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GIL MOREIRA BARBOSA

A TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA EM CABO


VERDE: O CASO DO PODER LOCAL

Orientador: Professor Doutor Diogo Pires Aurélio

Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias


Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração
Departamento de Ciência Política, Segurança e Relações Internacionais

Lisboa
2020
Gil Barbosa
A transição democrática em cabo verde: o caso do poder local

GIL MOREIRA BARBOSA

A TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA EM CABO


VERDE: O CASO DO PODER LOCAL

Dissertação defendida em Provas Públicas para a


obtenção de grau de Mestre em Ciência Política –
Cidadania e Governação no Curso de Mestrado em
Ciência Política – Cidadania e Governação, conferido
pela Universidade Lusófona de Humanidades e
Tecnologias, no dia 26 de Maio de 2020, nomeado pelo
Despacho de Reitoral nº 119/2020, mediante a seguinte
composição de Júri:

Presidente: Professor Doutor Fernando Rui de Sousa


Campos

Arguente: Professor Doutor José Filipe Pinto

Orientador: Professor Doutor Diogo Pires Aurélio

Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias


Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração
Departamento de Ciência Política, Segurança e Relações Internacionais

Lisboa
2020
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A transição democrática em cabo verde: o caso do poder local

Epígrafe

Nós não somos o que gostaríamos de ser.


Nós não somos o que ainda iremos ser.
Mas, graças a Deus,
Não somos mais quem nós éramos
Martin Luther King

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Dedicatória

Aos meus filhos Silvano e Daniel e à minha esposa Menilita Barbosa que foram motivo
da minha inspiração para a concretização desse sonho

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Agradecimentos

Em primeiro lugar agradeço a Deus por tudo que Ele fez por mim, meu refúgio
e meu porto seguro e, que sem Ele nada sou.

Agradeço aos meus pais, António Barbosa e Mafalda Moreira que de uma
forma incondicional apoiaram-me nesta tarefa, com palavras de apoio e incentivo
principalmente nos momentos mais difíceis desta caminhada.

Aos meus manos e manas com suas palavras de encorajamento e pela


confiança depositada em mim que no final deste esforço haverá sorrisos de alegria.

Ao meu orientador Professor Doutor Diogo Aurélio pela paciência e incentivo


que me demostrou, pelos conselhos e orientações durante todo este percurso.

Aos meus amigos que de uma forma ou de outra me apoiaram com palavras de
incentivos que este sonho seria possível.

À Associação Nacional dos Municípios de Cabo Verde que me disponibilizaram


uma vasta documentação sobre o Poder Local em Cabo Verde.

Aos funcionários das várias bibliotecas em Lisboa, em especial da biblioteca


Vítor Sá.

Aos funcionários do Arquivo Nacional e Biblioteca Nacional de Cabo Verde.

A todos aqueles que direta ou indiretamente colaboraram para a realização


deste trabalho.

Bem-haja a todos!

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Resumo

O presente trabalho aborda a transição democrática em Cabo Verde e o caso


do Poder Local entre o regime autoritário de partido único e o regime democrático.
Esta dissertação focar-se-á em três momentos. No primeiro referem-se as razões
pelas quais há uma transição de um regime para outro, os tipos de transição de
regimes e os tipos de transição que ocorreram no continente africano. Neste sentido,
esta dissertação preocupou-se em demonstrar as condições que permitem classificar
uma democracia consolidada e as dificuldades nos processos de consolidação
democrática nos países africanos. No segundo momento discutir-se-á o processo de
transição do regime autoritário para a democracia, analisando as características do
regime monopartidário em Cabo Verde e a decadência do partido único naquele
arquipélago, que resultou na abertura política e na instauração da democracia em
Cabo Verde. Finalmente, no terceiro momento, analisar-se-á o Poder Local antes da
abertura política e o seu contributo, no regime democrático, para a consolidação de
democracia em Cabo Verde.

Palavras chave: Cabo Verde; Autoritarismo; Transição; Democracia; Poder Local

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Abstract
The present work addresses the democratic transition in Cape Verde and the
case of local power between the authoritarian single-party regime and the democratic
regime. This dissertation encompasses three focal points. The first one concerns
general causes of the transition from one regime to another, types of regime
transitions, and the types of transitions that have occurred on the African continent.
This section aims to demonstrate the conditions that allow for a classification of a
consolidated democracy and the difficulties involved in the past democratic
consolidation processes in African countries. The second focal point discusses the
transition process from an authoritarian regime to democracy. Characteristics of the
single-party Cape Verdean regime that resulted in the political opening and
establishment of democracy in the archipelago will be presented here. Finally, local
power before the political opening and its contribution to the democratic regime and,
thus, the consolidation of democracy in Cape Verde will be analyzed as the third focal
point.

Keywords: Cape Verde; Authoritarianism; Transition; Democracy; Local Power

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Listas de Siglas e Abreviaturas

ANMCV – Associação Nacional dos Municípios de Cabo Verde


BO – Boletim Oficial
CIDC – Comissão de Investigação e Divulgação Cultural
CRCV – Constituição da República de Cabo Verde
FFM – Fundo Financiamento dos Municípios
FMC – Fundo Municipal Comum
FMC – Fundo Municipal Comum
FSM – Fundo Solidariedade Municipal
ICE – Imposto sobre Consumos Especiais
IUR – Imposto único sobre Rendimento
IVA – Imposto sobre Valor Acrescentado
JACCV – Juventude Amílcar Cabral Cabo Verde
LOPE - Lei sobre a Organização Política do Estado
LQDA - Lei-Quadro de Descentralização Administrativa
MPD – Movimento para Democracia
OE – Orçamento do Estado
OMCV – Organização de Mulheres de Cabo Verde
ONU – Organização da Nações Unidas
OPAD-CV – Organização Pioneiros de Cabo Verde
OUA – Organização da Unidade Africana
PAICV – Partido Africano da Independência de Cabo Verde
PAIGC - Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde
PCD – Partido da Convergência Democrática
PSD – Partido Social Democrático
RFA – Regime Financiamento das Autarquias
RJPP – Regime Jurídico dos Partidos Políticos
UCID – União Cabo-verdiana Independente e Democrática

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Índice

Epígrafe .................................................................................................................................... 3
Dedicatória ............................................................................................................................... 4
Agradecimentos ........................................................................................................................ 5
Resumo..................................................................................................................................... 6
Abstract .................................................................................................................................... 7
Listas de Siglas e Abreviaturas ................................................................................................... 8
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................... 10
CAPÍTULO I FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA: TRANSIÇÕES E CONSOLIDAÇÕES DEMOCRÁTICAS ... 13
1.1 – A transição para a democracia e a consolidação democrática ..................................... 13
1.2 As consolidações democráticas em África ...................................................................... 27
CAPÍTULO II A TRANSIÇÃO DO REGIME MONOPARTIDÁRIO PARA O REGIME MULTIPARTIDÁRIO
EM CABO VERDE ..................................................................................................................... 33
2.1 O regime monopartidário em Cabo Verde ..................................................................... 33
2.2 As causas do enfraquecimento do Partido Único ........................................................... 39
2.3 A abertura política e as primeiras eleições livres............................................................ 42
CAPÍTULO III O CASO DO PODER LOCAL................................................................................... 53
3.1 O poder local antes da transição democrática ............................................................... 53
3.2 O novo ‘rosto’ do poder local no regime democrático - descentralização/regionalização
........................................................................................................................................... 55
3.3 Financiamento dos municípios ...................................................................................... 64
3.4 A Consolidação do Poder Local ...................................................................................... 66
CONCLUSÃO ........................................................................................................................... 74
Bibliografia.............................................................................................................................. 77

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INTRODUÇÃO

O final da década de 80 e início dos anos 90 do século XX foi marcado por


grandes transformações políticas que culminaram em processos de transição de
regimes autoritários para regimes democráticos. Como diz Linz (2015), “a transição
do autoritarismo para a democracia tende a iniciar-se quando os líderes do regime
autoritário começam a ponderar a possibilidad10e de uma reforma que conduza a
uma certa democracia política” (Linz, 2015, p. 113). Segundo Della Porta (2003) “uma
transição para a democracia inicia-se frequentemente com processo de liberalização,
que comporta um enfraquecimento da censura, um aumento dos espaços de
expressão por alguns grupos de interesse e uma oposição política, introdução de
algumas garantias legais para os indivíduos, libertação dos presos políticos e
regresso dos exilados” (Della Porta, 2003, p. 79).

Os processos de transição política concentraram-se particularmente nos


países do Leste Europeu, da América Latina e da África. No continente africano, os
processos de transição política não ocorreram de forma tão contínua como nos
países do Leste Europeu que sofreram um “efeito contágio” com a subida ao poder de
Michael Gorbatchov na antiga União Soviética e a consequente derrocada dos
regimes marxistas do leste europeu. Este facto, não só teve consequências notáveis
nos países do leste europeu, como provocou uma autêntica revolução em todo
mundo. Deste modo, segundo Querido (2011), “as pequenas ditaduras do terceiro
mundo que vinham conseguindo substanciais apoios do Ocidente […] viram-se
bruscamente ameaçadas de extinção” (Querido, 2011, p. 245).

Os casos de transição de regime no continente africano constituem uma boa


referência para estudos de transição política tendo em conta que a maioria dos
países daquele continente ter herdado um legado autoritário do colonialismo europeu
que se perpetuou depois da independência pela implantação de regimes
monopartidários de partido único que governaram durante muitos anos.

As possibilidades de haver uma consolidação democrática, no continente


africano suscitam muitas dúvidas. Muitos estudiosos consideram que muitos países
africanos não conseguiram concluir a primeira etapa do processo de transição
verdadeiramente e não apenas de fachada. De facto, muitos países daquele
continente nem sequer cumprem os princípios basilares do processo de transição,
como o facto de eleições livres e diretas. Diante deste cenário, considera-se a
consolidação democrática em África uma realidade muita remota. É praticamente
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unanime entre os académicos ao considerarem que os processos de transição no


continente africano originaram “democracias virtuais” e, que ainda faltam cumprir
muitos requisitos para atingir, pelo menos, uma democracia real.

Este trabalho focar-se-á no processo de transição política em África, mais


concretamente no caso de Cabo Verde, um país singular graças à sua composição
étnica e social que se carateriza por uma grande homogeneidade.

O objetivo principal deste trabalho é de compreender o processo de transição


do regime monopartidário para o regime multipartidário ocorrido em Cabo Verde nos
finais de 1990 que ditou a derrota do partido único que governara há quinze anos;
analisar a relação entre o Poder Central e o Poder Local durante o regime
monopartidário bem como a importância que este tinha em relação àquele. Do
mesmo modo pretende-se também analisar o caso do Poder Local depois da
transição, ou seja, durante o regime democrático, numa perspetiva comparada.

Deste modo, poder-se-á perguntar: qual era a autonomia do Poder Local antes
da transição democrática? No regime monopartidário, que critérios eram utilizados
para ‘eleger’ o representante máximo da Câmara e Assembleia Municipal? Será que
a democracia trouxe algo de novo ao Poder Local? Qual o papel do Poder Local para
a consolidação da democracia em Cabo Verde?

Para esta tarefa, analisar-se-á, primeiramente, o regime que antecedeu o


regime democrático, os condicionantes do processo de transição, a forma como
ocorreu esse processo de transição. Tentar compreender a dinâmica de transição
democrática ocorrida naquele país arquipelágico.

Para alcançar o objetivo deste trabalho, utilizou-se alguns métodos, como da


análise tipológica a fim de caraterizar os tipos de transições existente na literatura
política, com maior foco nos casos ocorridos no continente africano com as suas
particularidades e diferenças num quadro comparado com outros modelos
considerados referências. O esforço de tentar compreender o processo de transição
democrática em Cabo Verde, utilizou-se o método de análise de documentos dos
partidos, os boletins oficiais, na análise e comparação dos dados eleitorais das
primeiras eleições tanto legislativas como presidenciais, e análise dos programas do
governo.

Do mesmo modo, utilizou-se a análise de conteúdo, mais concretamente na


interpretação das revisões constitucionais. Tem-se a consciência das limitações
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metodológicas utilizadas para a elaboração deste trabalho, isto deve-se muito ao


facto da existência de grande carência em Cabo Verde, das fontes bibliográficas,
típicos de muitos países africanos, que privilegiaram mais as tradições orais mas
essa deficiência deve-se, sobretudo, ao fato de existir em Cabo Verde uma carência
de fontes escritas, típica das sociedades africanas que são, na sua maioria, de
tradição oral e, portanto, não possuem uma tradição de publicação e arquivo de
documentos e dados. Tal deficiência é ainda maior no campo político.

Este trabalho divide-se em três capítulos. No primeiro capítulo, far-se-á uma


revisão da literatura analisando as razões pela qual haja uma transição de um regime
para outro, descrever-se-á os tipos de transição de regimes dentro do âmbito da
Ciência Política, os tipos de transição que ocorreram em África, bem como as
condições que permitem classificar uma democracia consolidada e os entraves aos
processos de consolidação democrática nos países africanos. No segundo capítulo
descrever-se-á as características do regime monopartidário em Cabo Verde e o
enfraquecimento do partido único naquele arquipélago que sucedeu na abertura
política e na inauguração da democracia em Cabo Verde. Analisar-se-á também as
mudanças instituídas pelo primeiro governo eleito democraticamente após quinze
anos de regime do partido único. No terceiro capítulo, abordar-se-á sobre o Poder
Local numa perspetiva comparada entre o regime autoritário e democrático, e o papel
deste na consolidação da democracia em Cabo Verde.

No que se refere à formatação e elaboração desta dissertação, teve-se em


conta as normas para a elaboração e apresentação de Dissertações da Universidade
Lusófona de Humanidades e Tecnologias (ULHT). Deste modo, optou-se por uma das
duas normas aceites pela instituição, a norma da American Psychological Association
(APA).

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CAPÍTULO I FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA: TRANSIÇÕES E


CONSOLIDAÇÕES DEMOCRÁTICAS

1.1 A transição para a democracia e a consolidação democrática

O final da década de 80 e início dos anos 90 do século XX foi marcado por


grandes transformações políticas, que culminaram em processos de transição de
regimes autoritários para regimes democráticos. Tendo em conta que este trabalho
está focado na transição do regime autoritário para a democracia, pretende-se
esclarecer alguns conceitos e questões que se consideram importantes para este
tema: o que são regimes autoritários? O que significa uma transição para a
democracia? Quando é que uma democracia é considerada consolidada?

Entende-se por regimes autoritários,

“sistemas de pluralismo político limitado, cuja classe política não presta


contas dos seus atos, que não se baseiam numa ideologia de referência
devidamente articulada, mas se caracterizam por mentalidades próprias,
onde não existe uma mobilização política disseminada e em larga escala,
salvo em alguns momentos do seu desenvolvimento, e em que um líder, ou
por vezes um pequeno grupo, exerce o poder dentro de limites mal definidos
no plano formal, mas efetivamente previsíveis” (Linz, 2015, pp.18-19).

Trata-se, portanto, de um pluralismo limitado. No entender de Pasquino (2002)


“seria preferível falar de pluralidade de organizações”, tendo em conta que esse
regime apresenta inúmeras limitações sob vários pontos de vista. De acordo com este
autor, nos regimes autoritários “são poucas as organizações que têm autorização para
exercer o poder político, e as que existem são todas legitimadas pelo líder” (Pasquino,
2002, p. 286). Por outro lado, Linz (2015) afirma que o elemento mais característico
dos regimes autoritários é o elemento pluralista, mas um pluralismo limitado, se o
compararmos com o que existe nas democracias. Do mesmo modo, afirma o mesmo
autor, “esta limitação pode ser legal ou de facto, mais ou menos severa, reduzida a
grupos estritamente políticos ou extensível a grupos de interesses” (Linz, 2015, p. 19).
Neste sentido, pode dizer-se que os regimes autoritários caraterizam-se mais pela
mentalidade do que propriamente por uma ideologia. Por mentalidade entende-se,
segundo Linz (2015), citando Theodor Geister, “modos de pensamento e sentimento,
mais emocionais do que racionais, que fornecem modos não codificados de reagir face
às diferentes situações” (Geister apud Linz, 2015, p. 22). Portanto, a mentalidade é
uma atitude intelectual, uma predisposição psíquica movediça e que não tem forma.
Por outro lado, usando do mesmo modo a definição de Geister, citado por Linz (2015),
as ideologias são “sistemas de pensamento mais ou menos intelectualmente
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elaborado e organizado, amiúde em forma escrita, por intelectuais ou


pseudointelectuais ou com seu apoio” (Geister apud Linz, 2015, p. 22). A ideologia é
um conteúdo intelectual, uma reflexão a posteriori, ou seja, a ideologia vem depois, ao
contrário da mentalidade que é prévia.

Tendo em conta o tema, este trabalho, focar-se-á nos processos de transição


de regimes autoritários para regimes democráticos. Neste sentido, a pergunta: o que
significa uma transição democrática? Quando é que uma democracia é considerada
consolidada?

“A transição do autoritarismo para a democracia tende a iniciar-se quando os


líderes do regime autoritário começam a ponderar a possibilidade de uma reforma que
conduza a uma certa democracia política” (Linz, 2015, p. 113). Por sua vez, Della
Porta considera que

“uma transição para a democracia se inicia frequentemente com processo de


liberalização, que comporta um enfraquecimento da censura, um aumento
dos espaços de expressão por alguns grupos de interesse e uma oposição
política, introdução de algumas garantias legais para os indivíduos, libertação
dos presos políticos e regresso dos exilados” (Della Porta, 2003, p. 79).

Por outro lado, Garretón (1991) afirma que uma transição democrática é o
princípio de um regime democrático que até então não se identificava com a
democracia. Portanto, uma democratização política é entendida como um conjunto de
processos que englobam num todo os mecanismos da transição do regime autoritário
para a democracia. Tendo como ponto de partida as transições ocorridas nos finais
dos anos 80 e inícios dos anos 90, Garretón (1991) considera que mesmo quando se
concretiza uma transição de um regime para outro, neste caso, de autoritarismo para a
democracia, não é suficiente para resolver todos os problemas da sociedade, visto
que, não passa de um mero processo político. A transição apenas instaura o primeiro
governo eleito democraticamente, isto é, a partir das eleições livres e diretas. Contudo,
a transição per se, não resolve os problemas dos cidadãos, pois isto só acontece
quando esta estiver totalmente consolidada.

Segundo Linz (2015), geralmente, a transição começa com um acontecimento


dramático, ainda que a força desse acontecimento seja amiúde a culminação de uma
série de acontecimentos. Em consequência, “os governantes autoritários assumem
frequentemente o compromisso público e oficial de realizar eleições livres e de
devolver o poder ao eleitorado numa determinada data” (Linz, 2015, p. 122). Também
a transição pode ocorrer de um golpe no qual se obriga os governantes a abandonar o
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poder, deixando o poder de forma temporária nas mãos dos revolucionários, que se
comprometem a devolver o poder ao eleitorado com a realização de eleições.

De facto, uma das condições para a transição democrática é a marcação de


eleições livres. Contudo, isso não é suficiente para considerar uma transição completa.
Porque “não se pode considerar a democracia como estando plenamente estabelecida
até que os representantes eleitos criem ou restaurem as regras constitucionais básicas
e se definam as funções dos diferentes órgãos do governo” (Linz, 2015, p. 123). Do
mesmo modo, a fase de elaboração da Constituição faz parte do processo de
transição, uma vez que a estabilidade ou instabilidade política futura depende muito
desse período da redação da Constituição. Portanto, “a aprovação de uma
Constituição que apenas satisfaz a maioria e é totalmente recusada pela oposição,
dificilmente poderá ser considerada como uma moldura adequada à política quotidiana
e à estabilidade do governo” (Linz, 2015, p. 123).

Apesar das eleições serem as condições imprescindíveis para a


democratização, não se excluem outros componentes que se consideram
fundamentais para cogitar um regime democrático. Schmiter e Karl (1991) pressupõem
que um regime democrático moderno deve garantir na Constituição os direitos dos
cidadãos e que haja uma competitividade legal entre aqueles que queiram governar.
Deste modo, o sistema político oferece múltiplos canais e processos de expressão de
interesses permitindo que estes interesses, sejam eles individuais ou coletivos,
possam ser representados e, apelando sempre à responsabilidade dos políticos pelos
seus atos perante os cidadãos.

A democratização de um regime pressupõe muito mais do que um simples


processo de transição, pois, é de evitar uma analogia do processo de transição com o
de liberalização política, e deste com o de democratização. De facto, é habitual
confundir-se o processo de liberalização com o de democratização, pois, são
processos diferentes que acontecem em momentos exclusivos. Qualquer processo de
liberalização é antecedente a uma democratização. Contudo, nem todos os casos de
liberalização conduzem necessariamente à democratização. Segundo Linz e Stepan
(1999), a liberalização acontece normalmente num contexto não-democrático que
permite algumas mudanças no plano social e político. Neste sentido, diminui o nível de
censura, causando o enfraquecimento da opressão política, dando maior flexibilidade
no seio da sociedade, permitindo o surgimento de organizações autónomas e, uma
maior tolerância à oposição política. Por outro lado,

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“o processo de liberalização reduz os incentivos à participação nas


instituições do regime e abre espaços às tentativas de pôr à prova os limites
da liberdade e do poder, surtindo isto muitas vezes o efeito contrário, ao
agudizar a repressão, o que, por sua vez, dececiona as expetativas e
aumenta as frustrações” (Linz, 2015, p. 108).

Por sua vez, Weffort (1989) afirma que a liberalização seria a primeira fase de
um processo de transição democrática, isto é, a liberalização significa que as pessoas
se sentem apenas protegidas do exercício arbitrário do poder. Porém, a
democratização significa a participação nas decisões, ou seja, no exercício efetivo da
cidadania tanto em seus direitos quanto em seus deveres

De acordo com Huntington (1994), pode identificar-se três tipos de transição


política. Primeiro, “a transição por transformação”. Neste tipo de transição são os
próprios líderes do regime autoritário que tomam a iniciativa de modo a permitir uma
abertura política. Contudo, ocorre que em muitos casos destas transições, os líderes
dos regimes autoritários têm essa iniciativa partindo do pressuposto que vão manter-
se no poder, mesmo proporcionando as eleições. Segundo, “substituição ou rutura”.
Neste tipo de transição, a iniciativa parte da oposição, cujo objetivo consiste na
mudança política. É de realçar que nestes casos, a maioria dos líderes no poder são
conservadores e, deste modo, não são favoráveis à mudança. Entretanto, o início da
democratização só é possível, neste caso, porque a oposição aumenta a sua força de
tal modo que acaba por derrubar o regime autoritário. Terceiro, “transição por
transtituição”. Neste caso, a democratização é fruto de esforços e compromissos entre
os que governam e a oposição.

Em Cabo Verde, o processo de transição política teve a sua origem no então


partido único, o PAICV, que nas primeiras eleições, realizadas em janeiro de 1991,
estava confiante num resultado favorável, que lhe permitisse continuar a governar.
Neste contexto, afirma Évora (2004), o próprio secretário geral do então partido no
poder ficou surpreso com os resultados obtidos nessas eleições, porque mesmo antes
das eleições fizera uma sondagem às populações e a mesma garantia a vitória do
PAICV. De facto, nas primeiras eleições, o PAICV não obteve o resultado que
almejara, pois, o seu concorrente ganhou com a maioria absoluta. O resultado das
eleições não deixou surpreso apenas o PAICV, mas também o próprio partido que
ganhou, o MPD, pois, tinha sido criado poucos meses antes das eleições e tinha
consciência das suas limitações face a um partido que governava há 15 anos. Um dos
objetivos do recém-criado partido, nessas primeiras eleições, era, primeiramente,
marcar o seu espaço como força de oposição a um partido que até então não tinha

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tido oposição. A este propósito, afirmou Querido, “uma força política acaba de se
construir, sem qualquer programa sério de governação e sem qualquer outro objetivo
anunciado que não o de destruir e ilegalizar o PAICV” (Querido, 2011, p. 251).

Neste caso concreto da transição política em Cabo Verde, pode dizer-se, antes
de mais, que se verificou aquilo que Huntington (1994) designou como a terceira vaga
de democratizações, em que a maioria dos partidos da oposição eram recém-criados e
apresentavam-se diante das populações como solução ou alternativa ao partido único,
do qual o povo já estava exausto. Estes partidos assumiram-se como uma nova
esperança do povo face ao regime.

Mas no caso de Cabo Verde, pode dizer-se também que o processo de


transição democrática é um misto de transformação e transtituição. Do ponto de vista
da transformação, houve a iniciativa do líder autoritário a dar os primeiros passos rumo
à mudança. Por outro lado, do ponto de vista da transtituição, é de salientar o papel
preponderante da oposição no que se refere à definição das regras relevantes do
processo de mudança política e do novo paradigma que se avizinhava.

Os modelos de transição referidos por Huntington abrangem sobretudo o


contexto das transições ocorridas na América Latina e no Leste Europeu, ao passo
que este trabalho tem o seu foco na realidade africana, mais concretamente, na
transição democrática em Cabo Verde. Apesar disso, julgamos ser pertinente analisar
as transições democráticas ocorridas no continente africano fazendo analogia com
essas transições ocorridas pela mesma altura na América Latina e no Leste Europeu.

Serão totalmente diferentes as transições ocorridas nesses três continentes? O


que têm em comum? No que é que diferem? À primeira vista, a resposta é que são
semelhantes, apesar de cada continente e até mesmo cada país (do mesmo
continente) ter peculiaridades específicas, que derivam da cultura de cada continente
e, de forma mais específica, de cada país. Uma segunda abordagem depara-se com
um denominador em comum; o facto de todos, ou a maioria, serem países não
democráticos que almejam democratizar o regime. É evidente que cada um deles
iniciou, uns de forma mais rápida e outros mais lenta, o seu processo de
democratização do regime. No entanto, como já se sublinhou, cada país tem o seu
contexto interno próprio e influências externas do continente no qual está inserido,
muitas vezes dos países vizinhos. Como se sabe, no caso africano, a maioria dos
países que dele fazem parte são profundamente marcados pela multiplicidade

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religiosa, étnica e cultural. Esta multiplicidade dificultou, em muitos países, o processo


de transição, bem como a consolidação da democracia.

O continente africano foi profundamente marcado no início da década 90 pela


vasta onda de transições políticas. Segundo Nzouankeu (1991), as transições
democráticas no continente africano apresentam singularidades próprias. Segundo o
mesmo autor, podem considerar-se três modelos inéditos de transições: Transição por
via de uma conferência nacional; transição imposta pela população e transição feita
pelo regime. No primeiro caso, o objetivo é fazer uma transição pacífica. Benin é o
país africano protótipo deste modelo de transição rumo à democracia. Segundo Bokalo
(1993), no início dos anos 90, Benin vivia uma profunda crise político-económica que
levou a vários protestos da população. Diante do sucedido, o regime autoritário
organizara uma conferência nacional, cujo objetivo era o diálogo, a fim de as forças
sociais e políticas chegarem a um acordo de modo a porem um término ao regime
autoritário e iniciarem a consequente transição para a democracia. De facto, “este
modelo de transição alargou-se pela África em 1991, seguindo o exemplo do Benin,
como foi, por exemplo, o caso do Gabão, Congo, Mali, Togo, Níger e Zaire” (Bokalo,
1993, p. 16).

No segundo caso, transição imposta pela população, segundo Nzouankeu,


(1991), a reforma política é antecedida de violência e, em muitos casos, de forma
extrema, obrigando os governantes a fazerem reformas, de modo a pôr o fim à crise e
evitar novos atos de violência e desordem social. Como exemplo deste tipo de
transição, temos os casos de Argélia e Costa do Marfim. Nesses países, os níveis de
violência foram tão extremos, que obrigaram o regime autoritário a reconhecer novos
partidos da oposição e a calendarizar o processo de transição democrática
(Nzouankeu, 1993, p.403).

O terceiro caso, a transição feita pelo regime, é semelhante à transição imposta


pela população. A diferença consiste na antecipação do governo, o qual promete
reformas políticas a fim de evitar atos de violência popular. Ou seja, o governo,
apercebendo-se do aumento do nível de descontentamento da população, promete
reformas no sistema político de modo a evitar atos de violência. Segundo Nzouankeu
(1991), neste tipo de transição existem duas vertentes. A primeira, uma vontade
sincera do regime autoritário em democratizar-se. A segunda, uma estratégia política
do regime autoritário para serenar a população e evitar uma crise política, sendo a
transição apenas um novo instrumento de dominação política.

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A transição democrática em cabo verde: o caso do poder local

Analisou-se, até ao momento, os tipos de transição política que podem ocorrer


e as suas particularidades. Mas é fundamental que se analise também as razões ou
motivos que levaram regimes autoritários a mudarem as regras que os suportavam.

Muitos regimes autoritários viram-se forçados à abertura política devido a perda


da legitimidade e, em muitos casos, devido ao insucesso económico. Os processos de
transição política (terceira vaga) concentraram-se particularmente nos países do Leste
Europeu, da América Latina e da África. No continente africano, esses processos não
ocorreram de forma tão contínua como nos países do leste europeu, que sofreram um
“efeito contágio” com a subida ao poder de Michael Gorbatchov na antiga União
Soviética e a consequente derrocada dos regimes marxistas. Este facto não só teve
consequências notáveis nos países do leste europeu, como provocou uma autêntica
revolução em todo mundo. Deste modo, “as pequenas ditaduras do terceiro mundo
que vinham conseguindo substanciais apoios do Ocidente e que sempre se
posicionaram como peões no xadrez da disputa entre os dois grandes blocos viram -
se, bruscamente, ameaçadas de extinção” (Querido, 2011, p. 245). De facto, os líderes
do mundo ocidental decretaram o isolamento e a exclusão do mercado mundial dos
países, principalmente, os pequenos e fracos, caso não adotassem as regras do
pluralismo democrático e, sobretudo, uma completa abertura à iniciativa privada de
todos os setores da vida económica. Portanto,

“na nova ordem estabelecida, aos governantes dos pequenos países cuja
sobrevivência dependia, em larga medida, da ajuda do Ocidente, não restava
outra saída: contrafeitos ou não, preparados ou não, tiveram que, à pressa e
por vezes desajeitadamente, renegar as suas antigas convicções ou
conveniências e declarar nos respetivos países o pluralismo político”
(Querido, 2011, p. 245).

Normalmente, os regimes autoritários de partido único asseguravam a sua


legitimidade através do nacionalismo e da ideologia. Ora, nos finais da década de 80,
muitos desses regimes entraram em decadência e as desigualdades sociais tornaram-
se mais evidentes, pelo que só a ideologia não bastava. Segundo Huntington (1994),
esta decadência foi mais sentida nos regimes de cariz comunista (marxista-leninista),
pois o regime tornou-se num claro obstáculo ao crescimento económico, impedindo
esses países de se expandirem economicamente. O fator económico teve um papel
fundamental nesse processo de transição democrática. O aumento do preço do
petróleo, limitando as possibilidades de crescimento económico dos países de
ideologia marxista-leninista, provocou desagrado contra o regime. Por outro lado, onde
se verificou um crescimento económico e a consequente melhoria de vida das

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A transição democrática em cabo verde: o caso do poder local

populações, principalmente da classe média, esta pressionou os líderes do regime a


uma mudança política.

Outro fator influente no enfraquecimento dos regimes autoritários e no


processo de transição política é o papel da Igreja Católica, muito mais sentida no
Leste Europeu. Segundo Huntington (1994), em muitos destes países, a Igreja
Católica teve um papel importante, ao fazer uma forte oposição aos regimes
autoritários. No caso de Cabo Verde, também houve uma certa “tensão” entre o
governo autoritário e a Igreja Católica local. Évora (2004) defende, de um modo
genérico, que a Igreja Católica não chegou a assumir um papel de extrema relevância
no processo de transição para a democracia em Cabo Verde, pois manifestou o seu
apoio imediato ao partido da oposição, devido aos ressentimentos do clero católico
local com o regime (Évora, 2004, p. 31). Contudo, esta ideia foi refutada por Fafali
Koudawo (2011), o qual afirma que “a Igreja Católica desempenhou um papel muito
importante enquanto entrave ao poder do PAIGC/CV, […] como força de resistência
ao projeto de controlo total da sociedade pelo partido único” (Koudawo, 2011, p. 122).

Entretanto, dos fatores referidos, é sem dúvida o fator externo, principalmente a


nível económico, que teve mais influência nos processos de transição democrática no
continente africano. Como se sabe, os países africanos têm uma vasta dependência
das ajudas externas, de uma forma especial aqueles que não têm muitos recursos
naturais, como é o caso de Cabo Verde. Nesta perspetiva, poder-se-á dizer que um
dos fatores preponderantes na aceleração do processo de transição no continente
africano está intimamente ligado à ajuda externa, mais especificamente ao setor
económico.

No caso concreto de Cabo Verde, poder-se-á distinguir 5 fatores fundamentais


que influenciaram o processo de transição para a democracia. O primeiro é comum a
quase todos os países africanos: a pressão exterior para uma mudança política, ou
seja, para a democracia, sob a ameaça de não receberem ajuda, principalmente
financeira. Tendo em conta que o maior aliado do PAICV era o comunismo do Leste
Europeu, que por sua vez já não podia ajudá-lo por causa da derrocada dos regimes
marxistas e a consequente subida ao poder de Michael Gorbatchov na antiga União
Soviética, o partido único em Cabo Verde só tinha uma alternativa: ceder à pressão do
Ocidente.

O segundo fator refere-se especificamente ao setor económico. De facto, o


processo de liberalização da economia, iniciado em meados dos anos 80 pelo regime,
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obrigou uma mudança no seio do próprio regime político. A necessidade de dar um


novo dinamismo à economia levou o governo autoritário a adotar novas linhas de
desenvolvimento a nível económico, dando mais possibilidades de investimento ao
setor privado em áreas que até então eram da exclusividade do Estado. “O fraco
desempenho da economia estatizada tinha originado desemprego e desequilíbrios
sociais, e de forma a evitar uma revolta da população, os líderes do regime viram -se
obrigados a darem início ao processo de transição democrática” (Silva, 1997, pp.3-7).
Por outro lado,

“Nos finais dos anos 80, os indicadores gerais do desenvolvimento do país


eram ainda bem pouco encorajadores: as ligações com o exterior e a
integração económica do arquipélago no continente continuavam
extremamente difíceis; as pequenas dimensões do mercado interno, aliadas
ao baixíssimo poder de compra da população cabo-verdiana, continuavam
sendo um sério obstáculo a qualquer atividade económica” (Querido, 2011, p.
235).

O terceiro fator está relacionado com a relação do partido único com a Igreja
Católica em Cabo Verde, que não era muito saudável devido a algumas decisões
políticas do partido que eram contrárias à doutrina da Igreja Católica. Neste sentido,
afirma Almada (2011), os embates do Estado com a Igreja Católica, ao tomar certas
medidas que não tiveram suficientemente em conta nem o momento, nem a realidade
sociológica e cultural cabo-verdiana, como foi o caso da Lei da Reforma Agrária de
1982 e a Lei da Interrupção Voluntária da Gravidez, em 1986, em nada facilitaram o
bom relacionamento entre as duas instituições. Tais políticas do governo de partido
único levaram a Igreja Católica local a uma reação através do seu representante
máximo em Cabo Verde, o bispo D. Paulino Évora.

No Natal de 1990 na mensagem dirigida aos fiéis católicos de Cabo Verde,


dizia o chefe máximo da Diocese:

“(…) aos católicos está vedado, está proibido dar o seu voto a partidos cujos
princípios ideológicos, os objetivos e processos que preconizam, a realização
histórica para que tendem, se lhes afigurem incompatíveis com a conceção
cristã do homem e da sua vida em sociedade” (Évora, 1990, p. 9)

Segundo o bispo, era ponto assente que não merecem a confiança e o voto os
programas que não asseguram o respeito pelos valores mais fundamentais, como a
religião, a família, a vida, mesmo ainda dentro do ventre materno. Portanto, tendo em
conta que mais de 90% da população cabo-verdiana era católica, esta tensão entre a
Igreja Católica local e o governo influenciou bastante os eleitores que puniram, através
de votos, o partido único nas eleições de janeiro de 1991.

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O quarto fator adveio da divisão e conflito de interesses no seio do próprio


partido. Com medo de perderem os seus cargos, os elementos mais conservadores
dentro do partido não eram recetivos à abertura política. Deste modo,

“os elementos mais conservadores, aqueles que receavam perder, com a


abertura, o estatuto privilegiado de que beneficiavam, apesar dos pesares,
tiveram que ceder e reconhecer que era impossível manter por muito mais
tempo o regime de partido único. O que esperavam poder ainda conseguir
era retardar e controlar todo o processo de mudança” (Querido, 2011, p.
246).

O ponto fundamental foi a mudança ministerial feita pelo então secretário geral
do partido, Pedro Pires, poucos dias antes do Congresso extraordinário do PAICV, que
provocou divergências e desagrado no interior do próprio partido. De facto,

“Osvaldo Lopes da Silva, profundamente revoltado por achar que tinha sido
injustamente demitido do cargo de Ministro dos Transportes e Turismo, em
termos duros e pouco usuais entre os camaradas vindos da Guiné, chamou
Pedro Pires de ‘um simples comandante de retaguarda’ enquanto ele tinha
lutado de armas na mão, contrariando assim o acordo de cavalheiros
inicialmente firmado” (Querido, 2011, p. 248).

Diante deste cenário, rapidamente surgiram os primeiros sinais claros de


mudança, que provocaram uma grande agitação no povo e uma onda que foi
crescendo cada vez mais.

O quinto fator está relacionado com o papel da oposição. O surgimento de uma


nova força política, o MPD (Movimento para a Democracia), trouxe novo rumo ao
processo de reforma política. Sem um programa muito elaborado, o Movimento que
acabara de surgir apostou em pequenas frases fáceis de fazer passar: “O PAIGC/CV é
o causador de todas as desgraças do país; a democracia é o remédio milagroso para
todos os males; o Movimento nascente é a encarnação da própria democracia”
(Querido, 2011, p. 249). Essas mensagens facilmente surtiram efeito junto da
população, principalmente nas camadas mais desfavorecidas

Até ao momento falou-se dos processos de transição de regimes autoritários


para regimes democráticos, dos tipos de transição política existentes, das
peculiaridades de transição política no continente africano, bem como das suas
causas e consequências. Agora, centrar-nos-emos nos processos de consolidação
democrática e nos requisitos necessários para classificar um regime como
consolidado.

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O processo de transição política de um regime autoritário para um regime


democrático não termina logo a seguir à alternância de regime. É necessária a
consolidação do regime democrático. A maioria dos teóricos da democracia defende
que um processo de mudança, de um regime autoritário para a democracia, passa
necessariamente por dois processos. O primeiro é a transição do regime autoritário
para o democrático, e o segundo, a consolidação do regime democrático recém-
instalado.

Quando termina a transição para a democracia? Como saber quando se


consolidou a democracia?

Não há uma data concreta ou um momento preciso para determinar o término


do processo de transição. Contudo, “o êxito da realização de eleições livres, a
convocação de um novo Parlamento, de cuja confiança o executivo dependerá, ou a
tomada de posse de um novo presidente marcam o fim desse período” (Linz, 2015, pp.
122-123).

Segundo Weffort (1992), a maioria dos regimes democráticos que surgiram na


terceira vaga da democratização revelaram algumas dificuldades em se consolidarem.
Muitos deles não foram além das eleições e não avançaram para o processo de
consolidação. Nestes casos, o governo é escolhido de acordo com eleições regulares,
baseadas no voto secreto e no sufrágio universal, podendo existir uma certa
competição entre os partidos políticos. Contudo, apesar dos direitos de associação até
poderem ser respeitados, existe um défice de outros direitos e liberdades essenciais
para que sejam considerados regimes democráticos.

Segundo considera O’Donnell (1994), se uma transição não der um passo à


frente rumo à consolidação, corre o risco do insucesso da democracia. Para este
autor, caso não seja consolidada a democracia instaurada, pode dar-se a morte da
mesma, a qual tanto pode ser uma morte “súbita”, através de golpe militar, como uma
“morte lenta”, quando desaparecem aos poucos os pilares essenciais da democracia.
Para diminuir o risco de um retrocesso do regime autoritário, é necessário que os
atores democráticos unam esforços para conduzir a transição do regime à
consolidação democrática.

O processo de consolidação democrática exige algumas condições sine qua


non. “Falar de consolidação democrática exige analisar três condições mínimas e
prévias: existência de um Estado, transição democrática completa e um executivo que

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governa democraticamente” (Linz, 2015, p. 130). Contudo, existem outras


características ou condições inerentes a estas três, como por exemplo, a dimensão
constitucional, os comportamentos e as atitudes.

Quanto à dimensão constitucional: “um regime democrático está consolidado


quando tanto as forças governamentais como as que estão fora do governo se
sujeitam e habituam a resolver os conflitos de acordo com leis específicas,
procedimentos e instituições sancionados pelo novo processo democrático” (Linz,
2015, p. 131). Portanto, quando todos os intervenientes políticos se
consciencializarem que o conflito político se resolve seguindo normas estabelecidas, a
democracia torna-se incontestada.

Do ponto de vista dos comportamentos, “um regime democrático está


consolidado quando não há atores nacionais, sociais, económicos ou institucionais a
despender recursos significativos em tentativas de estabelecer regimes não
democráticos ou a consumar uma sucessão” (Linz, 2015, p. 131). Deste modo, quando
não há nenhuma tentativa de derrubar o regime democrático, quer pelas forças
internas quer pelas forças externas, por partes de grupos políticos, a democracia
torna-se o fundamento de toda a ação política.

Do ponto de vista das atitudes,

“o regime democrático considera-se consolidado quando uma maioria


expressiva da opinião pública, ainda que o país se debata com graves
problemas económicos e exista uma insatisfação geral com o governo eleito,
acredita que as instituições e os procedimentos democráticos constituem a
forma mais apropriada ao governo da vida coletiva, e o apoio a alternativas
antissistema apenas provém de uma minoria mais ou menos excluída das
forças pró-democráticas” (Linz, 2015, p. 131).

Assim, quando todos acreditam, mesmo em tempos de crise, que a única forma
de dar a volta à situação deve ser conseguida de acordo com as regras democráticas,
a democracia torna-se a única forma de fazer política.

Deste modo, considera-se uma democracia consolidada quando “nenhum dos


principais atores políticos, partidos ou interesses organizados, forças ou instituições,
considerarem haver alternativa aos processos democráticos de chegar ao poder, e
onde nenhuma instituição ou grupo político tem direito a vetar a ação dos governantes
democraticamente eleitos” (Linz, 2015, p. 124). Portanto, há consolidação “quando “a
democracia é vista como o único jogo possível na sociedade (the only game in town)”
(Linz, 2015, p. 124).

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Para além destas condições, Linz (2015) apresenta mais cinco categorias.
Primeiro, a necessidade de criar condições favoráveis ao progresso de uma sociedade
civil livre e ativa. Entende-se, neste caso, por sociedade civil o “espaço onde se
propicia a emergência de grupos, movimentos e indivíduos relativamente autónomos,
que se auto-organizam e procuram veicular valores, criar associações e solidariedades
e promover os seus interesses” (Linz, 2015, p. 132).

Segundo, a necessidade de uma sociedade política autónoma. Neste caso,


entende-se por sociedade autónoma “aquele espaço onde os atores políticos
competem pelo legítimo direito de controlar o poder público e o aparelho de Estado”
(Linz,2015, p. 133).

Terceiro, império da lei no qual todos os atores políticos, principalmente o


governo e o aparelho da administração pública, se submetem de forma a garantir as
liberdades individuais e de associação. Isto significa que “os atores políticos mais
importantes, em especial o governo democrático e o aparelho do Estado, têm de
prestar contas e habituar-se ao império da lei” (Linz, 2015, p. 134). Por outras
palavras, um Estado sujeito à lei: “a consolidação da democracia exige um Estado
sujeito ao império da lei, com mecanismos de constrangimento incorporados” (Linz,
2015, p. 135).

Quarto, a necessidade de uma burocracia do Estado ao dispor do novo


governo democrático. Significa isto que “uma democracia moderna requer a força
suficiente para comandar, regular e cobrar impostos. E para isso precisa de dispor de
um Estado funcional, com uma burocracia utilizável pelo novo governo democrático”
(Linz, 2015, p. 137).

Quinto, a necessidade de uma sociedade económica institucionalizada, visto


que “as democracias consolidadas e modernas exigem a construção e a aceitação de
um conjunto de normas sociopolíticas, de instituições e de regulamentos que medeiam
as relações do Estado com o mercado” (Linz, 2015, p. 137).

Em jeito de conclusão, pode dizer-se que uma democracia consolidada


compreende cinco domínios intimamente ligados, cada um com a sua função própria,
mas ineficazes quando agem de forma isolada, ou seja, só se atingem resultados
satisfatórios, ou eficazes, quando eles agem como se fossem um só. É um sistema
interativo, porque

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“numa democracia a sociedade civil precisa do apoio de leis que garantam a


liberdade de associação, e precisa do auxílio da burocracia do Estado de
modo a garantir que aqueles que tentam ilegalmente coartar tal direito sejam
punidos. A sociedade política está incumbida da gestão da burocracia do
Estado e da estrutura reguladora que guia e baliza a sociedade económica”
(Linz, 215, p. 140).

Dito de outra maneira, cada um dos domínios do sistema democrático exerce


impacto sobre as outras áreas. Num processo de consolidação, as mediações entre
esses domínios são constantes e cada um deles é influenciado pelos outros.

Segundo O’Donnell (1991), a maioria dos países em que se instalaram regimes


democráticos na ‘terceira vaga da democracia’ estão aquém de consolidarem as suas
democracias, visto que esbarraram com alguns fatores que lhes impossibilitaram
institucionalizar o regime democrático. Este autor considera que estes regimes
herdaram uma crise económica e social colossal, impossibilitando o processo de
consolidação e correndo assim o risco de um retrocesso ao antigo regime.

No caso concreto de Cabo Verde, a alternância governativa ocorreu dez anos


após às primeiras eleições livres e diretas. Compreende-se que, nos primeiros dez
anos, o país não foi além de eleger um governo democrático, ficando na
impossibilidade de dar um passo à frente rumo à consolidação. É evidente que nesses
dez anos algo foi feito, contudo, insuficiente para consolidar o regime democrático. É
natural e comum muitos países do terceiro mundo estagnarem depois da transição
democrática, devido às grandes dificuldades que encontram os partidos ao chegarem
ao poder. De facto,

“a dificuldade das democracias do terceiro mundo em consolidarem-se está


intimamente ligada à incapacidade de se criar um conjunto de instituições
democráticas capazes de se transformarem em pontos decisivos do poder
político. Daí, uma democracia não-institucionalizada, caracterizada por
instituições débeis e a persistência de outras instituições que, mesmo sem
serem formalizadas, têm uma grande influência na elaboração de políticas
públicas” (O’Donnell, 1991, p. 26).

É de realçar que a transição de um regime autoritário para um governo eleito


democraticamente não significa, nem garante, a consolidação do regime. Neste
sentido, muitos atores políticos enganaram-se ao não se preocuparem em criar
instituições que garantissem a instalação de um regime democrático, ou seja, a
institucionalização da democracia. Não basta apenas uma sociedade civil, uma
sociedade política autónoma, uma economia e um Estado eficiente, é necessário
também um princípio de accountability para a consolidação efetiva do regime
democrático. Segundo O’Donnell (1994), sem este princípio torna-se difícil preservar
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os direitos da democracia e, por outro lado, aumentam os riscos de arbitrariedade.


Portanto, uma democracia consolidada exige a responsabilização ética não só dos
governantes, mas também de todo o aparelho da administração pública perante os
cidadãos. Deste modo, accoutability

“implica que todos os registos financeiros sejam sujeitos à inspeção, e todos


os funcionários da função pública, principalmente os que lidam com o
dinheiro público, têm a obrigação de agirem de forma transparente (…) e
aqueles que tratam o tesouro público como se do seu património pessoal se
tratasse, devem ser responsabilizados e punidos com a pena de prisão” (Linz
e Stepan, 1999, p. 216).

A maioria das democracias do terceiro mundo registam um nível muito de baixo


de accountabily, uma vez que nestas democracias vigora o sistema patrimonialista,
embora seja contra funcionamento do Estado de direito. Recorde-se que o Estado de
direito “é fundamental no processo de democratização, uma vez que, sem ele, os
cidadãos não poderiam exercer, em liberdade e independência, os seus direitos
políticos” (Linz, 2015, p. 135).

Terminamos, assim, este ponto, que teve como objetivo principal a


conceitualização de termos como a transição e a consolidação dos regimes
democráticos, bem como os tipos de transição e as suas causas, e também as
características que permitem que um regime seja classificado como sendo
consolidado. Como vimos, a transição de um regime autoritário para a democracia e a
consolidação democrática são processos diferentes e que ocorrem em momentos
destintos.

1.2 As consolidações democráticas em África

Existe uma ideia pouca favorável e generalizada sobre a concretização efetiva


de transição democrática e a consequente democratização do regime nos países
africanos. São vários os fatores, e de diversa índole - por exemplo, política, social,
económica e cultural – que têm dificultado a consolidação da democracia no
continente africano. De acordo com Flanary (1998), o fator político foi o que m ais
influenciou os processos da democratização.

Muitos países africanos começaram o processo de transição do regime


autoritário para a democracia. Contudo, muitos ficaram parados nesta primeira fase,
sem avançarem para a etapa seguinte, que seria a consolidação do regime. Uma das

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condições mínimas e prévias para uma transição e consolidação democrática é haver


um governo eleito através de eleições livre e diretas, além de uma total separação dos
poderes, a saber: Legislativo, Executivo e Judicial.

No continente africano, nota-se um grande défice no que respeita à transição


democrática, isto é, poucos são os países daquele continente que completaram as
suas transições. Nos finais dos anos 90, muitos dos regimes autoritários iniciaram o
processo de transição democrática, permitindo, assim, a legalização de novos partidos
políticos, direitos de associação, reformas constitucionais, a fim de proporcionar
eleições livres e diretas. Contudo, vários autores defendem que o processo da
abertura política em África não passou de uma fachada, como testemunham as muitas
fraudes eleitorais. Nesse sentido, afirma Bokalo (1993), a maioria dos regimes
autoritários africanos centralizou o processo eleitoral, de modo a controlar o aparelho
do Estado. Por sua vez, Joseph (1998) considera que o facto de a maioria dos países
africanos permitir que a população vá às urnas não significa que estas eleições sejam
livres, visto que não é garantido um verdadeiro direito de escolha. Em muitos casos, a
liberdade de escolha é retirada ao povo através da pressão militar e policial, que
desempenha uma enorme influência sobre os processos eleitorais. Deste modo, “os
resultados das transições políticas em África são casos de ‘democracias virtuais’, pois
existe apenas um funcionamento ilusório das instituições democráticas” (Joseph,
1998, p. 4).

Muitos autores consideram as democracias no continente africano


“democracias virtuais”, tendo em conta que o processo de transição apenas se iniciou
devido a forte pressão internacional, obrigando as autoridades à abertura política, ou
seja, ao multipartidarismo. Acontece que a maioria desses países não apresentavam
condições internas suficientes para este feito. As imposições por parte dos países
benfeitores não deixaram aos países africanos outra escolha, senão ceder à pressão e
adotarem um “constitucionalismo de aparência”, a fim de conseguir ajuda
internacional.

Uma outra condição básica para a consolidação democrática é a existência do


Estado. No continente africano, pela sua heterogeneidade, religiosa, étnica, cultural,
torna-se mais difícil consolidar o Estado. Esta multiplicidade torna-se um obstáculo á
consolidação. É de salientar que “existe mais do que uma nação viva no seio do
Estado e que, iniciada uma transição para a democracia, uma situação económica
difícil pode prolongar-se” (Linz,2015, p. 140). Nesses casos, o caminho a seguir é o

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das políticas que sejam capazes de aumentar a homogeneidade cultural, ou seja,


políticas de incremento do Estado-nação. A mensagem dos líderes deve passar pela
consciencialização do povo de que o Estado deve ser ‘da e para nação’. Por esse
motivo,

“nas Constituições que escrevem e nas políticas que se desenvolvem, a


língua dominante torna-se a única oficial e, ocasionalmente, a única aceitável
na burocracia do Estado e na educação; a religião da nação é favorecida e a
cultura da nação dominante é privilegiada nos símbolos nacionais” (Linz,
2015, p. 141).

Dito de outra forma, “as políticas democráticas na construção do Estado são


todas aquelas que dão ênfase a uma cidadania alargada e inclusiva e que conferem
direitos iguais a todos” (Linz, 2015, p. 141).

O outro fator que se pode identificar como obstáculo à consolidação no


continente africano é a herança autoritária, que remonta aos tempos da colonização e
foi reavivada no pós-independência com a introdução de regimes autoritários. É neste
sentido que Flanary (1998) considera que a estrutura autoritária tem impedido o
crescimento e desenvolvimento da democracia em África.

É interessante sublinhar que uma das razões pelas quais os líderes africanos
iniciaram à luta pela independência era precisamente o facto de acreditarem que como
Estados independentes obteriam mais-valias no que se refere ao bem-estar do povo,
através da diminuição da pobreza e da instauração da paz. Contudo, tal não passou
de uma utopia, uma vez que depois de alcançarem a independência nada disso se
concretizou, pelo contrário, mantiveram as estruturas centralizadas e autoritárias da
época colonial sob novo rosto, o sistema de partido único. É evidente que houve uma
certa descontinuidade após a independência, mas também continuou, de certa
maneira, uma herança deixada pelos antigos colonos, como por exemplo, o aspeto
económico e a burocracia do Estado.

Com um grau elevadíssimo de centralismo e uma economia fraca, o Estado,


nesses países africanos, tornou-se numa via principal para ascensão social. Nesse
sentido, afirma Falton (1990), a classe dominante em África é aquela que dispõe do
poder do Estado. Isso significa que todos aqueles que não possuem o poder do
Estado estão num nível inferior em relação aos que beneficiam desse privilégio, que
os tornam a classe dominante. Percebe-se assim as fraudes e as corrupções, visto
que o poder político se tornou quase exclusivamente num meio de enriquecimento
pessoal para uma minoria que detém o poder. Trata-se, segundo Flanary (1998), de
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uma política que se baseia nas relações clientelistas, no qual o Estado não passa de
um negócio que gera dinheiro, poder e status.

Uma outra condição para a consolidação democrática é a existência de uma


sociedade política autónoma. O facto é que em muitos países africanos esta condição
é inexistente, o que torna um entrave à consolidação da democracia. Depois da
independência muitos países do continente africano optaram por regimes
monopartidários, que de certo modo, estagnou todo e qualquer tipo de concorrência
política.

Um outro fator que impossibilita a democratização do regime em África é o


facto de muitos governos não reconhecerem a legitimidade do multipartidarismo,
mesmo depois da abertura política e da realização de eleições livres, ou seja, não
reconhecem uma oposição legal. Neste sentido, Nzouankeu (1991) considera que o
facto desses governos não reconhecerem uma oposição legítima e legal advém da
ideia de que o partido é o Estado. Segundo este autor, se não houver uma separação
legal entre o partido e o Estado, este continua a beneficiar o partido dominante. De
facto, uma grande maioria dos países africanos mantem uma burocracia amplamente
politizada, na medida em que os altos cargos estão reservados àqueles que, direta ou
indiretamente, pertencem ao partido. Deste modo, torna-se difícil consolidar a
democracia, visto que a burocracia não funciona.

Por outro lado, encontra-se nesses países uma sociedade civil débil, não só
pelo colonialismo, mas também pela adoção de regimes monopartidários que
permitiram uma cultura de submissão naquele continente. De acordo com Boadi
(1996), este facto deve-se à implementação do autoritarismo em África, que, de certa
maneira, impossibilitou o desenvolvimento de uma sociedade civil forte e deixou as
associações de cidadãos sob o controlo do regime e sem poderem participar na
atividade política. Segundo Monga (1997), a sociedade civil nos países africanos
continua muito coagida e, de certa forma, há um desinteresse generalizado e um
desencanto político. Considera o mesmo autor que muitos governos daquele
continente não reconheceram constitucionalmente os direitos da sociedade civil,
mesmo com a instauração do multipartidarismo. De facto, em muitos desses países,
os governos mantêm sob controlo apertado as associações da sociedade civil e, até
mesmo, as organizações sociais, não reconhecendo, por exemplo, os sindicatos.

Por sua vez, Joseph (1998) realça que, em muitos países do continente
africano, o direito ao voto não é um dado adquirido e, muitas vezes, o sufrágio nem
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sequer é universal, principalmente nos regimes onde vigora o militarismo e onde as


eleições são controladas ou mesmo boicotadas.

A existência de uma sociedade económica institucionalizada, uma sociedade


económica que seja capaz de mediar as relações entre o Estado e o mercado, é uma
das condições para a consolidação democrática. Mais uma vez, os países africanos
apresentam um grande défice neste setor. Segundo Flanary (1998), a colonização dos
países do continente africano não permitiu que haja um desenvolvimento de uma
economia autónoma e produtiva. Em vez disso, instaurou um sistema de exploração
económica alicerçado numa dinâmica de dependência. Neste sentido, compreende-se
o facto de, no período pós-independência, os regimes de partido único em África se
terem tornado mais dependentes do Ocidente e do Leste europeu e,
consequentemente não modernizaram, nem dinamizaram, o setor económico.

De acordo com Nzouankeu (1991), o partido único preservou uma grande


dependência no continente africano. O Estado é visto como “grande negócio”, do qual
só beneficia um grupo restrito no poder e seus familiares, permitindo, deste modo, o
alastramento da corrupção naquele continente, que parece ser uma rotina nos países
africanos. Por outro lado, Flanary (1998) considera que um dos grandes erros dos
Estados africanos é o facto de não garantirem uma qualidade de vida estável às
pessoas e não serem capazes de promoverem o desenvolvimento e o crescimento de
uma economia autónoma e eficaz. Uma economia fortemente centralizada e baseada
na planificação estatal tornou-se, sem dúvida, numa das barreiras face ao
desenvolvimento de uma economia privada sustentável e, consequentemente, um
entrave à consolidação da democracia em África.

Entretanto, a maioria dos autores consideram a democracia africana como


“democracia virtual”, uma vez que as possibilidades de uma consolidação democrática
são mínimas. Muitos politólogos defendem que só será possível uma consolidação nos
países africanos quando houver uma mudança radical no seio da sociedade e do
Estado. Por outro lado, Monga (1997), reconhece que é fundamental que os africanos
reconheçam a legitimidade e autoridade do Estado. Uma autoridade que não se
baseie no medo ou na violência, mas sim na moral. Assim, quando o Estado for
reconhecido legal e institucionalmente como o poder legítimo, garantirá o pluralismo
político, ou seja, o reconhecimento de outros partidos políticos. Por outro lado, é da
competência do Estado garantir as liberdades civis, tais como o direito de associação,

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de manifestação, a liberdade de imprensa e a realização de eleições através do voto


secreto.

Segundo Nzouankeu (1991), para que haja realmente democracia nos países
africanos, é necessário, além de um Estado democrático e uma sociedade
democrática, uma geopolítica democrática. Uma geopolítica democrática constituiria,
de certa maneira, um estímulo acrescentado à consolidação da democracia naquele
continente. Segundo o mesmo autor, uma das causas da fragilidade da democracia
em África consiste na existência de certa hostilidade à democracia na maioria das
regiões. Esta antipatia à democracia pode causar consequências graves ao regime,
inclusive o regresso ao regime anterior, ou seja, ao autoritarismo. Neste sentido,
percebe-se que a regionalização do pluralismo seria uma - valia no que se refere à
criação de zonas politicamente homogéneas, podendo, de certa maneira, contagiar
não só as outras regiões como também os países vizinhos.

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CAPÍTULO II A TRANSIÇÃO DO REGIME MONOPARTIDÁRIO PARA O


REGIME MULTIPARTIDÁRIO EM CABO VERDE

2.1 O regime monopartidário em Cabo Verde

O Estado de Cabo Verde, após a independência, surge com características


autoritárias, muito pelo consentimento do governo português durante as negociações
pela transição da soberania entregue ao partido único, que alegou que a
independência só era possível graças à luta preconizada pelo PAIGC, que se
autoproclama a força dirigente da sociedade cabo-verdiana e o guia do povo das ilhas.

Contudo, a caraterização do sistema político como monopartidário só veio a


confirmar-se com a LOPE (Lei sobre a Organização Política do Estado) publicada em
julho de 1975, que definiu os órgãos de poder do Estado e da administração do país e
que funcionou como uma Constituição provisória enquanto se esperava pela
promulgação da Constituição do Estado de Cabo Verde. De facto, dos vários artigos
da LOPE, são notórias as características de um regime autoritário, como consta, por
exemplo, no primeiro artigo: “A soberania do Povo de Cabo Verde é exercida no
interesse das massas populares, as quais estão estreitamente ligadas ao Partido
Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), que é a força política
dirigente na nossa sociedade” (LOPE, 1975, artigo. 1º). Por outro lado, os artigos 8º e
13º realçam a competência da Assembleia Nacional Popular para eleger o Presidente
da República, o Comandante das Forças Armadas Revolucionárias do Povo, bem
como eleger o Chefe do Governo mediante proposta do Chefe do Estado.

Tanto o Presidente como o Primeiro Ministro, fazem juramento no ato de


investidura, comprometendo-se a exercer com fidelidade total as os objetivos do
PAIGC. Do mesmo modo, o poder judicial ficou subordinado aos princípios do partido,
segundo consta no artigo 20º: “Só pode participar da composição dos tribunais aquele
que tiver provado a sua idoneidade para o exercício da função de julgar com fidelidade
as conquistas revolucionárias do povo de Cabo Verde.” (LOPE, 1975, artigo 20).
Entende-se neste sentido, por conquistas revolucionárias, as conquistas do partido,
mais concretamente a luta pela independência.

Não há dúvida de que a LOPE apresenta um cariz autoritário. Surgiu do Acordo


de Independência assinado entre o PAIGC e o governo português com o objetivo de
ser uma lei de transição enquanto se esperava pela redação e promulgação da
Constituição da República de Cabo de Verde, como consta no artigo 2º:

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“É eleita uma Comissão que será presidida pelo Presidente da Assembleia


Nacional e constituída por mais 6 deputados, à qual é confiada a missão de
elaborar e submeter à Assembleia, no prazo de 90 dias, um projeto de
Constituição da República de Cabo Verde (LOPE, 1975, artigo 2º).

Contudo, o prazo de 90 dias que ficara estabelecido não foi cumprido, e


vigorou só durante 5 anos, isto é, de julho de 1975 a setembro de 1980, altura em que
foi aprovada por unanimidade a primeira Constituição de Cabo Verde.

Cabo Verde, após a independência a 5 de julho de 1975, optou por um regime


autoritário e, consequentemente um sistema político monopartidário. Quais são as
caraterísticas desse regime? Poder-se-á comparar o regime autoritário em Cabo
Verde com outros países do continente africano no período homólogo?

Entende-se por regimes autoritários, “sistemas de pluralismo político limitado,


cuja classe política não presta contas dos seus atos, que não se baseiam numa
ideologia de referência devidamente articulada, mas se caracterizam por mentalidades
próprias, onde não existe uma mobilização política disseminada e em larga escala,
salvo em alguns momentos do seu desenvolvimento, e em que um líder, ou por vezes
um pequeno grupo, exerce o poder dentro de limites mal definidos no plano formal,
mas efetivamente previsíveis” (Linz, 2015, pp. 18-19).

Por outro lado, o partido autoritário “não é uma entidade ideológica bem
organizada que monopoliza todo o acesso ao poder. Transforma-se unicamente em
mais um elemento do pluralismo do poder; em mais um grupo que pressiona com os
seus interesses particulares; em mais um canal através do qual interesses divergentes
procuram encontrar um acesso ao poder; em mais um campo onde recrutar os
membros da elite” (Linz, 2015, p 31).

A primeira Constituição da República de Cabo Verde (CRCV) foi aprovada a 5


de setembro de 1980, cinco anos após a Independência. Pode constatar-se que esta
primeira Constituição de Cabo Verde ainda trazia, tal como a LOPE, caraterísticas
próprias do sistema monopartidário como demostra o artigo 4º da mesma
Constituição, a saber: “Na República de Cabo Verde, o Partido Africano da
Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) é a força política dirigente da
sociedade e do Estado” (CRCV, 1980, artigo 4º).

No que se refere à organização económica, o Estado apresenta-se como


proprietário exclusivo de todos os bens e serviços, embora reconheça a propriedade
privada, como consta no artigo 11º:
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“1. Na República de Cabo Verde são reconhecidas as seguintes formas de


propriedade: a) A propriedade do Estado, património comum de todo o povo
e sector dominante da economia; b) A propriedade cooperativa que,
organizada sobre a base do livre consentimento, incide sobre a terra e a
exploração agrícola, a produção de bens de consumo, o artesanato e outras
atividades fixadas por lei; c) A propriedade privada que incide sobre bens
distintos dos do Estado.
2. São propriedade do Estado o subsolo, as águas, as riquezas minerais, as
principais fontes de energia, os meios básicos de produção industrial, os
meios de informação e comunicação, os bancos, os seguros, as
infraestruturas e os meios fundamentais de transporte” (CRCV, 1980, artigo
11º).

Por sua vez o artigo 50º submete a Assembleia Nacional Popular aos princípios
do partido, a saber:

“A Assembleia Nacional Popular é o órgão supremo do poder do Estado. Ela


decide sobre as questões fundamentais da política interna e externa do
Estado e organiza e controla a aplicação da linha política, económica, social,
cultural e de defesa e segurança, definida pelo PAIGC” (CRCV, 1980, artigo
50º).

No que se refere às eleições tanto do Presidente como do Primeiro Ministro, a


primeira Constituição determina que estes são eleitos pela Assembleia Nacional
Popular e não pelo sufrágio universal. De acordo com o artigo 70º “O Presidente da
República é eleito pela Assembleia Nacional Popular de entre os seus membros e
responde perante ela” (CRCV, 1980, artigo 70º). Em relação ao Primeiro Ministro, no
artigo 79º fica estabelecido que “O Primeiro Ministro é designado pela Assembleia
Nacional Popular de entre os seus membros, sob proposta do Presidente da
República” (CRCV, 1980, artigo 79º).

Significa, por conseguinte, que tanto o poder Executivo como o poder


Legislativo, estavam submetidos ao controlo do partido, que de entre os seus
membros elegeriam o chefe do Estado e o chefe do governo.

De acordo com a primeira Constituição da República de Cabo Verde, não há


dúvidas de que se trata de um regime autoritário. Contudo, a mesma Constituição
estabelece Cabo Verde como um Estado de democracia nacional revolucionária, como
confere o artigo 3º, a saber:

“A República de Cabo Verde é um Estado de democracia nacional


revolucionária, fundado na unidade nacional e na efetiva participação popular
no desempenho, controle e direção das atividades públicas, e orientado para
a construção de uma sociedade liberta da exploração do homem pelo
homem” (CRCV, 1980, artigo 3º).

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O domínio do partido único em Cabo Verde, durante os 15 anos de


governação, abrange, de certa maneira, todos os setores e em diversos níveis:
económico, social e cultural. No setor económico, existe um forte controlo do Estado
de modo a centralizar e estatizar a economia nacional. No que diz respeito ao setor
social, a supremacia do PAICV era estabelecida através de organizações sociais
criadas pelo próprio partido, mantendo deste modo, o controlo social a partir destas
organizações. Das várias organizações criadas pelo partido, destacam-se a OMCV
(Organização das Mulheres de Cabo Verde), a JACCV (Juventude Amílcar Cabral de
Cabo Verde), a OPAD-CV (Organização dos Pioneiros de Cabo Verde). Contudo, é de
salientar que essas organizações dependiam exclusivamente do partido, e todos os
seus membros, antes de serem admitidos, eram submetidos à uma formação
ideológica sob orientações do partido.

Em relação ao setor cultural havia um duro cerceamento nos filmes, ao ponto


de criar uma comissão controladora para o efeito. Criou-se CIDC (comissão de
Investigação e Divulgação Cultural), cujo objetivo era exclusivamente controlar todos
os intervenientes do cinema existentes na altura em Cabo Verde. Neste sentido, de
acordo com Évora (2004), ficou estabelecido, através da Portaria nº 46/45 de 7 de
junho de 1975, que

“os empresários dos cinemas existentes no Estado de Cabo Verde ficarão


obrigados a apresentar toda a documentação relativamente a filmes que
pretendam projetar às delegações da Comissão de Investigação e
Divulgação Cultural ou a seus delegados nas diferentes ilhas antes das
projeções públicas e, se possível, no seu próprio interesse, antes da
importação dos mesmos, [e só] serão exibidos publicamente os filmes que
obtiverem parecer positivo da Comissão de Investigação e Divulgação
Cultural, não podendo ainda, provisoriamente, serem exibidos publicamente
os filmes de artes marciais, vulgarmente designados de caratê, bem como os
que fazem apologia da pornografia” (Évora, 2004, p. 56).

Além destes três setores apresentados, poder-se-á apresentar outros fatores,


que de certa maneira, caraterizaram o regime autoritário em Cabo Verde, como por
exemplo o acesso a função pública, a educação e os meios de comunicação. Os
titulares dos cargos públicos eram escolhidos segundo um único critério: o da
confiança política, avaliada não em função da dedicação e entrega à causa pública,
mas sim atendendo ao maior ou menor grau de fidelidade aos principais dirigentes do
partido único no poder. Deste modo, “a competência, que se tornara algo de muito
incómodo, era relegada para um plano secundário, [e] implantou-se na sociedade
cabo-verdiana uma espécie de ‘culto da mediocridade’ que haveria de marcar até hoje
todo o ambiente político, social, económico e cultural do país” (Querido, 2011, p. 227).

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Por outro lado, as áreas da educação, da saúde, da justiça e outros assuntos


sociais não eram diferentes. Segundo Querido (2011), citando uma entrevista a um
Ministro do partido único, dizia:

“o que interessava era que as escolas, bem ou mal, funcionassem, que os


exames fossem feitos, que se aproveitassem as bolsas postas à disposição
do país, que fossem colocados os médicos que os países amigos nos
ofereciam, que os tribunais, bem ou mal, continuassem a administrar a
justiça. Não havia como aplicar qualquer espécie de política” (Querido, 2011,
p. 237).

É de salientar que, segundo Cardoso (1993), nos manuais escolares do ensino


básico foram introduzidos conteúdos ideológicos do partido único, que também
controlava todo o processo das bolsas de estudos para o exterior. Esta seleção para
atribuir bolsas de estudo não era nada equitativa, pois estavam reservadas para as
elites da sociedade.

Por ouro lado, os meios da comunicação social estavam totalmente submetidos


ao partido, que os usava para propagar a sua política e ideologia. Segundo Cardoso
(1993), os meios de comunicação social estavam inteiramente ao serviço do partido e
monitorizados diretamente pelos membros do governo. O único meio de comunicação
que existia independente do partido era o jornal Terra Nova, que pertence aos frades
franciscanos em Cabo Verde. Essa independência permitia-lhe que fizesse críticas ao
regime.

É evidente que não havia liberdade de expressão durante os anos do partido


único no poder. O PAIGC/CV tinha sob o seu controlo toda e qualquer ação dos
cidadãos ao ponto de qualquer reunião ou manifestação que não fosse organizada
pelo partido era proibida e severamente punida. Ciente do risco a que estavam
sujeitas, muitas vozes se juntaram, tanto no país como na diáspora, contra o regime
do PAIGC/CV, como é o caso da criação da UCID (União Cabo-verdiana
Independente Democrática) e de grupos de camponeses e agricultores para
manifestarem o seu desacordo quanto à Lei da Reforma Agrária.

Foi precisamente esta manifestação desses grupos indefesos de camponeses


e agricultores da lha de Santo Antão que assinalou o momento mais lamentável da
história de Cabo Verde e o ponto mais negro do partido único durante o seu longo
‘reinado’ em Cabo Verde. Dezenas de camponeses foram torturados e mortos
juntamente com suas famílias. Por isso, o dia 31 de agosto de 1981 ficou marcado na

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memória dos cabo-verdianos como a mais bárbara tortura que o país, alguma vez na
sua história, presenciou.

Segundo Veiga (2010),

“as tropas treinadas por comunistas cubanos, chegaram à ilha envergando


fardas de combate e armados de metralhadoras AKM/ Kalashnikov
marcaram o primeiro dia da “chacina dos camponeses e agricultores de
Santo Antão. A meio da noite, tiros, porta abertas a pontapés, coronhadas,
gritos de dor e de angústia, ossos partidos, carne humana dilacerada,
sangue derramado pelo chão, dezenas de presos, eram torturados de toda
maneira. Esposas grávidas dos prisioneiros foram pontapeadas na barriga ou
atiradas para o chão à coronhada, no meio do choro de crianças
amedrontadas e traumatizadas pela violência sem terem a mínima noção do
que se passava” (Veiga, 2010, p. 17).

O partido único justificou esta tamanha barbaridade como forma de “neutralizar


um grupo de golpistas que pretendia derrubar o governo e assassinar os dirigentes do
nosso glorioso partido e melhores filhos do nosso povo” (Veiga, 2010, p.17).

Denota-se que não passa de uma desculpa por parte dos dirigentes do
PAIGC/CV, pois, como poderia um grupo de camponeses e agricultores indefesos,
cuja armas são as suas enxadas, no norte do país (Santo Antão), assassinar os
dirigentes do governo na cidade da Praia? Não se encontra outra resposta, senão o
abuso do poder autoritário sobre aqueles pobres camponeses e agricultores que só
queriam ver as suas condições de vida melhorar, algo que seria mais difícil com a
Reforma da Lei Agrária.

Não há dúvida que o partido único em Cabo Verde tinha sob o seu domínio, e
de forma autoritária, todos os setores da sociedade cabo-verdiana. Portanto, será que
se pode encontrar alguma semelhança do regime autoritário cabo-verdiano com os
outros regimes autoritários no continente africano?

Em Cabo Verde, ao contrário dos outros países africanos, o regime foi mais
moderado, apesar do episódio do massacre de 31 de agosto em Santo Antão. No
continente africano, foi mais notória a violação dos direitos humanos, a tortura, tanto
física como psicológica e, em muitos países, como por exemplo, Angola e
Moçambique, chegaram ao extremo, com a guerra civil. Graças à sua homogeneidade
étnica e cultural, o regime autoritário em Cabo Verde, a par de São Tomé e Príncipe,
não enveredou pelo extremismo, como acontecera com os outros países africanos,
que tinham uma multiplicidade étnica e cultural, originando conflitos internos.

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Alguns autores consideram que o regime monopartidário no continente africano


era inevitável, pois, era a melhor forma de garantir a unidade nacional, diante da
multiplicidade étnica e cultural. Neste sentido, afirma Silveira (1992) que o

“monolitismo político se justifica na luta de libertação nacional, único contexto


em que ele surge muitas vezes como condição indispensável na luta contra o
colonizador. Assim, se compreende que a luta pela independência em África
tenha sido, na maioria dos casos, o prelúdio para o controlo do Estado pelos
partidos ou movimentos políticos no período pós-independência” (Silveira,
1992, p. 14).

Em Cabo verde, o regime monopartidário não se justificou pela multiplicidade


étnica, cultural ou religiosa, visto que desde a época colonial constituiu-se uma
homogeneidade étnico-cultural graças ao processo de miscigenação. Portanto, a
implementação do regime monopartidário em Cabo Verde justifica-se pela luta da
libertação, ou seja, o regime foi legitimado pelo fato histórico. Neste sentido,
compreende-se o facto pelo qual o PAIGC se auto proclamou como força dirigente do
país, segundo consta no artigo 4º da Constituição de República de Cabo Verde de
1980, a saber: “na República de Cabo Verde, o Partido Africano da Independência da
Guiné e Cabo Verde (PAIGC) é a força política dirigente da sociedade e do Estado”
(CRCV, 1980, artigo 4º).

É de salientar que o PAIGC contou com apoios internacionais, como por


exemplo, a ONU e a OUA, que, para além de o reconhecerem, legitimaram o facto de
governar em exclusividade o destino do arquipélago. Portanto, diante deste cenário, o
PAIGC aproveitou para se justificar e auto proclamar-se como legítimo representante
do povo das ilhas que tinham acabado de se tornar um país independente.

2.2 As causas do enfraquecimento do Partido Único

Pode dizer-se que a primeira grande crise do regime monopartidário aconteceu


em 1976 e se prolongou até 1979, tendo como pano de fundo os “trotskistas” e
levando, deste modo, à primeira divisão no seio do partido. A origem desta divisão
deve-se ao facto de o PAIGC ter concedido, em 1975, aos “trotskistas” altos postos
nas estruturas do partido, ao ponto de terem grande influência em quase todos os
setores da vida cabo-verdiana. Os trotskistas

“tornaram-se os inspiradores, quando não os fomentadores e até coautores e


coprotagonistas dos maiores erros cometidos pelo PAIGC em Cabo Verde no
domínio da economia, do comércio, da justiça, da educação, da saúde, das
questões agrárias, das relações com a Igreja e, sobretudo, no das liberdades
e dos direitos humanos” (Querido, 2011, p. 223).

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Diante deste cenário, agudizou-se no seio do partido a disputa entre duas


tendências: uma que defendia manter os trotskistas no partido e outra que insistia no
seu afastamento imediato. Esta divergência de posições provocou a convocação de
uma reunião da direção nacional do partido em 1976, cujo objetivo era encontrar
soluções para a situação que se vivia no seio do PAIGC. Conforme refere o autor
citado,

“nessa reunião, que não foi pacífica, a corrente favorável aos trotskistas,
liderada por Pedro Pires, venceu. Essa vitória provocou, quase de imediato,
o afastamento voluntário dos que se consideravam os representantes dos
verdadeiros princípios de Cabral e do PAIGC, deixando assim aos trotskistas
e seus protetores o controle da direção do partido em Cabo Verde” (Querido,
2011, p. 224).

Contudo, essa posição não demorou por muito tempo. Em 1977, o III
congresso do PAIGC em Bissau interditou completamente o acesso a lugares cimeiros
do partido aos trotskistas. Estes, porém,

“sentindo-se ‘traídos’ e ‘humilhados’, e vendo que os seu planos ‘entristas’ se


estavam a desmoronar, que já não tinham futuro no seio do PAIGC,
resolveram ‘partir a louça’, confrontar a Direção do partido – acusando-a de
ser autoritária e contrária aos princípios ‘democráticos’ que eles,
surpreendentemente, disseram sempre ter defendido – e bater com a porta”
(Querido, 2011, p. 224).

Deste modo, em 1979, chegou-se ao fim desta crise, que culminou com a
expulsão dos trotskistas do seio do partido.

Um outro fator que colaborou para o enfraquecimento do partido único em


Cabo Verde, para além dos trotskistas, foi o choque de pensamentos entre a ala mais
conservadora do PAICV1 e a ala mais liberal, que defendia uma abertura política,
contrariando assim a ala dos conservadores, choque esse que resultou, mais uma vez,
na divisão do partido. A ala dos conservadores fez vingar os seus pontos de vista,
levando assim o partido a cometer mais outro dos seus grandes erros. Como refere
ainda o mesmo autor,

“ao não assumir por inteiro a mudança, preferindo ir a reboque em vez de


liderar, ao deixar que se acumulassem dúvidas quanto às reais intenções
desse partido, ao permitir que interesses egoístas e mesquinhos de alguns
se sobrepusessem a interesses de toda uma nação, o PAICV, partido único
no poder, não deixou outra saída à população cabo-verdiana que não a de
se predispor a penalizá-lo fortemente na primeira oportunidade” (Querido,
2011, p. 246).

1
Nesta altura já tinha havido a separação do Estado binacional entre Cabo Verde e Guiné Bissau, tendo
Cabo Verde optado pela sigla PAICV.
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Todavia, o ponto mais alto da divergência no seio do partido foi a remodelação


ministerial levada a cabo pelo então Primeiro Ministro, Pedro Pires, que provocou
desagrado no interior do partido. Essa remodelação ministerial ditou a demissão de
Osvaldo Lopes da Silva, na altura Ministro dos Transportes e Turismo. Nada satisfeito
com a demissão, revoltou-se contra o Primeiro Ministro e “chamou Pedro Pires de um
simples comandante de retaguarda enquanto ele tinha lutado de armas na mão,
qualificando o novo Governo de Pires de eleitoralista, bairrista e integrado por gente
de duvidosa competência (Querido, 2011, p. 248).

A esses dois fatores, poder-se-á acrescentar um outro que também contribuiu


para o enfraquecimento do regime monopartidário: a relação do partido com a Igreja
Católica em Cabo Verde. De facto, as “políticas” assumidas pelo então partido no
poder iam contra a doutrina da Igreja Católica, o que provocou grande
desentendimento entre aquelas instituições. No epicentro desse desentendimento está
a questão da reforma agrária e a lei sobre interrupção voluntária da gravidez,
alterações que iam contra a doutrina praticada e ensinada pela Igreja Católica.

Por outro lado, um sistema económico esgotado contribuiu também para o


esgotamento do regime monopartidário em Cabo Verde, quando o Governo optou por
um plano económico em que o Estado surge como principal agente numa economia
planificada e em que o papel do setor privado seria necessariamente marginal. Nos
finais dos anos 80, segundo Querido (2011), os indicadores do desenvolvimento de
Cabo Verde eram pouco encorajadores. Nas ligações com o exterior e na integração
económica do povo das ilhas no continente notava-se uma grande dificuldade. Por
outro lado, as pequenas dimensões do mercado interno aliadas ao baixo poder de
compra da população eram, sem dúvida, um grande obstáculo à atividade económica
e, resultando numa grande taxa de desemprego, agravou ainda mais os níveis de
pobreza no arquipélago.

Porém, perante este cenário, o PAICV, quase que em desespero, tomou


algumas medidas, como por exemplo, alterações à Constituição no sentido de imprimir
mais dinâmica e orientação nova a um sistema económico muito fragilizado. Contudo,
essas medidas revelaram-se ineficazes, pois foram contrariadas pela ala mais
conservadora que rejeitou toda e “qualquer alternativa que negasse a participação
determinante do setor estatal no sistema económico, [pois, seria] uma forma subtil de
impedir que o PAICV continuasse a ser força dirigente da sociedade e do Estado
cabo-verdiano” (Querido, 2011, p. 247).

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No entanto, instalou-se rapidamente na mente da maior parte dos cabo-


verdianos a convicção de que qualquer outra alternativa, ainda que desconhecida,
suspeita e de duvidosa credibilidade, seria melhor do que o PAICV, dando, deste
modo, fortes sinais de que a mudança política já era iminente. No ponto a seguir,
tratarei, precisamente, da abertura política e as primeiras eleições livres em Cabo
Verde.

2.3 A abertura política e as primeiras eleições livres

Com a crise instalada no seio do partido único em Cabo Verde, não havia outra
alternativa senão dar um passo rumo à abertura política. Mesmo os mais
conservadores não resistiram a tanta pressão, tanto a nível nacional como a nível
internacional, e acabaram por ceder e reconhecer que era impossível manter por muito
mais tempo o regime de partido único. E em 1990 deu-se finalmente a abertura política
em Cabo Verde, encabeçada pelo movimento que optou pelo nome de MPD
(Movimento Para a Democracia).

Não obstante a pressão sentida, o processo para a abertura política partiu do


próprio partido único, o PAICV (Partido Africano Independência Cabo Verde), que,
confiava num resultado favorável nas primeiras eleições, realizadas em janeiro de
1991, que lhe permitisse continuar a governar. Neste contexto, afirma Évora (2004),
que o próprio secretário geral do então partido no poder ficou surpreso com os
resultados obtidos nessas eleições, porque mesmo antes das eleições o PAICV fizera
uma sondagem junto às populações que lhe garantia a vitória. Porém, “se o PAICV
soubesse que as perderia, não levaria adiante, com o concurso do MPD, a
democratização do regime” (Veiga, 2010, p. 19). Segundo o mesmo autor,

“a ideia da realização de eleições, com a participação do PAICV e com


grupos de cidadãos, cujo resultado a ninguém seria difícil de prever, era
apenas uma forma de o partido único relegitimar o seu poder, com base num
sufrágio de cartas marcadas” (Veiga, 2010, p. 19).

De facto, nas primeiras eleições, o PAICV não obteve um resultado que


almejasse, pois, o seu concorrente ganhou com maioria qualificada. O resultado
dessas eleições deixou surpreso não só o PAICV como o próprio partido que as
ganhou, o MPD, pois tinha sido um partido criado poucos meses antes das eleições.
Daí a consciência das suas limitações face a um partido que governava há 15 anos.
Um dos objetivos do recém-criado partido, nas primeiras eleições, era, primeiramente,
marcar o seu espaço como uma força de oposição ao partido que até então não tinha
tido oposição. A este propósito afirma Jorge Querido, “uma força política acaba de se
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construir, sem qualquer programa sério de governação e sem qualquer outro objetivo
anunciado que não o de destruir e ilegalizar o PAICV” (Querido, 2011, p. 251).

A revisão constitucional de 28 de setembro de 1990, Lei Constitucional nº


2/III/90 deu uma nova redação e um novo conteúdo jurídico, de cariz plenamente
democrático, à Constituição política de 1980, revogando o célebre artigo 4º da
Constituição de 1980, com a implantação do princípio do pluralismo, novo tipo de
regime político.

Essa mudança permitiu liberdades políticas, mais concretamente, liberdade de


constituição de partidos políticos, de manifestação e de greve. Além disso, permitiu
novas leis eleitorais completamente democráticas, o que viria a confirmar-se naquelas
que foram as primeiras eleições livres em Cabo Verde, legislativas, presidências e
autárquicas, em 1991. Dessas eleições resultou a vitória esmagadora do MPD,
liderado por Carlos Veiga.

As primeiras eleições democráticas ficaram marcadas ou caraterizadas pela


bipolarização partidária, pelo facto de não legalização atempada da UCID (União
Cabo-verdiana Independente Democrática) pelo Supremo Tribunal de Justiça,
alegando não preencher os requisitos mínimos exigidos na lei dos partidos políticos,
como consta na lei nº 86/III/90 do Regime Jurídico dos Partidos Políticos.

A vitória do MPD significou, para além de um governo democrático, uma rutura


radical com as instituições e as práticas do regime de partido único. Deste modo,
foram desmanteladas todas as instituições remanescentes do regime autoritário, com
especial destaque para a polícia política, os tribunais de zona, as comissões de
reforma agrária bem como as milícias populares. Por outro lado, a aprovação da nova
Constituição da República em setembro de 1992 consagrou novos símbolos nacionais,
como o hino, a bandeira, uma economia fundada na iniciativa e na propriedade
privadas, garantias de direitos económicos, sociais e culturais. Portanto, a vitória por
maioria qualificada do MPD permitiu uma rápida estrutura jurídico-legal de acordo com
novos paradigmas políticos, económicos e sociais fundamentados no modelo
ocidental.

Para as primeiras eleições livres e democráticas, o território nacional foi


dividido em 22 círculos eleitorais, e mais 3 círculos na diáspora, a saber: África,
América e Europa. Isto deve-se ao facto de haver uma grande comunidade cabo-
verdiana radicada nesses continentes, que muito tem colaborado com a economia

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cabo-verdiana pelas remessas que envia aos seus familiares em Cabo Verde, as quais
contribuem bastante para o crescimento do Produto Interno Bruto do país. Daí a razão
de incluir os emigrantes, através de mais 3 círculos eleitorais na diáspora, naquele
momento histórico do país, a fim de estarem presentes, através de votos, nas
primeiras eleições livres e democráticas.

Foram, no total, 25 círculos eleitorais, que elegeram 79 deputados à


Assembleia Nacional. Portanto, o grande vencedor destas primeiras eleições foi o
partido da oposição, o MPD, que obteve uma expressiva vitória, concretizando deste
modo a mudança política, como se verifica no quadro abaixo.

Tabela 1 - Resultado das primeiras eleições legislativas de 13 de janeiro de 1991

Eleitore Votos (em %) * e nº de Deputados eleitos


Nº de
Círculos s Deputado
votante
Eleitorais Inscrito s a eleger MP Deputado PAIC Deputado Branco Nulo
s D V s eleitos s s
s s eleitos
Boa Vista 1.897 1.689 2 31,3 0 65,8 2 0,4 2,5
Brava 3.000 2.489 2 49,9 1 45 1 0,1 5
Maio 2.334 1.876 2 40,6 1 54,3 1 1,6 3,5
Sal 4.380 3.076 2 52,4 1 43,7 1 0,9 3
Nossa
Senhora 4.033 3.694 2 29,6 0 67,9 2 0,4 2,1
da Ajuda
Nossa Sra.
da 6.916 5.857 3 36,9 1 59,6 2 0,2 3,3
Conceição
São
3.925 3.217 2 35,4 1 60 1 0,3 4,3
Lourenço
Praia
27.548 19.117 12 59,7 8 36,9 4 0,5 2,9
Urbano
Praia
4.995 4.133 2 68,5 2 28,1 1 0,7 2,7
Rural 1
Praia
2.849 2.116 2 52 1 40,1 1 0,6 7,3
Rural 2
Santa
14.608 10.206 6 72,9 5 19,3 1 0,5 7,3
Catarina
São
Salvador 3.654 2.847 2 60 2 26,1 0 0,9 13
do Mundo

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São
Lourenço
12.113 9.300 5 72,8 4 20,6 1 0,5 6,1
dos
Órgãos
Tarrafal 11.604 8.147 5 68,9 4 24,9 1 0,8 5,4
Nossa Sra.
do
5.084 4.325 2 72,2 2 21,4 0 0,3 6,1
Livrament
o
Santo
5.702 4.730 2 80,9 2 12,7 0 0,7 5,7
Crucifixo
Santo
Antônio
3.555 2.904 2 64,5 2 26,2 0 0,5 8,8
das
Pombas
Santo
1.842 1.408 2 72,5 2 18,2 0 0,9 8,4
André
Nossa
Senhora
5.944 4.695 3 54 2 31,1 1 0,6 14,3
do
Rosário
Nossa
Senhora 1.153 916 2 61 2 29,5 0 0,9 8,6
da Lapa
Nossa
Senhora 27.408 21.380 12 74,9 10 19,9 2 0,4 4,8
da Luz
São João
5.444 4.425 2 66,7 2 25,1 0 0,5 7,7
Batista
África 2.976 1.557 1 31,9 0 64,2 1 0,4 3,5
América 857 495 1 20,6 0 77,4 1 0,2 1,8
Europa 2.997 965 1 55 1 41,6 0 1,9 1,5
Total 166.818 125.564 79 62,5 56 31,6 23 0,5 5,4
Fonte: Boletim Oficial de Cabo Verde nº 3, 25 de janeiro de
1991.
*Percentuais calculados sobre o total de votantes.

Com 62,5% de votos, o MPD garantiu 56 dos 79 assentos no parlamento,


garantindo uma maioria qualificada de dois terços, o que lhe permitia mudar a
Constituição, enquanto o PAICV, com 31,6% dos votos, não foi além dos 23
deputados, cabendo-lhe o lugar da oposição. O gráfico que se segue ilustra a vitória
esmagadora do recém-criado partido, MPD, face ao PAICV que governara Cabo Verde
durante quinze anos.

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Gráfico 1 Resultado das primeiras eleições legislativas de 13 de janeiro de 1991

31.6
5.4
5.9
0.5
62.5

MPD PAICV BRANCOS NULOS

Decorrido, praticamente, um mês após as eleições legislativas, houve também


as primeiras eleições livres, a 13 de fevereiro de 1991, para eleger o primeiro
Presidente democrático da República de Cabo Verde. Dois foram os candidatos que
concorreram para ocupar o cargo do Chefe do Estado daquele país. Aristides Pereira,
o então Presidente da República, que esteve no poder durante 15 anos, e que contou
com o apoio do seu partido, o PAICV, e António Mascarenhas Monteiro, do antigo
Presidente Supremo Tribunal de Justiça, apoiado pelo MPD.

Mais uma vez, o povo cabo-verdiano optou pela mudança, punindo


severamente, através de votos, aquele que durante 15 anos tinha sido o President e da
República de Cabo Verde. Desta feita, o candidato apoiado pelo MPD, António
Mascarenhas Monteiro foi eleito com 72,1% dos votos contra 26,1% dos votos de
Aristides Pereira, tornando-se o primeiro Presidente democrático da República de
Cabo Verde.

A tabela que se segue ilustra os resultados eleitorais desses dois candidatos à


Presidente da República de Cabo Verde.

Tabela 2 – Resultado das primeiras eleições Presidenciais de 13 de fevereiro de 1991

Ilha Inscritos Votantes Pereira Mascarenhas Nulos Branco Abstenção


(em %) (em %) (em %) (em %) (em %) (em %)

Boa 1900 76,6 68 30,4 1,37 0,21 23,4


Vista
Brava 3001 68,9 41,2 30,4 0,58 0,19 31,1

Fogo 14856 71,2 58 30,4 0,78 0,13 28,8


Maio 2328 62,3 52,6 30,4 1,17 0,41 37,7

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Sal 4380 55 49,5 30,4 1,04 0,33 45

Santiago 76794 55,3 21,3 30,4 1,52 0,36 44,7


Santo 21614 70,7 12,7 30,4 1,58 0,37 29,3
Antão

São 7084 63,3 28,3 30,4 4,57 0,69 36,7


Nicolau

São 27577 64,2 18,9 30,4 0,97 0,32 35,8


Vicente
Total 159534 61,4 26,1 72,1 1,45 0,34 38,6
Fonte: Boletim Oficial de Cabo Verde nº 10, 9 de março de 1991.

Com 71,1% dos votos, António Mascarenhas Monteiro tornou-se no primeiro


Presidente da República de Cabo Verde eleito democraticamente, contra 38,6% de
Aristides Pereira que ocupara o cargo durante quinze anos.

O gráfico que se segue ilustra, precisamente, a vitória de Mascarenhas perante


Pereira, sendo de salientar que a taxa de abstenção ultrapassou em muito os 30%.

Gráfico 2 - Resultado das primeiras eleições Presidenciais de 13 de fevereiro de 1991

26.1
38.6

72.1

Pereira Mascarenhas Abstenção

Por outro lado, nas eleições autárquicas que se realizaram em dezembro de


1991, o MPD conseguiu vencer oito das catorze Câmaras Municipais (Praia, Santa
Cruz, Santa Catarina, Tarrafal, São Nicolau, Ribeira Grande, Porto Novo e Brava)
existentes na época (atualmente 22), contra duas eleitas pelo PAICV (Boa Vista e
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Fogo). Os outros quatro municípios foram eleitos pelos independentes que contaram
com o apoio do MPD, a saber: São Vicente, Paúl, Maio e Sal. De salientar que dois
dos municípios vencidos pelo PAICV são as ilhas onde nasceram o então Presidente
da República e o Primeiro Ministro, Boa Vista e Fogo respetivamente. Com esta vitória
o MPD confirmou, a mudança total, ou seja, o rompimento dos cabo-verdianos com o
regime autoritário, dando novo rumo à governação daquele país.

O curto período de existência do MPD (foi oficializado em novembro de 1990),


e a expressiva vitória nas três eleições que disputara realçam claramente a
insatisfação do povo cabo-verdiano com o regime autoritário do partido único. Nota-se,
por outro lado, a perda da legitimidade do PAICV diante da população cabo-verdiana.
Recorda-se que a legitimidade do partido único se alicerçava num facto histórico, isto
é, na luta armada pela independência nacional. Ora, essa legitimidade foi-se perdendo
paulatinamente durante os quinze anos em que o partido esteve à frente da
governação do país.

Deste modo, compreende-se a “revolta” do povo, punindo severamente o


PAICV, através dos votos, dando credibilidade ao MPD, consolidando, desta forma, a
mudança do governo de partido único para a democracia. Contudo, é evidente que,
com a inexperiência do MPD em matéria de governação, não se extinguiram na
totalidade, de imediato, todas as “políticas” do antigo regime. Pode mesmo dizer-se
que nos primeiros anos do MPD à frente da governação cabo-verdiana houve uma
certa continuidade descontínua. Nesse sentido, afirma Furtado (1997), que o partido
[MPD] teve uma formação de origem elitista: nasceu a partir dos quadros técnicos e
superiores que estavam envolvidos na administração do Estado no regime
monopartidário, que de certa maneira, assumiam uma postura reformista dentro do
próprio regime.

Com a tomada de posse do primeiro governo eleito democraticamente, o chefe


de governo tornou público o programa de governo por que se iria pautar durante o
primeiro ano de governação. Verifica-se nesse programa um conjunto de reformas
abrangentes a quase todos os setores, como a nível económico, social e política, cujo
objetivo era dinamizar a política cabo-verdiana.

Das várias reformas e mudanças proporcionadas pelo MPD, o maior destaque


centra-se no setor económico e nos direitos e garantias constitucionais, que não
existiam no antigo regime. O governo eleito democraticamente teve como objetivo o
rompimento radical com o modelo de desenvolvimento sustentado na planificação e na
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centralização assumidos pelo regime de partido único, e introduziu uma política


económica alicerçada no mercado livre e na liberalização dos preços.

Uma liberalização total do comércio de importação que, no entender de


Querido, (2011) de uma forma “leviana, sem medir as consequências, com o objetivo,
não só de impressionar os seus mentores portugueses como ainda e sobretudo de
beneficiar correligionários muito próximos, nada de bom trouxe ao país” (Querido,
2001, p. 252). A ideia do Governo do MPD quanto à “inserção dinâmica de Cabo
Verde no sistema económico mundial”, em si, não era má, contudo, não teve as
repercussões desejadas. De facto, “tal medida acabou por dificultar seriamente a vida
dos operadores económicos, que se viram, a dada altura, quase que impossibilitados
de trabalhar e conduziu o arquipélago à beira do desastre” (Querido, 2011, p. 252).
Essas liberalizações levadas a cabo pelo MPD acabaram, de certo modo, por afetar as
grandes empresas públicas das diversas áreas, tais como do comércio, da indústria,
dos transportes, obrigando o Estado, praticamente falido, a injeções de dinheiro que
ultrapassavam as capacidades financeiras de Cabo Verde. Foi graças ao Acordo de
Cooperação com Portugal, disponibilizando uma linha de crédito, que foi possível ao
Governo de Cabo Verde sair do grande sufoco a que tinha sido conduzido, permitindo
assim retomar a importação de bens necessários à vida da população cabo-verdiana e
amortizar o serviço da dívida externa.

Todavia, no quadro da Lei nº 47/IV/92, de 6 de julho, o Governo de Cabo Verde


sob liderança do MPD lançou, nos primeiros anos da década de noventa, um vasto
programa de privatizações cujos principais objetivos vinham anunciados no artigo 2º
da mesma Lei, a saber:

“aumento da eficiência, produtividade e competitividade da economia e das


empresas; redução do peso do Estado na economia e o desenvolvimento do
setor privado; fomento empresarial e o reforço da capacidade empresarial
nacional; participação dos cidadãos nacionais, designadamente dos
trabalhadores, dos emigrantes e de pequenos acionistas, na titularidade do
capital das empresas” (Cabo Verde, Lei-Quadro de Privatização nº 47/IV/92,
julho de 1992, 2º).

Por outro lado, o artigo 31º dessa mesma Lei estabelece que “as receitas de
Estado provenientes da privatização serão utilizadas, separada ou conjuntamente,
apenas para fomento empresarial, realização de investimentos na área da formação
profissional e amortização da dívida pública” (Cabo Verde, Lei-Quadro de Privatização,
31º).

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Não obstante isso, o MPD proporcionou vários investimentos que, de certa


maneira, melhoraram a qualidade de vida da população cabo-verdiana,
proporcionando energia elétrica, saneamento básico, escolas, tanto básicas como
secundárias, estradas e telecomunicações, serviços que até à data muitas regiões do
país desconheciam. Essas medidas reforçaram ainda mais a confiança do povo no
MPD, que o elegeu para um segundo mandato, cinco anos depois, em 1995. Portanto,
o MPD mereceu a confiança dos cabo-verdianos por dois mandatos consecutivos, e
sempre com uma margem muito grande em relação ao PAICV.

Contudo, nas segundas eleições, tanto legislativas como presidenciais, já não


houve apenas o MPD e o PAICV, houve também outros partidos que se juntaram à
disputa dum lugar na Assembleia Nacional, e do cargo de Presidente da República. No
que se refere às eleições legislativas de 1995, figuraram na lista à Assembleia
Nacional, para além do MPD e do PAICV mais três partidos políticos: UCID, PCD
(Partido da Convergência Democrática), PSD (Partido Social Democrático). Mas as
eleições culminaram de novo com a vitória do MPD.

Portanto, como já foi referido, o MPD esteve à frente da governação de Cabo


Verde durante dois mandatos, ou seja, por dez anos, de 1991 a 2001, altura em que
houve alternância política e que marcou também o regresso do PAICV ao poder,
voltando a governar por mais quinze anos, desta vez por vontade soberana do povo.
De 2001 a 2016 os destinos políticos de Cabo Verde estiveram sob o comando do
PAICV, que voltou novamente a perder o poder em 2016, tanto nas legislativas como
nas presidenciais para o MPD, que até ao momento é o timoneiro da política cabo-
verdiana.

Apesar das eleições legislativas, de 1995 terem sido disputadas por cinco
partidos, os resultados obtidos não foram tão diferentes dos das primeiras eleições
legislativas realizadas em 1991. Na verdade, o MPD conseguiu mais uma vez garantir
uma maioria qualificada no parlamento.

Na tabela que se segue poder-se-á ver a opção de votos dos cabo-verdianos


nos partidos políticos que se candidataram para as legislativas de 1995.

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Tabela 3 – Eleições Legislativas de 27 de dezembro de 1995


Eleitores Nº de Deputados Votos (em %)
Círculos Eleitorais Inscritos votantes a eleger*
MPD PCD PAICV UCID PSD

Paúl 4.065 3.491 2 68,25 2,49 27,43 1,83 -

Ribeira Grande 11.075 9.429 4 74,06 6,73 16,07 3,14 -

Porto Novo 8.241 6.777 3 69,64 5,63 24,72 - -

São Vicente 32.693 25.582 11 64,94 5,09 26,63 2,87 0,47

São Nicolau 7.459 6.154 2 71,98 2,65 25,37 - -

Sal 5.554 4.215 2 53,42 5,26 41,32 - -

Boa Vista 2.023 1.785 2 39,69 5,91 52,82 1,58 -

Maio 2.741 2.293 2 53,80 9,27 36,93 - -

Praia 41.193 34.519 13 58,43 8,02 32,60 0,63 0,32

São Domingos 5.865 5.124 2 75,43 4,56 17,67 1,91 0,41

Santa Cruz 12.940 10.423 4 72,15 6,92 16,81 1,19 2,92

Santa Catarina 20.283 15.224 7 70,33 7,28 17,99 1,42 2,97

Tarrafal 13.270 8.816 4 44,93 4,18 12,70 1,09 0,32

São Filipe 12.003 10.031 4 31,60 9,36 58,04 0,61 0,39

Mosteiros 4.372 3.478 2 44,56 2,78 52,66 - -

Brava 3.350 2.865 2 58,97 5,42 35,59 - -

Países Africanos 4.414 2.946 2 42,67 12,11 45,21 - -

Países Americanos 5.993 3.267 2 33,64 8,16 50,77 6,98 -

Países Europeus e 10.114 2.482 2 40,93 12,15 36,74 10,16 -


resto do mundo

Total 207.648 158.901 72 61,29 6,72 29,75 1,55 0,68


Fonte: Boletim Oficial, II Série, Nº 52, quarta-feira, 27 de dezembro de 1995
*Nessas eleições houve uma redução dos deputados a eleger, ou seja, dos 79 assentos na Assembleia
Nacional passou para 72.

Com 61,29% dos votos, o MPD elegeu 50 dos 72 deputados para a Assembleia
Nacional, confirmando assim a confiança dos cabo-verdianos, pelo reconhecimento e
cumprimento dos compromissos assumidos em 1991, quando ganharam as primeiras
eleições livres e democráticas em Cabo Verde. Por sua vez, o PAICV, com 29,75%
dos votos, não foi além dos 21 deputados, ocupando, mais uma vez, o lugar da

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oposição. É de salientar ainda, a eleição de um deputado pelo PCD, ficando pela


primeira vez representadas na Assembleia Nacional três cores partidárias. Por outro
lado, a UCID e o PSD não conseguiram eleger nenhum deputado. Deste modo, o MPD
voltou a governar, pela vontade do povo, mais cinco anos, isto é, até 2001, altura que,
como já referido, marca o regresso do PAICV ao poder.

O gráfico que se segue mostra a vitória do MPD nas legislativas de 1995,


confirmando o seu segundo mandato consecutivo à frente da governação cabo-
verdiana.

Gráfico 3 - Resultado das Eleições Legislativas de 27 de dezembro de 1995

Chart Title

6.71
29.75
0.6

2.15

1.55
61.29

MPD PCD PAICV UCID PSD

Entretanto, os dez anos de governação do MPD com maioria qualificada não


lhe garantiram um terceiro mandato consecutivo. Pode dizer-se que perdeu a
confiança do povo cabo-verdiano que havia conquistado por duas vezes nas eleições.
É neste sentido que o PAICV, agora de roupagem democrática, e sob a liderança de
José Maria Neves, aproveita a situação e ganha a confiança dos eleitores cabo-
verdianos, derrotando, em janeiro de 2001, o MPD. Segundo Querido (2011), uma
falta de política convincente do governo do MPD, permitiu que os cabo-verdianos, na
sua maioria, se consciencializassem de que era preciso mudar.

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A transição democrática em cabo verde: o caso do poder local

CAPÍTULO III O CASO DO PODER LOCAL

3.1 O poder local antes da transição democrática

É comum num Estado de regime autoritário que haja forte concentração de


poder, dificultando uma participação ativa dos cidadãos. Pelo contrário, num Estado
democrático, o Poder Local “apresenta-se como um novo paradigma de exercício do
poder político, fundado na emancipação de uma nova cidadania, rompendo as
fronteiras burocráticas que separam o Estado do cidadão e recuperando o controle do
cidadão no seu município mediante a reconstrução de uma esfera pública comunitária
e democrática” (Santin, 2005). Trata-se, acrescenta o mesmo autor, de “conjugar
práticas de democracia participativa à representação tradicional em que os cidadãos,
agindo de uma forma conjunta com o poder político, passarão a ser responsáveis pelo
seu destino e pelo destino de toda a sociedade”.

Para falar do Poder Local em Cabo Verde tem de se falar da herança assumida
do tempo colonial. O PAIGC, após a independência, assumiu o modelo da
organização administrativa portuguesa. Recorde-se que o modelo administrativo, no
tempo colonial, centrava-se fundamentalmente no comércio, isto é, na necessidade de
cobrar impostos e de controlo de mercadorias. Daí a importância de uma organização
administrativa centralizada que fosse capaz de desempenhar este cargo, o qual, com
o decorrer do tempo, acumularia as funções políticas de feitor ou rendeiro, bem como
as de representante dos moradores na sua participação comunitária através da
Câmara. É, pois, através deste cenário que surge em 1475 o primeiro município em
Cabo Verde, Ribeira Grande de Santiago, graças à importância portuária que tinha na
altura, nas transações entre a ilha de Santiago e a Costa Ocidental Africana.

Cabo Verde tornou-se num País independente a 5 de Julho de 1975 e esteve


durante 15 anos sob regime do partido único como consta na Constituição da
República (CRCV) de 1980 artigo 4º: “na República de Cabo Verde, o Partido Africano
da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) é a única força política dirigente da
sociedade e do Estado” (CRCV, 1980, artigo 4º).

De acordo com a Constituição da República de 1980, o Poder local encontrava-


se sob a tutela do governo. Isto significa, que os municípios não tinham autonomia
total do Governo, pois, de acordo com a Constituição vigente na época, “os órgãos do
poder local fazem parte do poder estatal unitário” (CRCV, 1980, artigo 94º). Do mesmo
modo, e de acordo com a mesma Constituição, a “organização das autarquias locais
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era da exclusividade da Assembleia Nacional Popular” (CRCV, 1980, artigo 63º).


Neste sentido, os membros das autarquias não eram eleitos, mas delegados pelo
Poder Central, ficando estes sob dependência daqueles. Era uma relação de
dependência hierárquica, visto que, nos Concelhos, havia Delegados do Governo, e
não órgãos eleitos pelas populações. Os Delegados do Governo, que reuniam as
antigas figuras coloniais de Administrador do Concelho e de Presidente da Câmara,
mais não eram que representantes do Poder Central nos Concelhos. Não havia uma
autonomia dos municípios, pois os Delegados do Governo eram hierarquicamente
dependentes do Governo. De facto, os Delegados do Governo (não Presidentes de
Câmara) eram designados em função da confiança política do Governo.

Se se comparar a Constituição da República de 1980 com a de 1992


(democrática) no que se refere ao Poder Local, notar-se-á que não havia uma
separação entre o Poder Central e Poder Local. De facto, segundo a Constituição da
República de 1992 “a organização das autarquias compreende uma assembleia eleita,
com poderes deliberativos e um órgão colegial executivo responsável perante aquela”
(CRCV, 1992, artigo 230). A partir desse artigo da Constituição pode concluir-se que
de facto, o Poder Local dependia exclusivamente do Poder Central. Neste caso, pode
dizer-se que durante o período do partido único havia uma grande concentração do
poder, isto é, tudo estava concentrado no Poder Central. Deste modo, segundo afirma
Tavares, “os municípios de Cabo Verde durante os quinze anos de partido único
tiveram um papel mais de serviço administrativo do que agente do desenvolvimento
local” (Tavares, 1999, p. 124).

Na Constituição da República de 1980, o artigo 94º (capítulo V, Título III), não


faz grandes menções ao tema, pois apesar de o capítulo se intitular «Do Poder Local»,
os únicos pontos que a Constituição estabelece para o Poder Local são os seguintes:

“Os órgãos do poder local fazem parte do poder estatal unitário. Eles
baseiam-se na participação popular, apoiam-se na iniciativa e capacidade
criadora das comunidades locais e atuam em estreita coordenação com as
organizações de massa e outras organizações sociais.
O poder local organiza-se essencialmente através das autarquias locais.
A lei regula a organização, as atribuições e as competências do poder local”
(CRCV,1980, artigo 94).

De facto, o Poder Local na primeira República confundia-se com o Poder


Central visto que não havia eleições para o Poder Local. Os membros dos municípios
eram delegados pela Assembleia Nacional Popular, ao contrário da segunda

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República, onde os órgãos autárquicos são eleitos através de sufrágios universais


livres e diretos.

Entretanto, até à data das primeiras eleições autárquicas, que se realizaram


em dezembro de 1991, existiam em Cabo Verde 14 concelhos (Ribeira Grande, Paul,
Porto Novo, S Vicente, S Nicolau, Sal, Boa Vista, Maio, Tarrafal, Santa Catarina, Santa
Cruz, Praia e Fogo) e seus respetivos delegados. Foram precisamente estes
concelhos que, nas primeiras eleições autárquicas, elegeram os seus primeiros órgãos
autárquicos. A vitória pertenceu ao MPD, que ganhou 8 Câmaras Municipais, contra
duas do PAICV, sendo que nas quatro Câmaras restantes se candidataram nestas
eleições listas independentes, que contaram o apoio do MPD.

3.2 O novo ‘rosto’ do poder local no regime democrático -


descentralização/regionalização

Depois de quinze anos sob o regime monopartidário, Cabo Vede conhece pela
primeira vez, nos anos noventa do século XX, novo regime político e um sistema
pluripartidário, dando assim início à Segunda República e a um novo paradigma do
Poder Local.

Nas primeiras eleições autárquicas, que se realizaram em dezembro de 1991,


o MPD conseguiu vencer oito das catorze Câmaras Municipais (Praia, Santa Cruz,
Santa Catarina, Tarrafal, São Nicolau, Ribeira Grande, Porto Novo e Brava) existentes
na época (atualmente 22), contra duas eleitas pelo PAICV (Boa Vista e Fogo). Os
outros quatro municípios foram conquistados pelos independentes que contaram com
o apoio do MPD, a saber: São Vicente, Paúl, Maio e Sal.

Desde a independência de Cabo Verde até aos dias de hoje, nota-se um


desmembrar dos municípios protagonizados pelos sucessivos governos da Segunda
República. Assim, dos catorze municípios que havia em 1975, hoje o arquipélago de
Cabo Verde conta com vinte e dois municípios. Atualmente, o território cabo-verdiano
apresenta a divisão administrativa que pode ver-se no quadro abaixo.

Tabela 4 Divisão Administrativa Territorial - Concelhos

DIVISÃO ADMINISTRATIVA TERRITORIAL – CONCELHOS

1975 (14) 1991(15) 1993 (16) 1996 (17) 2005 (22)


Ribeira Grande Ribeira Ribeira Ribeira Ribeira
Grande Grande Grande Grande –

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Stº Antão

Paul Paul Paul Paul Paul

Porto Novo Porto Novo Porto Novo Porto Novo Porto Novo
S Vicente S Vicente S Vicente S Vicente S Vicente
S Nicolau S Nicolau S Nicolau S Nicolau Tarrafal de
São
Nicolau
(Lei nº
67/VI/2005
de 9 de
Maio
Sal Sal Sal Sal Ribeira
Brava
Boa Vista Boa Vista Boa Vista Boa Vista Sal

Maio Maio Maio Maio Boa Vista


Tarrafal Tarrafal de Tarrafal de Tarrafal de Maio
Santiago Santiago Santiago

Santa Catarina Santa Santa Santa


Catarina Catarina Catarina
Santa Cruz Santa Cruz Santa Cruz Santa Cruz Tarrafal de
Santiago
Praia Praia Praia Praia Santa
Catarina
de
Santiago

São S Domingos Santa Cruz


Domingos
(Lei nº
96/IV)93 de
31 de
Dezembro)

Fogo S. Filipe São Miguel Praia


(Lei nº
11/IV)96 de
11 de
Novembro

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Mosteiros S
(Lei nº Domingos
23/IV/91 de
30 de
Dezembro)
Brava S Filipe Ribeira
Grande de
Santiago
(Lei nº
63/VI/2005
de 9 de
Maio)

Mosteiros S Filipe
Brava Mosteiros São
Lourenço
dos
Órgãos
(Lei nº
64/VI/2005
de 9 de
Maio)
Brava

Brava São
Salvador
do Mundo
(Lei nº
65/VI/2005
de 9 de
Maio)

S Filipe
Mosteiros
Santa
Catarina
na Ilha do
Fogo (Lei

66/VI/2005
de 9 de
Maio)
Brava

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Durante a década de noventa, com o advento do Poder Local, o princípio da


classificação dos Municípios entrou em desuso, o que colocou todos os Municípios em
pé de igualdade. Segundo consta do Decreto-Lei (DL) nº93/82 de 6 de novembro, os
concelhos dividir-se-iam por classes: 1ª,2ª e 3ª respetivamente (DL, 93/82, artigo 2º).

De facto, na nova Constituição (1992) o Poder Local não passou despercebido,


pois vários são os artigos dedicados às autarquias locais. Se na Constituição anterior
o Poder Local era contemplado por um único artigo em três pontos, a nova
Constituição deu mais atenção (10 artigos) ao Poder Local e mais autonomia tanto
administrativa e financeira, como organizativa.

Desde as primeiras eleições livres e multipartidárias em Cabo Verde,


referências ao Poder Local são recorrentes nos Programas de Governo da IIª
República, com enquadramentos sistemáticos diversos e pontos comuns. Os
conteúdos, do ponto de vista das medidas e ações propostas, também são diversos,
mas apresentam algumas linhas de continuidade. O Programa do Governo:1991-1996,
em matéria de organização do Estado “defende menos e melhor Estado, menos e
melhor Administração Central, logo mais e melhor autonomia regional e local, mais e
melhor Poder Local” (Programa do Governo IV legislatura, 1991). No âmbito da
revisão da legislação autárquica, o Programa do Governo, em referência, propõe
atribuir aos órgãos municipais os seguintes poderes:

“(…) de definir e executar a política de desenvolvimento regional e de aprovar


o respetivo plano numa perspetiva de potenciação das vantagens
concorrenciais da autarquia bem como o de participar na elaboração e
execução dos planos nacionais de desenvolvimento; de superintender nas
atividades e serviços desconcentrados da Administração Central que operam
no seu território; de organizar e dirigir superiormente a sua própria polícia de
segurança pública; definir e executar uma política regional de relações com
as comunidades emigradas; estabelecer relações de cooperação com as
entidades regionais e municipais estrangeiros e participar em organizações
de diálogo e cooperação inter-regional e intermunicipal, no quadro da política
externa conduzida pelos competentes órgãos de soberania; ” (Programa do
Governo IV legislatura, 1991).

O programa de Governo: 1996-2001, no domínio da Reforma do Estado,


estipula que “o Governo promoverá e comparticipará na criação das melhores
condições para a efetiva e urgente entrada em funcionamento do Conselho para
Assuntos Regionais, verdadeiro fórum nacional democrático de reflexão e apreciação
sobre as questões de relevante interesse regional (...)” (Programa do Governo V
legislatura, 1996). Por outro lado, dá mais ênfase a políticas, medidas e ações viradas

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para os municípios, no sentido da sua capacitação institucional, técnica e financeira e


intervenção no desenvolvimento local.

O Programa do Governo: 2001-2006, retoma a problemática da Reforma do


Estado e define que a “a reforma e renovação do estado e do reforço dos direitos,
liberdades e garantias, passa, nomeadamente: (…) pelo reforço do municipalismo, da
promoção do desenvolvimento local e regional e da democracia” (Programa do
Governo VI legislatura, 2001). E no que concerne ao desenvolvimento regional, o
Programa, em referência, dispõe que “o Governo conceberá uma estratégia de
desenvolvimento regional e local que terá como referência o reforço da coesão
económica e social e a correção das assimetrias regionais”. Essa estratégia assentará
no desenvolvimento de cada ilha ou de grupos de ilhas próximas em função das suas
potencialidades específicas

O Programa do Governo: 2006 – 2011, estruturado em paradigmas de


desenvolvimento, aborda a problemática do desenvolvimento regional, no âmbito do
ordenamento do território, descentralização e desenvolvimento regional. Considera
que será necessária “a adoção de um Plano de Desenvolvimento Regional com base
em diagnóstico das necessidades de investimento público ou privado contribuindo
para o reforço da coesão territorial” (Programa do Governo VII legislatura, 2006). E em
matéria da descentralização propõe o Governo “promover um amplo debate nacional
sobre a organização territorial, a descentralização e a regionalização em Cabo Verde,
com vista à adoção de modelos consentâneos com a realidade do país (...)” (Programa
do Governo VII legislatura, 2006). Em consequência, o Governo, em paralelo com a
melhoria da sua representação em todas as regiões “promoverá a definição, em
diálogo com todos os partidos políticos e a sociedade civil, as opções de
regionalização, no sentido de garantir as condições de um desenvolvimento
equilibrado de todas ilhas, construindo a partir delas novas circunscrições político-
administrativas (…)” (Programa do Governo VII legislatura, 2006).

O Programa do Governo: 2011-2016, no âmbito da reforma do Estado,


estabelece que “serão igualmente prosseguidos esforços de racionalização das
estruturas do Estado com ênfase na devolução de poderes (através de contratos-
programa, outsourcing, desconcentração, descentralização e regionalização) aos
cidadãos, às organizações da sociedade civil, às comunidades e ao sector privado e
empresas.” (Programa do Governo VIII legislatura, 2011).

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O programa do Governo da IX legislatura: 2016 - 2021, em curso, no âmbito da


reforma do Estado, o Governo, no que se refere ao Poder Local, propõe “um Governo
descentralizador e parceiro dos municípios, sendo descentralizados, imediatamente,
um conjunto de responsabilidades para os municípios/regiões nos domínios da
atividade governativa, acompanhadas de uma nova estratégia de distribuição de
recursos entre poder central e o poder local e regional(...)” (Programa do Governo IX
legislatura, 2016). Por outro lado, o Governo, no mesmo programa estabelece

“o reforço da autonomia financeira do Poder Local, na sua globalidade,


descentralizando parte dos recursos hoje alocados à Administração Central e
criando novas fontes de receitas locais tendencialmente sem sobrecarga
fiscal dos contribuintes, num quadro de justa repartição de recursos públicos
entre o Estado e as autarquias locais.” (Programa do Governo IX legislatura,
2016).

Observando esta trajetória dos Programas dos governos constitucionais da


Segunda República, considera-se o seguinte: O Programa do primeiro Governo
constitucional, que marca a segunda República, dotado de ideias reformistas, quase
revolucionárias, a fim de se distanciar radicalmente do modelo do Estado moldado
pelo partido único, pretendia fazer uma reforma acentuada na organização política,
territorial e administrativa do Estado. De facto, a institucionalização do Poder Local no
regime democrático surge como o elemento fundamental e basilar da administração do
Estado, e marca um passo importante na mudança e transformação da sociedade
cabo-verdiana. Todavia, as medidas que foram assumidas, tanto pelo Estatuto dos
Municípios, como pela Constituição, ficaram aquém das orientações anteriormente
formuladas. Por outro lado, a questão da regionalização, foi atribuída como uma das
prerrogativas dos municípios.

Efetivamente, o programa do Governo, em apreciação (Programa do Governo


IV legislatura, 1991), reservava para os municípios o poder de definir e executar a
política de desenvolvimento regional e de aprovar o respetivo plano numa perspetiva
de potenciação das vantagens concorrenciais da autarquia, bem como o de participar
na elaboração e execução dos planos nacionais de desenvolvimento; de superintender
nas atividades e serviços desconcentrados da Administração Central que operam no
seu território; de organizar e dirigir superiormente a sua própria polícia de segurança
pública; definir e executar uma política regional de relações com as comunidades
emigradas; estabelecer relações de cooperação com as entidades regionais e
municipais estrangeiras e participar em organizações de diálogo e cooperação inter-
regional e intermunicipal, no quadro da política externa conduzida pelos competentes
órgãos de soberania.
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Por outro lado, colocando a regionalização como um elemento central da


política de reforma do Estado, o Governo previu a criação do Conselho para Assuntos
Regionais. Decorridos 3 anos, o Conselho para Assuntos regionais era
constitucionalizado. Infelizmente, este importante e estratégico órgão auxiliar do poder
político não chegou a funcionar, apesar do enunciado no Programa do Governo 1996-
2000. Decorridos 7 anos sobre a sua constitucionalização, a revisão constitucional de
2010 o suprimiu-o e o transformou-o numa das valências do Conselho Económico
Social Ambiental. Verifica-se assim, um recuo de fundo em relação á conceção inicial,
que poderia modelar um poder local, com atribuições e competências que iam para
além de um modelo autárquico clássico, enformando uma espécie de modelo de
governos locais, com base em municípios. O país perdeu assim uma oportunidade
histórica para inovar naquilo que, consensualmente, é considerado como umas das
maiores conquistas da Nação: o Poder Local Democrático.

Com a alternância política consumada em 2001, no Programa do Governo de


2001 -2006, o Governo afirma que a reforma e a renovação do Estado passam, entre
outros, “pelo reforço do municipalismo, da promoção do desenvolvimento local e
regional e da democracia” e assume que

“o Governo conceberá uma estratégia de desenvolvimento regional e local


que terá como referência o reforço da coesão económica e social e a
correção das assimetrias regionais. Essa estratégia assentará no
desenvolvimento de cada ilha ou de grupos de ilhas próximas em função das
suas potencialidades específicas” (Programa do Governo VI legislatura,
2001).

Entretanto, a regionalização não conheceu nenhum avanço. Os municípios


continuam sendo depositários das políticas governamentais, no que concerne á
descentralização. No entanto, o Programa do Governo: 2006-2011 considera que é
“necessária a adoção de um Plano de Desenvolvimento Regional com base no
diagnóstico das necessidades de investimento público ou privado contribuindo para o
reforço da coesão territorial”. Mesmo indo mais longe nas suas intenções
programáticas, o Programa do Governo 2006-2011, defende que as opções de
regionalização, precedidas de debates, serão adotadas com “o sentido de garantir as
condições de um desenvolvimento equilibrado de todas as ilhas, construindo a partir
delas novas circunscrições político-administrativas” (Programa do Governo VII
legislatura, 2011).

Assim, sem definir o modelo de regionalização para o país, o Parlamento


aprova em 2010 a Lei-Quadro da Descentralização Administrativa (LQDA), apontando
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as “regiões Administrativas, de grau supramunicipal, como uma das categorias


autárquicas”. Nos termos da Constituição e da lei, a regionalização em Cabo Verde
tem já conteúdo político e funcional, de natureza autárquica.

Apesar dos sucessivos Governos não terem podido ou conseguido levar para a
frente as suas políticas de descentralização, nomeadamente a regionalização, este
tema está presente em todos os Programas do Governo, de forma recorrente, como
opções políticas de fundo.

Nota-se que, em todos os Programas do Governo, a regionalização ocupa um


lugar central como fator de transformação do modelo de organização política,
administrativa e territorial do Estado e da Administração Pública vigentes,
considerados centralizadores e desajustados às exigências do desenvolvimento do
país. Por outro lado, ao “instrumentalizar” a regionalização, o Governo afasta-se do
processo de aprofundamento da descentralização, uma vez que se propõe dar “ênfase
na devolução de poderes aos cidadãos, às organizações da sociedade civil, às
comunidades e ao sector privado e empresas”. Ora, a descentralização, levada às
suas últimas consequências, no quadro constitucional e legal atual, tem de processar,
sim, a devolução de poderes aos municípios, às regiões administrativas e às
autarquias inframunicipais.

A Lei-quadro de descentralização administrativa (LQDA) estabelece o princípio


da classificação das autarquias locais da mesma categoria,

“para efeitos de tratamento diferenciado em matéria de transferência de


atribuições, em função do grau de desenvolvimento económico e social do
seu território, do nível do seu desenvolvimento organizacional e de
qualificação dos seus recursos humanos e do volume dos seus recursos
financeiros próprios” (LQDA, artigo 8º).

Este princípio acabou por reconhecer a diversidade, a heterogeneidade da


realidade municipal cabo-verdiana, que, no fundo, reflete os níveis diferenciados de
desenvolvimento entre as ilhas e os concelhos. Por outro lado, esta realidade constitui
uma referência na definição de políticas públicas de promoção do desenvolvimento
local e regional, tendo em conta os imperativos da solidariedade na afetação de
recursos e da coesão nacional.

Deste modo, a regionalização Administrativa, no quadro do presente trabalho, é


entendida numa perspetiva de desenvolvimento em que a descentralização se
concretiza na redução sustentada das desigualdades espaciais, na promoção de um

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desenvolvimento mais equilibrado entre as ilhas, regiões e concelhos e na elevação do


bem-estar geral das populações. Portanto, a regionalização administrativa só terá
sentido se for pensada para fazer crescer as economias regionais e locais, criar postos
de trabalho, aumentar a empregabilidade, reduzir a pobreza e eliminar a pobreza
extrema, aumentar as infraestruturas, qualificar os territórios, capacitar o capital social
e atrair investimentos privados.

Contudo, há também condicionantes. De facto, a criação em concreto das


Regiões Administrativas depende, de acordo com a Lei-Quadro de Descentralização
Administrativa, “de lei da Assembleia Nacional e do voto favorável da maioria das
Assembleias Municipais que representem a maior parte da população da área
regional, de acordo com o último recenseamento geral da população efetuado” (LQDA,
artigo 7º). No entanto, na esteira da Lei em referência, a criação de cada região
administrativa, enquanto autarquia, está condicionada a “estudo elaborado por
entidade idónea independente, conclusivo e demonstrativo da viabilidade e
capacidade da nova Autarquia Local (…)” (LQDA, artigo 7º).

Assim, torna-se necessário regulamentar o processo de elaboração do estudo


de viabilidade das autarquias, tendo em conta os requisitos fixados pela LQDA: cada
autarquia a ser criada deve dispor de “ recursos organizacionais, humanos, materiais e
financeiros para assumir com eficácia as atribuições respetivas e a oportunidade e
eficiência provável da referida criação na satisfação das necessidades de
desenvolvimento das respetivas populações e em matéria de ação administrativa”
(LQDA, artigo 7º).

Portanto, pode concluir-se que com a democracia, o Poder Local em Cabo


Verde tornou-se pedra basilar e insubstituível na organização política, territorial e
democrática do poder instituído. Os ganhos são evidentes no que se refere ao
desenvolvimento local. A realização de eleições regulares tem permitido o escrutínio
regular pelos eleitores, o que contribui sobremaneira para a criação de sinergias para
as ilhas e municípios. A descentralização, portanto, é a condição sine qua non para a
realização e avanço da democracia, na medida em que estimula a participação das
populações, como alavanca principal de desenvolvimento geral do país, aproxima o
centro de decisões das populações e contribui para o reforço do Poder Local e
modernização da administração. A descentralização constitui, em Cabo Verde, uma
conquista importante, unanimemente assumida pelos poderes políticos, pelas

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autarquias e pelas populações, como fator indispensável para o desenvolvimento


local.

3.3 Financiamento dos municípios

Como ficou dito no ponto anterior, com o advento da democracia em Cabo


Verde nos anos noventa do século passado, o Poder Local passou a ter mais
autonomia em relação ao Poder Central. De acordo com o Estatuto dos Municípios
(EM), Lei nº134/IV/95 de 03 de julho artigo 3º, o município goza da autonomia
financeira, isto é, tem as suas próprias finanças independentes do Poder Central. De
facto,

“O Município goza de autonomia financeira, possuindo finanças próprias que


lhe permitem elaborar, aprovar, alterar e executar plano de atividades e
orçamento, podendo ainda dispor de receitas próprias, ordenar e processar
as despesas, arrecadar as recitas e recorrer ao crédito nos termos da lei”
(Estatuto dos Municípios, artigo 3º).

Do mesmo modo, o artigo 2º da Lei nº79/VI/2005 de 5 de setembro sobre


Regime Financeiro da Autarquias Locais salienta a autonomia patrimonial e financeira.
Segundo esse artigo,

“os Municípios têm finanças e patrimónios próprios, cuja gestão compete aos
respetivos órgãos autárquicos no âmbito da autonomia administrativa,
financeira e patrimonial” (Regime Financeiro da Autarquias Locais, artigo 3º).

A autonomia financeira das Autarquias Locais assenta, nos termos da lei, em


lançar, liquidar as respetivas receitas próprias e arrecadar as demais receitas, recorrer
ao crédito, na realização de investimentos públicos municipais, na gestão de
património próprio. Do mesmo modo, as receitas municipais e as taxas de derrama
são fundamentais para a consolidação da autonomia financeira do Poder Local,
segundo consta no Regime Financeiro da Autarquias Locais.

As taxas correspondem a preços cobrados pela prestação de serviços ou


fornecimento de bens. As taxas são receitas que satisfazem simultaneamente três
requisitos: (1) são a contrapartida por um serviço prestado e, por isso, têm a natureza
de um preço; (2) só são exigíveis aos que tenham diretamente utilizado o serviço; (3) o
seu valor deverá manter uma relação direta com os custos de produção do serviço,
uma vez que deverá contribuir para os financiar, total ou parcialmente.

A importância relativa das taxas cobrada no conjunto das receitas é diminuta.


Porém, a lei reconhece plenos direitos às administrações locais para lançarem taxas
de montantes que poderão livremente decidir, considerando que nem os serviços têm
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de ser homogéneos, nem os custos de produção têm de ser os mesmos em toda a


parte.

Segundo o artigo 6º nº2 do Regime Financeiro das Autarquias Locais,

“compete à Assembleia Municipal, sob proposta da Câmara Municipal,


estabelecer as taxas e o regime de concessão de isenções ou reduções a
entidades que apresentem projetos de investimento de especial interesse
para o desenvolvimento do Município e a aprovar os respetivos quantitativos”
(Regime Financeiro da Autarquias Locais, artigo 6º, nº 2).

O critério da responsabilização fiscal tem implicações quanto às fontes


desejáveis de fornecimento, privilegiando claramente o recurso às taxas bem como a
algumas outras fontes de fornecimento.

Não obstante a autonomia do Poder Local a nível financeiro, na medida em que


tem as suas próprias finanças, as autarquias têm direito a receitas provenientes dos
impostos do Estado. Assim, estipula o artigo 10º do Regime Financeiro da Autarquias
Locais, Lei nº79/VI/2005 de 5 de setembro:

“Os municípios participam, por direito próprio nas receitas provenientes dos
impostos diretos e indiretos do Estado, nomeadamente o Imposto Único
sobre os Rendimentos (IUR), o Imposto sobre valor acrescentado (IVA), o
Imposto sobre Consumos Especiais (ICE), o Imposto de Selo e os Direitos
Aduaneiros”. (Regime Financeiro da Autarquias Locais, artigo 10º, nº1).

Neste sentido, foi criada um Fundo de Financiamento dos Municípios (FFM)


que é dotado anualmente no Orçamento do Estado (OE). De acordo com Lei
nº79/VI/2005 de 5 de setembro,

“O FFM é anualmente dotado no OE pela transferência não consignada de


10% do valor dos impostos diretos e indiretos efetivamente cobrados no
penúltimo ano anterior àquele a que o Orçamento se refere, excluindo os
impostos consignados por lei, bem como as derramas e outros impostos
municipais e eventualmente cobrados pela administração do Estado”(Regime
Financeiro da Autarquias Locais, artigo 10º, 3).

O FFM divide-se em duas partes: Fundo Municipal Comum (FMC) e Fundo da


Solidariedade Municipal (FSM). O FMC conta com um apoio de 75% no qual todos os
Municípios participam. Este fundo é repartido da seguinte maneira:

a) 20% repartidos igualmente a todos os Municípios;


b) 50% repartidos na razão direta da população residente de cada Município;
c) 15% repartidos na razão direta da população infantojuvenil residente dos
zeros aos dezassete anos, de cada Município;
d) 15% repartidos na razão direta da superfície do território de cada
Município (Regime Financeiro da Autarquias Locais, artigo 11º).

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A partir desta distribuição do FMC, pode concluir-se que os Municípios com a


população mais envelhecida têm menos benefícios do que aqueles que, em
contrapartida têm uma população mais jovem. Do mesmo modo, pode constatar-se
que os Municípios com maior dimensão territorial têm de igual modo mais benefícios
em relação aos Municípios territorialmente mais pequenos.

Por sua vez, o FSM conta com um apoio de 25%, mas este não abrange todos
os Municípios. Só participam os Municípios cuja média de impostos municipais seja
inferior à média nacional. O FSM tem como objetivo reforçar a coesão municipal, de
modo a promover a correção de assimetrias em benefício dos Municípios mais pobres.
Segundo consta no artigo 12º do Regime Financeiro da Autarquias Locais,

“No FSM só participam os Municípios que tenham um nível de capitação


média dos impostos municipais inferior à média nacional e que tenham uma
proporção de pobres distantes da linha de pobreza superior ou igual à média
nacional, à luz dos critérios estabelecidos pelo Instituto Nacional de
Estatística” (Regime Financeiro da Autarquias Locais, artigo 12º).

3.4 A Consolidação do Poder Local

Com o novo regime em Cabo Verde, a democracia, os municípios passaram a


gozar, como já dissemos, de mais autonomia, tanto administrativa como financeira,
patrimonial, normativa e organizativa, e de maior independência em relação ao Poder
Central (Estatuto dos Municípios Lei nº 134/IV795 de 03 de julho artigo 2º - 7º).

Sendo os municípios a entidade central do Poder Local em Cabo Verde, deve,


por um lado, ser efetivamente reconhecido, respeitado e garantido plenamente o seu
espaço próprio de autonomia, quanto à gestão dos assuntos locais e no papel de
elemento dinamizador e liderante do desenvolvimento local, com uma nova missão,
assente numa visão estratégica de desenvolvimento plural para o país. Os municípios
devem ser agentes de mudança social e propulsionadores da riqueza local, por forma
a aumentar, a um nível significativo, a sua contribuição na formação do Produto
Interno Bruto (PIB), considerando o impacto positivo que o bom desempenho dos
municípios terá na dinamização das economias locais e no crescimento da economia
nacional e do emprego.

Na esteira da Lei-Quadro de descentralização administrativa (Lei nº 69/VII/2010


de 16 de agosto), e tendo em conta as desigualdades de desenvolvimento entre os
municípios, a possibilidade de implementação de um modelo heterogéneo de

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organização municipal e de atribuição de competências, apresenta-se como um


cenário necessário e de alcance estratégico.

Por outras palavras, o modelo genérico de atribuições e de competências


deveria ser implementado de forma gradual, tendo em consideração a capacidade
efetiva de intervenção de cada município, em função do seu nível de desenvolvimento
económico e social. Portanto, o redesenho da configuração institucional sugere o
cenário dum Poder Local de “geometria” variável, diversificado e a várias velocidades,
impondo um reposicionamento, quer de conteúdo e forma, quer dos mecanismos de
intervenção, da Administração central, regional e municipal no suprimento de
insuficiências dos municípios (sobretudo daqueles de mais fracos recursos e baixo
nível de desenvolvimento) na prestação dos serviços públicos essenciais aos
cidadãos, independentemente do lugar onde vivem, em ordem a promover a
realização dos princípios de paridade, de equidade e de igualdade de oportunidades
que a Constituição da República propugna.

Neste sentido, o Governo, no Orçamento do Estado (OE) de 2018 realçou o


reforço do Poder Local de modo a ‘combater’ as assimetrias regionais. Deste modo, o
OE de 2018 estabelece no nº 400 que:

“a finalidade é ter um orçamento público que identifique as assimetrias


regionais, de modo a que medidas sejam adotadas para a mobilização e
afetação de recursos que permitam eliminar o fosso e garantir o
desenvolvimento local” (OE, 2018, nº 400).

Do mesmo modo, o Governo reconhece que o Poder Local necessita de mais


meios e mecanismos para a realização dos seus projetos e o desenvolvimento da
economia local. Neste sentido, o OE de 2018 realça a possibilidade ou a necessidade
de um alargamento da descentralização. Assim, no nº401 do OE de 2018 afirma que:

“é nítido que o poder local requer mais recursos e novos mecanismos para o
melhor exercício das atribuições já descentralizadas, mas é sobretudo
evidente que uma nova vaga de descentralização se impõe necessária, como
condição para valorizar o potencial endógeno e para acelerar o crescimento
económico local e nacional, reduzir as assimetrias regionais e promover o
equilíbrio regional”(OE 2018, nº 401).

Segundo o OE de 2018, o Governo apresenta uma certa preocupação em


resolver a questão das assimetrias regionais de modo a facultar mais recursos ao
Poder Local, de forma a tornar mais célere esta questão. De acordo com o nº402 do
OE de 2018,

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“(...) Orçamento de 2018 reforça, mais uma vez, os recursos a serem


transferidos da Administração Central para a Administração Local, sendo
certo que o Governo está a mobilizar recursos extraorçamentais, para
promover o desenvolvimento das ilhas e introduzir algumas correções
relativamente as assimetrias regionais” (OE, 2018, nº 402)

Deste modo, salienta-se o empenho do Governo nesse OE em resolver a


questão das assimetrias regionais, dando ao Poder Local mais recursos financeiros,
bem como mais atenção aos municípios mais pobres, usando assim a discriminação
positiva a favor desses municípios. O quadro abaixo indica a distribuição das verbas
disponibilizadas pelo Governo no OE de 2018 às autarquias locais.

Tabela nº 5 Transferência para os Municípios

Transferência para os Municípios

(em milhões CVE) s


ILHA Concelho FFM Discriminaç FA FSST FAMR TOTAL
ão+

Paul 77.398.718 8.333.333 17.360.400 10.826.292 2.692.275 116.611.019


SANTO P. Novo 172.837.459 0 38.887.296 12.189.430 6.012.064 229.926.249
ANTÃO
R. Grande 158.519.110 0 36.109.632 12.189.430 5.514.007 212.332.179

Subtotal 408.755.288 8.333.333 92.357.328 35.205.152 14.218.346 558.869.447

S. VICENTE Vicente 261.466.599 0 59.025.360 28.389.460 9.094.983 357.976.402

R. Brava 77.403.748 8.333.333 18.054.816 10.767.368 2.692.450 117.251.716


de S.
SÃO
Nicolau
NICOLAU
Tarrafal de 47.133.212 8.333.333 11.110.656 10.954.783 1.639.505 79.171.489
S. Nicolau

Subtotal 124.536.960 16.666.667 29.165.472 21.722.151 4.331.955 196.423.205

SAL Sal 103.948.506 0 22.915.728 288.985.323 3.615.796 419.465.353

BOAVISTA Boavista 93.303.511 0 20.832.480 257.633.142 3.245.515 375.014.648

MAIO Maio 64.853.337 8.333.333 14.582.736 13.513.161 2.255.891 103.538.458

Praia 410.399.373 0 92.357.328 32.715.320 14.275.535 549.747.556

R. Grande 87.988.861 8.333.333 19.443.648 11.293.807 3.060.648 130.120.297

Stª.Catarina 321.012.733 0 72.219.264 12.189.430 11.166.266 416.587.693

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S.S. do 88.789.541 8.333.333 20.832.480 9.871.558 3.088.499 130.915.412


Mundo

Tarrafal 152.748.899 0 36.109.632 13.980.676 5.313.293 208.152.500

SANTIAGO Stª. Cruz 231.855.667 0 52.775.616 10.319.369 8.064.982 303.015.635

Calheta 142.491.104 8.333.333 31.943.136 10.826.292 4.956.481 198.550.347

S. 106.781.068 8.333.333 24.998.976 10.826.292 3.714.325 154.653.995


Domingos

S.L. Órgãos 81.403.910 8.333.333 19.443.648 9.871.558 2.831.594 121.884.043

Subtotal 1.623.471.157 41.666.667 370.123.728 121.894.302 56.471.623 2.213.627.47

S. Filipe 170.659.302 0 38.192.880 11.507.861 5.936.297 226.296.340

Stª. 65.743.686 8.333.333 14.582.736 10.662.067 2.286.861 101.608.683


FOGO Catarina de
Fogo

Mosteiros 86.845.858 8.333.333 19.443.648 9.463.153 3.020.889 127.106.881

Subtotal 323.248.845 16.666.667 72.219.264 31.633.081 11.244.048 455.011.905

BRAVA Brava 58.913.783 8.333.333 13.193.904 13.727.215 2.049.286 96.217.521

Total 3.062.497.986 100.000.000 694.416.000 812.702.985 106.527.443 4.776.144.416

Fonte: Ministério da Finanças

Se se comparar a distribuição das verbas aos municípios tendo em conta


Barlavento e Sotavento, pode concluir-se que as ilhas situadas no norte do
arquipélago têm menos verbas em relação às ilhas situadas mais a sul, beneficiando
estas de 60% e aquelas de 40%, segundo mostra o gráfico abaixo.

60%
Tabela nº 6 Financiamento dos Municípios Barlavento/Sotavento BARLAVENTO
ILHA CONCELHO TOTAL SOTAVENTO
PAÚL 116611019 BARLAVENTO 1907749055
SANTO P. NOVO 229926249 SOTAVENTO40% 2868395361
ANTÃO R. GRANDE 212332179 TOTAL 4776144416
Subtotal 558869447
S. VICENTE S. VICENTE 357976402
R. BRAVA 117251716
SÃO NICOLAU TARRAFAL 79171489
Subtotal 196423205

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SAL SAL 419465353


BOAVISTA BOAVISTA 375014648
MAIO MAIO 103538458
PRAIA 549747556
R. G. SANTIAGO 130120297
S. CATARINA 416587693
S. S. MUNDO 130915412
TARRAFAL 208152500
SANTIAGO
S. CRUZ 303015635
CALHETA 198550347
S. DOMINGOS 154653995
S. L. ÓRGÃOS 121884043
Subtotal 2213627478
S. FILIPE 226296340
S. CATARINA –
FOGO FOGO 101608683
MOSTEIROS 127106881
Subtotal 455011904
BRAVA BRAVA 96217521
TOTAL 4776144416

Não obstante ao esforço que o Governo tem feito, mais precisamente neste
último OE, convém realçar alguns pontos que se consideram importantes para uma
maior consolidação do Poder Local, dando-lhe mais autonomia e tendo por objetivo
maior descentralização total e menores assimetrias regionais. Deste modo, propor-se-
ão algumas linhas orientadoras:

a) A aprovação pelo Parlamento de uma lei de repartição de atribuições,


competências e investimentos públicos entre os municípios e a administração central,
de sentido descentralizador, precedida de amplo debate com os municípios e sua
associação, com a sociedade e com os partidos políticos, tendo em vista encontrar
soluções as mais consensuais possíveis. Dever-se-á levar em conta especialmente: os
dados da experiência municipalista cabo-verdiana pretérita e presente; a orientação
que decorre da Constituição quanto a atribuições partilhadas dos poderes públicos ou
exclusivas de algum deles; experiências comparadas, designadamente de países
arquipelágicos ou de tradição administrativa similar à de Cabo Verde; uma visão
descentralizadora da promoção do desenvolvimento e uma visão progressista do
papel do desenvolvimento local no desenvolvimento nacional.

b) Deverão ser devolvidas aos municípios atribuições que lhe são,


inquestionavelmente, próprias (gestão de centros de juventude, de centros sociais, de
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polivalentes e outros equipamentos sociais, municipais; ação social, transporte coletivo


urbano, etc.) e correspondentes recursos. O mesmo deverá ser tido em conta
relativamente a projetos de legislação no que concerne à intervenção da
Administração central na administração e nas finanças municipais, que deve evoluir,
por um lado, no sentido de ser cada vez menos pesada e constrangedora da
autonomia local, limitando-se - como é próprio da descentralização autárquica - ao
controlo da legalidade e eliminando radicalmente qualquer interferência, direta ou
indireta, da administração central em matérias relacionadas com as opções de política
administrativa ou fiscal local dos municípios; mas, por outro lado, mais pró-ativa e
promotora e menos burocrática;

c) Um Programa de Reforma e Modernização da Administração Municipal, que,


por um lado, concretize um verdadeiro “choque de gestão” em ordem a alcançar uma
maior eficácia, eficiência e efetividade da ação pública municipal nos planos
organizativo, administrativo, financeiro e sobretudo no plano da intervenção municipal
no processo de desenvolvimento local e nacional;

d) Apoio técnico acrescido do Estado e da Região aos municípios, sobretudo


aos de menor dimensão, estádio de desenvolvimento e recursos, especialmente em
matéria de planeamento e ordenamento territorial, de elaboração de projetos, de
gestão administrativa e financeira, de auditoria, de polícia e fiscalização, de
fiscalização de obras, etc.;

e) Fazer aplicar, na administração municipal os mecanismos de democracia


local, participação cidadã e controlo social da administração municipal.

f) Numa perspetiva de fomentar a democracia participativa, a fim de inovar as


práticas de boa governação e de aproximar cada vez mais os munícipes, de forma
direta, ao Poder Local, no que se refere ao processo de tomada de decisão quanto à
vida da cidade, propor-se-á que as Câmaras Municipais cabo-verdianas adotem o
Orçamento Participativo, dando assim voz aos seus munícipes, e a possibilidade de
participarem ativamente nos projetos e planos que, de certa maneira, afetam todos os
citadinos.

Entende-se, assim, que a partir destas medidas e não só (haverá muito mais
que este estudo não abarca, mas que fique o desafio a novos estudos sobre este
tema), o Poder Local poderia alicerçar-se como elemento fundamental na

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consolidação de uma democracia mais descentralizada, promovendo políticas de


proximidade junto dos seus munícipes.

Portanto, a busca de modelos de organização das coletividades territoriais mais


adaptadas à realidade de Cabo Verde - geográfica, histórica e cultural - impele-nos
irremediavelmente para um equacionamento da problemática do desenvolvimento,
tendo como seu substrato e fator gerador a ilha. De facto, para além da natureza dos
municípios (rural e urbano), da sua localização (interior e litoral), da especificidade da
sua economia (turismo, agricultura, indústrias, serviços, etc.), o elemento decisivo e
único do processo de “formatação” do modelo é a realidade ilha, que reclama um
tratamento jurídico, institucional e político particular ou específico. A Constituição
exige-o diretamente, quando propugna, como condição da democracia económica, a
garantir pelo Estado e demais poderes públicos, “o desenvolvimento equilibrado de
todas as ilhas e o aproveitamento adequado das suas vantagens específicas” (CRCV,
artigo. 91º, 2 h), e indiretamente, quando manda estruturar a Administração Pública
com base nos princípios da racionalização, da eficácia e da unidade da ação
administrativa: inquestionavelmente que há tarefas públicas fundamentais,
relativamente às quais tais desideratos só podem ser alcançados no quadro territorial
da ilha (por exemplo, o ordenamento e planeamento territorial, o ambiente, a
infraestruturação, a prestação de certo nível de serviços de satisfação de
necessidades coletivas complementares, a polícia, etc.).

Assegurando uma escala maior, a ilha é também o território contínuo que


melhor permitirá suprir com eficácia e racionalidade as insuficiências dos municípios
que nela existam, na prestação de serviços fundamentais e, assim, garantir a
equidade, paridade e igualdade de oportunidades.

Entretanto, a participação dos cidadãos em eleições livres, regulares e


transparentes constitui, indubitavelmente, um importante fator de reforço da
democracia, pela responsabilização de políticos e pela crescente assunção dos
desafios dos municípios. Por outro lado, mudou, essencialmente, a atitude no
exercício e na partilha do poder, passando os municípios a serem vistos como
parceiros e não como concorrentes.

De facto, este é um passo importante para o Poder Local na consolidação da


democracia em Cabo Verde. Contudo, impõe-se rever o modelo de eleição dos órgãos
das Câmaras Municipais e aprofundar, por exemplo, o regime das finanças locais. Por
outro lado, a criação de Regiões Administrativas, como autarquias de grau superior
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aos municípios (CRCV no artigo 231º), poderá constituir uma nova e importante etapa
no reforço do poder local e, consequentemente, da democracia.

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CONCLUSÃO
O final do século XX ficou marcado, ao menos no campo da Ciência Política,
como a era da democracia. Nesse período constata-se, de uma forma geral,
processos de mudança de regimes não democráticos para regimes democráticos.
Muitos regimes autoritários passaram para a democracia, tendo este processo de
transição ocorrido, principalmente, nos países do Leste Europeu, onde provocou a
queda do comunismo. De igual modo, no continente africano significou o fim dos
regimes monopartidários. O anseio pela liberdade no seio das populações criou
grande expectativas na democracia como meio e garantia para melhorar a qualidade
de vida.

Porém, a transição democrática não garante de imediato o melhoramento da


qualidade de vida das populações. De facto, em muitos países, o processo de
transição para a democracia nem sequer tem garantido o que é considerado o básico
da democracia, como é o caso de liberdades civis e políticas.

Os processos de transição democrática em África suscitam ainda muita


incerteza. No continente africano, muitos estudiosos duvidam de uma real transição
democrática, isto é, se naquele continente pode considerar-se que houve uma
transição completa. Deste modo, a consolidação da democracia no continente africano
é uma realidade ainda muito remota. Recorde-se que a instauração da democracia em
muitos países africanos aconteceu graças às pressões externas, principalmente dos
países doadores.

O legado autoritário do colonialismo europeu, que se perpetuou no regime do


partido único, após a independência dos países africanos, associado aos problemas
étnicos, típicos de maioria dos países daquele continente, tornaram-se, sem dúvida,
uma barreira para a conclusão, com êxito, do processo de transição.

Em relação a Cabo Verde, objeto de estudo deste trabalho, o processo de


transição de regime, de uma forma genérica, possibilitou profundas transformações na
área constitucional. Cabo Verde, que após a independência optou por um regime
autoritário de partido único que se prologou durante quinze anos, tendo sob o seu
domínio os poderes Legislativo e Executivo e não dando espaço a nenhuma tentativa
de organização política diferente, adotou uma política socioeconómica alicerçada no
centralismo estatal e baseada na economia planificada, o que impediu, de certa
maneira, o processo de abertura política.

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Dada a sua dependência do exterior e a queda do comunismo no Leste


Europeu, Cabo Verde não teve outra alternativa a não ser dar início à transição
democrática. O contexto internacional foi fundamental para o início de processo de
transição política em Cabo Verde, embora este tenha ocorrido graças, também, à
colaboração dos líderes do regime monopartidário com o partido da oposição. De
salientar que o multipartidarismo em Cabo Verde só foi legalmente reconhecido nos
finais doas anos noventa, através da revisão constitucional, que permitiu a legalização
de partidos políticos.

As primeiras eleições livres e diretas em Cabo Verde, que ditaram a derrota do


que fora até aí partido único, comprova a perda da legitimidade que este tinha, pelo
facto de os seus líderes terem lutado de armas ao peito pela independência de Cabo
Verde. Por um lado, o desgaste político que durara quinze anos de autoritarismo e, por
outro, um partido recém-criado reivindicando a liberdade, não deixou nenhuma dúvida
ao povo cabo-verdiano em destituir do poder os dirigentes do partido único. Deste
modo, pode entender-se a vitória do MPD como um voto de mudança, ou mesmo um
voto de protesto contra o regime autoritário.

O processo de transição democrática em Cabo Verde contou tanto com o


partido único, que teve a iniciativa da abertura política, como da oposição que
implementou a dinâmica singular em todo o processo. Neste sentido, considera-se que
a transição política naquele arquipélago é um misto de transição por transformação e
transição por transtituição.

O papel da oposição foi fundamental na definição das regras do processo de


transição. Por isso, pode dizer-se que a transição política de Cabo Verde é fruto da
iniciativa do PAICV e do recém-criado MPD.

Grandes mudanças foram operadas pelo MPD, após ter sido eleito
democraticamente, principalmente no que se refere às liberdades e direitos que até
então não faziam parte do povo cabo-verdiano. Acabou com algumas instituições do
regime anterior, como por exemplo, a polícia política. No campo económico, em que o
antigo regime optou por uma política socioeconómica alicerçada no centralismo estatal
baseada na economia planificada, o novo governo iniciou uma política de privatização,
com o intuito de dar mais alívio à Administração Pública, e aos cofres do Estado.

Por outro lado, com as primeiras eleições livres em Cabo Verde, e a


confirmação da vitória do MPD, o Poder Local teve um novo paradigma. Durante os

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quinze anos do regime autoritário, o Poder Local não passava de um mero


prolongamento do Poder Central, isto é, durante a governação do PAICV/CV o Poder
Local não dispunha de uma autonomia própria, os representantes dos municípios
eram delegados do Poder Central ao qual estavam submetidos.

Desde a abertura política em Cabo Verde, o Poder Local tem sido um elemento
de preocupação dos sucessivos governos nos seus Programas, cujo objetivo é
descentralizar o poder, dando mais autonomia ao Poder Local, através do
financiamento de acordo com a realidade de cada município.

Entretanto, nas primeiras eleições autárquicas livres e diretas, realizadas em


dezembro de 1991, dos catorze municípios que elegeram Presidentes de Câmaras e
Assembleia Municipais, o MPD ganhou oito, contra dois do PAICV. As quatro restantes
foram vencidas por independentes que contaram com o apoio do MPD.

A participação dos cidadãos em eleições livres, regulares e transparentes


constitui, indubitavelmente, um importante fator de reforço da democracia, pela
responsabilização de políticos e pela crescente assunção dos desafios dos municípios.
Por outro lado, mudou, essencialmente, a atitude no exercício e na partilha do poder,
passando os municípios a serem vistos como parceiros e não como concorrentes.

De facto, este é um passo importante para o Poder Local na consolidação da


democracia em Cabo Verde. Contudo, impõe-se rever o modelo de eleição dos órgãos
das Câmaras Municipais e aprofundar, por exemplo, o regime das finanças locais. Por
outro lado, a criação de Regiões Administrativas, como autarquias de grau superior
aos municípios (CRCV no artigo 231º), poderá constituir uma nova e importante etapa
no reforço do poder local e, consequentemente, da democracia.

Ciente da limitação deste trabalho, devido à falta de bibliografia nesta área


especifica do Poder Local em Cabo Verde, fica desde já em aberto a continuidade
mais aprofundada deste tema, em estudos posteriores, a fim de complementar este
trabalho, tendo em conta a importância do tema, que muito pouco se tem estudado no
campo político cabo-verdiano.

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BIBLIOGRAFIA
Fontes primárias

Constituição da República de Cabo Verde (1980).

Constituição da República de Cabo Verde (1992).

Decreto-Lei nº93/82 de 6 de novembro de 1982 – Sobre divisão Administrativa do País

Lei 79/VI/2005 de 5 de setembro – Regime Financeiro das Autarquias Locais

Lei Constitucional nº2/III/90 de 28 de setembro – Revoga o artigo 4º institucionalizando


o princípio do Pluralismo

Lei nº 11/IV)96 de 11 de novembro – Cria o Município de São Miguel

Lei nº 23/IV/91 de 30 de dezembro - Cria o Município de Mosteiros

Lei nº 47/IV/92 de 6 de julho – Lei Quadro de Privatizações

Lei nº 63/VI/2005 de 9 de maio – Cria o Município de Ribeira Grande de Santiago

Lei nº 64/VI/2005 de 9 de maio – Cria o Município de São Lourenço dos Órgãos

Lei nº 65/VI/2005 de 9 de maio – Cria o Município de São Salvador do Mundo

Lei nº 66/VI/2005 de 9 de maio– Cria o Município de Santa Catarina ilha do Fogo

Lei nº 67/VI/2005 de 9 de maio – Cria o Município de Tarrafal de São Nicolau

Lei nº 69/VII/2010 de 16 de agosto - Estabelece o quadro da descentralização


administrativa bem como o regime de parcerias público-privadas de âmbito
regional, municipal ou local.

Lei nº 69/VII/2010 de 16 de agosto - Lei Quadro da Descentralização Administrativa

Lei nº 86/III/90 Regime Jurídico dos Partidos Políticos

Lei nº 96/IV)93 de 31 de dezembro – Cria o Município de São Domingos

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