Você está na página 1de 12

assine ENTRAR

  
 
EXPLORE

Publicidade

Vozes Francisco Razzo

Francisco Razzo

A tirania dos
especialistas – uma
entrevista com Martim
Vasques da Cunha
20 COMENTÁRIOS
Por Francisco Razzo [04/12/2019] [00:01]
Está semana entrevistei Martim Vasques da Cunha sobre o seu
novo livro, A tirania dos especialistas: Desde a revolta das elites do
PT até a revolta do subsolo de Olavo de Carvalho, lançado pela
Civilização Brasileira. Martim tem doutorado em Filoso a
Política pela Universidade de São Paulo e é autor dos livros Crise
e Utopia: O Dilema de Thomas More, pela Vide (2012); e A Poeira
da Glória, pela Record (2015). A entrevista teve colaboração
especial de Dionisius Amendola, que já contribuiu com uma
entrevista exclusiva aqui para este espaço: Como os livros podem
superar a falência das livrarias. Dionisius escreve sobre cultura e
mantém um canal do YouTube voltado à crítica cultural, o
Bunker do Dio.

Martim, o que diferencia a "tirania dos especialistas" de


outras formas de tirania?
A “tirania dos especialistas” é a pior forma de tirania porque
ela fundamenta todas as outras, em especial a política. Aqui, os
especialistas são os intelectuais que preferem interpretar o
mundo sempre com a intenção de modi cá-lo, sem se
preocuparem se suas ideias afetarão concretamente outros
seres humanos. Na verdade, sem os intelectuais
comprometidos direta ou indiretamente com um projeto de
poder – e não com a meta de cultivar uma vida de sabedoria –,
os tiranos jamais conseguiriam impor seus planos ao resto da
sociedade. Infelizmente, na história do Ocidente, a busca pelo
poder e a busca pela sabedoria estão intimamente relacionadas,
seja por meio da cooptação de consciências desses pensadores,
seja por meio do confronto permanente entre o indivíduo e o
Estado.

Publicidade

Você inicia seu livro com uma a rmação instigante sobre o


“28 de outubro de 2018” como a “morte da imaginação
liberal”. Por que o conceito de “imaginação liberal” é tão
signi cativo para a recente história do Brasil?

Porque a “imaginação liberal” dominou a sensibilidade da elite


intelectual brasileira desde o Modernismo de 1922. Ao contrário
do que muitos pensam, o liberalismo não é de direita ou de
esquerda; ele é, na verdade, uma imaginação deformada que
busca compreender a realidade por meio de modelos mentais
que, ironicamente, não explicam nada. Como explico
minuciosamente em meu livro anterior, A Poeira da Glória, o
que aconteceu no Brasil desde 1922 é um combate ferrenho
entre variações dessa “imaginação liberal”: socialismo,
capitalismo, o liberalismo clássico, a socialdemocracia
obscurantista e, sim, o integralismo.

"Se o intelectual se aliar aos


poderosos, é apenas a prova
de nitiva de que ele vendeu
a sua alma ao diabo"

Na sua opinião, por que os intelectuais públicos brasileiros


(principalmente os liberais) não conseguiram prever o
tsunami chamado Bolsonaro?
Porque Jair Bolsonaro é o primo pobre desse tipo de
“imaginação liberal” – e os outros liberais, especialmente do
espectro da chamada direita, estavam muito ocupados em
observar os primos ricos, como o PT e o PSDB. Eles não
entenderam que Bolsonaro é o símbolo de um ressentimento
que estava sufocado havia muito tempo na alma brasileira e
que, defendido por uma casta intelectual que sofria da mesma
doença, submergiu como o chefe da nação. Os liberais ainda
acreditam que seus modelos mentais organizam a política como
se ela fosse uma farmácia asséptica. Na verdade, ainda não
perceberam que ela é semelhante a um açougue imundo, no
qual nós somos os abatidos.

Publicidade

Um dos aspectos mais preocupantes em relação ao governo


Bolsonaro, e da ideologia que sustenta o bolsonarismo, é o
senso de messianismo, ou seja, a crença de que ele está do lado
certo da história, de que cumpre uma missão consagrada por
Deus, e que, portanto, quem se opõe a isso se torna
imediatamente inimigo mortal da nação. Você acredita que
essa retórica do amigo-inimigo pode se tornar ação efetiva
daquele que detém o poder do Estado?

Já é uma ação efetiva do Estado. Basta ver o que os militantes do


governo fazem nas redes sociais, com suas estratégias de
ofensas e falsas narrativas, tudo obviamente orquestrado de
maneira descentralizada para dar a impressão de ser
“espontâneo”. Em breve, essa ação efetiva que parece car
restrita à internet será algo concretizado em atos que afetarão o
resto da sociedade – e de forma extremamente violenta.

Durante anos vimos ser alimentado um anti-intelectualismo


perigoso da parte de alguns representantes da direita. Agora
isso parece estar ainda mais forte, mais radical. Nesse sentido,
quem seria o público do seu livro?

O público do meu livro é o “homem comum en m”, aquele que


paga as contas ao m do mês e ca desesperado ao ver o boleto
na caixa do correio. Você não precisa ser um intelectual ou um
lósofo para entender o que eu escrevo. Basta ser uma pessoa
decente.
VEJA TAMBÉM:

» Gustavo Capanema e o Estado dos Intelectuais

» Uma nova religião política

» Espantalhos no labirinto de espelhos

Agora que a direita ascendeu ao poder, qual o peso e a


responsabilidades para o intelectual – especialmente aquele
que se alinha a uma perspectiva conservadora?

Publicidade

O intelectual só tem uma responsabilidade: ser sempre suspeito


em relação a qualquer espécie de poder, mesmo que tenha
a nidades com o político que foi eleito. Se ele se aliar aos
poderosos, é apenas a prova de nitiva de que ele vendeu a sua
alma ao diabo.
Embora muitos analistas falem em autoritarismo, você acha
que é possível falar em totalitarismo para julgar a “forma
mental” do bolsonarismo?

Sim, porque o bolsolavismo quer alterar a natureza humana por


meio de uma mudança completa da cultura nacional. É certo
que há inúmeros problemas no nosso mundo artístico e
losó co, mas já estamos com eles há anos e, portanto, estão
incorporados na nossa sensibilidade. Arrancá-los pela raiz, sem
uma necessária reforma gradual, apenas prejudicará ainda mais
o cenário, colaborando ainda mais para o aumento desse
totalitarismo cultural que, sem dúvida, também existia na
época do PT. O certo a se fazer é separar o joio do trigo, ver o
que funciona, ver o que não funciona e incorporar o que está
certo por meio da família e da comunidade, jamais por meio das
estruturas educacionais que inevitavelmente estarão ligadas ao
Estado.

Qual a responsabilidade da esquerda na ascensão do


bolsonarismo?

Eu diria que 50% da ascensão de Bolsonaro é culpa da própria


esquerda, que se isolou nos seus castelos de areia e não
entendeu que a população brasileira estava cansada da falta de
responsabilidade dos políticos que não assumiam as
consequências dos seus próprios atos.

Publicidade
Os outros 50% são da própria direita que, consumida por seu
ressentimento, cou enfeitiçada por uma narrativa na qual ela
era a vítima e se viu espelhada numa revolta do subsolo, cujo
líder simbólico, em termos políticos, foi Bolsonaro e seus
acólitos.

"Quando alguém é
chamado de 'isentão', ca
evidente como estamos
possuídos por uma
mentalidade binária, que
existe apenas no âmbito da
política, e que deixa
completamente de lado
outras camadas da
realidade"

Em um dos capítulos do seu livro chamado “A tragédia da


política” – na minha opinião um dos mais importantes –,
você diz, recorrendo a Benedito Nunes, que “na atual
sociedade democrática, o que nos resta é “a disciplina superior
do conhecimento”. Um crítico não poderia acusá-lo aqui de
ser um “isentão”?

Bem, eu já sou acusado disso e de outras coisas pelos


bolsolavistas, o que muito me agrada porque mostra o carinho
da torcida (risos).

Quando alguém é chamado de “isentão” ca evidente como


estamos possuídos por uma mentalidade binária, que existe
apenas no âmbito da política, e que deixa completamente de
lado outras camadas da realidade, em especial a cultural. Os
bolsolavistas mal sabem, mas, ao insistirem nessa
classi cação, eles se tornaram os novos apóstolos daquele
santo do Partido Comunista que alegavam combater – o
italiano Antonio Gramsci. Na verdade, não seria um exagero
a rmar que, com a derrota eleitoral do PT e a vitória política de
Jair Bolsonaro, o verdadeiro vencedor foi ninguém menos que o
autor dos Cadernos do Cárcere.
Publicidade

Há duas noções que sempre aparecem nos seus escritos e que,


neste livro especí co, não deixam de nortear o leitor que sabe
ler o subtexto: "Bem comum" e "liberdade interior". Poderia
falar um pouco sobre a importância deles no tipo de análise
que você buscou fazer?

Este é um dos temas que abordarei no meu próximo livro, a ser


lançado em 2020, para o deleite dos meus desafetos e dos meus
verdadeiros leitores.

Há uma conexão evidente entre o Bem Comum da sociedade,


como re exo do Bem Supremo que guia a estrutura do real, e a
liberdade interior de cada um de nós, que se revela na
intimidade da consciência do indivíduo. Quando você perde a
perspectiva de que a realidade é orientada rumo ao Bem
Supremo, as pessoas também perdem a noção de que há a
possibilidade de existir um Bem Comum na sociedade, algo
evidente após a modernidade, em especial com o surgimento
das obras de Maquiavel e Thomas Hobbes. E,
consequentemente, a liberdade interior do ser humano ca
desordenada, incapaz de controlar suas paixões,
impossibilitando também o cultivo das virtudes.

A tragédia da política atual é que, como perdemos o contato


com este Bem Supremo, não há mais a noção desse Bem
Comum e, portanto, não sabemos mais o que fazer com a nossa
liberdade interior, confundindo-a assim com a liberdade
exterior, representada por sistemas de governo (como a
democracia) e instituições técnicas e burocráticas. Neste
cenário, só há duas soluções, a meu ver: ou você decide imitar o
Cristo, e se isola de tudo e de todos numa existência próxima do
monasticismo, ou decide encarar o mundo como ele é, o que
implica em aceitar o inevitável apocalipse de todas as coisas.

Não há uma terceira via, em especial no domínio da política.


Quem pensa que encontrou alguma espécie de solução para esse
impasse que vivemos no fundo pratica a mesma “tirania dos
especialistas” diagnosticada no meu livro.

Publicidade

Você também pode gostar