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E REVOLUÇÃO
Perry Anderson
Tradução: Maria Lúcia Montes
tema da sessão desta noite vem despoja destas qualidades, não equivale
sendo foco de debate intelec- de modo algum a uma avaliação adequa-
tual, e de paixão política, há da da importância e do fascínio da obra
pelo menos sessenta ou setenta como um todo.
anos*. Noutras palavras, tem a esta
altura uma longa história. Ocorre, po-
rém, que no ano passado apareceu um Modernismo, modernidade, * Contribuição à Conferência
sobre o Marxismo e a inter-
livro que reabre o debate com uma pai- modernização pretação da Cultura, realiza
da na Universidade de Illinois,
xão tão renovada, com uma força tão em Urbana-Champaign, julho
inegável, que nenhuma reflexão agora so- O argumento essencial de Berman co- de 1983, na sessão cujo tema
era Modernidade e Revolução.
bre estas duas idéias — "modernidade" meça da seguinte maneira: Há um modo
e "revolução" — poderia evitar urna de experiência vital — experiência do
tentativa de acerto de contas com essa espaço e do tempo, de si mesmo e dos
obra. O livro a que me refiro é All that outros, das possibilidades e perigos da
vida — que é hoje em dia compartilha-
is Solid Melts into Air, de Marshall Ber-
do por homens e mulheres em toda parte
man. Minhas anotações esta noite tenta-
do mundo. Chamarei a este corpo de
rão — muito brevemente — examinar
experiência modernidade. Ser moderno
a estrutura do argumento de Berman e é encontrarmo-nos em um meio-ambien-
considerar em que medida ele nos for- te que nos promete aventura, poder, ale-
nece uma teoria convincente, capaz de gria, crescimento, transformação de nós
conjugar as noções de modernidade e mesmos e do mundo — e que, ao mes-
revolução. Começarei por reconstruir, mo tempo, ameaça destruir tudo o que
de forma comprimida, as linhas gerais temos, tudo o que conhecemos, tudo o
do seu livro para, em seguida, tecer al- que somos. Ambientes e experiências
guns comentários sobre a validade delas. modernos atravessam todas as fronteiras
Como em toda reconstrução deste tipo, de geografia e de etnias, de classe e na-
vai-se sacrificar aqui o ímpeto da ima- cionalidade, de religião e ideologia: nes-
ginação, a amplitude de afinidade cultu- te sentido, pode-se dizer que a moderni-
ral, a força de inteligência do texto, que dade une todo o gênero humano. Mas é
dão a All that is Solid Melts into Air uma unidade paradoxal, uma unidade de
todo o seu esplendor. Com o passar do desunidade: envolve-nos a todos num
tempo, tais qualidades certamente farão redemoinho perpétuo de desintegração e
desta obra um clássico em sua área. Uma renovação, de luta e contradição, de am-
adequada apreciação de todas elas foge bigüidade e angústia. Ser moderno é ser
à nossa tarefa de hoje. Mas é preciso di- parte de um universo em que, como dis-
zer de saída que uma análise do argu- se Marx, tudo o que é sólido se vola- 1 All that is Solid Melts into
Air, p. 15. O título é uma
mento geral do livro, como esta, que o tiliza 1 . frase do Manifesto Comunis-
ta, I.
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tótipo da nova visão em seu Fausto, que versal, em que uma civilização feita à
num capítulo magnífico Berman analisa máquina, por si só, garante frêmitos es-
como a tragédia daquele que se desen- téticos e venturas sociais. O que ambas
volve neste sentido dual: abrir as com- as posições têm em comum, aqui, é uma
portas do eu, à custa de represar o ocea- simples identificação da modernidade
no. Tanto o Marx do Manifesto quanto com a própria tecnologia — excluindo
o Baudelaire dos poemas em prosa sobre radicalmente as pessoas que a produzem
Paris podem ser vistos como parentes e são por ela produzidas. Como escreve
próximos na mesma descoberta da mo- Berman: Nossos pensadores do século
dernidade — uma descoberta que, nas XIX eram simultaneamente entusiastas e
condições peculiares de uma moderniza- inimigos da vida moderna, inesgotavel-
ção forçada feita de cima para baixo nu- mente enredados numa luta corpo a corpo
ma sociedade atrasada, se prolonga na com suas ambigüidades e contradições;
longa tradição literária de São Peters- as ironias a respeito de si próprios, as
burgo, de Pushkin e Gogol a Dostoievs- tensões interiores constituíam uma fonte
ki e Mandelstam. Uma das condições desta básica de sua força criativa. Seus
sensibilidade assim criada, argumenta sucessores do século XX cambalearam
Berman, era a existência de um público muito mais para polaridades rígidas e to-
mais ou menos unificado, que ainda con- talizações achatadoras. A modernidade,
servava a memória de como era viver ou é abraçada com um entusiasmo cego
em um mundo pré-moderno. e acrílico, ou então é condenada com um
desprezo e um distanciamento neo-olím-
picos. Em ambos os casos, ela é conce-
o século XX, entretanto, esse bida como um monolito fechado, que os
público expandiu-se ao mesmo homens modernos são incapazes de mol-
tempo em que se fragmentou dar ou mudar. As visões abertas da vida
cm segmentos incomensuráveis. foram suplantadas por outras, fechadas; o
Com isso, a tensão dialética da experiên- tanto isto quanto aquilo foi substituído
cia clássica da modernidade sofreu uma pelo ou um ou outro6. O objetivo do 6 Ibid., p. 24.
transformação crítica. Embora a arte mo- livro de Berman é ajudar a restaurar
dernista registrasse triunfos nunca dantes nosso senso de modernidade pela rea-
alcançados — o século XX, diz Berman propriação das visões clássicas de mo-
numa frase afoita, talvez seja o mais dernidade. Pode ser então que se des-
brilhantemente criativo na história do cubra que voltar atrás seja um modo de
mundo4 —, ao mesmo tempo ela deixava ir em frente: que a lembrança dos mo- 4 Ibid., p. 24.
de se conectar com ou de informar dernismos do século XIX nos possa dar
qualquer vida comum: como diz ele, não a visão e a coragem para criar os moder-
sabemos como usar nosso modernismo5. nismos do século XXI. Este ato de lem- 5 Ibid., p. 24.
O resultado foi uma drástica polarização brar pode ajudar-nos a trazer o moder-
no pensamento moderno sobre a expe- nismo de volta às suas raízes, de modo
riência da própria modernidade, aplanan- a permitir-lhe que se nutra e se renove,
do seu caráter essencialmente ambíguo para enfrentar as aventuras e perigos
ou dialético. Por um lado, de Weber a que tem pela frente7 . 7 Ibid., p. 36.
Ortega, de Eliot a Tate, de Leavis a Mar- Esta é a força-motriz de All that is
cuse, a modernidade do século XX tem Solid Melts into Air. Só que o livro con-
sido incessantemente condenada como tém um subtexto muito importante, que
uma gaiola de ferro de conformismo e
precisa ser notado. O título e o tema
mediocridade, um deserto espiritual em
organizador vêm do Manifesto Comu-
que vagueiam populações sem qualquer
comunidade orgânica ou autonomia vital. nista, e o capítulo sobre Marx é um dos
Por outro lado, contra estas visões de mais interessantes do livro. Mas ele aca-
desespero cultural, em outra tradição ba sugerindo que a própria análise de
que se estende de Marinetti a Le Corbu- Marx da dinâmica da modernidade so-
sier, de Buckminster Fuller a Marshall lapa, no fim das contas, a própria pers-
McLuhan, para não falar dos apologis- pectiva do futuro comunista, ao qual ele
tas declarados da própria "teoria da mo- julgava que ela deveria levar. Pois, se a
dernização" capitalista, tem-se ostensiva- essência da libertação dos entraves da
mente alardeado que a modernidade cons- sociedade burguesa consistisse em se
titui a última palavra em matéria de ex- atingir, pela primeira vez, um desenvol-
citação dos sentidos e de satisfação uni- vimento verdadeiramente ilimitado do
indivíduo — depois de removidos os li-
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duziu com freqüência análises locais bas- captá-lo com suficiente precisão. Trata-
tante perspicazes no campo da filosofia se da codificação de um academicismo
propriamente dita: A Destruição da Ra- altamente formalizado, nas artes visuais
zão é um livro que de modo algum pode e outras, o qual, por sua vez, era insti-
ser negligenciado, por mais que seu pós- tucionalizado nos regimes oficiais de Es-
escrito o tenha prejudicado. Por outro tados e sociedades ainda maciçamente
lado, no campo da literatura — a prin- impregnados, não raro dominados, pelas
cipal área em que Lukács o aplica — o classes aristocráticas ou terratenentes:
esquema revelou-se relativamente estéril. sem dúvida, classes economicamente "ul-
trapassadas" em certo sentido, mas que
ainda, em outros planos, davam o tom
notável que não exista nenhu- político e cultural nos países da Europa
ma exploração lukácsiana de antes da Primeira Guerra Mundial.
qualquer obra de arte moder- As conexões entre esses dois fenôme-
nista que se compare, em deta- nos estão graficamente traçadas num tra-
lhe ou em profundidade, ao seu trata- balho fundamental há pouco publicado
mento da estrutura das idéias em Schel- por Arno Mayer, The Persistence of the
Old Regime11, cujo tema central é esta- tence
11
ling ou Schopenhauer, Kierkegaard ou Arno Mayer, The Persis-
of the Old Regime,
Nietzsche; em contrapartida, Joyce ou belecer em que medida a sociedade euro- Nova York, 1981, pp. 189
273.
Kafka — para mencionar apenas duas péia era ainda, até 1914, dominada por
de suas bêtes noires literárias — são classes dirigentes agrárias ou aristocrá-
quase tão-somente invocados, sem nun- ticas (as duas não eram necessariamente
ca serem estudados por si mesmos. O idênticas, como deixa claro o caso da
erro básico da ótica de Lukács consiste, França), em economias onde a indústria
aqui, no seu evolucionismo: isto é, o pesada moderna ainda constituía um se-
tempo difere de uma época para outra, tor surpreendentemente pequeno, tanto
mas no interior de cada época todos os em termos da força de trabalho empre-
setores da realidade social se movem em gada quanto do padrão de produção. A
sincronia uns com os outros, de tal mo- segunda coordenada é um complemento
do que o declínio em um nível deve lógico da primeira: a emergência ainda
refletir-se como descenso em todos os incipiente, e portanto essencialmente nova
outros. O resultado é uma noção de "de- no interior dessas sociedades, das
cadência" claramente supergeneralizada, tecnologias ou invenções-chaves da se-
mas que tem como atenuante o fato de gunda revolução industrial — telefone,
ser enormemente afetada, é claro, pelo rádio, automóvel, avião etc. As indús-
espetáculo do colapso da sociedade ale- trias de bens de consumo de massa ba-
mã e da maior parte de sua cultura esta- seadas nas novas tecnologias ainda não
belecida — na qual ele próprio havia si- tinham sido implantadas em parte algu-
do formado — que se precipitavam no ma da Europa onde, até 1914, a indús-
nazismo. tria do vestuário, de alimentação e mo-
Mas se nem o perenialismo de Berman biliário continuavam a ser esmagadora-
nem o evolucionismo de Lukács forne- mente os maiores setores de produção
cem explicações satisfatórias para o mo- de bens de consumo em termos de em-
dernismo, qual é a alternativa? A hipó- prego e rotatividade.
tese que vou aqui sugerir brevemente é Por fim, devo argumentar que a ter-
a de que deveríamos procurar preferi- ceira coordenada da conjuntura moder-
velmente uma explicação conjuntural para nista foi a proximidade imaginativa da
o conjunto de práticas e doutrinas es- revolução social. A extensão da esperan-
téticas mais tarde agrupadas como "mo- ça ou da apreensão suscitadas pelo pros-
dernistas". Tal explicação envolveria a pecto de tal revolução variava ampla-
intersecção de diferentes temporalidades mente: mas, na maior parte da Europa,
históricas a fim de compor uma confi- estava "no ar" durante a Belle Époque.
guração tipicamente sobredeterminada. A razão disso é, mais uma vez, bastante
Quais seriam essas temporalidades? A clara: formas do ancien régime dinásti-
meu ver, pode-se entender melhor o co, como Mayer as chama, ainda persis-
"modernismo" como um campo cultural tiam: monarquias imperiais na Rússia,
de força triangulado por três coordena- Alemanha e Áustria; uma ordem real
das decisivas. A primeira delas é algo precária na Itália; mesmo na Grã-Breta-
que Berman insinua numa passagem, mas nha, o Reino Unido achava-se ameaçado
situa demasiado atrás no tempo, sem pela desintegração regional e pela guerra
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va era o colapso, visível por toda parte, neo no Ocidente é, ao contrário, o fecha-
da tensão entre as instituições e meca- mento de horizontes: sem um passado
nismos do capitalismo avançado, e as apropriável nem um futuro imaginável,
práticas e programas da arte avançada, num presente interminavelmente recor-
que ocorria na medida em que aquele rente.
anexava a esta como decoração ou diver- Isto, evidentemente, não é verdade
são ocasional, ou como seu point d'hon- com relação ao Terceiro Mundo. É signi-
neur filantrópico. As poucas exceções ficativo que tantos dos exemplos do que
do período sugerem a força da regra. O Berman considera como as grandes rea-
cinema de Jean-Luc Godard, nos anos lizações modernistas do nosso tempo se-
60, é talvez o caso mais notável nesse jam tirados da literatura latino-america-
sentido. À medida que a Quarta Repú- na. Pois no Terceiro Mundo, de modo
blica cedia já com atraso seu lugar à geral, existe hoje uma espécie de confi-
Quinta, e a França rural e provinciana guração que, como uma sombra, repro-
se transformava repentinamente por uma duz algo do que antes prevalecia no Pri-
industrialização que, sob o comando de meiro Mundo. Oligarquias pré-capitalis-
De Gaulle, se apropriava das mais novas tas dos mais variados tipos, sobretudo as
tecnologias internacionais, algo como um de caráter fundiário, são ali abundantes;
breve clarão no crepúsculo a refletir a nessas regiões, onde ele ocorre, o desen-
conjuntura anterior, que havia produzi- volvimento capitalista é, de modo típico,
do a arte inovadora clássica do século, muito mais rápido e dinâmico que nas
brilhou ganhando nova vida. A seu mo- zonas metropolitanas, mas, por outro la-
do, o cinema de Godard foi marcado do, está ali infinitamente menos estabili-
por todas as três coordenadas descritas zado ou consolidado; a revolução socia-
anteriormente. Banhado em citações e lista ronda essas sociedades como perma-
alusões a um passado da alta cultura, ao nente possibilidade, já de fato realizada
estilo de Eliot; celebrante equívoco do em países vizinhos — Cuba ou Nicará-
automóvel e do aeroporto, da câmera e gua, Angola ou Vietnã. Foram estas con-
da carabina, ao estilo de Léger; expec- dições que produziram as verdadeiras
tante de tempestades revolucionárias obras-primas dos anos recentes que se
vindas do Leste, ao estilo de Nizan. A conformam às categorias de Berman: ro-
sublevação de maio-junho de 1968 na mances como Cien Años de Soledad, de
França foi o terminal histórico que vali- Gabriel García Marquez, ou Midnight's
dou esta forma de arte. Régis Debray Children, de Salman Rushdie, na Colôm-
descreveria sarcasticamente, após o even- bia ou na Índia, ou filmes como Yol,
to, a experiência daquele ano como uma de Yilmiz Güney, na Turquia. Obras
viagem à China que — como a de Co- como estas, porém, não são expressões
lombo — descobriu apenas a América: atemporais de um processo de moderni-
mais especificamente, desembarcou na zação em constante expansão, mas sur-
Califórnia 16. Isto é, uma turbulência so- gem em constelações bem delimitadas, 16 Régis Debray, A Modest
Contribution to the Rites and
cial e cultural que se enganou a si mes- em sociedades que ainda se encontram Ceremonies of the Tenth Anni-
versary, New Left Review,
ma ao se tomar por uma versão francesa em cruzamentos históricos definidos. O 115, Maio-Junho 1979, pp.
da Revolução Cultural, quando de fato Terceiro Mundo não oferece ao moder- 45-65.
significava não mais que o advento atra- nismo nenhuma fonte da eterna juven-
sado de um consumismo permissivo na tude.
França. Mas foi precisamente esta ambi-
güidade — uma abertura de horizonte,
onde as formas do futuro poderiam assu- Os limites do autodesenvolvimento
mir alternativamente as formas escorre-
gadias tanto de um novo tipo de capita-
lismo quanto da erupção do socialismo Até agora examinamos dois dos con-
— que era constitutiva de grande parte ceitos centrais de Berman — moderni-
da sensibilidade característica daquilo zação e modernismo. Consideremos ago-
que veio a ser chamado de modernismo. ra o termo médio que faz a ligação entre
De modo nada surpreendente, ela não ambos, a própria modernidade. Esta,
sobreviveu à consolidação que se seguiu, deve-se lembrar, é definida como a expe-
com Pompidou, nem no cinema de riência pela qual se passa no interior da
Godard nem em qualquer outra parte. modernização que dá origem ao moder-
Pode-se mesmo dizer que o que marca nismo. Em que consiste esta experiência?
a situação típica do artista contemporâ- Para Berman, é essencialmente um pro-
análise de Berman da trajetória lógica em All that is Solid Melts into Air, Ber-
do pensamento de Rousseau, na medida man pode referir-se à profundidade do
em que procurou enfrentar, ao longo de individualismo que subjaz ao comunismo
várias obras sucessivas, as conseqüências de Marx 20 — uma profundidade que, 20 All that is Solid Melts
into Air, p. 128.
contraditórias dessa concepção, constitui nota ele, então com toda a coerência,
um tour de force. Mas para os propósi- deve incluir formalmente a possibilidade
tos de nossa discussão, o ponto crucial de um niilismo radical.
é o seguinte. Berman demonstra a pre- Entretanto, quando examinamos os
sença em Rousseau do mesmo paradoxo próprios textos de Marx, encontramos
que imputa a Marx: se o autodesenvol- em ação uma concepção muito diferente
vimento ilimitado é a meta de todos, da realidade humana. Para Marx, o eu
como será possível a comunidade? Para não é anterior a, mas sim constituído por
Rousseau a resposta, em palavras que suas relações com os outros, desde o iní-
Berman cita, é esta: O amor do homem cio: mulheres e homens são indivíduos
deriva do amor de si. — Estenda-se o sociais, cuja sociabilidade não é subse-
amor de si aos outros e ele se transfor- qüente, mas sim contemporânea à sua
mará em virtude 1 7 . Berman comenta: individualidade. Afinal, Marx escreveu 17 The Politics of Authentici-
ty. Nova York, 1970, p. 181.
Era o caminho da auto-expansão, não o que somente ao viver em comunidade
da auto-repressão, que levava ao palácio com outros cada indivíduo tem os meios
da virtude. . . À medida que cada ho- de cultivar seus dons em todas as dire-
mem aprendesse a expressar-se e a expan- ções: somente na comunidade, portanto,
dir-se a si mesmo, sua capacidade de a liberdade pessoal é possível ²¹. Berman 21 The German Ideology, Lon-
dres, 1970, p. 83; citado por
identificação com os outros homens se cita a frase, mas aparentemente sem ver Berman em ibid., p. 97.
dilataria, sua simpatia e empatia para suas conseqüências. Se o desenvolvimen-
com eles se aprofundaria18 . O esquema to do eu está indissoluvelmente imbrica- 18 Ibid., p. 181.
aqui é bastante claro: em primeiro lugar do nas relações com os outros, seu de-
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senvolvimento não poderia consistir ja- natureza humana que o comunismo final-
mais numa dinâmica ilimitada no senti- mente viria emancipar — uma natureza
do monadológico evocado por Berman: muito distante de uma mera catarata de
pois a coexistência de outros sempre desejos sem forma. Apesar de toda a sua
constituiria um limite, sem o qual o pró- exuberância, a versão que Berman dá de
prio desenvolvimento não poderia ocor- Marx, enfatizando de modo virtualmente
rer. Assim, para Marx, o postulado de exclusivo a liberação do eu, acaba por
Berman constitui uma contradição em aproximar-se desconfortavelmente — por
termos. mais radical e decente que seja seu tom
— das suposições da cultura do nar-
cisismo.
utro modo de dizer isto é lem-
brar que Berman não percebeu
— como, aliás, muitos outros O impasse atual
— que Marx possui uma com-
cepção da natureza humana que exclui
esse tipo de plasticidade ontológica infi- Para concluir: onde, com tudo isso,
nita que ele próprio supõe. Isto pode fica a questão da revolução? Berman é
parecer uma afirmação escandalosa, dada bem coerente aqui. Para ele, como para
a origem reacionária de tantas idéias tantos outros socialistas hoje em dia, a
aceitas sobre o que é a natureza huma- noção de revolução se estende em dura-
na. Mas esta é a sensata verdade filoló- ção. Na verdade, o capitalismo já nos
gica, conforme se pode demonstrar com traz a convulsão constante em nossas
toda a evidência mesmo pelo mais su- condições de vida, e neste sentido é —
perficial exame da obra de Marx, e com- como diz ele — uma revolução perma-
forme comprova de modo irrefutável o nente: uma revolução que obriga homens
livro recente de Norman Geras, Marx e mulheres modernos a aprender a aspi-
and Human Nature — Refutation of a rar por mudança: não apenas a ser aber-
Legend 22 . Esta natureza, para Marx, in- tos a mudanças em suas vidas, a nível 22 Norman Geras, Marx and
clui um conjunto de necessidades, forças pessoal e social, mas a demandá-las posi- Human Nature - Refutation
of a Legend, Londres, 1983.
e disposições primárias — o que ele cha- tivamente, procurar por elas de modo
ma, nas famosas passagens dos Grundris- ativo e realizá-las. Eles devem aprender
se sobre as possibilidades humanas sob a não desejar nostalgicamente as rela-
o feudalismo, o capitalismo e o comu- ções fixas, congeladas de um passado real
nismo, de Bedürfnisse, Fähigkeiten, ou imaginário, mas antes devem com-
Kräfte, Anlagen — capazes todas elas de prazer-se com a mobilidade, prosperar
se expandir e se desenvolver, mas não de com a renovação, esperar por desenvol-
se anular ou ser substituídas. Assim, a vimentos futuros em suas condições de
visão de um impulso independente e vida e em suas relações com os outros 24 All that is Solid Melts
niilista do eu em direção a um desenvol- homens, seus companheiros24 . O adven- into Air, pp. 95-96.
vimento completamente ilimitado não to do socialismo não deteria esse proces-
passa de uma quimera. Antes, o genuíno so nem o poria em xeque, mas, ao con-
"desenvolvimento livre de cada um" só trário, viria acelerá-lo imensamente e
pode ser realizado se se efetuar no res- generalizá-lo. Os ecos do radicalismo dos
peito pelo "livre desenvolvimento de to- anos 60 estão aqui presentes de modo
dos", dada a natureza comum daquilo inequívoco. A atração exercida por essas
que constitui um ser humano. Nas pró- noções tem se revelado muito difundida.
prias passagens dos Grundrisse em que Mas elas não são, na verdade, compatí-
Berman se baseia, Marx fala sem o me- veis nem com a teoria do materialismo
nor equívoco do desenvolvimento pleno histórico, entendido em sentido estrito,
do controle humano sobre as forças da nem com o registro da própria história,
natureza — inclusive as da sua própria por mais teorizada que seja.
natureza e da absoluta elaboração (He- Revolução é um termo com um sen-
rausarbeiten) das suas disposições cria- tido preciso: a destruição política, de
doras, em que a universalidade do indi- baixo para cima, de uma ordem estatal,
víduo. . . é a universalidade das suas re- e sua substituição por outra. Não se ga-
23 Grundrisse, pp. 387, 440.
lações reais e ideais²³. A coesão e esta- nha nada ao se diluir no tempo esta no-
bilidade, que Berman se pergunta se o ção, ou ao estendê-la por todas as áreas
comunismo seria capaz de encontrar al- do espaço social. No primeiro caso, ela
gum dia, reside para Marx na própria se torna indistinguível de meras refor-
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