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CORTEZ Coy) Ko) t= aa ess fr SR Digitalizado com CamScanner — Dados Internacionais de Catalogagao na Publicacio (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Freire, Paulo, 1921 ~1997 ‘A educagio na cidade / Paulo Frere; prefacio de Moacir Gadott ¢ Carlos Alberto Torres :notas de Vicente Chel. ~5. ed. - ‘S30 Paulo : Cortez, 2001. Bibliografia ISBN 85-249.0424.0 1. Educagdo - Brasil~ io Paulo (SP) 1. Titulo. 91-2804 cpp-370.981611 indices p ‘catdlogo sistemético: 1. Sto Paulo : Cidade : Bducaglo 370.981611 A 00 CEARA Biblioteca Central — A Bdueario na, Cidade Preficio de Moacit Gadotti ¢ Carlos Alberto Torres Notas de Vicente Chel B edigio CORTEZ SeGiana Digitalizado com CamScanner AEDUCAGAONA CIDADE Palo Freire Circus read orga: Ncw ta Nia de Les de nd, ita de Csi M Lopes mpi: Day ers Li, Gaara dior: Dail AQ. Mores 'MIVERSIDADE ESTADUAL DO. CEARA [* lioteca Central SI 44 2h) 04 7 | CHAMADA; 333.3) 28. FB Bea a2 Nenu ar esa ba po sero on dpc sem utoiagfo “expressa do autor € do editor, as © 1991 by Paulo Fete Direitos para eta ego CORTEZ EDITORA. Raa Barta, 317 Perdizes (05008-0000 Paulo - SP Tels (11) 3864-0111 Fax: (11) 3864.4299 E-mail conte @cortezeditora com br wor cortezeditors com be Iimresso no Brasil~ dezembro de 2001 INDICE Consideragées preliminares ........4.2.. Paulo Freire, Administrador piiblico,. por Moacir Gadotti (USP) ¢ Carlos Alberto Torres (UCLA) 22... ..000.20 PRIMEIRA PARTE ™ EDUCAR PARA A LIBERDADE NUMA METROPOLE CONTEMPORANEA . Os déficits da educagio brasileira . Para mudar a cara da escola... . Projeto pedagdgico ....... 7 7 |. Perguntas dos trabalhadores do ensino . . Desafio da educagio municipal . Alfabetizagio de jovens ¢ adultos . . Histéria como possibilidade ....... NAYARYL SEGUNDA PARTE REFLEXOES SOBRE A EXPERIENCIA COM TRES EDUCADORES 1. Autonomia escolar e reorientacio curricular ... 2. A educagio neste fim de século ... 3. LigBes de um desafio fascinante ..... EPILOGO Manifesto & maneira de quem, saindo, fica ............ Digitalizado com CamScanner 21 og 4l 49 57 o7 7” CONSIDERAGOES PRELIMINARES O livro que ora entrego 4 curiosidade de possiveis leitoras ¢ leitores e que aparecerd quase simultaneamente aqui ¢ na Franga € um livro despretensioso mas que me agrada. Se nao fosse assim, ndo o publicaria, Esté composto de entrevistas realizadas entre os primeiros meses de haver assumido a Secretaria Municipal de Educagao de Sao Paulo e os comecos do segundo ano de nossa administragao. Alguns dos temas tratados numa ou noutra entrevista néo tiveram o desenvolvimento que esperavamos, enquanto a maioria dos assuntos discutidos se firmou na pritica, cresceu, ,tomou corpo, Este é, na verdade, uma espécie de livro introdutério sobre © que sonhamos e o que fizemos e continua sendo feito, em equipe, na Secretaria Municipal de Educagao de Sao Paulo. Ou- tros trabalhos yirdo até mesmo como exercicio do dever que temos de prestar conta 4 cidade e ao pais do que fizemos e do que nao nos foi possivel fazer. Paulo Freire Sao Paulo, Primavera 1991 Paulo Freire, Administrador Publico A Experiéncia de Paulo Freire na Secretaria da Educagao da Ci- dade de Sao Paulo [1989-1991] Moacir Gadotti (USP, Sao Paulo) Carlos Alberto Torres (UCLA, Los Angeles) por vias paralelas, Por mais de quinze anos desenvolvemos, terpreta- um estudo e exposicao biogrifica, heuristica, critica ¢ in tiva da perspectiva teérica e da pritica pedagégica de Paulo Freire. Hoje cabe-nos, com prazer ¢ atrevimento, prologar um livro de Paulo muito especial. Um livro que surgiu no calor de uma experiéncia politica e administrativa na Secretaria Municipal de Educagao de Sao Paulo, na administragao de Luiza Erundina, sob a efigie politica do Par- tido dos Trabalhadores (PT) ¢ com Paulo Freire como Secretdrio Municipal de Educagao. Quando a 15 de novembro de 1988 o Partido dos Traba- Ihadores ganhou as eleigdes municipais, o triunfo apanha o PT de surpresa. Os planos de governo haviam sido feitos no calor ideolégico da confrontagao (para marcar as diferengas, estabelecer os limites das outras possiveis gestdes administrativo-politicas), porém nao tinha havido tempo nem espago mental para definir planos técnicos mais detalhados de governo. Para a nova administragéo municipal foi muito simples escolher quem dirigiria a Secretaria Municipal de Educagao — a secretaria cujo orgamento implica um ter¢o da receita do muni- cfpio, emprega mais de um tergo do total dos funciondrios mu- nicipais, ¢ possivelmente seja uma das entidades governamentais mais presentes na vida cotidiana dos setores populares em Sao Paulo. 11 Digitalizado com CamScanner ; ais légica. Membro-fundador do Paulo Fete er 2 OP Mpducasao do partido, presdene PT, membre cn Pinheito, do PT, e um verdadeiro mito vivo da Fundacio Wison (Gs trabalhos de Paulo Freire tém reconhe- da pedagegl oe re incernacional. A obra de Freire tem suscitado cimento macinmcas, convidando & experimentagio educativa ¢ mniltipls Poefim, jus obra tem sido objeto de leituras, textos 2 iettmicos tees doutorais, no Brasil e no mundo inteito, Freire era 0 simbolo da mudanga educativa que o PT Be punha para a populagio de Sio Paulo. Ademais, esse educador, gue veta de um eaflio de mais de quinze anos, encontrava-se em Sao Paulo, tenho reaprendido o Brasil apés regressar ¢ viajar in cessantemente, dando palestas, ouvindo o profesor, 0 dirigente sindical ¢ politico, o camponés, a mulher trabalhadora, 0 traba- Ihador industrial, 0 moradot da favela, 0 “Gramsci popular” — como ele disse anos atris a Carlos Alberto Torres. No comego da administraco petista, ele era um simbolo, ¢ ainda segue sendo-o. Mas também uma realidade. Vigorosa, ima- ginaiva, caper de sears para dscuir as premises epistemo- Tégicas do novo modelo de educago que queria implantar com sua equipe de trabalho em jornadas de longas horas, como visitar uma escola e ouvir pacientemente o zeador,o professor, o vgia 6 pai de familia, ou entdo discucir com as criangas que o aprender € gostoso porém requer disciplina. Capaz de sentar-se paciente- mente em seu escritério para assinar quatrocentos memorandos difrios, enquanto comentava, com saudades, como desfruraria esse tempo relendo os cléssicos da filosofia ou escrevendo os trés ou quatro livros que planejava escrever no momento em que foi con- vidado por Luiza Erundina. ‘Apés dois anos da implementagio de um novo modelo edu- cativo, consolidando uma equipe de primeira linha, mais expe- tiente ¢ amadurecido que no principio, cheio de entusiasmo, me- do ¢ ousadia, ¢ depois de suportar todo tipo de eriticas dos jornais, de diferentes setores antigovernamentais (incluindo membros dé seu prépric i cn emp i ei ees os dlissicos, na intimidade de ignite io 86 como uma figura significativa, mas sim como um “embaixador ad honeren? ctetatia de Educaggo de Sao Paulo, a ae Freire no se retira da Secretaria Muni Porque © modelo que ajudou a tragar e implem cassado, Ao contritio, ele se retira com a conviegio de que sua tarefa, pritica e simbélica, jd estava consumada. Aos setenta ‘anos, o autor de Pedagogia do Oprimido decide volar 3 sua biblioteca ¢ as suas aulas na Pontificia Universidade Catélica de Sao P: eoceat vatélica de Sido Paulo _ Prosseguindo com nossas atividades de elaborar uma biogra- fia intelectual do educador Paulo Freire, pudemos estudar essa sua etapa como tomador de decisdes, como administrador. Nossas experiéncias de estudo sdo diferentes. Durante esse tempo, Moacit Gadotti desempenhou, primeito, o cargo de chefe de Gabinete ©, depois, foi assessor especial, desfrutando ¢ também softendo as Peripécias da administracéo publica. Por sua vez, Carlos Alberto Torres, professor da Universidade da Califérnia, em Los Angeles (UCLA), BUA, efetuou, com apoio de uma bolsa da National Academy of Education — Spencer Fellowship e do Centro de Estudos Latino-Ameticanos da UCLA, uma pesquisa sobre o pro- cesso de tomada de decisdes na politica educativa municipal em Sao Paulo. al de Educagio entar tenha fra- Como secretério de Educagio, Paulo Freire nao passou tanto tempo refletindo teoricamente sobre o poder ou teorizando sobre a politicidade da educagio, mas exercendo o poder — se bem que delimitado ou fragmentado — mas poder educativo, enfim. Uma nova etapa de Freire como tomador de decisées no Brasil, do mesmo modo que havia sido ha vinte e seis anos antes como coordenador da Comissio de Cultura Popular. 13 Digitalizado com CamScanner , o que se continua fizendo © ue se feu nesses dais 2004 esol Mario Sérgio Cor. igorosa ¢ entusias Lee sob a vigorort fie Paulo Freire como secretétio de Educaga rela, sucesso icipali Paulo? j eee oe eden da cidade de S40 Paulo nao é = A admin il ii andato, Freire encontrou uma are ofc Non de emanate Fire econo itas delas em condigbes bast ; 700 escola mT de pouca qualidade, servindo a 720 000 ; cipal de ee eat Ch, ce Gage aol nos distibuidos, i ones ato : anos) e educagéo fundamental (7-14 on Me esos ¢ onatios da educagio municipal (professores, 0 are 0% do total de servidores soal de apoio), «que representam 30% dee piblicos da cidade de Sao Paulo, constituem um it \dministrativa e pedagdgica. — ree de Sao Paulo, a segunda maior da América ie i i ete i idade do México ¢ uma das cinco maiores metrépole eee 11,4 milhdes de habitantes, dos quais 1,2 milhao Jo analfabetos. : a “ Sao Paulo é 0 centro financeiro do Brasil eo Municipio de Paulo contou com um orgamento, para 1990, de 3,87 bilhoes Sout A Secretaria de Educagao Publica, que por lei muni- cipal deve receber 259 dos impostos arrecadados no municfpio, contou com um orcamento educativo de meio bilhao de dlares. Quatro objetivos marcam a agio da administragao Freire em ‘Séo Paulo: 1) ampliar 0 acesso ¢ a permanéncia dos setores or pulares — virtuais inicos usudrios da educagao ptiblica; a 7 mocratizar 0 poder pedag6gico ¢ educativo para que todos, He nos, unciondios,professore,técnicos educativos, pais de fami, se vineulem num planejamento autogestionado, aceitando as ten- stes¢ contradgSes sempre presentes em todo esforgo participa tivo, porém buscando uma substantividade democraticas 3) i Grementar a qualidade da educagio, mediante a construgio cole- tiva de um currculo interdisciplinar e a formagio permanente do Pestoal docente; 4) finalmente, o quarto grande objetivo da gesti0 14 — nio poderia ser de outra maneira — é contribuir para eliminar © analfabetismo de jovens ¢ adultos em Sao Paulo. Diversos instrumentos ¢ politica foram implementados para cumprir esses objetivos, incluindo-se desde atividades de reparo tstauragdo de edifcios e bancos escolares, profundamente af, tados pela falta de investimento na educacio devida & adminises, 20 anterior, de Janio Quadros, até um incremento do material didético para alunos , especialmente, profesores, requisites indi Pensiveis para avangar no sentido de uma educacio de qualidade, Entre os instrumentos mais audazes contam-se: a implemen- tagio, a fundo, dos conselhos de escola, criados mas néo imple. mentados na administragio de Guiomar Namo de Mello no tems, o de Mério Covas (1983-1985), onde a gestio democtitice da escola se negocia (Sempre entre tensées de indole variads); a im lementagéo de um ambicioso plano de reforma curricular bases, da na nogio de um tema gerador compreendido como uma pers, Pectiva interdisciplinare sustentado num mecanismo de formasao Permanente dos professores e pessoal de avaliacio: e a ctiagdo do Movimento de Alfabetizacio de Jovens © Adultos de Si0 Paulo (Mova), iniciativa dos movimentos sociais de $50 Paulo, come tuma maneira de estabelecer uma parceria entre movimentor so, ciais € © setor ptiblico, © modelo politico-pedagégico que inspira essa administra- fo popular em educagio € a nosio de exola publica popular Num primeiro documento elaborado pela administragdo Freire ¢ Publicado no Didrio Oficial do Municlpio de Sio Paulo em 19 de feverciro de 1989, com o titulo “Aos Que Fazem a Edu. cago Conosco em Séo Paulo”, se definem os eixos diretores da Proposta de escola priblica popular: “A qualidade dessa escola deverd ser medida nao apenas pela quantidade de contetidos transmitidos ¢ assimilados, mas igualmente pela solidariedade de classe que tiver construido, pela possibilidade que todos os usudtios da escola — 15, Digitalizado com CamScanner cluindo pais ¢ comunidade — tiverem de utilizé-la como lum espago para a elaboragio de sua cultura. / “Nao devemos chamar 0 povo & escola para receber instru- es, postulados, receitas, ameacas, repreensdes © punices, mas para participar coletivamente da construcio de um sa- ber, que vai além do saber de pura experiéncia feito, que leve em conta as suas necessidades ¢ 0 torne instrumento de luta, possiblitando-the transformar-se em sujeiro de sua pré- priahistria. A partcipagéo popular na criagdo da culeura ¢ da educaco rompe com a tradicio de que s6 a elite é com- petente e sabe quais sio as necessidades e interesses de toda a sociedade. A escola deve ser também um centro irradi da cultura popular, & disposigéo da comunidade, nao para consumi-la, mas para recrid-la. A escola é também um espago de onganiaro pola das cases populares A cto como tum espago de ensino-aprendizagem seré entéo um centro de debates de idéias, solucées, reflexées, onde a organizagio po- pular vai sistematizando sua pr6pria experiéncia. O filho do trabalhador deve encontrar nessa escola os meios de auto- emancipagio intelectual independentemente dos valores da classe dominante. A escola nao ¢ sé um espago fisico. E um lima de trabalho, uma postura, um modo de ser. “A marca que quetemos imprimir coletivamente &s escolas privilegiard a associagéo da educagao formal com a educagio nio-formal. A escola nao é o tinico espago da veiculagao do conhecimento, Procuraremos identificar outros espacos que possam propiciar a interagao de priticas pedagégicas dife- renciadas de modo a possibilitar a interagao de experiéncias. Consideramos também priticas educativas as diversas formas de articulagao que visem contribuir para a formagao do su- jeito popular enquanto individuos criticos e conscientes de suas possibilidades de atuacéo no contexto social.” (Didrio Oficial do Municipio de Sio Paulo, 01.02.89.) 16 lor—~ Os textos de Paulo Freite recolhides no podem ser divididos em duas grandes panes “Educa Pas vt berdade Numa MettSpole Contemporines’ “Reflexses Sobre a Experitncia Com Trés Educadores?. Sio textos de briga, de batalha, do politico ¢ administrative, Nao constituem tice de Freire sobre esses dois anos e meio de adminstncis ela, cativa. Essa avaliaggo serd feita Aum préximo livro seu, Cartas a Cristina, que Freice foi esctevendo durante a dima deca s primeitos resultados da A taxa de aprovagio foi aumentada de 77, cotidiano pedagégico, uma avaliagéo sistema. © orgio mais _po- ipal. Os salatios do magistério tém sido Imelhorados substantivamente — talvezseja eite um dado que explique a maior produtividade do sistema, Esti em fase final de claborasio o primeiro esbogo de um Estatuto do Magisério, pr. meira medida desse tipo na histéria da educacio publica muni. cipal de Sio Paulo, Mais de 90 movimentos sociais assinatarn convénios com a Secretaria de Educacio como parte do Movs, Enfim, esses sdo apenas alguns indicadores da primeira metade da gestio do PT em educacio, sob a condusfo direta de Paulo Freire, Resta, € claro, a necessidade de se fazer uma avaliacdo ‘igorosa, uma vez completado todo 0 mandato, Nio resta divida de que a nogio de politicidade da educa- So, a qual Paulo Freite ndo deixa de repetir, ¢ a nogio da edu- ‘acio como um ato de conhecimento, tém estado intimamente Presentes na pritica cotidiana de Freite como secretirio de Edu- aso da Cidade de Sio Paulo. Confiamos em que a leitura destas paginas oferecerd 20 leitor uma oportunidade excelente para dialogar com um grande edu- cador sobre a educagio na cidade. Sao Paulo, 6 de julho de 1991. 17 Digitalizado com CamScanner PRIMEIRA PARTE Educar para a liberdade numa metrdpole contemporanea Digitalizado com CamScanner XQ 1 Os déficits da educacao brasileira’ Nao me parece possivel a nenhum educador ou educadora que assuma a responsabilidade de coordenar os trabalhos de uma Secretaria de Educagao, nao importa de que cidade ou Estado, escapar ao desafio dos déficits que a educacao brasileira experi- menta. De um lado, o quantitativo; do outro, o qualitativo. A insuficiéncia de escolas para atender a procura de criangas em idade escolar, que ficam fora delas, ou a inadequacidade do cur- ticulo entendido 0 conceito no maximo de sua abrangéncia. E importante salientar também que uma politica educacional critica nao pode entender mecanicamente a relacdo entre estes déficits — o da quantidade e o da qualidade — mas compreendé-los, dinamicamente, contraditoriamente. £ imposstvel atacar um des- ses déficits sem despertar a consciéncia do outro. Se se amplia a capacidade de atendimento das escolas em face da demanda, cedo ou tarde haver4 pressao no sentido da mudanga do perfil da esco- la./Se se tenta a democratizagao da escola, do ponto de vista de sua vida interna, das relagdes professoras-alunos, dire¢io-profes- Sores etc. e de suas relagdes com a comunidade em que se acha, se se busca mudar a cara da escola, cresce, necessariamente, a Procura a ela. — Entrevista concedida a revista LEIA, Sao Paulo, 19 de fevereiro de 1989. 21 Digitalizado com CamScanner as mantemos bem-cuic * criador scans consttuirmos ina sala de aula mas tamb&in) (~_ Se nao apenas tv adas, zladas, limpas, alegres, bonitas, cede ceoan do cpece eqer cua Wamiie=: « ) a alegria de aprender, a da imaginacio, a da aventura de ctar, ou tarde 2 propria bo te. do ensino competente, ta tendo liberdade de exercitar-se, afirmar uma obviedade: os déficits re- castigam sobretudo as familias po- de criangas sem escola no Brasil nao hd meninos ou meninas das familias que reeanaca : tonham. E mesmo quando, do ponto de vista da qualidade, 2 cscola brasileira nfo atenda plenamente as criangas chamadas “bem-nascidas”, sio as criangas populares — as ue conseguem chegat 3 escola nela ficar — as que mais softem a desqu da educagio. eS ~Pomémos aqui ¢ agora, nesta conversa, um coe apna Z muito imporante, da priica educaivao da avaiagfoy 0 da afericdo de saber, “Os eritérios de avaliacao do saber dos oc EIRENE oes cxcla us, ileus formas eens, necessariamente ajudam as criangas das classes sociais Calas favorecidas, enquanto desajudam os meninos e meninas popula- res, E na avaliagio do saber das criangas, quer quando recém-c — gam A escola, quer durante o tempo em que ncla esto, a escola, de modo geral, nao considera o “saber de experiencia feito’ ue as criangas trazem consigo. Mais uma vez, a desvantagem € das criangas populares. E que a experiéncia das criangas das classes médias, de que resulta seu vocabulério, sua prosddia, sua since, afinal sua competéncia lingiifstica, coincide com 0 que a escola considera 0 bom ¢ 0 certo. A experiéncia dos meninos populares se dd preponderantemente nao no dominio das palavras escritas ‘mas no da caréncia das coisas, no dos fatos, no da agao direta. Democratizando mais seus critétios de avaliagio do saber @ escola deveria preocupat-se com preencher certas lacunas de ¢x- Pevigncia das criangas, ajudando-as a superar obsticulos em set Processo de conhecer. £ Sbvio, por exemplo, que criangas a que™ fundamental, creio, feridos da educacio entre nds pulares. Entre 0s oito milhées 22 falta a convivéncia com Pequena relagio, nas ruas ¢ em casa, criangas cujos pais ndo leer livros nem jornais, tenham mais dificuldades em passar da lin. uaguem oral 3 escrita. Ito nao significa, porém, que a caréncia ve santas coisas com que vivem crie nelas uma “natureaa” dif Lente, que determine’ sua incompeténcia absoluta.{ ~~ «___ Um sonho que tenho, entre um sem-niiméto de outros, € ‘semear” palavras em dreas populares cuja experiéncia social nao seja escrita, quer dizet, areas de memétia preponderantemene © oral, Os grafiteiros que fazem tanta coisa bonita nesta cidade bem que poderiam ajudar, na realizagéo desta sé loucura que os ho. mens da indisttia e do comércio poderiam financiar. No Chile, quando ld vivi no meu tempo de exilio, os “se- ‘meadores de palavras” em dreas de reforma agrita foram os pr. prios camponeses alfabetizandos, que as “plantavam” nos das drvores, as vezes, no chio dos caminhos, Gostaria de acompanhar uma populagdo infantil envolvida num projeto assim e observar seus passos na expetiéncia da alfa. betizacao. troncos Mas, voltemos a0 comego de nossa conversa. Ao assumit 2 Secretaria de Educacao da Cidade de Séo Paulo no poderia deixar de estar atento aos déficts de que estamos falando. De qualquer maneira, antes mesmo de pensar na construgio de salas ou de tunidades escolares & altura da demanda — caso dispuséssemos, ara este ano, de dotagées orcamentirias ou recursos extraordi- niérios — terfamos de enfientar o desafio enorme com que a administragao anterior nos brindou. Cerca de cinqiienta escolas em estado deploravel — tetos caindo, pisos afundando, instalagées létticas provocando isco de vida; quinze mil conjuntos de car- teiras escolares artebentadas, um sem-nimero de escolas sem uma escolar, sequer. E impossivel pedir aos alunos de escolas io maltratadas assim ¢ no por culpa de suas diretoras, de suas professoras, de seus zeladores ou deles, que as 2elem. Nem uma das diretoras de todas essas escolas quase devastadas deixou de 23 Digitalizado com CamScanner jreito 0 reparo das mes lee eae ees tealiza comicios ow pa ae an Fick be dress populates em que mane] bias podagbsicepoliies Oem chet escolas convidere . en video @ ado ogo fia no cuidado da coisa public vo aa ee rep rent rsa sw dades arrasadas, fizendo 0 possivel para manter cuidada a rede an mesmo tempo, port, comeramosa tabalhar seamen com visas 4 refrmulaso do cuclo de nosas exc, caja cordeaso engi prfesora Ana Maia Saul, da PUC (Poncificia Universidade Caréica) uma das. mais comp expecilinas brains em Teoria do Cureeulo. Pretendemos na verdade mudar a “cara” de nossa escola. \ Nao pensamos que somos os tinicos ou os mais gamete (es, — sabemos que, somos capazes ¢ que temos decisio politica p fazé-lo. Sonhamos com uma escola puiblica capaz, que se va ae titwindo aos poucos num expago de criatividade. Uma escola de- mocritica em que se pratique uma pedagogia da eee que se ensine e se aprenda com seriedade, mas em que a seriedade jamais vire sisudez. Uma escola em que, ao se ensinarem neces- sariamente os contetidos, se ensine também a pensar certo. Envidentemente, para és, a reformulagéo do curticulo no pode sr algo fit, eaborad, pesado por ima dizi de ium nads cujos resultados Finis so encaminhados em forma de “p- cote” para serem executados de acordo ainda com as instrugées € guias igualmente elaborados pelos iluminados, A reformulagio do curriculo & sempre um processo politico-pedagdgico e, para ns, substantivamente democriticn Considerando 0 que hi na prética educativa de gnosiolégico, de politico, de cientifico, de artistico, de ético, de social, de co- municasio, comesamos a constituir durante janeiro ¢ fevereiro Brupos de especialistas, sem énus Para a Secretaria, professores € 24 Fiscos, mateméticos, bidlogos, psicblogos, lingiistas, socié- logos, tebricos da politica, are-educadores, fldsofee, juristas en- volvidos em programas de diteitos humanos e, mais recentemente, ura @aulipe de educadores ¢ psicSlogos que trabalham a proble, imitica da sexualidade, No fim deste més teremos a primera rex nigo om todas essas equipes quando faremos uma avaliagio do trabalho até agora realizado, No comego de marco estaremos, através das diferentes ins- fincias da Secretaria estabelecendo didlogo franco, aberte, coms distorts, esordenadonss,supervisoras, profesorss,xladorss, ma fendciras, alunos, familias, liderancas populares. Esperames cong giies encontros ajudar a formagio ¢ a solidificaggo dos conselhes de escola, Numa perspectiva realmente progresista, democritica e nao. auroritdria, ndo se muda a “cara” da escola Por portaria. Nao se / decreta que, de hoje em diante, a escola ser competente, sétia e \ dlsere- No se democsuiza a escola aurotitaiamens:. A Adee s- ma Precise testemunhar ao compo docente que o respeits, que info eme revelar seus limites a ele, corpo docente. A Ad Gi, nistraclo precisa deixar claro que pode errat, S6 nao pode € ment Outra coisa que a Admi cia de seu respeito ao corpo docente ¢ 3 arch que ele tem é Pensar, organizar ¢ executar programas de formacéo permanente, contando inclusive com a ajuda dos cientistas cam quem temos ttabalhado até agora. Formacio permanente que se funde, sobre- tudo, nna reflexdio sobre a pritica. Seri pensando a sua pritica, Por exemplo, de alfabetizadora, com equipe cientificamente pre- Parada, seré confrontando os problemas que vém emergindo na Sua pratica didtia que a educadora superard suas dificuldades, y 25 Digitalizado com CamScanner E dao que nada dso sfx da note pata 0 dis ¢ Tudo vo demands um grande eso, competes materiais ¢ uma impaciente paciéncia, ibe, As wexes no posso deixar de rr, quando cents cca & que nfo penso “nada de concreto”. Havers muie tem 25 coisas ma concretas do que lutar para reparar 50 escolas esfaceladars Haver, algo mais concreto do que pensar teoricamente a teformulacsg do curricule? Serd que ¢ vago ¢ abstrato visitar tanto quan, peas sve asescolas da rede, e discutir seus problemas concrtos tt diretoras, professoras, alunos, zeladores? Finalizando esta conversa gostaria de dizer 20s educadores ¢ as educadoras com quem tenho agora a alegria de trabalha continuo disposto a aprender e que € porque me abro se, aprendizagem que posso ensinar também. Aprendamos ensinando-nos. que -mpre } 26 2 Para mudar a cara da escola’ Escola Nova: © que difere, na pritica, a proposta do PT™ em relagio as demais propostas pedagégicas? Paulo Freire: Apesat de me saber um educador petista*** — aderi a0 PT quando ainda me achava na Europa — nio gos- taria de dar & minha resposta a cor do discurso de quem fala em nome de meus companheiros. Sem pretender, de maneita ne. nhuma, dar a impressio de ser personalsta prefiro falar um pou. co de como penso, convencido de que, substantivamente, me coloco no horizonte de aspiragées do PT. Por outto lado, nio Bostaria tampouco, de fazer paralelos, eu mesmo, entte © que Penso € © que fago, como educador petista, e 0 que pensam ¢ fazem educadoras ¢ educadotes de outros partidos. Falarei de al. "Entrevista concedida & revista Eieols Non, Sio Paulo, de 26 de feverero de 1989. Partido dos Trabalhadores, o PT foi fundado em 1980, em plena dertocada Gp diadura militar que governou o pts desde 1966, Divda externa, inflasso slevadee miséria constutam 0 lina propio para a inten movimentagio opetiria na petiferia de Sio Paulo, sob a égide do lider metal Tgnécio (Lus) da Siva. A onaniasso politica dos operrios em paride teve fespaldo significatvo e sucesso gragas 3 pancipagso de intelectuas de exquer. sa, A viéria de Luiza Erundina, prefeta de S50 Paulo, & um exemplo. "* Passes € 0 simpatizante ou fiiado ao PT. 27 Digitalizado com CamScanner que me parecem fundamentais 2 poles educativa de um partido que, sendo poptlar, nao € popul ee revolu- executa, | SE ~-A natureza da pritica educativa, a sua necessaria diretivi (dade, 05 objetivos, os sonhos que se perseguem na pritica no \permitem que ela seja neutra, mas politica sempre. £ a isto que eu chamo de politicidade da educasio, isto é, a qualidade que tem a educagio de ser politica. A questio que se coloca E saber que politica € essa, a favor de qué ¢ de quem, contra (© qué ¢ contra quem se realiza. E por isso que podemos afir- mar, sem medo de errar, que, se a politica educacional de um partido progressista e sua pritica educacional forem iguais & de um partido conservador um dos dois esté radicalmente er- rado. Daf a imperiosa necessidade que temos, educadoras educadores progressistas, de ser coerentes, de diminuir a dis- tincia entre 0 que dizemos € 0 que fazemos. Nao que esteja pensando que os educadores e as éducadoras progressistas vi- femos anjos ou nos santifiquemos na busca da absoluta coe- réncia que, em primeito lugar, faria da vida uma experiénci sem cheiro, sem cor, sem gosto e, em segundo lugar, ndo nos permitiria sequer saber que éramos coerentes, pois que ndo haveria a incoeréncia para nos ensinar, guns pontos, Mas, o que & preciso é essa procura constante, critica, para compatibilizar 0 dito com o feito, Redizer 0 dito quando 0 que Ente ue nio € possvel, para mim, ¢ falar no respeito a Popul ares, mas, a0 mesmo tempo, considerar que clas Ia demecu Sit maiotidade para dirigit-e; ¢ falar de uma esco- © manietar as professoras, em nome de sia pouct 28 competéncia, com “pacotes"* emprenhados por nossa sabedoria. O que nao é possivel € negar a prética em nome de uma teoria que, assim, deixa de ser teoria para ser verbalismo ou intelectualis- ‘mo ou negara teoria em nome de uma pritica que, assim, se arrisca a perder-se em torno de si mesma. Nem elisismo teoricista nem basismo praticista, mas a unidade ou a relagio teoria e prdtica, Vejamos outro ponto importante no rol destas considerasées. Se hé algo em que 0 educador progressista sério se identifica com um educador conservador, igualmente sério, € que ambos tém que ensinar. Por isso mesmo ambos tém que saber o que ensinam. ‘Mas, ao nos determos sobre isso que os identifica, isto é, 0 ato de ensinar um certo contetido, imediatamente percebemos que, a partir do que os identifica, comegam a distinguir-se. Nao quero dizer que 4x4 so 16 para um professor progressista ¢ 14 para Mm_professor_conservador.°O que quero dizer € qué a propria) compreensio do que €ensinar, do que € aprender ¢ do que & \conhecer tem conoragées, métodos ¢ fins — diferentes para um Para outro Como também o tratamiento dos objetos a serem ensinados © a serem apreendidos para poderem set aprendidos Pelos alunos, quer dizer, os contetidos programaticos. Para o educador progressista coerente, 0 necessirio ensino Mos contetidos estard sempre associado a uma “leitura critica” da ‘gealidade, Ensina-se a pensar certo através do ensino dos conteti- dos. Nem o ensino dos contetidos em si, ou quase em si, como © 0 contexto escolar em que sio tratados pudesse ser reduzido a uM espago neutro em que os conflitos sociais no se manifestas- sem, nem © exercicio do “pensar certo” desli i certo” desligado do ensino contetidos. = ‘es Pucote, itonicamente, significa leis ou decretos baixados para detetminados Eis, Sempre numeross, pos © Brasil & um pals de marcada tadigso buro- Titica ¢ famoso por seu exagerado niimero de leis ¢ afins, am de serem ‘tadicionalmiente voliveis, 29 Digitalizado com CamScanner ‘0 dinamica, processual, que pretendo estimular sede Mais ainda, para um educador progressista a eo é possivel minimizat, desprezat, o “saber de ex cocrente nig ¢ possMucandos trazem para a escola. A sabedoria rena feito” ae OF Snpreensvel que a FUDCUTAqUE 0 Saber aie desta est eMyureza cientifica,extabelece, em face daquele saber,

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