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Janer Cristaldo http://cristaldo.blogspot.

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¡Ay de aquel que navega, el cielo


oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o
segunda-feira, abril 30, 2007
puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV
EUROPA RECHAÇA CRISTIANISMO E TABAGISMO
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janercr@terra.com.br

Tiragem
A partir das 5 horas de hoje, segunda-feira, está proibido fumar em lugares
Janer Cristaldo escreve no públicos - bares, restaurantes e locais de trabalho - na Irlanda do Norte. Na
Jornaleco Escócia, o fumo foi proibido nestes locais em março do ano passado e, no País de
Brazzil
Baguete Gales, um mês depois. No próximo mês de julho, será a vez da Inglaterra proibir o
Crônicas Anteriores
cigarro. O governo britânico proibirá o fumo também em todas as embarcações que
Livros do Janer naveguem por águas territoriais do Reino Unido. A Irlanda - leio nos jornais - foi o
Ebooks Brasil
primeiro país a vetar totalmente o tabaco em locais públicos, em março de 2004. O
Arquivos exemplo foi seguido pela Noruega, Espanha, Itália, Malta, Suécia, Escócia, Gales,
Outubro 2003
Dezembro 2003 Letônia e Lituânia. Mês passado, os 16 Estados da Federação Alemã aprovaram a
Janeiro 2004
Fevereiro 2004 proibição do fumo em restaurantes, com algumas exceções.
Março 2004
Abril 2004
Maio 2004
Junho 2004
Os dias não são propícios para fumantes na Europa. Em fevereiro último, eu estava
Julho 2004 em Paris quando o fumo foi vetado em lugares públicos. Foi concedido um prazo
Agosto 2004
Setembro 2004 adicional de onze meses para cafés, restaurantes (em ambientes separados),
Outubro 2004
Novembro 2004 cassinos e discotecas. Dia 1º de janeiro do ano que vem, fim da tolerância. Nalgum
Dezembro 2004
Janeiro 2005 jornal francês, li algo sobre um certo “cabinet suédois” que certos cafés estariam
Fevereiro 2005
Março 2005 pensando em instalar. A reportagem não explicava em que consistia, mas pelo que
Abril 2005
Maio 2005
entendi seria uma espécie de banheiro concebido exclusivamente para fumar.
Junho 2005 Porque nos banheiros propriamente ditos também não se poderá fumar. Curioso
Julho 2005
Agosto 2005 imaginar os clientes indo de vez em quando ao "cabinet", para exonerar-se de suas
Setembro 2005
Outubro 2005 vis necessidades.
Novembro 2005
Dezembro 2005
Janeiro 2006
Fevereiro 2006 Os fumantes estão sendo tratados como leprosos na Europa atual. Em aviões, não
Março 2006
Abril 2006
se fuma mais. Em trens, se antes havia um vagão para fumantes, agora não há
Maio 2006 mais. Nas gares e aeroportos, também é proibido fumar. Alguns aeroportos
Junho 2006
Julho 2006 reservam um pequeno espaço para os leprosos, que ficam como que engaiolados
Agosto 2006

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Setembro 2006
Outubro 2006
para a contemplação piedosa dos demais usuários. Eu, que defendo o sagrado
Novembro 2006 direito de todo cidadão adulto chupar câncer, acho que a Europa exagera. Não vejo
Dezembro 2006
Janeiro 2007 maiores inconvenientes de fumar em grandes espaços como aeroportos e gares.
Fevereiro 2007
Março 2007 Mas os governos europeus deixam claro a seus súditos e demais visitantes que o
Abril 2007
Maio 2007 continente já não tolera o tabagismo. O fato é que estas determinações complicam
Junho 2007
Julho 2007 a vida até mesmo do não-fumante. Se você não fuma e seu companheiro ou
Agosto 2007
Setembro 2007
companheira de viagem é fumante compulsivo, prepare-se para não poucas
Outubro 2007 incomodações.
Novembro 2007
Dezembro 2007
Janeiro 2008
Fevereiro 2008 No fundo, têm razão. O cigarro está matando demais. Ainda em Paris, testemunhei
Março 2008
Abril 2008 um episódio que dá plenas razões aos adversários do fumo. Um senhor de uns 60
Maio 2008
Junho 2008 anos, que só conseguia respirar plugado a um tubo de oxigênio, carregado nesses
Julho 2008
Agosto 2008
porta-malas de rodinhas, entrou num tabac. São os quiosques onde se vende
Setembro 2008 cigarro na França. Sei lá porque razões, seu símbolo é um acrílico em forma de
Outubro 2008
Novembro 2008 carotte (cenoura). Se você quiser cigarro, busque a carotte nas ruas. Pois aquele
Dezembro 2008
Janeiro 2009 velhote trôpego, que só conseguia respirar com um tubo de oxigênio, entrou no
Fevereiro 2009
Março 2009 tabac e pediu dois Gauloises, o mata-ratos francês. Enfim, talvez tivesse também
Abril 2009
Maio 2009 sua razão. Se estava para morrer, por que privar-se de seus prazeres?
Junho 2009
Julho 2009
Agosto 2009 O tabagismo, para quem não sabe, é o principal legado dos indígenas da América
Setembro 2009
Outubro 2009 Latina ao mundo. Claro que nenhum rousseauniano defensor do bon sauvage gosta
Novembro 2009
Dezembro 2009 de ouvir isto. Jean Nicotin - daí nicotina - era embaixador francês em Portugal em
Janeiro 2010
Fevereiro 2010 meados do século XVI e levou uma folha da planta que receberia seu nome para a
Março 2010
Abril 2010 rainha Catarina de Médicis. O tabagismo, no fundo, é uma vingança póstuma do
Maio 2010
Junho 2010
índio colonizado. Ao mesmo tempo em que a Europa tenta exorcizá-lo, uma outra
Julho 2010 droga está perdendo seu poder no velho continente, o cristianismo.
Agosto 2010
Setembro 2010
Outubro 2010
Novembro 2010 Nestes mesmos dias, os jornais trazem também outra notícia alvissareira da
Dezembro 2010
Janeiro 2011 Europa. Em crise, as paróquias estão vendendo igrejas. A perda de clientela está
Fevereiro 2011
Março 2011 levando padres e pastores europeus a comercializar prédios para fins residenciais.
Abril 2011
Maio 2011
"Cada vez mais, o fenômeno da venda de igrejas vem ganhando força em vários
Junho 2011 países europeus diante da redução drástica de fiéis nos últimos dez anos nos
Julho 2011
Agosto 2011 templos". Se por um lado o maior número de vendas ocorre na Inglaterra, Escócia,
Setembro 2011
Outubro 2011 Suíça e países escandinavos - redutos fundamentalmente protestantes ou luteranos
Novembro 2011
Dezembro 2011 - o fenômeno também se manifesta nas católicas Itália e Espanha.
Janeiro 2012
Fevereiro 2012
Março 2012
Abril 2012
Segundo o jornal The Times, mais de mil igrejas poderiam fechar ou ser vendidas
Maio 2012 nos próximos dez anos na Inglaterra. Sir Roy Strong, líder religioso de destaque,
Junho 2012
Julho 2012 chegou a propor que pequenas igrejas dividam seus espaços com centros
Agosto 2012
Setembro 2012 comunitários e mercados para agricultores. Em Kent, uma das igrejas da região já
Outubro 2012
Novembro 2012 se transformou em um local de vendas de produtos naturais. Em Yorkshire Dale, a
Dezembro 2012
Janeiro 2013 transformação de uma igreja em templo muçulmano gerou protestos, mas acabou
Fevereiro 2013
Março 2013
sendo aprovada. Territórios sagrados estão passando a ser anunciados nos
Abril 2013

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Maio 2013
Junho 2013
classificados de imóveis. Por outro lado, candidato é o que não falta para
Julho 2013 transformar um antigo templo em sua moradia. Há quem ache agradável morar em
Agosto 2013
Setembro 2013 um local onde tantas pessoas viveram grandes momentos, como casamentos ou
Outubro 2013
Novembro 2013 batizados.
Dezembro 2013
Janeiro 2014
Fevereiro 2014
Março 2014 Os fatos confirmam uma minha antiga tese, a de que a Europa está se libertando
Abril 2014
Maio 2014
aos poucos de dois grandes males da humanidade, o cristianismo e o tabagismo. Ao
Junho 2014 que tudo indica, estas tendências estão contaminando o Brasil. Já não são poucas
Julho 2014
Agosto 2014 as restrições ao cigarro nas capitais do país. Quanto à religião, quem o afirma é
Setembro 2014
Novembro 2014 uma fonte insuspeita, Don Odilo Scherer, novo arcebispo metropolitano de São
Paulo. Nestes dias em que o maior traficante internacional de drogas está por
chegar com toda pompa a São Paulo, o príncipe da Igreja, preocupado com o que
chama de "fuga silenciosa de católicos", disse a respeito da atual migração
Subscribe in a reader
religiosa: "É um fenômeno que atinge não somente a igreja católica. A migração
religiosa afeta a todos. Estamos nos debruçando sobre a compreensão desse
fenômeno, que nos incomoda". Continuou ainda o purpurado: "A oferta é muita.
Vivemos no Brasil o efeito da modernidade. As pessoas se assumem como
autônomas e livres do ponto de vista religioso".

E depois ainda há quem diga que os jornais só trazem notícias ruins.

- Enviado por Janer @ 9:41 PM

domingo, abril 29, 2007

HOY ES FIESTA!

Já que falei em Espanha... Quem me acompanha, sabe de minha paixão pelo país e
particularmente por Madri. Camilo José Cela dizia ser a Espanha o país mais lindo
do mundo. Assino embaixo e acrescento: e Madri é a cidade mais linda da Espanha.

Não falo do aspecto físico, arquitetônico, da cidade. Neste sentido, se ficarmos só


nas capitais, eu diria que Paris e Roma batem Madri de longe. Até mesmo a
modernosa Estocolmo, espalhada pelo continente e por mais quatorze ilhas, a meu
ver tem mais charme que Madri. Já nem falo de Amsterdã, milagre do engenho
humano. Nem mesmo de Praga, vista por alguns como a Paris do Leste. Nem de
Viena, imperial e solene. Em minhas primeiras viagens, eu imaginava que os mais
belos cafés do mundo eram os de Paris e Madri. Ledo engano de viajante imaturo.

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São os de Viena. Se você quiser fazer uma viagem de sonho, vá até lá e passe duas
ou três semanas apenas visitando os cafés. Vale a viagem.

Mas falava de Madri. Se você conhecê-la por fora, a cidade não impressiona muito.
Pelo menos para quem já conhece as demais capitais européias. É preciso conhecê-
la por dentro. Seu encanto reside nos madrilenhos e na vida callejera. Se você sair
para a rua às nove da noite, pode até pensar que a vida noturna já morreu. Nada
disso. É que eles ainda não saíram de casa. Nem pense em almoçar ao meio-dia, os
restaurantes estão desertos. Eles começam a pensar no assunto a las dos del medio
día. Neste intervalo, o comércio fecha as portas. Para abrir lá pelas quatro e meia
ou cinco, que ninguém é de ferro. Afinal, temos ainda a siesta, ritual único na
Europa, recuperação para enfrentar a noite. Há horas a Comunidade Européia tenta
regularizar o horário de comércio e bancos na Espanha e abolir a siesta. Mas Madri
resiste: No pasarán!

Já vivi madrugadas esplêndidas em Madri, a temperatura a menos de zero grau e


os madrilenhos fervilhando pelo casco viejo da cidade. Nada de automóveis.
Homens e mulheres, velhos e crianças, todos a pé. O que costumo chamar de
geografia etílica é um quadrilátero relativamente pequeno, que se estende da Plaza
Mayor até Paseo de Recoletos - passando por Plaza del Angel e Lavapiés - voltando
por Fuencarral e fechando na Plaza de Oriente, frente ao Palácio Real. Dentro deste
quadrilátero você tem o melhor de Madri. Fora dele até pode ter coisas
interessantes. Mas não interessam muito.

A estratégia é ir de tasca em tasca, umas tapas aqui, outras lá adiante, até


finalmente sentar para jantar. A pequena distância entre um e outro bar estimula os
vecinos - os habitantes da cidade - a caminhar. Há uma certa histeria nas noites
madrilenhas. Uma das coisas que mais me fascina é ver a velharada em massa nas
ruas e bares. A impressão que me fica é que ninguém senta diante de uma
televisão naquelas bandas. Nota-se também um certo narcisismo na hora da bona-
xira. Os espanhóis parecem ter elegido a cidade como uma espécie de espaço
teatral e gostam de mostrar à platéia como comem bem.

Um amigo me contou um daqueles episódios que marcam a vida de um viajante.


Estava em um cabaré de luxo e uma senhora já idosa e finésima o abordou e
entregou-lhe um cartão:

- En su casa, Usted tiene la mujer de su vida. En nuestra casa, tenemos la mujer de


sus sueños.

Elegância que não vamos encontrar em qualquer cidade do mundo. Quando se vive
algum tempo numa cidade, sempre fica um episódio que nos marca fundo. Minha
marca foi outra. Já vivia em Madri há uns bons seis meses, quando um amigo de

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Paris veio visitar-me. Pensei brindá-lo com algo típico. Em Maravillas, meu bairro,
havia um pequeno restaurante muito ligado às lides taurinas, que servia um
excelente rabo de toro. Lá por las nueve de la tarde, como dizem os madrilenhos,
rumamos à tasca. Mal entramos, um venenciador nos recebeu com dois finos em
punho.

Venenciador é um profissional que se especializa em servir jerez. Veste-se com uma


espécie de traje de luces, aquelas vestes de toureiro. O fino é um copinho fino - daí
o nome - onde se serve o jerez. Com uma haste de mais ou menos um metro, com
outro copinho fino na ponta, ele apanha o jerez em uma barrica, e o despeja de
uma altura de mais de metro no fino propriamente dito. Sem derrubar uma gota. É
uma arte fascinante, mais ou menos perdida na Espanha atual.

O bar estava tomado por bailaoras y cantaores, que cantavam sevillanas. Fomos
recebidos por uma saraivada de palmas y taconeos. Mal nosso jerez evaporava, o
venenciador mergulhava o copinho no tonel e repunha a dose. Tudo isso, tendo
como pano de fundo o alarido infernal das sevillanas.

Mas meu propósito era comer. Chamei o garçom. Temos rabo de toro?

- Hoy no se come. Hoy es fiesta.

Muy bien. Vamos então continuar a fiesta. Entre um fino e outro, hipnotizados,
contemplávamos os meneios das bailaoras e os piropos dos cantaores. Acontecera
que um toureiro amigo da casa havia matado cinco ou seis touros naquela tarde. A
festa era em sua homenagem. Lá pela meia-noite, preocupado com o estômago,
pedi a conta.

- Hoy no se paga. Hoy es fiesta.

Como não morrer de amores por uma cidade que acolhe o estrangeiro em suas
festas íntimas, o recebe com a finesse de um venenciador, oferece-lhe seus
melhores vinhos e suas mais lindas canções e mulheres, sem cobrar nada por isso?

Hoy es fiesta. Quando evoco Madri, esta é a primeira imagem que me vem à
mente. Em verdade, lá é festa todo dia.

- Enviado por Janer @ 10:21 PM

sábado, abril 28, 2007

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TRISTES NOTÍCIAS DA ESPANHA

Nestes dias cheios de ameaça, em que o Islã ameaça a Europa, Bush ameaça
bombardear o Irã e Putin ameaça ressuscitar a Guerra Fria, um leitor me envia uma
notícia deveras preocupante. Parece que as caixas de vinho estão ameaçando a
Espanha. Escreve Rodrigo Jovani:

Acabei de ler o texto sobre vinho em tetrapak e devo dizer que concordo com tudo
o que foi exposto. O ritual é parte fundamental dos bons momentos da vida. Sem
ele, caímos na banalização do fast-food, da culinária de Shoping Center e seus
talheres de plástico. Entretanto, devo comentar que isso não é moda só aqui em
Pindorama. No tempo em que vivi em Madri (ah... que saudades), o tradicional
"vino de la casa", servido em taças nos restaurantes e bares, já era do tipo
encaixotado. Acredito que o mesmo ocorra na França. Tive um choque ao descobrir.
Senti que estava sendo enganado, mas é uma daquelas tendências aparentemente
inevitáveis da modernidade, assim como a tal rolha de plástico... A partir de então
passei a pedir sempre vinho em garrafa. É bem verdade que algumas vezes tenho
que beber uma garrafa inteira sozinho, mas é um sacrifício que estou disposto a
fazer pela causa!

Bem, Rodrigo, deves ter morado mais recentemente em Madri. Morei lá em 87 e


nunca vi essas barbaridades. Se visse, abandonaria na hora o restaurante. Diga-se
de passagem, de lá para cá tenho visitado Madri quase todos os anos, e também
não vi as famigeradas caixas. Verdade que sempre procuro restaurantes com mais
de um século de existência, e estes resistem à vulgaridade contemporânea. (Se a
cidade me oferece dezenas de restaurantes seculares, não vejo porque freqüentar
ambientes com apenas meio século). Em casas como El Sobrino de Botín (de
1725), Gijón, El Espejo, ou naquele magnífico restaurante numa cave do Oriente,
não vais encontrar tais heresias.

Quanto às garrafas inteiras, de fato são um problema em Madri. Em meus dias de


estudante, morei em Maravillas, bairro nada turístico, cheio de restaurantes
singelos, ótimos e a bom preço. Lembro que costumava almoçar por algo entre
quatro e seis dólares. A fórmula era interessante: duas ou três opções de entrada e
outras tantas de prato principal e sobremesa. Mais media botella de vino, e sempre
vinho dos mais palatáveis. Ocorre que o garçom sempre me trazia uma garrafa
inteira. Nas primeiras vezes, reclamei:

- Pero no es media botella?


- Beba lo que quiera, caballero.

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Que fazer senão aceitar a simpática oferta do garçom? Suponho que em nenhum
outro país do mundo um restaurador oferecerá uma garrafa de vinho pelo preço de
meia. Desisti de reclamar. Em São Paulo, improvisei uma fórmula interessante.
Como sempre almoço fora, tomo meia garrafa e deixo metade para outro dia. Em
pelo menos três restaurantes, sempre tem alguma media botellita me esperando.
Sem falar que isso me dá a sensação de que o segundo almoço sai sempre mais
barato.

Triste receber tal notícia da Espanha. Grosserias destes dias de fastfood. A verdade
é que os otários são legião. Certa vez, uma colega de magistério ia para Madri.
Passei a ela uma lista dos melhores restaurantes da cidade. Na volta, cobrei: como
é que é? Gostou? Me respondeu que não fora a nenhum deles, só freqüentara
McDonalds.

Cortei relações com a moça. Por mais tolerante que seja, não posso admitir em
meu pequeno círculo uma pessoa que tem oportunidade de degustar a soberba
culinária espanhola e opta por sanduíches gordurosos. A tais inimigos da bona-xira
deveria ser proibido conceder passaporte.

- Enviado por Janer @ 10:05 PM

NO REINO DOS BRUTAMONTES

No Irã, a polícia de costumes andou recentemente proibindo as mulheres de usar


roupas coloridas ou deixar os cabelos expostos sob o chador. A cada verão, a polícia
se incumbe de uma missão vital para a preservação dos bons costumes e do Estado
teocrático persa: além de coibir cabelos à mostra e roupas coloridas, proíbe
também casacos justos que mostrem as formas do corpo e calças que deixem os
tornozelos à mostra. É lá deste Irã estúpido que nos chega a última aiatolice dos
aiatolás. Em virtude de lei que entrou em vigor na semana passada, mesmo os
manequins de lojas terão os seios cortados. Decididamente, os discípulos de Maomé
não gostam de curvas. O que vale dizer: não gostam de mulheres. Pois se algo há
essencialmente feminino são as curvas.

Me ocorre citar esta ode às mulheres, de um obscuro e genial cronista gaúcho,


morto nos anos 70, Ney Messias. Que não achava graça alguma no corpo anguloso

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dos machos. Falando sobre a hipótese de um regime de matriarcado nos primórdios


da história, escrevia o Ney:

Só a mulher era a fecundidade, aquela fecundidade que a terra, eterna virgem e


eterna parturiente, prodigalizava em frutos e flores. Além disso, o homem
anguloso, desarmônico e brutal, destoava do universo que é todo curva: lua
redonda, sol redondo, marcha curva dos planetas, pedra jogada na horizontal mas
sujeita à parábola da queda que é sempre uma expressão curva, curvos os frutos,
harmônicas curvas as pétalas. O universo é essencialmente curvo, não só na sua
curvatura visível como na invisível e doce curva do espaço descoberta por Einstein.
Só mesmo um ente que é um cacho de curvas, como a mulher, poderia comandar
as primeiras sociedades humanas. Depois veio o patriarcado, etapa da economia
mais complexa da caça e da vegetação dominada, que se chamaria agricultura: só
um brutamontes poderia dominar o mundo, e dominou mesmo. Mas dominou
nominalmente, porque a mulher continuou sendo o centro de tudo: objeto de
disputa, conteúdo da arte, fonte, como os astros, de contemplação. A mulher nua
ou vestida era o grande templo em que oravam os olhos de quem contemplava. Os
homens saíam rua em fora para olhar as mulheres, e as mulheres para serem
olhadas, nunca para olhar.

Se os brutamontes um dia dominaram o mundo, no Ocidente pelo menos foram


forçados a dar espaço às mulheres e suas curvas. Ocidentais, vivemos em meio a
um universo curvilíneo e ninguém, em são juízo, vai afirmar que as curvas
atrapalham a vida social, o comércio, a educação ou a paz. Mas o patriarcado árabe
permaneceu enclausurado na época dos brutamontes. Em todo o universo islâmico,
a mulher é forçada a esconder suas formas. No Irã, desde 1979, quando Khomeiny
entrou em Teerã a ferro e fogo, com seus pasdarans metralhando bares e boates,
as leis do país exigem que as mulheres cubram os cabelos com véus e usem roupas
que escondam os contornos do corpo. O chador, que muito ocidentais confundem
com outros véus islâmicos, cobre todo o corpo, deixando apenas o rosto à vista.
Mas não os cabelos.

Sobre estes, escrevia o genial Ney Messias:

Entre os povos orientais o cabelo é sacrificado em mechas aos rios sagrados, assim
como os primeiros cabelos dos recém-nascidos são ofertados aos deuses. É porque,
de certo, dos ônus corporais, dessa imensa carga de miséria que é o corpo
humano, o cabelo aparece quase como espírito, porque é multiforme como a chama
ao vento, como a água revolta das ondas, como o ar que se respira.

A polícia de costumes dos aiatolás, além de ser avessa às curvas, tampouco tem
apreço por esta chama quase espírito. Desde há muito defendo a tese de que o
mundo islâmico é profundamente homossexual. Nada contra o homossexualismo.

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Mas este homossexualismo islâmico é doentio. É preciso ser muito doente para
proibir as mulheres de exibirem seus encantos aos demais homens e mulheres.
Segundo os jornais, mulheres estão sendo abordadas nas ruas pela polícia e, caso
não aceitem mudar seu modo de vestir, são levadas à delegacia, sendo liberadas
apenas após parentes ou amigos terem fornecido roupas consideradas
"respeitáveis" para vestirem.

Seria interessante resgatar alguns desses manequins de seios cortados, para


exibição em algum museu que se propusesse denunciar os horrores do século XXI.
Que os muçulmanos são useiros e vezeiros em cortar clitóris, disto há muito
sabemos. Mas cortar seios de manequins exige uma brutalidade muito maior. Não
se corta a coisa, mas o símbolo dela.

Audace, messieurs les perses, toujours de l’audace. Que tal ir logo ao âmago da
questão e cortar os seios das iranianas? Assim, as roupas justas perderiam pelo
menos parte de seu caráter pecaminoso. A mulher sempre foi mesmo um ser
obsceno. Suas curvas atrapalham o bom funcionamento do Estado. Melhor falquejar
seus corpos, para que não perturbem a mente sadia dos bravos machos iranianos.

- Enviado por Janer @ 12:22 AM

sexta-feira, abril 27, 2007

CONGRESSO INSTAURA NOVO TRIBUNAL

O Congresso Nacional, talvez sensível à atual desmoralização do Poder Judiciário,


parece ter criado uma nova instância jurídica, as urnas. Leio nos jornais que o
Conselho de Ética da Câmara livrou ontem três deputados acusados de
envolvimento nos escândalos do mensalão e dos sanguessugas na legislatura
passada da abertura de processos de cassação de mandato por falta de decoro
parlamentar. Nove conselheiros, todos governistas, aprovaram o relatório de
Dagoberto Nogueira (PDT-MS), com adendo do petista José Eduardo Martins
Cardozo (SP). Apenas quatro deputados votaram contra. Para os governistas, a
abertura de investigação agora seria uma afronta à vontade dos eleitores que
votaram nos três parlamentares e os reconduziram à Câmara, apesar das
denúncias.

Você tem uma irrefreável vocação para a corrupção e roubo dos cofres públicos? Se

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Janer Cristaldo http://cristaldo.blogspot.com/2007/04/

não quiser ser punido, eleja-se imediatamente deputado. O generoso tribunal das
urnas o absolverá de qualquer crime.

- Enviado por Janer @ 12:41 PM

MAIS RESPEITO COM O SANGUE DE CRISTO

O cristianismo tem seus bons legados e um deles é o vinho. Onipresente na Bíblia,


em uma leitura rápida encontrei 195 referências a este fruto do sol e da terra. Em
muitos casos, é descrito como causador de sofrimento e proibido por Jeová. Mas os
homens são incorrigíveis. No Eclesiastes, lemos: "Vai, pois, come com alegria o teu
pão e bebe o teu vinho com coração contente; pois há muito que Deus se agrada
das tuas obras". No Cântico dos Cânticos, Sulamita pede a Salomão: "Beije-me ele
com os beijos da sua boca; porque melhor é o seu amor do que o vinho". Amor
pode ser melhor. Mas o elemento comparativo é o vinho.

Já no Gênesis, o vinho é pretexto para Ló, sobrinho de Abraão e único homem justo
de Sodoma, dormir com Moabe e Ben-Ami, de quem viriam os moabitas e os
amonitas. Como o bom Jeová nada objetou a este conúbio, podemos inferir que não
comete pecado todo pai que, embebido de vinho, leva suas filhas para a cama. Mas
é no Novo Testamento que o vinho se torna um elemento fundamental do
cristianismo, quando Cristo institui a Eucaristia. O vinho, uma vez consagrado pelo
sacerdote, torna-se literalmente seu sangue.

Não há cristianismo sem vinho. Já os brutos que cultuam o Corão o proíbem. Nada
de espantar. Os desertos árabes não são propícios a vinhedos e o vinho jamais
poderia ter um papel econômico nas regiões onde o islamismo nasceu. Se não dá
lucro, pode ser perfeitamente dispensado.

Cultor deste bom legado cristão, não consigo curtir o vinho sem um certo ritual.
Claro que o que mais importa é o sabor. Mas as virtudes organolépticas são apenas
seu pressuposto básico. Outros elementos hão de envolvê-lo, ou então beber vinho
não tem graça. Para começar, a cor. As garrafas devem mostrá-la e os copos, em
princípio, terão de ser claros e transparentes. Nos tempos bíblicos os vinhos eram
armazenados em odres. Jeroboão, o primeiro rei de Israel, afogou-se em um deles,
bebendo hidromel. Mas o mundo mudou de lá para cá e as garrafas não oferecem
tais riscos. Naqueles tempos - como costumam dizer os autores dos Evangelhos -

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Janer Cristaldo http://cristaldo.blogspot.com/2007/04/

não havia vidro.

Mudou para pior ou para melhor? Se em épocas passadas havia um culto ao


requinte, as presentes estão se revelando vulgares. No que tange ao vinho, levei
um choque ao ver as tais de garrafas azuis, que algum produtor vagabundo tentou
introduzir no mercado. Creio que as vi, pela primeira vez, em um supermercado em
Paris. Mais tarde chegaram ao Brasil. Você não tem uma idéia precisa do que seja
um bruto? Observe o fácies lombrosiano de quem compra vinho em garrafas azuis.

Mais recentemente, alguns vinhos trocaram as rolhas de cortiça por rolhas de


plástico e silicone. Ora, a cortiça tem suas razões de ser. Teria sido introduzida por
um emérito conhecedor de vinhos, o monge beneditino Dom Pierre Pérignon -
segundo a lenda, o descobridor do champagne - e aqui vai mais uma contribuição
do cristianismo à arte do bem beber. A humanidade fez várias experiências para
fechar garrafas, desde tampas de cristal até tampas de madeira. Nenhuma se
revelou tão eficaz quanto a cortiça. Cheirando a rolha de cortiça, você não vai
definir uma cepa, mas pelo menos pode saber se o vinho está deteriorado ou não.
Assim, quando um garçom me oferece uma rolha de plástico, fico completamente
sem graça e com vontade de trocar de restaurante.

Vinho exige ritual, dizia. Você não vai tomar um bom vinho em um boteco de
mesas de plástico e televisão ao fundo. O bom vinho, diria, exige boa companhia,
talvez uma boa música ao fundo. De preferência, em surdina. Taças adequadas e
toalhas lindas. É pecado que clama aos céus beber vinho ouvindo futebol. Por favor,
mais respeito ao sangue de Cristo. É claro que um restaurante com um décor
solene e ambiente silencioso confere a qualquer vinho um alto valor agregado.

Não imagine o leitor que tenho dons de sommelier. Nada disso. Minha memória
olfativa e palatal é curta. Posso tomar hoje um excelente vinho, daqui a dois ou três
meses não saberia reconhecê-lo. Aliás, assim como não creio em Deus, tampouco
creio em sommeliers. Não há memória humana que guarde os milhares de
bouquets que eles pretendem guardar. Sommelier é um pouco como astrólogo, um
vigarista.

Não tenho maior apreço por vinhos brasileiros. Talvez um pouco em função desta
psicologia patrioteira de certos compatriotas, que acham que todo brasileiro deve
consumir produtos nacionais. Em verdade, nem tenho autoridade para falar dos
nacionais, pois há mais de trinta anos não os degusto. Não se mexe em time que
está ganhando. Aqui no continente, sou muito gratificado pelos vinhos da
Cordilheira, particularmente os Malbec e Carmenère, e não vejo porque fazer
aventuras.

Especialmente quando leio que as adegas brasileiras estão lançando vinhos de uvas

11 of 46 09/12/2020 15:35
Janer Cristaldo http://cristaldo.blogspot.com/2007/04/

finas em bag-in-box. Que a meu ver devem ser as tetrapak suecas, um grande
achado quando se trata de leite ou sucos. Em suma, caixas de papelão. Pior ainda,
com torneirinhas. Pobres uvas finas. A gaúcha Valduga teria sido pioneira nesta
embalagem rastaqüera. Agora, a Miolo a acompanha nesta barbárie. Se desde que
me conheci por gente não vi motivos para tomar vinhos tupiniquins, agora mesmo
é que deles só quero distância.

Vinhos de uvas finas em caixas de papelão com torneirinhas! Só o que faltava. Se


algum dia, em algum restaurante, um garçom me oferecer esse insulto, levanto
incontinenti da mesa e ainda entro com ação contra a casa, pedindo indenização
por danos morais.

- Enviado por Janer @ 12:26 AM

quinta-feira, abril 26, 2007

MENTIRA COMPLETA 70 ANOS

Leio na Folha on line:

A população de Guernica, na Espanha, relembrou nesta quinta-feira, 26, o 70º


aniversário dos bombardeios que destruíram a cidade durante a Guerra Civil
espanhola (1936-39) com a nomeação de capital mundial da paz. O massacre,
ocorrido em 1937, foi a inspiração de uma das obras primas do pintor Pablo
Picasso, batizada com o nome da cidade.

Que a cidade de Guernica relembre os setenta anos do bombardeio, entende-se. O


que não se entende é que o redator acrescente a informação de que o bombardeio
inspirou "uma das obras primas do pintor Pablo Picasso". Esta mentira, criada por
Picasso, se repete há décadas. Como a mentira se repete, vou também repetir-me.

Ora, os fatos são bem outros. Picasso havia pintado uma tela de oito metros de
largura por três e meio de altura, intitulada La Muerte del Torero Joselito, plena
de cores fúnebres, que iam do preto ao branco, em homenagem a um amigo seu, o
toureiro Joselito, morto em uma lídia. O quadro ficara esquecido em algum canto de
seu ateliê. Ao receber uma encomenda para o pavilhão republicano da Exposição
Universal de Paris de 1937, Picasso lembrou do quadro. Foi quando, para fortuna do
malaguenho, a cidade de Guernica foi bombardeada pela aviação alemã. Ali estava

12 of 46 09/12/2020 15:35
Janer Cristaldo http://cristaldo.blogspot.com/2007/04/

o título e a glória, urbi et orbi.

Uns retoques daqui e dali, e Picasso deu nova função ao quadro. No entanto, até
hoje multidões hipnotizadas pela propaganda vêem em uma cena de arena, com
cavalo, touro e picador, uma homenagem aos mortos de Guernica. Busque o quadro
na rede e examine-o. Você não vai encontrar um único elemento que lembre um
bombardeio.

Esta lenda até hoje é repetida, tanto por professores e jornalistas como por
escritores de renome. De um só golpe de pincel, o pintor malaguenho traiu a
memória do amigo e mentiu para a História.

- Enviado por Janer @ 5:19 PM

CERTEZAS FANÁTICAS

Em seu blog, escreve Júlio Lemos:

Percebi uma tonalidade recorrente nos artigos do Sr. Janer Cristaldo que me faz
lembrar a de um velho aposentado que perdeu a virilidade e agora fica a atacar a
Igreja, os padres, os protestantes, o cacete a quatro, pois não consegue encontrar
mais consolo na sua subjetividade diminuída. Não falo da pessoa do eminente
articulista, mas daquilo que os seus escritos evocam – a título de "salvaguarda
moral do autor", que não merece ser ridicularizado e muito menos difamado.

Sem falar "da pessoa do eminente articulista"... mas falando, é claro. Meus artigos
lembram então um velho aposentado que perdeu a virilidade e por isso fala mal da
Igreja e dos padres. É isso? Um outro cronista, astrólogo e sedizente filósofo, me
chamou de farrapo humano "que se aproveitava de seu estado de viuvez" para falar
mal da Igreja. Para um, se falo mal da Igreja é porque sou viúvo. Para outro, é
porque sou velho e impotente. Ou seja, no fundo não se admite que um adulto,
gozando de juventude e em pleno domínio de suas faculdades mentais, possa
criticar a Santa Madre Igreja Católica.

Esta certeza fanática em nada difere daquela certeza dos velhos comunistas, que
olhavam com desdém e piedade para quem não partilhasse de suas crenças, como
se não ser comunista fosse um atestado de debilidade mental. Pois saibam estes

13 of 46 09/12/2020 15:35
Janer Cristaldo http://cristaldo.blogspot.com/2007/04/

senhores que minhas críticas à Igreja datam de quando sequer era núbil. Meu
primeiro artigo publicado, saiu no Ponche Verde, pequeno jornal de Dom Pedrito,
e intitulava-se "Esses padres..." Assim mesmo, com reticências. Pelo título já se
pode ver que não era nenhum louvor às virtudes da Santa Madre. Eu tinha então 14
ou 15 anos. Ou seja, mal pus um pé na imprensa, já malhava os católicos.

Na época, fui chamado de arrogante. Um padre da diocese de Bagé foi chamado


para acalmar-me. Discutimos um dia inteiro, esvaziando várias jarras de água. O
franzino Torquemada apelou para o argumento da autoridade: quem você pensa
que é para negar o que ilustres sábios da Igreja já decidiram? Eu era o Janer, ué!
Um jovem de quinze anos, mas que já havia lido Voltaire e Descartes. Eu não me
apoiava em nenhum Tomás de Aquino ou Santo Agostinho para entender o mundo.
Apoiava-me em minha razão. Devo confessar que hoje, aos sessenta, tenho um
profundo respeito por aquele menino imberbe, que enfrentou com hybris uma velha
raposa da Igreja.

Publiquei mais de três mil artigos em jornais e revistas ao longo de minha vida e
certamente uma boa centena deles - senão mais - são de críticas ao catolicismo.
Escrevi outros tantos criticando os marxistas e petistas em geral. Considero o
catolicismo uma doutrina muito mais perversa que o marxismo. O marxismo mal
conseguiu emplacar sete décadas no poder. O catolicismo existe há dois milênios. O
marxismo não dispensa o aparato de Estado para oprimir os cidadãos. A Igreja
instala uma maquininha de tortura na consciência de cada crente, e a este delega o
poder de acioná-la. Ou seja, meu caro, não é a idade - e muito menos a viuvez -
que me impele a escrever o que penso dos católicos.

Segundo Lemos, o sexo, para mim,

parece ser simplesmente uma coisa, um fato fisiológico cuja repressão é um tabu e
ponto final - salvo a sua intenção recorrendo às exceções: as perversidades
socialmente incorretas, como a pedofilia, a necrofilia, etc. Se para ele não há
critério racional para o agir sexual, restam apenas a fisiologia, na vida privada, e as
convenções que estiverem de pé na data em que o artigo for escrito.

Mas que sabe este senhor sobre minha visão de sexo? Baseado em quê insinua que
defendo a pedofilia e necrofilia? Jamais reduzi sexo à fisiologia. Aliás, considero que
sexo é, antes de tudo, mental. Tentei ser casto nos dias em que estava preso ao
leito de Procusto católico. Não deu. A carne falou mais alto. Por outro lado, porque
ser casto? Só porque Roma queria? Mas que tenho a ver com Roma? Tão logo me
libertei da ética vaticana - e isso aconteceu lá pelos 16 ou 17 anos - quis recuperar
o tempo perdido. Me entreguei com gosto e com gula aos ditos prazeres da carne.
Que, em verdade, são prazeres do espírito. Enchi meus dias de mulheres. Como o
Jeová do Gênesis, olhei para minha obra e vi que era boa. Se há algo que hoje

14 of 46 09/12/2020 15:35
Janer Cristaldo http://cristaldo.blogspot.com/2007/04/

embala meus dias, além das viagens que fiz e dos livros que li, são as amigas que
tive e que ainda tenho.

O articulista me acusa de nada entender em sexo. E brande os bizantinos conceitos


de ágape e eros:

O que o típico velhão não consegue pegar no ar, possivelmente por falta de
formação e critério, é que os impulsos sexuais não são os únicos componentes da
sexualidade. Há o eros propriamente dito, e há o ágape, formas de sexualidade
superiores que as civilizações mais avançadas não só conheciam como encorajavam
vivamente: os gregos, os romanos, os hindus, as gentes da velha cristandade (veja
os vitrais, as ordens de cavalaria, o amor cortês, etc). É uma pena que a civilização
moderna tenha - após sucessivas baixas na guerra entre a cultura do homem
equilibrado e a do arrasta-pé ostrogodo - descartado primeiro o ágape, com o
romantismo, e depois o eros, com o ethos pós-moderno do "pansexualismo", uma
espécie de ditadura da physis que obnubila as sensibilidades.

O que Lemos não diz - talvez por pudor - é que os conceitos de eros e ágape são a
mais recente trouvaille de Ratzinger para justificar sua misoginia e a misoginia de
seus ministros. Estão em sua primeira encíclica, Deus é amor. Como se o Deus
genocida e cruel da Bíblia pudesse ser identificado com amor. Mas isto já é outro
assunto.

Entende de mulher quem as conhece. Entende de sexualidade quem a vive. Que


pode entender de sexo Ratzinger, que em função de seu sacerdócio está submetido
a um voto de castidade? Que autoridade tem para falar em sexo quem optou, por
vocação, por ser eunuco? Sexo sempre me aguçou a sensibilidade. Entendo que
obnubile a dos católicos. São crentes de uma crença que cultua a dor e o
sofrimento, tanto que o símbolo maior do cristianismo é um instrumento de tortura.
Quanto a mim, prefiro o prazer. Melhor cultuar Príapo que o velho Deus castrado do
Antigo Testamento.

Católico não sendo, não tenho razão alguma para aceitar conceitos do magistério
da Igreja. É como se a encíclica de Ratzinger contivesse verdades universais, às
quais todos os homens devem submeter-se. Nisto reside o espírito totalitarista de
católicos e marxistas: "eu tenho a verdade e tu tens de aceitá-la". Em todo caso, se
por hipótese visse alguma pertinência nas bizantinas distinções de Ratzinger, eu
diria que vivi eros e ágape com plenitude. Y algunas cositas más.

"O que esses tipos não percebem - continua o cronista papista - é que há todo um
universo a ser explorado na cultura ocidental no campo da sexualidade; vias
perdidas e novas frentes".

15 of 46 09/12/2020 15:35
Janer Cristaldo http://cristaldo.blogspot.com/2007/04/

Não, não perdi nenhuma via nem nenhuma nova frente. Algo contra? Ou
pretenderá o articulista ditar meu comportamento na cama?

- Enviado por Janer @ 12:08 AM

quarta-feira, abril 25, 2007

MADALENA DE HARVARD SE RETRATARÁ

Leio nos jornais de hoje que o catedrático carreirista Roberto Mangabeira Unger
prepara um discurso de desculpas a Lula. Que será pronunciado na próxima quarta-
feira, dia de sua posse como ministro da Secretaria de Ações a Longo Prazo. Será
muito divertido. A Madalena de Harvard vai negar precisamente um de seus raros
momentos de lucidez. O poder assim exige.

Desconfio profundamente de articulistas que surgiram nos últimos anos,


preocupados em desancar histericamente o governo Lula. Críticas ao governo e ao
presidente, sim. Mas toda histeria é suspeita. Em verdade, estão expondo a alma
no mercado das ambições políticas para ver quando pagam por ela. Mangabeira que
o diga.

- Enviado por Janer @ 11:39 AM

HARVARD DESMORALIZADA
POR UM RELES VIRA-CASACA

Reproduzi, segunda-feira passada, o vibrante artigo em que o professor Mangabeira


Unger acusa o governo Lula de corrupção e pede o impeachment de Lula. Agora
que foi convidado para uma secretaria com status de ministério, o professor retirou
o artigo de sua página pessoal. O gesto, além de covarde, é inútil. O artigo
permanece nos arquivos da Folha de São Paulo e agora consta de milhares de
blogs. A justificativa para este comportamento safado veio através do senador

16 of 46 09/12/2020 15:35
Janer Cristaldo http://cristaldo.blogspot.com/2007/04/

Marcelo Crivella (PRB-RJ), aquele santo pastor evangélico que, não contente de
extorquir os centavos de seus crentes, quer agora extorquir dinheiro de todos os
contribuintes, exigindo para seus templos os benefícios da famigerada lei Rouanet.
Mangabeira Unger está em boa companhia.

"Mangabeira, como grande parcela da população brasileira, mudou de idéia e


concluiu que o presidente não teve nada a ver com a crise", disse o pastor e
senador. Questionado se não haveria nenhum constrangimento o senador e pastor
disse que "o constrangimento é de quem não sabe voltar atrás. As pessoas têm
opinião e podem mudá-la".

Isso é verdade. Albert Camus temia o homem incapaz de mudar de idéias. Ocorre
que mudar de idéia não significa simplesmente negar hoje o que se escreveu
ontem. Mudar de idéia exige uma reflexão sobre o que se pensava ontem e outra
sobre o que se pensa hoje. Não é coisa que dependa da oferta de uma prebenda.
Se Mangabeira ainda ontem considerava o governo Lula corrupto, supõe-se que
tenha feito profundas reflexões para chegar à conclusão de que não é. Pois a esta
conclusão deve ter chegado o professor, para aceitar participar de um governo que
antes considerava corrupto.

Não tivemos oportunidade de ouvir os arrazoados do scholar de Harvard que


justificariam sua nova postura. Mudou de idéia e fim de papo. Mesmo ocupando um
espaço prestigioso na Folha de São Paulo, onde publicou - há menos de dois anos
- seu indignado artigo contra o governo Lula, o professor deve achar que não deve
satisfação alguma a nenhum leitor sobre sua brusca mudança de Weltanschaaung.

Conheço não poucos escritores que em sua juventude foram marxistas. Ao


tomarem consciência de que apoiavam uma doutrina totalitária, fizeram marcha a
ré e reformularam seu pensamento. Mas isto não se fez sem uma reflexão profunda
sobre o que antes pensavam e uma admissão pública do erro em que haviam
incorrido. Para muitos, foi uma operação dolorosa, algo como perder uma fé que
lhes servia de rumo na vida. Sem falar que tiveram de enfrentar uma espécie de
morte civil, condenados que foram por um século que via no marxismo a suprema
verdade.

Tenho visto chusmas de comunistas que nem querem mais ouvir falar desta
palavrinha. Hoje são socialistas. Ou sociais-democratas. Ou democratas,
simplesmente. Em momento algum ouvi a confissão: "eu fui uma solene besta".
Mudam de idéia como quem muda de roupa, sem o compromisso de dar explicação
alguma. Mas idéias não são coisas que se troquem como se troca roupa. Que mais
não seja, o professor Mangabeira Unger deve no mínimo um pedido público de
desculpas ao presidente.

17 of 46 09/12/2020 15:35
Janer Cristaldo http://cristaldo.blogspot.com/2007/04/

Esse pedido não ouvimos. A confissão de que era uma solene besta - o que não era
o caso, mas se imporia em função de sua virada de casaca - muito menos. O ilustre
acadêmico agiu com a irresponsabilidade de um moleque que num dia insulta um
colega de classe e no dia seguinte está brincando com ele, como se nada houvesse
acontecido. Seu gesto compromete inclusive a prestigiosa Universidade Harvard,
que abriga em seus quadros acadêmicos flores que não são de cheirar-se. É indigno
de qualquer acadêmico que se preze renunciar às suas convicções em troca de um
aceno do poder. Nada contra a intelligentsia - ou melhor, burritzia - brasileira. Mas
foi preciso que um brasileiro chegasse a Harvard, para desmoralizar a instituição.

Comentando estas e outras com um amigo, ele me dizia que Lula conhece o
coração dos homens. De fato, conhece. O Supremo Apedeuta, que muda de idéia
conforme as conveniências, sabe muito bem quem são seus pares. Sabe também o
preço de cada um.

- Enviado por Janer @ 1:23 AM

terça-feira, abril 24, 2007

SOBRE O SENHOR JESUIS

A respeito do artigo "Senhor Jesuis quer sua grana", recebi o seguinte mail,
assinado por um certo Afonso:

O artigo é totalmente desrespeitoso à liberdade de culto e crença. É criminoso. É


preconceituoso e discriminatório acerca dos evangélicos. Um artigo sujo como esse
deveria sofrer represálias das mais diversas, pois à medida em que é livre a
manifestação do pensamento, existe um ordenamento legal, no mínimo de ética
acerca de comentários vexatórios à índole de pessoas ou grupos. Se o colunista
Cristaldo não é um criminoso, pelo menos é um desrespeitador antiético leviano. Os
evangélicos deveriam menosprezar pessoas e artigos desse tipo. Entregá-lo à
concupiscência dos seus próprios pensamentos e soberba é a melhor represália que
um cidadão como esse pode receber.

De outra leitora, recebi este:

Janer,

18 of 46 09/12/2020 15:35
Janer Cristaldo http://cristaldo.blogspot.com/2007/04/

Cá estou novamente. Bem abrangente sua coluna. Nunca ninguém teve coragem de
abordar a IURD. Se me permite comentar, é o caso do mecânico do meu carro. Ele
tem sua oficina mecânica que o pai dele passou para ele, se casou, tiveram um
filho hoje com 22 anos e pasme. A esposa dele, gananciosa, começou a freqüentar
essa IURD e olha, acabou o casamento do mecânico. O filho trabalha para pagar o
tal de dízimo, toda noite dita mulher vai ao culto e leva o produto do trabalho da
oficina. Inclusive eu caí no conto. Não sabia que a mulher estava nessa e me lesou
em R$500,00 o consertinho do meu carro. Pasme (seta da direção). O mecânico,
com raiva de ter me lesado me pediu para somente procurar por ele. Pois eu não
iria pagar o tal de dízimo. O casal está separado. Acho muito triste isso. Essa IURD
faz lavagem cerebral na cabeça das pessoas, principalmente com as mulheres.
Ficam loucas. Só fala nessa igreja e nesse congresso. Estou quase trocando a
oficina. O casal esta brigando muito tudo por causa da dita IURD. Destrói tudo da
pessoa e não percebem.

- Enviado por Janer @ 7:29 PM

SENTENÇAS, UM PRÓSPERO MERCADO

Uma das coisas que choca neste meu país é a nonchalance com que se transgride a
lei. As drogas são proibidas? São distribuídas em qualquer esquina das grandes
cidades. Aqui em meu bairro, por muito tempo uma máfia nigeriana controlou o
mercado das drogas. Tinha sua sede em um restaurante chamado... Máfia
Nigeriana. A polícia precisou de uma década para descobrir o centro de distribuição
de drogas.

Jogo do bicho é proibido? Uma banquinha de anotadores está sempre à vista de


qualquer cidadão nos botecos. Os bingos, proibidos por lei, são verdadeiros templos
de fachadas vistosas, instalados nas grandes avenidas da cidade. Caça-níqueis
constituem crime? Tem até em padaria. Em um primeiro momento, não é fácil
entender porque constituem crime. Em não poucos países do mundo, os caça-
níqueis são perfeitamente legais e ninguém tem maiores preocupações com isso.
Só neste Brasil incrível os caça-níqueis parecem constituir uma ameaça à nação. A
impressão que fica é que os legisladores criam dificuldades para vender facilidades.

Isto ficou evidente com a operação Hurricane, da Polícia Federal, que revelou à
imprensa um próspero mercado de sentenças favoráveis à contravenção, vendidas

19 of 46 09/12/2020 15:35
Janer Cristaldo http://cristaldo.blogspot.com/2007/04/

por valores que variavam entre 300 mil e um milhão de reais. Descobriu-se
inclusive, à semelhança do Legislativo, um mensalinho oferecido aos magistrados
da nação, algo entre 20 e 30 mil reais por mês. A PF não hesitou em mandar para o
cárcere ilustres togados, entre eles dois desembargadores do Tribunal Regional
Federal do Rio, um juiz do Tribunal Regional do Trabalho de Campinas e um
procurador regional da República no Rio. Isso sem falar em dois delegados federais
e o advogado Virgílio de Oliveira Medina, irmão do ministro Paulo Medina, do
Superior Tribunal de Justiça e mais um punhado de bicheiros.

Nesta operação, foram presas 25 pessoas. Verdade que os togados já estão livres
como passarinhos. Mas terão de responder processo e a prisão, ainda que
provisória, já serviu para destruir suas carreiras. O desembargador federal José
Eduardo Carreira Alvim, por exemplo, é autor de vários tratados de Direito, de
citação obrigatória em cursos de Direito e na sustentação de defesas. Qual
advogado hoje, conseguiria citar, sem constranger-se, o ilustre mestre das letras
jurídicas?

A operação Hurricane era dirigida à corrupção no Rio de Janeiro. Na ocasião,


perguntei-me: mas e esta São Paulo, infestada de bingos, caça-níqueis e pontos de
bicho? Todos funcionando a pleno vapor, à luz do dia. A Polícia Federal acionou a
operação Têmis. Pediu a prisão de outros togados e seus cúmplices não-togados. O
ministro do Superior Tribunal de Justiça, Félix Fischer, parece ter achado o puchero
muito gordo. Negou o pedido de prisão, concedendo apenas mandados de busca e
apreensão.

A PF desfechou suas operações visando a venda de sentenças para a contravenção.


Mas algumas perguntas restam. Se juízes e desembargadores vendem sentenças
para a contravenção, porque não as venderiam para outros clientes? Para empresas
em débito com o fisco, por exemplo? Ou para o próprio governo federal?

Se há juízes do Supremo Tribunal de Justiça vendendo sentenças, que nos faz supor
que os juízes do Supremo Tribunal Federal também não participem deste lucrativo
mercado? Muito melhor vender sentenças para o governo do que para a
contravenção. O governo é sempre mais discreto em suas negociações.
Obviamente, paga melhor.

Em 2004, um dos ministros do STF, recém empossado, votou a favor da


contribuição dos inativos. Causa muito mais gorda que a dos bingueiros e
assemelhados. Um alívio para Lula, que o nomeou ministro. Lula, contando com o
voto de seu protegido, não viu obstáculo algum em enfiar a mão no bolso de
inativos que já não têm poder de barganha. Antes de ser ministro do STF, o então
advogado cobrou 35 mil reais de uma associação de professores, por parecer em
que se pronunciava contra a contribuição dos inativos. Uma vez ministro, votou a

20 of 46 09/12/2020 15:35
Janer Cristaldo http://cristaldo.blogspot.com/2007/04/

favor.

Segundo o jornalista Jânio de Freitas, o ministro estaria recebendo por mês, em


agosto de 2004, a metade de seu preço de parecerista. "Eros Grau ficou, de fato,
muito mais barato", escreveu Freitas. Na ocasião, discordei. 35 mil reais foi o preço
de um parecer avulso. Outra coisa é receber metade disto pelo fim de sua vida para
assinar o que o Executivo quiser e exigir.

- Enviado por Janer @ 1:44 AM

segunda-feira, abril 23, 2007

EPITÁFIO PARA UM CATEDRÁTICO CARREIRISTA

Sexta-feira passada, Roberto Mangabeira Unger, professor titular de Direito da


universidade Harvard, aceitou convite de Lula para assumir um cargo com status de
ministro no governo. É o que dizem os jornais. Mangabeira foi convidado para
dirigir a futura Secretaria de Ações de Longo Prazo, que deve incorporar o atual
Núcleo de Assuntos Estratégicos e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(Ipea).

Em 15 de novembro de 2005, Mangabeira Unger escrevia em sua coluna na Folha


de São Paulo:

Pôr fim ao governo Lula

Afirmo que o governo Lula é o mais corrupto de nossa história nacional. Corrupção
tanto mais nefasta por servir à compra de congressistas, à politização da Polícia
Federal e das agências reguladoras, ao achincalhamento dos partidos políticos e à
tentativa de dobrar qualquer instituição do Estado capaz de se contrapor a seus
desmandos.

Afirmo ser obrigação do Congresso Nacional declarar prontamente o impedimento


do presidente. As provas acumuladas de seu envolvimento em crimes de
responsabilidade podem ainda não bastar para assegurar sua condenação em juízo.
Já são, porém, mais do que suficientes para atender ao critério constitucional do
impedimento. Desde o primeiro dia de seu mandato o presidente desrespeitou as
instituições republicanas. Imiscuiu-se, e deixou que seus mais próximos se

21 of 46 09/12/2020 15:35
Janer Cristaldo http://cristaldo.blogspot.com/2007/04/

imiscuíssem, em disputas e negócios privados. E comandou, com um olho fechado


e outro aberto, um aparato político que trocou dinheiro por poder e poder por
dinheiro e que depois tentou comprar, com a liberação de recursos orçamentários,
apoio para interromper a investigação de seus abusos.Afirmo que a aproximação do
fim de seu mandato não é motivo para deixar de declarar o impedimento do
presidente, dados a gravidade dos crimes de responsabilidade que ele cometeu e o
perigo de que a repetição desses crimes contamine a eleição vindoura. Quem diz
que só aos eleitores cabe julgar não compreende as premissas do presidencialismo
e não leva a Constituição a sério.

Afirmo que descumpririam seu juramento constitucional e demonstrariam


deslealdade para com a República os mandatários que, em nome de lealdade ao
presidente, deixassem de exigir seu impedimento. No regime republicano a
lealdade às leis se sobrepõe à lealdade aos homens.Afirmo que o governo Lula
fraudou a vontade dos brasileiros ao radicalizar o projeto que foi eleito para
substituir, ameaçando a democracia com o veneno do cinismo. Ao transformar o
Brasil no país continental em desenvolvimento que menos cresce, esse projeto
impôs mediocridade aos que querem pujança.

Afirmo que o presidente, avesso ao trabalho e ao estudo, desatento aos negócios


do Estado, fugidio de tudo o que lhe traga dificuldade ou dissabor e orgulhoso de
sua própria ignorância, mostrou-se inapto para o cargo sagrado que o povo
brasileiro lhe confiou.

Afirmo que a oposição praticada pelo PSDB é impostura. Acumpliciados nos


mesmos crimes e aderentes ao mesmo projeto, o PT e o PSDB são hoje as duas
cabeças do mesmo monstro que sufoca o Brasil. As duas cabeças precisam ser
esmagadas juntas.

Afirmo que as bases sociais do governo Lula são os rentistas, a quem se transferem
os recursos pilhados do trabalho e da produção, e os desesperados, de quem se
aproveitam, cruelmente, a subjugação econômica e a desinformação política. E que
seu inimigo principal são as classes médias, de cuja capacidade para esclarecer a
massa popular depende, mais do que nunca, o futuro da República.

Afirmo que a repetição perseverante dessas verdades em todo o país acabará por
acender, nos corações dos brasileiros, uma chama que reduzirá a cinzas um
sistema que hoje se julga intocável e perpétuo.

Afirmo que, nesse 15 de novembro, o dever de todos os cidadãos é negar o direito


de presidir as comemorações da proclamação da República aos que corromperam e
esvaziaram as instituições republicanas.

22 of 46 09/12/2020 15:35
Janer Cristaldo http://cristaldo.blogspot.com/2007/04/

Este artigo me parece constituir um belo epitáfio para o dia de seu passamento.
Estranha, a sedução do poder. Estranha e poderosa. Que faz com que um
catedrático, confortavelmente instalado na mais prestigiosa universidade
americana, venha correndo e abanando o rabo para colaborar com o governo que,
ontem ainda, considerava o mais corrupto da história nacional?

Como dizia Fierro,

Muchas cosas pierde el hombre


que a veces las vuelve a hallar;
pero les debo enseñar,
y es güeno que lo recuerden:
si la verguenza se pierde,
jamás se vuelve a encontrar.

- Enviado por Janer @ 7:19 PM

domingo, abril 22, 2007

MEDICINA E CATOLICISMO

Discutia eu outro dia, pela Internet, a condição de jornalista. Falávamos de um


jornalista católico chapa-branca, que hoje escreve na Veja, e não perde
oportunidade de fazer proselitismo. A meu ver, um jornalista não pode ser católico.
Não me refiro, bem entendido, àquele tipo de católico francês que comentei em
crônica passada. Lá, segundo recente pesquisa, apenas um católico em cada dois
crê em Deus. Tampouco me refiro ao Brasil. Segundo o Vaticano, 84% dos
brasileiros são católicos. Segundo pesquisa também recente, 51% dos brasileiros
sequer sabem o nome do papa.

Não, não me refiro a estes católicos de fachada. Penso naquele que conhece
profundamente sua fé, que sabe o que é um dogma e que tem ciência de todos os
dogmas, que conhece o magistério da Igreja e a ele obedece. São raros, mas
existem. Este não pode ser jornalista. Católico sendo, ele terá de crer firmemente
nos dogmas da virgindade de Maria, da ascensão de Maria aos Céus, na divindade
do Cristo, na Santíssima Trindade, na transubstanciação da carne e outros menos
prestigiosos. Obviamente, não podemos conferir credibilidade alguma a quem
acredita em tais potocas.

23 of 46 09/12/2020 15:35
Janer Cristaldo http://cristaldo.blogspot.com/2007/04/

Palavra puxa palavra e alguém objetou que também devo ter restrições a médicos
ou engenheiros católicos. A objeção, aparentemente sem sentido, foi muito
oportuna. Não vejo muito o que objetar a engenheiros católicos. Que façam seus
cálculos corretamente, é o mínimo que exijo de um engenheiro. Pelo que me
consta, até agora ninguém criou uma matemática católica por oposição a eventuais
matemáticas atéias ou protestantes. Quanto a médicos católicos, tenho minhas
restrições, sim senhor.

Quando busco um médico, é claro que não me pergunto por sua fé. Em geral, vou
por recomendações. Se não as tenho, busco ao azar. Neste caso, meu primeiro
critério é que seu consultório fique perto de onde moro. No entanto, quando
observo que um viés católico interfere nas prescrições médicas, caio fora. Já
aconteceu. Nos estertores do século passado, passei dois anos sem beber uma gota
de álcool. Proibição de uma médica... católica. Tive de mudar até mesmo meus
hábitos diários, a geografia que percorria em meu bairro. Abandonei meus bares e
amigos, pois não suportava, estando sóbrio, participar de uma mesa em que todos
bebiam. Passei a freqüentar cafés de senhoras judias, tomar chás e comer
biscoitos, em suma, perdi boa parte do prazer de viver. Até o dia em que me
perguntei: será mesmo que não posso beber? Busquei outra médica. Ela, que não
professava religião alguma, me liberou para os antigos prazeres. E minha vida
voltou a ter sentido. O pior momento da médica católica era quando dela me
despedia. Me dizia: "vá com Deus". A impressão que me ficava é que a ciência nada
mais podia fazer por mim.

Quando vivia em Santa Catarina, tive outro conflito com um destes senhores. Ao
saber que eu ia para Paris, recomendou-me: nada de vinho, nada de foie gras,
nada de boudins, cuidado com os queijos. Coincidiu que eu viajava em dias de meu
aniversário e meus amigos em Paris me receberam com tudo: muito vinho, muito
foie gras, muito camembert. Eu, temeroso, apenas beliscava um pouquinho de cada
coisa. Me mantive sóbrio, comedido, o tempo todo. Ao voltar, compro um Nouvel
Obs como leitura de bordo. Reportagem de capa: "Le Paradoxe du Périgord".

É um paradoxo até hoje não explicado pela literatura médica. No Périgord, uma das
regiões da França onde mais se bebe vinho, onde mais se consome patês e queijos,
seus habitantes têm uma saúde cardiovascular invejável. Voltei a meu médico de
Nouvel Obs em punho. "Conhece o paradoxo do Périgord, Dr?" Não conhecia.
Alegou que não lia francês. "Tudo bem, eu traduzo". E fui traduzindo. Depoimentos
médicos asseguravam não haver nada demais em meia garrafa de vinho às
refeições. Ou em duas doses de uísque por dia. E recomendavam, inclusive,
misturar um pouco de boudin no leite das crianças.

Meu médico teve de render-se aos depoimentos de seus pares. De fato, me disse, o

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Janer Cristaldo http://cristaldo.blogspot.com/2007/04/

álcool, em doses moderadas, é benéfico ao coração. "Mas não podemos dizer isso,
sob risco de induzir pacientes ao alcoolismo". Pode ser. O fato é que ele era
católico. E catolicismo significa renúncia ao que de bom a vida tem. Este tipo de
médico busca exercer poder sobre seu cliente. E se você é tímido e não negocia,
terá uma existência muito sem sabor pela frente.

Quando busco um médico, não é para ouvir preceitos éticos. Ética, eu tenho a
minha e convivo muito bem com ela. Em um médico, busco avaliações médicas.
Aos 60 anos, uma pessoa já tem uma boa experiência de médicos. Outra
constatação que fiz em minhas décadas de consultórios, é que há uma diferença
bastante significativa entre médicos formados nos Estados Unidos e médicos
formados na Europa. Dificilmente estes últimos farão restrições rigorosas ao vinho.
Eles se formaram em países em que o vinho faz parte da alimentação. Um operário
francês ou espanhol, ao almoçar, em geral terá em sua mesa um meio litro - ou
mesmo uma garrafa - de vinho. Faz parte da vida. Nem por isso estão caindo aos
magotes de cirrose ou delirium tremens.

O paradoxo do Périgord só pode ocorrer na Europa. Já os formados nos Estados


Unidos, em geral, querem proibir qualquer gota de álcool. Um gastro de Curitiba,
formado nos States, é claro, me dizia: a dose permissível de cerveja é meio copo
por dia. Ora, Dr - respondi - meio copo de cerveja não existe. Que ele tivesse suas
restrições ao álcool, tudo bem. Que meio copo de cerveja possa prejudicar um
cirrótico, entendo. Mas não venha um médico me dizer que a dose permissível de
cerveja é meio copo por dia.

Claro que se eu precisar de um cirurgião, não vou me perguntar por sua fé, mas
por sua competência. Mas em tratamentos continuados ou em casos extremos, o
catolicismo vai interferir. Se eu optar por eutanásia - seja para mim, seja por
vontade de pessoa próxima - ele, se for católico, por coerência terá de se recusar.
Já aconteceu em minha família e o resultado foi desastroso, uma pessoa vivendo
quatro anos como vegetal.

Há médicos que, em nome de uma ética católica, se recusam a prescrever


anticoncepcionais. Se um dia o aborto for legalizado no Brasil, teremos legiões de
médicos que se recusarão a praticá-lo. Será uma objeção de consciência e não
podemos exigir de um profissional que faça algo que fira seus princípios. Mas isto é
a religião interferindo no exercício da medicina.

Se não tiver a suprema ventura de morrer em acidente rápido, confesso que não
quero esse tipo de médico perto de meu leito no hospital.

- Enviado por Janer @ 11:53 PM

25 of 46 09/12/2020 15:35
Janer Cristaldo http://cristaldo.blogspot.com/2007/04/

sábado, abril 21, 2007

EMENDA DO PAPA PIOR QUE O SONETO DA IGREJA

Há mais de ano, neste blog, alertei meus leitores para uma notícia de vital
importância para o gênero humano. Em dezembro de 2005, os teólogos do Vaticano
se preparavam para recomendar ao papa Bento XVI o fim da idéia de limbo, o lugar
para o qual vão, segundo as crenças católicas, as almas das crianças que morreram
sem serem batizadas. Conforme a proposta, essas crianças iriam direto ao paraíso
graças à "infinita misericórdia de Deus".

Segundo a doutrina do pecado original - comentei então - todo ser humano nasce
com folha corrida. Sem batismo, nada de paraíso. Santo Agostinho considerava que
os bebês não batizados iam direto ao inferno, embora tenha ressalvado que seu
sofrimento seria de alguma forma mitigado. O Concílio de Cartago, do ano 418,
negou a estes bebês a felicidade eterna. A Comissão Teológica Internacional (CTI) -
colegiado composto de uma trintena de teólogos católicos - recomendava então
abolir a noção de limbo de todo o ensino do catecismo católico. Já em outubro de
2004, Sua Santidade o papa João Paulo II considerava o tema de máxima
importância e pedira à CTI que elaborasse "uma maneira mais coerente e ilustrada"
de descrever, dentro da ortodoxia católica, o destino dos bebês mortos em
inocência.

Mas o problema não é assim tão simples. Para os teólogos, existe um duplo limbo.
Primeiro, existe o limbus patrum, para onde vão os justos, como Abraão e Moisés,
que viveram antes do Cristo. Segundo, o limbus parvulorum ou limbus infantium,
onde ficam os bebês mortos sem batismo. Como carregam a culpa do pecado
original mas não cometeram pecados pessoais, não podem ser premiados com o
céu nem castigados com o inferno. Perguntei-me na ocasião que aconteceria se a
CTI liberasse o paraíso para os ocupantes do limbus parvulorum. Que seria feito do
destino dos milhões de almas do limbus patrum? Todos os justos que precederam
Cristo passariam a constituir um considerável contingente de sem-paraíso?

Sexta-feira passada, a CTI oficializou a nova doutrina. O limbo é mais uma dessas
firulas de teólogos, que não existe nos textos primevos do cristianismo. Você pode
revirar a Bíblia do Gênesis ao Apocalipse e não vai encontrar uma só menção a
limbo. Este lugar hipotético surge a partir da instituição do batismo. Depois que o
João batizou o Cristo às margens do Jordão, este gesto se tornou sacramento

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Janer Cristaldo http://cristaldo.blogspot.com/2007/04/

obrigatório para todo cristão. Sem batismo, não há salvação. É pelo batismo que o
ser humano é redimido do pecado original. E aqui já vai mais uma bíblica
contradição: se Cristo nasceu sem o pecado original, por que precisaria de batismo?

O documento que oficializa a nova doutrina se intitula A Esperança de Salvação


para as Crianças que Morrem sem Batismo. Foi publicado em inglês e, pelo
menos por enquanto, não temos interpretação alguma disponível no Brasil do
cronista tucano-católico-conservador Reinaldo de Azevedo. Segundo a CTI, o limbo
representava um "problema pastoral urgente", pois há cada vez mais crianças que
nascem de pais não católicos e não são batizados e "outras que não nasceram ao
serem vítimas de abortos". A Igreja Católica descartou então definitivamente o
conceito. Afinal, a exclusão de crianças inocentes do Céu não refletiria o amor
divino e a misericórdia de Deus superaria a falta do sacramento nesse caso.

Não tive em mãos ainda o documento - nem a competente interpretação do


Reinaldo - mas é de supor-se que com o limbus parvulorum vá também para as
cucuias o limbus patrum. Abraão, Moisés e demais patriarcas bíblicos, penhorados,
embarcam na carona e agradecem.

O limbo nunca constituiu dogma, era apenas uma posição doutrinária do


catolicismo. Ocorre que os papas, a cada vez que tentam espanar a poeira dos
séculos do carro da Igreja, criam mais perguntas que respostas. A emenda saiu
pior do que o soneto.

Se o batismo não é necessário para a salvação eterna, para que então batismo?

- Enviado por Janer @ 10:08 PM

sexta-feira, abril 20, 2007

SENHOR JESUIS QUER SUA GRANA

Por vezes, nas madrugadas, dedico alguns bons minutos aos programas dos
pastores evangélicos que inundam a televisão aberta. É prática que recomendo ao
leitor. Se as novelas consistem em ficções bobas para agrado de desmiolados, nos
programas religiosos não há ficção alguma. É a realidade nua e crua: hábeis
comunicadores extorquindo o último centavo de uma massa de crentes analfabetos
ou semi-alfabetizados. Há milagres a granel. Pelo simples fato de comparecer ao

27 of 46 09/12/2020 15:35
Janer Cristaldo http://cristaldo.blogspot.com/2007/04/

culto, paralíticas passam a caminhar, ceguinhas passam a ver, cancerosos se curam


de câncer, aidéticos se curam de Aids. Expulsam-se também demônios do corpo de
endemoninhados. Aleluia! Louvado seja o Senhor Jesuis!

Confesso que até hoje não entendi esse “senhor Jesuis”. Talvez seja recurso
fonético dos pastores da IURD (Igreja Universal do Reino de Deus) para diferenciar-
se das vigarices milenares daqueles outros da ICAR (Igreja Católica Apostólica
Romana), que por sua também exploram o cadáver do Senhor Jesus. Sem o "i". O
programa que mais me fascina é aquele da IURD, o Congresso Empresarial dos 318
pastores. São 318 pastores que intercedem ante o Altíssimo pela sua fortuna e
prosperidade. E porque 318? Porque no Gênesis lemos:

"Ouvindo, pois, Abrão, que seu irmão estava preso, levou os seus homens
treinados, nascidos em sua casa, em número de trezentos e dezoito, e perseguiu os
reis até Dã. Dividiu-se contra eles de noite, ele e os seus servos, e os feriu,
perseguindo-os até Hobá, que fica à esquerda de Damasco. Assim tornou a trazer
todos os bens, e tornou a trazer também a Ló, seu irmão, e os bens dele, e
também as mulheres e o povo".

O roteiro é divino. Público alvo, pequenos e médios empresários. De preferência,


empresárias. Você tem uma dívida de três milhões de reais? Basta pedir a
intercessão dos 318 pastores e dia seguinte você está fora do vermelho e cheio de
grana no bolso. Você tem um carro caindo aos pedaços que não lhe dá nenhum
prestígio? Freqüente as vigílias e logo o bom Deus lhe dará uma BMW. Os
depoimentos se multiplicam e as benesses são sempre as mesmas: prosperidade
na empresa, dinheiro na conta corrente, carro novo, casa na praia, jardim e piscina,
em suma, todas essas pequenas ambições da pequena burguesia ascendente. A
"reportagem" se dá ao luxo de entrevistar os abençoados por Deus no
estacionamento do templo. Cada um, cada uma, sentado ao volante de um
flamante carro de prestígio. Graças ao Senhor Jesuis!

Por enquanto, ainda não ouvi: "Depois que encontrei o senhor Jesuis, fiz um
cruzeiro pelas ilhas gregas!" Como só vejo esporadicamente tais programas, não
duvido que tal depoimento já tenha ocorrido. Se não ocorreu, ocorrerá. O Senhor
Jesuis faz maravilhas.

Perplexo! É como fico. Não se vê um só assento vazio nos templos. Vazia deve ser a
vida daquelas quatro ou cinco mil pessoas que lotam cada galpão. Que perdem
noites de repouso ou lazer, convivência com a família, para ouvir o bíblico besteirol
de um vigarista bem falante. Não por acaso evangélicos e católicos estão agora
disputando acirradamente as mentes dos bugres no Brasil. Os criadores de religiões
desde há muito sabem que, nos dias atuais, só podem esperar colheita se
semearam entre os brutos. Nestes dias em que a Polícia Federal parece ter tomado

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Janer Cristaldo http://cristaldo.blogspot.com/2007/04/

vergonha e está colocando juízes e desembargadores na cadeia, é difícil entender


como os 318 pastores ainda não estão vendo o sol quadrado. Ou será que temos de
esperar que a polícia americana ponha estes senhores onde merecem estar?

Não bastasse esta exploração vil dos baixos instintos do povo, que constitue crime
óbvio contra a economia popular, um destes senhores, o senador Marcelo Crivella,
pastor da IURD, quer agora enfiar a mão no bolso inclusive dos não-crentes. Não
bastasse esta corrupção propiciada pela lei Rouanet, que permite o financiamento
do teatro, do cinema e agora da literatura pelo contribuinte, o pastor Crivella
considera que as religiões estão entre os elementos culturais de uma nação. E
apresentou projeto no sentido de que a lei Rouanet passe a despejar abundantes
benesses sobre os templos da IURD.

A propósito, o senador e pastor começa a surgir como um dos personagens da


operação Hurricane, que está desmantelando a máfia dos bingos e caça-níqueis no
país. Íntimo do juiz Ernesto Dória, desembargador do Tribunal Regional do Trabalho
de São Paulo, que hoje curte o xilindró, Crivella chegou a sugerir-lhe que se
candidatasse a "vereador ou deputado pela nossa Igreja", a IURD. Em um dos
diálogos grampeados pela Polícia Federal, o ilibado juiz comenta que se Lula
vencesse a disputa no Rio, Crivella sairia fortalecido. "Tá colocando 4 milhões e
meio de gente, quase 5, pra votar no Lula. Tá uma máfia humana".

Como se algum animal organizasse máfias! É claro que o Supremo Apedeuta será
sensível a tal afago. O projeto do senador e pastor já foi aprovado pela Comissão
de Educação do Senado. A matéria vai a plenário e ainda precisa ser votada na
Câmara.

- Enviado por Janer @ 10:56 PM

quinta-feira, abril 19, 2007

NADA MELHOR QUE UM BOM MASSACRE

"Vocês tiveram bilhões de chances e formas de evitar hoje. Mas vocês me acuaram
e só me deram uma opção. Vocês decidiram derramar o meu sangue; vocês me
encurralaram e me deram só uma opção. A decisão foi sua; agora vocês têm nas
suas mãos sangue que nunca mais será lavado".

29 of 46 09/12/2020 15:35
Janer Cristaldo http://cristaldo.blogspot.com/2007/04/

O discurso de Cho Seung-hui, o estudante sul-coreano que matou 32 pessoas na


Virginia, não passaria de arrazoados de um doente mental, não fosse uma sinistra
coincidência: é mais ou menos o discurso corrente das esquerdas do Ocidente para
justificar a violência. A culpa nunca é do criminoso. Mas de "vocês". Isto é, da
sociedade. Ou melhor, é nossa. Nós, que nunca matamos, somos quem apertamos
o gatilho das armas que o coitadinho encurralado empunha. A diferença no caso é
que normalmente são os defensores dos tais de Direitos Humanos que assim fazem
a defesa dos criminosos. Cho Seung-hui se antecipou. Antes que psicólogos,
sociólogos e outros ólogos assumam os holofotes da mídia para defendê-lo, ele
mesmo fez sua defesa. Deixou os ólogos sem argumentos.

O obscuro e desengonçado coreano queria ser ouvido. Desde há muito, a mídia lhe
mostrava o caminho. Nada melhor que um bom massacre para sair do anonimato e
fazer a capa de todos os jornais do mundo. Duas ou três horas de intenso labor et
voilà: celebridade internacional. Teve uma bela performance. Num país em que este
tipo de assassinato é corriqueiro, conseguiu bater de longe o número de vítimas de
seus precursores. Como a competitividade é uma das regras do jogo social nos
Estados Unidos, mais dia menos dia um outro campeão tentará roubar-lhe o
recorde.

A culpa será, é claro, da sociedade.

- Enviado por Janer @ 8:36 PM

quarta-feira, abril 18, 2007

MINISTRO PETISTA DESCONHECE NOÇÃO DE LEI

Se há um conceito que não tem abrigo no bestunto de um petista é a noção de lei.


A lei proíbe invadir propriedade privada? A gente invade e depois negocia. Há uma
lei que proíbe militares de fazer greve? A gente faz e depois negocia. Embalados
desde o berço pela idéia da revolução bolchevique, para um petista lei é uma noção
que não faz falta.

Referindo-se às últimas invasões de terra e ocupações de pedágios dos movimentos


dos sem-terra neste mês de abril, disse à Folha de São Paulo o ministro do
Desenvolvimento Agrário Guilherme Cassel: "A sociedade está cansando de ouvir
esses discursos, que negam sistematicamente a realidade, que se escondem atrás

30 of 46 09/12/2020 15:35
Janer Cristaldo http://cristaldo.blogspot.com/2007/04/

da retórica para fazer política". Para o ministro, as ações criam resistência à


reforma agrária na sociedade "na medida em que ferem o bom senso".

Nem passa pela cabeça do ministro petista que tais ações ferem, antes de mais
nada, a lei.

- Enviado por Janer @ 4:24 PM

MINISTRO ANUNCIA NOVA TUNGA

Durante participação no Fashion Marketing 2007, disse o ministro da Cultura,


Gilberto Gil: "A moda está convocada para um novo ciclo de integração cultural". E
completou: "Quero propor um rearranjo da relação do Estado com a moda. Quero
reverter o equívoco ou omissão do passado, e dizer a vocês que a moda é hoje
reconhecida pelo Ministério da Cultura como parte vital da cultura brasileira".

Ou seja, em breve teremos grifes internacionais promovendo desfiles patrocinados


pela lei Rouanet. Não bastasse o contribuinte ser tungado pelo cinema, teatro e
literatura nacionais, terá agora de financiar as futilidades da moda.

- Enviado por Janer @ 4:07 PM

NOVOS TEMPOS

Jornais on line vão substituir os jornais em papel? Responde Márion Strecker,


diretora de Conteúdo da UOL:

"Já substituíram. Claro, os jornais em papel ainda têm leitores, mas se um jornal de
grande circulação no Brasil tira ou vende 400 mil exemplares, uma primeira página
do UOL é lida por cinco milhões de pessoas todos os dias. Então as pessoas estão
se informando por um portal na internet ou não estão? A geração dos meus filhos,
eu tenho um filho de 16 e uma filha de oito, começa a ter contato com o jornalismo

31 of 46 09/12/2020 15:35
Janer Cristaldo http://cristaldo.blogspot.com/2007/04/

pela internet e não pelo papel. Eles lêem notícia muito mais pela internet do que
pelo papel. Isto não é o futuro, isto é o presente".

No que a mim diz respeito, devo confessar que só leio jornal-papel por vício
irremediável. Tenho todos os jornais do mundo em minha telinha. Mas não consigo
renunciar ao inefável prazer de sentar em um bar, com um ou dois jornais à mão e
um chope em punho. Pelo jeito, o futuro da imprensa em papel dependerá em boa
parte de viciados irrecuperáveis como este que vos escreve.

- Enviado por Janer @ 12:06 PM

terça-feira, abril 17, 2007

MAOMÉ E A VOZ DO POÇO

Desde o momento em que se sentiu seguro e seu nome tornou-se célebre na


Arábia, Coreïs, um árabe poderoso e temeroso de que um homem saído do nada
tivesse a audácia de abusar do povo, se declarou seu inimigo e lhe pôs todo tipo de
obstáculos. Mas, por fim, a família de Coreïs se encontrava em inferioridade de
condições, e Maomé foi seguido por uma multidão de povos que, julgando-o um
homem divino, adotaram sua nova lei. Uma vez liberado de um inimigo tão temível,
só tinha temor de seu companheiro. Com medo de que este descobrisse suas
imposturas, decidiu tomar suas precauções, e para fazê-lo com maior segurança o
entreteve com belas promessas e lhe jurou que não tinha a intenção de tornar-se
poderoso senão para fazê-lo participar de um bem para o qual tanto havia
contribuído. "Estamos chegando - lhe disse - ao feliz momento de nossa
consolidação. Somos seguidos por um grande povo, ao qual conquistamos, mas
temos de confirmar esta conquista por meio do artifício que você tão felizmente
inventou".

Ao mesmo tempo o convenceu que se ocultasse no poço dos oráculos, de cujo


fundo geralmente simulava a voz de Deus. Enganado pelas doces palavras deste
impostor, o pobre homem simulou o oráculo como costumava fazê-lo, e quando
escutou a voz de Maomé e o rumor da multidão que o seguia, começou a gritar
como havia sido combinado: "Eu, que sou vosso Deus, declaro que designei Maomé
para ser o profeta de todas as nações. Dele vocês aprenderão a verdadeira lei,
porque os judeus e os cristãos mudaram as que lhes havia dado".

32 of 46 09/12/2020 15:35
Janer Cristaldo http://cristaldo.blogspot.com/2007/04/

Desde há muito tempo esse homem fazia esse papel, mas finalmente foi pago da
maneira mais ingrata, pois Maomé, ao escutar a voz que o proclamava um homem
divino, se dirigiu àquele povo enganado por seu falso mérito e ordenou, em nome
de Deus, que o reconhecia como seu profeta, que enchessem de pedras o poço do
qual havia saído em seu favor um testemunho tão autêntico, em memória da pedra
que certa vez erigiu Jacó em uma ocasião semelhante, como sinal de que Deus a
ele havia aparecido.

Tal foi o funesto fim deste miserável, que tanto havia contribuído à exaltação de
Maomé; foi sobre esse monte de pedras que o último dos mais célebres impostores
estabeleceu sua lei. Esse fundamento é tão sólido que depois de mais de mil anos
de império ainda não se vê que esteja por debilitar-se.

--------
(Do Tratado de los tres impostores - Moisés, Jesús Cristo, Mahoma, anônimo
clandestino do século XVIII)

- Enviado por Janer @ 9:03 PM

segunda-feira, abril 16, 2007

CONDE AFONSO CELSO NA VEJA

A última Veja, em um inexplicável surto de megalomania, colocou o real como a


moeda MAIS FORTE ENTRE AS FORTES. "Quase todas as moedas do planeta
estão se valorizando em relação ao dólar. A moeda americana perde força no
mundo por causa do gigante déficit comercial dos Estados Unidos. Mas o real foi o
que mais se fortaleceu: 58% nos últimos quatro anos". A reportagem cita a
valorização de algumas moedas: real, 58%; coroa eslovaca, 54%; coroa checa,
42%; zloty polonês, 39%; leu romeno, 37 %, etc.

Muito bem! Tente então cambiar reais, coroas - sejam checas ou eslovacas - zlotys
ou lei em alguma capital européia ou nos Estados Unidos. Não vai conseguir. Reais,
você talvez até consiga trocar em Espanha e Portugal, com deságio de uns 30%. E
aí se foi a moeda forte. Tente pagar a dívida externa desses países com essas
moedas. Também não vai conseguir. Você já ouviu falar de travellers-cheques em
reais? Duvido.

33 of 46 09/12/2020 15:35
Janer Cristaldo http://cristaldo.blogspot.com/2007/04/

Quando o real foi instituído e equivalia a um dólar (ou até menos), Delfim Netto
fulminou: "o real equivale ao dólar só aqui no Brasil". Que o real tenha se
valorizado, internamente, em relação ao dólar, não se discute. O que não se pode
afirmar é que seja moeda forte, muito menos a mais forte entre as fortes. Chamar
de fortes o real e as moedas do Leste europeu é uma licença poética só permissível
ao conde Afonso Celso, autor do clássico Porque me ufano de meu país.

- Enviado por Janer @ 5:12 PM

domingo, abril 15, 2007

O VISIONÁRIO DE TAUBATÉ

(em homenagem aos 125 anos do nascimento de Monteiro Lobato)

Quando nos deparamos com algum evento insólito na sociedade ou na área da


tecnologia, logo saímos à busca de precursores ou anunciadores. Em geral os
buscamos entre os ficcionistas anglo-saxões ou germânicos, afinal toda literatura de
antecipação tem suas raízes nos Estados Unidos ou Europa. No entanto, nestas
terras de Pindorama, já em 1926, um visionário de Taubaté antevia nada menos
que a radicalização da questão negra nos Estados Unidos, a discussão separatista
no Brasil, o voto eletrônico, o teletrabalho, a Internet e suas conseqüências.
Falamos de Monteiro Lobato, é claro, e de sua obra mais premonitória, O
Presidente Negro ou O Choque das Raças. Como este livro hoje só pode ser
encontrado em sebos ou bibliotecas, não serei mesquinho em citações.

Estamos no ano 2.228. Nos Estados Unidos, a elite governante está alarmada: as
estatísticas apontam uma população de 108 milhões de negros para 206 milhões de
brancos. Como o coeficiente de natalidade negra continua subindo, o instinto de
preservação dos brancos se eriça em legítima defesa. Fala-se em uma "solução
branca" e uma "solução negra". A solução branca é, obviamente, expatriar os
negros. Quem propõe este panorama é Miss Jane, personagem de Lobato na ficção
citada.

Na mesma época, o antigo Brasil está cindido em dois países, um centralizador de


toda a grandeza sul-americana, filho que era do imenso foco industrial surgido às
margens do rio Paraná e o outro, uma república tropical, agitando-se ainda em
velhas convulsões políticas e filológicas, discutindo sistemas de voto e a colocação

34 of 46 09/12/2020 15:35
Janer Cristaldo http://cristaldo.blogspot.com/2007/04/

dos pronomes da semimorta língua portuguesa. De clima temperado, o Brasil


branco fundia no mesmo bloco a Argentina, o Uruguai e o Paraguai. Os
portugueses, aclimatados na zona quente, haviam-se mesclado com o negro,
formando um povo de mentalidade incompatível com a do sul.

Miss Jane é filha de um cientista de origem americana radicado no Brasil, o


professor Benson, que pode obter um corte anatômico do futuro através de uma
espécie de globo cristalino chamado porviroscópio. (Esta idéia será retomada por
Jorge Luís Borges, como veremos adiante). Através deste aparelho Jane perscruta o
mundo do século 23. A ação do romance transcorre em 1926. O Sr. Ayrton, seu
interlocutor brasileiro, manifesta tristeza ante o futuro do país. Jane, pelo contrário,
considera um erro inicial a mistura de raças e acha que a divisão do país constituí
uma solução ótima, a melhor possível. Pois "a muita terra não é o que faz a
grandeza de um povo e sim a qualidade de seus habitantes".

Esta idéia de um fracionamento territorial do Brasil não é nova nos dias de Lobato.
Em Cartas Inéditas de Fradique Mendes, escritas nos estertores do século passado,
Eça de Queiroz já antecipava esta possibilidade, em texto intitulado A Revolução
no Brasil. Para o escritor português, com o Império acaba também o Brasil, que
ficaria fragmentado em Repúblicas independentes, em virtude da divisão histórica
das províncias, das rivalidades entre elas, da diversidade do clima, do carácter e
dos interesses e a força das ambições locais. Uma vez separados, os estados não
poderão manter paz entre si, em função das delimitações de fronteira, questões
hidrográficas e alfândegas. "Cada estado, abandonado a si, desenvolverá uma
história própria, sob uma bandeira própria, segundo o seu clima, a especialidade de
sua zona agrícola, os seus interesses, os seus homens, a sua educação e a sua
imigração. Uns prosperarão, outros deperecerão. Haverá talvez Chiles ricos e
haverá certamente Nicaráguas grotescos. A América do Sul ficará toda coberta com
os cacos dum grande Império!"

Se o Brasil ainda não se dividiu - apesar de todos os anos surgirem "nações"


indígenas, com pretensões de autonomia -, aí estão os Chiles ricos e os Nicaráguas
grotescos, confirmando a aguda intuição de Eça. Mas voltemos a O Presidente
Negro.

A inflação do pigmento - Para Miss Jane, a América seria a privilegiada zona que
havia atraído os elementos mais eugênicos das melhores raças européias. O
Mayflower trouxera homens de uma têmpera superior que não hesitaram um
segundo "entre abjurar das convicções e emigrar para o deserto". As leis de
imigração se tornam seletivas e as massas que procuravam a América, já em si
boas, são peneiradas. A Europa é drenada de seus melhores elementos e no novo
mundo resta a flor dos imigrantes. Ocorre então o que Miss Jane chama de "o erro

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inicial": entra no país, à força, o negro arrancado da África. O Sr. Ayrton observa
que o mesmo erro foi cometido no Brasil, mas nossa solução foi admirável: em cem
ou duzentos anos teria desaparecido o nosso negro em virtude de cruzamentos
sucessivos com o branco.

Miss Jane não julga admirável tal solução, mas medíocre, pois estraga as duas
raças ao fundi-las. Prefere que ambas se desenvolvam paralelas dentro do mesmo
território, separadas por uma barreira de ódio, a mais profunda das profilaxias. Para
ela, o ódio impede a miscigenização e mantém as raças em estado de relativa
pureza.

- Não há mal nem bem no jogo das forças cósmicas. O ódio desabrocha tantas
maravilhas quanto o amor. O amor matou no Brasil a possibilidade de uma suprema
expressão biológica. O ódio criou na América a glória do eugenismo humano...
Os exemplares mais belos, fortes e inteligentes eram descobertos onde quer que se
encontrassem e atraídos para a Canaã americana. Estando o país bastante
povoado, fecha-se as portas ao fluxo europeu e a nação passa a crescer apenas
vegetativamente.

É quando surge a inflação do pigmento. As elites pensantes haviam-se convencido


que a restrição da natalidade se impunha, pois qualidade vale mais que quantidade.
Rompe-se então o equilíbrio: "Os brancos entraram a primar em qualidade,
enquanto os negros persistiam em avultar em quantidade. Mais tarde, quando a
eugenia venceu em toda a linha e se criou o Ministério da Seleção Artificial, o surto
negro já era imenso".

Urge desembaraçar-se dos negros. A solução branca é simples: exportar, despejar


os cem milhões de negros americanos no Vale do Amazonas. O que não era fácil
"não só em virtude de tremendas dificuldades materiais como por ferir de face a
Constituição Americana".

Monteiro Lobato escreveu seu romance - ou ensaio, como quisermos - no início


deste século. Ao transportar a ação da obra para três séculos depois, fazia ficção.
Mas, bom conhecedor da história dos Estados Unidos, escorava-se em projetos
nada ficcionais já alimentados pelos americanos.

Um país para os negros americanos - Entre 1840 e 1860, um obscuro tenente


da Marinha dos Estados Unidos, Matthew Fontaine Maury, funcionário do
Departamento de Cartas e Instrumentos do Departamento da Marinha de
Washington, pensou seriamente no assunto. O projeto do oficial americano era
simples e pragmático: uma vez alforriados os escravos negros de seu país, estes
seriam enviados para colonizar a Amazônia brasileira. A república da Libéria, na
África, resultou de um destes projetos.

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E por que não colonizar a região amazônica com brancos? Maury empunhava
argumentos de ordem geográfica, Se o europeu e o índio haviam lutado com suas
florestas por 300 anos sem imprimir-lhe a menor marca, sua vegetação só poderia
ser subjugada e aproveitada, seu solo só poderia ser retomado à floresta, aos
répteis e aos animais selvagens e submetido ao arado e à enxada, pela mão-de-
obra do africano. "É a terra dos papagaios e macacos e só o africano está à altura
da tarefa que o homem aí tem de realizar".

O projeto de Maury, em verdade, só tinha de original a insistência em colonizar a


Amazônia com os negros libertos. Desde os últimos anos da década de 1830, os
Estados Unidos pretendiam a abertura da navegação do rio Amazonas a todas as
nações. Antes do oficial sonhador, um certo Joshua Dodge pretendia estabelecer 20
mil imigrantes norte-americanos nas margens do Amazonas. Todos se
comprometendo a reconhecer a soberania brasileira, pelo menos nos primeiros anos
de colonização.

No fundo, à semelhança do que foi feito com o Texas, pretendia-se anexar a região
aos Estados Unidos. A estratégia era simples. Bastaria comprar alguns brasileiros
em Manaus, que passariam a ser "legítimos representantes de uma República da
Amazônia, que se declararia estado independente do Império do Brasil, inclusive
por discordar da forma como o país era governado, com sua monarquia".

Caso o governo brasileiro enviasse navios e tropas para restabelecer sua soberania,
os cidadãos do novo estado amazônico independente apelariam para a proteção
norte-americana. E uma força de proto-capacetes azuis se apresentaria na foz do
Amazonas para "proteger a vida e os bens ameaçados dos cidadãos americanos".

Quem nos conta este quase desconhecido projeto de expansão americana é a


professora Nícia Vilela Luz, em A Amazônia para os Negros Americanos. Neste
ensaio, a autora mostra que muitos americanos, bem antes da eclosão da Guerra
Civil, achavam ser mais interessante libertar todos os escravos e enviá-los para fora
da América. O intérprete maior desta vontade é o tenente Maury:

"Preocupava-o o problema do negro nos Estados Unidos, tendo em vista a abolição


da escravidão que se aproximava inexoravelmente. Convencido da superioridade do
branco, só podia admitir o negro na condição de escravo e nunca numa posição de
igualdade com o branco. Que fazer então com essa população negra uma vez posta
em liberdade e cuja multiplicação ainda poderia submergir a raça branca?"

Para Maury, "Deus em Sua própria e sábia providência ditará o destino a ser
cumprido pelas raças preta e branca, seja ele qual for".

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"E Deus preservara a Amazônia deserta e desocupada para que os problemas do


Sul pudessem ser resolvidos - prossegue Vilela Luz -. Acuados ao Norte onde não
encontrariam mais terras do Mississipi por desbravar nem mais campos de algodão
por subjugar, os sulistas, para se livrarem do seu excesso de população negra,
salvando ao mesmo tempo sua economia e sua 'peculiar' instituição, encontrariam a
safety valve mais ao Sul, no vale amazônico. Era 'o único raio de esperança' a
iluminá-los naquele momento dramático em que se discutia o destino do regime da
escravidão nos Estados Unidos".

Estados desunidos - Voltemos à ficção de Lobato. Para Miss Jane, os negros se


batiam por uma solução muito mais viável: queriam a divisão do país em dois, o sul
para os negros e o norte para os brancos, já que a América surgira do esforço
conjunto de ambas as raças. Se não era possível gozar juntas da obra feita em
comum, o razoável seria dividir o território em dois pedaços. Temos então, já no
início deste século, um escritor brasileiro antecipando as propostas de líderes
negros contemporâneos como Farrakhan. É bom lembrar que nessa época Lobato
ainda não havia viajado para os Estados Unidos.

Os brancos nada queriam ceder de seu status quo e o problema tornava-se


ameaçador. É quando surge um candidato capaz de unir o eleitorado negro: Jim
Roy, de tez levemente acobreada, parecendo um mestiço de senegalês e pele-
vermelha. A cor de sua pele em nada lembrava os negros de hoje (isto é, 1926). Na
época, a ciência havia resolvido o caso de cor pela destruição do pigmento. Jim Roy,
negro de raça puríssima e cabelo carapinha, era "horrivelmente esbranquiçado". O
espírito visionário de Lobato antecipa, en passant, a tendência negra americana que
gerou um Michael Jackson, por exemplo. Inaugurando, já no início do século, a
atual categoria do "politicamente incorreto", diz o estupefato sr. Ayrton:

- Barata descascada, sei...

No entanto, nem os recursos da ciência faziam os negros deixarem de ser negros


na América. Os brancos não lhes perdoavam aquela camouflage da
despigmentação. Jim Roy, líder do partido Associação Negra, não chega a ser uma
ameaça para o poder. Representa cem milhões de negros, contra 200 milhões de
brancos. Ocorre que entre os brancos surge uma séria dissidência, um partido de
mulheres. Os velhos partidos Democrático e Republicano haviam-se fundido num
forte bloco sob a denominação de Partido Masculino, liderado por Kerlog, presidente
em exercício e candidato à reeleição. Este bloco não tinha certeza da vitória, pois o
partido contrário, o Feminino, dispunha de maior número de vozes, lideradas por
miss Evelyn Astor. As estatísticas davam ao Partido Masculino 51 milhões de votos;
ao Feminino 51,5 milhões e à Associação Negra, 54 milhões. A eleição dependia
pois da atitude de Jim Roy.

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Aproximam-se as eleições. Que, no ano da graça de 2.228, ocorrem em poucos


minutos, em função de avanços tecnológicos previstos por Lobato, que anunciam
nosso mundo de hoje, 1998.

A vitória negra - É esta possibilidade de "radio-transportar" os dados que opera


uma reviravolta nas eleições de 2.228, nos Estados Unidos. Jim Roy vai explorar
com habilidade este dado novo, a velocidade. As eleições haviam sido marcadas
para as 11h da manhã e durariam apenas 30 minutos. O candidato da Associação
Negra avisa os agentes distritais que só às 10h anunciará o nome em que os negros
devem votar. Ao anunciá-lo, a desconfortável surpresa: Jim Roy se anuncia como
candidato.

Para pasmo de todos, depois de 87 presidentes brancos, surgia o primeiro


presidente negro, eleito por 54 milhões de irmãos de sangue. Os partidos Masculino
e Feminino haviam mais ou menos empatado, com algo em torno de 50 milhões e
meio de votos. Passada a perplexidade, negros e brancos caem na realidade do dia
seguinte. Para Kerlog, 87º presidente dos Estados Unidos e candidato derrotado,
surge uma dor de cabeça histórica: ele vê na vitória negra a América transformada
num vulcão e ameaçada de morte. Considera que se não forem mantidas presas as
rédeas dos dois monstros - a ebriedade negra e o orgulho branco -, a chacina será
espantosa. Seis líderes brancos reúnem-se em convenção e discutem uma solução
para o impasse. A solução, mantida em sigilo, é aceita por unanimidade. Na época,
John Dudley, inventor e um dos membros da convenção, descobrira os raios
Omega, que tinham a propriedade miraculosa de modificar o cabelo africano. Com o
tratamento, o mais rebelde pixaim se tornava não só liso, mas também fino e
sedoso como o cabelo do mais apurado tipo de branco. Os raios Omega influíam no
folículo e eliminavam o encarapinhamento, último estigma da raça negra, que já
havia resolvido o problema da pigmentação. Lobato, em sua ficção, está
antecipando a "escova progressiva" dos dias atuais.

A solução branca - Ainda não recuperados das emoções da vitória, cem milhões
de criaturas agradeciam aos céus a nova descoberta, que redundaria em um
aperfeiçoamento físico da raça. O pigmento fora destruído mas o esbranquiçamento
da pele não revelava cor agradável à vista. Com os raios Omega, tinham esperança
de obter com o tempo a perfeita equiparação cutânea.

Em todos os bairros de todas as cidades, a Dudley Uncurling Company estabeleceu


Postos Desencarapinhantes, que se multiplicaram ao infinito, como se uma força
oculta empurrasse a empresa do inventor dos raios Ômega ao
desencarapinhamento da América Negra no menor espaço de tempo possível.

Era dos mais simples o processo. Três aplicações apenas, de três minutos cada

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uma, ao custo de dez centavos por cabeça, faziam com que os negros acorressem
aos postos como cães famintos. Os brancos, inicialmente irritados com o que
chamavam de "a segunda camouflage do negro", acabaram se divertindo com o
espetáculo da súbita transformação capilar de cem milhões de criaturas.

Na véspera do dia da posse, Jim Roy, em sua residência particular, sonhava o maior
sonho já sonhado no continente, quando seu criado lhe anuncia a visita de "um
homem branco natural". Era o presidente Kerlog, o adversário derrotado. Que
anuncia ao líder negro não existir moral entre raças, como não há moral entre
povos. Há vitória ou derrota.

- Tua raça morreu, Jim...

Os raios Omega de John Dudley tinham uma dupla virtude: ao mesmo tempo que
alisam os cabelos, esterilizavam o homem. No dia em que seria empossado o 88º
presidente dos Estados Unidos, o primeiro presidente negro da América, Jim Roy
aparece morto em seu gabinete de trabalho. Os negros pensaram imediatamente
em crime e chegou a haver um movimento de revolta. Mas o fatalismo ancestral
superou o ódio e o imenso corpo sem cabeça recuou instintivamente e repôs-se no
humilde lugar de onde a vitória de Roy o tirara. Procederam-se novas eleições e
Kerlog foi reeleito por 100 milhões de votos. A vida da América voltou à
normalidade.

Estrangulada a circulação da seiva, a raça extinguiu-se num crepúsculo indolor.


Nem exportação para a Amazônia, nem divisão do país, nem esbranquiçamento
com a eliminação do pigmento e da carapinha. Mas extinção pura e simples de uma
raça para o pleno desabrochar da Super-Civilização Ariana...

Em sua autobiografia, Testamento para El Greco, Nikos Kazantzakis nos fala de


certos lábios e pontas de dedos sensíveis que sentem um formigamento ao
aproximar-se a tempestade. Monteiro Lobato, criador sensível, sentia aproximar-se
a catástrofe, o mais colossal empreendimento de extermínio em massa já ousado
na História. Antes de morrer, ainda viu o bisturi germânico tentando extirpar uma
etnia. Só enganou-se quanto à geografia.

Nestes dias de junho de 98, a imprensa internacional nos traz uma espantosa
confirmação da hipótese de Lobato. Dan Goosen, cientista responsável por um
laboratório secreto durante o apartheid na África do Sul, revela que o governo
daquele país tentou desenvolver uma bactéria que poderia ser mortal ou causar
infertilidade somente em pessoas com pigmentação de pele escura. Em declarações
à Comissão da Verdade e Reconciliação para a África do Sul (CVR), disse um outro
pesquisador, o dr. Daan Jordan: "Meu trabalho era desenvolver um produto que
reduzisse a taxa de natalidade da população negra". Este produto, que não chegou

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a ser desenvolvido, seria distribuído entre os negros, possivelmente misturado à


cerveja de sorgo ou à farinha de milho (consumidos basicamente pela população
negra) ou usado em uma campanha de vacinação. Por pouco, a vida não imitou a
arte.

Taubateano antecipa a Internet - Além de aventar uma possível evolução da


questão negra nos Estados Unidos, Lobato angustiava-se com o desperdício de
energia e "os milhões de veículos atravancadores de espaço" - e isso nos primórdios
do século - necessários para o deslocamento do homem até o trabalho ou lazer. Via
a salvação na "fecunda descoberta das ondas hertzianas e afins". O trabalho, o
teatro, o concerto passam então a vir ao encontro do homem. As condições do
mundo se transformam quando a maior parte das tarefas, industriais e comerciais
começam a ser feitas de longe pelo que Lobato chama de "rádio-transporte".

Há três quartos de século, antes mesmo de sua viagem aos Estados Unidos, Lobato
antevia o fim da maneira de fazer jornalismo da época e antecipava o que hoje é
rotina em qualquer redação deste final de milênio. Através de miss Jane, o escritor
de Taubaté começa a descrever a sociedade americana do futuro:

"Pelo sistema atual - Lobato refere-se a 1926, quando ainda escrevia no Estado de
São Paulo - o colaborador ou escreve em casa o seu tópico ou vai escrevê-lo na
redação; depois de escrito, passa-o ao compositor; este o compõe, passa-o ao
formista, este o enforma e passa-o ao tirador de provas; este tira as provas e
manda-o ao revisor; este o revê e envia-o ao corretor; este faz as emendas e... e a
coisa não acaba mais! É uma cadeia de incontáveis elos, isto dentro das oficinas,
pois que o jornal na rua dá início à nova cadeia que desfecha no leitor - correio,
agentes, entregadores, vendedores, o diabo".

Toda essa complicação desapareceria. Cada colaborador do Remember, jornal


criado na ficção lobatiana, "radiava" de sua casa - como estou fazendo agora -,
numa certa hora, o seu artigo, e imediatamente suas idéias surgiam impressas em
caracteres luminosos na casa dos assinantes.

Numa época em que computador, fibras óticas e satélites pertenciam ao universo


mental de visionários, Lobato fala de rádio-transporte. Se substituirmos esta
expressão por modem, temos o criador de Bentinho e Jeca Tatu antecipando, há
sete décadas, um jornal que já existe. Seus correspondentes há muito enviam seus
"caracteres luminosos" para suas redações. Daí ao leitor recebê-los numa tela em
sua casa, basta uma decisão administrativa, já tomada por centenas de empresas
no Brasil e no mundo ocidental. E quando o acervo da literatura universal estiver
digitalizado, poderá consultar, de sua casa, todas as bibliotecas do mundo.

Além da era da roda - "As ruas tornaram-se amáveis, limpas e muito mansas de

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tráfego" - continua Lobato -. "Por elas deslizavam ainda veículos, mas raros, como
outrora nas velhas cidades provincianas de pouca vida comercial. O homem tomou
gosto no andar a pé e perdeu os seus hábitos antigos de pressa. Verificou que a
pressa é índice apenas de uma organização defeituosa e anti-natural. A natureza
não criou a pressa. Tudo nela é sossegado".

Esta previsão, melhor creditá-la ao pendor utópico do escritor, que não chegou a
vislumbrar este lado provinciano do brasileiro, que se sente despido e humilhado se
não tiver uma carroça sobre quatro rodas. Enfim, para sonhar não se paga imposto.
Mas Lobato vai mais longe. Miss Jane considera superada a revolução da roda.
Segundo a moça, "o homem deu o primeiro grande passo em matéria de transporte
com a invenção da roda. Mas ficou nisso. Repare que a nossa civilização industrial
se cifra em desenvolver a roda e extrair dela todas as possibilidades. Daqui a
séculos, quando for possível ao homem uma ampla visão de seu panorama
histórico, todo este período que vem do albor da história e ainda vai prolongar-se
por muitas gerações receberá o nome de Era da Roda".

O rádio matará a roda, segundo Miss Jane. "A roda, que foi a maior invenção
mecânica do homem e hoje domina soberana, terá seu fim. Voltará o homem a
andar a pé. O que se dará é o seguinte: o rádio-transporte tornará inútil o corre-
corre atual. Em vez de ir todos os dias o empregado para o escritório e voltar
pendurado num bonde que desliza sobre barulhentas rodas de aço, fará ele o seu
serviço em casa e o radiará para o escritório. Em suma: trabalhar-se-á à distância".

Lobato fala em rádio, o must dos anos 20. Se não podia prever as nuvens de
terabytes diariamente transmitidas de um ponto a outro do planeta pela WEB,
intuiu muito bem suas conseqüências. O teletrabalho - trabalho "radiado" para o
escritório, como diria Lobato - já é um fenômeno em expansão. Hoje, qualquer
trabalhador intelectual, desde que tenha um telefone por perto, pode enviar sua
produção para qualquer canto do mundo, refugiado num chalé no Itatiaia ou em
busca de solidão e deserto em Tamanrasset. Jornais impressos a milhares de
quilômetros de suas redações há muito não constituem mais novidade.

Segundo o historiador francês Roger Chartier, a revolução hoje em curso é muito


mais ampla que a de Gutenberg, de 1455, "pois transforma as próprias formas de
transmissão do escrito. A passagem do livro, do jornal ou do periódico, como os
conhecemos hoje, para a tela de computador, rompe com as estruturas materiais
do texto escrito. A única comparação histórica possível é a revolução no início do
cristianismo, nos séculos II e III, quando o livro da Antiguidade, em forma de rolo,
deu lugar ao livro herdado por Gutenberg, o códice, com folhas e páginas reunidas
em cadernos".

Habitantes deste final de milênio, somos testemunhas privilegiados da revolução

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intuída por Lobato. Revolução das boas, sem sangue e sem volta. Sem sequer
imaginar a existência de computadores, o escritor paulista anuncia a Internet. Cabe
lembrar que, em 1996, o Brasil foi um dos primeiros países do mundo a instituir o
voto informatizado, instituição já em funcionamento nesta ficção escrita há sete
décadas.

A biblioteca de Borges - Também ao sul do Equador, um vizinho nosso, situado às


margens do Prata, imaginava um acervo que hoje começa a tomar corpo com a
Internet. Falava de uma biblioteca em forma de esfera cujo centro cabal é qualquer
hexágono. Sua circunferência é inacessível. Existe ab aeterno e nela não há dois
livros idênticos. É ilimitada e periódica. Assim definia o Jorge Luis Borges, em um
conto datado de 1941, "A Biblioteca de Babel". Em alguma prateleira de algum
hexágono existiria um livro que era a chave e o compêndio de todos os demais.
"Algum bibliotecário o terá percorrido e é análogo a um deus".

Na Babel de Borges, há um grave problema de comunicação. A Biblioteca abarca


todos os livros. Todo conhecimento humano está disperso pelos hexágonos. O
problema é encontrar o que se busca. Milhares de funcionários lutam, se
estrangulam e morrem em busca dos livros nos corredores da biblioteca, muitas
vezes derrubados por homens de hexágonos remotos. Outros enlouquecem. O
autor exagera, o que é direito de todo ficcionista. Mas em muitas bibliotecas
contemporâneas os funcionários já usam bicicletas ou patins para buscar os livros.

Em 41, estávamos a meio século da Internet. Hoje, aos buscadores desta ficção de
Borges bastaria digitar um endereço eletrônico e teriam em segundos os livros
desejados, sem a necessidade de estrangular-se ou enlouquecer, pedalar ou
patinar, subir escadas ou cair em poços sem fundo. Hoje, um leitor de qualquer
parte do mundo, com uma placa modem em seu computador, pode acessar a
Congress Library em Washington, a Bibliothèque Nationale em Paris ou a Biblioteca
Nacional de Madri. Ou as bibliotecas da USP, Unesp e Unicamp em São Paulo. Por
enquanto, apenas bibliografia, é bom salientar. Mas a tendência é colocar o próprio
livro à disposição do usuário, o que está sendo feito pelo projeto Gutenberg e a
ABU , entre outros sites. Nestes últimos, estão a seu alcance, desde Plutarco e
Platão, até Descartes ou Marx, passando pela Bíblia, Voltaire ou Dostoievski. Por
enquanto em francês e inglês, mas já estão sendo digitalizados acervos em
português e espanhol.

Teoricamente, já se pode pensar na biblioteca total de Borges. Chegar lá é uma


questão de tempo. A biblioteca faraônica iniciada por François Mitterrand -
Tontonkhamon, para os inimigos íntimos - em Paris, concebida para armazenar
acervos futuros, com seus quatro prédios mastodônticos em forma de livro, já
nasce mais ou menos obsoleta. Seu design pertence ao passado.

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Janer Cristaldo http://cristaldo.blogspot.com/2007/04/

A pergunta "quantos livros tem sua biblioteca?" inclusive perdeu o sentido e não
mais permite uma resposta precisa. Vivemos uma época em que ninguém sabe de
quantos livros dispõe em seu gabinete de trabalho. Os livros ao alcance de sua mão
- ou de seu mouse - são tantos quanto os que estão digitalizados e disponíveis na
grande rede, esteja você morando em qualquer aldeia do fim do mundo. Desde, é
claro, que tenha uma linha telefônica por perto.

Borges plagia Lobato - Borges, sonhador irrecuperável, antecipa em suas ficções


a biblioteca sonhada por todo bibliófilo, hoje em construção. Mas o autor vai mais
longe em seu desejo de futuro. Em "El Aleph", conto publicado em 1949, Borges
nos fala do peculiar poeta Carlos Argentino, que se propõe nada menos que
"versificar toda a redondez do planeta". Carlos, que está construindo sua obra a
partir de seu quarto, entra em pânico quando lhe noticiam a demolição de sua
velha casa na Calle Garay. Pois nela, em algum ponto de uma escada no porão,
existe um aleph, "o lugar onde estão, sem confundir-se, todos os lugares do
mundo". A partir daquela pequena esfera, de dois ou três centímetros de diâmetro,
Carlos Argentino perscrutava o mundo, a fonte de seu poema colossal. Vejamos a
descrição do aleph, feita por Borges em 1949.

O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico


estava ali, sem diminuição de tamanho. Cada coisa (a face do espelho, digamos)
era infinitas coisas, porque eu claramente a via desde todos os pontos do universo.
Vi o populoso mar, vi a alba e vi a tarde, vi as multidões da América, vi uma teia
prateada no centro de uma negra pirâmide, vi um labirinto rompido (era Londres),
vi intermináveis olhos imediatos perscrutando-se em mim como em um espelho, vi
todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu, vi em um pátio da rua Soller os
mesmos ladrilhos que há trinta anos vi no saguão de uma casa em Fray Bentos, vi
racimos, neve, tabaco, veios de metal, vapor de água, vi convexos desertos
equatoriais e cada um de seus grãos de areia, vi em Inverness uma mulher que não
esquecerei, vi a violenta cabeleira, vi o altivo corpo, vi um câncer no peito, vi um
círculo de terra seca em uma vereda, onde antes houve uma árvore, vi um sítio em
Adrogué, um exemplar da primeira versão inglesa de Plínio, a de Philemon Holland,
vi ao mesmo tempo cada letra de um volume (quando criança, eu me maravilhava
com o fato de que as letras de um volume fechado não se misturassem e se
perdessem no transcurso da noite), vi a noite e o dia contemporâneo, vi um pôr-
de-sol em Querétaro que parecia refletir a cor de uma rosa em Bengala, vi meu
dormitório sem ninguém, vi em um gabinete de Alkmaar um globo terrestre entre
dois espelhos que o multiplicavam ao infinito, vi cavalos de crinas enredadas. Em
uma praia do mar Cáspio vi a alba, vi a delicada ossadura de uma mão, vi os
sobreviventes de uma batalha, enviando cartões postais, vi em uma vitrine de
Mirzapur um baralho espanhol, vi as sombras oblíquas de fetos no chão de uma
estufa, vi tigres, êmbolos, bisões, maremotos e exércitos, vi todas as formigas que

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Janer Cristaldo http://cristaldo.blogspot.com/2007/04/

há na terra, vi um astrolábio persa, vi em uma caixa do escritório (e a letra me fez


tremer) cartas obscenas, incríveis, precisas, que Beatriz havia dirigido a Carlos
Argentino, vi um adorado monumento em La Chacarita, vi a relíquia atroz do que
deliciosamente havia sido Beatriz Viterbo, vi a circulação da morte, vi o Aleph,
desde todos os lados, vi no Aleph a terra, e na terra outra vez o Aleph e no Aleph a
terra, vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto, e senti vertigem e chorei,
porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjetural, cujo nome os
homens usurpam, mas que nenhum homem mirou: o inconcebível universo.

Contemporaneamente, não falaríamos em aleph, mas em webcams, a rede


incipiente de câmeras onde, se não podemos ver o universo em sua totalidade,
podemos bisbilhotar cada vez mais seus pontos mais longínquos. Hoje, de minha
mesa de trabalho, posso ver o quarto de Jennifer e a praça do Kremlin, uma ponte
em Liljestrom, na Suécia, e a faina diária de uma formiga, uma universidade imersa
na escuridão no norte da Noruega e um papagaio na Austrália, a torre Eiffel e as
lavas candentes de um vulcão. Sem falar, é claro, nos livros da biblioteca de Babel
em construção.

Monteiro Lobato, para consultar o futuro, cria em O Presidente Negro um


aparelho semelhante, o porviroscópio, uma espécie de globo cristalino, através do
qual Miss Jane perscruta o mundo do século 23. O professor Benson obtem, neste
aparelho,

uma corrente contínua, que é o presente. Tudo se acha impresso em tal corrente.
Os cardumes de peixe que neste momento agonizam no seio do oceano ao serem
apanhados pela água tépida do Golfo, o juiz bolchevista que neste momento assina
a condenação de um mujik relapso num tribunal de Arkangel; a palavra que, em
Zorn, neste momento, o kronprinz dirige ao ex-imperador da Alemanha, a flor do
pessego que no sopé do Fushiama recebe a visita de uma abelha; o leucócito a
envolver um micróbio malévolo que penetrou no sangue dum fakir da Índia; a gota
d?água que espirra do Niágara e cai num líquen de certa pedra marginal; a matriz
de linotipo que em certa tipografia de Calcutá acaba de cair no molde; a
formiguinha que no pampa argentino foi esmagada pelo casco do potro que passou
a galope; o beijo que num estudio de Los Angeles Gloria Swanson começa a
receber de Valentino...

A forma como o visionário de Taubaté descreve o universo vislumbrado no


porviroscópio é quase idêntica à descrição do Aleph, publicada 23 anos mais tarde.
O achado de Borges revela-se uma paráfrase do texto lobatiano. Se considerarmos
que Borges conhecia a literatura de Lobato, e que este viveu em Buenos Aires em
1946, três anos antes da publicação de "El Aleph", é bastante pertinente supormos
que o autor argentino andou bebendo na cacimba de nosso taubateano. Enquanto
os sedizentes modernistas de 22 papagueavam Marinetti, Marx e outros

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Janer Cristaldo http://cristaldo.blogspot.com/2007/04/

doutrinadores totalitários europeus, Lobato, o escritor excluído do universo


intelectual pelos seus contemporâneos, olhava meio século adiante.

(Artigo publicado em junho de 1998)

- Enviado por Janer @ 6:07 PM

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