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Acórdãos STJ Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

Processo: 589/08.6PBVLG.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: PIRES DA GRAÇA
Descritores: HOMICÍDIO QUALIFICADO
RELAÇÃO ANÁLOGA À DOS CONJUGES
ESPECIAL CENSURABILIDADE
ESPECIAL PERVERSIDADE
CULPA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 21-10-2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário : I -O tipo legal fundamental dos crimes contra a vida encontra-se
descrito no art. 131.º do CP, sendo desse preceito que a lei parte para,
nos artigos seguintes, prever as formas agravada e privilegiada, fazendo
acrescer ao tipo-base, circunstâncias que qualificam o crime, por
revelarem especial censurabilidade ou perversidade ou que o
privilegiam por constituírem manifestação de uma diminuição da
exigibilidade.
II - A especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o art.
132.º do CP, sendo conceitos indeterminados, são representadas por
circunstâncias que denunciam uma culpa agravada e são descritas como
exemplos-padrão. A ocorrência destes exemplos não determina,
todavia, por si só e automaticamente, a qualificação do crime; assim
como a sua não verificação não impede que outros elementos possam
ser julgados como qualificadores da culpa, desde que sejam
substancialmente análogos aos legalmente descritos.
III -A partir da verificação de circunstâncias que o legislador elegeu,
como “efeito de indício”, interessará ver se não concorrerão outros
factos que, funcionando como “contraprova”, eliminem a especial
censurabilidade ou perversidade do acontecido, globalmente
considerado.
IV -O cerne do referido ilícito está, assim, na caracterização da acção
letal do agente como de especial censurabilidade ou perversidade face
às circunstâncias em que, e como, agiu, ou dito de outro modo, está nas
circunstâncias reveladoras ou não de especial censurabilidade ou
perversidade que integram a acção letal do agente.
V - A actual versão da al. b) do n.º 2 do art. 132.º foi introduzida na
revisão do CP pela Lei 59/2007, de 04-09, incluindo, assim, “uma nova
circunstância qualificativa do homicídio que é a relação conjugal ou
análoga, incluindo-se a união de facto, ainda que entre pessoa do
mesmo sexo”.
VI -No caso de arguido que, insatisfeito e desagradado pelo facto de a
sua ex-companheira não pretender reatar com ele a vida em comum,
que, durante o trajecto de regresso adquiriu uma faca, e que quando
acompanhava a mesma ex-companheira, na sequência de discussão
sobre o relacionamento de ambos, de forma brusca e bárbara, sucessiva
e intensivamente, a golpeou, com a referida faca, provocando-lhe
ferimentos corto-perfurantes de que resultaram lesões (que lhe
causaram a morte), que bem denotam a violência e persistência no
propósito de matar, atacando-a assim de surpresa, com essa faca
pontiaguda, sem qualquer consideração pela vida humana e pela
relação de similitude conjugal, pois que se tratava da sua companheira
durante dez anos, e de quem tinha dois filhos menores, temos uma
actuação que revelou especial censurabilidade e perversidade, de forma
a concluir-se que cometeu o crime de homicídio qualificado.
VII - O modelo de prevenção acolhido pelo CP – porque de protecção
de bens jurídicos – determina que a pena deva ser encontrada numa
moldura de prevenção geral positiva e que seja definida e
concretamente estabelecida também em função das exigências de
prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição
utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
Dentro dessa medida de prevenção (protecção óptima e protecção
mínima – limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz,
face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que
se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de
protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção
especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder
ultrapassar a medida da culpa.
VIII - As imposições de prevenção geral devem, pois, ser
determinantes na fixação da medida das penas, em função da
reafirmação da validade das normas e dos valores que protegem, para
fortalecer as bases da coesão comunitária e para aquietação dos
sentimentos afectados na perturbação difusa dos pressupostos em que
assenta a normalidade da vivência do quotidiano.
IX - Porém, tais valores determinantes têm de ser coordenados, em
concordância prática, com outras exigências, quer de prevenção
especial de reincidência, quer para confrontar alguma responsabilidade
comunitária no reencaminhamento para o direito, do agente do facto,
reintroduzindo o sentimento de pertença na vivência social e no
respeito pela essencialidade dos valores afectados.
X - As circunstâncias factuais determinativas da aplicação do direito e
da medida concreta da pena são apenas aquelas que constam da decisão
em matéria de facto – matéria de facto provada – e não a
instrumentalidade fáctica em que eventualmente se apoiasse o
raciocínio ponderativo dos julgadores para firmarem a sua convicção,
mas não referenciada ou acolhida na decisão da matéria de facto
apurada.
XI - Valorando, no caso em apreço:
- o grau de ilicitude do facto – o mais elevado, pois que a violação do
direito à vida é o bem primeiro, o suporte de todos os bens da tutela
jurídica;
- o modo de execução – através de uso de uma faca de cozinha;
- a gravidade das consequências – atinentes à quantidade, natureza e
características das lesões que directa e necessariamente produziram a
morte;
- a intensidade do dolo – específico, pois que o arguido quis atingir a
sua ex-companheira, de forma a retirar-lhe a vida, desiderato que
logrou alcançar;
- os sentimentos manifestados no cometimento do crime –
comportamento possessivo demonstrado pelas palavras proferidas antes
de vibrar as facadas na vítima “já que não és para mim, não és para
mais ninguém”; indiferença ostensiva pela vida da vítima com quem
tinha vivido como marido e mulher durante dez anos, havendo dois
filhos dessa relação;
- os motivos e fins determinantes – agiu na sequência de uma discussão
entre ele e a vítima sobre o relacionamento entre ambos, insatisfeito e
desagradado por ela não se dispor a reatar a vida em comum;
- a condição pessoal e económica – o arguido tem 50 anos de idade, a
4.ª classe e a profissão de marceneiro,
- a conduta anterior e posterior ao facto – do seu certificado de registo
criminal nada consta;
- a falta de preparação para manter conduta lícita – embora venha
provado que apresenta a nível cognitivo um resultado inferior ao da
média; em provas de natureza verbal, apresentou valores bastante
baixos, o que “pode condicionar a capacidade de utilizar o juízo
prático, o grau de interiorização da cultura social e consciência de
sentido moral e ainda limitar o contacto com o ambiente”, com
“tendência para apelar a factores emocionais, dificultando a adaptação
a situações sociais”; “pouca capacidade de controlo quando
confrontado com situações geradoras de cargas elevadas de stress e/ou
ansiedade”, com “probabilidade significativa” de ocorrerem
comportamentos anormais ou impulsivos; tem tendência para reagir
emotivamente, com agressividade e impulsividade; não tem
interiorizado pacificamente a vida de recluso; apesar de tudo, é
considerado pacato, educado e profissional competente,
a pena aplicada de 18 anos de prisão não se revela injusta, nem
desproporcional ou contrária às regras da experiência.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

Nos autos de processo comum n° 589/08.GPVLG do 2º Juízo da


comarca de Valongo, respondeu perante o Tribunal Colectivo, na
sequência de acusação formulada pelo Ministério Público, o arguido:
- AA, de nacionalidade portuguesa, de 50 anos de idade, solteiro,
ladrilhador, natural de …, …, Cabo Verde, nascido a 26 de Setembro de
1958, filho de …, residente na Rua …, nº. …°….., Matosinhos e
actualmente preso preventivo à ordem destes autos no EP-Porto;
Imputava-lhe a prática, em autoria material, de:
-um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos art°.s 131°, 132°, n.º
s 1 e 2, alínea b), do Código Penal; e
-um crime de detenção de arma proibida, p. e p. nos termos do artigo
86°, nº 1, alínea d), por referência ao artigo 2°, n° 1, alínea l), ambos da
Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro;
Realizada a audiência de discussão e julgamento, e, homologada
transacção sobre o pedido cível oportunamente deduzido contra o
arguido pelos filhos da vítima, veio a ser proferido acórdão em 2 de
Abril de 2009, decidindo:
“julgar em parte procedente, por provada, e em parte improcedente, por
não provada, a Acusação do Ministério Público e, em consequência:
-Absolver o arguido AA da prática de um crime de detenção de arma
proibida, p. e p. pelo artigo 86°., nº.1, alínea d), por referência ao artigo
2°, nº 1, alínea l), da Lei 5/2006.
-Condenar o arguido AA, acima identificado, como autor material de
um crime de homicídio Qualificado, p. e p. pelos art°s 131°. e 132°,
nº.s 1 e 2, alínea b) do Código Penal, na pena de 18 (dezoito) anos de
prisão.
**
Obiectos: Nos termos dos artigos 109°.a 111 º., do CP, declaram-se
perdidos a favor do Estado a faca e "t-shirt" apreendidas nos autos.
**
Nos termos do artigo 213°., nº1, b), e 375°., nº4, CPP, os pressupostos,
de facto e de direito, em que assentou o decretamento e manutenção da
prisão preventiva, não só se mantêm como estão agora reforçados, pelo
que o arguido permanecerá sujeito a tal medida até ao trânsito em
julgado do presente acórdão.
**
Custas penais pelo arguido, (…).”
Ordenou-se o demais de lei.
Inconformado, recorreu o arguido, terminando a motivação de recurso
com as seguintes conclusões que se transcrevem:
“I - Decidiu-se no Douto Acórdão Recorrido, condenar o Arguido AA,
como autor material de um crime de homicídio qualificado, p. p,
pelos artigos 131.° e 132.°, n.º s 1 e 2 alínea b) do Código Penal, na
pena de 18 anos de prisão.
II - Atendendo aos factos considerados como provados, entende o
arguido que nunca a decisão poderia ser a de condenar o arguido pelo
crime de homicídio qualificado, bem como, discorda em completo da
medida concreta da pena que lhe foi aplicada, pelo que se entende por
bem recorrer da decisão ao abrigo do disposto no art.º 410, nº 1 do
C.P.P.
III - Relativamente à condenação pelo crime de homicídio
qualificado, p. p. pelos artigos 131.° e 132.°, n.º s 1 e 2 alínea b) do
C6diqo Penal, na pena de 18 anos de prisão, entende o arguido que
não resultaram quaisquer factos indiciadores ou susceptíveis de revelar
‘especial censurabilidade ou perversidade exigida pelo n. 1 do artigo
132.º do C.P. e que constitui condição sina qua non para a qualificação
do tipo. Ainda que, o facto tenha sido praticado contra a pessoa que
tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem
coabitação, ou contra progenitor de descendente de primeiro grau
(132.°, n. 2 b) do C.P.)
IV - Sendo, no entanto, o artigo 132.° do C.P, um tipo de culpa
qualificador que articula um critério generalizador (o contido no n.º 1)
com o critério especializador, enunciado através dos exemplos padrão
contidos no n.º 2, mutuamente implicantes, de forma que possa
enquadrar-se num dos exemplos padrão ou em outras circunstâncias
que lhe sejam estruturalmente análogas, não basta que elas se
verifiquem, sendo ainda necessário que, por intervenção do critério da
culpa, se possa dizer que a circunstância ocorrida se traduziu numa
especial censurabilidade ou perversidade do agente.
IV - Assim, resultando provados os factos infra discriminados, pode-se
concluir que as circunstancias em que o arguido cometeu o crime e os
momentos que se lhe seguiram, não revelam uma especial e
censurabilidade ou perversidade, ou seja, uma censurabilidade ou
perversidade distintas (pela sua anormal gravidade) daquelas que, em
maior ou menor grau, se revelam na autoria de um homicídio simples.
O facto de a vitima ser ex-companheira do arguido não é suficiente
para revelar uma especial e censurabílidade ou perversidade distinta
pela sua anormal gravidade.
i. Como era hábito do arguido, este decidiu acompanhar a vítima. que
nesse dia se deslocava a uma sessão de fisioterapia (pouco depois das
13h);
ii. O objectivo do arguido era o de retomar a vida em comum, mas
ao que a vítima se vinha opondo;
iii. No regresso, insatisfeito e desagradado com a posição dela,
enquanto a vitima por momentos entrou numa loja para pagar a luz,
dírigiu-se a um outro estabelecimento de artigos chineses, onde
adquiriu uma faca de cozinha:
iv. Faca essa que guardou e conservou dentro de um saco plástico e
transportou na sua posse enquanto continuou a acompanhá-la rua fora e
no parque;
v. Até que, cerca das 14h30m, na sequência de uma discussão entre
ambos sobre o seu relacionamento, o arguido empunhou a referida
faca e dizendo “já que não és para mim, não és para mais
ninguém" com ela desferiu diversos golpes que atingiram o corpo
da ofendida, o que lhe provocou quatro ferimentos corto¬perfurantes
(um na zona abdominal, dois na zona infra-c1avicular e um na zona
mamária direita), causando-lhe a morte.
vi. É de concluir que todo o processado se incluiu num único acta
temporal (discussão/agressão) .
vii. No final da agressão. o arguido dizia aos presentes para chamarem
os bombeiros e a polícia que não fugiria dali, sendo certo que se
entregou sem oferecer resistência (cfr. depoimento das testemunhas
de acusação).
viii. Acresce que, como consta das declarações do arguido em
audiência, já no final do seu depoimento confirmou de forma mais
emocionada a propósito da memória da vítima que "ela não lhe sai
da cabeça", reconhecendo ao longo do seu depoimento que gostava
e sentia ciúmes dela e que ela rejeitava a sua presença, atitude com
a qual nunca se conformou, aceitando que continuava a gostar dela
e que queria reatar a vida em comum como dantes, tendo-se
sentido revoltado quando, na ocasião, a vitima disse "o que é que
andas a fazer aqui todos os dias atrás de mim."
ix. De realçar, o depoimento da testemunha BB que ouviu o arguido no
momento da agressão fatal dizer à vitima: "Não serás minha, não serás
de mais ninguém."
x. De realçar ainda, o depoimento da testemunha CC, filho da
vítima, que referiu que o arguido tinha ciúmes da vítima e
desconfiava de toda a gente.
V - Dos factos supra mencionados resulta as circunstâncias anteriores
ao cometimento do crime (o relacionamento do casal ao longo dos
anos não foi pacifico, fruto de inúmeras discussões oriundas de muitos
ciúmes por parte do arguido, que sempre viveu em função da vitima,
mesmo aquando da separação, pois ia todos os dias para a cidade de
Ermesinde para a ver e falar com ela), ao momento do cometimento
do crime (o facto do arguido desconfiar da sua ex companheira, os
ciúmes que sentia dela e o desejo de retomar o relacionamento conjugal
como existia antes, originaram a discussão constante na matéria de
facto que culminou na agressão fatal da vitima) e os momentos que se
lhe seguiram (o arguido assumiu de imediato o seu erro, permaneceu
na local solicitando a intervenção da policia e pedindo auxilio para a
vitima), não revelam uma especial e censurabilidade ou
perversidade, ou seja, uma censurabilidade ou perversidade
distintas (pela sua anormal gravidade) daquelas que, em maior ou
menor grau, se revelam na autoria de um homicídio simples. Sendo
certo que, a relação entre o arguido e a vítima ao longo dos anos,
foi sempre bastante conturbada, com imensas discussões,
ocorrendo, por via disso, ao longo dos anos danos psicológicos.
VI - Assim, entende a arguido que não deve ser condenado pelo crime
de homicídio qualificado, nas termos dos artigos 131.° e 132.°, n,º s 1 e
2 alínea b) do Código Penal, mas sim, deverá ser condenado pelo crime
de homicídio simples nos termos do artigo 131.° do C.P.
VI - Relativamente à medida da pena aplicada, ao aplicar a pena de
18 anos de prisão efectiva, o colectivo de juízes "a quo' violou os
princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade) em sentido
estrito, para a protecção dos bens ou interesses constitucionalmente
protegidos. Atentando frontalmente contra o fim das penas.
VI - Assim, não atendeu o Tribunal Colectivo “a quo" à previsão
dos artigos 40º e 71º todos do Código Penal.
VII - A medida da pena há-de recortar-se no âmbito da moldura penal
abstracta prevista para o respectivo tipo de crime, de acordo com os
critérios gerais estabelecidos no artigo 71. n.1 do C.P. (os parâmetros
que deve obedecer toda e qualquer fixação da pena, em atenção às
finalidades que lhe são legalmente assinaladas) e os especiais
constantes do n. 2 da mesma disposição legal (grau de ilicitude, modo
de execução, gravidade das consequências, intensidade do dolo, fins ou
motivos. condições pessoais do agente, conduta anterior ou posterior ao
facto, ete.).
VIII - Por conseguinte, a determinação da medida concreta da pena,
há-de efectuar-se em função da culpa do agente e das exigências de
prevenção, quer a prevenção geral positiva ou de integração (protecção
dos bens jurídicos) quer a prevenção especial (reintegração do agente
na sociedade), funcionando a culpa como limite máximo que aquela
pena não pode ultrapassar) nos termos do artigo 40. n. 1 e 2 do C.P.
IX - A circunstâncias a que há-de atender para tal efeito, são não só as
enumeradas no n.º 2 do artigo 71.°, que traduz uma enumeração
exemplifícativa, mas todas as que, não fazendo parte do tipo de crime,
depuserem a favor do agente ou contra ele.
X - A pena mostra-se desadequada por não espelhar a culpa do arguido
e não ter em conta as necessidades e exigências de prevenção.
XI - Sendo a moldura penal abstracta correspondente ao crime de
homicídio qualificado de 12 a 25 anos de prisão, a medida concreta da
pena de acordo com os parâmetros referidos, deve levar em conta os
seguintes parâmetros:
i. As condições pessoais do arguido e a sua situação económica,
sendo de destacar o circunstancialismo referido no relatório social e no
relatório de personalidade quanto ao meio familiar, social (" ...
originário de uma família modesta e em cuja educação só participou a
mãe.") e escolar (" ... numa instituição religiosa fez a 48 classe:) tendo
o arguido dificuldades de aprendizagem (" ... apresenta a nível
cognitivo um resultado inferior ao da média, em provas de natureza
verbal apresentou valores bastante baixos, o que "pode condicionar a
capacidade de utilizar o juízo prático, o grau de interiorização da
cultura social e consciência de sentido moral e ainda limitar o contacto
com o ambiente ... ") com perturbação emocional ( ..... com tendência
para apelar a factores emocionais ... dificultando a adaptação a
situações sociais ... ~) e de ansiedade (" ... pouca capacidade de
controlo quando confrontado com situações geradoras de cargas
elevadas de stress e/ou ansiedade", com probabilidade significativa" de
ocorrerem comportamentos anormais ou impulsivos; tem tendência
para reagir emotivamente, com agressividade e impulsividade").
Ora todas as circunstâncias referidas têm inegável influência na culpa,
diminuindo-a de forma relativamente acentuada, revelam para a medida
da pena pois condicionam inevitavelmente o seu agir.
Ora, tais circunstancialismos não foram devidamente ponderados na
decisão recorrida.
Dai que se entenda que a pena deva ser atenuada.
ii. Quanto aos comportamentos anteriores e posteriores aos factos,
serão de considerar a confissão livre e esclarecedora dos factos (ainda
que parcial - apenas não assumiu que tivesse a intenção de matar a
vitima); a ausência de antecedentes criminais tem relevância, tanto
mais que no Estabelecimento Prisional o arguido tem tido bom
comportamento, trabalha, sendo ainda, considerado pacato, educado e
profissional competente.
Ora, tais circunstancialismos não foram devidamente ponderados na
decisão recorrida. Daí que se entenda que a pena deva ser atenuada,
iii. Releva o facto do arguido, desde o cometimento do crime, ter
acompanhamento pelos serviços clínicos na área da psiquiatria.
Ora, tal circunstancialismo não foi devidamente ponderado na decisão
recorrida. Dai que se entenda que a pena deva ser atenuada.
iv. Releva ainda, o arrependimento e a manifestação de dor que se
conclui pelo facto do arguido no final do seu depoimento, mais
emocionado a propósito da memória da vitima e dizendo que 'ela não
lhe sai da cabeça'.
Ora, tais circunstancialismos não foram devidamente ponderados na
decisão recorrida. Dai que se entenda que a pena deva ser atenuada.
v. Releva ainda, o facto do arguido (após o cometimento do crime) ter
permanecido no local, ter solicitado às pessoas para chamarem a policia
que não fugiria dali (assumindo desta forma as consequências dos seus
actos), bem como, pediu às pessoas para chamarem os bombeiros para
socorrerem a vitima, sendo certo que permaneceu no local e se
entregou à policia sem oferecer resistência (cfr. depoimentos das
testemunhas que serviram de motivação do colectivo de juizes para
formar a convicção dos factos).
Ora, tais circunstancialismos não foram devidamente ponderados na
decisão recorrida. Daí que se entenda que a pena deva ser atenuada.
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO que V.
Exas. melhor suprirão, deverão:
- Conceder provimento ao recurso interposto pelo Recorrente e em
consequência. revogar o acórdão recorrido na parte que o condena o
arguido na pena de 18 anos de prisão, pela prática, em autoria material,
de um crime de homicídio qualificado, nos termos dos artigos 131.º e
.132.°. n.ºs 1 e 2 alínea b) do Código Penal e condenar o arguido pela
prática, em autoria material, de um crime de homicídio simples, nos
termos do artigo 131º do Código Penal.
• Caso seja confirmada a condenação por homicídio qualificado, nos
termos dos artigos 131.° e 132.°, n,ºs 1 e 2 alínea b) do Código Penal, e
no que tange à medida concreta da pena, deve a mesma ser reduzida ao
abrigo do disposto nos artigos 40° e 71° todos do Código Penal.
- Decidindo deste modo, farão, V; Exas., como sempre, inteira e sâ
justiça. “
---
Respondeu o Ministério Público à motivação de recurso, considerando
em suma que “a qualificação jurídica efectuada pelo Tribunal a quo, ao
condenar o arguido pela prática do crime de homicídio qualificado, p. e
p. no art. 132° nº 1 e 2 b) do C. Penal, não merece qualquer reparo.
E tais fundamentos servem ainda, na nossa perspectiva para afastar a
pretendida atenuação da pena, considerando as especiais exigências de
prevenção especial e de prevenção geral, bem reflectidas no douto
Acórdão recorrido.
Não subiste qualquer dúvida, insuficiência, contradição ou erro que
afectem a validade da decisão e a qualificação jurídica nela contida
nem qualquer facto relevante que induzam a alterar a pena aplicada,
graduada segundo elevados critérios de adequação, proporcional idade
e razoabilidade.
Assim, mantendo a decisão recorrida nos seus precisos termos farão V.
Excias, a costumada JUSTIÇA!”
_
Por o recurso versar exclusivamente matéria de direito, foram os autos
remetidos ao Supremo Tribunal.
---
Neste Supremo, o Dig.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto
Parecer no sentido da improcedência do recursos, assinalando além do
mais:

“c.l Qualificação do crime.


Cremos não merecer qualquer reserva a qualificação do homicídio pela
alínea b), pelos fundamentos constantes do acórdão, pertinentemente
destacados pelo Ex. ma Procuradora da República na sua resposta (408-
411).
Como refere o Professor Figueiredo Dias [in Comentário
Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo 1,27] não é o
"maior desvalor da conduta o determinante da agravação, antes ele é
mediado sempre por um mais acentuado desvalor da atitude: a especial
censurabilidade ou perversidade do agente, é dizer, o especial tipo de
culpa do homicídio agravado. Só assim se podendo compreender e
aceitar que haja hipóteses em que aqueles elementos estão presentes e,
todavia, a qualificação vem em definitivo a ser negada".
No caso, o acrescido desvalor da atitude é bem retratada na matéria de
facto provada.
O arguido, não aceitando a recusa da vítima em retomar a vida comum,
que perdurara por 10 anos e tinha cessado em Março de 2007, na
sequência de uma discussão entre ambos ocorrida em plena via pública
e com uma faca de cozinha que comprara momentos antes, desferiu-lhe
várias facadas que lhe produziram os ferimentos descritos a fls. 342 do
acórdão, os quais foram causa adequada da sua morte.
A compra da faca na sequência da oposição mais uma vez manifestada
pela vítima em retomar a vida comum, é significativa de um propósito
delineado de a utilizar, com manifesto desprezo pela pessoa com quem
viveu em união de facto durante 10 anos e de quem tinha dois filhos,
antes a tratando como uma coisa a destruir por não ter a possibilidade
de a usar ("já que não és para mim não és para mais ninguém ").
E sublinhe-se que nem sequer resulta demonstrada qualquer atitude
anterior (ou concomitante) por banda da vítima significativa de
qualquer desrespeito pelos deveres conjugais.
Daí que a invocação de ciúmes como explicativa de um estado
emocional alterado, apenas revela uma particular perigosidade do
arguido e já não uma desculpável ou compreensível emoção.
Não sendo compreensível nem aceitável pelo homem normalmente
sensível e fiel ao direito que uma recusa de reatamento de vida comum
provoque uma violenta e reflectida reacção letal, não tem relevo na
diminuição da culpa - bem pelo contrário
c.2 Medida da penas:
Também no que respeita à medida da pena, não vislumbramos qualquer
violação dos critérios que devem presidir à sua fixação, que se adequa à
sua culpa e exigências de prevenção.
Tratando-se de pessoa com pouca capacidade de controlo ... , com
probabilidade significativa de ocorrerem comportamentos anormais ou
impulsivos, com tendência para reagir emotivamente, com
agressividade e impulsividade, ter-se-á que concluir, não só que são
elevadas as exigências de prevenção especial de integração, como
também pela agravação da culpa, conforme entendimento sustentado
por este STJ, mesmo nos casos de imputabilidade diminuída (entre
outros: acórdãos de 16 de Junho e 17 de Dezembro de 2005, processos
n.º s 1561.05, 5ª e 2967.05, ss):
Se nos casos de imputabilidade diminuída, as conexões objectivas de
sentido entre a pessoa do agente e o facto são ainda compreensíveis e
aquele deve, por isso, ser considerado imputável, então as qualidades
especiais do seu carácter entram no objecto do juízo de culpa e por
elas o agente tem de responder: se essas qualidades forem
especialmente desvaliosas de um ponto de vista jurídico-penalmente
relevante elas fundamentarão uma agravação da culpa e um aumento
da pena; se, pelo contrário, elas fizerem com que o facto se revele mais
digno de tolerância e de aceitação jurídico-penal estará justificada
uma atenuação da culpa e uma diminuição da pena. (sublinhado
nosso).
Em suma: a personalidade do arguido, com uma duvidosa capacidade
de evoluir no sentido dos valores comunitários, nomeadamente em
situação de ansiedade ou stress, exige (dentro da moldura da culpa)
uma elevação da pena, não merecendo qualquer censura a fixada de 18
anos de prisão.
Pelo exposto, entendemos que o recurso não merece provimento. "
---
Cumpriu-se o disposto no artigo 417º nº 2 do CPP.
---
Não tendo sido requerida audiência, seguiu o processo para conferência
cumpridos os vistos legais.
---
Consta da decisão recorrida:
“Da prova produzida e examinada em audiência e após discussão da
causa e a subsequente deliberação do Colectivo, resultou o seguinte:
2. - FACTOS PROVADOS
2.1. - Da Acusação pública
2.1.1. - No dia 08 de Julho de 2008, pouco depois das 13h, o arguido
encontrava-se na Rua da …, em …, próximo da casa onde vivia a sua
ex-companheira, DD.
2.1.2. - Aí aguardava, como era seu hábito, que ela saísse para a
acompanhar.
2.1.3. - Quando tal sucedeu e porque ela se dirigia para uma sessão de
fisioterapia, ele insistiu em acompanhá-la, como vinha sucedendo, pois
que era objectivo dele retomar a vida em comum, mas ao que a DD se
vinha opondo.
2.1.4. - Já no regresso, insatisfeito e desagradado com a posição dela, o
arguido, enquanto a DD por momentos entrou numa loja para pagar a
luz, dirigiu-se a um outro estabelecimento de artigos chineses, onde
adquiriu uma faca de cozinha, com as características melhor descritas a
fls. 98.
2.1.5. - Faca essa que guardou e conservou dentro de um saco plástico e
transportou na sua posse enquanto continuou a acompanhá-la rua fora e
no Parque.
2.1.6. - Cerca das 14h30m, quando caminhavam pela Rua …, junto ao
n°. …, na sequência de discussão entre ambos sobre o seu
relacionamento, o arguido empunhou a referida faca e dizendo ''já que
não és para mim, não és para mais ninguém", com ela desferiu diversos
golpes que atingiram o corpo da ofendida, o que lhe provocou quatro
ferimentos corto-perfurantes (um na zona abdominal, dois na zona
infra-clavicular e um na zona mamária direita).
2.1.7. - De tal agressão, resultaram para a ofendida:
a) na região infraclavicular esquerda, uma lesão em forma de V com
2,5cm por 2,7cm;
b) na região infraclavicular direita, uma lesão com 2,5cm;
c) no quadrante superior direito da mama direita, uma lesão com 5,5cm
(nesta lesão apresentava-se introduzida uma lâmina da faca, sem o
respectivo cabo);
d) na região peri-umbilical, uma lesão com 3 cm;
e) escoriação linear no antebraço direito;
f) retalho musculocutâneo na eminência tenar direita;
g) lesão na palma da mão direita junto à raiz dos 4° e 5° dedos;
h) lesão na palma da mão direita, englobando a falange proximal do 5°
dedo;
i) lesão na face palmar das falanges média e distal do 3° dedo da mão
direita, em forma de T invertido, que se prolonga da face palmar para a
face lateral;
j) lesão, na mão esquerda, na face dorsal da falange distal do 1 ° dedo;
- tudo conforme resulta melhor do teor do relatório de autópsia de fls.
142 a 172 e 213 a 223 que aqui se dá por reproduzido.
2.1.8. - Em consequência disso, a DD faleceu no local onde foi
agredida, tendo o óbito sido atestado pelo INEM às 15h25m.
2.1.9. - Agiu o arguido com o propósito, concretizado, de tirar a vida a
DD, sua ex-companheira e mãe de dois dos seus filhos, sendo certo
que, para o efeito, não se coibiu de se servir de uma faca, com as
características supra mencionadas com a qual atingiu a vítima e zona
do corpo cujas lesões viriam a determinar a morte, facto que
conscientemente representou e quis.
2.1.10. - Quis igualmente deter tal objecto, com perfeita consciência
das características do mesmo.
2.1.11. - O arguido agiu livre e conscientemente, bem sabendo serem as
suas condutas proibidas e punidas por lei penal.
2.2. - Da contestação do arguido:
Nenhum facto nela foi alegado.
2.3. - Da Audiência:
2.3.1. - O arguido foi detido em 08 de Julho de 2008, sujeito a primeiro
interrogatório judicial e encontra-se em prisão preventiva à ordem
destes autos deste 09 de Julho de 2008.
2.3.2. - Do seu CRC nada consta.
2.3.3. - O arguido tem 50 anos de idade, a 43• classe e a profissão de
marceneiro. Veio para Portugal em 1998 aqui se naturalizou, tendo
trabalhado cá e algum tempo em Espanha.
2.3.4. - Viveu com a vítima DD, como se fossem marido e mulher,
durante 10 anos e até Março de 2007, altura em que se separaram,
dessa relação havendo dois filhos comuns.
2.3.5. - Confessou parcialmente os factos, nos termos abaixo referidos
na fundamentação.
2.3.6. - Do Relatório Social elaborado pelo IRS sobre o arguido e
constante de fls. 320 a 323 - para que se remete - destaca-se que o
arguido é originário de uma ilha de Cabo Verde, de família modesta e
em cuja educação só participou a mãe; numa instituição religiosa fez a
43• Classe, começou a trabalhar na carpintaria e frequentou curso de
marceneiro; trabalhou na área da panificação, mais tarde como
marceneiro por conta própria e ainda nas pescas, acabando por vir
ilegalmente para Portugal num embarcação na década de 1980,
fixando-se inicialmente em Peniche e, depois, em Matosinhos. Em
Ermesinde, trabalhando na construção civil, conheceu a vítima, que já
tinha cinco filhos, passando a viver com ela; trabalhava de modo
irregular e por curtos períodos de modo a vigiar a dita companheira;
trabalhou também em Espanha; entretanto, adquiriu a nacionalidade
portuguesa; em 2007, o arguido separou-se da companheira e passou a
viver com a irmã, em Matosinhos, mas deslocava-se para a Ermesinde,
ainda que a pretexto de realizar trabalhos de construção civil, tendo em
vista encontrar-se com ela; no EP tem tido bom comportamento,
trabalha, tem acompanhamento pelos serviços clínicos na área de
psiquiatria e recebe visitas de duas irmãs e sobrinhos, pois, em face do
impacto dos factos, os dois filhos e os enteados afastaram-se dele.
2.3.7. - Do Relatório de Perícia Sobre a Personalidade elaborado pelo
IRS sobre o arguido e constante de fls. 327 a 333 - para que se remete –
destaca-se que o arguido, ainda em Cabo Verde e de uma outra relação,
teve três filhos, com os quais não deixou de ter contacto, com a
justificação de que perdeu a morada, relatando e opinando o IRS que "a
esta justificação, sem expressão de sentimentos de perda ou afecto,
estará subjacente uma superficialidade afectiva relativamente aos
filhos, mas que parece traduzir um padrão de funcionamento adoptado
pelo arguido nos seus diferentes relacionamentos interpessoais"; a
relação conjugal com a vítima não foi pacífica, o comportamento do
arguido "revelou-se possessivo"; apresenta a nível cognitivo um
resultado inferior ao da média; em provas de natureza verbal,
apresentou valores bastante baixos, o que ''pode condicionar a
capacidade de utilizar o juízo prático, o grau de interiorização da
cultura social e consciência de sentido moral e ainda limitar o contacto
com o ambiente", com "tendência para apelar a factores emocionais.
dificultando a adaptação a situações sociais"; ''pouca capacidade de
controlo quando confrontado com situações geradoras de cargas
elevadas de stress e/ou ansiedade", com ''probabilidade significativa"
de ocorrerem comportamentos anormais ou impulsivos; tem tendência
para reagir emotivamente, com agressividade e impulsividade; não tem
interiorizado pacificamente a vida de recluso; apesar de tudo, é
considerado pacato, educado e profissional competente.
3. - FACTOS NÃO PROVADOS
Nada mais da acusação e da audiência se provou com relevou para
decisão, designadamente:
-Que a "união de facto" durou até "meados" de 2007;
-Que o arguido desferiu um soco na DD antes de a esfaquear;
-Que foi em consequência desse soco que ela caiu e que só depois
começou a dar-lhe as facadas já debruçado sobre ela;
-Que o arguido soubesse que a detenção da arma era acto penalmente
punível.
A expressão dessa peça constante "revelando a sua conduta especial
censurabilidade e perversidade" por encerrar conceitos jurídicos e
dever resultar de conclusão a extrair de factos, eliminou-se do
respectivo acervo.
---
Cumpre apreciar e decidir:
Inexistem vícios ou nulidades de que cumpra conhecer nos termos do
artigo 410º nº 2 e 3 do CPP.
São duas as questões suscitadas pelo recorrente: a da qualificação
jurídica dos factos e a medida concreta da pena.
Quanto à primeira questão alega o recorrente que “Relativamente à
condenação pelo crime de homicídio qualificado, p. p. pelos artigos
131.° e 132.°, n.ºs 1 e 2 alínea b) do C6diqo Penal, na pena de 18 anos
de prisão, entende o arguido que não resultaram quaisquer factos
indiciadores ou susceptíveis de revelar ‘especial censurabilidade ou
perversidade exigida pelo n. 1 do artigo 132.º do C.P. e que constitui
condição sina qua non para a qualificação do tipo, ainda que, o facto
tenha sido praticado contra a pessoa que tenha mantido uma relação
análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor
de descendente de primeiro grau (132.°, n. 2 b) do C.P.) (…)sendo
ainda necessário que, por intervenção do critério da culpa, se possa
dizer que a circunstância ocorrida se traduziu numa especial
censurabilidade ou perversidade do agente.”
Assim, entende a arguido que não deve ser condenado pelo crime de
homicídio qualificado, nas termos dos artigos 131.° e 132.°, n,ºs 1 e 2
alínea b) do Código Penal, mas sim, deverá ser condenado pelo crime
de homicídio simples nos termos do artigo 131.° do C.P. “
Analisando:
O tipo legal fundamental dos crimes contra a vida encontra-se descrito
no art. 131.º do CP, sendo desse preceito que a lei parte para, nos
artigos seguintes, prever as formas agravada e privilegiada, fazendo
acrescer ao tipo-base, circunstâncias que qualificam o crime, por
revelarem especial censurabilidade ou perversidade ou que o
privilegiam por constituírem manifestação de uma diminuição da
exigibilidade.
O crime de homicídio qualificado verifica-se: “Se a morte for
produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou
perversidade,(…)” artº 132º nº 1 do C.Penal
As circunstâncias referidas no nº 2 do mesmo preceito, são meramente
indicativas e, não taxativas, são circunstâncias de referência
exemplificativa, mas não de abrangência exclusiva.
O nº 2 apenas determina que:
“É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a
que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância do agente
(…)”, seguindo-se a indicação de circunstâncias descritas nas
respectivas alíneas do preceito. (sublinhado nosso)
A especial censurabilidade ou perversidade, sendo conceitos
indeterminados, são representadas por circunstâncias que denunciam
uma culpa agravada e são descritas como exemplos-padrão. A
ocorrência destes exemplos não determina, todavia, por si só e
automaticamente, a qualificação do crime; assim como a sua não
verificação não impede que outros elementos possam ser julgados
como qualificadores da culpa, desde que sejam substancialmente
análogos aos legalmente descritos. (Ac. do STJ de 07-07-2005, Proc.
n.º 1670/05 - 5.ª).
No art. 132.º do CP o legislador utilizou a chamada técnica dos
exemplos-padrão, estando em causa, pelo menos para parte muito
significativa da doutrina, no seu n.º 2, circunstâncias atinentes à culpa
do agente e não à ilicitude, as quais podem traduzir uma especial
censurabilidade ou perversidade do agente – Figueiredo Dias,
Comentário Conimbricense do Código Penal, I, pág. 27 e Teresa
Quintela de Brito, Direito Penal – Parte Especial: Lições, Estudo e
Casos, pág. 191.
Assim sendo, é possível ocorrerem outras circunstâncias, para além das
mencionadas, se bem que valorativamente equivalentes, as quais
revelem a falada especial censurabilidade ou perversidade; e, por outro
lado, apesar da descrição dos factos provados apontar para o
preenchimento de uma ou mais alíneas do n.º 2 do art. 132.º, não é só
por isso que o crime de homicídio cometido, deverá ter-se logo por
qualificado.
A partir da verificação de circunstâncias que o legislador elegeu, com
“efeito de indício” (expressão de Teresa Serra, Homicídio Qualificado.
Tipo de Culpa e Medida da Pena, pág. 126), interessará ver se não
concorrerão outros factos que, funcionando como “contraprova”,
eliminem a especial censurabilidade ou perversidade do acontecido,
globalmente considerado. ( Ac. do STJ de 15-05-2008, Proc. n.º
3979/07 - 5.ª Secção)
O cerne do referido ilícito está, assim, na caracterização da acção letal
do agente como de especial censurabilidade ou perversidade face às
circunstâncias em que, e como, agiu, ou dito de outro modo, está nas
circunstâncias reveladoras ou não de especial censurabilidade ou
perversidade que integraram a acção letal do agente.
Como conclui Teresa Serra, in Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e
Medida da Pena, Almedina, Coimbra, 2003, p. 124:
“3.O critério generalizador do artigo 132º integra um tipo de culpa
fundamental que permite caracterizar de forma autónoma a atitude
especialmente censurável ou perversa do agente.
4. Só no âmbito de um conceito material de culpa susceptível de
graduação, tendo como objecto de referência próprio o maior ou menor
desvalor da atitude do agente actualizada no facto, a função de tipos de
culpa agravadores da moldura penal pode ser inteiramente
compreendida.”
O legislador apesar de optar pela técnica dos exemplos padrão,
consubstanciados no artigo 132º funda-se porém “na combinação de
um critério generalizador, constituído por uma cláusula geral de
agravação penal, com uma enumeração exemplificativa de
circunstâncias agravantes de funcionamento não automático”
Mesmo na construção do Leitbild dos exemplos padrão, é a partir de
cada uma das concretas circunstâncias agravantes exemplificadas que
se retira não apenas o seu especial grau de gravidade, mas também a
sua própria estrutura valorativa.(idem, ibidem, p. 126 e 127)
O arguido foi condenado pelo crime p. e p. nos artºs 131º e 132º nº 2 al.
b) do CPenal, e, por isso, na forma qualificada.
´E susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade, a
circunstância de o agente: “Praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge,
pessoa de outro ou do messmo sexo com quem o agente mantenha ou
tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem
coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1º grau.” –
alínea b) do nº 2 do artº 132º do CP.
Esta actual versão da alínea b), foi introduzida na revisão do Código
Penal pela Lei nº 59/2007 de 4 de Setembro. Incluindo-se assim, “uma
nova circunstância qualificativa do homicídio que é a relação conjugal
ou análoga, incluindo-se a união de facto, ainda que entre pessoa do
mesmo sexo.” Maia Gonçalves, Código Penal Português anotado e
comentado, 18ª edição, 2007, p. 509i
Como referem Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, Código
Penal Anotado e Comentado, 2008, p. 344.nota 24: “É outrossim o
terreno dos laços familiares (ou equiparados), a partir da relação
matrimonial e alargada a casos que o legislador tomou como análogos,
do mesmo passo, que com extensão para lá da própria cessação das
atinentes relações, pelo entendimento de que tal não destruiu de todos
os referidos laços, bem como de que apesar de tudo, eles continuam a
impor-se o respeito dos que naqueles intervieram.”
Diz Paulo Pinto de Albuquerque – Comentário do Código Penal, p.
340, nota 4 – que: “Os laços familiares básicos com a vítima devem
constituir para o agente factores inibitórios acrescidos, cujo vencimento
supõe uma especial censurabilidade.”
Considera o recorrente que dos factos “resulta as circunstâncias
anteriores ao cometimento do crime (o relacionamento do casal ao
longo dos anos não foi pacifico, fruto de inúmeras discussões oriundas
de muitos ciúmes por parte do arguido, que sempre viveu em função da
vitima, mesmo aquando da separação, pois ia todos os dias para a
cidade de Ermesinde para a ver e falar com ela), ao momento do
cometimento do crime (o facto do arguido desconfiar da sua ex
companheira, os ciúmes que sentia dela e o desejo de retomar o
relacionamento conjugal como existia antes, originaram a discussão
constante na matéria de facto que culminou na agressão fatal da vitima)
e os momentos que se lhe seguiram (o arguido assumiu de imediato o
seu erro, permaneceu na local solicitando a intervenção da policia e
pedindo auxilio para a vitima), não revelam uma especial e
censurabilidade ou perversidade, ou seja, uma censurabilldade ou
perversidade distintas (pela sua anormal gravidade) daquelas que, em
maior ou menor grau, se revelam na autoria de um homicídio simples.
Sendo certo que, a relação entre o arguido e a vítima ao longo dos anos,
foi sempre bastante conturbada, com imensas discussões, ocorrendo,
por via disso, ao longo dos anos danos psicológicos. “
Por sua vez a decisão recorrida fundamentou:
“Ora, não há dúvida que o homicídio, pelo arguido, de DD ocorreu em
circunstâncias tais, que, apesar de as enumeradas na lei serem
meramente exemplificativas, de aplicação não automática e até
considerados como indícios susceptíveis de contraprova, a factualidade
apurada dá do crime uma imagem global de tanto horror e repugnância
e do arguido uma imagem de personalidade fria, insensível e tão
profundamente distanciada do Direito que, necessariamente, a sua
culpa, tão elevada, só encontra reflexo adequado nos parâmetros da
especial censurabilidade ou perversidade.
A vítima deu 10 anos da sua vida ao arguido, com ele co-habitando e
havendo até dois filhos comuns.
A ressonância que os laços de união de facto já têm e cada vez mais
ganham na nossa comunidade, justifica a criação de tal exemplo-
padrão.
E quando, no caso concreto, aqueles são tão duradouros e frutuosos,
não efémeros, co-responsabilizantes no destino dos filhos gerados, e
apenas estavam quebrados havia cerca de um ano e meio antes, embora
com alguma comunicação recíproca, aliás motivada pelo problema do
exercício do poder paternal, a censurabilidade tem de ser elevada a um
patamar fora da do tipo fundamental.
O arguido adquiriu premeditadamente a faca - uma faca vulgar de
cozinha mas de dimensões notáveis - e conservou-a consigo até ao
momento em que eclodiu a agressão.
Se isso já mostra a sua frieza, confirmam-na e põem-na em relevo as
circunstâncias e o modo como a usou brutalmente: sem outros motivos
que não fossem em ele teimar em reatar a relação com a vítima que esta
não desejava, surpreendendo-a inopinadamente em plena via pública,
com vários, firmes, profundos e decididos golpes no tórax (a zona
privilegiada sintomaticamente por ele eleita para consumar eficazmente
o seu animus necandi), a ponto de a DD ali ter logo sucumbido, no
estado miserável que as fotos dos autos documentam.
Nada de verdadeiramente relevante se provou - apesar de algumas
pretensas justificações ensaiadas pelo arguido - capaz de suscitar
alguma compreensão da sua conduta.
Enfim, deve ser punido no quadro do homicídio qualificado e cuja
moldura abstracta é a de prisão de 12 a 25 anos. “
Resulta da matéria fáctica provada, de forma relevante para a definição
da ilicitude em questão, que:
O arguido viveu com a vítima DD, como se fossem marido e mulher,
durante 10 anos e até Março de 2007, altura em que se separaram,
dessa relação havendo dois filhos comuns. Pretendia retomar a vida em
comum com ela , ao que DD se vinha opondo. Acompanhava-a com
frequência, quando a mesma saía de casa, para atingir tal objectivo. Na
data dos factos porque ela se dirigia para uma sessão de fisioterapia, ele
insistiu em acompanhá-la, como vinha sucedendo.
Insatisfeito e desagradado com a posição dela, o arguido, no regresso
enquanto a DD por momentos entrou numa loja dirigiu-se a um outro
estabelecimento, onde adquiriu uma faca de cozinha, com as
características melhor descritas a fls. 98 ,- segundo o auto de exame da
faca na PJ, do qual consta que tem a extensão perfurante de cerca de
21,5 cm, um gume pontiagudo de 20,5 cm de comprimento, largura de
3 cm e o cabo separado com 12,5 cm, tendo guardado e conservado
essa faca dentro de um saco plástico e transportou na sua posse
enquanto continuando a acompanhar a DD rua fora e no Parque.
Cerca das 14h30m, quando caminhavam pela Rua de …, junto ao n°.
…., na sequência de discussão entre ambos sobre o seu relacionamento,
o arguido empunhou a referida faca e dizendo à referida DD,''já que
não és para mim, não és para mais ninguém", com ela desferiu diversos
golpes que atingiram o corpo da ofendida, o que lhe provocou quatro
ferimentos corto-perfurantes (um na zona abdominal, dois na zona
infra-clavicular e um na zona mamária direita), de que resultaram para
a ofendida as lesões supra descritas - tudo conforme resulta melhor do
teor do relatório de autópsia de fls. 142 a 172 e 213 a 223 - que em
consequência disso, a DD faleceu no local onde foi agredida, tendo o
óbito sido atestado pelo INEM às 15h25m.
Agiu o arguido com o propósito, concretizado, de tirar a vida a DD, sua
ex-companheira e mãe de dois dos seus filhos, sendo certo que, para o
efeito, não se coibiu de se servir de uma faca, com as características
supra mencionadas com a qual atingiu a vítima e zona do corpo cujas
lesões viriam a determinar a morte, facto que conscientemente
representou e quis.
Quis igualmente deter tal objecto, com perfeita consciência das
características do mesmo.
O arguido agiu livre e conscientemente, bem sabendo serem as suas
condutas proibidas e punidas por lei penal.
Como bem salienta a Digna Procuradora da República na resposta à
motivação de recurso:
“Verificando-se, em termos objectivos, a especial relação entre o
arguido e a vítima, todas as demais circunstâncias de ocorrência do
crime são de molde a confirmar a especial censurabilidade e
perversidade da sua comissão.
A vivência comum prolongada com constituição de família, a frieza
com que o arguido se apressou a delinear o crime face á recusa da
ofendida em retomar o relacionamento, a consequente premeditação
consistente com a aquisição da faca, a forma como manteve tal arma
escondida até eclodir a agressão, o sangue frio e a firmeza com que
desferiu os golpes, surpreendendo a vítima, a inexistência de causa
minimamente plausível ou compreensível para a sua actuação, para a
qual, a vítima não deu qualquer azo.
Todos estes elementos corroboram a conclusão de que o arguido actuou
com um grau de culpa de tal modo acentuado, que concretiza de forma
inequívoca os conceitos de especial perversidade e censurabilidade. “
Na verdade, o arguido, insatisfeito e desagradado pelo facto de a sua
ex-companheira, não pretender reatar com ele a vida em comum,
durante o trajecto de regresso adquiriu a faca assinalada, e quando
acompanhava a mesma ex-companheira, na sequência de discussão
sobre o relacionamento de ambos, de forma brusca e bárbara,
sucessiva e intensivamente, golpeou-a, com a referida faca,
provocando-lhe em consequência quatro ferimentos corto-perfurantes
(um na zona abdominal, dois na zona infra-clavicular e um na zona
mamária direita) de que resultaram lesões, nomeadamente: na região
infraclavicular esquerda, uma lesão em forma de V com 2,5cm por
2,7cm;; na região infraclavicular direita, uma lesão com 2,5cm; no
quadrante superior direito da mama direita, uma lesão com 5,5cm
(nesta lesão apresentava-se introduzida uma lâmina da faca, sem o
respectivo cabo); na região peri-umbilical, uma lesão com 3 cm., que
bem denotam a violência e persistência no propósito de matar,
atacando-a assim de surpresa, com essa faca pontiaguda, sem qualquer
consideração pela vida humana e pela relação de similitude conjugal,
pois que se tratava da sua companheira durante dez anos, com a qual
ainda pretendia reatar a vida em comum, pois ia todos os dias para a
cidade de Ermesinde para a ver e falar com ela, e de quem tinha dois
filhos menores.
Como salienta a decisão recorrida, a factualidade apurada dá do arguido
“uma imagem de personalidade fria, insensível e tão profundamente
distanciada do Direito que, necessariamente, a sua culpa, tão elevada,
só encontra reflexo adequado nos parâmetros da especial
censurabilidade ou perversidade.
A vítima deu 10 anos da sua vida ao arguido, com ele co-habitando e
havendo até dois filhos comuns.
(…)”
O arguido adquiriu premeditadamente a faca - uma faca vulgar de
cozinha mas de dimensões notáveis - e conservou-a consigo até ao
momento em que eclodiu a agressão.
Se isso já mostra a sua frieza, confirmam-na e põem-na em relevo as
circunstâncias e o modo como a usou brutalmente: sem outros motivos
que não fossem em ele teimar em reatar a relação com a vítima que esta
não desejava, surpreendendo-a inopinadamente em plena via pública,
com vários, firmes, profundos e decididos golpes no tórax (a zona
privilegiada sintomaticamente por ele eleita para consumar eficazmente
o seu animus necandi), a ponto de a DD ali ter logo sucumbido”
Aliás, retira-se da fundamentação (motivação da convicção do
tribunal), legitimada pelo facto provado (2.3.5) sobre a confissão
parcial do arguido:
“Relatou o trajecto, a compra da faca, a forma como a dissimulou no
saco e a transportou, até que, na sequência da discussão, sem que algo
refira capaz de justificar tal surto explosivo de violência, se
desencadeou a agressão, que descreveu com pormenores (sobre a
posição de ambos, forma como desferiu os golpes e zonas do corpo
para onde os direccionou e reacção dela), dizendo não saber se ela se
defendeu ou não (mas reconhecendo que continuou a dar-lhe já quando
ela desfalecia e caia), mas do que são sinal inequívoco os golpes na
mão.”
Não consta da matéria de facto provada que o arguido assumisse de
imediato o seu erro, permanecesse na local solicitando a intervenção da
policia e pedisse auxilio para a vitima, mas, tal factualidade seria
irrelevante na determinação do ilícito, por ser posterior à realização da
acção causal concretizada no evento letal.
Diz o recorrente que a relação entre o arguido e a vítima ao longo dos
anos, foi sempre

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