GARY TOMLINSON Em suas formas atuais, a etnografia e a historiografia sã o gêmeas, nascidas do mesmo parentesco no mesmo momento da aurora da modernidade ocidental do século XVIII. No entanto, na maioria das vezes, eles parecem nã o-idênticos, até mesmo gêmeos antitéticos, cada um dos traços de um respondendo a um traço correspondente, mas inverso, do outro. Essa relaçã o complementar foi comentada e analisada quase desde o século XVIII. Um resumo recente, oferecido por Michel de Certeau na esteira do estruturalismo de Lévi-Strauss, coloca da seguinte maneira: Onde a etnografia tomou como objeto a oralidade, a historiografia escrutina traços escritos; onde um deles quis descrever um espaço atemporal da cultura, o outro segue a mudança ao longo do tempo; o primeiro parte de um gesto de estranhamento e moralidade, o outro a partir de uma suposiçã o de identidade transparente; a primeira analisa fenô menos coletivos de um inconsciente cultural, a segunda a consciência do autoconhecimento histó rico (de Certeau 1988, 209-10). Esses contrastes certamente foram borrados, revisados e rearranjados ao longo dos dois séculos de desenvolvimento da antropologia e da histó ria como disciplinas modernas. Em um trabalho muito recente, testemunhamos a antropologia medindo a consciência de mudança dos in- formadores ao longo do tempo, e pesando por escrito Este ensaio é uma versã o revisada e abreviada de um publicado sob o mesmo título em I I Saggiatore musicale (8.1, 2001, pp. 21-37). Gary Tomlinson documentos de um passado outrora irrecuperá vel (por exemplo, Sahlins 1985; Comaroff e Comaroff 1992), ou, inversamente, a histó ria se preparando para recuperar um legado nã o escrito e descobrir a alteridade distante de seus atores anteriormente familiarizados (Ginzburg 1985; Burke 1987; 1988). Tais movimentos devem abordar uma dú vida bá sica se quaisquer diferenças substantivas separam as duas disciplinas - quaisquer diferenças, isto é, outras que nã o sejam aquelas sancionadas por ideologias gastas pelo tempo ou as esperanças afeitas dos etnó grafos pela sobrevivência da experiência vivida em suas explicaçõ es escritas. . No entanto, as diferenças disciplinares da histó ria e da antropologia nunca foram totalmente eliminadas. Esses esforços distintos continuam a elaborar, se tacitamente ou, muitas vezes, atualmente, num clima de autocrítica explícita, uma ideologia que limita um eu ocidental histó rico, alfabético e consciente e se opõ e a ele como algo está tico, iletrado, nã o autoconsciente. de outros. A relaçã o, ao longo de mais de dois séculos, da musicologia com este conjunto de distinçõ es disciplinares e seu equívoco deve ser complexa. A bolsa de estudos de mú sica analisa um modo performativo semelhante à oralidade do antropó logo; ao mesmo tempo, move-se no meio da escrita naturalizada na historiografia, mas desconfortavelmente casada, como um meio em desacordo com suas fontes, com a etnografia. Além disso, a mú sica em si era no momento em que a aparência da musicologia era remodelada de uma maneira que a colocava em oposiçã o à s vozes por trá s da etnografia. Assumia um lugar na ideologia européia que acabaria exaltando-a, aliando-a mais firmemente à escrita do que antes e distanciando-a de atividades nã o-européias relacionadas que uma designaçã o anterior, mais ecumênica, adotara. Musicologia - o pró prio nome incorpora uma palavra que veio, através do século XVIII europeu, para indicar uma arte "excelente" no centro de novas preocupaçõ es estéticas e que designou, em meados do século XIX, a a melhor arte, a arte para cujas capacidades transcendentais e espirituais todos os outros olhavam com inveja. No decorrer do século, de 1750 a 1850, a mú sica se alojou no coraçã o de um discurso que separava a Europa e suas histó rias das vidas e culturas nã o-européias. Empoleirado no á pice das novas thetics AES, veio a funcionar como uma espécie de caso-limite de singularidade europeia na histó ria do mundo e uma afirmaçã o da diferença, dentro da forma- çã o cultural da modernidade, entre histó ria e antropologia. A mú sica, nesse sentido, silenciava muitas atividades nã o-européias à s quais ela poderia ter assistido. Há um outro lado, no entanto, da conexã o da musicologia com a etnografia e a historiografia dos gêmeos. Se, por um lado, as novas estéticas da mú sica e da musicologia a que ela deu origem ampliaram Musicologia, Antropologia, Histó ria a distâ ncia entre histó ria e antropologia, por outro lado, uma antiga ideologia do canto trabalhou para enfatizar suas afinidades e juntá -las. A concepçã o comum da musicologia como disciplina inventada apó s o surgimento cheio de pontos de vista româ ntico da mú sica-inventado, mesmo no final do século XIX, com um fons et origo no famoso manifesto de 1885 de Guido Adler (Adler 1885; Mugglestone 1981) -Nã o pode substitua esta formaçã o mais á guia. Nã o apenas esquece a grande literatura sobre a histó ria da mú sica produzida no século XVIII, mas também ignora um fato de importâ ncia mais sutil e profunda: a presença do canto no coraçã o dos relatos do século XVIII da histó ria da sociedade européia, da Europa A posiçã o central da cançã o em escritos oferecendo teorias generalizadas sobre as origens da linguagem e da sociedade tendia a unir ao invés de distinguir experiências musicais européias e nã o-européias. Essa posiçã o, consolidada nos anos 1700 em escritos de Vico, Condillac, Rousseau, Herder e outros, situou-se cantando no nexo das disciplinas emergentes da etnografia e da historiografia. Poderia até oferecer mú sica como o nexo em si - como um ponto de fuga, por assim dizer, de distinçõ es do europeu de outras sociedades. A musicologia, portanto, nã o é apenas o neto do século XIX e do século XX de uma antropologia e de uma historiografia há muito tempo separadas. Um impulso musicoló gico anterior (ou cativante como o chamei em outro lugar, meio a sério, para distingui-lo de desenvolvimentos posteriores) precede o surgimento pleno da historiografia e da etnografia modernas; formas, até mesmo, uma parte de sua ascendência; e resiste, no momento de seu nascimento, à sua separaçã o muito clara. A mú sica fundamental nã o é a categoria fundamental aqui. É característico de um período em que uma concepçã o moderna da mú sica ainda nã o havia se estabelecido, de modo que a mú sica ainda pudesse se apresentar como um modo expressivo compartilhado pela Europa com o resto do mundo. Este é o papel geral que desempenhou nos relatos protoetnográ ficos de viajantes, exploradores e missioná rios europeus ao longo dos séculos XVI e XVII. Aqui o canto dos nã o- europeus nã o foi diferenciado de qualquer maneira categó rica da mú sica européia, mas foi assimilado nele, aferido contra ele, à s vezes celebrado em comparaçã o com ele, e colocado em diferentes pontos ao longo do mesmo espectro de metafísico. funçõ es expressivas (usualmente estendendo-se do divino ao demoníaco). Mais tarde, em escritos como o Ensaio sobre as Origens da Linguagem, de Rousseau, e a Nova Ciência de Vico, um elemento de historicidade, em certa medida inovador, entrou em pontos de vista europeus. Ora, o canto nã o europeu foi concebido por Gary Tomlinson como equivalente (de qualquer modo) à s prá ticas européias contemporâ neas, mas como uma sobrevivência em lugares longínquos de prá ticas que a Europa há muito havia superado. Essa percepçã o da distâ ncia histó rica na diferença geográ fica e cultural sugeria distinçõ es posteriores da historiografia e da etnografia, enquanto ainda resistia a elas na comunalidade da pró pria cançã o. O canto nã o europeu ainda era comensurá vel com o canto europeu, embora fosse deslocado dele ao longo de um eixo histó rico. Nesta dispensaçã o, apresentaram autores como Vico e Rousseau com o enigma do suplemento de Derrida (Tomlinson 1995, 346-51). Uma vez encarada como a mais antiga e mais imediata das elocuçõ es - a forma pela qual a linguagem surgiu pela primeira vez - e como uma arte passional mas modulada dos dias atuais, a cançã o foi dotada de características expressivas tanto primitivas quanto modernas, brutalmente diretas e delicadas. catamente metafó rico, barbaramente nã o-europeu e de aperfeiçoamento (europeu) consumado. O enigma aponta para desenvolvimentos posteriores na ideologia européia enquanto, ao mesmo tempo, nos afirma a proximidade, neste momento, das perspectivas histó ricas e antropoló gicas. Por volta de 1750, a mú sica oferecia uma categoria, ao mesmo tempo conceitual e perceptual, na qual a antropologia e a historiografia começavam a assumir seus contornos modernos, resistindo à s oposiçõ es que mais tarde as separariam.A mú sica que veio para combater tal mú sica nas décadas anteriores a 1800 nã o foi concebida. como uma versã o européia das atividades mundiais, mas como um métier europeu oposto à s prá ticas em outros lugares, por mais que se assemelhe superficialmente a elas. Foi sancionada dentro das concepçõ es novas no final do século XVIII: novas concepçõ es das capacidades expressivas nã o-miméticas da mú sica e da transcendência musical do mundo sensível (Dahlhaus, 1989a), uma nova discretude e fixidez da pró pria obra musical (Goehr). 1992), até mesmo uma revisã o do sujeito humano que percebeu todas essas coisas (Tomlinson, 1999). Foi representado sobretudo pelos gêneros, instituiçõ es e tradiçõ es da mú sica instrumental. Se por volta de 1700 a mú sica oferecesse um guarda-chuva conceitual sob o qual as atividades musicais do mundo, nã o-européias e européias, poderiam reunir (se desconfortá vel), agora a mú sica instrumental - mú sica sem palavras, nã o longas - colocaria uma nova categoria excludente da espiritualidade européia. superioridade Tal categoria nã o poderia deixar de trazer profundas implicaçõ es tanto para a antropologia quanto para a historiografia. Uma marcaçã o inicial dessa nova categoria é o posicionamento de Kant da mú sica instrumental em sua aná lise da beleza em suaCritique of Judgment (KantMusicologia, Antropologia, Histó ria [1790]. ] 2000 pt.l, bk.l, seçã o 16: "O julgamento do gosto, pelo qual um objeto é declarado bonito sob a condiçã o de um conceito definido, nã o é puro"). A beleza livre ou descomprometida, portanto, pura, que Kant encontra em tal mú sica - em "fantasias de mú sica (ou seja, , peças sem qualquer tema [Thema]) e de fato toda mú sica sem palavras "- é estranha à maioria dos outros produtos humanos, como o pró prio corpo humano, edifícios, até cavalos (aparentemente concebidos apenas por Kant, como gado). A beleza desses produtos humanos depende dos conceitos dos fins ou fins previstos para eles, surge, portanto, de uma ordem moral e racional humana, mas a beleza da mú sica instrumental manifesta uma espécie de er- rança, uma independência de tais humanistas. ordens morais que o comparam à beleza sem sentido das flores, dos pá ssaros exó ticos e das conchas. O inverso do exemplo de Kant é implícito, mas claro: mú sica, mú sica e palavras devem manifestar uma beleza dependente, Kant só considera a cançã o à revelia. , especificando que a beleza livre é restrita à mú sica instrumental, mas essa restriçã o representa, com efeito, uma profunda diferenciaçã o das duas: nessa distinçã o (embora ele certamente nã o tivesse apreciado a consequência), Kant preparou o fundamento para o enobrecimento da mú sica instrumental ao longo do século XIX, que tomaria formas tã o diferentes quanto as complexidades da relaçã o de Wagner com a separaçã o resoluta da mú sica, do discurso e do musical de outra beleza, de Beethoven ou Hanslick ([1885] 1974). Em seu pró prio tempo, o efeito da diferenciaçã o de Kant era marcar, dentro de uma concepçã o solidá ria de estética, a filosofia da beleza, um recinto para o canto, um diferente para o jogo. A atribuiçã o de Kant de modos de beleza categoricamente diferentes a a nã o-cançã o e a cançã o pontuaram um período em que as prá ticas instrumentais na elite da Europa - a ascendência da sinfonia, do concerto e da sonata, o desafio da supremacia da ó pera por concertos pú blicos com virtuosismo instrumental e assim por diante - desencadearam sentido de realizaçã o musical europeia e singularidade que nã o poderia facilmente enquadrar-se na onipresença global do canto. Nos anos que se seguiram a Kant, de fato, as conquistas da mú sica instrumental européia recente poderiam ser vistas como a culminaçã o de uma histó ria mundial progressista. Em 1800 Herder, escrevendo em Kalligone, sua resposta à Crítica de Kant, descreveu "o lento progresso da histó ria da mú sica" até o momento, em sua pró pria Europa, quando "se desenvolveu em uma arte auto-suficiente, sui-generis, dispensando com palavras "(Le Huray e Day 1981, 257; Goehr 1992, 155). Foi um passo muito curto, logo tomado, da distinçã o kantiana das mú sicas instrumentais e vocais à afirmaçã o da Europa como o fim privilegiado da histó ria da mú sica.Gary TomlinsonDe modo que a observaçã o de Kant sobre a mú sica instrumental aponta para uma separaçã o eurocêntrica da histó ria da mú sica da antropologia musical, Allgemeine Geschichte der Musik, de Johann Nikolaus Forkel ([1788] 1967), a partir dos mesmos anos, produz uma narrativa completa de seu divó rcio. A nova força do relato de Forkel nã o está em seu tom francamente progressista, bastante comum em seus antecessores, nem mesmo em sua ligaçã o menos comum entre o avanço da mú sica e a evoluçã o da linguagem. Em vez disso, o movimento inovador e crucial pelo qual Forkel distingue a histó ria da mú sica, além da antropologia musical, é sua insistência em que a mú sica progride nã o apenas com a linguagem, mas também com a escrita.Forkel afirma primeiro que a mú sica e a linguagem se desenvolvem de forma paralela desde suas origens iniciais até sua " maior perfeiçã o "(Forkel [1788] 1967; trans. Allanbrook 1998, 280). Mas "Linguagem e escrita sempre procederam em um ritmo igual em seu desenvolvimento; portanto, pode-se presumir que a mú sica e a notaçã o tenham feito o mesmo". Os povos que usam notaçõ es musicais imperfeitas podem, entã o, alcançar apenas mú sicas "imperfeitas, extremamente desordenadas" (p. 288). Uma mú sica perfeita depende de uma escrita de mú sica aperfeiçoada. Na linguagem escrita, as razõ es de Forkel (ecoando muitos predecessores do século XVIII), a abordagem da perfeiçã o se move de está gios pictográ ficos, ideoló gicos a alfabéticos. A escrita alfabética emerge apenas apó s a obtençã o de um nível de sofisticaçã o intelectual pelo qual a escrita pode ser abstraída das coisas que ela representa; a escrita ideográ fica mostra um modo de abstraçã o menos desenvolvido, pictogramas sem qualquer abstraçã o. Como a escrita musical é a inscriçã o de corpos invisíveis e arejados, ela exige, como o alfabeto, um alto grau de abstraçã o. Portanto, Forkel conclui, "Nenhuma pessoa poderia chegar a qualquer método para traduzir suas melodias em signos antes da invençã o da escrita alfabética" (p. 287). As inferências específicas de Forkel sobre a histó ria da notaçã o musical sã o complexas. Apó s a invençã o do alfabeto, essa histó ria inverte, de certo modo, a evoluçã o da escrita da linguagem, passando de um modo alfabético incipiente para algo semelhante à pictografia em seu estado aperfeiçoado. Mas nã o precisamos seguir esses detalhes para sermos desconcertados pela força contundente do silogismo de Forkel: A perfeiçã o musical depende da perfeiçã o notacional; a perfeiçã o notacional segue o alfabetismo; portanto, a perfeiçã o musical segue o alfabeto. A Forkel absorve a evoluçã o das mú sicas em todo o mundo sob uma histó ria que aponta para a realizaçã o do alfabeto pela regiã o do Mediterrâ neo. Ao fazê-lo, ele cria para a mú sica o curso da histó ria e um espaço da antropologia, separando os dois em seus domínios específicos: musicologia, antropologia, histó ria - a primeira atravessada por sociedades alfabéticas e seus precursores, a segunda habitada por povos analfabetos. As sociedades com o alfabeto podem aproximar-se de uma arte musical perfeita; aqueles sem devem se mudar para outro lugar ou nã o se mover de jeito nenhum. "Quanto tempo um povo pode tolerar [o] primeiro estado bruto da mú sica nã o pode ser determinado com precisã o", escreve Forkel. "Ainda hoje encontramos, no entanto, entre muitos povos asiá ticos, africanos e americanos, que também sabemos que nã o progrediram por milênios em outros ramos da cultura" (p. 285). A serviço de uma histó ria da mú sica e Assim, a antropologia claramente distinta, Forkel empregou oposiçõ es estreitamente relacionadas à quelas descritas por de Certeau (1988) ao separar historiografia geral e etnografia. A histó ria da mú sica européia evoluirá da escrita, enquanto a antropologia da mú sica encontra um espaço de oralidade. A redaçã o da Europa possibilitará uma evoluçã o progressiva contrastando com a estagnaçã o cultural de outros ("Nó s ainda a encontramos hoje ..."). A escrita alfabética que habilita a perfeiçã o musical, finalmente, surgirá de um modo de consciência - a capacidade de abstraçã o - nã o alcançada por outros. Em 1788, a data do volume introdutó rio do trabalho de Forkel, a histó ria do desenvolvimento musical europeu poderia ser traçada como uma histó ria do progresso da escrita, a antropologia das mú sicas nã o-européias como o espaço sem trilha da ausência da escrita. Forkel e Kant podem parecer, à primeira vista, tocar um no outro apenas tangencialmente. O que oferece uma diferenciaçã o de beleza na mú sica, da beleza na mú sica instrumental, que militava em direçã o a uma histó ria da mú sica eurocêntrica; a outra, uma ênfase na alfabetizaçã o que podia separar a histó ria da mú sica da antropologia da mú sica. Os dois casos, no entanto, estã o conectados em um nível profundo. Cada um é baseado em um modo de abstraçã o: para Forkel, a capacidade que leva à escrita alfabética e depois à notaçã o musical e à perfeiçã o musical; para Kant, um exemplo humanamente criado de beleza, de algum modo liberado de todos os fins humanos. Cada uma destas abstraçõ es, por sua vez, representa uma separaçã o dos materiais musicais envolvidos de suas matrizes criativas humanas - uma maneira, isto é, de descontextualizaçã o. A beleza da mú sica instrumental é, para Kant, como a das tulipas e papagaios. Ao desenhar essa semelhança, no entanto, ele destacou (misteriosamente) a mú sica instrumental dos meios e fins humanos de sua produçã o, disseminaçã o e consumo. O afastamento de Forkel do contexto é menos evidente do que este, mas nã o menos bá sico para o seu pensamento. Para ele, o alfabetismo representa uma conquista da consciência humana, por meio da qual um sistema de escrita perde-se das condiçõ es de percepçã o visual de Gary Tomlinson, um distanciamento ausente de uma pictografia; em geral, o alfabetismo é uma marca da separaçã o em pessoas avançadas de conceitos dos estímulos sensoriais. A escrita musical segue como um relativo (se anverso) desligamento do sentido do intelecto. A obtençã o de uma notaçã o musical sofisticada produz algo como uma representaçã o pictográ fica de percepçõ es auditivas invisíveis e desencarnadas. Em notaçã o, sons invisíveis assumem uma forma visível, marcando a capacidade conceitual da alma de discernir, finalmente, as diferenças mais sutis entre eles (Allanbrook 1998, 282). Este aumento do poder conceitual da alma, nã o alguma mudança na percepçã o dos sentidos, permite a perfeiçã o da mú sica. Todo o avanço da mú sica é idealista, baseando-se na abstraçã o conceitual manifestada na notaçã o musical. O progresso da prá tica musical situada decorre da possibilidade de que a escrita musical ofereça seu desdobramento em sua situaçã o. Nã o é difícil reconhecer nos modos de descontextualizaçã o de Forkel e Kant da nova concepçã o de autonomia musical que se enraizaria fortemente no século XIX. século da Europa. Do pensamento relacionado direta e indiretamente à beleza musical destacada de Kant surgiu, como já sugeri, a ideologia da mú sica absoluta: a visã o de que capacidades especiais e privilégios aderem à mú sica sem texto ou programa, "que a mú sica instrumental expressa pura e verdadeira natureza da mú sica por sua pró pria falta de conceito, objeto e propó sito "(Dahlhaus 1989a, 7). A separaçã o de tal mú sica de seu contexto, nas opiniõ es de seus proponentes, marcou sua transcendência da histó ria e do mundo material.Visto contra o pano de fundo das intuiçõ es cantoló gicas de um momento europeu ligeiramente anterior, essa concepçã o de autonomia musical aparece como um poderosa afirmaçã o filosó fica pela elite Europa de sua pró pria realizaçã o e status. Em termos histó ricos, os termos já definidos Por Herder, em 1800, como vimos, presume-se que as tradiçõ es instrumentais européias de sua época sã o o telos de todo progresso musical. Ao fazê-lo, postula simultaneamente para os territó rios além da Europa um conjunto de limitaçõ es antropoló gicas. Esses locais sã o, agora mais do que antes, espaços de prá ticas musicais primitivas (isto é, está ticas ou a-histó ricas) ou regressivas (historicamente fracassadas). Ao vir a parecer um marcador da distinçã o européia, o instrumentalismo é agora deflagrado em oposiçã o ideoló gica complexa ao vocalismo nã o-europeu. O canto que Rousseau ainda poderia oferecer como uma característica compartilhada por toda a humanidade é agora, ao contrá rio, um índice da diferença humana. (Mais tarde, perto do fim da era do colonialismo europeu, essa visã o da mú sica instrumental encontrou seu reflexo na mú sica européia ou européia influenciada pela musicologia, antropologia e conceituaçõ es histó ricas de outras mú sicas de elite. Bruno Nettl argumentou que o instrumentalismo europeu teve um impacto profundo sobre o surgimento, por volta de 1900, do instrumento instrumental bá sico para a teoria e pedagogia da moderna mú sica clá ssica persa [Nettl 1987, 133-37]. As tradiçõ es clá ssicas indianas também sentiram o impacto do instrumental ocidental moderno desde o final do século XIX. de Forkel, por sua vez, nos mostra como essa cooperaçã o européia da histó ria musical (daí a artística, criativa, imaginativa) é aliada desde o início com concepçõ es de escrita. A partir do início do século XIX, as concepçõ es de mú sica absoluta foram combinadas com visõ es relacionadas com a importâ ncia determinante da notaçã o na histó ria da mú sica de Forkel. O resultado foi uma outra cristalizaçã o das formas ideoló gicas e das novas prá ticas que as refletiam. A idéia da mú sica instrumental como um meio expressivo autô nomo e nã o simético, junto com a formaçã o emergente da concepçã o moderna do trabalho musical discreto, investiu novos e substanciais poderes na escrita. forma do trabalho. A mú sica notada passou a ser vista menos como um roteiro preliminar para a performance do que como o locus da mais verdadeira revelaçã o da intençã o do compositor, a inscriçã o ú nica e completa do espírito expressivo do compositor que estava em outro lugar - em qualquer desempenho - apenas parcialmente revelado. A pró pria escrita musical parecia um meio inscrip- tivo dotado de um significado nã o-misterioso, misterioso e transcendente. Era agora concebível, na medida em que nã o tinha sido antes, que o trabalho como incorporado na escrita musical, divorciado de seus contextos de produçã o, performance e recepçã o, pudesse se tornar o avatar dos espaços transcendentes que a mú sica absoluta poderia alcançar e habitar. . O trabalho notado assumiu características quase má gicas, projetando o espírito para fora de forma legível, e percorrendo a distâ ncia entre o exegeta musical e o compositor. A busca pelos segredos desse trabalho escrito poderia, em grande medida, ignorar e, assim, ocultar as interaçõ es sociais dos artistas e do pú blico na pró pria cena da produçã o musical. (A linguagem aqui aponta intencionalmente para Marx: em 1900, a partitura musical mostra muitas das marcas da mercadoria fetichizada do capitalismo tardio; ver também Tomlinson, 1999, p. 81.) A capacidade de abstraçã o que Forkel tinha visto como um pré-requisito para o musical A notaçã o e, portanto, o avanço musical se colocou na mente européia como uma nova habilidade essencialmente musical: a capacidade de compreender um trabalho nã o realizado apenas a partir de sua escrita. O idealismo por trá s dessa proposiçã o é uma conseqü ência direta do idealismo que acompanha as observaçõ es de Gary Tomlinson de mú sica absoluta; mas essa variante do idealismo geral depende da inscriçã o fixa da obra. A escrita musical que Forkel sustentou como uma condiçã o sine qua non de uma tradiçã o musical avançada exerceu suas prerrogativas completas. As duas atividades primá rias que marcam o surgimento da musicologia moderna no final do século XIX cresceram à sombra dessa armadilha. - aceitaçã o da escrita musical. Os grandes projectos de criaçã o de ediçõ es "críticas" para Bach, Handel e outros compositores, que surgiram nestes anos e continuaram a um ritmo acelerado ao longo do início do século XX, marcam a nova fé no trabalho fixo na escrita musical. ; na possibilidade de representá -lo como um texto está vel e autoritá rio; e na crença de que esse texto pode nos aproximar da singular intençã o expressiva que motivou o compositor. A busca pelos segredos expressivos da partitura, entretanto, variou desde os inícios descritivos, em escritos como os de ETA Hoffmann. , na aná lise da mú sica moderna ([1810] 1989). A aná lise, sob esta luz, pode ser vista como a praxis interpretativa que surgiu da absoluta mú sica instrumental de seu contexto no momento da apoteose da escrita musical como manifestaçã o do espírito transcendente. Além disso, como uma conseqü ência das concepçõ es eurocêntricas da mú sica, a aná lise da escrita estava ligada à posiçã o européia de sua pró pria singularidade musical (e outra) na histó ria mundial. Em uma profunda tautologia foi posicionado de modo a confirmar uma culminaçã o hegeliana da histó ria musical mundial na mú sica muito absoluta que ajudou a defini-la. Nessa confirmaçã o, a aná lise oferecia critérios construídos sobre uma base de visõ es européias, incluindo uma ideologia da escrita, como uma medida universal do valor musical. Podemos sentir aqui o dilema colonial, como poderíamos chamá -lo, que condicionou o começo do tipo de musicologia que atende principalmente a obras discretas fixadas na escrita musical. Tal musicologia parte de um modo historicamente local e recente de autoconsciência musical e a projeta para fora da Europa em direçã o ao resto do mundo. Enquanto esse gesto for claramente compreendido, nã o é inevitavelmente uma coisa ruim. Em si, apenas aponta o papel geral da musicologia em um auto-escrutínio eurocêntrico que caracteriza em graus variados todas as humanidades modernas - considera a literatura, por exemplo, como uma categoria em muitos aspectos semelhante à mú sica (Eagleton, 1983, p. cap. l). Ele localiza a mú sica no esforço pedagó gico da universidade moderna da Bildung, ela pró pria em alguma medida circular. A postura de tal autoconhecimento se torna problemá tica quando nã o é acompanhada por tentativas mais ou menos extenuantes de obter conhecimento sobre urgen - quando, para aMicologia, Antropologia, Histó ria parafrase o famoso aforismo de Paul Ricoeur, o conhecimento do self é tido como significativo sem desvio conhecimento de outros relativamente distantes. Também podemos predizer a partir desses discursos a dificuldade que a etnomusicologia enfrentaria ao emergir, em meados do século XX, de uma musicologia eurocêntrica para se oferecer como alternativa ao autoconhecimento. Pré-ordenado como o estudo das culturas orais, a-histó ricas e nã o-escritas de de Certeau em uma matriz disciplinar que era da primeira definida pelos poderes europeus da escrita, nã o foi capaz de simplesmente ignorar os discursos que moldaram sua disciplina fraterna. Reagiu contra eles, em vez disso, de uma posiçã o ainda parcialmente dentro deles. A ambivalência profunda e até mesmo constitutiva da etnomusicologia, ao mesmo tempo fascinada e cautelosa, em face da aná lise musical, da partitura e da inscriçã o de tradiçõ es e prá ticas nã o escritas mostra isso tã o claramente quanto qualquer outra característica. A etnomusicologia moderna e a musicologia, como a historiografia moderna e a etnografia anterior, surgiram como gêmeos antitéticos; mas elas surgiram como uma funçã o dualista e ú nica do surgimento da mú sica a partir da mú sica. A genealogia disciplinar que é aqui nã o mais do que esboçada encoraja algumas observaçõ es gerais sobre as relaçõ es do estudo musical com a antropologia e a histó ria. Primeiro, mostra a oposiçã o da musi- cologia moderna e da etnomusicologia pelo que era originalmente: um artefato disciplinar surgindo no pensamento musical de uma nova etapa, alcançada nã o muito antes de 1800, na evoluçã o das concepçõ es européias de si e dos outros. Sob essa luz, a pró pria musicologia moderna, e nã o apenas a etnomusicologia, aparece como uma disciplina erguida em proposiçõ es de diferença cultural, européia versus nã o-européia. Ao fundar-se em tais proposiçõ es, foi desde o início etnográ fico de ponta a ponta - embora as condiçõ es de sua cultura local a tenham levado a encobrir suas fontes. Enquanto isso, a etnomusicologia surgiu, ambivalente, como uma reaçã o à ocultaçã o da verdade pela musicologia de que ela sempre foi uma instâ ncia particular da etnomusicologia. Segundo, uma anamnese é necessá ria para promover alternativas à s categorias conceituais que criaram e ainda sustentam esses constructos disciplinares. Isso pode assumir vá rias formas diferentes: uma comemoraçã o do fato de que o pensamento musical europeu precedeu a moderna distinçã o da antropologia da Europa da histó ria; um reconhecimento das maneiras pelas quais esse pensamento musical anterior reunia atividades humanas que seriam categoricamente separadas pelo impacto de discursos posteriores; e uma revisitaçã o das concepçõ es culiná rias tomeanas da Europa - de seus pró prios e de outros, musicais e nã o-musicais - à medida que mudaram ao longo do século XVIII. Pode tomar a forma de uma compreensã o de que os poderes da voz passaram a se colocar em nossa cultura musical como um "outro" do instrumentalismo poderoso (e até certo ponto suspeito). A anamnese pode até tomar a forma, finalmente, de uma meditaçã o sobre como uma musicologia pode se constituir a partir de uma estrutura conceitual de amplitude suficiente para ver que essa cançã o, o corolá rio universal da propensã o humana à linguagem, nã o é tanto uma coisa musical como a mú sica é cantada. Tudo isso sugere que uma musicologia reelaborada precisa abarcar o fato de sua posiçã o dentro de uma etnomusicologia mais geral. Isso nã o envolveria um repú dio aos câ nones da musicologia - de seu câ none de obras, com peças instrumentais de prá tica comum em seu coraçã o, ou de seus câ nones metodoló gicos, girando em torno de um exame minucioso dessas obras - mas sim uma realocaçã o desses câ nones em o panorama disciplinar e histó rico mais amplo. Seria, ao mesmo tempo, garantir que a sua implantaçã o foi acompanhada por uma crítica ideoló gica do tipo esboçado acima - por uma consciência das estruturas conceituais circunscritas e interesses políticos que ajudaram a patrocinar tais câ nones em primeiro lugar. A utilidade de tal crítica está em abrir caminho para a média Comparaçã o interessante dos anseios de fazer mú sica e modos de mú sica percorrer grandes extensõ es da histó ria e da cultura humanas - em ú ltima aná lise, talvez, em toda a extensã o da histó ria e da cultura humana à nossa disposiçã o. Eu quero dizer aqui para defender, em nossas reflexõ es disciplinares e prá ticas pedagó gicas, um neocomparativismo radical que poderia explorar as questõ es mais amplas sobre o lugar das atividades musicais na experiência humana, aspiraçã o e realizaçã o: Qual é o significado da onipresença? relaçã o entre fala e mú sica, atividades ao mesmo tempo pró ximas e distintas em todas as culturas? Por que mú sica e religiã o ou mú sica e drama estã o constantemente ligados? Como o corpo no movimento musical se estende ao mundo material através das tecnologias de fabricaçã o de instrumentos e como elas se relacionam com outras tecnologias? Qual é a natureza dos poderes peculiares das estruturas musicais repetitivas e como elas sã o empregadas diferentemente em diferentes situaçõ es? Como as tradiçõ es musicais sã o alteradas pelos modos de escrita musical? Como a gravaçã o de som e armazenamento de som reformulou a natureza das culturas de mú sicas? Como, em diferentes estruturas sociais, o poder político se acumula nos atos musicais? E assim por diante.Este neocomparativismo decolaria do particularismo que marcou a etnografia mais musical e, certamente, a maioria das mú sicas eurocêntricasGary TomlinsonDe Certeau, Michel. 1988. A escrita da histó ria. Traduzido por Tom Conley. Nova Iorque: Columbia Univ. Imprensa.Derrida, Jacques. 1976. O f grammatology. Traduzido por Gayatri Chakravorty Spivak. Baltimore: Johns Hopkins Univ. Pressione Marcus, George E. e Michael M. J. Fisher. 1986. A antropologia é uma cultura cultural: um momento experimental nas ciências humanas. Chicago: Univ. de Chicago Press.Tomlinson, Gary. 1999. Cançõ es de Vico: Detours nas origens da (etno) musicologia. The Musical Quarterly 83: 344-77.