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Carlos Skliar

Bilingüismo e biculturalismo Uma análise sobre as


narrativas tradicionais na educação dos surdos
Carlos Skliar
Programa de Pós-Graduação em Educação, Núcleo de Investigações em Políticas Educacionais para Surdos,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Tradução de Lólio Lourenço de Oliveira Trabalho encomendado apresentado na XX Reunião Anual da ANPEd,
Caxambu, setembro de 1997.
Movimentos ideológicos e
sociais dos surdos e da surdez. Percebe-se, contu- pedagógicos atuais na educação dos surdos
do, concretamente, a necessidade de uma transfor- mação objetiva quanto às atitudes, aos estereótipos Nas
duas últimas décadas produziu-se uma
e aos imaginários sociais que correspondem ao po- notável transformação tanto na concepção ideoló-
der e ao saber clínico/terapêutico; transformação gica quanto na organização escolar na educação dos
essa que implica toda uma desconstrução das gran- surdos. Das múltiplas contribuições possíveis a essa
des narrativas e dos contrastes binários (Bauman, mudança, a difusão dos modelos denominados bi-
1991; Silva, 1995) presentes nessa educação; uma língües/biculturais e o aprofundamento das con-
trajetória que implica, também, toda uma revisão cepções sociais e antropológicas da surdez foram
sobre questões relacionadas com as identidades, as certamente as mais relevantes (Skliar, Massone &
linguagens e o multiculturalismo dos surdos. Veimberg, 1995).
Nesse sentido, pode-se definir a existência ou, Não obstante, o abandono da ideologia clíni-
melhor, a potencialidade de existência de dois mo- ca dominante e a aproximação a paradigmas so-
vimentos educacionais, movimentos que estão sur- cioculturais não são inteiramente suficientes para
gindo, explícita ou implicitamente, dentro ou fora sustentar a existência de uma nova visão educacio-
das escolas, na educação dos surdos. nal. São muitas as dificuldades de projetos políti-
Por um lado, é possível falar de um movimento co-educacionais específicos e muitas as limitações
de tensão e ruptura entre a educação de surdos e a que, ainda hoje, determinam a prática pedagógica
educação especial (Skliar, 1997a); por outro, é pos- cotidiana nas escolas. Naturalmente não se trata de
sível mencionar também um movimento de apro- medir quanto a educação dos surdos se distancia
ximação da educação dos surdos às discussões, aos dos formatos reeducativos, mas sim de saber quanto
discursos e às práticas educacionais próprias de ou- se aproxima realmente das concepções culturais e
tras linhas de estudo em educação.
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Bilingüismo e biculturalismo a existir (Skliar, 1997b). Trata-se de um anacro- nismo que
consiste em situar os surdos, os defici- entes mentais, os
cegos, os deficientes motores e outros numa continuidade
A existência do primeiro movimento origina- se que, na verdade, é des- contínua — isto é, grupos de
três razões só aparentemente independentes entre si. indivíduos juntos, separados entre si e separados de outros
primeira põe em dúvida que a educação especial seja sujeitos. A terceira razão diz respeito ao fato de que não se
contexto obrigatório para um de- bate significativo sobre reconhecem aos surdos os diferentes e múltiplos recortes
educação dos surdos, pe- lo menos nos termos e n de identidade, linguagem, raça, cognição, gênero, idade,
concepções habitual- mente simplificadas que promove. comunidade, culturas etc. Os sur- dos, como tantos outros
segunda dis- cute a funcionalidade da linha contínua grupos humanos, são definidos apenas a partir de supostos
sujeitos deficientes dentro da qual os surdos estão forçad traços ne- gativos e percebidos como desvio da
normalidade. Mas os processos de construção dtir dos movimentos descritos na educação dos sur- dos
identidades não dependem de uma maior ou menseriam múltiplas e variadas e permitiriam um novo recorte
limitação biológica, mas sim de complexas relações liteórico que, provisoriamente, chamo de estudos surdos em
güísticas, históricas, sociais e culturais. Nesse sen- tideducação. Algumas dessas conseqüências poderiam ser:
não haveria nada em comum, por exemplo, entre um sur
e um deficiente mental que separe esse surdo — ou es > um maior aprofundamento na análise dos
deficiente mental — de uma criança de rua, de um indíge mecanismos de poder e de saber da ideo- logia
ou de um traba- lhador rural. dominante na educação de surdos, des- de suas
origens, sua atualidade e suas perspec- tivas de
O movimento de aproximação da educação d
futuro; além disso, um refinamento na discussão
surdos a outras linhas de estudo em educação denota
sobre as relações de poder e de sa- ber entre ouvintes
possibilidade de incluir essa educação em um contex
e surdos;
ideológico, teórico e discursivo mais apropriado à situaç
social, lingüística, comuni- tária, cultural e de identidad > uma redefinição dos problemas que se supõe
dos surdos. A apro- priação de termos e de sentid estejam na base da educação para os surdos, ou então
provenientes de outras linhas de estudo em educação uma visão completamente nova acerca do que nela é
como, por exemplo, alteridade, diferença, grup realmente determi- nante e/ou variável;
subalterno, colonização curricular, multiculturalism
crítico etc. — não deve ser, naturalmente, acrítica, ou s > um consenso acerca das potencialida- des
apenas uma cópia das formas de análise que se re- ferem educacionais dos surdos, descentrado dos imperativos
todas e a cada uma das diferenças existen- curriculares ouvintes, isto é, do oral, do escutar, do
tes no mundo atual. Em outras palavras: o fato de que os ler e escrever, e centrado nas especificidades
surdos também possam ser considerados através da lingüísticas, cognitivas, co- munitárias, de
diferença não implica igualar suas dife- renças às de outros participação educativa e cultu- rais dos surdos;
grupos para, posteriormente, normalizar o contexto
histórico e cultural de sua origem. Não se trata, pois, de > uma ampliação de sentido e significa- do
dizer que os sur- dos padecem dos mesmos problemas de sobre o papel que cabe à escola de surdos no processo
todos os demais grupos minoritários, obscuros e domina- geral de educação, a partir de uma definição mais
dos. Ao contrário, compreender a surdez como diferença ampla e crítica de um campo para a educação de
significa reconhecer politicamente essa diferença. surdos — no sentido que Bourdieu e Wacquant
As conseqüências educacionais possíveis a par- (1995) dão ao termo

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educação, em oposição às típicas con- cessões
fragmentárias e descontínuas que em geral são
propostas pela maioria dos ouvintes.
campo — que compreenda as diferentes rela- ções
existentes dentro e fora da escola, como por exemplo
as associações de surdos, as as- sociações de O oralismo como ideologia dominante
intérpretes, de pais, os professo- res e profissionais, as
administrações políticas estatais e/ou municipais, os
O oralismo tem sido e continua sendo, ainda
núcleos de estudos e pesquisa das universidades etc.;
hoje, em boa parte do mundo, a ideologia dominan- te
> uma ampliação e uma multiplicação dos dentro da educação dos surdos. A concepção do sujeito
espaços conquistados pelos surdos dentro de sua surdo ali presente diz respeito exclusivamen- te a uma
dimensão clínica — a surdez como defi- ciência, os surdosevitáveis da te- rapêutica — isto é, o surdo que fala — e
como sujeitos patológicos — nu- ma perspectiva tecnolo- gia — o surdo que escuta. Além disso, não
terapêutica — a surdez deve reedu- car-se e/ou curar-se, os de ser definida somente como um conjunto de idéias e
surdos devem ser reeduca- dos e/ou curados. E a conjunçãoá- ticas institucionais supostamente coerentes, unifor-
de idéias clínicas e de idéias terapêuticas conduziu,es e homogêneas, orientadas exclusivamente para que os
historicamente, a uma transformação progressiva e rdos falem. Com essas idéias e essas prá- ticas convivem
sistemática do contexto escolar e de suas discussões egumas concepções filosóficas, re- ligiosas e políticas já
enunciados, em contextos médico-hospitalares (Lane, minantes no século XIX.
1993). Finalmente, a ideologia dominante não é he-
A análise e as críticas relativas ao oralismo fo- mônica e dá origem a interpretações diferentes. Entre
ram, de modo geral, realizadas apenas como se se tratassesas interpretações aparecem algumas formas de
de um poder vertical, onipresente e abso- luto; essasistência que, no caso dos surdos, expressam- se de
simplificação provém, entre outras coisas, de uma leituraúltiplas maneiras. A criação de associações de surdos é
legalista de suas estratégias negati- vas mais explícitas — enas um exemplo disso e, curiosamen- te, todas elas
proibições do uso da lingua- gem de sinais, controle e rgiram depois de ter sido imposta a oralidade nas
castigo corporal, fracasso escolar maciço etc. Não obstante,colas. Dessa perspectiva, resulta no mínimo paradoxal
a questão do ora- lismo como ideologia dominante e continuem sendo conside- radas guetos e não espaços
extrapola com- pletamente a instituição escolar e implica ertos do controle rela- tivo à deficiência. Atualmente, as
todo um contínuo de senso comum, de estereótipos e de as pelos direitos humanos e pelo direito específico que
ima- ginários sociais difundidos em vários níveis das so-m os surdos à aquisição de uma primeira língua
ciedades. Dessa perspectiva, o oralismo não deve ser nstituem so- mente a face formal dessa resistência.
compreendido somente como um poder exercido através de lvez os ma-
leis e seria ingenuidade pensar que sur-
giu, simplesmente, graças a um decreto em um mo- mento
preciso da história.1
1 Embora seja tradição mencionar seu caráter decisivo,
Como qualquer ideologia dominante, o ora-
Congresso de Milão de 1880 — no qual os diretores das mais
lismo deu origem a determinados efeitos, pois — seguindo
omadas escolas para surdos da Europa propuseram acabar com o
a linha de raciocínio desenvolvida por Mo- reira e Silva
stualismo e dar lugar à palavra viva, à pa- lavra falada — não foi
(1994) — contou com o consentimen- to e a cumplicidade rimeira nem a última oportunidade em que se decidiram políticas
da medicina e dos médicos, dos profissionais paramédicos, melhantes. Essa decisão já havia sido escrita anteriormente e era
dos pais e familiares dos surdos, dos professores ouvintes e eita em grande parte do mundo. Apesar de algumas oposições
inclusive com a de alguns surdos, os que então ividuais e isola- das, o Congresso não constituiu o começo da
representavam, e ainda representam, os progressos ologia ora- lista dominante, mas sim sua legitimação oficial.

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Bilingüismo e biculturalismo

Reflexões para uma redefinição ou para


trimônios, as produções artísticas e culturais dif uma nova visão sobre os problemas da
renciadas, o refúgio das crianças surdas nos banhei- ros d educação dos surdos
escolas oralistas para comunicar-se sejam expressões ain
mais genuínas desse processo. Uma análise limitada da ideologia dominante pode
dar origem também a uma limitada explica- ção sobre os
problemas cruciais que caracterizam a educação d determinada por um conjunto das variáveis
surdos. Assim, as causas e as con- seqüências do fracas interdependentes (Skliar, 1996a; 1996b); são elas: o
parecem inverter-se. O fra- casso na educação dos surdoreconhecimento do fracasso educativo em suas raízes e em
com seus múltiplos e variados sintomas, constituiu suas conseqüências pessoais, sociais, cognitivas,
constitui ainda hoje motivo para dois tipos de justificativlingüísticas, comunicativas, de cidada- nia, de formação
igual- mente inapropriados: por um lado, que os surdos s acadêmica e profissionais; a na- tureza e tipo das atitudes,
os responsáveis diretos por esse fracasso — fra- cas dos estereótipos, das re- presentações e do imaginário
pois, da surdez, dos dons biológicos naturais —; por out social acerca dos sur- dos e da surdez, presentes dentro e
que se trata de uma dificuldade me- todológica, o q fora da escola; as políticas e a situação lingüística concreta
fortalece a necessidade de purifi- car e sistematizar ain da co- munidade educativa; a participação da comunida- de
mais os métodos. Nesses dois tipos de justificativde surdos no debate lingüístico e pedagógico e sua
mencionadas, procurou- se evitar qualquer denúncparticipação efetiva no projeto escolar; as ba- ses
relativa ao fracasso da escola e/ou das políticideológicas e arquitetônicas para a estruturação e a
educacionais e/ou do Es- tado (Arroyo, 1991). Uma sínteconsecução de objetivos pedagógicos; a conti- nuidade
acerca do fracasso seria, em minha opinião, a seguinte: institucional do projeto educativo; e, final- mente, as
educação dos surdos, os surdos não fracassara pressões geradas pelas políticas de inte- gração social e
fracassaram os ouvintes que nela trabalham. escolar.
A educação dos surdos encontra-se, portanto, dian
não de um problema mas de um duplo sis- tema As grandes narrativas e os contrastes
problemas. O primeiro deles poderia ser definido como binários na educação de surdos
problema dos poderes e saberes dos ouvintes em torno d
modalidades de comunica- ção e de linguagem adequad
No processo de abordagem de outras linhas de
para os surdos. Em- bora aparentemente contenha
estudo em educação, é possível que seja importan- te que a
posições antagôni- cas, todas elas conservam e reproduze
educação de surdos abandone suas gran- des narrativas —
um círcu- lo de baixas expectativas pedagógicas (Johnso
isto é, o oralismo, a comunicação total e o bilingüismo — e
Liddell & Erting, 1991). O segundo sistema de pro- blem
também seus contrastes binários típicos —
poderia ser entendido como o da existência de múltipl
normalidade/anormalidade, sur- do/ouvinte, maioria
variáveis que, efetivamente, intervêm na construção
(ouvinte)/minoria (surda), ora- lidade/gestualidade etc. As
uma educação significativa para os surdos; variáveis co
oposições binárias — como já assinalara McLaren (1995),
que se cruzam fatores his-
entre outros autores — sugerem sempre o privilégio do
tóricos, políticos, regionais e culturais específicos, relativos
primei- ro termo da oposição, termo que define o signifi-
a cada uma das situações pedagógicas con- cretas e que,
cado da norma cultural. O termo secundário, nes- sa
portanto, não permitem reduzir a edu- cação dos surdos a
dependência hierárquica, não existe fora do pri- meiro, mas
uma questão metodológica, a uma problemática fechada
sim dentro dele. Estabelece-se desse mo- do um exercício
em si mesma.
de poder e uma divisão do mundo
A proposta atual para a análise das constru- ções
educacionais possíveis para os surdos seria, pois,

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mundo tudo quanto seja incontrolável e/ou ambivalente.A

que organiza e particulariza o ideal, deixando em outro oposição ouvinte/surdo


parece ser um recorte significativo para uma descrição do
O fato de os surdos, em sua maioria, não po-mundo, se nele cabem, por exem- plo, o presidente de uma
derem nem quererem ser ouvintes ou ser como os ouvintesepública européia, uma tecelã do Cáucaso, uma psicóloga
2
não parece constituir obstáculo para as idéias dominantes de Harvard, um índio do Amazonas, um chicano e uma
na educação dos surdos. Os úni- cos modelos, ou os criança do Nepal. Fica claro que, nesse caso, o recorte de
modelos fundamentais presen- tes nas escolas, são os ser ouvinte significa uma forma de dominação e um tor-
ouvintes; o tempo de intera- ção e de identificação entre nar os surdos subalternos na educação e nas esco- las. A
alunos surdos de ida- des diferentes é suficientemente configuração de ser ouvinte pode começar co- mo uma
escasso para evitar que existam “contatos gestuais entre os referência a uma hipotética normalidade auditiva mas, na
alunos” — isto é, que as crianças se reconheçam em outros rática e no discurso, associa-se a toda uma série de traços
surdos e adquiram a linguagem de sinais através de uma de outra ordem. Ser ouvin- te, então, é ser falante, mas é
transmissão comunitária e cultural —; quan- do sembém ser branco, homem, profissional, saudável, normal,
programa a presença de adultos surdos — não comoetrado, civi- lizado etc. Ser surdo, portanto, é estigmatizar
comunidade, mas somente como indivíduos isolados —, defi- ciência auditiva como não falar, não ser homem, ser
ela se limita a encontros reduzidos e para tarefasnalfabeto, anormal, desempregado, perigoso etc. Foi Lane
determinadas; além disso, muitas das crianças surdas 1988) quem revelou com maior pre- cisão de que modo e
passam seu escasso tempo livre entre hospitais, clínicas e em que medida são idênticas as visões paternalistas do
consultórios; finalmente, per- manecem o resto do dia olonialismo europeu em relação aos nativos africanos e a
dentro de um ambiente familiar que desconhece ou nega a dos profissionais ouvintes em relação aos surdos. Não é
identidade lin- güística e cultural dos surdos, o que dá casual essa “descoberta”. Em ambas essas visões
origem a um mecanismo de controle familiar sobre a percebe-se aquilo que McLaren (1995) chama de
criança. ulticultu- ralismo conservador e corporativo: entre outras
prá- ticas, se deslegitimam as línguas estrangeiras, é-se
A intenção de que as crianças surdas fossem, num
declaradamente monolíngüe, destroem-se conse-
hipotético futuro, adultos ouvintes, deu origem
üentemente os fundamentos de uma educação bi- língüe e
naturalmente a um doloroso jogo de ficção de iden-
se utiliza a palavra diversidade para enco- brir uma
tidades. Nesse jogo os surdos levam a pior, porque acabam
ideologia de assimilação que está na base dessa posição.
sofrendo e sentindo-se forasteiros e porque são catalogados
não só como não-ouvintes, mas também como autistas,
psicóticos, deficientes men- tais, afásicos e A oposição maioria (ouvinte)/
esquizofrênicos. Esses estereótipos não são inocentes nem minoria (surda)
ingênuos e, segundo a con- cepção de Stam e Shohat
(1995), revelam formas opressivas que, se de início podem É hábito definir a comunidade de surdos como
parecer inócu- as, são uma forma de controle social ema minoria lingüística. Essa descrição baseia-se no
determinam, justamente, uma devastação psíquica causada
por retratos sistematicamente negativos desses grupos. Não
obstante, essa é apenas uma parte da aná- lise da oposição
binária ouvinte/surdo. A outra 2 Chicano é como são chamados os imigrantes mexi-
questão leva-nos a uma tríplice interrogação: o que é, de nos nos Estados Unidos. (N.E.)
quem é e onde está o mundo dos ouvintes? Ser ouvinte é
certamente uma totalidade mas, ao mesmo tempo, não

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Bilingüismo e biculturalismo
ve os índios Urubus-Kaapor do Brasil, uma comu- nidade
que, embora majoritariamente ouvinte, uti- liza uma
fato de que a linguagem de sinais é utilizada por um gru linguagem de sinais minoritária.
restrito de usuários que, portanto, vivem uma situação
Todos esses exemplos deveriam servir para de-
desvantagem social, de desigualdade, e que participa
monstrar que, ainda que se queira estabelecer cri- térios
apenas limitadamente da vida da sociedade majoritária.
quantitativos para uma política educativa, estes se tornam
curiosa a coincidência des- sa definição com algumas d
necessariamente qualitativos e cor- respondem a uma
idéias dominantes na educação de surdos, especificamen
hierarquia e a uma assimetria de poder. E não do poder da
as que insis- tem em que o uso da linguagem de sina
maioria, mas sim de uma minoria. Note-se que nas escolas
constitui sempre um fator de exclusão da sociedade majo
de surdos há, jus- tamente, mais surdos do que professores
tária (Andersson, 1989).
ouvintes. E o fato de que as decisões lingüísticas e
Não gostaria de levar a discussão para as dpedagógi- cas correspondam apenas ao poder e ao saber
terminações estatísticas que consideram os surdos e outr dos ouvintes não se reduz simplesmente a uma oposi- ção
grupos como minorias lingüísticas, ou ra- ciais, étnicamaioria/minoria: é o uso da linguagem de sinais o que
sociais, pois reflexão desse tipo ul- trapassaria a nature acentua um conjunto de relações de poder assimétricas e
deste trabalho. Não obstan- te, parece-me importancoloca em evidência aquilo que a mi- noria/maioria ouvinte
apresentar alguns dados significativos. das escolas quer desterrar, ou seja, a surdez.
Jones e Pullen (1992) estimam que, na Ingla- ter
há cinqüenta mil surdos que utilizam a lin- guagem A oposição oralidade/gestualidade
sinais britânica — BSL —, quase a mes- ma quantida
que a de pessoas que utilizam o galês como prime
Os surdos criaram, desenvolveram e transmi-
língua. Deveriam, pois, ser compre- endidas como du
tiram de geração em geração uma linguagem, a lin-
minorias iguais; porém, as for- mas de organizaç
guagem de sinais, cuja modalidade de recepção e produção
políticas e educativas em torno delas são, de saída, be
é viso-gestual. Muitos supõem que essa criação lingüística
diferentes; e essa diferença imposta entre minor
provém do fato de que a deficiên- cia auditiva impede aos
demonstra que as minorias não são todas minorias, que,
surdos um acesso à orali- dade. Assim, as linguagens de
verdade, existem minorias melhores e piores, e que
sinais parecem um prêmio de consolação para os surdos e
qualifica — e não se quantifica — o que é minoritário.
não um pro- cesso e um produto construído histórica e
Por outro lado, é sabido que a linguagem de sinasocial- mente por essas comunidades.
norte-americana — ASL — é a terceira lín- gua de mai
Os trabalhos da lingüística pós-estruturalista
uso dentro dos Estados Unidos. Mas terá essa língua
avalizaram o status lingüístico das linguagens de sinais
mesmo status social, acadêmico e lingüístico que
como línguas naturais e como sistemas dife- renciados das
espanhol, o chinês ou o francês? Dar-se-á que
línguas orais: o uso do espaço com valor sintático e
lingüisticamente mais utilizado em determinado país se
topográfico e a simultaneidade dos aspectos gramaticais
também o politicamente mais reconhecido?
são algumas das restrições im- postas pelo tipo de
E não faltam exemplos em que a oposição maio modalidade viso-espacial e de- terminam sua diferença
(ouvinte)/minoria (surda) perde sua força. Sacks (198estrutural em relação às línguas auditivo-orais.
narra o fato de que na ilha Martha’s Vineyard, e
A linguagem deve, pois, ser definida indepen-
Massachusetts, todos, surdos e ouvin- tes, usavam a
dentemente da modalidade em que se expressa ou por meio
pouco tempo atrás a linguagem de sinais, mesmo quando
da qual percebe; possui uma estrutura
proporção de surdos era infinitamente men
Ferreira-Brito (1993) descre-
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As políticas de educação bilíngüe e bicultural


para surdos — ou deveriam ser chamadas de polí- ticas de
educação multilíngüe e multicultural? — deveriam lançar
subjacente independente da modalidade de expres- são,
seja esta auditivo-oral ou viso-gestual. Desse modo, a uma luz sobre esses fatos e não, simplesmente, definir o
linguagem oral e a linguagem de sinais não constituem uso das duas linguagens e das duas modalidades dentro da
uma oposição, mas sim dois canais di- ferentes e educação dos sur- dos. Essa aceitação das linguagens não
igualmente eficientes para a transmissão e a recepção da implica ne- cessariamente uma reconversão do problema.
capacidade da linguagem. O fato é que, ainda que existam as duas linguagens,
cada uma delas continuará correspondendo a dois grupos Um consenso acerca das potencialidades
de pessoas diferentes e a duas ou mais ima- gens do educacionais dos surdos
mundo. Assim, o sistema educacional para os surdos
continuará, comunicativa e lingüistica- mente, sempre em O caso dos surdos revela-se como um proble-
paralelo. a atípico para a educação. Além de enfrentar a escola
m a existência das diferenças, de outras formas e
Mesmo que inúmeras pesquisas demonstrem que ocessos de identidade, de linguagem e de cognição,
as linguagens de sinais cumprem todas as fun- ções gere a necessidade de mudanças pro- fundas e radicais na
descritas para as linguagens naturais — como por exemploeologia e na arquitetura edu- cativas. É fato que por trás
as conversas cotidianas, os argumen- tos intelectuais, a s grandes narrativas na educação dos surdos existe um
ironia, a poesia etc. — ainda se percebe uma tendência à bate implícito sobre a negação ou a afirmação das
sua desvalorização, ao jul- gá-la uma mistura de tencialida- des educativas desses sujeitos. Tais
pantomima e de sinais icô- nicos que se expressam através tencialidades, real ou virtualmente ignoradas nas escolas,
do movimento das mãos, ou ao considerá-la um pidgin de- riam ser definidas do seguinte modo:
primitivo, mas não uma verdadeira língua.
> A potencialidade de aquisição de uma
Não obstante, não se deve pensar que a opo-
sição mencionada é apenas uma questão de mitos e de linguagem, a linguagem de sinais, em outra
crenças pois, ao mesmo tempo, ela existe do- lorosa e modalidade de recepção e produção que não a
modalidade oral dominante. As crianças sur- das, se
problematicamente dentro das escolas. Trata-se, por um
lado, de que essa modalidade de comunicação — a convenientemente expostas, adquirem a linguagem de
viso-gestual — e essa linguagem dos surdos — a sinais como toda criança ad- quire qualquer
linguagem de sinais — não é a lin- guagem dos professores linguagem natural. Pôr a lin- guagem de sinais ao
ouvintes. E trata-se, tam- bém, do contrário: essa alcance de todos os sur- dos deveria ser o princípio
modalidade de comunica- ção — a auditiva-oral — e essa lingüístico a partir do qual se tornaria possível um
linguagem dos pro- fessores — a linguagem oral — não é a projeto edu- cacional mais amplo. Mas esse processo
linguagem dos alunos surdos. O fato de que entre alunos e não deve ser considerado apenas um problema es-
professores não se compartilhem nem as modali- dades, colar/institucional, nem uma decisão que afe- ta nada
nem as linguagens, é uma das ambigüida- des mais mais do que um certo plano da estru- tura
notórias na educação dos surdos. E, na maior parte das pedagógica, e muito menos uma questão a resolver
vezes, a ambigüidade dá origem a um poder lingüístico através de recursos metodológicos. A linguagem de
indiscutível dos professores e um processo de sinais é uma linguagem plena, natural, não um código
des-linguagem e de des-educação nos alunos. artificial de comuni- cação, e como tal deve ser
pensada; é um di- reito dos surdos e não uma
concessão de al- gumas escolas ou de alguns diretores de esco- la ou de alguns professores.

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Bilingüismo e biculturalismo Não parece possível compreender o conceito de
cultura surda a não ser através de uma leitura de mul-
ticulturalismo, isto é, a partir de uma compre-
> A potencialidade de identificação das crianças ensão de cada cultura em sua própria lógica, em sua
surdas com seus pares e com os adul- tos surdos. As própria historicidade. Por isso, a cultu- ra surda não é
crianças surdas têm direito, além disso, a uma imagem atenuada de uma hipotética cultura
desenvolver-se numa comunida- de de pares e de ouvinte. Não é seu contrá- rio. Não é uma cultura
construir sua identidade den- tro do quadro de um patológica. Para mui- tos ouvintes que trabalham
processo sócio-histórico não fragmentado nem com surdos, a exis- tência de uma cultura surda
restringido. As inter- -relações com outros grupos constitui tanto um problema de crenças pessoais,
sociais e culturais depende, em grande medida, da como de opor- tunidades de experiência. De crenças
atualização e do exercício dessa potencialidade. porque, justamente, não há nada fora de seu normal,
Dessa pers- pectiva, a educação dos surdos deve de sua cultura própria e auto-referencial; nes- se
propor- se modalidades diferentes nos processos de plano, a cultura surda seria somente um des- vio, uma
en- sino e aprendizagem e tender à construção de anomalia. E é um problema de opor- tunidades de
grupos sociais em áreas de atividades (Sanchez, experiências porque, ao trabalhar com as crianças
1992), descentrando-se assim das rígidas ida- des surdas de uma perspectiva clí- nica, desconhecem-se
curriculares, do controle curricular do pro- fessor os processos e os produ- tos criados por determinados
ouvinte, e centrar-se na interação entre crianças, segmentos da comunidade adulta de surdos, por
jovens e adultos surdos de diferentes idades, raças, exemplo em termos de teatro, poesia, artes visuais,
gênero etc. ciência, didática etc.

> A potencialidade de desenvolvimento de outras > A potencialidade de participação no debate


estruturas, formas e funções cogni- tivas, reguladas lingüístico, escolar, de cidadania etc., através de um
por um mecanismo de proces- samento visual das processo singular de reconstru- ção histórica e de
informações. A modalidade viso-gestual não só uma nova visão da própria educação. São muitos os
pertence à potencialidade lingüística dos surdos, testemunhos de sur- dos que, ao fazer referência a seu
como também envolve o processamento de todos os passado edu- cativo, invocam a imagem de serem
mecanismos cog- nitivos. Esta é uma potencialidade estrangei- ros, forasteiros, exilados. Não estão
que afeta sobretudo a questão didática e do fazendo referência ao fato literal de haverem emigra-
conhecimen- to nas escolas e que coloca em do para outras cidades, longe de suas casas, em busca
contradição a modalidade cognitiva dos professores e de um serviço educativo. Mencionam o ser e o
a mo- dalidade cognitiva dos alunos. sentir-se estrangeiros, o ser e o sentir- se forasteiros, o
ser e o sentir-se exilados, ain- da que dentro das
> A potencialidade de inclusão numa vida
próprias escolas para sur- dos, dentro das escolas com
comunitária e num processo de compreensão e
ouvintes e em seus próprios lares.
produção de fatos culturais diferenciados. Não é
difícil definir e localizar no espaço e no tempo um Esses testemunhos poderiam valer como uma
grupo específico de pessoas que constituam uma oposição à frágil memória institucional das escolas de
comunidade, mas quando se trata de definir uma surdos — cujas lembranças chegam em geral so- mente até
cultura costuma-se pen- sar nessa cultura, a cultura a adolescência dos alunos — e constituir- se numa
universal, homo- gênea, monolítica, a alta cultura.
contramemória e uma crítica da ideologia dominante, tal como sugere King (1995) nos cha- mados Estudos Negros.

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e caracterizaram a educação dos surdos duran- te o
culo XVIII, e das tentativas de fazer os sur- dos falarem
odo custo, que definiram as ins- tituições do século XIX,
A educação bilíngüe para surdos como educação para surdos em nosso século caminhou por
narrativa metodológica, lingüística, temas metodo- lógicos fragmentários, com objetivos e
psicolingüística e/ou pedagógica alidades de curto prazo, com trocas suspeitas de
odalida- des de comunicação e com abordagens práticas
A proposta genérica de bilingüismo para os sur- dos podeconsistentes.
ser compreendida na atualidade também como uma grande A obsessão pelo achado de métodos
narrativa educacional. Estabele- ceu-se uma convenção em nfiáveis para determinadas e limitadas preocupações ree-
torno dela, tanto relativa- mente a sua terminologia, quanto cativas levou a que todo e qualquer recurso sis- temático
em relação a al- gumas de suas práticas institucionais. entado unicamente para um objetivo pontual reduzisse
Como toda con- venção, a educação bilíngüe apresentada a vida escolar a uma simples dimensão metodológica.
duas caracte- rísticas: possui um alto grau de ambigüidadeducação e escola, de um lado, e método, de outro,
e um ca- ráter relativo de verdade. Ambigüidade porque nverteram-se em sinô- nimos lúgubres e habituais: não
sua própria definição é objeto de várias interpretações, in- falava mais de propostas didáticas mas sim de
clusive diferentes entre si, e a reflexão, ainda que den- troecanismos me- todológicos; os alunos eram catalogados
do mesmo campo terminológico, revela-se antagô- nica. E acor- do com sua capacidade para responder adequada-
apresenta um caráter de verdade, porque inclu- sive em suaente aos métodos e, se isso não ocorresse, inven-
expressão mínima — duas linguagens na educação dosvam-se outros novos para que nenhuma criança ficasse
surdos — já supõe e constitui uma supe- raçãora deles; para as crianças que finalmente não respondiam
relativamente à ideologia dominante e um avan- ço nenhum método, reservava-se uma última surpresa
objetivo na concepção educativa para os surdos. Definindoetodológica: eram desviadas para oficinas de trabalho
a educação bilíngüe para surdos co- mo uma grande ra aprender, mecanica- mente, ofícios já saturados pelo
narrativa, é possível delimitar qua- tro vertentes principais, semprego; os edu- cadores não aprendiam teorias
nem sempre integradas ou relacionadas em suas respectivas ucativas nem sis- temas didáticos, mas sim métodos; já
interfases e habi- tualmente definidas de forma estática: o erguiam bandeiras de possíveis ideais educativos, mas
existem, neste sentido, narrativas bilíngües que acentuam om de métodos.
meto- dológico e/ou o lingüístico, e/ou o psicolingüístico,
e/ou, em menor medida, como narrativa pedagógi- ca. O surgimento4 da comunicação total no final
Cada uma delas, separadamente, parece aludir a um tipo década de 1960 e começos da década de 1970 — cujos
diferente de educação bilíngüe para surdos. No primeiroentores enfatizam até hoje que se trata
caso, a educação bilíngüe está sendo narrada e posta em
ação como um sistema escolar que, simplesmente, vem
substituir seu an- tecessor — a comunicação total — e
opor-se ao ora- lismo. As idéias pedagógicas do século XX
relati- vas aos surdos atravessaram várias fases diferencia-
das que não podem ser compreendidas apenas em termos
de uma linearidade em que as idéias antigas são
naturalmente substituídas pelas idéias novas.3
Diferentemente dos objetivos enciclopedistas, 3 Lembremos que, já no final do século XVIII, existi- am
na França propostas bilíngües para a educação dos sur- rativa atual na educação dos surdos. Experiências seme- lhantes já
dos, baseadas no acesso dos surdos à linguagem de sinais e à viam sido desenvolvidas no Instituto Nacional de Paris pelo abade
linguagem escrita (a este respeito, ver Lane, 1984). L’Epée, que criou “signos metódi- cos” na linguagem de sinais
ncesa para ensinar a estru- tura gramatical do francês escrito.
4 Refiro-me ao surgimento da comunicação total como

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Bilingüismo e biculturalismo Volterra, 1987).
A partir dessas definições de base, as experiên-
cias de educação bilíngüe obedeceram a orientações de
de uma filosofia mas não de um método5 — estabele- c
magnitude, continuidade e ideologia muito di- versas. Essa
uma nova ordem nas escolas, deteriorando as fér- re
variedade educativa, que não conspi- ra contra si mesma,
barreiras do logocentrismo na educação dos surdo
nem constitui um perigo (Skliar, 1997c), obriga a e merece
privilegiando a comunicação, qualquer forma
uma generosa reflexão sobre a política educativa para
comunicação, acima de qualquer outro objetivo. Porém,
surdos e sobre os mecanismos de gestão, avaliação e
mesmo tempo, a comunicação to- tal desordenou
acompanhamen- to das escolas bilíngües.
desvalorizou a hierarquia e a se- qüência das aquisiçõe
aprendizagens lingüísticas e, portanto, cognitiva Os motivos dessa diversidade e diferenciação nos
culturais; naquela época — como atualmente —projetos de educação levam à questão da nar- rativa
problema das crianças sur- das menores era o acesso a pedagógica do bilingüismo: será possível ado- tar a
falta de um desen- volvimento pleno de uma linguageterminologia clássica da lingüística para des-
natural e não, a não ser de maneira tangencial 5 A oposição filosofia/método que sustenta a comu- nicação

apropriação de qualquer meio de comunicaçã total é discutível e precisaria de amplo espaço de debate, inadequado
O que podia ter sido e devia ser uma estimu- lan para este trabalho. À margem das in- tenções da comunicação total
em distanciar-se dos métodos, sua própria prática ou sua prática
transição, terminou sendo um fim em si mes- mo;6 o q parcial ou sua prática mal entendida é o que indicaria o contrário.
devia ser uma transição para a autono- Toda vez que numa transmissão de informação, ou numa simples
mia lingüística dos surdos acabou sendo uma esco- lha conversa, pre- domine ou seja sistemático o objetivo de fazer
consciente e exclusiva dos ouvintes,7 e em cer- ta medida visualizar a estrutura do idioma falado — mas não a informação nem
a conversa em si mesmas — e não se utilize e se modifique a
uma escolha contra as necessidades so- ciolingüísticas e
linguagem dos surdos, estamos diante de um sistema de recursos
psicolingüísticas dos surdos. Em síntese, um novo
organizados física e temporalmente. Essas carac- terísticas
esqueleto comunicativo para os ouvintes, mas não um correspondem perfeitamente à descrição de um método, não de uma
instrumento cultural signifi- cativo para os surdos. filosofia. Por outro lado, o uso do ter- mo filosofia na educação dos
Como narrativas lingüísticas e psicolingüís- ticas, surdos deveria responder a questões de outra transcendência, como
a educação bilíngüe introduziu a questão da aquisição da por exemplo a ima- gem do Homem cultural e não exclusivamente a
do Homem comunicativo presente no projeto educativo.
linguagem de sinais na educação dos surdos e os vínculos
léxicos, semânticos e sintáti- cos dessa linguagem com as
6Um fim em si mesmo que não se completou. Hansen (1990)
demais modalidades lingüísticas. Os primeiros modelos
refere-se à experiência da Comunicação Total na Dinamarca do
revelaram uma hierarquização nos objetivos e nos níveis
seguinte modo: “As crianças não tiveram uma versão visual do
lingüísti- cos, oferecendo aos surdos — pelo menos idioma dinamarquês e, em troca, receberam um input lingüístico
teorica- mente — completo acesso à linguagem de sinais e muito inconsistente, pelo qual não en- tendiam nem os sinais nem as
à linguagem escrita e um acesso parcial à linguagem oral palavras orais. Tendiam a utilizar-se de uma ‘meia língua’,
(por exemplo, Bouvet, 1982) ou um acesso completo à misturando as duas lingua- gens para sobreviver comunicativamente,
linguagem de sinais e à linguagem oral (por exemplo, mas não tinham a menor idéia sobre onde acabava uma linguagem e
onde começava a outra”.
necessidades e respos- tas das crianças. Essa é uma contradição em
7 Escolha consciente certamente muito curiosa. John- son, relação a nos- so enfoque de que a educação na sala de aula depende
Liddell e Erting (1989) afirmam que: “Os professores crêem que, ao da habilidade que o professor tenha para adequar as estraté- gias do
fazerem sinais, as crianças também têm acesso à informação que lhes ensino e os conteúdos às necessidades das crianças”.
é apresentada na fala. Dessa maneira, a concentração na atuação leva
a uma incapacidade do pro- fessor para julgar adequadamente as

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bilíngüe. Por exemplo, mui- tos ouvintes estão esperando
que o bilingüismo as- sente as bases materiais e resolva,
finalmente, as con- dições de acesso dos surdos à língua
crever o caso dos surdos? Algumas dessas situações oral; outros im- ploram que o bilingüismo permita aos
bilíngües serão, de algum modo, semelhantes ao que vivem surdos o co- nhecimento do currículo escolar do mesmo
os surdos dentro e fora da escola? Em minha opinião, a modo e ao mesmo tempo que as crianças ouvintes da mes-
utilização do termo bilíngüe na educa- ção dos surdos nãoa idade; outros já reclamam para os surdos maior e
deveria ser aplicada, unicamen- te, como as capacidadeselhor competência na língua escrita; e outros, finalmente,
dos sujeitos de adquirir/ aprender duas ou mais linguagens,peram sentados a tão desejada integra- ção dos surdos ao
nem deveria obrigar a uma comparação forçada com asundo dos ouvintes.
habili- dades que demonstram alguns ouvintes nessas situa-
Em compensação, parte significativa dos sur-
ções (Sanchez, 1995). A aplicação do termo bilin- güismo
8
na área da educação dos surdos deveria alu- dir à sua s não parece apoiar essa proposta em seu senti- do mais
acepção pedagógica, isto é, à idéia de edu- cação bilíngüe,colar ou na idéia de um percentual e/ou um equilíbrio
ao direito dos sujeitos que possuem uma língua minoritária sessivo entre a linguagem oral e a linguagem de sinais
de serem educados nessa língua. Uma declaração da por exemplo, linguagem oral de manhã e linguagem de
UNESCO (1954) afir- ma que: “É um axioma afirmar quenais à tarde, ou vice- versa — e, muito menos, se ela é
a língua ma- terna — língua natural — constitui a forma tendida e posta em prática como um imperativo
ideal para ensinar uma criança. Obrigar um grupo a uti- terminado de fora pelos ouvintes — sobretudo no que se
lizar uma língua diferente da sua, mais do que as- segurar afere a qual deve ser a modalidade da segunda
9
unidade nacional, contribui para que esse grupo, vítima de guagem, como ensiná-la e em que momento isso deve
uma proibição, se segregue cada vez mais da vida or- rer. As comunidades de surdos que estão refletin- do
nacional”. Definida desse modo, a educação bilíngüe para debatem sobre esse tema defendem a propos- ta do
surdos é um ponto de par- tida — e, talvez, também um ingüismo, em primeiro lugar, com o obje- tivo de lhes
ponto de chegada — que busca, às vezesr reconhecido o direito à aquisição e ao uso da linguagem
desesperadamente, uma ideo- logia e uma arquitetura sinais e, conseqüentemente, para que possam participar
educativas a seu serviço. Em outras palavras: a educação debate educativo, cultural, legal, de cidadania etc. desta
bilíngüe é um reflexo coerente — talvez o primeiro na oca, em igualdade de condições e oportunidades, mas
história da educa- ção dos surdos — de uma situação e de m- pre respeitando e aprofundando sua singularidade e
uma con- dição sociolingüística dos próprios surdos. pecificidade.
Já faz alguns anos que um bom número de as- É pelo menos curioso que muitos educadores
sociações de surdos, de professores ouvintes e de gru- pos eóricos definam e encerrem o problema do bi-
de pais têm aderido à idéia de educação bilín- güe,
sentido-se seduzidos e manifestando a intenção de ser,
efetivamente, bilíngües; porém, entendo que entre esses
grupos existem diferenças notórias — e às vezes extremas 8 No XII Congresso Internacional da Federação Mun-

— sobre o que significaria uma proposta de educação l de Surdos, a Comissão sobre Linguagem de Sinais e Pe- dagogia
concluiu suas sessões afirmando que: “A Comissão de Pedagogia
sustenta que a polêmica oralismo versus lin- guagem de sinais deixou 9 De fato, no último Congresso Latino-americano de
de ser uma questão contemporâ- nea. Transcendemos essa ingüismo para os Surdos, realizado em Mérida, Venezue- la,
controvérsia e, para chegar ao próximo século, deixamos o irou-se dos anúncios e dos programas aquele esclare- cimento
Congresso de Milão de 1880 no passado. As tendências de 1995 são: ico que rezava, como um estereótipo, um verda- deiro
o reconhecimento da linguagem de sinais e o respeito por ela como ar-comum: Bilingüismo (linguagem de sinais-lin- guagem oral).
linguagem da comunidade Surda, e o reconhecimento da educação
bi- língüe” (World Federation of the Deaf, 1995).

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Bilingüismo e biculturalismo orga- nização comunitária, formas de ver o mundo e con-
teúdos culturais que geralmente são omitidos ou não são
reconhecidos como tais pelos ouvintes.
lingüismo somente como a tomada de algumas de- cisõ
E seria um erro se a educação bilíngüe só se ativesse
lingüísticas, referidas geralmente à exata pro- porção ent
a linguagem oral e a linguagem de si- nais — ou entre a propor e/ou a refletir uma situação so- ciolingüística e
linguagem de sinais e a linguagem escrita —, e com cultural. Ao contrário, a educação bilíngüe deveria propor
inclusão física do adulto ou dos adultos surdos na esco a questão da identidade dos surdos como eixo fundamental
Não obstante, e após al- guns anos de experiência, s da construção de um
poucos os que que- rem admitir e reconhecer que, modelo pedagógico significativo, criar as condições
realidade, a pro- blemática da escola para surdos mlingüísticas e educativas apropriadas para o desen-
começou a vis- lumbrar-se, a descobrir-se em sua nature volvimento bilíngüe e bicultural dos surdos, gerar uma
mais interna. mudança de status e de valores no conhecimen- to e no uso
das línguas implicadas na educação, promover o uso da
Em primeiro lugar, definir uma situação edu- cati primeira linguagem, a linguagem de sinais, em todos os
como bilíngüe não habilita de forma simul- tânea a definníveis escolares, definir e dar significado ao papel da
a natureza interna dessa experiên- cia, ainda que se acred segunda linguagem na edu- cação dos surdos, difundir a
no contrário. Não há, não deveria haver, métodos linguagem de sinais, a comunidade e a cultura dos surdos
bilingüismo; o bi- lingüismo não é uma combinação para além das fronteiras da escola, estabelecer os
recursos di- visíveis para cada um dos planos educativoconteúdos e os temas culturais que especifiquem o acesso à
De fato, existem muitas escolas no mundo chamadinfor- mação por parte dos surdos, gerar um processo de
bilíngües — refiro-me inclusive àquelas que pro- põeplena participação dos surdos como cidadãos, de-
duas línguas para crianças ouvintes — e to- das apresentasenvolver ações para o acesso e a compreensão dos surdos
diferenças patentes quanto a suas propostas de didáticà profissionalização e ao mundo — e não ao mercado —
das línguas, a sua progra- mação curricular, à participaç do trabalho.
dos usuários na- tivos das línguas implicadas, à arquitetu
funcio- nal das classes, inserção na comunidade mais am Por todas as razões expostas, a educação de
pla, origem e destino do projeto educativo etc. surdos atualmente já não pode ser descrita apenas através
de grandes narrativas — oralismo, comu- nicação total,
Em segundo lugar, e como conseqüência do ponbilingüismo — nem como um pro- duto de antagonismos
anterior, surge a sensação de que o termo bilingüismo dfragmentários e oposições binárias — maioria/minoria,
tudo mas, ao mesmo tempo, não diz nada acerca oralidade/gestualida- de, ouvintes/surdos etc. Os temas de
educação para surdos. Diz tudo por- que propõe e tendehoje transcen- dem ambos os estilos e ideologias dessa
construção de um ponto de partida a que não se po descrição e obedecem a múltiplas trajetórias de análise.
renunciar: afirma a exis- tência de duas línguas na vida d Como exemplo disso, no último Congresso da Federação
surdos; mas não diz nada porque, por trás dessas língu Mundial de Surdos (World Federation of the Deaf, 1995),
há cultu- ras, instrumentos cognitivos, modalidades
surgem com particular clareza questões tais como: a contexto mais amplo de educação. Contexto que inclua,
situação das mulheres surdas, dos surdos desempregados, entre ou- tras, questões tais como o multiculturalismo, o
dos surdos negros, dos imigrantes surdos, o efeito das pro- cesso de construção das múltiplas identidades, os
duplas discriminações, do abuso contra crianças surdas etc. mecanismos de poder e de saber dos ouvintes e dos surdos,
Essas temáticas vão mui- to além do paradigma atual na a reconstrução que os surdos desenvolvem sobre sua
educação especial e precisam ser discutidas dentro de um própria educação e as políticas relativas às diferenças.

Revista Brasileira de Educação 55


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