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KRAFFT-EBING
ABSTRACT: The aim of this article is critically revisit the arguments that
made the inclusion of homosexuality in the field of psychopathology possible
in the late nineteenth century. To this end, a literature review and an analysis
of a particular work was performed. The book in question is Psychopathia
Sexualis, in which the author, Richard von Krafft-Ebing, categorizes homo-
sexuality as a pathology in 22 of its cases. According to the book the author
strives to enroll arguments and to investigate hypotheses that could give the
homosexual status of sick and so include him in the list of medical objects,
and also subjected to its action. The objective of this criticism is to deconstruct
the arguments of this book in order to discuss the issue of homosexuality,
not only in the context of that time, but explaining it as an experience to be
considered and reflected. The criticism in question is grounded in the work
of Michel Foucault (1926-1984), who builds his analysis on the overlapping
of the knowledge, the concrete social experiences and institutions, exposing
the building processes of the true in every historical moment. Therefore, ho-
mosexuality is understood as an experience that overflows the boundaries of
the scientific discourse.
Keywords: Psychopathology. Homosexuality. Foucault.
sobre a questão como mais fidedigno do que era manifesto inicialmente com sonhos e
o então analisado. masturbação estimulada por pensamentos
Ao iniciar a análise crítica, devemos ter ligados a homens, e narra-se que esses fatos
em vista o contexto histórico e a influência ocorriam entre os 7 e os 15 anos de idade. O
cultural presente nos casos descritos (Europa sentimento homossexual descrito em todo
no auge de sua moral vitoriana, contexto que livro, baseia-se na satisfação sexual com
reprovava moralmente e coibia legalmente indivíduos do sexo masculino. A aptidão
manifestações homossexuais). Alguns pa- sexual era estimulada e encontrada quando
cientes admitiam não conseguir sair desta na relação com homens, contrapondo-se a
condição homossexual, talvez nem o dese- experiência heterossexual, a qual mostrava-
jassem, mas apenas gostariam de viver uma se impossível, ou na qual o prazer era menor
vida em sociedade tal qual aquela vivida entre ou inexistente.
os heterossexuais: nota-se que a experiência Os argumentos que levam Richard von
junto à intolerância converte-se em uma Krafft-Ebing a admitir a homossexualidade
espécie de demanda terapêutica. Em de- como anormal estão descritas em tentativas de
poimento, afirmavam procurar “tratamento” justificar uma heteronormatividade, ou seja,
a fim de viver de forma dita como normal, um discurso que ampara somente as relações
como no seguinte caso: “[...] por ocasião entre seres anatomicamente opostos (o macho
de uma consulta, em dezembro de 1889, [o e a fêmea) e que as relações maritais seriam
paciente ‘X’] perguntou-me se havia algum concebíveis somente entre sexos diferentes.
meio de trazê-lo de volta para a condição Nota-se aí, um principio biológico, uma
sexual normal, pois não abominava de fato “naturalização” da experiência sexual huma-
as mulheres e gostaria muito de se casar” na, negando-lhe suas dimensões culturais e
(KRAFFT-EBING, 2001, p.139). Em alguns desejantes, e paradoxalmente, as expressões
casos, de acordo com leis do país, havia pu- de gênero masculino e feminino, evidente-
nição caso o ato homossexual se desse em mente culturais, são hipervalorizadas, e o
flagrante, como no caso de “X. Y., médico que foge aos padrões regulares de conduta é
de uma cidade renomada da Alemanha, [...] ignorado e/ou perseguido num âmbito social:
denunciado por um vigia enquanto cometia a heteronormatividade apoia-se na natureza,
uma contravenção com um camponês num em sentido biológico, a fim de reafirmar os
campo. Estava praticando masturbação ditames culturais. Nesses termos,
nele[...]” (idem p.188). Em um caso mais
Para definir a normalidade em relação
radical, o depoimento consta que o paciente
à qual determinados comportamentos
“[...] procurou ajuda médica para encontrar sexuais serão considerados desviantes,
‘honra e descanso’” (ibid, p.188). O modo Krafft-Ebing buscará recurso à noção bio-
como “as curas” eram buscadas explicita a lógica, portanto natural, de “preservação
condição vivenciada pelos homossexuais: o da espécie”. O prazer obtido da relação
sentimento de impossibilidade em conviver sexual será natural na medida em que con-
em sociedade e dar livre curso a sua forma tribua para a reprodução. Todo erotismo
de expressar a sexualidade. praticado fora desse contexto deverá ser
considerado como desviante. Sob esse
Os casos de homossexuais masculinos
prisma, deverão ser consideradas como
mencionados no livro teriam idades entre “perversão sexual” todas as satisfações
24 e 42 anos, e em alguns casos não foram eróticas cujo objetivo não seja a preser-
mencionadas as idades correspondentes. vação da espécie (LANTERI-LAURA,
Em sua grande maioria, o desejo “anormal” apud PEREIRA, 2009, p.382).
Ainda na esteira das causas orgânicas, mento físico, mental e moral dessa população
o autor tenta atribuir a algumas doenças (urbana e burguesa).
parentais ligadas à insanidade mental, como Para Krafft-Ebing, a homossexualida-
condições potenciais para o desenvolvimento de era concebida de formas distintas, não
do desejo homossexual. Krafft-Ebing insinua haveria uma forma ou causa única, chegou a
uma “causa orgânica hereditária”, “Sr. X., 35 indiciar que ela poderia ser adquirida através
anos, solteiro, funcionário civil; mãe insana, de estímulos ambientais. Em um caso em
irmão hipocondríaco” (KRAFFT-EBING, específico, o autor insinua que a homossexu-
2001, p.127); “N., 41 anos, celibatário. Pai alidade poderia ter sido adquirida, e a associa
e mãe parentes próximos, mas ambos psi- a um fetiche por pés. Hipótese escancarada
quicamente normais. Um tio do lado paterno no título do caso: “Caso 91. Fetichismo/
era insano” (idem, p. 187); “K, 30 anos, Homossexualidade adquirida”. O autor ar-
na família de sua mãe havia vários casos gumenta que o excesso de masturbação teria
de insanidade” (ibid., p.173). Presente na sido significativo para desencadear desejos
maioria dos casos, essas descrições médicas por homens e pés masculinos, “Sem dúvida
envolviam, além de dados do paciente, his- foi a masturbação excessiva que provocou a
tóricos sobre as condições mentais e físicas neurose e a sexualidade invertida, para a qual
de seus pais, irmãos, tios. Explicita-se uma foi levado pela libido intensa, insaciada pelo
possível associação entre doenças parentais coito e pela visão (acidental ou não) de pés
e a condição do paciente, como possível femininos” (KRAFFT-EBING, 2001, p.97).
causa de desenvolvimento de tal “anomalia Para ele, uma vez que o paciente havia admito
sexual”, uma suposta degeneração orgânica ter sucesso com o sexo heterossexual, esse
hereditária. desejo em relação a homens fazia parte do
Outro aspecto evidenciado pelo autor está fetiche que havia se desenvolvido e, portanto,
em atribuir a alguns atos ou experiências pon- submetendo-se a tratamento poderia manter
tuais as possíveis causas do aparecimento do relações exclusivamente com mulheres. Ape-
desejo homossexual. Como exemplo disso, sar de sucesso no coito, o paciente se manteve
consta a seguinte narrativa: “[...] paciente com a “anomalia”, afirmando o médico que
saudável [...] manifestou poderoso instinto seu estado mental degradado não poderia ser
sexual anormalmente cedo, e ainda era um reestabelecido com a ajuda terapêutica.
menino pequeno quando começou a se mas- Conceber algo como uma doença implica
turbar” (KRAFFT-EBING, 2001, p.138) e na possibilidade de idealizar a cura de tal es-
não raro, em quase todos os casos descritos tado ou condição, constitui-se um objeto para
a masturbação é citada como uma provável o saber e um poder de intervenção correlato a
causa para o homossexualismo. Sobre essa ele. Ao conceber a homossexualidade como
atribuição de um potencial iatrogênico à doença, Kraff-Ebing desenvolveu possíveis
masturbação no século XIX, Foucault (2002) curas e prognósticos sobre a mesma, insis-
realizou grande explanação. Seus estudos tindo em métodos terapêuticos, abstenções
apontam que tal argumento foi uma “ficção e substituições de atividades, como um
médica” que viabilizou o controle sobre a possível tratamento que acreditava viável.
intimidade familiar, principalmente no que se Nos seus escritos, havia algumas recomen-
refere à conduta das crianças. De tal modo, dações, ou prescrições, as quais fazia aos
vigiar os espaços restritos da família burguesa que procuravam sua ajuda, essas consistiam
e confessá-los ao médico, se tornaram uma em “[...] combate enérgico contra os desejos
obrigatoriedade em prol do bom desenvolvi- homossexuais, convivência com senhoras,
e por fim, coito”. (KRAFFT-EBING, 2001, cimento de parentes próximos objeto de in-
p.174) e “[...] combater arduamente esses vestigação; a masturbação, inquietante fator
impulsos homossexuais, desempenhar seus gerador de toda sorte de doenças; bem como
deveres maritais sempre que possível, abster- as experiências que ora possuem o status de
-se de álcool e masturbação, o que aumenta realização de um desejo, ora de sua causa
os sentimentos homossexuais e mata o amor inicial. Em relação aos “tratamentos”, nota-se
pelas mulheres” (KRAFFT-EBING, 2001, p. uma exigência de repressão do impulso ho-
181). Nota-se que, para o autor, a aniquilação mossexual e o empreendimento de tentativas,
dos desejos homossexuais poderia provir de mesmo que repulsivas, de contato com o sexo
não os praticar, e abster-se de masturbação oposto. Nesta esteira, um prognóstico ruim se
também, uma vez que para o autor, ela se apresenta como destino óbvio para a maioria
mostra como um fator causal da homosse- dos casos apresentados: tal “transtorno” tal-
xualidade. vez seria, em muitos pacientes, incurável. Aí
Outro caso correntemente citado residia reside uma importante incoerência médica, já
na “ajuda terapêutica” que poderia vir a ser apontada por Foucault (2002), o anormal é
encontrada em prostíbulos (a prostituição tomado como objeto de uma intervenção, de
é tema recorrente nos mais diversos casos, antemão, tida como fracassada.
também frente a outras “patologias”), como Por fim, cabe considerar que a forma
relatou um paciente: “[...] como estava cada como Krafft-Ebing manifestou sua apologia
vez mais fraco, devido à perda de sêmen, à natureza orgânica, evidenciando como ade-
e com apetite sexual tornando-se cada vez quadas somente experiências pertinentes aos
mais intenso, passei a procurar casas de indivíduos heterossexuais em relação sexual
prostituição. Mas ali não encontrava satisfa- genital, diagnosticando condições diversas
ção” (KRAFFT-EBING, 2001, p.139), nesse como doenças ou perversões, normatiza a
sentido, as “curas” propostas pelo autor se experiência sexual em limites não-humanos:
mostram ineficientes em grande parte, ainda a amplitude do erotismo em geral, para além
que este alegue ser uma responsabilidade da experiência homossexual, sofre importan-
do paciente não ser possível a realização do te disciplinamento médico e normatização
tratamento indicado. Abater o desejo que nosológica.
encaminhava o sujeito à experiência sempre
se mostrou pouco provável, como em outro
caso analisado: “[...] mas durante o verão Sobre as Críticas Foucaultianas
ainda experimentava impulsos homosse- Acerca do Saber Psiquiátrico:
xuais” (KRAFFT-EBING, 2001, p.174),
essas declarações comprovam que, apesar da De acordo com Machado (2007), se tem
abstenção do ato homossexual e da sujeição em Foucault, primeiro, a narrativa de um
ao coito com mulheres, o tratamento não se embuste empreendido por uma medicina
mostrava efetivamente válido. epistemologicamente frágil, moral e juri-
Em síntese, percebeu-se em Krafft-Ebing dicamente engajada, a psiquiatria, cujos
a articulação de argumentos causais como a parâmetros de ação iniciais não sofreram
“natureza”, entenda-se, a constituição física grandes mudanças até meados do século
dos sujeitos e sua atuação sexual destinada XX, e que se trama em um processo de cisão
prioritariamente para a procriação, realidade política e filosófica entre razão e desrazão,
que seria subvertida pela homossexualidade; empreendido às portas da Modernidade (crí-
a degeneração hereditária, que fazia do adoe tica presente na obra História da Loucura
instituições atuais, apoiarem-se nos valores indagar até que ponto não estamos às voltas
atuais, serem produzidas nos moldes atuais, com esforços para a superação de preconcei-
etc.), nos pareceriam plausíveis ao ponto de tos derivados do saber científico de outrora,
não percebermos suas inconsistências? Esta (pré)conceitos com uma aguda capacidade
é a indagação que fomenta e justifica esta de impregnar a experiência e desdobrar-se
forma de estudo. em repercussões práticas.
O homossexual, este outro perigoso do
século XIX, que desvirtua o destino natural
Considerações Finais pensado por uma ciência engajada em fer-
vores darwinistas, já teve olhares diversos,
A sexualidade humana, em marcante como por exemplo, o elogio social da
ruptura com a experiência de reprodução dos Antiguidade grega, onde se fazia digno de
demais animais, carrega as marcas da subje- estar explicitamente presente, inclusive nos
tividade, o modo idiossincrático como ela se diálogos platônico-socráticos. Mas antes de
constitui, bem como as marcas da cultura na pensarmos que tal estado seria uma condi-
qual ele emerge – a sexualidade é nomeada, ção de melhor acolhimento da diversidade
classificada, moralmente avaliada, de acor- sexual, cabe ponderar que tal concepção
do com as verdades de seu tempo. Todas as acerca da experiência homossexual era fruto
expressões de sexualidade são constituídas de uma sociedade a tal ponto falocêntrica,
para além dos corpos, em uma dimensão que via a relação com as mulheres como um
discursiva. ultrajante dever.
A obra aqui analisada teve sua pertinência O desafio seria, então, pensar o presente e
em um contexto específico, participando de o que agora se faz desta experiência. Tomá-
um grande esforço de apreensão médico- -la como um objeto filosófico, e não médico,
científica da experiência humana. Embora psicológico ou jurídico como outrora, a fim
hoje soe grosseira ou preconceituosa, ela de problematizá-la em amplo diálogo com
correspondia às verdades de sua época, dia- a realidade cultural, científica e jurídica na
logava de modo coeso com a moral, as insti- qual se insere. Seria como deixar de buscar
tuições e os demais saberes daquele contexto. “a verdade” sobre a homossexualidade, uma
Ao assistimos a uma tentativa de reedi- verdade que enquadra, que torna a experiên-
ção nacional de dispositivos de segurança cia e os sujeitos nela envolvidos objeto de
que visam “salvaguardar a família” ou “a intervenções e classificações, pondo no lugar
infância” de uma supostamente perniciosa deste esforço, o debate sobre as verdades
presença do homossexual, empreendida por que se instituem no regime discursivo atual
parlamentares religiosos, mas que se utilizam e seus impactos sobre os modos de viver a
de termos como anormalidade e cura, caberia sexualidade.
REFERÊNCIAS
DREYFUS, H. L.; RABINOW, P. Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além do
estruturalismo e da hermenêutica. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária: 2013.
FOUCAULT, M.. História da sexualidade 1: a vontade de saber. 14.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2001.