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Para introduzir o Conceito de Sofrimento em Psicanálise

Christian Ingo Lenz Dunker

Introdução

Há uma diferença essencial do trabalho do psicanalista em Hospitais e demais


equipamentos de Saúde, em comparação com a sua Clínica Geral. No hospital ele não
apenas se ocupa das interveniências e incidências dos sintomas que precedem o
adoecimento, mas principalmente de efeitos da situação hospitalar caracterizada como
uma experiência de sofrimento. Incerteza diagnóstica ou efeitos deletérios de um mau
prognóstico, temores diante de intervenções e exames, recusa ou resistência a aderir ao
tratamento, efeitos indesejáveis da medicação ou da falta dela, dores e incômodos
gerados pelo adoecimento, efeitos iatrogênicos da vida em hospital, desencontros e
transferências com os cuidadores, enfermeiros e médicos, angústias e inibições que
cercam a finitude e a morte. Instrusões da realidade cuja espessura em relação à sua
reconstrução discursiva e rememorativa, se afina. Este conjunto de experiências não
caracterizam sintomas psicológicos por si. Eles também não se enquadram
semiologicamente apenas como formas específicas de angústia ou de inibição. Por
outro lado, encontramos uma palavra que parece descrever perfeitamente e em todas as
nuances a experiência de hospitalização: sofrimento.

A observação clínica sugere que a hospitalização, bem como os tratamentos


prolongados e no geral nossa relação e dedicação aos cuidados com a saúde tomam
parte na economia de nosso narcisismo, fazendo com que sintomas, inibições e
angústias, causem maior ou menor sofrimento. Segundo a hipótese deste texto isso
ocorre porque o que chamamos genericamente de sofrimento corresponde a uma
combinação entre demanda, identificação e transferência que interfere ou altera o
cálculo de gozo de um sujeito. Adoecer é sempre um abalo narcísico, contudo, sob
certas circunstâncias, que dizem respeito à fantasia inconsciente, este abalo interfere na
economia de gozo do sujeito desencadeando novos sintomas ou fazendo com que
antigos sintomas sejam vividos com mais sofrimento.

Contudo, se procuramos nos dicionários e vocabulários de psicanálise pelo


conceito de sofrimento nada será encontrado. Não há um texto, clássico ou de referência
consensual, sequer na história da psicanálise que se detenha sobre esta noção, que é ao
mesmo tempo nossa antiga companheira e mais íntima presença em tudo o que fazemos
na direção da cura e na condução de tratamentos. É possível que se tenha escrito mais
em psicanálise sobre o masoquismo, esta forma de extrair satisfação libidinal do
sofrimento, do que do sofrimento ele mesmo.

Quando procuramos um ponto de partida para esta noção vem em nosso auxílio
justamente os motivos que Freud elenca para introduzir outra ideia que lhe parece
conexa, a saber, o narcisismo1. Em seu consagrado estudo sobre o assunto, Freud elenca
cinco razões clínicas para introduzir o conceito de narcisismo em psicanálise: (1) a
regularidade das formas de amor das escolhas de objeto, (2) o agrupamento destas
escolhas entre as que baseiam-se em imagens nas quais alguém se reconhece ou que se
baseiam em protótipos culturais (como o pai protetor e a mãe nutridora), (3) a existência
de parafrenias, que só podem ser compreendidas a partir de conformações egóicas
diferentes das que encontramos na neurose e (4) a existência das neuroses atuais, que
colocam em consideração a vida sexual atual e a quantidade de libido transformada em
angústia.

Encontramos aqui os termos de nossa equação relativa ao adoecimento: a


escolha de objeto (identificação), nutrição e proteção (demandas), parafrenias
(transferência) e neuroses atuais (gozo).

Não há como não ver nestas quatro primeiras razões as razões mais comuns para
caracterizar as experiências de sofrimento, com ideias muito próximas: insatisfação
(sexual), estranhamento (identitário), inadequação (da imagem de si ao outro) e
infelicidade (amorosa). Nenhum destes quatro quesitos pode por si mesmo aspirar sua
condição de sintoma e cada qual pode estar mais ou menos acompanhado de fenômenos
de angústia ou inibição.

Mas o que nos chama a atenção é a quinta e última razão, que no texto de Freud
é a primeira, para introduzir o narcisismo: o adoecimento orgânico. A debilidade de
nossos corpos, a insuficiência de nossas leis e o caráter inexorável de nosso “comum
pertencer ao mundo”, do qual não podemos sair, são três condições freudianas do mal-
estar que convergem para a produção do adoecimento orgânico como paradigma do

1
Freud, S. (1914) Zur Enführung des Narzismus. Sigmund Freud Studienausgabe Vol IV. Frankfurt,
Fischer: 41-68.
sofrimento. Nele a debilidade de nossos corpos, a insuficiência de nossas leis e o caráter
inexorável de nosso destino se repetem, nos recolocando novamente diante do
desamparo e da passividade que tão marcadamente ocuparão a metapsicologia freudiana
da pulsão de morte.

Sofrimento como Patologia do Narcisismo

Mas o que significa uma doença orgânica? Uma pessoa que tem uma doença
orgânica, mas não sabe, enquadra-se no critério freudiano de introversão ao egoísmo e
regressão narcísica? Inversamente, suponhamos alguém que vive a suspeita da presença
de uma doença orgânica e que para tanto é internado para exames e estudos. Ao final
todas as hipóteses diagnósticas são descartadas. Mesmo assim esta pessoa foi tratada e
reconhecida como doente e isso não deixa de provocar efeitos subjetivos, ainda que
objetivamente nada tenha sido constado. Ou seja, o adoecimento é, antes de tudo, uma
experiência de saber. Um saber, composto pela experiência corporal e seus signos de
mal-estar, seus auto-diagnósticos e paradiagnósticos, que constituem este saber como
indeterminado diante de uma verdade porvir. A operação médica tem em seu horizonte
a transformação desta indeterminação em determinação, sobre a qual se poderia então
intervir e operar. Portanto, devemos assumir que a experiência do adoecimento começa
como um fato pré-médico. Ela é um saber suposto, uma hipótese, uma interpretação de
certos estados do corpo. Do ponto de vista psicanalítico a pessoa religiosa ou delirante
que se crê saudável contra todas as evidências está doente. Assim como o
hipocondríaco, que está convicto de possuir doenças que os outros não reconhecem, está
vivendo uma experiência de adoecimento. Para a psicanálise, o doente imaginário é,
ainda assim, um doente. O ato simbólico, por exemplo, de internação, assim como o ato
real de uma cirurgia não mudam nem alteram esta condição preliminar. Mas que nome
melhor a dar para esta “doença” que não sofrimento?

Por sugestão de Ferenczi, em seu texto de Introdução ao Narcisismo Freud parte


de uma observação clínica muito simples: a enfermidade orgânica influencia a
distribuição da libido:
“A pessoa afligida por uma dor orgânica [Schmertz] e por sensações penosas
[Missempfindung] resigna seu interesse por todas as coisas do mundo externo
[Aussenwelt] que não se relacionam com seu sofrimento [Leiden].”2

Encontramos aqui nossa palavra chave, “sofrimento”, remetida a duas outras


circunstâncias que lhe diferem, a dor e as sensações penosas. Há uma transformação
psíquica marcada pela redução de interesse pelo mundo, fenômeno, aliás, descrito
igualmente para a situação de luto. O que explica a observação subsequente de que
enquanto durar o sofrimento o paciente se torna incapaz de amar.

“O enfermo retira do Eu seus investimentos libidinais para poder reinvestí-los


quando se curar [Genesung]. (...) Na estreita cavidade de seu molar se recolhe
toda sua alma [Seele]. ”3

Surge então este estado de união e indiscernimento entre libido e interesse, as


duas formas de energia psíquica admitidas por Freud neste texto, que conferem ao
paciente, acometido por uma doença orgânica, este diagnóstico notório que qualifica seu
sofrimento como egoísta. Quando doentes nos tornamos indiferentes ao mundo e
incapazes de amar, mas este fato combina com algo que Freud não disse neste texto, ou
seja, o retorno e até mesmo o desencadeamento de novas formas de amar e de escolha
de objeto, muitas vezes se ligam ao processo de cura ou de recuperação da saúde. A
gratidão que experimentamos com relação aos que nos acompanharam na jornada de
adoecimento parece uma retribuição invertida pela tolerância que nossos próximos
tiveram para conosco e nosso egoísmo. O sentimento de sobrevivência e de restauração
exerce influência benéfica não apenas para a experiência imaginária de que retornemos
ao estado anterior, mas para que o façamos com um acréscimo importante, agora somos
alguém que resistiu, que sobreviveu, que passou por uma experiência. Esta experiência
terá um nome, uma data e constituirá muitas vezes um marco simbólico na vida de
alguém. No que toca ao sofrimento esta experiência envolverá todos os que estavam
juntos conosco. Passamos assim de uma experiência indeterminada de saber para uma
experiência determinada de sofrimento. O produto final das sequelas, traumas, inibições
e angústias, que carregamos conosco ao fim do adoecimento, constitui um saber, como
um estado de espera até que outro evento similar aconteça em nossa série dos
adoecimentos. Nossa experiência de adoecimento está profundamente determinada
2
Idem: 49.
3
Ibidem
pelas experiências anteriores, eis aqui outro fato trivial. Nem tão trivial é dizer que isso
constitui uma espécie de anamnese, que faz parte de como saber e verdade se articulam
para um dado sujeito, a estrutura narrativa de seu sofrimento:

Sejamos categóricos: não se trata, na anamnese 4 psicanalítica, de realidade, mas de


verdade, porque o efeito da palavra plena é reordenar as contingências passadas, dando-
lhes o sentido das necessidades por vir, tais como as constitui a escassa liberdade pela
qual o sujeito as faz presentes5.
Retenhamos o modo como Lacan define sua racionalidade diagnóstica como
uma anamnese, ou seja, uma reconstrução envolvendo processos como memória,
recordação, desesquecimento e rememoração. Quem diz anamnese diz reconstrução. E
esta reconstrução não é da realidade, como a que encontramos na diagnóstica da
medicina, que conjectura sobre as relações entre sistemas, órgãos, funções e
substâncias, mas é uma reconstrução da verdade. Por isso a cura, se é que este termo
tem um sentido em psicanálise, não é a remoção dos sintomas, mas a experiência de
retomada da consciência.
Voltemos ao problema do sofrimento examinando agora o problema da
hipocondria. Nela ocorre, aparentemente, uma relação inversa a que observamos no
contraponto e razão levantada por Freud para introduzir o conceito de narcisismo. Não
se trata de um saber indeterminado, mas de convicção e certeza. Ao contrário da doença
orgânica, as causas e os fundamentos das alterações, sentidas como penosas e dolorosas
“não são comprováveis” [Fallen nich]6. Ora, aqui há um erro clínico clamoroso de
Freud. Como se um hipocondríaco que verifica e comprova a doença da qual ele
convictamente sofre, tivesse deixado de ser hipocondríaco. Obviamente falso. Conforme
o adágio: “não é porque você é paranoico que os outros não te perseguem”. O critério
para o diagnóstico de hipocondria não é a irrealidade da causa, mas a convicção ou
certeza relativa à verdade. Se assim fosse não haveria diferença entre o diagnóstico em
psicanálise e o diagnóstico em medicina. Não é a lesão de órgão, presente ou ausente,

4
“Anamnese: literalmente, o termo significa recordação. Em medicina, refere-se comumente à descrição
da história da doença de um paciente que precede o período da própria doença. Distingue-se da
catamnese, que se refere à história do paciente após uma doença.” Robert Campbell, Dicionário de
Psiquiatria (São Paulo, Martins Fontes, 1986), p.38.
5
Jacques Lacan, “Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise” (1953), em Escritos, cit., p.
257.
6
Idem: 50.
que define um fenômeno psicossomático, mas a posição do sujeito e o cálculo de gozo
que estabelecem a relação particular entre corpo, carne e organismo 7. Relação de
homologia borromeana entre organismo dotado de imaginária consistência que é
ameaçada pelo adoecimento, de corpo simbólico, cujo buraco de saber apresentamos
anteriormente e de ex-sistentência da carne, que se apresenta no fenômeno clínico da
convicção hiopocondríaca:

“A hipocondria pode exercer, sobre a distribuição da libido, idêntico efeito que a


contração de uma enfermidade material dos órgãos.”8

Ora, permanece a dúvida então sobre a diferença entre hipocondria, incluindo aí


o sentimento de estar adoentado, ainda que não se saiba muito bem do quê, e a doença
orgânica, sobre a qual muitas vezes não se tem além de suspeitas clínicas e de fratura no
saber. A aproximação que Freud faz entre a hipocondria e as parafrenias, ainda no texto
sobre o narcisismo, pode nos ajudar a entender o problema, mas também pode
obscurecê-lo. Nem toda hipocondria é um sintoma de psicose, ainda que na psicose,
principalmente nos litorais de desencadeamento, seja frequente sintomas
hipocondríacos. Nas parafrenias, termo formulado por Freud para unificar esquizofrenia
e paranoia, encontramos outra relação com o adoecimento. Muito frequentemente a
hospitalização desencadeia sintomas, mas, curiosamente, também os pacifica. Tal efeito
depende não apenas do estatuto de verdade, mas da dimensão de realidade que uma
internação pode trazer em termos de pacificação ou de tensionameto do delírio. Em
outras palavras, o evento “objetivo” do adoecimento tem efeitos de acirramento ou de
estabilização do sofrimento, porque ele altera a relação entre saber e realidade pela
intromissão de um novo discurso: o discurso médico.

A Estrutura Performativa do Sofrimento

O que Freud parece ter descrito, com seu breve exemplo clínico para introduzir o
conceito de narcisismo é que o sofrimento é uma categoria que se aproxima do que os
filósofos da linguagem chamam de performativo. Em outras palavras, existem estados
de ser que independem do modo e do tempo no qual são descritos. Por outro lado há

7
Dunker, C.I.L. (2011) Corpo, carne e organismo. In Assadi, T.; Ramirez, H. & Dunker, C.I.L. O Corpo como
Litoral. Fenômeno Psicossomático e Psicanálise. São Paulo: Annablume.
8
Idem: 51
certas situações que só existem em função de certas propriedades pragmáticas da
linguagem. Para usar o vocabulário do pós-estruturalismo 9, nos atos ilocucionários, por
exemplo, nas descrições de estados de coisas em terceira pessoa, a ontologia é fixa e a
epistemologia é variável. Temos vários pontos de vistas ou perspectivas sobre um
mesmo objeto (o organismo). Nos atos performativos dá se o contrário. A epistemologia
é fixa, determinada pelo sujeito em primeira pessoa e as ontologias é que são variáveis
(corpo, carne, organismo). Descoberto nos anos 1960 por J.L. Austin os performativos
deram origem à teoria dos atos de fala (Searle) e influenciaram o pensamento crítico
(Habermas).

“(...) exemplos de enunciados performativos são “Neste momento, eu vos


declaro marido e mulher” e “Batizo este navio” de HMS Pooty. Fica claro, que
os enunciados não surtirão efeito a não ser que certo número de condições
necessárias estejam preenchidas. Trata-se de condições de felicidade para esse
enunciado. Se as condições de felicidade não forem satisfeitas, o enunciado
resultante não será exatamente falso ou errado, será apenas infeliz e não terá
efeito (entenda-se: não terá os efeitos previstos).10

A descoberta de verbos e enunciados performativos representou um giro de


abordagem da linguagem, antes concentrada na verdade ou falsidade de proposições,
para as condições de felicidade ou infelicidade de um ato performativo. A experiência
de sofrimento, como uma experiência ligada ao narcisismo, possui uma estrutura
performativa. A hipocondria pode ser descrita como uma patologia do performativo
ligado ao adoecimento, uma patologia que não encontra no outro as condições
discursivas pelas quais seus enunciados poderiam ser considerados felizes. O
adoecimento orgânico só é adoecimento orgânico, em sentido freudiano, quando os
performativos necessários para que alguém seja considerado doente são efetivamente
realizados, e quando os enunciados que compõe o sofrimento são feitos de modo feliz
(no sentido linguístico-discursivo do termo). Temos então uma partição aplicável ao
conceito psicanalítico de saber: saber descritivo e saber performativo. Esta ultima
acepção é aproximável do saber-fazer (savoir y faire), que caracteriza o fazer do
psicanalista e o saber do analisante em sua relação com o sintoma.

9
Viveiros de Castro (2015) Metafísicas Canibais. São Paulo: Cossacnaify.
10
Trask, R.L. (2004) Dicionário de Linguagem e Linguística. São Paulo: Contexto, pág. 227.
Esta dimensão performativa da linguagem é que o Lacan tentou descrever com
seus desenvolvimentos em torno da noção de saber (savoir). Particularmente ao final de
seu ensino ele argumenta que o próprio inconsciente deveria ser lido como um saber
tolo (une bevue). Para isso ele joga com o radical alemão wiessen (saber), contido na
expressão alemã para inconsciente (Unbewusst). Ele observa que este radical “be” antes
do verbo saber (bewiessen) denota um substantivo, mas também pode ser lido como um
saber que se apropria de si mesmo, um saber que se sabe como tal apontando para um
sujeito ciente, consciente ou sapiente (bewiessen). Portanto a negação, contida no mais
importante conceito da psicanálise, é uma negação indeterminada, pois ela pode se
remeter tanto ao sujeito como aquele que sabe (bewiessen), quanto ao saber ele mesmo
[Un (..) wiessen)], insabido, mal-sabido, tolice e ainda ao saber verdadeiro e constituído
(o já sabido). A confusão decorre do fato de que os cognatos de wiessen, referem-se a
três conceitos distintos: saber descritivo, ter consciência e saber performativo. Isso nos
ajuda a esclarecer a tripla dimensão do conceito de sofrimento. Ele é referido à verdade,
quando se trata da negação do saber expressa por seu estado de indeterminação (dúvida
incerteza, espera, hesitação). Ele é referido à “felicidade” quando se trata de sua
efetividade pragmática determinada (reconhecido, não reconhecido, parcialmente
reconhecido). Finalmente, ele é referido à realidade, quando se trata da consciência,
como instância de objetificação, alienação e determinação e pode se apresentar como
indeterminação em fenômenos como o estranhamento (Unheimlich), a descrença
(Unglauben), o trasitivismo, a despersonalização e a dissociação.

Agora estamos em condições de sugerir uma distinção inicial se queremos


entender a experiência de sofrimento, tomando como ponto de partida o narcisismo e
dentro dele a oposição entre adoecimento orgânico e adoecimento hipocondríaco.
Podemos discernir a existência de um sofrimento de determinação no qual sofremos
com um saber que nos atinge pragmaticamente, para o qual temos os nomes, as causas e
para qual os enunciados do adoecimento são felizes ou infelizes, no sentido de que eu os
subjetivo, que eu “acredito” em sua eficácia, ou que eu “confio” em meu interlocutor.
Freud nos lembra que genericamente sofremos porque estamos sendo determinados por
forças que supostamente vão contra nossa vontade: a decomposição do corpo, a
injustiça das leis, a exiguidade de nossa presença no mundo. Podemos nos perguntar
aqui qual ou quem é o sujeito deste processo de adoecimento? O paciente ou o médico?
O discurso do sujeito ou da instituição? Da família ou do Estado? Do Outro que dele se
encarregou performativamente de cuidar, tratar e curar, ou daquele que deveria ser
agente de seu próprio processo de adoecimento?

Nossa tese do adoecimento corpo, carne e organismo como uma experiência


pragmática de saber e a decomposição deste saber em sua face inconsciente, permite
dirimir uma segunda forma de sofrimento: o sofrimento de indeterminação. Inclui-se
aqui os casos nos quais não se realizam perfeitamente os performativos e, portanto, a
felicidade dos enunciados não encontra suas condições de realização. Isso ocorre, por
exemplo, quando a “teoria da doença” que o paciente pratica diverge substancialmente
ou performativamente da “prática da cura” que o hospital oferece. Isso acontece tanto
no caso dos transtornos factícios (hipocondria, Münchausen, Síndrome de Ganser), mas
também nas situações mais comuns de “não aderência” ao tratamento, de resistência aos
procedimentos, de desistência, de eutanásia ou de distanásia.

No caso do sofrimento de determinação é possível reconhecer a presença da


função nominativa como indutora do sintoma. Há um nome, ao qual se atribui função
causal e narrativa, e desenvolve-se em torno de uma coerção (necessidade) ou de uma
impossibilidade (como negação do possível). O transitivismo apresenta o sintoma como
ego-distônico e o sujeito se faz reconhecer por sua forma de sofrimento: se identifica
com sua demanda. A comunicação do diagnóstico costuma ser um bom exemplo de um
ato de determinação do sofrimento.

No caso do sofrimento de indeterminação estamos diante da ausência da função


nominativa indutora do sintoma. A narrativa desenvolve-se em torno de uma
contingência: mal-encontro, estranhamento, mal-estar poliqueixoso. O transitivismo
apresenta o sintoma como ego-sintônico e o sujeito não se identifica com a demanda
expressa em seu sofrimento. A incerteza prognóstica é um exemplo do sofrimento de
indeterminação.

Para o médico pode não fazer diferença a concepção de doença que o paciente
pratica. Aliás, este é um dos marcos característicos da nova medicina clássica, que,
depois de 1785, segundo a hipótese de Foucault11, tornou-se uma medicina na qual a
teoria do adoecimento propagada pelo paciente deve ser silenciada. Contudo, para o
psicanalista esta diferença constitui um discurso, o discurso do sofrimento, no qual a
transferência pode ou não facilitar os cuidados que o médico quer e deve lhe dispender.
11
Foucault, M. (1968) O Nascimento da Clínica. Rio de Janeiro: Forense, 1988.
1. O Sofrimento como Patologia do Reconhecimento

Para introduzir a metapsicologia do conceito de sofrimento em psicanálise nosso


método consistirá em dois movimentos. Primeiro procederemos a uma reconstrução das
formas de emprego e da função nocional desta expressão nas obras de Freud e de Lacan.
Em seguida compararemos a incidência nocional e clínica da noção de sofrimento com
os conceitos de sintoma e de mal-estar. Nestes dois movimentos tentarei delimitar a
noção de sofrimento como uma patologia da economia de reconhecimento, ou seja, uma
inflexão dupla do narcisismo sobre o sintoma e do sintoma sobre o mal-estar. Nossa
hipótese é de que o sofrimento sempre responde a um déficit de reconhecimento, seja do
ponto de vista dos atores imaginários, do Outro simbólico ou de atos reais.

As patologias mais gerais do reconhecimento foram descritas por Honneth,


recuperando o diagnóstico de época praticado por Hegel, como o desrespeito,
ressentimento, solidão, apatia e experiência de vacuidade. O sofrimento exprime,
consequentemente, a articulação entre as fantasias do sujeito, os sentimentos sociais que
regulam suas trocas simbólicas e a dialética de reconhecimento do desejo. Esta dialética
compõe-se de três momentos, que podemos associar com os três estados do saber,
anteriormente examinados. Ou seja, o sofrimento é condicionado pela subjetivação do
saber na demanda. Ele envolve, portanto as vicissitudes pragmáticas do
reconhecimento, cuja gramática Lacan esboçou no seminário XII: Comandar
(comande), Mendigar (quémande), Exigir (to demand), Pedir (to beg). A demanda de
ser reconhecido (saber-se um objeto e ter sua imagem reconhecida e determinada pelo
outro), ato ou o trabalho de fazer-se reconhecer (saber determinado quanto aos meios e
indeterminado quando aos efeitos) e o reconhecimento do desejo (na indeterminação de
seu objeto e na determinação dos significantes que o suportam). Portanto, a dialética do
reconhecimento não deve ser confundida, como tão frequentemente ocorre, com
reconhecimento imaginário. A dialética do reconhecimento é a primeira versão do Real,
Simbólico e Imaginário.

Do ponto de vista clínico é relevante estabelecer quais são as condições que


tornam um sintoma apto a produzir mais ou menos sofrimento, ou ainda, sob que
circunstâncias o sofrimento em sua relação com o sujeito engendra formas de demanda,
de inclusão ou rotação de discurso ou ainda de transferência. Noções como o cálculo
neurótico do gozo12, fracasso da fantasia13 e masoquismo cultural14, vem sendo evocadas
para dar conta desta variedade de estados do sintoma. Genericamente elas tentam
descrever operações de corte, escrita e sutura no saber em seu litoral para com o gozo.

Em Freud se há um esboço de autonomização do conceito de sofrimento isso é


tardio na obra. Poderíamos localizar como momento fundamental o texto sobre o
humor, que procura reexaminar o problema discursivo do chiste à luz da hipótese da
pulsão de morte e do mal-estar:

“Com sua defesa frente a possibilidade de sofrer (Leidenmöglichkeit) ocupa um


lugar dentro da série daqueles métodos que a vida anímica dos seres humanos
mobilizou a fim de subtrair-se da compulsão de sofrer (Zwang des Leidens), uma
série que se inicia na neurose e culmina no delírio, e na qual se inclui a
embriaguez, o abandono e o êxtase.”15

Temos aqui a inusitada expressão compulsão a sofrer, análogo e caso particular


da compulsão a repetir, que será tema central do texto imediatamente posterior, Mal-
Estar na Civilização. Nesse texto Freud afirma que o sofrimento humano é proveniente
de três fontes: do próprio corpo, do mundo exterior e da relação com o outro.

Em Mal-Estar... a noção de sofrimento impõe algumas técnicas ou estratégias


entre as quais o recalque seria um caso particular 16. Ou seja, o sofrimento é uma
categoria clínica transversal, uma vez que relaciona-se horizontalmente com as grandes
estruturas defensivas como o recalque, a foraclusão, a renegação e a clivagem e
relaciona-se também verticalmente com as noções psicopatológias de sintoma, de dor,
de angústia, de inibição, de mal-estar. No texto em questão o sofrimento coloca em
relevo a impotência do eu diante do real, assim como o humor é uma forma de fazer o
supereu “consolar o eu, colocando-o a salvo do sofrimento”17.

12
Dunker, C.I.L. (2002) O Cálculo Neurótico do Gozo. São Paulo, Escuta.
13
Amigo, S. (2005) Clínica dos Fracassos da Fantasia. Companhia de Freud. Rio de Janeiro, 2005.
14
Silva, Jr. (2012) L´irremédiable soufrance de l´ a culture. In Coelen, M., Nioche, C & Santos Jouissance
et Soufrance. Paris, Campagne Premiére: 83-95.
15
Freud, S. (1927) Der Humor. Sigmund Freud Studienausgabe Vol IV. Frankfurt, Fischer: 279. Tradução
do autor.
16
“Uma satisfação irrestrita de todas as necessidades apresenta-se como o método mais tentador de
conduzir nossas vidas; isso, porém significa colocar o gozo antes da cautela, acarretando logo o seu
próprio castigo.” (FREUD, 1930/1974. p.96)
17
Op cit: 282.
2. Motivos Clínicos para Introduzir o Conceito de Sofrimento

A questão do sofrimento é clinicamente relevante, pois permitiria entender uma


série de vicissitudes desde a interrupção, não aderência ou aderência inconstante a
tratamentos em geral, inclusive o psicanalítico. Faz parte de considerar o paciente como
sujeito de sua própria experiência de adoecimento, acolher sua maneira própria de
sofrer. E esta estilística do sofrimento comporta escolhas, no sentido de escolha
inconsciente. Considerada esta outra forma de escolha, que não é apenas a escolha
forçada do fantasma, como saber que estamos diante do sofrimento que acompanha a
renúncia e o encontro com a castração e quando estamos diante do sofrimento que é
incremento do masoquismo moral propiciado pela própria psicanálise?

Há, portanto, dois caminhos de investigação que devem se cruzar: o


mapeamento da incidência e da interferência da noção de sofrimento considerada a
partir da relação com o sintoma e com a angústia, portanto com as estruturas clínicas, e
a dedução de formas específicas de sofrimento a partir de articulações do mal-estar e,
portanto, da fusão e desfusão da pulsão de morte. Tais formas dependem da perspectiva
que se assume diante do sofrimento, por exemplo, mostrou-se em estudo anterior 18 que a
variedade de atitudes e de interpretação diante do sofrimento do outro corresponde à
variedade de recepção narrativa do próprio sofrimento, da crueldade à compaixão, da
valentia à fuga.

Outro motivo para valorizar a noção de sofrimento decore de sua exclusão


metodológica por parte sistemas diagnósticos como DSM e CID. Apesar de sua
aceitação e uso crescente por parte das políticas públicas, a categoria de “sofrimento”
não é médica, mas social. A partir dos anos 1980 tornou-se cada vez mais claro que
certas formas de vida, envolvendo posições laborais19, de gênero20 e de classe21,
condições de escolarização e situações de vulnerabilidade social 22, tais como
imigração23 e pobreza, associam-se regularmente com sintomas psíquicos. Aos

18
Donoso, Marie Danielle Brulhart (2013) Reflexões sobre duas Modalidades de Crueldade diante a
Vítima. Iniciação Científica, IPUSP, orientação Nelson da Silva Jr.
19
Dejours, C.; Lancman, S. & Sznelwar, L. (2008) Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodiâmica do
Trabalho. Rio de Janeiro, Paralelo 15.
20
Costa Silva, R.M. (2011) Raça e Gênero na Saúde Mental do Distrito Federal. Curitiba: CRV.
21
Barata, R.B. (2009) Como e Por Que as Desigualdades Sociais Fazem Mal à Saúde. Rio de Janeiro:
Fiocruz.
22
Donnangelo, M.C.F. & Pereira, L. (2011) Saúde e Sociedade. São Paulo: Hucitec.
23
Rosa, M.D.; Carignato, T.T. & Alencar, A.L. (2013) Desejo e Política: desafios e perspectivas no campo
da imigração e refúgio. São Paulo, Max Limonad.
transtornos por esforço repetitivo, as alexitimias e a quadros psicossomáticos dos anos
1980, devemos acrescentar o sofrimento de gênero, o sentimento de inadequação social
e a incongruência corporal crônica, ascendentes nos anos 1990, que tornaram as doenças
mentais a principal causa de afastamento do trabalho e da escola nos anos 2000. Mas se
os “problemas de sofrimento psíquico não são separáveis do conjunto das condições de
vida das pessoas”24 ainda não se encontrou um modelo que permita comparar
clinicamente modalidades de sofrimento com tipos de sintoma, no quadro do que se
poderia chamar de uma psicopatologia crítica. Alguns passos nesta direção foram dados
por Ehrenberg25 com relação à depressão, Malabou26 para as síndromes demenciais e
para várias condições clínicas como paranóia e esquizofrenia, histeria e narcisismo,
fetichismo e anomia, em nossa pesquisa anterior junto ao Laboratório de Teoria Social,
Filosofia e Psicanálise (Latesfip-USP)27.

A noção de sofrimento, se é pertinente nossa associação desta com a sua


incidência sob forma de narrativa, permite pensar a unidade dos sintomas, da angústia e
da inibição, retomando a antiga categoria de “história da doença”. A postulação da
neurose, da perversão e da psicose como unidades etiologicamente distintas,
contrariamente à fragmentação sindrômica de sintomas desconectados, que
reconhecemos em um sistema diagnóstico como o DSM, não implica apenas opor
unidade causal e descrição semiológica, mas redução da possibilidade de contradição e
de redescrição exigida pela metapsicologia. Esta unidade não precisa ser definida pelo
nexo fixo e regular entre sintomas e causas, uma vez que ela envolve ainda a função
narrativa do sofrimento, como uma espécie de história, ainda que coartada que une e
articula sintomas conferindo-lhe valências de sofrimento, ou, em caso contrário
impedindo e bloqueando o reconhecimento de certas formas de sofrimento.

A antropologia do adoecimento descreve quatro narrativas fundamentais para


articular a causalidade do sofrimento: a perda da alma, a violação de um contrato, a
intrusão de um objeto e o desmembramento da unidade sistêmica do espírito. Seriam

24
DELEGATION INTERMINISTERIELLE AU REVENU MINIMUM D’INSETION et DELEGATION
INTERMINISTERIELLE A LA VILLE ET AU DEVELOPPEMENT SOCIAL URBAIN. (1995). Président: Antoine
Lazarus. Une souffrance qu’on ne peut plus cacher. Rapport du groupe de travail ‘Ville, santé mentale,
précarité et exclusion sociale’, février, 1995:33.
25
Ehrenberg, A. (1998) The Fatigue of being oneself - Depression and society, Odile Jacob, Paris.
26
Malabou, C. (2007) Les Nouveaux Blessés, Paris, Bayard.
27
Dunker, C.I.L; Safatle, V. & Silva Jr. (2014) Patologias do Social. São Paulo, CossaNayf (no prelo).
estas narrativas articuláveis com as hipóteses etiológicas que verificamos na psicanálise
da seguinte maneira:

Forma de Sofrimento Modelo de Etiologia do Sintoma


Alienação como perda ou extravio da Defesa e Recalcamento
alma, esvaziamento, solidão ou apatia
Ruptura de contrato e sentimento social de Complexo de Édipo e Castração
desrespeito ou indignidade
Objeto intrusivo, estrangeiro ou Sexualidade e Trauma
deficitariamente reconhecido
Perda da unidade do espírito, anomia ou Fusão e Desfusão das Pulsões
fracasso ou excesso de individualização
da experiência

Para um desenvolvimento mais pormenorizado destas narrativas remeto o leitor


a trabalhos anteriores28 nos quais tentei mostrar como o sofrimento condiciona a teoria
freudiana do diagnóstico. Cada uma destas narrativas apreende com melhor precisão os
diferentes elementos de nossa equação de adoecimento. A fusão e desfusão das pulsões
descrevem com precisão a compulsão à repetição, como saber insensato, que pode
cercar um adoecimento. A sexualidade traumática apreende o papel específico da
fantasia no transcurso do adoecer, como saber emergente e não antecipável. O complexo
de Édipo e a castração compõe uma narrativa cujo cerne é a identificação do saber sobre
a castração. Finalmente a teoria da defesa, como gramática de negações e retornos do
desejo, descreve com profundidade o que Lacan chamou de circuito das voltas da
demanda e, portanto, as relações, antes examinadas, entre saber e demanda.

Curiosamente estas quatro incidências gerativas da causalidade do sofrimento se


reapresentam nos usos e empregos do conceito de objeto a em Lacan: como objeto da
angústia (castração), como objeto da fantasia (identificação), como objeto causa do
desejo (demanda), como objeto agalma (transferência) e como objeto mais-de gozar,
(discursos). Cada uma delas representa um entendimento do que vem a ser a perspectiva
do sujeito e a desconstrução do intérprete do sofrimento29. O objeto a afigura-se assim
28
Dunker, C.I.L. (2015) Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma. São Paulo: Boitempo.

29
Silva, Jr. (2007) Whos there?” A desconstrução do intérprete segundo a situação psicanalítica. Revista
Ide (São Paulo) v.30 n.44 São Paulo jun. 2007.
como uma espécie de ponto de convergência e amarração daquilo que compõe um
quadro de sofrimento: suas inúmeras perspectivas e linhas de horizonte, seu ponto de
exclusão do olhar em relação ao ver, a armadilha ou demanda que o quadro faz ao outro
e também a fantasia que é dada pela sua moldura.

Extraímos o modelo de narrativa do sofrimento da hipótese lacaniana, formulada


pela primeira vez por Lévi-Strauss, de que a neurose é um mito individual. Mas
teríamos que acrescentar ao mito o rito. Ela é uma espécie de mito prático, formado por
injunções impossíveis quando tomadas em sua totalidade, mas perfeitamente ordenadas
quando considerada em feixes isolados ou em conexões duais. Temos então três pilares
da noção de sofrimento: a sua forma estrutural (simbólico) da narrativa mítica
(imaginário), seu conteúdo histórico (Real) apresentado como realidade (imaginário-
simbólico) e suas estratégias de nomeação (simbólico-imaginário) do mal-estar (real). É
esta tripla inserção da verdade, da realidade e da certeza no sofrimento que pretendemos
traduzir aqui em acordo com a tese de que: “a verdade do sofrimento é o sofrimento ele
mesmo” 30.

Podemos associar cada uma destas hipóteses freudianas sobre o sofrimento com
figuras narrativas fundamentais do sofrimento em nossos mitos de sofrimento
contemporâneos. Poderíamos eleger o vampiro como figura máxima do adoecimento
que articula tanto os que cuidam quando o próprio paciente em uma relação de
possessão e despossessão de si. Ao lado dos fantasmas, dos Zumbis e dos
Frankensteins os vampiros constituem narrativas que dão corpo a uma determinada
demanda. São figuras paradigmáticas para falar do objeto intrusivo (Vampiro), da
alienação (Zumbi), da dissolução da unidade (Frankenstein) e do contrato (Fantasma).
Retomando a dialética lacaniana do reconhecimento vemos que as narrativas de
sofrimento são expressões dos performativos da demanda articulados com um objeto de
gozo: comandar (Vampiro), mendigar (Zumbi), exigir (Fantasma), pedir
(Frankenstein). Elas nos falam de experiências de perda do corpo (Fantasma), de
intrusão da carne (Frankenstein), de autonomização do organismo (Zumbi) ou de
reversão perpétua entre carne e corpo (Vampiro).

30
Lacan, J. (1965) O Seminário Livro XIII O Objeto da Psicanálise. «Quand je dénonce, par exemple, omme
non vérité, d’énoncer au nom d'une certaine phénoménologie qu'il n'y a pas d'autre vérité de la souffrance que la
souffrance elle–même, je dis : ceci est une non–vérité tant qu'on n'a pas prouvé que ce qui s'est dit au nom de
FREUD… que la vérité de la souffrance n'est pas la souffrance elle–même « . Versão Staferla.
A Noção de Sofrimento em Lacan

Na tese de 1932 Lacan faz referência ao heutontimorumenos, estas


personalidades que se comprazem em se atormentar. O termo procede de uma peça do
poeta e comediógrafo latino Terêncio na qual um pai que aplica um castigo severo
demais a seu filho emprega-se como escravo na fazenda vizinha para se punir, para se
desculpar e para se atormentar. O termo é empregado por Lacan para definir a
personalidade de Aimée:

“Estes tipos clínicos com os quais o caráter de nosso sujeito revelou sua
congruência precisa, o psicastênico e o sensitivo, não se revelam eles próprios
por suas reações mais marcantes, seus escrúpulos obsessivos, pela inquietude de
sua ética, por seus conflitos morais internos, como belíssimos tipos de
“heautontimorumenoi”: toda sua estrutura pode, ao que parece ser deduzida da
prevalência dos mecanismos de autopunição.”31

Sabemos que Lacan confere vários diagnósticos à Aimée, desde o bovarismo


que assediou sua faculdade imaginativa, até este menos conhecido de que ela era uma
heautontimorumenoi. O termo descreve com precisão uma forma de sofrimento, que
não devemos confundir com o masoquismo. Ou seja, não se trata apenas da modalidade
de gozo, que se compraz no sofrimento, afinal neste caso todo neurótico cairia sob esta
condição tornando o diagnóstico inútil pela sua generalidade. No caso em questão temos
uma prática específica que são os rituais de expiação.

Devemos notar que Lacan cita Terêncio, mas não desconhece que quem
reabilitou o termo foi Baudelaire32em seu poema homônimo, que se encerra da seguinte
maneira:

“Eu sou a faca e o talho atroz!


Eu sou o rosto e a bofetada!
Eu sou a roda e a mão crispada
Eu sou a vítima e o algoz!

Sou um vampiro a me esvair


31
Lacan, J. (1932) Da Psicose Paranóica em suas Relações com a Personalidade. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1987 (254).
32
Baudelaire, C. (1888) As Flores do Mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985:307..
- um destes tais abandonados
Ao risco eterno condenados,
E que não podem mais sorrir.”

Notemos a insistência na relação existencial (“Eu sou”) dirigida a uma


identificação que não é nem com o agente nem com o paciente da ação, mas algo que
lhe seria intervalar, como na expressão freudiana para a fantasia “Bate-se em uma
criança”. Ora, esta diagnóstica do sofrimento, que já aparecia em Aimée, se
desenvolverá em Lacan, em torno do problema crucial da historicidade das formas de
sofrimento encontra-se já na conhecida afirmação de Lacan, datada de 1938, a saber:

“(...) o declínio da função social da imago paterna trará uma substituição da


forma neurótica de sofrimento pela forma caracterial (narcísica)” 33

Não se pode ignorar a incidência da expressão sofrimento, nesta passagem


crucial de Lacan, tantas vezes lida e reinterpretada como chave de entendimento para a
transformação social dos sintomas. Nossa hipótese implica considerar que a narrativa do
sofrimento, reaplicável para as outras formas de conexão entre mal-estar e sintoma
traduzem a noção tão importante de ficção, contida na tese lacaniana de que “a verdade
se estrutura como uma ficção”.

Lembremos que A Carta Roubada, título do conto de Edgar Alan Poe e modelo
de interpretação estrutural do desejo em sua relação com o significante e
particularmente com o falo, é uma carta em espera (souffrance), uma carta em
sofrimento (souffrance). Lacan fala em uma carta não retirada 34 e de uma espera. Mas
espera de quê, senão de reconhecimento, qual mensagem jogada ao mar em uma
garrafa.

“(...) nós que nos fazemos de emissários de todas as cartas roubadas que ao
menos por algum tempo, ficam conosco em souffrance, sem ser retiradas na
transferência.”35

A primeira conotação do verbo souffrir em francês data de 1050 e remete a


“suportar algo penoso ou desagradável”. Ela descende do latim “suferro” sustentar,
33
Lacan, J. (1938) Complexos Familiares. Jorge Zahar, 1998:45.
34
Lacan, J. (1955) Seminário sobre a Carta Roubada. In Escritos,São Paulo: Jorge Zahar, 1998 (33).
35
Op. cit: 41.
resistir, tolerar o castigo infligido. Portanto o sentido primitivo de sofrer é resistir,
aguentar, sustentar. Dele deriva o “tolerar”, e daí a “souffrance” como espera e
pendência de “assuntos mal resolvidos”. É na segunda vertente da palavra, de extração
mais cristã, que nos remete a passividade e paixão, denotando o sentimento que liga
algo físico a uma experiência moral. Só no uso posterior a 1530 consagrou-se o
sofrimento no sentido de “aflição, martírio, tortura e tormento”. Cabe destacar que a
expressão malaise, que traduz em francês o termo germânico Unbehagen (mal-estar) é
uma variação do sentido primário de souffrance, ou seja, como espera indeterminada,
resistência sem esperança, expectativa sem recurso36.

É por isso que Lacan pode delimitar o campo de intervenção da psicanálise pela
suposição de que há uma verdade no sofrimento. Diferentemente da ideia de que a
“verdade da dor é a própria dor” a verdade do sofrimento depende de que ele seja
reconhecido, contado, ficcionalizado e isso definiria a própria atividade do psicanalista:

“(...) sim ou não, isso que vocês fazem tem o sentido de afirmar que a verdade
do sofrimento neurótico é ter a verdade como causa?”37

Há aqui uma tese importante a reconstituir, ou seja, de que o sofrimento


neurótico coloca a verdade na posição de causa. Acompanhando as teses de Lacan sobre
a verdade38 sabemos que ela é indissociável de seu estilo de enunciação e que ela
depende de um processo de contradições ou de negações, ou seja, ela requer uma teoria
do tempo. A verdade se produz por determinações, mas também por indeterminações do
sentido. É nesta direção que pretendemos isolar, a partir da noção de mal-estar
(Unbehagen) dois tipos de sofrimento, caracterizados respectivamente pelo déficit de
experiências improdutivas de indeterminação e pelo excesso de experiências
improdutivas de determinação.

Para tanto pretendemos prolongar os estudos sobre a mutação do paradigma


etiológico do recalque de modo a pensar o paradigma da fusão e desfusão pulsional 39 no
quadro da historicidade do supereu e da economia libidinal.
36
Robert, P. (1995) Le Petit Robert. Paris: Robert.
37
Lacan, J. (1966) A Ciência e a verdade. In Escritos, Jorge Zahar, 1998.
O Seminário XIII «(...) je ne m'en empare que pour vous poser la question à vous, analystes : oui ou non,
ce que vous faites a–t–il le sens d'affirmer que la vérité de la souffrance névrotique c'est d'avoir la vérité
comme cause ?»
38
Iannini, G. (2012) Estilo e Verdade em Jacques Lacan. Belo Horizonte, Autêntica.
39
Metzger, C. & Silva Jr. (2010) Sublimação e Pulsão de Morte: a desfusão pulsional. Psicologia USP, São
Paulo, julho/setembro, 2010, 21(3), 567-583.
No Seminário XVI de Um Outro ao outro, Lacan volta a insistir nas relações
entre verdade e sofrimento, agora deixando mais claro sua relação com atos de
reconhecimento:

“Já que a verdade lhe diz Eu e que a resposta lhe vem em nossa interpretação
(...) a interpretação deve ser mais bem delimitada, visto que o profetismo não é
outra coisa. Dizer Eu numa certa trilha que não é a de nosso sofrimento, isto
também é interpretação.”40

O desdobramento do problema do sofrimento nos leva a considerar os


fundamentos da experiência do sujeito em sua relação com a linguagem. Se queremos
estabelecer uma metapsicologia para o sofrimento será necessário encontrar que
concepção e que uso de linguagem podem ser compatíveis com o caráter refratário da
nominação, próprio do mal-estar (Unbehagen), como a disposição prevalente dos
sintomas à sua nomeação metafórica e com a propensão narrativa e discursiva de
capturar o sofrimento.

Lacan aborda as relações entre sofrimento e gozo no Seminário sobre Um


Discurso que não seria do Semblante, ao abordar a simbolização de gozo operada pelo
princípio do prazer, como operação de redução e de barra ao excesso de prazer:

“Com efeito, o tecido de todos os gozos confina com o sofrimento; é nisso,


inclusive, que reconhecemos o hábito. Se a planta não sofresse manifestamente,
não saberíamos que ela está viva.”41

Ou seja, o sofrimento é tecido de todos os gozos, ele articula e produz unidades


discretas ali onde haveria apenas retalhos. Encontramos aqui a referência ao tecido e ao
hábito, alusão à planta de Aristóteles que estaria imune ao logos, e à grande imagem do
texto como tecido, téssera que liga fios de destino.

Mais ao final da obra o tema do sofrimento reaparece ligado ao da verdade.

40
Lacan, J. (1968-1969) O Seminário Livro XVI De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar:2008
(71).
41
Lacan, J. (1971) O Seminário Livro XVIII De Um Discurso que não seria do Semblante. Rio de Janeiro,
Jorge Zahar, 2007 (101).
“Há sofrimento que é um fato, já que esconde um dizer. É por esta ambiguidade
que se recusa que ele seja indispensável em sua manifestação. O sofrimento quer
ser um sintoma, este quer enunciar a verdade”42

Considerações Finais

Cruzando as incidências da noção de sofrimento em Lacan com as narrativas


freudiana antes examinadas torna-se possível agrupar a experiência de sofrimento,
determinada e indeterminada, segundo o quanto cada sujeito pode recusar ou incorporar
de gozo em sua própria experiência de adoecimento. Como dissemos anteriormente,
todo adoecimento é uma perturbação narcísica, mas nem todo adoecimento torna-se
uma ocasião para um novo cálculo de gozo43, um novo litoral entre saber e gozo.

A via mais simples para que isso ocorra de modo determinado é naturalmente o
circuito não complementar entre o masoquismo do eu e o sadismo do supereu. Como
observou Deleuze44, com a anuência explícita de Lacan, o masoquismo envolve sempre
uma dimensão de contrato, explícita ou implicitamente. Aquele que adoece ao modo de
uma perda narcísica, entende que seu contrato com a vida não está justo, que o trato dos
viventes não se mostra equânime. Mas há modalidades de indeterminação que
envolvem, por exemplo, a desmontagem da demanda, o pedido de reconhecimento que
atravessa a experiência de sofrer e a torna uma mensagem ou uma formação de sentido
para o sujeito. É aqui também muito frequente que o adoecimento desperte os mais
recônditos sentimentos de culpa e a reatualização de lutos retidos, mal concluídos ou
ainda não iniciados. Aqui o sofrimento se narra pelas vias da perda da experiência e da
experiência da perda. Ele assume a dimensão de um luto que pode mortificar ou exaltar
o sujeito. A melhor figura narrativa para o luto que não se realiza é o Zumbi ou
antigamente a Múmia, este ser que retorna de sua tumba, sem saber que estava morto,
como que a vagar em busca da reapropriação de sua própria condição corporal.

Por outro lado há adoecimentos que caem como autênticas refacções da metáfora
paterna, induzindo a formação de novos sintomas, contra os quais o sujeito recusa saber,
como recusou, um dia, assumir simbolicamente a castração. Aqui o diagnóstico
42
Lacan, J. (1975) Introdução à Edição em Alemão de um Primeiro Volume dos Escritos. In Outros
Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001 (554).
43
Dunker, C.I.L. (2002) O Cálculo Neurótico do Gozo. São Paulo:Escuta.
44
Deleuze, G. (1973) Sade | Masoch. Lisboa: Assírio Alvim.
estrutural é decisivo: há modos neuróticos, psicóticos e perversos de adoecer. Os casos
neuróticos mais típicos remetem à aparição ou reaparição de fobias infantis e a angústia
como signo maior da indeterminação. O adoecimento é ocasião de retorno e de reedição
da metáfora paterna. Ele constitui uma nova dialética entre determinação e
indeterminação do saber em relação aos novos sintomas que se anunciam. E este retorno
pode ser dar no simbólico, com a aparição ou reaparição de sintomas, mas também no
imaginário, com a formação de fetiches corporais ou de um retorno do real, como
desencadeamento de fenômenos elementares. Neste caso o adoecimento está permeado
pela ação de uma espécie de fantasma, como o de Hamlet, que vem nos cobrar uma
dívida de existência. Neste caso assume especial importância a história dos
adoecimentos anteriores, a mitologia familiar da doença, a transmissão e identificação
de certos modos preferenciais de sofrer.

A terceira forma de adoecimento segue a rota da desexualização traumática, tal


como descrita brevemente no texto de Freud. Aqui a doença é sinônimo de intrusão, de
envenenamento, de entrada de algo no corpo que dele deve sair. Neste caso o
adoecimento é vivido, principalmente, como estranhamento corporal, como Unheimlich
de sensações, sentimentos e afetos que falam do sujeito como indeterminação diante do
Outro. São adoecimentos vividos em estrutura vampírica, com a mergência de uma
indeterminação no interior do saber, tanto no sentido da demanda para os outros quanto
pelo estranhamento que o adoecimento parece impor e despertar para quem o vive.
Como exemplo pessoal desta modalidade de sofrimento posso citar a experiência de
minha avó que aos 84 anos tem diagnosticado um problema no coração e reage a isso
indignada: “Mas eu nunca tive isso na minha vida! Como é possível que depois de
tantos anos me aparece algo novo deste jeito?”

A quarta incidência do objeto a faz do adoecimento um capítulo da dissolução da


forma de vida até então vigente para um sujeito. São também estes os adoecimentos que
parecem satisfazer mais fortemente o supereu, de modo que o gozo no adoecer, torna-se
mais pronunciado. Neste caso é comum que a condição de doente passe a ser efígie e
nomeação para o sujeito. Aqui o adoecimento é excesso de experiência improdutiva de
determinação: diagnóstico fechado, enfermidade crônica incurável, condição limitante
permanente, transplante e tantos outros cuidados que podem decorrer de um intercurso
de adoecimento e que marcam o sujeito com a dissolução de suas unidades simbólicas:
familiar, laboral, conjugal e discursiva. São as vidas que se partem sem volta, ou que
assim são vividas, mesmo quando não há uma confirmação objetiva desta necessidade.
Temos aqui a figura performativa de Frankenstein. O corpo máquina, descrito por Mary
Shelley não é apenas um errante que precisa de mais carne, que vem ajustar as contas de
uma dívida ou que precisa de mais sangue para viver. Frankenstein sofre com uma
pergunta existencial, em torno da finalidade da vida, que de certa forma reúne e sintetiza
todas as anteriores. Nós que nos acostumamos a imaginar Frankenstein a partir do
cinema temos em mente uma criatura que não fala direito, que anda desarticuladamente
e que procura seu mestre como uma espécie de criança. O texto original 45 nos fala de
uma criatura que procura se integrar à ordem humana, mas é sucessivamente rechaçada
e se vinga do fato de que sua condição excepcional não encontra reconhecimento pelos
outros. Contudo, quando encontra seu criador Frankenstein pede que este construa uma
fêmea para si, depois do qual deixará os humanos em paz. Depois de aceitar o pedido
Victor Frankenstein, seu pai, criador e autor desta gênese assexuada interrompe o
projeto temendo dar origem a uma nova raça de monstros, sem alma. Nada descreveria
melhor a busca pela sexualização do gozo do que esta alegoria romântica. Os
adoecimentos que se organizam narrativamente a partir desta modalidade de sofrimento
têm em comum a insensatez do adoecimento, que é sentido como uma punição ou
maldição incontornável, exatamente como no conto de 1818.

Vimos então que o adoecimento é um paradigma do sofrimento, um dos mais


antigos e consistentes que podemos reconhecer ao longo da história. Como tal o
sofrimento é uma experiência de saber, irredutível à dor ou as suas formas de
objetivação em escalas de adaptação ou qualidade de vida. E esta experiência de saber é
coordenada pelas vicissitudes do narcisismo, desdobradas na relação de
reconhecimento, no real, no simbólico e no imaginário. Há diferentes incidências na
transformação de saber que caracteriza o adoecimento. Neste capítulo argumentamos
que elas se dividem em dois grupos conforme a determinação ou indeterminação de sua
relação com a verdade, com a realidade e com a eficácia pragmática. Isso nos permitiu
encontrar em Freud e em Lacan a dimensão narrativa do sofrimento, no imaginário,
envolvendo estruturas míticas, a dimensão de nomeação no real do mal-estar e a
dimensão simbólica do reconhecimento. A partir disso propusemos modalidades
genéricas de adoecimento que agrupam tais narrativas e estratégias de nomeação,

45
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=5257
exemplificando ainda a partição entre corpo, carne e organismo, nas diferentes
incidências subjetivas do sofrimento e consequentemente de adoecimento.

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