidente [ ... ] a evidência substituiu uma longa "meditação" para fazer pen~trar na me~ona
a ascese". Penso que, quando Descartes escolhe dar a uma a nova consciência de si, assim conqmstada. Ele diz, a
39
de suas obras o título de Meditaçõe~7 , ele sabe muito bem propósito da dúvida metódica :
que a palavra na tradição da espiritualidade antiga e cris- Não pude me dispensar de lhe dar uma Meditação completa;
tã designa um exercício da alma. Cada Meditação é, efeti- gostaria que os leitores não empregassem somente o pouco de
vamente, um trabalho de si sobre si, que é necessário ter tempo que é necessário para lê-la, mas alf[Uns meses o~ ao
acabado para passar à etapa seguinte. Como mostrou fi- menos algumas semanas a analisar as cozsas das quazs ela
namente o romancista e filósofo M. Buto~ 8 , esses exercí- trata, antes de passar a outra.
cios são, além disso, apresentados com muita habilidade
literária. Se Descartes fala na primeira pessoa, se ele evo- E tomando consciência do eu como realidade pensante:
'
ca o fogo diante do qual estã sentado, o robe de chambre É necessário examiná-la frequentemente e analisá-la durante
com o qual está vestido, o papel que está diante dele, e se muito tempo[. .. ] 0 que me parece uma causa bastan~e j~ta para
tratar 0 ponto de outra matéria na segunda Medztaçao.
35. H. Dreyfus et P. Rabinow, Michel Foucault, Un parcours philosophique,
Paris, 1984, pp. 345-346. A terceira Meditação também se apresenta e~ suas ~~­
36. Cf. p. 136 e p. 228. meiras linhas como um exercício espiritual mmto platom-
37. Meditações sobre filosofia primeira, tradução de Fausto Castilho, Cam-
pinas, IFCH/Unicamp, fevereiro 1994 a novembro de 1995 (Textos Didáti-
cos, 7, 9, 11, 14, 15 e 17). scartes Ré"onses aux Secondes Objections (contre les ... Méditations),
39 · De ' r 103-104
38. M. Butor, "L'usage des pronoms personnels dans le roman", in in Ch. Adam et P. Tannery, Descartes, (Euvres, t. IX, PP· ·
Problemes de la personne, Éd. I. Meyerson, Paris/La Haye, 1973, pp. 288-290.
371
370
Ruptura e continuidade. A Idade Média e os tempos modernos
Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia

co, pois se trata de separar-se radicalmente do conheci-


mento sensível: a qualquer espírito, pois exige, também, uma ascese e um
esforço que consiste em evitar a "precipitação" (aproptô-
Ago~a, fecharei meus olhos, o ouvido tapado, distraídos todos os sia, propeteia). Não se compreende suficientemente até
sentz~os, apagarei tamhém do pensamento as imagens de todas que ponto a concepção antiga de filosofia está sempre
~s cozs_as corporais [. .. 1 entretendo-me só comigo mesmo e me presente em Descartes, por exemplo nas Cartas à princesa
znspeczonando '"':ais a fu~do, esforçar-me-ei para me tornar pau- Elisabeth, que são, por outro lado, até certo ponto, cartas
latznamente mazs conheczdo e mais familiar a mim mesm0 4o. de direção espiritual.

D~ mane~ra mais geral, não me parece que a evidência Para Kant, a antiga definição de filosofia como philo-
cartes1a~a seJ~ acessível a qualquer sujeito. É impossível, sophia, desejo, amor, exercício da sabedoria, é sempre
com e~elto, nao reconhecer a definição estoica de repre- válida. A filosofia, diz ele, é "a doutrina e o exercício da

4
senta;:ao ~dequada e compreensiva nas linhas do Discurso
do metodo que evocam o preceito da evidência:
s;;tbedoria (não simples ciência) "43 , e ele conhece a distância
que separa a filosofia da sabedoria:

O P~meiro era o de jamais acolher alguma coisa como ver- O homem não tem a posse da sabedoria. Ele somente tende a ela
~adezra _que e~ não conhecesse evidentemente como tal; isto e somente pode ter amor por ela, e isso já é bastante meritório.
e, de evzt~r cu_zdadosamente a precipitação e a prevenção, e A filosofia é, para o homem, esforço para a sabedoria que
de nada :ncl~z~ em meus juízos que não se apresentasse tão sempre permanece descumprido 44 • Todo o edifício técnico
clara e tao dzstzntamente a meu espírito, que eu não tivesse da filosofia crítica kantiana só tem sentido na perspectiva da
nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida.
sabedoria, ou antes, do sábio, pois Kant sempre tem a
É exatamente a disciplina estoica do assentimento42 e tendência de representar a sabedoria sob a figura do sábio,
como no estoicismo, ela não é acessível indiferentement~ norma ideal, que jamais se encarnou num homem, mas
segundo a qual o filósofo procura viver. Kant45 denomina
40. 1, p. 7. Vali-me da tradução-brasileira [N. do T.]. igualmente esse modelo do sábio de filósofo.
~1. ~escartes: Dzscours dela Méthode, Seconda partie, texte et comm
par _E. Gilson. Pans, 1939, p. 18, 15 Gilson [Discurso do Método 4a ed tra. Um filósofo que corresponda a esse modelo não existe, não
duçao de Jacó Guinsburg e Bento Prado Júnior). São Paulo N~va Cu!~ 1- mais que um verdadeiro cristão não existe realmente. Os dois
1987 (Os Pensadores).]. ' ra,
42. Cf. SVF, li, §§ 130-131; Diógenes Laércio VII 46-48 trad "d · são modelos [. .. 1 O modelo deve servir como norma [. .. 1 O
L St ·· · 'd , , , uzi o In
es ozczens, e . ~réhier, pp. 31-32. A ausência de precipitação no "uizo é ''filósofo" é apenas uma ideia. Talvez possamos lançar um
uma _YJrtude estmc~, D~scartes provavelmente não encontrou isso e~ santo
Tomas, como quena Gilson, Discours de la Méthode p 198
· d ' · , mas antes entre 43. Kant, Opus postumum, trad. F. Marty, Paris, 1986, pp. 245 e 246.
os estmcos mo ernos (o próprio Gilson, p. 481, cita Guillaume du Vair La
44. Id., ibid., p. 262.
Phzfos~phze morale des Stoiques, ed. de 1603, p. 55) ou antigos (e n·- '
Laercio, por exemplo). m wgenes 45. Id., Vorlesungen über die philosophísche Encyclopiidie, in Kants gesammelte
Schriften, XXX, Berlin (Akademie), 1980, p. 8.

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373
Ruptura e continuidade. A Idade Média e os tempos modernos
Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia

ol~ar. para ele, imitá-lo em alguns pontos, mas jamais o


atzngzremos totalmente. tomarmos os antigos filósofos gregos, como Epicuro, Zenão,
Sócrates etc., descobriremos que o objeto principal de sua
~qui Kant situa-se na tradição do Sócrates do Banquete, ciência foi o destino do homem e os meios de atingir isso.
ao d1zer que a única coisa que ele sabe é que não é sábio, Eles permaneceram muito mais fiéis à verdadeira Ideia do
que ainda não atingiu o modelo ideal do sábio. E esse filósofo do que a que se faz nos tempos modernos, nos quais
so_cr~tismo já anuncia o de Kierkegaard quando diz que é se encontra o filósofo apenas como artista da razão.
cnstao apenas na medida em que sabe que não é cristão:
E, após ter descrito o ensinamento e sobretudo a vida
A Ideia de sabedoria deve ser o fundamento da filosofia, como a de Sócrates, de Epicuro, de Diógenes, Kant especifica que
Ideia de santidade deve ser o fundamento do cristianism046. os antigos exigiam de seus filósofos que vivessem como
Kant utiliza, além disso, tanto a expressão "Ideia de ensinavam49 :
sabedoria" como a expressão "Ideia da filosofia ou do Quando hás de, enfim, começar a viver virtuosamente?, disse
filósofo", uma vez que, de fato, o ideal que é a sabedoria Platão a um ancião que lhe pedia escutasse algumas lições
é precisamente o ideal perseguido pelo filósofo 47: sobre a virtude. -Não se deve apenas especular, mas é ne-
Alguns antigos filósofos aproximaram-se do modelo do ver- cessário também, de uma vez por todas, pensar em praticar.
dadeiro filósofo, Rousseau igualmente; somente não o atin- Mas hoje toma-se por sonhador aquele que vive de acordo
giram. !alvez muitos tenham acreditado que já possuímos com o que ensina.
a doutrzna da sabedoria e que não deveríamos considerá-la Tanto que, sobre esta Terra, o sábio, perfeito em seu
uma simples ideia, pois possuímos tantos livros, cheios de modo de vida e em seu conhecimento, não se tornará
presc~ões que ~os dizem como devemos agir. Somente que real e não haverá filosofia. "É somente a este, o mestre
elas sao, na mazor parte, proposições tautológicas e exigências no ideal, que devemos denominar o filósofo; mas [ ... ]
que não se pode suportar entender, pois não mostram nenhum ele não é encontrado em parte alguma." 50 A filosofia,
meio de alcançá-las.
no sentido próprio do termo, não existe ainda, e talvez
E Kant continua a evocar a filosofia antiga4s: jamais venha a existir. Só é possível o filosofar, isto é, um
exercício da razão guiado pela ideia que se faz do "mestre
Uma Ideia equivocada da filosofia há muito tempo está presente no ideal" 51 •
entre os homens. Mas parece que ou eles não a compreen-
deram ou a consideraram uma contribuição à erudição. Se 49. Id., ibid., p. 12.
50. Id., Critique de la raison puTe, trad. Tremesaygues et Pacaud, p. 562
46. Kant, Vorlesungen ... , p. 8. [Critica da razão pura, § 867, "A arquitetônica da razão pura".].
47. Id., ibid., p. 8. 51. Id., ibid., pp. 561-562 [Critica da mzão pum, § 867, "A atquitetônj-
48. Id., ibid., p. 9. ca da razão pura".]; cf. Critique de la raison pratique. Trad. J. Gibelin et E.
Gilson. Paris, 1983, p. 123.
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Ruptura e continuidade. A Idade Média e os tempos modernos Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia

Há duas representações possíveis de filosofia, uma que homens. A oposição entre filosofia de escola e filosofia do
Kant52 denomina o conceito de filosofia escolar, outra mundo 57 já existia antes de Kant, por exemplo em ]. G.
que ele nomeia com o conceito de filosofia do "mundo". Sulzer (1759), para quem a "filosofia do mundo". consiste
Em seu conceito escolar ou escolástico, a filosofia é ape- na experiência dos homens e na sabedoria que dela resulta.
nas pura especulação, visa apenas a ser sistemática, à Essa distinção correspondia à tendência geral do Século das
perfeição lógica do conhecimento. Quem tem a concep- Luzes de fazer sair a filosofia do círculo fechado e conge-
ção escolástica de filosofia é, diz-nos Kant53 , um artista lado da escola para torná-la acessível e útil a todos os homens.
da razão, isto é, um filodoxo, o "amigo da opinião" do Devemos insistir nessa característica da filosofia do século
qual fala Platão54, aquele que se interessa pela multidão de XVIII, que tende a reunir de novo, como na Antiguidade,
coisas belas, mas sem ver a beleza em si, pela multidão discurso filosófico e maneira de viver. Mas a noção kantiana
de coisas justas, mas sem ver a justiça em si. Isso leva a de filosofia cósmica é mais profunda que a filosofia do
dizer que ele não é, afinal, perfeitamente sistemático, mundo, ou popular, ao modo do século XVIII, porquanto
porquanto não vê a unidade do interesse universalmente a filosofia "cósmica" tem como referência final a sabedoria,
humano que anima o conjunto do esforço filosófico 55 • encarnada no sábio ideal. O que sempre fundou a noção
Para Kant, a concepção escolar de filosofia permanece de filosofia (isto é, de investigação da sabedoria) é, diz
no nível da pura teoria, e somente a concepção de filo- Kant58, a ideia de uma filosofia "cósmica", de uma filosofia
sofia do "mundo" se situa na perspectiva do sentido últi- "do mundo" (e não a ideia de uma filosofia escolástica),
mo da filosofia, e pode realmente unificar a filosofia.
"principalmente quando por assim dizer se personificou
Concepção de filosofia do "mundo"? Kant5 6 fala tam- e se representou como um arquétipo do ideal do filósofo";
bém de concepção "cósmica" o~ "cosmopolita". A expres- isso leva a dizer de quem se reconhece na figura do sábio:
são é, para nós, embaraçosa. E necessário remetê-la ao "Neste significado, seria bastante vanglorioso chamar-se a
contexto do século XVIII, o Século das Luzes. A palavra si mesmo de filósofo e arrogar-se uma identidade com o
"cósmica" aqui não se relaciona ao "mundo" físico, mas ao arquétipo existente unicamente na ideia". O filósofo ideal,
mundo humano, isto é, ao homem que vive no mundo dos o sábio, seria o "legislador da razão", isto é, aquele que
se dá a si mesmo sua própria lei, que é a lei da razão. Se
52. Id., ibid., p. 562 [Crítica da razão pura, § 867, "A arquitetônica da o Sábio ideal não pode ser encontrado em parte alguma,
razão pura".]. ao menos "deparamos com a ideia de sua legislação em
53. Id., ibid., p. 562 [Crítica da razão pura, § 867, "A arquitetônica
da razão pura".]; Logique. Trad. Guillermit. Paris, 1966 (nova edição 1989),
p. 24. 57. Cf. H. Holzhey, "Der Philosoph für die Welt - eine Chimãre der
54. República, V, 480 a 6. deutschen Aufklãrung", in H. Holzhey und W. C. Zimmerli, Esoterik und Exoterik
55. É. Weil, Probtemes kantiens, Paris, 1990, p. 37, nota 17. der Philosophie, Bâle/Stuttgart, 1977, pp. 117-138, especialmente p. 133.
56. Logique, p. 25. Sobre o conceito cósmico de filosofia, d. J. Ralph 58. Kant, Critique de la raison pure, p. 562 [N. do T.: Crítica da razão
Lindgren, "Kant's Conceptus Cosmicus", in Dialogue, l: 280-300, 1963-1964. pura, § 867, "A arquitetônica da razão pura".].

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Ruptura e continuidade. A Idade Média e os tempos modernos Desaparecimentos e reaparecimentos da concepção antiga de filosofia

cada razão humana", o que permite entender que é à luz bretudo as questões "Que devo fiazer'2" "Q , ..
da Ideia do sábio ideal que nossa razão formula os impe-
;p 't' " , · ' ue me e permztzdo
es erar. ' Que e o homem'!', questões fundamentais da filo-
rativos que dirigem a ação humana59 • No imperativo cate- sofia62.
górico60 "age unicamente de acordo com a máxima que faz
com que possas querer ao mesmo tempo que ela se tome . Essa ideia do interesse, de interesse da razão é 't
Importa t · , , mm o
uma lei universal", o eu se realiza e se supera universali- , . n e, pOis ,:st~ ligada à ideia de um primado da razão
zando-se. O imperativo deve ser incondicionado, isto é, não pratica em relaçao a razão teórica, pois, diz Kant63
se fundar em nenhum interesse particular mas, ao contrá- '
[. .. 1
- todo interesse é finalmente prático e [... 1 mesmoo da
rio, determinar o indivíduo a agir apenas na perspectiva
ra~a~ especulativa é apenas condicionado e completo no uso
do universal. Tornamos a encontrar um dos temas funda- pratzco.
mentais do modo de vida próprio à filosofia antiga.
O leitor continuará, sem dúvida, a perguntar-se por que A filos~fia kantiana dirige-se, com efeito, apenas àqueles
Kant denominou precisamente "conceito de filosofia que e_:cpenmentam esse interesse prático pelo bem moral,
cósmica" o programa filosófico dominado pela ideia de sabe- que sao dotados de um sentimento moral que optam p
um fim ' or
doria. Mas talvez compreenda melhor a razão dessa deno- supremo, por um bem soberano. É admi· , I
que c-· rave
minação lendo esta definição kantiana da ideia de filosofia , na rztzca .da faculdade do juízo, o interesse pelo bem
cósmica61 : "Conceito cósmico significa aqui um conceito con- mor.al .e o sentimento moral apareçam como a condição
cernente ao que interessa necessariamente a qualquer um"; prel hmmar do interesse que se pode experimentar pela
b e eza da natureza 64 :
isto é, visto que o mundo (cosmos) em questão é o mun-
do humano, "ele interessa a todo o mundo". O que inte-
Este interesse imediato pelo belo da natureza não é efetivamente
ressa a todo o mundo, ou, antes, o que deveria interessar
a todo o mundo, é precisamente tão só a sabedoria: o ~~mu:n, n:as somente próp1io daqueles cuja maneira de pensar
estado normal, natural, cotidiano, dos homens, deveria ser ;a foz ~reznada para o bem ou é eminentemente receptiva a
esse treznamento.
a sabedoria, mas eles não chegam a atingi-la. Eis aí uma
das ideias fundamentais da filosofia antiga. Isso leva a O discurso teórico de Kant é, a um só tempo, de sua
dizer que o que interessa a cada homem não é somente parte e da parte daqueles aos quais se dirige, ligado a uma
a questão da crítica kantiana "Que posso saber?', mas são so-
62. Kant, Logique p 25· c ·r d l .
'd l d , . ' n zque e a razson pure, p. 543 [§ 883 "D 0
59. É. Weil, Problemes kantiens, p. 34. I ea o bem supremo com f d '
-
da razao pura".]. o um un amento determinante do fim últi
60. Kant. Fondements de la métaphysique des mreurs, Trad. V. Delbos et A. mo
Philonenko, Paris, 1987, p. 94. 63. Id., ibid., Paris, 1983, p. 136.
61. Kant, Critique de la raison pure, p. 562, nota [Crítica da razão pura, 64. Critique de la faculté de · § 42 T .
p. 133. yuger, ' rad. A. Ph!lonenko, Paris, 1968,
§ 868, "A arquitetônica da razão pura", nota.].

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Ruptura e continuidade. A Idade Média e os tempos modernos

decisão, que é um ato de fé que conduz à escolha de um


modo de vida, inspirado, em última análise, pelo modelo Capítulo 12
do sábio. Pode-se reconhecer, além disso, na "ética ascéti-
ca" que ele propõe no final de sua Af~tafísica .dos costume!"',
uma exposição das regras do exerncw ~a '_'lrtude que ~e
esforça para reconciliar a serenidade ep1cunsta e a tensao Qyestões e perspectivas
do dever estoico.
Para descrever em toda sua amplitude a história da
recepção da filosofia antiga na filosofia desde,~ Idade
Média até a era contemporânea, seria necessana uma Ao chegar ao fim desta obra, o autor entrevê tudo o
obra de considerável volume. Contentei-me em pôr algu- que não disse e as questões que o leitor gostaria de lhe
mas balizas: Montaigne, Descartes, Kant. Haveria muitos propor. Se, por exemplo, apresentamos a "teorização" da
outros nomes a evocar: pensadores tão diversos quanto filosofia como resultado do encontro entre o cristianismo
Rousseau, Shaftesburf'6, Schopenhauer, Emerson, Thore~u, e a filosofia, não seria desejável fazer um estudo de con-
Kierkegaard, Marx, Nietzsche, W. James, Bergson, W1tt- junto sobre as relações entre filosofia e religião, tanto na
genstein, Merleau-Ponty e ainda outros, que, todos, de Antiguidade como no mundo moderno? Na Antiguidade,
uma maneira ou de outra, influenciados pelo modelo o filósofo encontra a religião na vida social, com o culto
da filosofia antiga, conceberam a filosofia como u~a oficial, e na vida cultural, com as obras de arte e a litera-
atividade concreta e prática e como uma transformaçao tura. Mas ele a vive filosoficamente, transforma-a em filo-
da maneira de viver ou de perceber o mundo. sofia. Se Epicuro recomenda a participação nas festas da
cidade e mesmo na oração, é para permitir ao filósofo
epicurista contemplar os deuses como a teoria epicurista
da natureza os concebe. Mesmo os neoplatônicos tardios
que praticam a teurgia integram-na num progresso espiri-
tual essencialmente filosófico, para elevar-se finalmente a
um Deus transcendente e incognoscível totalmente estranho
à religião tradicional. Se eles constroem uma teologia ra-
cional que faz corresponder aos deuses da religião tra-
65. Métaphysique des mceurs. li. Doctrine de la vertu, li, § 53. Trad. A. dicional as entidades filosóficas, essa teologia já não tem
Renaut. Paris, 1994, pp. 363-365. . muita relação com as crenças antigas que querem defender
66. Cf. Shaftesbury, Exercices, trad. et prés. par L. Jaffro, !~ns, 1993; contra o cristianismo. O modo de vida filosófico, na Antigui-
trata-se de exercícios espirituais segundo Epiteto e Marco Aureho.
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Ruptura e continuidade. A Idade Média e os tempos modernos
Questões e perspectivas

dade, não entra em concorrência com a religião, .porque


a religião não é nesse momento u:n n:odo_ de VIda ~ue não é de admirar, em virtude da força dessa tradição que
englobe toda a existência e toda a VIda mtenor, como e o impregnou toda a mentalidade ocidental. Seria necessário
caso no cristianismo. É antes o discurso filosófico, como uma longa reflexão para definir mais profundamente as
no caso de Anaxágoras e de Sócrates, que pode chocar-se relações entre filosofia e religião.
com as ideias sobre os deuses, recebidas na cidade.
Penso que será útil especificar brevemente a represen-
As relações entre filosofia e cristianism? são ml~.i~o tação que fiz da filosofia. Admito perfeitamente que, tanto
mais complexas do que vislumbramos, e s~na necessano na Antiguidade como em nossos dias, a filosofia seja uma
um longo estudo para defini-las. P~d~-se dizer qu_e qu~se atividade teórica e "conceitualizante". Mas penso também
todas as filosofias, desde a Idade Media, sofreram mfl~en­ que, na Antiguidade, é a escolha que o filósofo faz de um
cia do cristianismo. Por um lado, seu discurs~ ~lo~ofico modo de vida que condiciona e determina as tendências
desenvolve-se em relação estreita com o cnstiamsn:o, fundamentais de seu discurso filosófico, e acredito, final-
seja para justificar, direta ou indiretamente, a, doutnna
mente, que isso é verdadeiro para toda filosofia. Não que-
cristã, seja para combatê-la; Sobre esse ponto, so se pode
ro dizer, evidentemente, que a filosofia seja determinada
aprovar as observações de E. Gilson 1 que mo~tra:n c?mo a
por uma escolha cega e arbitrária, mas antes que há um
filosofia de Descartes, de Malebranche, de Leibm_z, situa-se
primado da razão prática sobre a razão teórica: a reflexão
finalmente na problemática cristã. Ele ter~a. podido acres-
centar também a de Kant2, mas é necessano reconhecer filosófica é motivada e dirigida pelo "que interessa à razão",
que ao assimilar a fé cristã à fé moral, Kant transforma como dizia Kant, isto é, pela escolha de um modo de vida.
ant~s 0 cristianismo em filosofia. E, por outro lado, o
4
Diria com Plotino : "É o desejo que gera o pensamento".
modo de vida filosófico, desde a Idade Mé~ia, )?assan~o Mas há uma espécie de interação ou de causalidade recí-
por Petrarca e Erasmo, ou ~s _estoicos e epicuns~as c~s­ proca entre vontade e inteligência, entre o que o filósofo
tãos até 0 existencialismo cnstao de G. Mareei, ha mmto quer profundamente, o que lhe interessa no sentido mais
tem~o identificou-se ao modo-de vida cristã~, a P?~to de forte do termo, isto é, a resposta à questão "como viver?",
se po d er descobrir' mesmo nas , . atitudes. existenCiais
. . dos e o que ele procura elucidar e esclarecer pela reflexão.
filósofos contemporâneos, vestigws do cnstlamsmo3 , o que Vontade e reflexão são inseparáveis. Nas filosofias moder-
nas ou contemporâneas, essa interação existe em alguns
1. É. Gilson, L'Esprit de la philosophie médiévale, pp. 11-1~, G. Bugault: casos e podem-se explicar, até certo ponto, os discursos
L'Inde pense-t-elle.,~ p ans,
. 1994, pp . 25-26·, M· Merleau-Ponty, Eloge de la phz- filosóficos pelas escolhas existenciais que os motivam. Por
losophie et autres essais, p. 201. . , h
2. s. Zac, "Kant, les sto!ciens et le christianisme", m Revue de Metap y-
exemplo, como se sabe por uma carta5 de Wittgenstein, o
sique et de Morale, 1972, pp. 137-165. , . . .
3 R R hlitz "Esthétique de !' existence , m Mzchel Foucault phzlosophe, 4. Plotino, Eneadas, V, 6 (24), 5, 9.
. oc ' . d"
P· 290, fala de uma "herança cristã e humanista seculanza a . 5. G. Gabriel, "La logique comme littérature? De la signification de la
forme littéraire chez Wittgenstein", in Le Nouveau Commerce, cahier 82/83,
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Questões e perspectivas
Ruptura e continuidade. A Idade Média e os tempos modernos

Tractatus logico-philosophicus, que se apresenta aparentemen- solar, curar ou exortar, mas trata-se sempre e principal-
te como uma teoria da proposição, e o é efetivamente, mente, não de comunicar um saber acabado, mas de formar,
nem por isso é menos fundamentalmente um livro de isto é, de ensinar um saber-fazer, de desenvolver um habi-
ética, no qual "o que pertence à ética" não é dito, mas tus, uma capacidade nova de julgar e de criticar, e de
mostrado. A teoria da proposição é elaborada para justi- transformar, isto é, de mudar a maneira de viver e de ver o
ficar o silêncio concernente à ética, previsto e intenciona- mundo. Não causará espanto, então, encontrar em Platão,
do desde o início do livro. O que motiva o Tractatus é, em Aristóteles, ou em Plotino aporias nas quais o pensa-
com efeito, a vontade de conduzir o leitor a um modo de mento pareça encerrar-se, retomadas e repetições, incoe-
vida, a certa atitude, completamente análoga às opções rências aparentes, caso se recorde que são destinadas não
existenciais da filosofia antiga 6 , "Viver no presente", sem a comunicar um saber, mas a formar e a exercitar.
nada lastimar, temer ou esperar7• Como já dissemos, mui- A relação entre a obra e seu destinatário terá impor-
tos filósofos modernos e contemporâneos permaneceram, tância capital. O conteúdo escrito é parcialmente determi-
para retomar a expressão de Kant, fiéis à Ideia de filoso- nado pela necessidade de adaptar-se às capacidades
fia8. E, finalmente, foi antes o ensino escolar de filosofia espirituais dos destinatários. Por outro lado, jamais se deve
e sobretudo de história da filosofia que sempre teve a esquecer de situar as obras dos filósofos antigos na pers-
tendência de insistir no aspecto teórico, abstrato e con- pectiva da vida da escola à qual pertenciam. Elas estão
ceitual da filosofia. quase sempre em relação direta ou indireta com o ensino.
Eis por que é necessário insistir sobre certos imperati- Por exemplo, os tratados de Aristóteles são, em grande
vos metodológicos. Para compreender as obras filosóficas parte, apontamentos para o ensino oral, os tratados de
da Antiguidade, será necessário dar conta das condições Plotino, ecos das dificuldades surgidas durante os cursos.
particulares da vida filosófica naquela época, revelar aí a Enfim, a maior parte das obras, filosóficas ou não, da
intenção profunda do filósofo, que é não desenvolver um Antiguidade estava em estreita relação com a oralidade,
discurso que teria seu fim em- si mesmo, mas agir sobre pois eram destinadas a ser lidas em voz alta, muitas vezes
as almas. De fato, toda asserção deverá ser compreendida em reuniões de leitura pública. Essa estreita ligação do
na perspectiva do efeito que ela visa produzir na alma do escrito e da palavra pode explicar certas particularidades
ouvinte ou do leitor. Trata-se por vezes de converter, con- embaraçosas dos escritos filosóficos.
Sem dúvida, o leitor gostaria também de perguntar-me
printemps 1992, p. 77 (o nome do autor foi impresso equivocamente:
Gabriel Gottfried no lugar de Gottfried Gabriel). se penso que a concepção antiga pode estar viva ainda
6. Tractatus .. . , 6. 4311. hoje. Creio já ter respondido em parte a essa questão,
7. Cf. as excelentes explicações de J. Bouveresse Wittgenstein, la rime et deixando entrever como muitos filósofos da época moder-
la raison, Paris, 1973, p. 89 e pp. 21-81.
na, de Montaigne até nossos dias, não consideraram a
8. Cf. acima pp. 373 ss.

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Ruptura e continuidade. A Idade Média e os tempos modernos Questões e perspectivas

filosofia um simples discurso teórico, mas uma prá~ica~ dente do discurso filosófico. O mesmo exercício espiritual
uma ascese e uma transformação de si9 • Essa concepçao e pode ser justificado por discursos filosóficos extremamente
10
sempre "atual" e sempre po~e ser reatu~izada . • Eu apre- diferentes, que chegam demasiado tarde para descrever e
sentaria a questão de outro modo. Nao sena urge~te justificar experiências cuja densidade existencial escapa,
descobrir a noção antiga de "filósofo", o fi!ósofo, que .VIV~ afinal, a todo esforço de teorização e de sistematização.
e escolhe, sem 0 que a noção de filosofia nao tera sentido. Por exemplo, os estoicos e os epicuristas convidaram seus
Não se poderia definir o filósofo não como um, professor discípulos, por razões diversas e quase opostas, a viver na
um escritor que desenvolve um discurso filosofico, mas, consciência da iminência da morte e a concentrar sua
ou . "d d
segundo a representação co.nstante ~a Ant1~1 a .e' como atenção no momento presente libertando-se da inquietude
um homem que leva uma VIda filosofica:, N~o se:'a neces- do futuro e do peso do passado. Mas quem pratica esse
sário rever 0 uso habitual da palavra filosofo , ~ue, se exercício de concentração vê o universo com novos olhos,
aplica habitualmente apenas ao teórico, para atnbm-la como se o visse pela primeira e última vez: ele descobre, na
também a quem pratica a filosofia, do mesmo m~d_o que fruição do presente, o mistério e o esplendor da existên-
0 cristão pode praticar o cristianism~ s~m ser teoreuco ou cia, atinge a serenidade experimentando a que ponto são
teólogo? Será necessário que a prop~a pessoa tenha d~ relativas as coisas que provocam perturbação e inquietude.
construir um sistema filosófico para VIVer filosoficamente. Da mesma maneira e igualmente, estoicos, epicuristas e
Isso não quer dizer que não se deva refletir s~bre sua platônicos convidam, por razões diferentes, seus discípu-
própria experiência e sobre a dos filósofos antenores ou los a elevar-se a uma perspectiva cósmica, a mergulhar na
contemporâneos. imensidão do espaço e do tempo, e a transformar assim
Mas 0 que é viver como filósofo? O que é a prática sua visão de mundo.
da filosofia? Na presente obra, quis m~strar, ent~e outras Vista dessa maneira, a prática da filosofia ultrapassa as
coisas, que a prática filosófica era relativamente mdepen- oposições das filosofias particulares. Ela é essencialmente
um esforço para tomar consciência de nós mesmos, de
9. Cf. acima pp. 366-380. . nosso ser-no-mundo, de nosso ser-com-o-outro, um esforço
10. Cf., por exemplo, numerosos trabalhos p~bhcados ou no pre:o de
Arnold I. Davidson, notadamente "Ethics as Ascetlcs; Foucault, the H1story também para "reaprender a ver o mundo", como dizia
. nd Ancient Thought" in Foucault and the Wrztmg of Hzstory, Ed. Merleau-Ponty11 , para alcançar assim uma visão universal,
O f EthlCS, a ' "Ph"l h
. Goldstein, Oxford, 1994, pp. 63-80; veja-se também H. Hutter, 1 oso~ Y graças à qual poderemos nos colocar no lugar do outro e
~s Self-Transformation", in Historical Rejlections, 16(2/3.): 171-198, 1989, R. exceder nossa própria parcialidade.
Imbach, "La philosophie comme exercice spirituel", m Crztzque, 454, .PP·
275-283; ].-L. Solere, "Philosophie et amour de la sagesse: en_tre les Ane1ens
'I de" 1·n lnde Euro"'e Postmodernité. Colloque de Ceret, 1991, sous 11. M. Merleau-Ponty, Phénoménologie de la perception, Paris, 1945, p. XVI
et nous, l n , , r • Ge d
la direction de]. Poulain .... Paris, 1993, pp. 149-198;]. Schlanger, stes e [Fenomenologia da percepção, tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura,
philosophes, Paris, 1994. São Paulo, Martins Fontes, 1994, p. 19].

386 387
Ruptura e continuidade. A Idade Média e os tempos modernos Questões e perspectivas

Existe um texto de G. Friedmann 12 que tenho frequen- também estavam sós e escolheram como modelos, segun-
temente citado em outras obras, porque me parece capital, do as circunstâncias ou suas necessidades profundas, os
na medida em que mostra como um homem contempo- modos de vida da filosofia antiga. Nietzsche, por exemplo,
râneo, engajado na luta política, reconhece que pode e escrevia 13 :
deve viver como filósofo:
No que concerne à práxis, vejo as diferentes escolas morais
"Levantar seu voo" cada dia! Ao menos um momento, por como laboratórios experimentais nos quais um número consi-
breve que seja, persiga o que lhe seja intenso. Cada dia "um derável de receitas da arte de viver foram praticadas a fundo
exercício espiritual" - sozinho ou em companhia de um e pensadas até seu termo: Os resultados de todas essas escolas
homem que queira também melhorar. e de todas as suas experiências pertencem a nós. Nós não
Exercícios espirituais. Sair da duração. Esforçar-se para aceitamos uma receita estoica com menos agrado porque já
despojar-se de suas próprias paixões, as vaidades, a sensação nos apropriáramos de receitas epicuristas.
de ruído em torno de seu nome (que, de um tempo a outro, o
Uma longa experiência vivida durante séculos e as longas
atinja como um mal crônico). Fugir da maledicência. Despojar discussões em torno dessas experiências é que dão valor
a piedade e o ódio. Amar todos os homens livres. Eternizar-se aos modelos antigos. Utilizar sucessiva ou alternadamente o
superando-se. modelo estoico e o modelo epicurista será por exemplo em
Esse esforço sobre sz e necessarzo, essa ambição - justa. Nietzsche, mas também em Montaigne, em Goethe 1\ em
Numerosos são aqueles que se deixam inteiramente absorver Kant15 , em Wittgenstein 16 , emJaspers 17, um meio de atingir
pela política militante, pela preparação da Revolução social. certo equilíbrio na vida. Mas outros modelos poderão ainda
Raros, muito raros, aqueles que, para preparar a Revolução, inspirar e guiar tão bem quanto elas a prática filosófica.
querem se tornar dignos.
Ser-me-á perguntado assim como se pode explicar que,
Mas o filósofo da Antiguidade, para praticar a filosofia, apesar dos séculos e da evolução do mundo, os modelos
vivia em relações mais ou men()s estreitas com um grupo de antigos podem sempre ser reatualizados. Antes de tudo,
filósofos, ou, pelo menos, recebia de uma tradição filosófica como dizia Nietzsche, porque as escolas antigas são espé-
suas regras de vida. Sua tarefa era facilitada, mesmo que viver
efetivamente segundo essas regras de vida exigisse um duro 13. Nietzsche, Fragments posthumes, automne 1881, 15 [59], in Nietzsche.
esforço. Agora, não há mais escolas, não há mais dogmas. CEuvres philosophies, T. V, Paris, Gallimard, 1982, p. 530.
O "filósofo" está só. Como encontrará seu caminho? 14. Goethe, "Entretien avec Falk", in F. von Biedermann, Goethes Ges-
priiche, Leipzig, 1910, t. N, p. 469.
Ele o encontrará como muitos outros o encontraram 15. Cf. acima, p. 379-380.
antes dele, como Montaigne, ou Goethe, ou Nietzsche, que 16. Tractatus ... , 6. 4311, no qual se encontra uma alusão à representa-
ção epicurista da morte e à concepção estoica do presente.
17. K. Jaspers, "Epikur", in Weltbewohner und Weimarianer, Festschrift E.
12. G. Friedmann La Puissance et la Sagesse, Paris, 1970, p. 359. Beutler, 1960, pp. 132-133.

388 389
Ruptura e continuidade. A Idade Média e os tempos modernos Questões e perspectivas

cies de laboratórios de experimentação, graças aos quais que se es~larecem, assim, umas às outras. Os meios que
podemos comparar as consequências dos diferentes tipos nos permitem chegar à paz interior e à comunhão com
de experiência espiritual que propõem. Desse ponto de os outros homens ou com o universo não são ilimitados.
vista, a pluralidade de escolas antigas é preciosa. Os Talvez devamos dizer que a escolha de vida que descreve-
modelos que elas nos propõem só podem, contudo, ser mos, as de Sócrates, de Pirro, de Epicuro, dos estoicos,
reatualizados caso sejam reconduzidos à sua essência, à sua dos cínicos, dos céticos, correspondam a algumas espécies
significação profunda, destacando-os de seus elementos de modelos constantes e universais que se reencontram
caducos, cosmológicos ou míticos, e recuperando as posi- sob formas próprias a cada civilização nas diferentes regiões
ções fundamentais que as próprias escolas consideravam culturais da humanidade. Por essa razão evoquei acima24
essenciais. Pode-se ir mais "longe. Penso que esses modelos um texto budista e também uma análise de M. Hulin ins-
correspondem, como já disse alhures 18 , a atitudes perma- pirada pelo budismo, porque pensava que poderiam ajudar-
nentes e fundamentais que se impõem a todo ser humano ~os a melhor formular a essência do sáb~o grego. É muito
que procura a sabedoria. Evoquei, nesse contexto, a exis- mteressante constatar que na Grécia, na India e na China,
tência de uma espécie de estoicismo universal, que não se uma das vias que levam à sabedoria consiste na indiferen-
encontra somente no Ocidente, mas igualmente na China ça, isto é, na recusa a atribuir às coisas diferenças de valor
por exemplo, como mostrou J. Gernet19 • Como já disse, que .expri~i~am o ponto de vista do indivíduo, egoísta,
fui por muito tempo avesso à filosofia comparada, porque paroal e hm1tado, o ponto de vista da "rã no fundo do
pensava que poderia criar confusões e aproximações arbi- poço" ou da "mosca atraída pelo vinagre no fundo de um
trárias. Mas me parece agora, ao ler os trabalhos de meus vaso", de que fala Tshuang-tsé25 :
colegas G. Bugault20 , R.-P. Droit2\ M. Hulin 22 , J.-L. Solere23,
Só conheço do Tao o que pode conhecer do universo uma mosca
que há realmente analogias perturbadoras entre as atitu-
atraída pelo vinagre caído num vaso. Se o mestre não tivesse
des filosóficas da Antiguidade e as do Oriente, analogias
levantado minha tampa, eu sempre teria ignorado o universo
que não podem ser explicadas por influências históricas
em sua integralidade grandiosa.
mas, em todo caso, permitem -taJvez melhor compreender
tudo o que pode estar implicado nas atitudes filosóficas Esse desinteresse e essa indiferença reconduzem assim
a um estado original: a quietude, a paz, que, no fundo de
18. P. Hadot, La Citadelle intérieure, pp. 330-333. nós, existe anteriormente à afirmação de nossa individuali-
19. J. Gernet, Chine et christianisme 2• ed., Paris, 1991, p. 191; "La dade contra o mundo e contra o outro, anteriormente por-
sagesse chez Wang-Fou-tche, philosophe chinois du XVIIe siecle", in Les
Sagesses du monde, Colloque s. d. G. Gadoffre, Paris, 1991, pp. 103-104.
20. G. Bugault, L'Inde pense-t-elle?, Paris, 1994. 24. Cf. acima pp. 329-330.
21. R.-P. Droit. L'Oubli de l'Inde. Paris, 1989. . 2~. Tsh~ang-tsé, XVII, La crue d'automne, e XXI, Tien Tseu-Fang, traduc-
22. M. Hulin, La Mystique sauvage, Paris, 1993. twn Lr~u. Kia~Hway, in Philosophes taofstes, Paris, Gallimard, 1980, pp. 202 e
23. J.-L. Solere,citado na p. 386, nota 10. 244 (Brbhotheque de la Pléiade).

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Ruptura e continuidade. A Idade Média e os tempos modernos Questões e perspectivas

tanto ao egoísmo e ao egocentrismo que nos separam do Esse "filósofo" estará, contudo, exposto a muitos riscos.
universo e nos arrastam inexoravelmente na perseguição O primeiro será satisfazer-se com o discurso filosófico. Há
inquieta de prazeres e no temor do perpétuo castigo. um abismo entre as belas sentenças e a decisão real de
mudar de vida, entre as palavras e a tomada de consciência
Os exercícios espirituais como "viver no presente" ou efetiva ou a transformação real de si mesmo. Parece, por
"ver as coisas do alto" encontram-se assim em Goethe 26 , em outro lado, que a razão mais profunda da "teorização" da
Nietzsche 27 ou em Wittgenstein 28 • São igualmente acessíveis filosofia seja essa tendência de certo modo conatural ao
ao "filósofo", no sentido em que o entendemos. Espero filósofo e que o induz a satisfazer-se com o discurso, com
voltar a esse tema em obras posteriores. a arquitetura conceitual que constrói, reconstrói ou admi-
De maneira mais geral, parece-me ter ficado claro ra. Encontram-se sempre, de uma extremidade a outra da
que, como diz J.-L Solere29 , "os antigos eram talvez mais história da filosofia antiga, em quase todas as escolas, as
próximos do Oriente que nós", o que também quer dizer mesmas advertências ante o perigo que corre o filósofo,
um autor chinês moderno 30 quando escreve: "Os filósofos caso ele pense que seu discurso filosófico possa bastar-se
chineses eram todos Sócrates em graus diversos. Na pessoa a si mesmo sem estar ligado a uma vida filosófica. Perigo
do filósofo, saber e virtude eram inseparáveis. Sua filosofia perpétuo que Platão já experimentava quando escreVIa,
reclamava ser vivida por ele, sendo ele próprio o veículo. para justificar sua decisão de ir a Siracusa31 :
Viver de acordo com suas convicções filosóficas fazia parte Envergonho-me diante de mim mesmo à só ideia de passar
de sua filosofia". O "filósofo", o amante da sabedoria, no por charlatão, incapaz de realizar algo concreto.
sentido em que o entendemos, poderá procurar também
modelos de vida nas filosofias orientais, e estas não são Outro perigo, o pior de todos, seria acreditar que é
tão distantes assim dos modelos antigos. possível passar sem a reflexão filosófica. É necessário que
o modo de vida filosófico justifique-se num discurso filo-
26. Cf. P. Hadot, '"Le présent seul est notre banhem-'. La valeur de sófico racional e motivado. Esse discurso é inseparável do
l'instant présent chez Goethe et â.aiis-la philosophie antique", in Diogene, modo de vida. Notadamente, será necessária uma reflexão
133: 58-81, 1986; e, do mesmo autor, "La terre vue d'en haut et le voyage
cosmique. Le point de vue du poete, du philosophe et de l'historien", in
crítica sobre os discursos filosóficos antigos, modernos ou
Frontii!res et conquête spatiales, Dordrecht/Londres, 1988, pp. 31-39. orientais, que justifiquem este ou aquele modo de vida.
27. "Tudo o que é necessário, visto do alto e na ótica de uma economia de Será necessário esforçar-se para explicitar as razões pelas
conjunto, é igualmente útil em si. Não se deve; somente suportá-lo, deve-se
quais se age desta ou daquela maneira e refletir sobre a
amá-lo" (Nietzsche). Nietzsche contre Wagner, Epilogue, I, Paris, Gallimard,
<Euvres philosophiques completes, t. VIII, p. 275. própria experiência e a dos outros. Sem essa reflexão, a
28. Tractatus ... , 6. 4311 e 6. 45. vida filosófica arrisca-se a cair na banalidade, ou na insipi-
29. J.-L. Solere, op. cit., p. 198.
30. Kin (Yue-Lin), in Fong (Yeou-Lan), Précis d'histoire de la philosophie
31. Platão, Carta VII, 328 c, trad. L. Brisson, p. 173.
chinoise, p. 31.

392 393
Ruptura e continuidade. A Idade Média e os tempos modernos
Questões e perspectivas

dez , ou nos bons sentimentos, ou na aberração. Sem dú- e do sofrimento de milhares de seres humanos. Nessas
vida, não se pode esperar ter escrito a Crítica da razão pura condições, o filósofo, decididamente, jamais poderá atingir
para viver como filósofo. Mas não é menos verdade que a serenidade absoluta do sábio. Filosofar será sofrer por
viver como filósofo é precisamente também refletir, racioci- esse isolamento e por essa impotência. Mas a filosofia an-
nar, conceitualizar, de maneira rigorosa e técnica, "pensar tiga nos ensina também a agir racionalmente e a 'nos es-
por si mesmo", como disse Kant. A vida filosófica é uma forçar para viver segundo a norma que é a Ideia de sabe-
busca que jamais termina32 • doria, o que quer que aconteça, e mesmo que nossa ação
Enfim, não se deve esquecer, apesar dos clichês tena- pareça-nos bem limitada. Como dizia Marco Aurélio 34 :
zes que se reproduzem sempre nos manuais, que a vida Não esperes a República de Platão; satisfaz-te com um pro-
filosófica antiga sempre foi intimamente ligada ao cuidado gresso ainda que mínimo; considera que não é pouca coisa o
do outro e que essa exigência é inerente à vida filosófica, resultado desse progresso.
especialmente quando vivida no mundo contemporâneo.
Como diz G. Friedmann33 :
Um sábio moderno (caso exista) não se desviará hoje - como o
fizeram tantos estetas com desgosto - da cloaca dos homens.
Mas, dizendo isso, ele reencontra, e nós com ele, os
problemas quase insolúveis das relações do filósofo antigo
com a cidade. Pois o filósofo engcgado arrisca-se sempre a
deixar-se levar pelo ódio e pelas paixões políticas. Eis por
que, aos olhos de G. Friedmann, tratava-se, para buscar
melhorar a sorte dos homens, de concentrar seus esforços
"sobre grupos restritos, e mesmo sobre indivíduos", e "sobre
o esforço espiritual (a mutação de alguns)" que acabará,
pensava ele, por disseminar-se e irradiar. O filósofo expe-
rimenta cruelmente sua solidão e sua impotência em um
mundo despedaçado entre duas inconsciências: a que pro-
voca a idolatria pelo dinheiro e a que resulta da miséria

32. Cf. R.-P. Droit, "Philosophie de printemps", in Le Monde des livres,


21 avril 1995, p. IX.
34. Marco Aurélio, Meditações, IX, 29; cf. P. Hadot, La Citadelle intérieure,
33. G. Friedmann, La Puissance... , p. 360. pp. 321-325.

394
395
C/Jibliografia

I
Referências dos textos citados em epígrafe

EPITETO. Conversações, III, 21, 23.


KANT. Vorlesungen über die philosophische Encyclopiidie, in Kants gesammelte
Schriften XXIX. Berlin, Akademie, 1980, pp. 8, 12.
MONTAIGNE. Essais, III, 13. Paris, Gallimard/Pléiade, 1962, p.
1088. [N. do T.: vali-me da tradução brasileira. Ensaios. 4a ed.
Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo, Abril Cultural, 1988, p.
220 (Os Pensadores).]
NlETZSCHE. Fragments posthumes. Autonne 1881, 15 [59], in _ _.
CEuvres philosophiques completes. T. V, p. 530. [N. do T.: "Fragmen-
tos póstumos de Friedrich Nietzsche". Tradução e introdução
de Oswaldo Giacóia Júnior. In Trans/form/ação. São Paulo: 13:
139-145, 1990; Fragmentos póstumos. Tradução de Oswaldo Gia-
cóia Júnior. Campinas, lFCH/Unicamp, abril de 1996 (Textos
Didáticos, 22).]
NlETZSCHE. Humain, trop humain. Le voyageur et son ombre. § 86, in
id., CEuvres philosophiques completes. T. III, 2. Paris, Galimard, p.
200. [N. do T.: - Humano, demasiado humano. 3a. ed. Tradução
e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo, Abril
Cultural, 1983 (Os Pensadores).]
PASCAL. Pensées, § 331 Brunschvicg (Classiques Hachette). [N. do T.:
vali-me da tradução brasileira. Pensamentos. 4a ed. Tradução de
Sérgio Milliet. São Paulo, Nova Cultural, 1988 (Os Pensadores).]

397
O que é a filosofia antiga? Bibliografia

PETRARCA. "De sui ipsius et multorum ignorantia", in Prose. A cura AGOSTINHO. La Cité de Dieu. Livres I-XXII. Trad. Combes, in
di G. Martellotti. Milano, 1955, pp. 746-748. Bibliotheque augustinienne, CEuvres de saint Augustin, nn. 33-37.
PLOTINO. Eneadas, V, 6 (24), 5, 9. Turnhout, Brepols, 1959-1960.
SÊNECA. Cartas a Lucílio, 108, 36. ARISTEU: veja-se LEITRE D'ARISTÉE.
SIMPLÍCIO. Commentaire sur le Manuel d'Épictete. lntroduction, texte ARISTÓFANES, Les Nuées, in Aristófanes, t. I, texte de V. Coulon,
grec et apparat critique par I. Hadot. Leyde, Brill, 1995. XXIII, trad. par H. Van Daele, 1960.
ARISTÓTELES: as traduções citadas são extraídas e por vezes mo-
linha 163.
THOREAU. Walden. Éd. et trad. G. Landré-Augier. Paris, 1967, p. 89. dificadas, seja da tradução completa de]. Tricot na Bibliotheque
des Textes Philosophiques, Paris, Vrin, 1951-1970, seja nas traduções
que se encontram na BL ou na GF.
AULO GÉLIO. Nuits attiques. Livres I-XV. Éd. et trad. R. Marache.
11 BL, 1967-1989.
Citações de textos antigos CÍCERO: as traduções citadas são extraídas e por vezes modificadas
da tradução quase completa in BL, notadamente Des termes
As referências exatas das citações de textos antigos são, em geral, extrêmes des biens et des maux. Alguns tratados estão traduzidos
dadas nas notas. Todavia, para os autores muito "clássicos", como na coleção GF, notadamente os Nouveaux livres académiques, e
Aristóteles ou Platão, não dei referências de edições ou traduções o Lucullus, no volume Cícero. De la divination, etc. Trad. Ch.
específicas, contentando-me em reproduzir as referências usuais Appuhn, GF, 1937 (reedições).
que figuram na margem de todas as edições, por exemplo, para CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Stromates, 1-11 (trad. C. Mondésert),
Platão: Banquete, 208 e, ou ainda as divisões por livros, capítulos e
V (trad. ALe Boulluec), SC, 1954-1981.
parágrafos, utilizadas habitualmente para citar autores como Cícero
_ _ _. Le Pédagogue. 1-III (trad. M. Harl, Cl. Mondésert, Ch. Matray,
e Epíteto. Para completar estas sucintas indicações dadas em nota,
introd. et notes d'H.-1. Marrou), SC, 1960-1970.
as especificações que se seguem são destinadas a auxiliar o leitor
DIODORO DA SICÍLIA, Biblioteca histórica, texto grego e tradução
que quiser verificar os textos, fomecendo-lhe indicações sobre as
inglesa por diferentes autores sob o título Diodorus Siculus, tt.
coleções de textos antigos das quais me servi.
I-XII, in LCL, 1933-1967; edição e tradução em curso, livros I,
III, XII, XV, XVII-XIX, in BL, 1972-1993.
Abreviações
DIÓGENES LAÉRCIO (citado: D. L.), Vidas e doutrinas dos filósofos
BL Collection des Universités de France. Paris, Les Belles Lettres. ilustres; em geral, as traduções por mim dadas são originais.
CAG Commentaria in Aristotelem Graeca. Berlin. Existe uma tradução completa (mas pouco satisfatória) in GF;
uma nova edição e uma nova tradução estão em preparação;
GF Collection Gamier Glammarion. Paris, Flammarion.
tradução inglesa com texto grego por R. D. Hicks, in LCL nn.
Pléiade Bibliotheque de la Pléiade. Paris, Gallimard. 184-185, 1925 (reedições).
LCL Loeb Classical Library. Cambridge (Mass.)/London. EPITETO. Entretiens. Livres I-IV. Texte établi et traduit par]. Souilhé,
SC Sources Chrétiennes. Paris, Éditions du Cerf. BL, 1948-1965; veja-se também a tradução de V. Goldschmidt, in
SVF Stoicorum Veterum Fragmenta. Ed. H. von Arnim, I-IV, É. Bréhier et P.-M. Schuhl. Les StoiCiens. Pléiade, 1964; Manuel.
Leipzig, 1905-1924, reed. Stuttgart, Teubner, 1964. Trad.]. Pépin, in Les StoiCiens. Pléiade, 1964.

398 399
O que é a filosofia antiga? Bibliografia

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EVÁGRIO PÔNTICO. Traité pratique du Moine. Texte grec et trad. MARCO AURÉLIO: dei minha própria tradução das Meditações, da
par A. et Cl. Guillaumont, SC, 1971; Le gnostique. Texte grec et qual se encontrará o texto grego in BL, éd. Trannoy, 1924 (reedi-
trad. par A. et Cl. Guillaumont, SC, 1989. ções), e sobretudo na edição de]. Dalfen. Leipzig, Teubner, 1972,
FÍLON DE ALEXANDRIA: as traduções citadas são extraídas e por 2a ed. 1987. .
vezes modificadas da tradução completa, acompanhada do tex- NUMÊNIO. Fragments. Éd. et trad. par É. des Places, BL, 1973.
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trad. V. Bérar, BL, 1924 (reedições) [N. do T.: Odisseia. 2a e 9); extraí minhas citações dos três volumes que aparecem na
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HORÁCIO: as traduções citadas são extraídas e por vezes modificadas a tradução inglesa de H. Cherniss, in IBL, nn. 470, 1976.
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LETTRE D'ARISTÉE. Éd. et trad. A. Pelletier, SC 89, 1962. SÊNECA: as traduções citadas são extraídas e por vezes modificadas
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400 401
O que é a filosofia antiga? Bibliografia

SEXTO. EMPÍRICO: não existe em francês tradução completa do Jorge Zahar Editor, 1988] (aspectos religiosos e intelectuais do
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Sceptiques grecs. Textes choisis. Paris, PUF, 1966, veja-se também DUMONT, J.-P. Éléments d'histoire de la pkilosophie antique. Paris, 1993.
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KIMMICH, D. Epikureische Aufkliirung. Philosophische und poetische
Em ~versas ob_:as citadas nas notas do livro poder-se-ia consul- Konzepte der Selbstorge. Darmstadt, 1993.
tar a s_e~mte seleçao, voluntariamente muito restrita, de trabalhos LAKMANN, M-.L. Der Platoniker Tauros in der Darstellung des Aulus
suscetíveis de contribuir com complementos de informação sobre Gellius. Leyde, 1995.
temas tratados neste livro: NUSSBAUM, M. C. The Therapy of Desire. Theory and Practice in Hel-
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gem a Jacob Lanz, artigos em~Jíngna alemã consagrados à noção Collection Latomus, t. 187, Bruxelles, 1985, pp. 291-298.
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Paris, 1974. ' da interpretação xamanística).
BOYANCÉ, P. Lucrece et l'épicurisme. Paris, 1963. PIGEAUD, J. La maladie de l'âme. Étude sur la relation de l'âme et du
BROCHARD, V Les sceptiques grecs. Paris, 2e éd. 1932 réimpression . corps dans la tradition médico-philosophique antique. Paris, 1981.
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[N. do T.: Os mestres de verdade na Grécia arcaica. Rio de Janeiro, du platonisme. Préface de P. Hadot. Paris, 1986 (tradução de

402 403
O que é a filosofia antiga?

textos e bibliografia sobre as teorias concementes ao ensino


oral de Platão).
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mentary. Leyde, 1995 (texto, tradução, comentário dos Versos
dourados pitagóricos).
VAN GEYTENBEECK, A . C. Musonius Rufus and Greel Diatribes.
Assen, 1963.
WIELAND, W. Platon und die Formen des Wissens. Gõttingen 1982
Cronologia
(Platão não ensina um saber, mas um saber-fazer). '

O signo ± indica que a data proposta é aproximativa: ela é


muito frequente no caso do período de atividade e de ensino dos
filósofos; escolhi, no geral, datas que correspondem ao que se
denominava na Antiguidade a akmé, isto é, o momento no qual
a personagem em questão atinge a maturidade ou cimo de sua
atividade e de seu renome.
Encontrar-se-ão preciosos detalhes biobibliográficos sobre os
diferentes filósofos in R Goulet, Dictionnaire des philosophes antiques,
I, Abammon à Axiothea, 11, Babélyca à Dyscolius, Paris, 1994.

Antes de Cristo

850-750 Composição dos poemas homéricos.


700? Hesíodo.
650±? Viagem de Aristeu do Proconeso para a Ásia central e
composição de seu poema Arimaspea.
640± Epimênides faz um sacrifício expiatório em Atenas.
600-550 Nas primeiras colônias gregas da Ásia Menor, aparição dos
primeiros pensadores: Tales de Mileto, que prediz o eclipse
do Sol de 28 de maio de 585, Anaximandro, Axímenes.
600± Figuras, ao mesmo tempo históricas e lendárias, dos Sete
Sábios: Sólon, Pítacos de Mitilene, Qm1on de Esparta, Bias
de Priene, Periandro de Corinto, Cleóbulo de Lindos.

404 405
O que é a filosofia antiga? Cronologia

594± Sólon, político e poeta ateniense, considerado posterior- 388/387 Platão funda sua escola em Atenas no ginás_io denominado
mente um dos Sete Sábios. Academia. Principais membros da Academia: Eudoxo, He-
560±? Abaris, personagem posta em relação com Pitágoras pelas ráclido, Xenócrates, Espeusipo, Aristóteles, Teeteto; duas
tradições pitagórica e platônica. mulheres: Axioteia, Lasteneia.
540±? ~enófanes de Colofão emigra de Colofão, colônia grega da 370-301 Tshuang-tsé, filósofo chinês, que apresenta Lie-tsé como
Asia Menor, e chega a Eleia, colônia grega do Sul da Itália. seu mestre.
540±? Teógnis, poeta elegíaco: moral aristocrática. 367-365 Eudoxo de Cinide substitui Platão à frente da Academia
532± Pitágoras. Originário da ilha de Samos, emigra para as co- durante sua segunda viagem à Sicília, para a corte de
lônias gregas do Sul da Itália, Crotona, depois Metaponto. Dionísio II de Siracusa.
Dizia-se de Pitágoras que ele era uma reencarnação do 361-360 Heráclido do Ponto substitui Platão à frente da Academia
filósofo (lendário) Hermotimo de Clazômenas. durante sua terceira viagem à Sicília.
504± Heráclito de Éfeso (colônia grega da Ásia Menor). 360±ss Diógenes, o Cínico, que fora discíp':lo, de Antíster:es.
500± Ensinamentos de Buda e de Confúcio. 360±? Ésquines (Aisquines) de Esfetos, disCipulo _de So~rates,
490-429 Datas do nascimento e da morte do político ateniense ensina em Atenas e compõe diálogos que poem Socrates
Péricles. em cena.
470± Anaxágoras de Clazômenas. 350±? Xenofonte, discípulo de Sócrates, escreve suas memórias
460± Empédocles de Agrigento. (Memoráveis) sobre Sócrates.
450±ss Parmênides de Eleia; Zenão de Eleia; Melisso de Samos. 349/348 Morte de Platão. Espeusipo lhe sucede à frente. da escola.
450±ss Desenvolvimento do movimento sofístico: Protágoras, 339/338 Eleição de Xenócrates como escolarca da Academia, sucessor
Górgias, Pródicos, Hípias, Trasímaco, Antifonte, Crítias. de Espeusipo.
450± Heródoto, historiador.
440± Demócrito de Abdera. Período helenístico
435± Ensino de Sócrates em Atenas. Chegada de Alexandre, o Grande, rei da Macedônia.
432 Processo de impiedade em Atenas contra Anaxágoras, que 336
337 Aristóteles funda em Atenas sua própria escola. Membros
deve exilar-se. Importantes de sua escola: Teofrasto, Aristoxeno, Dicearco,
432/431 Batalha de Potideia na qual Sócrates participa. Clearco (encontram-se documentos epigráficos que at~stam
431/416 Alcibíades, político ateniense, discípulo de Sócrates. a existência de uma viagem deste último a uma Cidade
430± Redação da obra histórica--de Tucídides. grega que existia nas proximidades da atual Ai Rhanoum
423± Representação da peça de Aristófanes, As Nuvens, que o Afeganistão) . ,
ridiculariza o ensino de Sócrates.
334 Expedição de Alexandre à Pérsia e à India. ?e~a to~am
399 Processo de impiedade em Atenas contra Sócrates, que é parte Anarco de Abdera, discípulo de Democnto, P1rro,
condenado à morte. Onesícrito.
399±? Antístenes, Aristipo de Cirene, Euclides de Megara, discí- 328±ss Primeira geração de discípulos de Diógenes, o Cín~co:
pulos de Sócrates, fundam suas próprias escolas. Mônimo, Onesícrito, Crates, Hipárquia, Métrocles, Mempo,
390± Isócrates abre uma escola em Atenas na qual ensina a Menedemo.
"filosofia" como cultura geral. 326-323 O sábio indiano Calano encontra os gregos por ocasião da
389-388 Primeira viagem de Platão ao Sul da Itália e à Sicília. estadia de Alexandre em Taxila, e suicida-se pouco tempo
Encontro com Díon de Siracusa. antes da morte de Alexandre.

406 407
O que é a filosofia antiga? Cronologia

323 Morte de Alexandre na Babilônia. Segue-se um período 164± Cameada, escolarca da Academia.
de perturbações que acompanha a formação de diferentes 155 Embaixada enviada a Roma pelos atenienses, para con-
monarquias helenísticas. seguir que a cidade de Atenas fosse isenta de uma forte
322± Morte de Aristóteles, Teofrasto o sucede. multa. Ela inclui três filósofos: o acadêmico Cameada, o
321 Menandro, poeta cômico, talvez influenciado por Epicuro. aristotélico Critolau, o estoico Diógenes da Babilônia.
320± Atividade filosófica de Pirro de Élis. Ele tem por discípulos 150± Antipater (ou Antipratos) de Tarso, chefe da escola estoica.
Fílon de Atenas e Tímon de Atenas. 149-146 Submissão a Roma da Macedônia e da Grécia.
312 Morte de Xenócrates. Polêmon o sucede à frente da Aca- 144± O estoico Panécio admitido no "círculo" dos Cipião. Ele
demia. sucede, em 129, Antipater à frente da escola estoica.
313 Epicuro funda sua escola em Atenas. Primeiros discípu- 133± Blóssio, estoico, discípulo de Antipater, sugere em Roma
los: Heródoto, Pítocles, Hermarco, Metrodoro, Polieno, as reformas sociais de Tibério Graco, e talvez também em
Leonteus de Lampsaco, Temístia, Leôntion, Colotes, Pérgamo a revolta de Aristonico, que quer a libertação de
Apolonides. Amigo: Idomeneu. todos os escravos e a igualdade de todos os cidadãos.
301± Zenão de Citium funda a escola "estoica" em Atenas. Primei- 110± Fílon de Larissa e Carmadas ensinam na Academia.
ros discípulos: Perseu, Aríston de Quíos, Cleanto de Assos. 99± Quinto Múcio Escávola Pontífice, Rutílio Rufo, políticos
300± Elementos de Euclides (de Alexandria). romanos, estoicos.
300± Crantor, escolarca da Academia. 97-55 Lucrécio, epicurista, autor do poema De rerum natura.
295± Fundação em Alexandria, por Ptolomeu I, de um centro 95-46 Catão da Útica, político romano e filósofo estoico.
de estudos científicos denominado Museu, ao qual está 87 Atenas tomada pelos romanos. Pilhagem da cidade pelas
associado Demétrio de Falera, um aristotélico, e onde tropas de Silas.
ensinam, por exemplo, no fim do século 111, o astrônomo 79± Antíoco de Ascalão abre sua própria escola em Atenas; ele
Aristarco de Samos e o médico Herófilo. se opõe à atitude "crítica" que a Academia tinha adotado
287/286 Estratão de Lampsaco sucede Teofrasto como escolarca da desde Arquesilau até Fílon de Larissa.
escola peripatética. 60± Diversas manifestações de uma renovação do pitagorismo.
283-239 Antígonos Gonatas, rei da Macedônia, favorece os filósofos, 50±? Apolófanes de Pérgamo, filósofo epicurista.
notadamente estoicos (Cleanto). 50± Filodemo de Gadara, filósofo epicurista, amigo de Calpúmio
276-241 Arquesilau, escolarca da Academia, confere à escola uma Pisou (que era o sogro de Júlio César).
orientação "crítica".- 49± Diodoro da Sicília, historiador.
268± Lícon sucede Estratão de Lampsaco como escolarca da 44 Assassinato de Júlio César.
escola peripatética. 43 Júnio Bruto, político romano, assassino de César, assiste em
262± Cleanto, chefe da escola estoica, na morte de Zenão. Atenas às aulas do platônico Teomnesto (último filósofo
235± O estoico Esfairos, discípulo de Zenão e de Cleanto, con- ensinando em Atenas a ser denominado "acadêmico", isto
selheiro do rei de Esparta Cleômeno 111 e provavelmente é, "crítico"). As instituições escolares fundadas por Platão,
de seu predecessor Ágis IV, sugere-lhe reformas sociais. Aristóteles e Zenão desaparecem nos últimos anos da Re-
230± Crisipo, chefe da escola estoica, na morte de Cleanto. pública romana. Somente sobrevive a instituição fundada
212 Arquimedes de Siracusa, astrônomo, matemático e en- por Epicuro. Novas escolas, retomando a herança doutrinai
genheiro, é morto por soldados romanos por ocasião da de Platão, Aristóteles e Zenão, abrem-se em outras cidades
ocupação de Siracusa. e na própria Atenas.

408 409
O que é a filosofia antiga? Cronologia

35± Eudoro de Alexandria, filósofo platônico. 120± Início da atividade literária dos Apologistas cristãos, no-
30 Batalha de Actium; morte de Cleópatra, última rainha do tadamente Justino, Atenágoras, Teófilo de Antioquia, que
Egito. Fim da época helenística. apresentam o cristianismo como uma filosofia.
30? Inscrição epicurista gravada por Diógenes de Oinoanda em 129-200 Vida de Galena de Pérgamo, médico e filósofo.
sua cidade natal (datada também, por certos especialista, 133± Basílidas, primeiro gnóstico "historicamente determinado"
no século II d.C.). ensina em Alexandria. '
27 Otávio recebe do Senado o imperium e o título de Augusto. 140 Valentino, o gnóstico, ensina em Roma durante 0 reino
Fim da República Romana e início do Império. Nessa época, de Antonino, o Piedoso.
florescimento da literatura latina: Horácio, Ovídio. Ário 140± Favorino de Árles, platônico de tendência "crítica".
Dídimo, conselheiro de Augusto e autor de um manual 146 Calvísio Tauro, platônico, ensina em Atenas. Aulo Célio é
doxográfico sobre os "dogmas" das diferentes escolas filo- seu aluno.
sóficas. Sextio, pai e filho, filósofos romanos, influenciados 147± Cláud~o Ptolomeu, astrônomo, matemático, geógrafo.
pelo estoicismo e pelo pitagorismo, que exercerão grande 150± Apulew de Madaura, platônico.
influência sobre o pensamento de Sêneca. 150±? Numênio e Crônio, platônicos.
7± Amínias de Samos, filósofo epicurista. 150±/ Alcínoo, platônico, autor de um resumo do platonismo
(Didaskalikos).
150±/ Albi~o, pl~tônico, autor de uma Introdução aos diálogos de
Platao, ensma em Esmirna.
Depois de Cristo 155± Máximo de Tiro, retor e filósofo platônico.
160± Luciano, autor satírico, influenciado pelo cinismo.
O Império Romano 161-180 Reinado do imperador Marco Aurélio, estoico, muito in-
29/30 Crucificação de Jesus de Nazaré em Jerusalém. fluenciado por Epíteto.
40± Fílon de Alexandria, platônico, um dos escritores mais im- 176 Marco Aurélio funda em Atenas cátedras de filosofia para as
portantes do judaísmo helenístico. Exercerá forte influência quatros principais correntes: platônica, aristotélica, estoica
sobre a "filosofia" cristã. <: epicurista, mantidas pelos fundos imperiais.
48-65 Sêneca, filósofo estoico;preceptor e depois conselheiro do 176± Atico, filósofo platônico. Ensina em Atenas na cátedra
imperador Nero. Após 62, consagra-se unicamente à ativida- fundada por Marco Aurélio.
de filosófica. Em 65, forçado ao suicídio pelo imperador. 177± Composição das Noites áticas de Aulo Célio.
60 Amônio, platônico, ensina em Atenas. Plutarco de Que- 177± Celso, filósofo platônico, polemista anticristão.
roneia é seu ouvinte. 180ss Alexandria e Cesareia da Palestina tornam-se grandes
93-94 Expulsão de Roma de todos os filósofos pelo imperador centros de ensino da "filosofia" cristã: Pantene, Clemente
Domiciano. Expulso de Roma, o estoico Epíteto, aluno de de Alexandria, Orígenes, Gregório o Taumaturgo, Eusébio
Musônio Rufo, funda uma escola em Nicópolis, na costa de Cesareia.
grega do Adriático. 190± Sexto Empírico, médico, filósofo cético, graças a quem co-
96 Advento do imperador Nerva. nhecemos os argumentos dos céticos anteriores, Enesídemo
100±ss Plutarco de Queroneia, platônico de tendência "crítica". (metade do século I a.C.?) e Agripa (difícil de datar).

410 411
O que é a filosofia antiga?
Cronologia

198± Alexandre de Afrodísia ensina a filosofia aristotélica em


se pode observar diferenças doutrinais importantes entre os
Atenas (?) e publica numerosos comentários sobre as obras
neoplatônicos que ensinam nos séculos V e VI em Atenas e
de Aristóteles.
os que, como Hiérocles, Hérmias, Amônio, Olimpiodoro,
200± Diógenes Laércio, autor de uma obra intitulada Vidas e
ensinam em Alexandria. Numerosos comentários sobre
doutrinas dos filósofos ilustres.
Platão e Aristóteles, redigidos entre outros por Siriano,
244-270 Plotino, aluno de Amônio Sacas, funda em Roma uma
Proclo, Hérmias, Amônio, Olimpiodoro, Filoponos,
escola platônica (= neoplatônica). Ele tem por discípulos
Simplício. O neoplatonismo é um foco de resistência ao
Porfírio, Amélio, Castrício, Rogaciano. Em alguns de seus cristianismo.
escritos encontram-se discussões com os gnósticos. 529 O imperador Justiniano proíbe os pagãos de ensinar. Os
300± Início do monaquismo cristão. Antônio retira-se para o de-
filósofos neoplatônicos, Damásquio, Simplício e Prisciano,
serto. Atanásio de Alexandria escreverá sua vida em 356.
deixam Atenas para refugiar-se na Pérsia. Após o tratado de
paz concluído entre Corroés e Justiniano, eles se instalam
O Império cristão em Carrae, em território bizantino, mas sob influência
312-313 Conversão ao cristianismo do imperador Constantino que persa, e ali continuam seu ensino.
529± O neoplatônico João Filoponos converte-se ao cristianismo
promulga o Edito de Milão assegurando a tolerância do
exercício do culto cristão. de fato por causa das medidas de interdição do ensino
impostas aos pagãos por Justiniano.
313± Iâmblico funda uma escola platônica (= neoplatônica) 540± Doroteu de Gaza, escritor monástico.
na Síria, provavelmente em Apameia. Ele influenciou
fortemente o platonismo posterior pela importância que
confere à tradição pitagórica e às práticas teúrgicas. Escreve
numerosos comentários sobre Platão e Aristóteles. Teve por
discípulos, entre outros, Aidésio da Capadócia e Teodoro
de Asino.
361-363 O reinado do imperador Juliano, filósofo neoplatônico,
aluno de Máximo de Éfeso (na tradição de Iâmblico), dá
lugar a uma reação eontra o cristianismo, inspirada pelo
neoplatonismo.
360± Desenvolvimento do "monaquismo sábio": Basílio de
Cesareia, Gregório Nazianzeno, Gregório de Nissa, Evágrio
Pôntico.
375± Plutarco de Atenas: nascimento da escola platônica
(= neoplatônica) de Atenas.
386-430 Atividade literária de Agostinho.
400ss Desenvolvimento do ensino platônico em Atenas e em
Alexandria (escolas privadas): Siriano, Proclo, Damásquio,
Hiérocles, Hérmias, Amônio, Simplício, Olimpiodoro. Não

412 413
/

Indice de nomes

A Aouad 215
Apeles 210, 212
Abaris 406 Apolo 43, 51
Abensour 364 Apolófanes de Pérgamo 143, 409
Mrodite 73, 74 Apolonides 307, 408
Agostinho 92, 169, 352-354, 360, Apuleio 220, 411
412 Ária Dídimo 220, 410
Agripa 411 Aristarco de Sarnas 141, 204, 408
Albino 411 Aristeu do Proconeso 405
Alcínoo 220, 411 Aristipo de Cirene 91, 406
Alexandre de Mrodísia 157, 215, Aristófanes 70-72, 75, 399, 406
235, 407, 412 Aristofonte 226
Alexandre, o Grande 407 Aríston de Quíos 152, 202, 408
Amélio 335, 412 Aristonico 409
Amínias de Samos 143 Aristóteles 2, 6, 12, 15, 16, 19, 27,
Amônio 215, 410, 412, 413 33, 44, 49, 51, 63, 91, 95, 97-
Anaxágoras 142, 151, 382, 406 -102, 113, 119-134, 136-138, 140,
Anaxarco 145, 146, 166 142,145,148,149,154,156,157,
Anaximandro 27, 405 172,204,215,216,218,219,222,
Anaxímenes 27 223,225,228,235,237,243,245,
Antifonte 33, 270, 406 253, 257, 282, 298, 299, 302,
Antígonos Gonatas 151, 408 310,311,314-316,322,324,338,
Antíoco de Ascalão 409 360-362, 367, 368, 370, 371, 385,
Antipater de Tarso 307 398, 407-409, 412, 413
Antístenes 48, 91, 162, 406, 407 Aristoxeno 120, 407
Antoninó, o Piedoso 411 Arquesilau 157, 205-208, 217, 299,
Antão 341-343, 350, 400, 412 408, 409

415
O que é a filosofia antiga? Índice de nomes

Arriano 225, 307 Brisson 94, 102, 103, 113, 114, Copérnico 292 Díon de Siracusa 104, 304, 406
Arrighetti 150, 169, 174, 177, 116, 219, 305, 335, 393 Crantor 218, 408 Dionísio li de Siracusa 407
182, 185 Bruto 409 Crasso 217 Diotima 72-78, 109
Atanásio de Alexandria 339, Buda 406 Crates 162, 163, 306, 407 Dixsaut 70, 153
341, 412 Bugault 382, 390 Creso 36 Dodds 262, 265
Atena 39, 221, 269 Burkert 35, 37, 226, 227, 267, 269 Crisipo 145, 152, 187, 194, 198, Domanski 23, 356, 360, 362,
Atenágoras 411 Butor 370 199, 201, 216, 218, 220, 222, 367-369
Ático 411 223, 278, 408 Domiciano 410
Aubenque 135, 208 Critias 29, 406 Dõring 58
c Critolau 409 Doroteu de Gaza 340, 342-344,
Aubry de Reims 368
Augusto 140, 287, 410 Calano 146, 407 Crônio 411 349, 354, 413
Aulo Célio 195, 218, 225- 227, 411 Cantin 358 Dreyfus 370
Axioteia 96, 112, 407 Carmadas 409 Dumont 27, 29, 33, 35, 45, 209,
D
Carneada 207, 208, 217, 299, 409 210, 212, 226, 236, 259, 260,
Caronte 296 Damásquio 243, 244, 412, 413 269, 270, 313, 335, 402
B Dante 368 Düring 100, 125, 126, 133, 137
Cassin 2, 33
Babut 71, 72, 208, 369 Castrício 228, 412 Daumas 340
Balaudé 42, 169, 170, 172, 174- Catão da Útica 409 Davidson 386, 403 E
176, 178-181, 184, 280, 282, Celso 222, 411 Decharme 32, 181
283, 292, 298, 307, 320, 321 Chenu 220, 361 Decleva Caizzi 165, 168 Eckhart 368
Baldry 147 Cícero 35, 52, 82, 92, 145, 156, Deleuze 15 Edésio 308, 412
Basílidas 411 158, 168, 171, 174, 177, 178, Delorme 272 Eliade 262, 265
Basílio de Cesareia 339, 342, 412 185, 187, 190, 194, 198, 205, Demétrio de Falera 408 Elisabeth 373
Bataillard 121 207, 208, 214, 217, 249, 268, Demócrito 44, 146,147,177,236, Emerson 380
Baudoux 358 280, 282, 291, 295, 299, 307, 269, 270, 406, 407 Empédocles 28, 52, 110, 228, 236,
Bergson 15, 380 345, 398, 399 Demont 121, 204, 269, 270 259, 260, 261, 267, 406
Bien 120 Cipião Emiliano 295 Descartes 15, 370-373, 380, 382 Enesídemo 211, 411
Billot 92 -Cipiã:o, o Mricano 295 di Giuseppe 105 Epicuro 11, 15, 42, 91, 149-151,
Blóssio 144, 409 Cimos 42 Diano 131, 132, 150, 170, 173, 159, 169, 170-172, 174-178,
Bodéüs 120, 133-137 Cleanto 91, 152, 193, 258, 408 178, 183, 283, 284 180-185, 218, 222, 271, 279,
Boécio da Dácia 360, 367 Clemente de Alexandria 146, 336, Dicearco 92, 120, 407 282-284, 296-300, 306, 307, 317,
Bollack 40 339, 346, 352, 358, 359, 411 Dihle 68 318, 320, 321, 324, 344, 375,
Bolton 266 Cleóbulo de Lindos 43, 405 Diodoro da Sicília 268, 399, 409 381, 391, 408, 409
Bourgey 126 Cleômeno 144, 408 Diógenes da Babilônia 307, 409 Epimênides 265, 405
Bouveresse 329, 365, 366, 384 Cleópatra 140, 410 Diógenes Laércio 35, 75, 120, 146, Epíteto 13, 145, 187, 189, 193,
Bouyer 340 Colotes 206, 408 149, 151, 158, 176, 178, 187, 194, 196, 199, 219, 225, 252,
Bréhier 141, 187, 239, 278, 302, Confúcio 406 249, 269, 314, 343, 372, 412 258, 277, 285-290, 307, 312,
319, 329, 372, 399, 401 Constantino 412 Diógenes, o Cínico 153, 369, 407 344, 345, 369, 380, 410, 411

416 417
O que é a filosofia antiga? Índice de nomes

Erasmo 23, 369, 382 G 190, 197, 201, 208, 214, 215, I
Eros 6, 70, 72-75, 77, 79, 80, 89, 224, 243, 250, 269, 271, 285,
90, llO, 165 Gabriel 19, 383, 384 Idomeneu 150, 185, 408
286, 288, 302-304, 327, 337,
Escávola 250, 409 Gaiser 95, 97, ll2 Ierodiakonou 204
358, 359, 397
Esfairos 144, 408 Galena 287, 289, 411 Imbach 367, 386
Hadot, P. 23, 29, 99, 143, 157,
Espeusipo 96, 97, 101, 407 Gemet, J. 390 Ioppolo 57, 205-207 ·
161, 194-198, 201-203, 222, 223,
Espinosa 15, 284 Gemet, L. 260 Isnasdi Parente 94
232, 239, 240, 242, 245, 251,
Ésquines de Esfetos 57 Gigante 178, 182, 184, 186, 281, Isócrates 6, 38, 83- 85, 92, 406
255, 275, 276, 279, 290, 294,
Estratão de Lampsaco 205, 408 306 312, 320, 326, 338, 357, 362,
Euclides de Megara 91, 406 Gille 141 390, 392, 395, 401, 403
Eudamidas 320 Gilson 357, 358, 363, 372, 375, J
Hamayon 24, 261, 263-265
Eudoro de Alexandria 410 379, 382 Havelock 37 J. Onias 129
Eudoxo de Cnide 97 Gladigow 39, 40 Hegel 15, 52, 67, 364, 366 Jaeger, H. 285
Eunapo 308 Glauco 274 Heitsch 100 Jaeger, W. 30, 31, 126
Eusébio de Cesareia 411 Glucker 148, 213 Heráclido do Ponto 35, 97, 266, Jâmblico 35, 215, 227, 243, 245,
Evágrio Pôntico 286, 339, 347, 350 Goethe 109, 388, 389, 392 407 246, 267, 287, 412
Evangelista, o João 335 Goldschmidt ll3, 190, 191, 197, Heráclito 29, 35, 36, 44, 52, 128- James 380
399 130, 316, 334, 335, 338, 406 Jankélévitch 52, 74
F Górgias 32, 33, 38, ll6, 217, 406 Hermarco 91, 408 Jaspers 389
Gõrler 168 Hérmias 412, 413 Jesus Cristo 8, 336, 405, 410
Favorino de Árles 4ll Goron 209, 402 Hermotimo de Clazômenas 265, João Batista 369
Festugiere 92, 141, 151, 175, 180, Goulet, R. 92, ll2, 143, 146, 147, 406 Jo1y, H. - 263, 264
181, 183, 218, 227, 243, 271, 204, 215, 308, 405 Heródoto, historiador 5, 35-37, 43, Joly, R. 35
294, 295, 300, 307, 321, 401 Goulet-Cazé 146, 162, 163 158, 159, 176, 298, 406 Juliano 412
Fichte 15 Graco 409 Herófilo 141, 408 Júlio César 409
Filodemo 182, 183, 186, 281, 306, Gregório Nazianzeno 339, 341, Hesíodo 40-42, 221, 310, 405 Justiniano 413
307, 321, 409 Hiérocles 227, 268, 288, 412, 413 Justino 336, 338, 4ll
- ---- 345, 346, 412
Fílon de Alexandria 198, 293, 333, Hipárquia 163, 407
Gregório Taumaturgo 336
340, 358, 410 Hípias 59, 406
Grenier 209, 402 K
Fílon de Atenas 408 Hoffmann 186
Gribomont 340
Fílon de Larissa 207, 409 Hõlderlin 71 Kant 11, 15,65, 130,288,328,362,
Filoponos 413 Grcethuysen 325
Holzhey 208, 377 373-380, 382-384, 394
Fong 295, 392 Guattari 15
Homero 37, 39, 40, 57, 310, 400 Kerferd 39
Foucault 2, 23, 343, 370, 382, 386 Horácio 11, 145, 186, 258, 281, Kidd 197
Friedmann 388, 394 H 283, 317, 410 Kierkegaard 57, 79, 374, 380
Friedrich 369, 397 Hulin 282, 327, 329, 330, 390, 391 Kin 392
Frischer 95, 184, 324 Hadot, I. 30, 44, 85, 98, 103, 143, Hunger 341 Koyré 292
Furley 270 144, 150, 159, 161, 183, 187, Hutter 386 Krâmer 78, 92, 101, 172, 173, 282

418 419
O que é a filosofia antiga? Índice de nomes

Kristeva 278 Marrou 30, 399 Numênio 92, 359, 411 185,206,216-224,229,234,235,
Kudlien 41 Martens 47, 105 24~245,252,253,266,268,274,
Marx 380 284, 290, 295, 297, 298, 304,
Masullo 245
o 305, 310, 313, 314, 317, 319,
L 320, 322, 323, 328, 329
Máximo de Éfeso 412 Olimpiodoro 412, 413
Labarriere 364 Máximo de Tiro 266, 411 Onesícrito 146, 407 Plínio, o velho 401
Lain Entralgo 41 Melisso 32, 406 Orfeu 221 Plotino 7, 12, 13, 15, 19, 79, 215,
Lasserre 98 Menandro 150, 408 Orígenes 336, 337, 339, 351, 352, 219, 224, 225, 227, 228, 230,
Lasteneia 96, 407 Menedemo 407 358-360, 411 231, 232, 235-243, 245, 247, 251-
Le Blond 299 Menipo 296, 407 Ovídio 295, 410 253, 274, 302, 308, 319, 323,
Leclerq 338, 340, 341 Merlan 235 324, 335, 383, 385, 412
Leibniz 15, 382 Merleau-Ponty 65, 67, 380, 382, Plutarco de Atenas 215, 412
387 p Plutarco de Queroneia 410
Leonteus de Lampsaco 185, 408
Leôntion 185, 408 Métroclo 261 Polêmon 148, 151, 408
Panécio 409
Lévy 206 Metrodoro 42, 91, 408 Polieno 91, 408
Paquet 162, 306
Lewy 245 Meuli 262 Pontífice 250, 409
Parain 106
Libera 368 Meunier 227, 268, 288 Porfírio 7, 174, 214, 219, 224,
Parmênides 28, 32, 35, 52, 110,
Lícon 149, 408 Mittelstrass 102, 112, 298 225, 227-232, 235, 238, 251,
115, 224, 244, 406
Lie-tsé 166, 407 Mnemosyne 41 252, 267, 268, 286, 287, 308,
Parmentier 109
Lindgren 376 Moles 147 319, 347, 360, 370, 412
Pascal 12, 79
Luciano 296, 328, 411 Mônimo 407 Poros 74, 75, 90
Penia 73-75
Lucrécio 145,169,175,178,291,296, Montaigne 11, 13, 369, 380, 385, Prisciano 413
Pépin 252, 399
311, 321, 327, 400, 401, 409 388, 389 Proclo 92, 215, 218, 243, 244,
Periandro de Corinto 43, 405
Lynch 31,33,93,94,96, 120,149, Moreau 204 246, 412, 413
Péricles 31, 36-38, 57, 406
151, 187, 204, 213, 215 Múcio 250, 409 Pródicos 32, 406
Perseu 151, 408
Muckensturm 146 Protágoras 32, 33, 43, 406
Petrarca 12, 23, 368, 369, 382
Müller 49, 58 Ptolomeu, Cláudio 293, 411
M Philonenko 15, 378, 379
Murray 141 Ptolomeu I 408
Pirro de Élis 145, 408
Macróbio 360 --Musas 40, 41, 96, 149, 221, 402 Pison 409
Malebranche 15, 382 Musônio Rufo 307, 410 Pitágoras 6, 28, 35, 92, 93, 221, Q
Malingrey 341 226-228, 259, 267-269, 286, 295,
Mansfield 187 400, 406 Quílon de Esparta 43, 405
N
Marcel 382 Platão 5, 6, 11, 12, 15, 19, 22, 27,
Marciano Capela 360 Naddaf 28, 29, 30, 33 29, 30, 33, 37, 42, 43, 47-51, 54, R
Marco Aurélio 143, 145, 185, Narcy 270 56, 58, 63, 66, 69, 70, 71, 76,
187, 190, 193, 199, 200-202, Nero 410 78-84,89, 90-105, 107-115, 117, Rabbow 22, 104, 107, 287, 288,
215, 250, 255, 275-278, 289, Nerva 410 119, 120, 122, 123, 133, 134, 304, 306
292, 301, 303, 308, 312, 313, Nietzsche 12, 71, 83, 324, 325, 353, 137, 138, 140, 142, 145, 148, Rabinow 370
326, 380, 395, 411 380, 388, 389, 392, 397 149, 154, 156, 172, 174, 183, Refoulé 286

420 421
Índice de nomes
O que é a filosofia antiga?

Renan 294 Simplício 12, 224, 225, 243, 302,


v Wittgenstein 19, 211, 284, 329,
365, 366, 380, 383, 384
Robert 44, 130, 141, 221 312, 337, 412, 413 Vair 372 Wolff 47, 48
Robin 80, 90, 401 Siriano 215, 243, 412, 413 Valentino 411
Rochlitz 382 Smith 169 Van der Horst 227
Rodier 121, 191 Snell 43 Vemant 21, 260, 261, 267 X
Rogaciano 230, 412 Sócrates 5, 6, 11, 17, 21, 30, 33, Veyne 328, 401
Romeyer-Dherbey 33, 41, 270 47-77, 79-81, 83, 89, 91, 92, 94- Xenócrates 96, 97, 101, 149, 151,
Voelke 9, 23, 63, 155, 171, 209, 304, 317, 319, 320, 407, 408
Romilly 33, 310, 402 9~9~ 103,105, 10~ 112, 11~
211 Xenófanes 28, 35, 110, 406
Rousseau 173, 374, 380 133, 142, 151, 154, 161, 162,
Voge1 35 Xenofonte 48, 59, 63, 66, 67, 69,
Ruffié 20 165, 169, 183, 187, 205, 206,
Rufino 341 258, 262-265, 304, 313-315, 318, 83, 110, 304, 315, 402, 407
Rústico 308 320, 329, 338, 346, 369, 374, w
Ryckrnans 167 375, 382, 391, 392, 406, 407
Wartelle 336, 338
z
Solêre 386, 390, 392
Sólon 36, 37, 40, 43 Wehrli 204 Zac 382
s Souilhé 225, 286, 399 Weil 19, 376, 378 Zenão de Citium 151, 408
Saffrey 245, 246 Suárez 357 Whitehead 109 Zenão de Eleia 32, 406
Schaerer 52, 106, 112, 113, 116 Sudhaus 183
Schelling 15 Sulzer 377
Schlanger 386
Schmid 183 T
Schopenhauer 364, 380
Schuhl 187, 399 Tales de Mileto 43, 44, 405
Sedley 178 Tauro 218, 222, 225, 227, 411
Sêneca 12, 22, 91, 145, 173, 183, Teeteto 53, 54, 57, 97, 107, 108, 116,
184, 187, 189, 193, 198, 199, 230, 291, 293, 295, 323, 407
207, 250, 252, 269, 271, 275, Temístia 185, 408
277, 278, 280, 282, 285, 287, _ _'l'eófilo de Antioquia 411
288, 292, 296, 300-302, 307, Teofrasto 120, 132, 149, 204,
311, 318, 324, 326-328, 368, 407, 408
369, 401, 410 Teógnis 31, 42, 406
Sereno 311 Teomnesto 409
Sextio 287, 318, 326, 410 Teoro 185
Sexto Empúico 147, 153, 168, 194, Thillet 215
209, 210-212, 313, 411 Thoreau 13, 380, 403
Shaftesbury 380 Tímon de Atenas 408
Sheppard 246 Trasímaco 45, 406
Shitao 166 Tshuang-tsé 166, 391, 407
Silas 144, 213, 409 Tucídides 37, 406

423
422

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