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¡Ay de aquel que navega, el cielo


oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o
sexta-feira, abril 30, 2004
puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV
INIMPUTÁVEIS
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Tiragem
Espigão d'Oeste - Dois garimpeiros que trabalharam para os índios cintas-largas no
Janer Cristaldo escreve no garimpo de diamantes na reserva Roosevelt, em Roraima, confirmaram ontem o
Jornaleco assassinato de uma menina de 12 anos por um cacique. Roberson Lugon de Souza,
Brazzil
Baguete de 35 anos, conhecido como Pardal, disse que viu Ita Cinta-Larga estripar a garota
Crônicas Anteriores
ainda viva, porque pensou que ela havia engolido um diamante.
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"Chamávamos a menina de Garotinha. Ela estava sentindo cólicas, provavelmente
Arquivos por causa da água suja que bebíamos", contou. No dia em que seria levada à
Outubro 2003
Dezembro 2003 cidade, um dos índios se aproveitou de um descuido e escondeu uma pedra. Foi
Janeiro 2004
Fevereiro 2004 mais fácil acusar a menina. Ita Cinta-Larga foi até sua oca, pegou uma faca e abriu
Março 2004
Abril 2004 a menina. Não encontrou nada", disse Souza.
Maio 2004
Junho 2004
Julho 2004 O Estado de São Paulo, 30.04.04
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Novembro 2004 - Enviado por Janer @ 7:22 PM
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Dezembro 2005 MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (XI)
Janeiro 2006
Fevereiro 2006
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Maio 2006 Olhando de longe aquela polêmica, vejo que na época já intuíamos o que hoje é
Junho 2006
Julho 2006 evidente. O marxismo é filho bastardo do cristianismo, reconhecido tardiamente
Agosto 2006

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Setembro 2006
Outubro 2006
pelo progenitor. Que o digam os sedizentes teólogos da libertação. Quando Dom
Novembro 2006 Paulo Evaristo Arns ou Leonardo Boff ou frei Betto elogiam o ditador Fidel e seu
Dezembro 2006
Janeiro 2007 regime, fica evidente que, na América Latina, em sua "opção preferencial pelos
Fevereiro 2007
Março 2007 pobres", a igreja assumiu no Brasil o caminho do obscurantismo e da inquisição.
Abril 2007
Maio 2007
Junho 2007
Julho 2007 Estas brigas foram o melhor legado de Dom Pedrito. Com elas inauguramos uma
Agosto 2007
Setembro 2007
quebra de hierarquia. Não interessava a idade ou o suposto saber de nossos
Outubro 2007 adversários. O que pesava era a lógica, os argumentos. Hoje, teria de rever aqueles
Novembro 2007
Dezembro 2007 artigos – meus recortes foram queimados por minha mãe, como também muitos
Janeiro 2008
Fevereiro 2008 livros, questão de manter o filho saudável e em liberdade – para saber se
Março 2008
Abril 2008 estavámos dizendo bobagens ou algo sensato. Provavelmente bobagens, mas isto é
Maio 2008
Junho 2008 o de menos. Aqueles embates nos enrijeciam a pele para confrontos futuros.
Julho 2008
Agosto 2008
Sabíamos que verdade não era privilégio exclusivo de professor algum. Pena que
Setembro 2008 muitas mães, com a melhor das intenções, queimaram muitos livros naqueles anos
Outubro 2008
Novembro 2008 pós-64.
Dezembro 2008
Janeiro 2009
Fevereiro 2009
Março 2009 Quando em Porto Alegre, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
Abril 2009
Maio 2009 foi com sangue doce que enfrentei o professor Guilhermino César, historiador
Junho 2009
Julho 2009
mineiro, autor de Meia Pataca, que havia roubado do Aníbal Damasceno Ferreira a
Agosto 2009 descoberta do Qorpo Santo. Ao mostrar os originais do artigo em que o defendia,
Setembro 2009
Outubro 2009 Aníbal chegou a assustar-se com minha "coragem". Ponho a palavra entre aspas,
Novembro 2009
Dezembro 2009 foi usada por ele. Para mim se tratava apenas de uma rotineira defesa do que
Janeiro 2010
Fevereiro 2010 julgava correto. Influência talvez do campo, onde a solidão da pampa individualiza
Março 2010
Abril 2010 as pessoas, jamais me pareceu ser necessário coragem para dizer o que se pensa.
Maio 2010
Junho 2010
Julho 2010 As polêmicas pedritenses ultrapassavam as meras inquietações de adolescência.
Agosto 2010
Setembro 2010 Através de nós, se manifestava naquela cidadezinha a dez mil quilômetros da
Outubro 2010
Novembro 2010 Europa a velha disputa entre Roma e Moscou, entre Cristo e Marx, entre Dom
Dezembro 2010
Janeiro 2011 Camilo e o camarada Pepone, na obra de Guareschi. Se hoje Marx morreu, não
Fevereiro 2011
Março 2011 fique Cristo pensando que é eterno. Apesar de erros e desvios, guerras e
Abril 2011
Maio 2011
massacres, a humanidade acaba encontrando as melhores soluções para seu
Junho 2011 avanço. A última década do milênio passado foi a melhor prova disto.
Julho 2011
Agosto 2011
Setembro 2011
Outubro 2011 Mais dia menos o poder do Vaticano desmorona, ou pelo menos reduz seus círculos.
Novembro 2011
Dezembro 2011 Assim como marxismo hoje não passa de um verbete de enciclopédias, mais século
Janeiro 2012
Fevereiro 2012 menos século alguém terá de consultar um dicionário para saber o que é
Março 2012
Abril 2012
cristianismo. Não é possível que numa era dos satélites e computadores, da aviação
Maio 2012 e do turismo, um ser pensante continue acreditando no cabaço de Maria. Tampouco
Junho 2012
Julho 2012 há Maomé que sobreviva a uma antena parabólica. Os países árabes sabem disto e
Agosto 2012
Setembro 2012 vêem a televisão ocidental como algo muito mais perigoso que o livro.
Outubro 2012
Novembro 2012
Dezembro 2012
Janeiro 2013 A dinâmica destas polêmicas me levou a uma ambiência mais arejada, os cabarés
Fevereiro 2013
Março 2013
da cidade. De nosso grupo eu era o carola por excelência, certamente o único a não
Abril 2013

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Maio 2013
Junho 2013
conhecer mulher nem freqüentar a zona. Inexoravelmente, fui cair lá. Não por
Julho 2013 razões de ordem sexual. Ainda tinha medo do bicho-mulher, e sequer um centavo
Agosto 2013
Setembro 2013 para fretá-las. Nossas mães detestavam ver-nos reunidos num quarto lendo e
Outubro 2013
Novembro 2013 discutindo, dali nada poderia sair de edificante. Mais ou menos corridos de casa,
Dezembro 2013
Janeiro 2014 tínhamos o footing na praça General Osório para trocar idéias. Mas o footing
Fevereiro 2014
Março 2014 –saudades daquela época, quando as pessoas iam às ruas para ver o rosto dos
Abril 2014
Maio 2014
semelhantes!– tinha hora para acabar, depois restava o bar do Santinho. Como
Junho 2014 também o Santinho tinha hora para dormir. Depois só restavam as putas. Com o
Julho 2014
Agosto 2014 escasso dinheiro para algumas cervejas, nos instalávamos naquelas casinhas de
Setembro 2014
Novembro 2014 eterna luz vermelha na porta, para discutir filosofia, religião e reforma agrária.

Com o tempo, em final de noite, as moças postaram uma atalaia na janela. Mal
despontávamos na esquina, elas fechavam a casa: "lá vêm os filósofos, deles não
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sai um vintém". Sempre que vou a Dom Pedrito, procuro revisitar estas casas,
certamente as tribunas mais abertas da cidade. Nada de original, velha tradição
helênica. Na Grécia antiga, o debate intelectual ocorria não nos lares, mas nos
lupanares.

Mais contemporaneamente, o rei Ludwig I, nomeou Margaret Trautmann como


ministra da Cultura e das Artes da Baviera. Esta senhora, longe de ser uma
acadêmica, administrava um bordel em Munique. Quando o ministro da Justiça
mandou fechar a casa, Trautmann pediu uma entrevista ao rei. Alegou que sua casa
era um ponto de encontro de poetas e artistas, nobres e políticos, que lá se
reuniam para cultivar o espírito, claro que sempre na boa companhia de suas
pupilas. Ludwig não hesitou. Ordenou a reabertura da empresa e a nomeou
ministra. Não pretendo comparar um prostíbulo da fronteira gaúcha com uma casa
galante da Baviera, durante o reinado de Ludwig. Mas sempre encontrei mais
inquietação de espírito e abertura mental nos bordéis do que em qualquer reunião
familiar. Em família, normalmente as pessoas mentem. Aos prostíbulos, vamos para
fugir da mentira.

Falar nisso, revisitei há pouco Dom Pedrito. Amigos dos velhos tempos
manifestaram o desejo de reler aquele meu primeiro conto, que me valeu a
expulsão da cidade. Gente mais nova, que só ouviu falar do assunto, gostaria de
conhecê-lo. Foi publicado em 1968, no Correio do Povo, de Porto Alegre, quando
eu tinha 21 anos, mas escrito dois anos antes. No próximo post, o conto. Com
todas as deficiências de quem mergulhava, pela primeira vez, nesse vício da
escritura.

- Enviado por Janer @ 9:33 PM

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segunda-feira, abril 26, 2004

CORAGEM INTELECTUAL

"Sim, há que se endurecer. Temos de fuzilar essa gente que acabamos de fuzilar em
Cuba, porque não merecem viver".

Alberto Granado, companheiro de viagem de Che Guevara pela América Latina, em


1952, em entrevista para a Folha de São Paulo, 26/04/04. Está solto e percorre o
Brasil prestigiando o filme Diários de Motocicleta, de Walter Salles.

- Enviado por Janer @ 6:50 PM

sexta-feira, abril 23, 2004

O AUTOR ESQUECIDO

Nicolau Emérico – O Manual dos Inquisidores

Sobre a tortura (2)

Se tudo isso for inútil conduzir-se-á à tortura, durante a qual será submetido a
interrogatório, em primeiro lugar referente aos artigos menos graves em que seja
suspeito, pois que ele confessará as faltas leves de preferência às mais graves. No
caso de ele se obstinar sempre a negar, pôr-se-lhe-ão frente aos olhos
instrumentos de outros suplícios e dir-se-lhe-á que vai passar por todos eles, a não
ser que confesse toda a verdade.

Se enfim o Acusado nada confessar, pode continuar-se a tortura um segundo dia e


um terceiro, mas com a condição de seguir os tormentos por ordem e nunca repetir
os já praticados, não podendo ser repetidos enquanto não sobrevierem novas
provas, embora não seja proibido neste caso o continuar por ordem (ad
continuandum non aditerandum, quia iterari non debent, nisi novis
supervenientibus indiciis, sed continuari non prohibentur).

Se o Acusado tiver suportado a tortura sem nada confessar, deve o Inquisidor pô-lo
em liberdade mediante sentença na qual constará que após um cuidadoso exame
do seu processo, nada se encontrou de legitimamente provado contra ele, no

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respeitante ao crime de que havia sido acusado.

Quanto àqueles que confessem, devem ser tratados como hereges penitentes não
relapsos, se for essa a primeira vez; como impenitentes, se não quiserem abjurar;
e como relapsos, se é efetivamente a segunda vez que caem em heresia.

Quando começou a estabelecer-se a Inquisição, não eram os Inquisidores que


aplicavam a tortura aos Acusados, com medo de incorrerem em irregularidades.
Esse cuidado incumbia aows juízes laicos, conforme a bula Ad Extirpanda do papa
Inocêncio IV, na qual esse Pontífice determina que devem os Magistrados obrigar,
com torturas, os Hereges (esses assassinos das almas, esses ladrões da fé cristã e
dos sacramentos de Deus) a confessar os seus crimes e a acusar outros hereges
seus cúmplices. Isto no princípio; posteriormente, tendo-se verificado que o
processo não era assaz secreto e que isso era inconveniente para a fé, achou-se
que era mais cômodo e salutar atribuir aos Inquisidores o direito de serem eles
mesmos a infligir a tortura, sem ser preciso recorrer aos juízes laicos, sendo-lhes
ainda outorgado o poder de mutuamente se relevarem de irregularidades em que
às vezes por acaso incorressem.

De ordinário utilizam os nossos Inquisidores cinco espécies de tormentos no


decorrer da tortura. Como isso são coisas sabidas de toda a gente, não irei deter-
me neste assunto. Podem consultar-se Paulo, Grilando, Locato, etc. Já que o Direito
canônico não prevê particularmente este ou aquele suplício, poderão os Juízes
servir-se daqueles que acharem mais aptos para conseguirem do Acusado a
confissão dos seus crimes. Não se deve porém fazer uso de torturas inusitadas.
Marsílio menciona quatorze espécies de tormentos: acaba por afirmar que imaginou
ainda outros, como seja a privação de sono, também referida e aprovada por
Grilando e Locato. Mas, se me é permitido dizer a minha opinião, isso é mais
trabalho de carrascos do que tratado de Teólogos.

É por certo um costume louvável aplicar a tortura aos criminosos, mas reprovo
veementemente esses juízes sanguinários que, por quererem vangloriar-se,
inventam tormentos de tal modo cruéis que os Acusados morrem durante a tortura
ou acabam por perder alguns de seus membros. Também Antônio Gomes condena
violentamente este procedimento.

- Enviado por Janer @ 11:29 PM

quinta-feira, abril 22, 2004

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O AUTOR ESQUECIDO

Nicolau Emérico (1320-1399) - O Manual dos Inquisidores

Sobre a tortura (1)

TORTURA-SE o Acusado, com o fim de o fazer confessar seus próprios crimes. Eis
as regras que devem ser seguidas para poder ordenar-se a tortura. Manda-se para
a tortura:

1. Um acusado que varia as suas respostas, negando o fato principal.


2. Aquele que, tendo tido reputação de herege, e estando já provada a difamação,
tenha contra si uma testemunha (mesmo que seja a única) a afirmar que o viu
dizer ou fazer algo contra a fé; com efeito, a partir daí, um testemunho somado à
anterior má reputação do Acusado são já meia-prova e índice bastante para
ordenar a tortura.
3. Se não se apresentar qualquer Testemunha, mas se à difamação se juntarem
outros fortes indícios ou mesmo um só, deverá proceder-se também à tortura.
4. Se não houver difamação de heresia, mas se houver uma Testemunha que diga
ter visto ou ouvido fazer ou dizer algo contra a Fé, ou se aparecerem quaisquer
fortes indícios, um ou vários, é o bastante para se proceder à tortura.

Geralmente, entre estas várias coisas – testemunha de conhecimento certo, má


reputação em matéria de fé, e um forte indício – um deles só não basta, mas dois
são necessários e bastantes para ser ordenada a tortura. Há entretanto uma
exceção ao que temos vindo a dizer sobre o fato de a má reputação não ser
suficiente para se ordenar a tortura:

1. Quando à má reputação se juntam maus costumes; visto que as pessoas de


maus costumes facilmente caem na heresia e sobretudo em erros que originam sua
vida criminosa. É desta forma que, por exemplo, os que são incontinentes e que
têm grande inclinação por mulheres facilmente se convencem de que a simples
fornicação não é pecado.
2. No caso de o Acusado fugir, esse indício somado à má reputação é já suficiente
para ser ordenada a tortura.

Segue-se a fórmula da sentença de tortura: “Nós, F... Inquisidor, etc, considerando


com atenção o processo contra ti instruído, vendo que varias as tuas respostas e
que há contra ti provas suficientes, com o fim de tirar da tua boca toda a verdade,
e para que não canses mais os ouvidos dos teus juízes, julgamos, declaramos e
decidimos que no dia tal... à hora tal... sejas submetido à tortura”.

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Não deverá decretar-se a tortura sem primeiro ter inutilmente usado todos os
meios de descobrir a verdade. Boas maneiras, esperteza, exortações através de
outras pessoas bem-intencionadas, a reflexão, as incomodidades da prisão, podem
ser o bastante para conseguir dos réus a confissão da sua falta. Os tormentos não
são mesmo um método mais seguro para conseguir a verdade. Há homens fracos
que, à primeira dor, logo confessam crimes que não cometeram, enquanto outros,
teimosos e fortes, são capazes de suportar os maiores tormentos. Há homens que
tendo já sido submetidos à tortura a suportam com constância, porque se lhes
distendem logo os membros e lês resistem fortemente; e há outros que, graças a
sortilégios, se tornam a si mesmos insensíveis e seriam capazes de morrer no
suplício, sem nada confessar. Para tais malefícios, esses desgraçados empregam
passagens da Escritura que, de forma estranha, escrevem em pergaminhos virgens,
misturando-as com nomes de Anjos que ninguém conhece, círculos, caracteres
desconhecidos, que depois escondem em qualquer parte do corpo. Não sei ainda de
remédios certos contra tais sortilégios, mas convém sempre despir e revistar bem
os Acusados antes de os submeter à tortura.

Lida a sentença da Tortura, e enquanto os Carrascos se preparam para a execução,


convém que o Inquisidor e outras pessoas de bem façam novas tentativas para
levarem o acusado a confessar a verdade. Os Verdugos procederão ao despimento
do criminoso com certa turbação, precipitação e tristeza para que assim ele se
atemorize; já depois de estar despido, leve-se de parte e seja exortado novamente
a confessar. Prometa-se-lhe a vida, sob essa condição, a menos que ele seja
relapso, pois neste caso não se pode prometer-lha.

- Enviado por Janer @ 4:56 PM

sábado, abril 17, 2004

MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (X)

Quando abordamos a obra de um escritor de renome, as mulheres que o


acompanharam fazem parte de sua fama, trate-se de um Balzac ou de um Vinícius
de Morais. Mas quando o candidato a escritor começa a fugir da monogamia, a
gostar de muitas mulheres, seu gesto é quase criminoso. Se o candidato em
questão for mulher, pior ainda: é puta e fim de papo. Em um escritor famoso, as
muitas mulheres são um adorno à sua biografia. Como em uma escritora ou artista

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de renome, os vários homens que freqüentaram seu leito constituem currículo, aí


estão Lou Salomé, Anaïs Nin, Frida Kahlo, Patrícia Galvão. No adolescente que
começa a rabiscar seus contos, seja macho seja fêmea, a diversidade de parceiros
é um estigma. Mesmo em Porto Alegre, em ambiente universitário, este
comportamento não era muito bem visto. Na época, um radical de esquerda, mais
tarde alcaide da capital e hoje ministro da Cultura, comentou que eu deveria ter
muitos problemas, pois sempre andava com várias mulheres. Mandei um recado de
volta: problemas teria ele, que andava sempre com a mesma. Eu tinha, isto sim,
muitas soluções. Mais ainda: sem jamais ter mentido a nenhuma parceira.

Outro atrito com a cidade, a polêmica em torno à reforma agrária. Com os debates
sobre a prostituição, foram surgindo detalhes que não imaginávamos existir. Por
que uma mulher se torna prostituta? Por prazer é que não é. Havia o problema da
migração do homem do campo para a cidade. Se o pequeno proprietário rural
abandonava o campo com sua prole, era porque o latifúndio o expulsava. Os
comunistas que nos rodeavam foram pródigos em bibliografia. Na época – final do
governo Goulart – a grande questão nacional era decidir se a reforma agrária já
estava prevista na Constituição, ou se seria necessário reformá-la para dividir as
terras.

Lançamos então – éramos uns cinco ou seis pivetes, na faixa dos 14 ou 15 anos –
um manifesto no Pirilampo, um jornalzinho estudantil que havíamos criado, em
defesa da reforma agrária, solidamente fundamentado em Direito Constitucional.
Era impresso na gráfica do Ponche Verde, de propriedade de Bernardo Munhoz,
jornalista e fazendeiro. Na mesma semana, o jornal nos desancava em furioso
editorial, assinado pelo Dr. Márcio Bazan. (Nas cidades do interior, todo bacharel se
intitula doutor). O editorialista, advogado ao estilo antigo, em um texto pontilhado
de muito latim, alertava a comunidade para os perigos do comunismo. O que
preocupava as "forças vivas do município" era saber onde nós, pivetes, havíamos
encontrado tantos argumentos jurídicos. Só podia ser coisa de comunista.

Não estavam longe da verdade. Naquela época, chegavam a Dom Pedrito dois
exemplares do jornal Brasil, Urgente, editado em São Paulo por dominicanos de
esquerda. Um dos exemplares era nosso, o outro do partido. Quem os distribuía era
o Gerson Prabaldi, operário e militante, um dos raros comunistas que até hoje
merece meu respeito. Funileiro, patrão de si próprio, lutava por uma sociedade
mais justa, nada a ver com os filhos da classe média que fizeram carreira e fortuna
montados nos ideais socialistas. Final de tarde, fechava a funilaria, pegava uma
bicicleta e saía a fazer seu apostolado, o porta-cargas repleto de ideologia. Líamos
as revistas China e Unión Soviética, em espanhol, mais aquele catecismo em
edições mensais do PC, a revista Problemas, e muita imprensa de esquerda.

O funileiro acreditava na utopia e dedicava suas horas de lazer à construção do

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socialismo. Homem de uma era pré-televisiva, na qual mesmo os jornais que


eventualmente chegavam a Dom Pedrito desconheciam o que se passava no mundo
soviético, Gérson acreditava piamente nos panfletos vindos de Pequim ou Moscou.
Fosse um dia ao paraíso que louvava, ou tivesse melhores fontes de informação,
tenho certeza de que faria marcha à ré. Era homem desinformado, mas honesto.
Em sua oficina, rodeado de pneus e aros de bicicletas, recebi minhas primeiras
aulas de marxismo, baseadas em um livrinho de Georges Politzer, Curso de
Filosofia - Princípios Fundamentais. Primeiras e primárias: sua argumentação
simplória não me convencia. No entanto, este divulgador menor foi bastante
significativo. Em sua tentativa de trocar em miúdos o marxismo para um público
operário, Politzer despe a doutrina de sua retórica e a exibe em sua indigência.

Nem por isso deixo de admirar o apóstolo da bicicleta, apesar de sua visão simplista
do mundo. Com sua assessoria, argumentos para debate ideológico ou
constitucional era o que não nos faltava. Enquanto os oblatos nos falavam em corpo
místico de Cristo, estávamos mergulhados em estudos de materialismo dialético.
Hoje, sabemos que as duas religiões pouco diferem uma da outra. Na época, eu
julgava estar manipulando um método científico para encontrar um pouco de luz
em meio às trevas clericais. Esconjuradas as trevas, acabei jogando no lixo o
suposto método científico. Foi precioso como instrumento de libertação de uma fé.
Eu conseguira escapar de uma religião, com não pouco sofrimento. Não estava
disposto a submeter-me ao jugo de outra.

No dia seguinte às catilinárias do Ponche Verde, estávamos batendo às portas do


Dr. Munhoz, de Constituição e Lei de Imprensa em punho, indignados. Exigíamos
direito de resposta, o que nos foi concedido. Apelávamos aos sentimentos cristãos
da comunidade, talvez até antecipando a dita teologia da libertação. Título:

Exigência de Cristo:
amor aos comunistas

Para não fazer feio ante o latinista, jogamos cá e lá alguns datas venias e quousque
tandens na réplica, mais ou menos ao azar, assim como quem joga sal em uma
picanha. O artigo foi publicado, cercado de editoriais. Novo mistério, nosso
conhecimento do latim dos juristas. O único a matar a charada foi o padre
Francisco, outro oblato vindo da Alemanha, professor de matemática: "Focês non
me enganan, focês lerram as páchinas finais do Aurrélio". Na época, havia uma
edição do Aurélio com expressões latinas ao final. Mas pesquisa nunca foi pecado.

Em meio a réplicas e tréplicas, um de nossos professores de português começou


uma frase com um pronome oblíquo. Fomos implacáveis: "Admoestamos o ínclito
mestre da língua vernácula que as mais elementares regras gramaticológicas
coarctam o emprego do pronome oblíquo nos proêmios de uma frase". A resposta

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veio curta e grossa: "Rui Barbosa não foi presidente da República". Gerson Prabaldi
voava em sua bicicleta, difundindo a polêmica. Me consta que as edições do
semanário se esgotaram naqueles dias.

- Enviado por Janer @ 7:26 PM

terça-feira, abril 13, 2004

MEU 1° DE ABRIL

Quando um acontecimento histórico faz aniversário em números redondos, ocorre o


que os jornalistas chamam de efeméride. Foi o aconteceu no início deste mês,
quando a dita Revolução de 1964 completou seus 40 anos. O leitor já deve ter
notado que sempre busco fugir ao lugar-comum. Assim sendo, me abstive de
contar o que estava fazendo no dia 1° de abril de 1964. Mas já recebi alguns mails
exigindo o relatório e, já que estamos mais distantes da data - e do lugar-comum -
vou contar. Aliás, já devo ter contado em crônicas passadas.

No dia 1° de abril, com a arrogância de um estudante de 17 anos - eu os


completaria no dia seguinte - eu defendia bravamente as instituições democráticas,
na sede do Sindicato dos Ferroviários, em Santa Maria, do ataque brutal dos
militares. Trepado em uma mesa, eu deitava o verbo contra Lacerda, contra as
Forças Armadas e contra os reacionários e golpistas em geral. Conclamava os
operários à resistência contra o golpe e a eles oferecia o importante apoio da classe
estudantil santamariense. Na época, se algum leitor está lembrado, a fórmula
mágica para resistir a ditadura era a aliança estudantil-operário-camponesa.
Verdade que a maioria dos estudantes jamais havia visto um camponês de perto,
mas isto pouco importava. Havia também aquele outro slogan, povo unido jamais
será vencido, refrões que repetíamos como mantras para exorcizar o mal.

Esperávamos, no sindicato, a tomada de posição do general Pope de Figueiredo,


comandante da guarnição local. Confiávamos que, se a base aérea de Camobi,
sediada em Santa Maria, tomasse o partido do povo, a ditadura estaria conjurada.
Pois justo na hora em que eu discursava, com o ardor de meus 17 anos, chegou a
tomada de posição do general Pope: trezentos homens armados, com baionetas
caladas, cercaram o prédio, chamado pomposamente de Casa Rosada. Enquanto eu
falava, o salão ia se esvaziando. Eu, que não sabia do que acontecia lá fora, desci
da mesa muito sem graça, achando que meu discurso não estava convencendo
ninguém.

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Janer Cristaldo http://cristaldo.blogspot.com/2004/04/

Não era bem o caso. Mais convincente era a tomada de posição do general. Fiquei
no prédio, com mais dez operários, um deles bêbado e armado com um facão.
Queria enfrentar sozinho as baionetas. Tive de puxá-lo para dentro e fiquei me
perguntando o que fazia ali. Ninguém foi preso, nem o seria, desde que
abandonasse o prédio. Acabei indo embora, com a terrível sensação de herói
ignorado, sem aplausos e nem mesmo vaias.

De atitudes como esta - ou semelhantes - se gabaram na semana passada


escritores e cronistas de não poucos jornais. Eu, se por algum tempo me orgulhei
de minha modesta participação nos acontecimentos daquele dia, hoje a deploro
profundamente. Como todos os jovens, eu era um perfeito idiota. Seguia atrás de
palavras de ordem, em geral oriundas de Pequim, Moscou ou Havana, e as defendia
como quem defende uma verdade sagrada. Não sabia, na época, que guerrilheiros
vinham sendo preparados em Cuba para, sob o comando de Julião, tomar o poder
no país e transformá-lo em mais uma republiqueta atrelada a URSS. Era a segunda
tentativa do Kremlin de tomar o poder no país. A primeira, fora a de 35, liderada
por Luís Carlos Prestes e mais três ou quatro aventureiros internacionais.

Hoje, está mais que visto: não fossem os militares, estaríamos vivendo sob regime
comunista. Com a queda do Brasil, não seria fácil de imaginar o Chile e Argentina,
que já vinham sendo infiltrados pelos comunistas, sob o jugo de Moscou. Não seria
também de duvidar que, com o continente latino-americano subjugado, o regime
soviético tivesse mais alento e inclusive sobrevivesse mais algumas décadas. E não
é demais afirmar que, sem a atitude dos militares em 64, o horror talvez tivesse
dobrado a esquina do século.

Mas a vitória das Forças Armadas foi ilusória. Venceram a primeira batalha, é
verdade. Mas perderam o combate. Hoje, transcorridas apenas quatro décadas,
metade de uma vida de homem, menos que a ditadura de Fidel Castro, os militares
foram jogados na famosa lata de lixo da História, com a pecha de vilões Os vilões
da história não só tomaram o poder como posam de heróis e recebem régias
aposentadorias, pelos (des)serviços prestados à Pátria. Os grandes vencedores de
64, costumo dizer, foram as esquerdas que, na época, pretendiam instalar no Brasil
um regime soviético. Mas os tempos mudaram, o Muro caiu, a URSS afundou. Hoje,
no poder, as esquerdas não têm mais moral para empunhar bandeiras socialistas.

Há quem creia, é verdade, que o Brasil de hoje se encaminha ao comunismo. Não


acredito. Não há mais clima. Se o PT tivesse ganho em 1980, quando o mundo
ainda tremia ante qualquer arroto da URSS, talvez. Agora é tarde, camaradas.

Naquele distante primeiro de abril, eu, idiota atroz, sem ser marxista nem membro
do Partido Comunista, fazia o jogo dos marxistas e comunistas. Se alguém hoje

11 of 13 09/12/2020 15:15
Janer Cristaldo http://cristaldo.blogspot.com/2004/04/

ostenta tais bravatas com orgulho, eu as exibo com vergonha. Mas a vida é isso
mesmo. Bom senso não é o quinhão dos jovens.

- Enviado por Janer @ 12:11 PM

quarta-feira, abril 07, 2004

ASSIM SE PERDEM AS PERDIZES

Um leitor pergunta porque gosto de escrever sobre mim mesmo. Não é verdade.
Prefiro escrever sobre uma escrivaninha, que é bem mais cômodo. Pergunta-me
também como desenvolvo esta crônica.

Honestamente, não sei. Me dou por feliz, quando, ao sentar na mesa, já tenho o
tema escolhido. Isto é, metade da crônica está feita. Uma vez sentado, não tenho
idéia muito precisa do ponto de chegada. Muitas vezes penso ir a Paris e acabo
chegando a Ponche Verde. Às vezes me preocupa uma reflexão sobre a História e
acabo entrando num bar. E ao sair do bar o rumo é sempre incerto, como o é o
desfecho da crônica. Como a desenvolvo?

Prefiro falar de perdizes.

O leitor já ouviu falar de mundéus? Se não nasceu no campo, mais precisamente na


Campanha, certamente desconhece o que seja mundéu. É uma armadilha para
perdizes. Sobre uma trilha de ovelhas faz-se uma pequena muralha de pedras,
esterco, mio-mio ou chirca, de um palmo de altura e uns dois braços de homem de
comprimento. Nas pontas da cerca, dois braços laterais saem um para cada lado,
formando assim uma espécie de T, cortado por cima e por baixo. No centro do
mundéu, por onde passa a trilha, há uma porteirinha.

Da porteira pende uma trança de rabo de cavalo, trançada de três ou torcida, mas
sempre em forma de forca. A torcida é melhor, se fecha mais fácil. O mesmo não
diria a perdiz, mas quem ocupa este espaço é o cronista e não ela. Só posso falar
de meus pontos de vista.

Primeiro é necessário levantar a perdiz. A melhor hora é o nascer do sol, quando


seus raios tornam brilhantes as babas-de-boi que se estendem de cardo a cardo.
Não pode ser dia de vento. Nesses dias, a perdiz se amoita no primeiro alho-bravo
que encontra e não quer saber de passeios, já se levanta voando. Outra hora boa é

12 of 13 09/12/2020 15:15
Janer Cristaldo http://cristaldo.blogspot.com/2004/04/

depois de um temporal, quando um cheiro de terra se ergue da terra e fica para


sempre nas narinas de quem na infância com esse cheiro se embriagou. Outro
cheiro que também marca para sempre é o cheiro de sanga ao entardecer. Mas
falava de perdizes.

Para levantar a perdiz, basta passear pelo campo, de preferência a pé, assobiando
em seu ritmo assustadiço. Ela ouve. Se está aninhada, levanta. Espicha o pescoço e
responde. Está perdida.

Cabe agora ao caçador mangueá-la para o mundéu, o que exige grande


conhecimento da psicologia das perdizes. As perdizes são desconfiadas por
natureza. Para ganhar-lhes a confiança, o assobiador tem de ser melífluo,
insinuante. Quando a perdiz assobia, o assobiador cala. Quando ela cala, eu
respondo. Se ela está à direita do mundéu, vou caminhando de longe, para a
esquerda. Como quem não quer nada, sempre assobiando, como se o mundéu nem
existisse.

Um bom expediente é dar as costas para a perdiz, de mãos no bolso. A perdiz vê o


assobiador de costas para ela e fica até despeitada. Ele não quer nada comigo, me
deu as costas, pensa a perdiz. São ingênuas, as perdizes.

Se ela vai para a esquerda, sigo assobiando pela direita. A perdiz se desespera. Ele
nem me quer. Eu assobio para um lado, ele assobia para o outro. E aí se perde a
perdiz, pois o assobiador a ama e o amor é guerra. A perdiz entra na trilha. Logo
adiante, está o mundéu. E a trança. Torcida.

Uma vez na trilha, mais amorosamente assobia o assobiador. Com tanto amor que
a perdiz chega a assustar-se. Assobia agora nervosa, qual virgem se abrindo ao
amado. Mulheres e perdizes em muito se parecem.

Entrou nos braços do mundéu. Só há uma saída, a trança, branca e redonda.


Próximo à forca, o assobiador sempre deixa alguns grãos de trigo ou milho, tanto
que ama a perdiz. Gorda é a laçada da trança. Magro é o pescoço da perdiz.
O assobiador abre os braços e grita, a perdiz voa e se enforca. Salvo engano,
escrevi uma crônica. Ou algo parecido.

- Enviado por Janer @ 3:36 PM

13 of 13 09/12/2020 15:15

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