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Processo: 589/08.6PBVLG.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: PIRES DA GRAÇA
Descritores: HOMICÍDIO QUALIFICADO
RELAÇÃO ANÁLOGA À DOS CONJUGES
ESPECIAL CENSURABILIDADE
ESPECIAL PERVERSIDADE
CULPA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 21-10-2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário : I -O tipo legal fundamental dos crimes contra a vida encontra-se
descrito no art. 131.º do CP, sendo desse preceito que a lei parte para,
nos artigos seguintes, prever as formas agravada e privilegiada, fazendo
acrescer ao tipo-base, circunstâncias que qualificam o crime, por
revelarem especial censurabilidade ou perversidade ou que o
privilegiam por constituírem manifestação de uma diminuição da
exigibilidade.
II - A especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o art.
132.º do CP, sendo conceitos indeterminados, são representadas por
circunstâncias que denunciam uma culpa agravada e são descritas como
exemplos-padrão. A ocorrência destes exemplos não determina,
todavia, por si só e automaticamente, a qualificação do crime; assim
como a sua não verificação não impede que outros elementos possam
ser julgados como qualificadores da culpa, desde que sejam
substancialmente análogos aos legalmente descritos.
III -A partir da verificação de circunstâncias que o legislador elegeu,
como “efeito de indício”, interessará ver se não concorrerão outros
factos que, funcionando como “contraprova”, eliminem a especial
censurabilidade ou perversidade do acontecido, globalmente
considerado.
IV -O cerne do referido ilícito está, assim, na caracterização da acção
letal do agente como de especial censurabilidade ou perversidade face
às circunstâncias em que, e como, agiu, ou dito de outro modo, está nas
circunstâncias reveladoras ou não de especial censurabilidade ou
perversidade que integram a acção letal do agente.
V - A actual versão da al. b) do n.º 2 do art. 132.º foi introduzida na
revisão do CP pela Lei 59/2007, de 04-09, incluindo, assim, “uma nova
circunstância qualificativa do homicídio que é a relação conjugal ou
análoga, incluindo-se a união de facto, ainda que entre pessoa do
mesmo sexo”.
VI -No caso de arguido que, insatisfeito e desagradado pelo facto de a
sua ex-companheira não pretender reatar com ele a vida em comum,
que, durante o trajecto de regresso adquiriu uma faca, e que quando
acompanhava a mesma ex-companheira, na sequência de discussão
sobre o relacionamento de ambos, de forma brusca e bárbara, sucessiva
e intensivamente, a golpeou, com a referida faca, provocando-lhe
ferimentos corto-perfurantes de que resultaram lesões (que lhe
causaram a morte), que bem denotam a violência e persistência no
propósito de matar, atacando-a assim de surpresa, com essa faca
pontiaguda, sem qualquer consideração pela vida humana e pela
relação de similitude conjugal, pois que se tratava da sua companheira
durante dez anos, e de quem tinha dois filhos menores, temos uma
actuação que revelou especial censurabilidade e perversidade, de forma
a concluir-se que cometeu o crime de homicídio qualificado.
VII - O modelo de prevenção acolhido pelo CP – porque de protecção
de bens jurídicos – determina que a pena deva ser encontrada numa
moldura de prevenção geral positiva e que seja definida e
concretamente estabelecida também em função das exigências de
prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição
utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
Dentro dessa medida de prevenção (protecção óptima e protecção
mínima – limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz,
face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que
se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de
protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção
especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder
ultrapassar a medida da culpa.
VIII - As imposições de prevenção geral devem, pois, ser
determinantes na fixação da medida das penas, em função da
reafirmação da validade das normas e dos valores que protegem, para
fortalecer as bases da coesão comunitária e para aquietação dos
sentimentos afectados na perturbação difusa dos pressupostos em que
assenta a normalidade da vivência do quotidiano.
IX - Porém, tais valores determinantes têm de ser coordenados, em
concordância prática, com outras exigências, quer de prevenção
especial de reincidência, quer para confrontar alguma responsabilidade
comunitária no reencaminhamento para o direito, do agente do facto,
reintroduzindo o sentimento de pertença na vivência social e no
respeito pela essencialidade dos valores afectados.
X - As circunstâncias factuais determinativas da aplicação do direito e
da medida concreta da pena são apenas aquelas que constam da decisão
em matéria de facto – matéria de facto provada – e não a
instrumentalidade fáctica em que eventualmente se apoiasse o
raciocínio ponderativo dos julgadores para firmarem a sua convicção,
mas não referenciada ou acolhida na decisão da matéria de facto
apurada.
XI - Valorando, no caso em apreço:
- o grau de ilicitude do facto – o mais elevado, pois que a violação do
direito à vida é o bem primeiro, o suporte de todos os bens da tutela
jurídica;
- o modo de execução – através de uso de uma faca de cozinha;
- a gravidade das consequências – atinentes à quantidade, natureza e
características das lesões que directa e necessariamente produziram a
morte;
- a intensidade do dolo – específico, pois que o arguido quis atingir a
sua ex-companheira, de forma a retirar-lhe a vida, desiderato que
logrou alcançar;
- os sentimentos manifestados no cometimento do crime –
comportamento possessivo demonstrado pelas palavras proferidas antes
de vibrar as facadas na vítima “já que não és para mim, não és para
mais ninguém”; indiferença ostensiva pela vida da vítima com quem
tinha vivido como marido e mulher durante dez anos, havendo dois
filhos dessa relação;
- os motivos e fins determinantes – agiu na sequência de uma discussão
entre ele e a vítima sobre o relacionamento entre ambos, insatisfeito e
desagradado por ela não se dispor a reatar a vida em comum;
- a condição pessoal e económica – o arguido tem 50 anos de idade, a
4.ª classe e a profissão de marceneiro,
- a conduta anterior e posterior ao facto – do seu certificado de registo
criminal nada consta;
- a falta de preparação para manter conduta lícita – embora venha
provado que apresenta a nível cognitivo um resultado inferior ao da
média; em provas de natureza verbal, apresentou valores bastante
baixos, o que “pode condicionar a capacidade de utilizar o juízo
prático, o grau de interiorização da cultura social e consciência de
sentido moral e ainda limitar o contacto com o ambiente”, com
“tendência para apelar a factores emocionais, dificultando a adaptação
a situações sociais”; “pouca capacidade de controlo quando
confrontado com situações geradoras de cargas elevadas de stress e/ou
ansiedade”, com “probabilidade significativa” de ocorrerem
comportamentos anormais ou impulsivos; tem tendência para reagir
emotivamente, com agressividade e impulsividade; não tem
interiorizado pacificamente a vida de recluso; apesar de tudo, é
considerado pacato, educado e profissional competente,
a pena aplicada de 18 anos de prisão não se revela injusta, nem
desproporcional ou contrária às regras da experiência.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça