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Teoria da decisão judicial no Código de Processo Civil:

uma ponte entre hermenêutica e analítica?

TEORIA DA DECISÃO JUDICIAL NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL:


UMA PONTE ENTRE HERMENÊUTICA E ANALÍTICA?

Theory of legal reasoning in Civil Procedure Code: a bridge between hermeneutics and
analytical?
Revista de Processo | vol. 259/2016 | p. 21 - 53 | Set / 2016
DTR\2016\22767
___________________________________________________________________________
Hermes Zaneti Jr.
Pós-Doutor em Direito pela Università degli Studi di Torino/IT. Doutor em Direito pela
Università degli Studi di Roma Tre/IT, área de concentração Teoria e Filosofia do Direito.
Doutor e Mestre em Direito Processual pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). Professor-Adjunto da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Promotor
de Justiça no Estado do Espírito Santo. hermeszanetijr@gmail.com

Carlos Frederico Bastos Pereira


Mestrando em Direito Processual pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
Bolsista pela Fapes – Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo.
Pós-Graduado em Direito Público pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Advogado.
fredbastospereira@gmail.com

Área do Direito: Processual; Fundamentos do Direito; Filosofia

Resumo: O Código de Processo Civil avançou substancialmente em relação à antiga


codificação, estabelecendo critérios de legitimação para a interpretação e aplicação do
direito com o dever de fundamentação analítica adequada do art. 489, §§ 1.º e 2.º, e os
deveres de coerência e integridade do art. 926, caput. Contudo, os referidos deveres
remetem a duas grandes tradições filosóficas que historicamente dividiram o século XX: a
analítica e a hermenêutica. O propósito do presente artigo é demonstrar que hermenêutica
e analítica estão inseridos no paradigma intersubjetivo da linguagem pós-giro linguístico e
juntas podem contribuir para redução da discricionariedade judicial e conferir maior
racionalidade às decisões judiciais. A filosofia do direito não deve absorver toda a
dogmática do processo civil, mas ter função ancilar ao permitir a sua operabilidade.

Palavras-chave: Interpretação - Hermenêutica - Analítica - Decisão judicial - Processo


civil.

Abstract: The brazilian new Civil Procedure Code has advanced substantially over the old
codification establishing criteria of legitimacy of interpretation and application of the law
with the duty of the analytical reasoning (art. 489, §§ 1 and 2), and the duties of coherence
and integrity (art. 926, caput). However, such duties refers to two major theoretical and
philosophical traditions that have historically divided the twentieth century: analytical and
hermeneutics. This paper seeks to demonstrate that hermeneutics and analytics are
embedded in the intersubjective paradigm of language in the linguistic turn and together
can contribute to reduction of judicial discretion and bring rationality to legal decisions.

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Teoria da decisão judicial no Código de Processo Civil:
uma ponte entre hermenêutica e analítica?

Philosophy of law should not absorb the legal doctrine of civil procedure, but allow their
operability.

Keywords: Interpretation - Hermeneutics - Analytical - Legal reasoning - Civil procedure.

Sumário: 1. Introdução – 2. Por que a interpretação ocupa posição central na teoria do


direito contemporânea? A artificialidade do direito e o combate à discricionariedade de sua
aplicação – 3. O giro linguístico: hermenêutica e analítica para uma teoria da decisão
judicial adequada ao atual paradigma da linguagem e ao Estado Democrático
Constitucional – 4. O debate sobre a hermenêutica e a analítica na teoria do direito:
proposta de convergência – 5. A fundamentação das decisões judiciais no Código de
Processo Civil e a coexistência de critérios hermenêuticos e analíticos para controlar a
discricionariedade judicial – 6. Conclusões – 7. Referências bibliográficas.

1 Introdução

O1 Código de Processo Civil estabeleceu um dever de fundamentação adequada de cariz


analítico no art. 489, §§ 1.º e 2.º, além de deveres de coerência e integridade de cariz
hermenêutico para as decisões judiciais no art. 926, caput.

Embora a hermenêutica jurídica e a filosofia analítica do direito remetam a tradições


filosóficas historicamente conflitantes entre si,2 o objetivo deste trabalho é contribuir para
a construção de pontes entre ambas as teorias e demostrar que, unidas, poderão servir a
um sistema de administração da justiça mais racional.

Na primeira parte, será analisada a teoria da interpretação e da decisão judicial como


centrais à teoria do direito e à teoria do processo à luz da artificialidade do direito, bem
como examinado o giro linguístico ocorrido na filosofia contemporânea e a produção
teórica de caráter hermenêutico e analítico dele decorrente para estabelecer critérios de
legitimação da interpretação do direito.

Na segunda parte, será examinado o debate entre hermenêutica e analítica na teoria do


direito atualmente e como a teoria do processo poderá absorver o quê de melhor ambas as
tradições tem a oferecer, para, em conjunto com a dogmática do Código de Processo Civil,
conferir maior racionalidade às decisões judiciais.

2 Por que a interpretação ocupa posição central na teoria do direito


contemporânea? A artificialidade do direito e o combate à discricionariedade de
sua aplicação

Estamos vivendo um momento pós-positivista, pelo menos em relação ao vetero


positivismo, ou paleojuspositivismo, grandes incertezas existem neste ambiente de
mudança de paradigma científico. O positivismo jurídico, em sua versão mais radical, na
tentativa de purificar o direito da valoração do intérprete – porque não seria objeto de
conhecimento científico – acabou não atacando o principal problema do fenômeno jurídico:

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a arbitrariedade dos aplicadores na intepretação do direito. Na luta central ao direito pelo


controle do poder, não foram debatidas as questões referentes à discricionariedade
deixada pela margem positivista de interpretação.

Duas são as lições extraídas deste movimento. A primeira é que o direito, como
manifestação de poder, não pode construir a sua legitimidade exclusivamente na
autoridade do aparato estatal de coativamente fazer cumprir as suas decisões, sob o risco
de ruína do princípio democrático e do princípio do Estado de Direito. O impacto do
constitucionalismo na construção dos modelos de Estado contemporâneos impede que o
poder estatal seja exercido sem levar em consideração a preservação dos direitos e
garantias fundamentais dos cidadãos. É justamente esta novidade, a parcela constituinte
do bloco nomoestático das constituições atuais,3 que consistente nos direitos fundamentais
como critério de validade das demais normas, limites e vínculos, que abala as premissas
mais importantes do modelo positivista anterior.

A segunda é que não é mais possível abrir mão da maior das conquistas positivistas, que
reside em revelar a artificialidade do direito,4 produto do homem e da mente humana,
controlável pelo homem que é, portanto, responsável pelos resultados que obtém de sua
aplicação. Tomemos como exemplo o direito brasileiro. No atual estágio de
desenvolvimento do ordenamento jurídico brasileiro, não há que se falar no Estado ou na
Sociedade brasileira5 como seres não corporificados dotados de vontade (veiculadas
através do direito, lei, costumes, direito comum etc.). Afinal, o direito é artificial e todas as
leis, escritas ou não, precisam de interpretação do homem. E mais, o homem, na sua
condição de ser humano, é dotado de subjetividade e ignorá-la não fará com que a
valoração do intérprete desapareça. A carga valorativa contida em toda e qualquer
interpretação é ineliminável, mas controlável com o auxílio da hermenêutica e da analítica,
como se verá.

Não há dúvidas, portanto, que a grande preocupação contemporânea da teoria do direito


deve ser o desenvolvimento de uma teoria da interpretação e uma teoria da decisão
judicial adequadas ao Estado Democrático Constitucional, responsáveis por reduzir a
discricionariedade judicial e impedir a arbitrariedade que resulta da “livre” criação no
espaço deixado na chamada “zona de penumbra” (“penumbra of doubt”) para o juiz.6

Em assim sendo, é imperioso que o direito processual, ramo do direito responsável por
regular a sua aplicação, volte suas atenções para combater o decisionismo decorrente da
livre atribuição de sentido no processo de interpretação. Urge, portanto, estabelecer
diretrizes que permitam um controle intersubjetivo da fundamentação das decisões
judiciais.

3 O giro linguístico: hermenêutica e analítica para uma teoria da decisão judicial


adequada ao atual paradigma da linguagem e ao Estado Democrático
Constitucional

Atualmente, duas teorias do direito têm se destacado justamente quanto à imposição de


limites discursivos e normativos a esta falsa liberdade interpretativa do juiz e a
arbitrariedade que dela decorre: a hermenêutica jurídica e a filosofia analítica do direito.

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Embora advindas de tradições filosóficas historicamente dicotômicas e opostas, a


hermenêutica jurídica e a filosofia analítica do direito podem atualmente se encontrar
conectadas por partirem da mesma premissa: a invasão da linguagem na constituição do
mundo. Não há direito sem linguagem, nenhuma das duas grandes correntes nega essa
afirmação, ambas partem desta premissa.

A construção teórica de ambas está calcada no giro linguístico (linguistic turn), movimento
da filosofia contemporânea ocorrido a partir do início do século XX, responsável por
introduzir a visão de que os problemas filosóficos dependem da linguagem 7. Com o
desenvolvimento da filosofia da linguagem, foi definitivamente superada a visão metafísica
de que os objetos do mundo tinha um sentido em si (uma essência ontológica) ou que tais
sentidos eram livremente atribuídos pelo sujeito (paradigma da filosofia da consciência),
agora, é a linguagem o elemento constitutivo do conhecimento e do sentido do mundo. 8

Tanto para a filosofia continental, na qual se insere a hermenêutica jurídica, como para a
filosofia analítica: tudo é linguagem e nada pode ser compreendido fora da linguagem. 9

O direito, por sua vez, não fica imune a esta transformação, afinal, “assim como é neste
sentido que se poderá dizer que o direito é linguagem, e terá de ser considerado em tudo
e por tudo como uma linguagem. O que quer que seja e como quer que seja, o que quer
que ele se proponha e como quer que nos toque, o direito (...) atinge-nos através dessa
linguagem, que é”.10

As consequências advindas do giro linguístico, portanto, devem ser transportadas para o


debate jurídico. Se a linguagem é constitutiva dos sentidos e da realidade, não se pode
falar em uma estruturação a priori, transcendental e ontológica forte, acerca da diferença
entre processo, ação e jurisdição, entre direito público e privado, entre direito civil e penal
etc. Os institutos jurídicos não são objetos dotados de um significado unívoco, tampouco os
intérpretes podem atribuir significados de acordo com a sua consciência, de forma
totalmente livre, sendo de todo incompreensível mascarar posições ideológicas e
subjetivas sob a justificativa de que se está atuando a vontade concreta da lei ou do direito
(paradigma formalista e paleojuspositivista da interpretação), sob pena de recair em
evidente arbitrariedade.

Os textos normativos são veiculados em linguagem, uma linguagem compartilhada pela


comunidade jurídica, passíveis de interpretação pelos operadores do direito e, por
conseguinte, devem ser guiadas pela linguagem própria do fenômeno jurídico. 11

Não à toa, hermenêutica e analítica convergem quanto à distinção entre texto e norma.
Atualmente, essa constatação é um consenso que representa uma grande vitória para a
teoria da interpretação, pois partindo-se da premissa de que os sentidos são atribuídos e
não extraídos dos textos, poderão ser construídos critérios intersubjetivos para conferir
legitimidade à interpretação do direito.

É justamente esse o ponto de divergência entre a hermenêutica jurídica e a filosofia


analítica do direito: os critérios de legitimidade da interpretação do direito. Nos tópicos
seguintes serão demonstrados e analisados tais critérios.

3.1 A analítica e a justificação como critério de legitimidade da interpretação e

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aplicação do direito

Antes de compreender quais são os critérios adotados pela analítica para conferir
legitimidade à intepretação e aplicação do direito, faz-se necessário esclarecer que uma
abordagem analítica do direito é “toda abordagem que procura explicar ou elucidar os
termos, os conceitos ou as estruturas do direito, analisando os elementos ou mostrando
como o todo é compreensível como ordenamento coerente das partes”.12

Com esta premissa em mente, a filosofia analítica do direito trata do problema referente à
interpretação a partir de uma análise rigorosa da linguagem através de instrumentos
lógico-formais que permitem, assim, uma maior clareza conceitual e uma coerência
sistêmica segundo a utilização da linguagem jurídico-“científica”.13

Este método de analisar o fenômeno jurídico foi disseminado nas grandes culturas jurídicas
ocidentais. Na tradição do Civil Law, especialmente na Itália, Luigi Ferrajoli identifica que o
ato de nascimento da escola analítica italiana ocorreu em 1950 com o ensaio de Norberto
Bobbio intitulado Scienza del diritto e analisi del linguaggio.14 Em particular, nota-se que
Bobbio atribui à purificação da linguagem um caráter essencial para construção da
linguagem do direito, afirmando que “a natureza científica de um discurso não consiste na
verdade, isto é, na correspondência com a enunciação de uma realidade objetiva, mas no
rigor de sua linguagem, isto é, na coerência de um enunciado com todos os outros
enunciados que são daquele sistema”.15

O impulso inicial dado por Bobbio em relação ao exame da linguagem fez com que um de
seus alunos, Giovanni Tarello, desenvolvesse estudos referentes à teoria da intepretação
revisitando conceitos de norma e ordenamento com uma lente realista-analítica,
“submete[ndo] a uma revisão epistemológica ainda mais radical o velho positivismo
dogmático e as suas pretensões de cientificidade”.16 Imprescindível, neste contexto,
destacar a formulação de Tarello de que normas não são pressuposto, mas resultado da
intepretação.17

Na tradição do Common Law, o positivismo jurídico foi construído sob as bases da


analytical jurisprudence no final do século XVIII e durante todo século XIX, principalmente
por força de autores como Jeremy Bentham e, seu aluno, John Austin, fervorosos
combatentes da teoria declaratória do Common Law e defensores da artificialidade do
direito.18

Desdobramento desta corrente na filosofia do direito continental foi o trabalho de Hans


Kelsen referente à Teoria Pura do Direito (Reine Rechtslehre, 1. ed. de 1934 e 2. ed. de
1960)19, inspirado em Austin.20

No século XX, com um artigo seminal de 1953 21 e com a publicação em 1961 do livro “O
conceito de direito”,22 Herbert L. A. Hart revisou o positivismo jurídico a partir de estudos
analíticos sobre a filosofia da linguagem,23 propondo um “método de análise da linguagem
usado tanto pelo legislador quanto pelos juristas como instrumento de redefinição e a
reconstrução tanto do significado das normas como dos conceitos e das teorias jurídicas”.24

Contudo, sobre os diferentes estudos desenvolvidos no seio da tradição analítica da teoria

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do direito, é necessário esclarecer que as próprias noções de interpretação do direito e de


criação judicial variaram dentro da escola analítica de acordo com o contexto e a tradição
na qual os respectivos autores estavam inseridos.

Pois bem, para a filosofia analítica do direito da Escola de Gênova (Giovanni Tarello,
Riccardo Guastini e Pierluigi Chiassoni), a intepretação é um ato pelo qual se descreve,
adscreve e/ou cria significados textuais e extratextuais através de métodos, argumentos e
teorias estruturadas discursivamente. O intérprete poderá identificar um significado
(descrição), identificar dois ou mais significados e decidir por um deles (adscrição) ou
então poderá identificar um ou mais significados e decidir por um novo (criação, sic.,
reconstrução, como se verá), estruturando argumentativamente suas escolhas e
valorações no discurso de justificação.25

Ocorre, no entanto, que há uma diferença fundamental que os analíticos estabelecem


entre a interpretação como atividade e a interpretação como produto.26 Essa distinção faz
com que o iter psicológico percorrido pelo intérprete (context of discovery) de todo
irrelevante para aferir a racionalidade do discurso jurídico, sobrelevando-se em
importância os instrumentos formais de justificação da motivação (context of
justification).27

Segundo a filosofia analítica do direito, portanto, a interpretação/aplicação do direito é


racional quando devidamente justificada. A justificação, ao externalizar a interpretação de
forma estruturada, permite o controle intersubjetivo das razões utilizadas pelo intérprete
em relação às escolhas realizadas, o qual é exercido tanto de maneira endoprocessual, isto
é, pelos sujeitos envolvidos no procedimento argumentativo (como, por exemplo, os
sujeitos processuais), como também de maneira extraprocessual, ou seja, um controle
geral da sociedade exercido com vistas à administração da justiça por toda a comunidade
jurídica e sociedade civil.28

A racionalidade da interpretação-atividade e da interpretação-produto é aferida a partir de


uma distinção analítica entre justificação interna e externa.29 A interpretação será
justificada internamente através de um controle lógico-formal das premissas
estabelecidas; por sua vez, a interpretação será justificada externamente mediante um
controle argumentativo em relação à correção das premissas, e também, do resultado final
da solução formal apresentada, a soundness.30

A importância da filosofia analítica do direito reside justamente em tornar a linguagem


jurídica mais depurada, mais clara e, portanto, intersubjetivamente controlável. Vale
ressaltar que a afirmação de sua cientificidade decorre dessa clareza no discurso, não do
sentido de aproximá-la das ciências naturais e matemáticas, mas sim do objetivo de não
deixar com que a linguagem comum e ordinária prevaleça sobre o discurso jurídico,
contaminando-o com posições ideológicas e subjetivas não controláveis
intersubjetivamente, com pré-conceitos e pré-compreensões.

O problema contemporâneo da filosofia analítica já não é tanto sobre qual linguagem ou


quais problemas jurídicos ela irá se debruçar, mas sobre o método de justificação e a
clareza do discurso que permitirão o escrutínio pela comunidade científica das conclusões
alcançadas.

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3.2 A hermenêutica e a compreensão como critério de legitimidade da applicatio


do direito

Assim como na abordagem analítica do direito, deve-se primeiro fixar o que é uma
abordagem hermenêutica do direito antes de adentrar especificamente nos seus critérios
de legitimidade para a interpretação e aplicação do direito. Por hermenêutica se entende a
arte ou a técnica de interpretar corretamente um texto.31 A hermenêutica é da vida
corrente do direito, dela ineliminável.32

Na hermenêutica tradicional, haviam diferentes métodos hermenêuticos de interpretação,


voltados para textos literários (hermenêutica “filológica”), textos sagrados (hermenêutica
teológica) e, por fim, textos jurídicos (hermenêutica jurídica). Essa compartimentação
dogmática fazia com que a hermenêutica recorresse a diferentes métodos para auxiliar na
compreensão dos textos.

Na Idade Moderna, com Friedrich Schleiermacher, a hermenêutica dá o primeiro passo


rumo à sua universalização, máxime de um primeiro desenvolvimento da noção de círculo
hermenêutico, vazado na compreensão da circularidade da interpretação, na qual a parte
se compreende no todo e o todo se compreende na parte. Por ainda ser voltada para a
intenção do autor da interpretação é que foi atribuída a esta fase da hermenêutica a
alcunha de psicológica. Ainda na hermenêutica tradicional, defendeu-se a ideia de que
interpretação correta de um texto deve ser auxiliada por cânones hermenêuticos (método
lógico, gramatical, histórico, teleológico, sistemático etc.). No Brasil, essa defesa se
notabilizou na obra de Carlos Maximiliano.33

Entretanto, a universalização da hermenêutica é devida primordialmente à virada


ontológica-linguística ocorrida no seio da filosofia continental do Século XX, por causa da
fenomenologia hermenêutica desenvolvida por Martin Heidegger, especialmente em Ser e
tempo (Sein und Zeit, 1927).34 Posteriormente, Hans-Georg Gadamer, partindo dos
estudos heideggarianos, estabelece em Verdade e método (Wahrheit und Methode, 1960)
a pretensão de universalidade de hermenêutica, consumando-a, finalmente, como
hermenêutica filosófica.35

No Brasil, os estudos da hermenêutica filosófica na ciência do direito são devidos, em


grande parte, à escola formada por Lenio Luiz Streck, a partir das contribuições de Ernildo
Stein. A sua obra articulada em vários livros e artigos como uma Crítica hermenêutica do
direito,36 propõe uma leitura conjunta das obras de Martin Heidegger e Hans-Georg
Gadamer, aliada, ainda, à concepção de direito como integridade (law as integrity)
desenvolvida por Ronald Dworkin.37

A partir da diferença ontológica e do círculo hermenêutico, concepções denominadas por


Ernildo Stein como teoremas da finitude,38 a hermenêutica jurídica busca impedir a
contaminação do processo interpretativo pelas pré-compreensões inautênticas do
intérprete. Em assim sendo, a hermenêutica jurídica atribui à compreensão um papel
fundamental para legitimar a racionalidade da interpretação/aplicação do direito.

Em primeiro lugar, é necessário pontuar que o compreender tem uma dupla significação. A
uma, pode se referir à intelecção de um enunciado, frase ou conteúdo. Essa compreensão

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é externalizada pela interpretação, gerando uma comunicação produzida pela linguagem


(logos apofântico ou analítico). A duas, pode se referir ao fato de já saber o contexto no
qual o enunciado, frase ou conteúdo é pronunciado. Essa pré-compreensão não é
produzida pela linguagem, mas é fruto da experiência histórica na qual o intérprete está
inserido (logos hermenêutico). O importante é notar que esta pré-compreensão, ocorrida
no logos hermenêutico, é abraçada e absorvida na compreensão do logos analítico e
devidamente externalizada linguisticamente na interpretação. 39

Pois bem, a estrutura da compreensão ocorrida no logos hermenêutico (aqui denominada


de pré-compreensão) só ocorre devido a uma diferença ontológica que o ser humano
possui enquanto ser-no-mundo. O homem é o único ente do mundo no qual habita o ser, e,
por conseguinte, é o único ente do mundo que ao compreender outros entes “já sempre
compreende[m] a si mesmo”.40 Este privilégio ontológico do fenômeno da compreensão do
ser foi identificado por Martin Heidegger, levando-o a denominar o homem de Ser-aí (em
alemão, Dasein).41

Esta condição existencial do Ser-aí é sempre antecipadora de sentidos, porquanto fruto da


experiência histórica e cultural do intérprete. Portanto, é possível dizer que “existe um
processo de compreensão prévio (pré-compreensão) que antecipa qualquer interpretação
e que é fundamental, levando-nos para uma ideia de duplo sentido da compreensão”.42 A
sua influência na compreensão/interpretação dos objetos que lhes estão à disposição,
ocorrida no logos apofântico-analítico, é inegável: afinal, “não é a história que nos
pertence, mas somos nós que pertencemos a ela”.43

Em segundo lugar, é preciso destacar que o círculo hermenêutico é o método do qual se


valerá o intérprete para estabelecer uma diferença entre as pré-compreensões legítimas e
as ilegítimas, a fim de “não permitir que a posição prévia, a visão prévia e a concepção
prévia lhe sejam impostas por intuições ou noções populares [senso comum]. Sua tarefa é,
antes, assegurar o tema científico, elaborando esses conceitos a partir da coisa, ela
mesma”.44 A pré-compreensão e os sentidos por ela antecipados devem ser submetidos a
um teste de legitimidade, sendo constantemente revisados a partir de uma maior
penetração no sentido textual com a primazia hermenêutica da pergunta. 45 Não à toa,
Gadamer diz, em emblemática frase, que “quem quer compreender um texto deve estar
disposto a deixar que este lhe diga alguma coisa”.46

Desta feita, a compreensão é sempre circular, mantendo-se em aberto as possibilidades de


o todo influenciar a parte e de a parte influenciar o todo, já que “toda interpretação,
ademais, se move na estrutura prévia já caracterizada. Toda interpretação que se coloca
no movimento de compreender já deve ter compreendido o que se quer interpretar”.47
Através de um movimento circular do intérprete que se dirige dos fatos ao texto e retorna
do texto aos fatos, em um constante projetar e reprojetar,48 busca-se que conceitos
prévios inautênticos sejam substituídos por outros mais adequados, 49 a fim de se alcançar
uma unidade de sentido – este é o momento em que, nas palavras de Gadamer, há o
acontecer de verdade.50

Por este motivo, Francesco Viola e Giuseppe Zaccaria atribuem à hermenêutica jurídica um
caminho do meio a ser seguido, em que o sentido adequado de um texto normativo poderá
ser capturado pelo intérprete através da relação entre a universalidade do texto e as

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circunstâncias do caso concreto sob análise em um determinado espaço e tempo


histórico.51 Os fatos, então, assumem primordial relevância para compreensão do texto
normativo, já que a facticidade que envolve o intérprete não pode por ele ser ignorada.

Todo este processo de compreensão ocorrido no logos hermenêutico é externalizado na


interpretação através da linguagem, momento no qual, concomitantemente, ocorre a
aplicação do direito. A applicatio a que se refere Gadamer entende que a compreensão,
interpretação e aplicação constituem processo unitário e incindível,52 porque não permite a
instrumentalização da interpretação e a consequente contaminação de pré-compreensões
pessoais e ideológicas [inautênticas] fruto da experiência histórica do intérprete.
Interpretar é aplicar, mas, antes, é também compreender.53

A contribuição das ferramentas dispendidas pela hermenêutica jurídica para a


interpretação e aplicação do direito é inegável. Os juristas e aplicadores do direito são,
antes de tudo, seres humanos cujo desenvolvimento pessoal é moldado por experiências
sociais, ideológicas, familiares, religiosas e outras mais. Eliminá-las é tarefa impossível. A
interpretação pressupõe uma atribuição de significado a um texto, este significado vem
impregnado de valores do intérprete. O direito se mostra, aqui, essencialmente valorativo,
exigindo uma responsabilidade do jurista ao interpretar os textos normativos dentro do
contexto no qual está inserido.

Verifique-se, por exemplo, o art. 19, I, da CF/1988 (LGL\1988\3), que prescreve: “É


vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios (...) estabelecer cultos
religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com
eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da
lei, a colaboração de interesse público”. Um jurista, ateu, pode interpretar este dispositivo
constitucional como a impossibilidade de o Estado promover atividades religiosas; de outro
giro, um jurista, cristão ou de qualquer outra religião, pode interpretá-lo não como a
impossibilidade de o Estado promover a atividade religiosa, mas sim a de garantir a
liberdade religiosa de seus cidadãos sem privilegiar esta ou aquela religião. A questão
colocada em debate pela hermenêutica jurídica é: o que a tradição nos ensina? A
compreensão é sempre interpelada pela tradição.54

Destarte, ao mesmo tempo em que a hermenêutica jurídica fornece importante


contribuição para legitimidade da interpretação/aplicação do direito, não constitui um
obstáculo à utilização de instrumentos analíticos para sua respectiva justificação,
necessitando desta para ser explicada com clareza.

4 O debate sobre a hermenêutica e a analítica na teoria do direito: proposta de


convergência

“(...) a analítica sem a hermenêutica é vazia, a hermenêutica sem a


analítica é cega” (Arthur Kaufmann).55

“(...) filosofia analítica se não der conta de certos temas


fundamentais da hermenêutica, não tem assunto, não tem
conteúdo (...) se a hermenêutica não der valor aos instrumentos

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formais da analítica, ela não utiliza tudo para poder enxergar de


verdade as questões fundamentais da linguagem” (Ernildo Stein).56

Atualmente, é comum notar uma contraposição doutrinária entre analíticos e hermeneutas


(continentais) na teoria do direito, havendo uma ruptura entre tais abordagens, como se
uma excluísse a outra.57

De um lado, os hermeneutas atribuem aos analíticos a alcunha de procedimentalistas, no


sentido de que preocuparem-se apenas com a forma, dispensando uma análise do
conteúdo, o que iria de encontro à dimensão substancial introduzida pelos direitos
fundamentais das constituições modernas e legitimaria, por exemplo, a legalidade de
regimes totalitários. De outro lado, os analíticos asseveram que os hermeneutas pecam
pela ausência de clareza conceitual, conduta que se revela incompatível com uma ciência
que trata de linguagem, marcadamente caracterizada por sua indeterminação, dada a
vagueza de seus textos e a ambiguidade de suas normas.

Porém, ao mesmo tempo em que analíticos e hermeneutas afastam a abordagem


contrária, não raro, logo em seguida, reconhecem a sua importância. 58 Não à toa, no
contexto da produção teórica do último século, tanto analítica, quanto hermenêutica,
assimilaram as críticas lhes desferidas, sendo cada vez mais comum a construção de
pontos de convergência entre ambas.

Manuel Atienza,59 Eros Grau,60 Arthur Kauffman61 e Paul Ricouer62 propõem que a
concepção analítica e a concepção hermenêutica sobre a intepretação não são
contraditórias.

Não se pode perder de vista que buscar convergências é incorrer em certos riscos. O
debate envolve rótulos, terminologias e pré-compreensões. A tentativa de estabelecer um
primado, seja da hermenêutica, seja da analítica não nos interessa neste texto. Cada
corrente terá primazia dentro das premissas estabelecidas pelos autores de cada grupo.

Contudo, aproximações e convergências são essenciais neste momento do direito por duas
razões: (a) mostrar a existência de uma circularidade e interdependência entre ambas
correntes filosóficas. Uma vez que ambas são herdeiras do giro linguístico, duas faces da
mesma moeda, linhas escritas na mesma página da história do pensamento e da cultura
humana; (b) revelar a contaminação ideológica dos discursos que ao acentuarem as
diferenças deixam de ver a floresta para se concentrar nas árvores e mascaram, muitas
vezes, pré-compreensões que não estão comprometidas com o giro linguístico e que não
estão na mesma página da história, trocando moeda boa por moeda podre.

Atienza, por exemplo, partindo da – neste ponto equivocada – premissa de que os


movimentos hermenêutico e analítico correspondem, respectivamente, ao jusnaturalismo
e ao juspositivismo, identifica uma contribuição técnica da analítica a partir do pensamento
de Riccardo Guastini e uma contribuição valorativa da hermenêutica a partir do
pensamento de Ronald Dworkin. Ora, ao associar o problema da hermenêutica e da
analítica aos discursos jusnaturalista e juspositivista, importamos para o debate questões
que a ele não pertencem. Mais, retrocedemos no tempo para antes do giro linguístico, pois
o debate jusnaturalismo e juspositivismo é multissecular. O giro linguístico pode contribuir
para a solução deste debate, mas não é dele dependente.

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Teoria da decisão judicial no Código de Processo Civil:
uma ponte entre hermenêutica e analítica?

Mas a proposta de Atienza vai além, e deve ser levada a sério. O aspecto técnico
referir-se-ia à “necessidade de utilizar determinados procedimentos ou métodos para
passar de um enunciado a interpretar”, haja vista que o problema da interpretação sempre
desembocará em um problema semântico, ou seja, “um problema de atribuição de
significado a um termo, a um enunciado ou a um conjunto de enunciados (quer dizer, a um
material jurídico)”.63 A utilização destas regras semânticas sempre deverá ser
argumentativamente justificada, externa e internamente.64

O aspecto valorativo, por outro lado, referir-se-ia ao fato de que “o fundamento último
deste processo argumentativo não pode ser outro que uma teoria de natureza moral e
política”, haja vista que o problema da interpretação sempre exige “a assunção de uma
determinada teoria moral”.65 Não se trata propriamente de uma teoria moral, mas da
assunção da premissa hermenêutica, da necessidade de compreensão sobre as normas
constitucionais.

Alguns elementos da proposta de Atienza, porém, carecem ser contextualizadas com


releituras que experimentaram os movimentos analíticos e hermenêuticos após o giro
linguístico e o impacto do constitucionalismo.

Quanto à analítica, a partir da segunda metade do século XX e no início do século XXI foi
iniciado um processo de desvinculação da formalidade da linguagem como centro do
discurso analítico, assim compreendida a aplicação do direito como uma função neutra,
avalorativa e meramente descritiva, típica do paleojuspositivismo e dos movimentos
ligados ao positivismo linguístico.

Ao lado das transformações sofridas pelos ordenamentos jurídicos decorrentes da onda


constitucionalista pós-guerra, que internalizou e deu força normativa a antigos princípios
de direito natural em um grande número de ordenamentos jurídicos contemporâneos, no
campo filosófico, um primeiro passo dado pode ser atribuído à “virada hartiana”,
responsável pelo abandono da visão descritiva sob uma ótica externa do direito (de cariz
kelseniano) e pela assunção de uma dimensão da compreensão do direito sob uma ótica
interna, como passo necessário para se definir a validade da própria norma a ser
aplicada.66

Justamente este ponto foi posteriormente melhor explorado por Ronald Dworkin no seu
ataque ao positivismo jurídico,67 constituindo uma pedra de toque da filosofia do direito
com corte hermenêutico.

Por outro lado, por força deste mesmo movimento histórico de constitucionalização e da
assunção do ponto de vista interno do direito para definição da validade da norma a ser
aplicada, também Robert Alexy, jurista alemão confessadamente analítico, 68 com a sua
teoria dos direitos fundamentais demonstra uma maior preocupação dos analíticos com a
internalização de valores ético-políticos nos sistemas jurídicos contemporâneos através de
mandamentos deônticos, na clássica distinção por ele formulada entre regras e
princípios.69

Quanto à hermenêutica, encarada a partir do século XX como filosófica, não mais pode ser
atribuída a pecha metafísica, típica do jusnaturalismo, de que a dimensão hermenêutica
(facticidade e historicidade) está ligada a princípios morais subjetivos.

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Teoria da decisão judicial no Código de Processo Civil:
uma ponte entre hermenêutica e analítica?

O giro ontológico-linguístico promovido por Heidegger é justamente contrário a essa


contraposição sujeito-objeto, pois o ser humano é o único ser no qual os entes se
manifestam. Desmantela-se, assim, a objetificação da linguagem como uma terceira coisa
entre sujeito e objeto, a qual passa a ser condição de possibilidade para a interpretação, 70
ou seja, uma eventual clarificação conceitual sempre chegaria tarde, já que a compreensão
de um determinado significado está, desde já, presa à existência do próprio sujeito e muda
com ele.

Afirma-se aqui, portanto, que analítica e hermenêutica são complementares entre si


justamente porque, a partir destas convergências, se limitam reciprocamente.

Para a analítica, é arbitrário tudo aquilo que não pode ser expresso em linguagem jurídica
e devidamente justificado como tal em um discurso que apresente conteúdo lógico-formal
interno e premissas externas intersubjetivamente controláveis. Este é um limite analítico
da hermenêutica. Para a hermenêutica, é arbitrário tudo aquilo que, uma vez expresso em
linguagem, por melhor que esteja lógica e formalmente justificado, não corresponda à
tradição jurídica e ao conhecimento do direito, que se apresentam como critérios
substanciais de validade. O que não pode ser justificado do ponto de vista da compreensão
do direito não é jurídico. Este é um limite hermenêutico da analítica.

Kauffman, ao cunhar a célebre expressão descrita na epígrafe, acompanhada por Ernildo


Stein, revelou parte importante do fenômeno que estamos nos dedicando a estudar: a
analítica sem a hermenêutica é vazia, não tem alma; a hermenêutica sem a analítica é
cega, não é capaz de chegar a lugar nenhum.71

Juristas analíticos podem analisar qualquer tema hermenêutico; juristas hermenêuticos


devem dar clareza aos seus escritos. Se há algo que ainda vale a pena neste debate é
afastar de uma vez por todas dos escritos dos jovens cientistas do direito “(...) a tendência
analítica a separar o [fio do] cabelo – o célebre hairsplitting – perdendo-se em distinções
tão sutis quanto irrelevantes; a tendência continental [hermenêutica] a declamar sem
argumentar, a asserir hieraticamente [afirmar de forma quase sagrada, com uma vocação
ao dogma religioso e inquestionável] sem explicar”, que já está sendo progressivamente
banida da academia europeia.72

Não se trata mais de quem tem razão, mas de arregaçar as mangas e enfrentar os
problemas concretos, que a valorização positiva da filosofia teve nos últimos anos com o
reconhecimento cultural de sua utilidade tanto para a ciência quanto para a esfera
pública.73

O caminho entre as montanhas está aberto, não é mais impossível o diálogo, é preciso
construir as pontes.

5 A fundamentação das decisões judiciais no Código de Processo Civil e a


coexistência de critérios hermenêuticos e analíticos para controlar a
discricionariedade judicial

O Código de Processo Civil da Lei 13.105/2015 consolida o retorno do direito processual à


teoria do direito ao abandonar a visão tecnicista do processo como alheio às mudanças

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Teoria da decisão judicial no Código de Processo Civil:
uma ponte entre hermenêutica e analítica?

culturais e filosóficas que afetaram a nossa ciência, convidando a comunidade jurídica a


refletir sobre a junção das duas grandes montanhas da tradição filosófica contemporânea,
a hermenêutica e a analítica, através do debate sobre a interpretação/aplicação do direito
(arts. 489, §§ 1.º e 2.º, e 926 do CPC/2015 (LGL\2015\1656)) e o modelo de precedentes
normativos formalmente vinculantes74 (arts. 489, § 1.º, V e VI, 926 e 927 do CPC/2015
(LGL\2015\1656)).

Prova disso é que uma leitura do Código demonstrará a incorporação de terminologia de


Ronald Dworkin (hermenêutica) ao dispor que “os tribunais devem uniformizar sua
jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente” (art. 926, caput). Também foi
prevista no Código a terminologia de Robert Alexy (analítica), quando determinou-se que
“ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem
comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a
proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência” (art. 8.º) e
que “no caso de colisão entre normas [normas-princípios], o juiz deve justificar o objeto e
os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a
interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão”
(art. 489, § 2.º).

O Código de Processo Civil exige uma compreensão operacional na aplicação do direito, ou


seja, toda e qualquer decisão deve levar em consideração a convivência harmônica entre
os planos infraconstitucional e constitucional (art. 1.º). Desta maneira, o Código de
Processo Civil não mais transige com interpretações arbitrárias, solipsistas e
descontextualizadas da ordem jurídica, compromete-se, ao contrário, com a solução
realista-moderada e responsável da interpretação,75 como revelam os dispositivos que dão
conta da eliminação do “livre” convencimento judicial (art. 371), da fundamentação
adequada (art. 489, § 1.º), da justificação interna e externa, fática e jurídica, com
exigências para utilização da ponderação como método de solução da colisão entre normas
(art. 489, § 2.º) e dos deveres de estabilidade, coerência e integridade (art. 926, caput).

Está finalmente superado o paradoxo metodológico que afligiu a justiça brasileira, ter uma
justiça civil ampla e uma legislação processual voltada para o modelo europeu. A matriz
constitucional brasileira, desde a Constituição Republicana (LGL\1988\3) de 1891, é
influenciada pelo Common Law norte-americano e a matriz infraconstitucional, a exemplo
do Código de Processo Civil de 1973, pelo direito do Civil Law.76

A decisão judicial no Estado Democrático Constitucional (art. 1.º do CPC/2015


(LGL\2015\1656)) tem um duplo compromisso: o primeiro, de caráter interno, voltado à
prestação de uma tutela jurisdicional tempestiva, adequada e efetiva (art. 4.º do
CPC/2015); o segundo, de caráter externo, voltado à unidade do direito através da
preservação da coerência e integridade do ordenamento jurídico (art. 926 do CPC/2015).

Para atingir ambos objetivos, o dever de fundamentação das decisões judiciais deve levar
em consideração critérios analíticos e hermenêuticos na compreensão, interpretação e
aplicação do direito.77

A tradição jurídica brasileira, na perspectiva da teoria do processo, não está acostumada


com esta distinção. Entre os processualistas existem temas e textos que poderiam ser
classificados em uma ou outra categoria, mas, em linha de tendência, uma classificação

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Teoria da decisão judicial no Código de Processo Civil:
uma ponte entre hermenêutica e analítica?

permite perceber uma predominância de temas e de metodologia de aproximação.


Portanto, não se trata de rotular os autores, mas de identificar a abordagem do fenômeno
jurídico e processual que usualmente empregam à sua doutrina e trazer à luz o debate
acerca da abordagem analítica e hermenêutica do direito.78-79

Porém, a confluência entre os discursos analítico e hermenêutico depende primeiramente


da compreensão de que o direito absorve a filosofia em platôs, 80 que serve ao direito e ao
discurso prático do caso especial que ele concretiza como limites e vínculos (garantias). Em
outras palavras, a filosofia auxilia o direito, mas não o determina.

Se assim o é em relação ao direito, também o será no tocante ao direito processual, espaço


de aplicação do direito, cujo discurso é ainda mais limitado devido à sua finalidade
operativa,81 voltada para a resolução adequada, mas também, pragmática de conflitos
através da tutela jurisdicional adequada, tempestiva e efetiva (art. 4.º do CPC/2015
(LGL\2015\1656)).

A união destas duas grandes tradições filosóficas e jurídicas nos últimos anos poderá
contribuir para a construção de pontes para a interpretação e aplicação de um direito mais
racional, mais democrático e mais garantista dos direitos fundamentais de liberdade e
sociais. No caso particular do Brasil, esta tarefa se impõe a todos os juristas a partir do
Código de Processo Civil de 2015.

6 Conclusões

Como se demonstrou, a aplicação do direito é tema caro à teoria do processo, devendo ser
construída com bases sólidas em uma teoria da interpretação e da decisão judicial
adequadas ao Estado Democrático Constitucional.

Com o giro linguístico, inaugura-se um novo paradigma na filosofia contemporânea da qual


se destacam duas teorias do direito para o combate à discricionariedade judicial: a
hermenêutica jurídica e a filosofia analítica do direito.

Ambas tratam da legitimidade da interpretação sob diferentes perspectivas, a


hermenêutica a partir da compreensão e a analítica a partir da justificação. Embora a teoria
do direito mostrasse, a princípio, uma contraposição entre hermenêutica e analítica, estão
sendo construídos pontos de convergência entre tais métodos.

Isto ocorre porque, como dissemos no início, analítica e hermenêutica se limitam


reciprocamente: o limite analítico em relação à hermenêutica reside possibilidade ou não
de algo ser expressado em linguagem do direito; o limite hermenêutico em relação à
analítica reside na correspondência entre o que é expressado em linguagem do direito e o
que consta na compreensão da tradição jurídica.

Na medida em que a filosofia serve ao direito processual em platôs, defendemos aqui que
a dogmática do Código de ProcessoCivil de 2015 absorve a legitimação pela compressão
hermenêutica e os critérios da justificação analítica, ambos voltados a combater a
arbitrariedade na decisão judicial.

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Teoria da decisão judicial no Código de Processo Civil:
uma ponte entre hermenêutica e analítica?

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1 Este trabalho é fruto da pesquisa desenvolvida no Programa de Pós-Graduação Stricto


Sensu em Direito Processual da UFES e no Grupo de Pesquisa “Fundamentos do Processo
Civil Contemporâneo”, também da UFES, financiado pela Capes e Fapes e liderado pelo
Prof. Dr. Hermes Zaneti Jr. (UFES) e pelo Prof. Dr. Antônio Gidi (University of Syracuse
College of Law – EUA, participante na linha de pesquisa sobre “Processo coletivo: modelo
brasileiro”.

2 Amplamente, ver o guia enciclopédico sobre a filosofia contemporânea em D’AGOSTINI,


Franca. Analitici e Continentali: Guida alla Filosofia degli Ultimi Trent’anni. Milano: Raffaelo
Cortina Editore, 1997. Há tradução para o português, em D’AGOSTINI, Franca. Analíticos e
continentais: guia à filosofia dos últimos trinta anos. São Leopoldo: Unisinos, 2002.

3 “La dimensione sostanziale e nomostatica della validità propria del diritto


giurisprudenciale premoderno, che era stata estromessa dal primo giuspositivismo, torna
così nel giuspositivismo allargato dello stato costituzionale di diritto a condizionare
nuovamente il sistema giuridico: sotto forma, però, non più di arbitrario senso del giusto,
bensì di limiti e vincoli imposti al legislatore tramite la loro pattuizione e positivazzazione
come norme costituzionali” (FERRAJOLI, Luigi. Principia Iuris. Teoria del Diritto. Roma/
Bari: Laterza, 2007. t. 1, p. 40).

4 A expressão é buscada em texto clássico de Hobbes, responsável pelo reconhecimento da


artificialidade do direito e do Estado e pela fundação do positivismo jurídico que se apõem
a absorção do direito pela moral: “E’ la classica massima hobbesiana, opposta a quella
giusnaturalistica più sopra ricordata: ‘Doctrinae quidem verae esse possunt; sed authoritas
non veritas facit legem’ [T. Hobbes, Leviathan, sive de Materia, Forma et Potestate Civitatis
ecclesiasticae et civilis, tr. latina, in Leviatano, con testo inglese del 1651 a fronte e testo
latino del 1668, a cura di R. Santi, Bompiani, Milano 2001, cap. XXVI, § 21, p.448]”
(FERRAJOLI, Luigi. La Democrazia Attraverso i Ddiritti. Il Costituzionalismo Garantista
come Modelo Teorico e come Progetto Politico. Roma/Bari: Laterza, 1997. p. 7, § 1.1, nota
5). Ainda, ZANETI JR., Hermes. O valor vinculante dos precedentes: teoria dos
precedentes normativos formalmente vinculantes [2015]. 2. ed., rev. e ampl. Salvador:
JusPodivm, 2016. p. 89.

5 A falsa compreensão da sociedade como um todo unívoco já foi abandonada a muito pela
sociologia. Cf. ELLIOTT, Anthony; TURNER, Bryan S. On Society. Cambridge: Polity Press,
2012. Na doutrina processual brasileira, VITORELLI, Edilson. Devido processo legal
coletivo: dos direitos aos litígios coletivos. São Paulo: Ed. RT, 2016. p. 35-50.

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Teoria da decisão judicial no Código de Processo Civil:
uma ponte entre hermenêutica e analítica?

6 “Haverá sempre certos casos juridicamente não regulados em que, relativamente a


determinado ponto, nenhuma decisão em qualquer dos sentidos é ditada pelo direito e,
nessa conformidade, o direito apresenta-se parcialmente indeterminado ou incompleto.
Se, em tais casos, o juiz tiver de proferir uma decisão, em vez de, como Bentham chegou
a advogar em tempos, se declarar privado de jurisdição, ou remeter os pontos não
regulados pelo direito existente para a decisão do órgão legislativo, então deve exercer o
seu poder discricionário e criar direito para o caso, em vez de aplicar meramente o direito
estabelecido anteriormente” (HART, H. L. A. The Concept of Law, 2. ed. [1961], Oxford:
Clarendon Press, 1994. p. 272).

7 O giro linguístico é um movimento filosófico de grande importância para o século XX. A


centralidade da linguagem na constituição do mundo é a preocupação principal dos
teóricos da hermenêutica filosófica e da filosofia analítica. Neste tópico ocorreram
influências recíprocas. Um dos autores que mais impactou e difundiu esta nova
compreensão da filosofia da linguagem foi Ludwig Wittgenstein (1889-1951). A obra de
Wittgenstein é dividida em duas partes: a primeira se refere ao Tractatus
Logico-Philosophicus publicado originalmente em 1921; a segunda se refere às
Investigações Filosóficas publicadas postumamente em 1953 (o filósofo faleceu em 1951).
Cf. WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus [1921]. Trad. José Arthur
Gianotti. São Paulo: Ed. Nacional, 1968; WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas
[1953]. Trad. Marcos G. Montagnoli. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1996. Curiosamente, a
segunda obra de Wittgenstein representa uma mudança radical do pensamento constante
na primeira obra. Corroborando a importância de Wittgenstein para o giro linguístico, “Com
Wittgenstein e a filosofia linguística não se acentuaria a antítese entre analíticos e
continentais, filosofia anglo-saxônica e filosofia alemã, europeia, mas, ao contrário,
iniciaria uma convergência até então impossível por causa da escassa ‘maturidade’
filosófica dos anglo-saxões” (D’AGOSTINI, Franca. Analíticos e continentais... cit., p. 104).

8 ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a


decisão judicial. São Paulo: Ed. RT, 2014. p. 59.

9 “Em ambas as tradições, de fato, não obstante as radicais divergências, é a linguagem o


ponto de chegada sobre a reflexão da metafísica, o território dentro do qual ela revela os
seus limites e simultaneamente as margens de sua oportunidade. Partindo de uma inicial
divergência entre os respectivos significados e os valores de conceito, a filosofia analítica e
a filosofia continental acabam, portanto, por encontrar-se numa comum ‘virada
linguística’” (D’AGOSTINI, Franca. Analíticos e continentais... cit., p. 178). No Brasil, neste
mesmo sentido, ver ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael
Tomaz de. Introdução à teoria e filosofia do direito. 3. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo:
Ed. RT, 2015. p. 433.

10 CASTANHEIRA NEVES, António. Metodologia jurídica: problemas fundamentais.


Coimbra Ed., 1997. p. 90.

11 O que não prejudica a constatação de que os discursos jurídicos também são afetados
por outros discursos institucionais e, em alguma medida, pelo consequencialismo –
perceba-se, não está se afirmando que argumentos consequencialistas têm

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Teoria da decisão judicial no Código de Processo Civil:
uma ponte entre hermenêutica e analítica?

necessariamente força normativa, mas que em algum grau influenciam o discurso jurídico.
Isto ocorre porque não há um fechamento total do ordenamento jurídico, a linguagem
jurídica é um discurso prático, discurso prático do caso especial, na terminologia de Alexy,
muito embora caiba ao direito determinar a sua própria criação (ALEXY, Robert. Teoría de
la Argumentación Jurídica [1983]. Trad. Manuel Atienza e Isabel Espejo, 2. ed. Madrid:
Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2007), que é afetada por outros discursos.
Daí a norma jurídica ser construída também por fatores externos ao direito positivado
(elementos extratextuais, mas igualmente linguísticos), e, a partir de sua reconstrução, se
tornar direito posto e, mediante os precedentes, direito positivo – fonte formal e material.
Para uma análise do direito como ordem institucional e do papel exercido por fatores
extrajurídicos na interpretação e aplicação da norma jurídica, em especial, os juízos
consequencialistas, ver MACCORMICK, Neil. Institutions of Law. An Essay in Legal Theory.
Law, State, and Practical Reason. Oxford: Oxford University Press, 2007.

12 MACCORMICK, Neil. Analítica (abordagem – do direito). In: ARNAUD, André-Jean et alii


(dir.). Dicionário enciclopédico de teoria e de sociologia do direito. Trad. Patrice Charles, F.
X. Willaume. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. Interessante também é a definição de Brian
Bix sobre a filosofia analítica jurídica: “Un enfoque de la filosofía del derecho que enfatiza
el análisis de los conceptos (‘sistema jurídico’, ‘derecho’, ‘propiedad’). (...) En particular, la
filosofía analítica (del derecho) es una búsqueda de los significados de términos y
conceptos. Los filósofos analíticos tienden a creer que el análisis conceptual es un enfoque
defendible para comprender partes de nuestro mundo. Las proposiciones analíticas son
contrastadas con las proposiciones que son primordialmente normativas (lo que debería
ser) y aquellas que son primordialmente empíricas (cómo suceden de hecho las cosas, de
una manera contingente – pudieron haber ocurrido de otra manera)” (BIX, Brian H.,
Diccionario de teoría jurídica. Trad. Enrique Rodríguez Trujano, Pedro A. Villarreal
Lizárraga. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2009. p. 145).

13 GUASTINI, Riccardo. Das fontes às normas. Trad. Edson Bini. São Paulo: Quartier Latin,
2005. p. 370-376. GUASTINI, Riccardo. Dalle Fonti alle Norme. Torino: Giappichelli, 1990.
A questão da qualificação científica ou não do direito e da filosofia analítica do direito já é
um discurso de “depuração”, portanto, um termo com caráter nitidamente ideológico. Ao
chamar de linguagem jurídico-científica a linguagem jurídica da filosofia analítica a
doutrina exerce uma valoração positiva da analítica e uma desvalorização da
hermenêutica. Na doutrina brasileira, distinguindo entre lógica-formal e lógica jurídica,
mais ampla, cf. ZANETI JR., Hermes. A constitucionalização do processo: o modelo
constitucional da justiça brasileira e as relações entre processo e Constituição. 2. ed. rev.,
ampl. e alterada. São Paulo: Atlas, 2014. p. 62-105.

14 FERRAJOLI, Luigi. A cultura jurídica e a filosofia analítica no século XX. Trad. Alfredo
Copetti Neto, Alexandre Salim e Hermes Zaneti Jr. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 75-78.

15 No original: “La scientificità di un discorso non consiste nella verità, cioè nella
corrispondenza della enunciazione ad una realtà obiettiva, ma nel rigore del suo
linguaggio, cioè nella coerenza di un enunciato con tutti gli altri enunciati che fanno sistema
con quelli” (BOBBIO, Norberto. Scienza del Diritto e Analisi del Linguaggio. Rivista
Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. n. 2. p. 342-367. giugno 1950). A premissa de

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Teoria da decisão judicial no Código de Processo Civil:
uma ponte entre hermenêutica e analítica?

Bobbio explica igualmente a confusão até hoje comum entre a teoria da verdade como
correspondência como uma teoria ligada à linguagem e a sua compreensão como teoria
ligada aos objetos, ao mundo “real”. Cf. FERRAJOLI, Luigi. Diritto e Ragione: Teoria del
Garantismo Penale. 8 . ed. Roma/Bari: Laterza, 2004; FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão:
teoria do garantismo penal. Trad. Fauzi Hassan Choukr. São Paulo: Ed. RT, 2002.p.
845-846; ZANETI JR., Hermes. O problema da verdade no processo civil: modelos de prova
e de procedimento probatório. Revista de Processo. vol. 29. n. 116. p. 334-371. São Paulo:
Ed. RT, 2004; ZANETI JR., Hermes. A constitucionalização do processo... cit., p. 103-104.

16 FERRAJOLI, Luigi. A cultura jurídica... cit., p. 80.

17 TARELLO, Giovanni. L’Interpretazione della Legge. Milano: Giuffrè, 1980; TARELLO,


Giovanni. La Interpretación de la Ley. Trad. Diego Dei Vechi. Lima: Palestra, 2015. p. 60.

18 Bentham e Austin condenaram de maneira ácida e impiedosa a teoria declaratória.


Bentham igualou-a ao método adotado para o treinamento de cachorros – chegou a
qualificá-la, literalmente, de dog-law –, ao passo que Austin acusou-a de ficção infantil.
Para este autor, os juízes teriam a noção ingênua de que o common law não seria
produzido por eles, mas se constituiria em algo milagroso feito por ninguém, existente
desde sempre e para a eternidade, meramente declarado de tempo em tempo. Cf.
BENTHAM, Jeremy. Truth versus Ashhurst. In.: The Works of Jeramy Bentham, s.l.: John
Bowring ed, 1843. p. 235; BENHTAM, Jeremy. An Introduction to the Principles of Morals
and Legislation [1789]. Batoche Books Kitchener, 2000; AUSTIN, John. Lectures on
Jurisprudence or the Philosophy of Positive Law. 3. ed. rev. London: John Murray, 1869. p.
655.

19 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins
Fontes: 2003.

20 CHIASSONI, Pierluigi. L’indirizzo analitico nella filosofia del diritto: da Bentham a


Kelsen. Torino: Giappichelli Editore, 2009. p. 303-304.

21 HART, H.L.A. Definition and theory in jurisprudence [1953]. In: HART, H.L.A. Essays in
jurisprudence and philosophy. New York: Oxford University Press, 2001. p. 19-48.

22 HART, H. L. A. The Concept of Law… cit.

23 “(...) a linguagem envolvida na enunciação e aplicação de normas constitui um


segmento especial do discurso huano com características particulares que, se
negligenciadas, podem causar confusão” (p. 29) HART, H. L. A. Definição e teoria na teoria
do direito. Ensaios sobre teoria do direito e filosofia. Trad. José Garcez Ghirardi e Lenita
Maria Rimoli Esteves. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. p. 23-52.

24 FERRAJOLI, Luigi. A cultura jurídica.... cit., p. 78.

25 ÁVILA, Humberto. Função da ciência do direito tributário: do formalismo epistemológico


ao estruturalismo argumentativo. Revista de Direito tributário atual. vol. 29, São Paulo:

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Teoria da decisão judicial no Código de Processo Civil:
uma ponte entre hermenêutica e analítica?

IBDT, 2013. p. 181-204.

26 TARELLO, Giovanni. La Interpretación de la Ley... cit., p. 61; TARELLO, Giovanni.


L’Interpretazione della Legge... cit., passim.

27 TARUFFO, Michele. A motivação da sentença civil. Trad. Daniel Mitidiero, Rafael Abreu e
Vitor de Paula Ramos. São Paulo: Marcial Pons, 2015. p. 197 e ss.

28 TARUFFO, Michele. A motivação... cit., p. 340 e ss. No Brasil, BARBOSA MOREIRA, José
Carlos. A motivação das decisões judiciais como garantia inerente ao estado de direito.
Temas de direito processual: segunda série. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 83-95.

29 A distinção lógico-argumentativa entre justificação interna e justificação externa foi


originalmente desenvolvida por Jérzy Wrobléwski em 1971 (WROBLÉWSKI, Jérzy. Legal
Decision and it Justification. Logique et Analyse. n. 53-54. p. 409-419, 1971).

30 Neste sentido, cf. WROBLÉWSKI, Jérzy. Legal Decision and it Justification, p. 412: “The
decision in question is internally justified if the inferences are valid and the soundness of
the premisses is not tested. (...) External justification of legal decision tests not only the
validity of inferences, but also the soundness of premisses”. Portanto, a soundness tem um
duplo papel diante da ausência de certeza sobre o conteúdo do direito, pois incide tanto
sobre a escolha das premissas quanto sobre a respectiva correção do resultado da
interpretação. Trata-se de um teste de universalização das razões, de verificação da
racionalidade e unidade do direito, conferindo se a decisão está adequada à ordem jurídica
como um todo, a fim de preservar a consistência (não contradição) e a coerência
(completude) do ordenamento jurídico. Cf. MACCORMICK, Neil. Rhetoric and the Rule of
Law. A Theory of Legal Reasoning. New York: Oxford University Press, 2005. p. 190;
MACCORMICK, Neil. Coherence in legal justification. In: PECZENIK, Aleksander; LINDAHL,
L.; van ROERMUND, G.C. (ed.). Theory of Legal Science. Dordrecht: Springer, 1984. p.
235-251; MACCORMICK, Neil. Legal Reasoning and Legal Theory. New York: Oxford
University Press, 1978, cap. VII e VIII, reprinted, 2003.

31 GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica como filosofia prática. A razão na época da


ciência. Trad. Ângela Dias. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. p. 57-77,
especificamente p. 57. Brian Bix diz que hermenêutica é uma “Teoría o método de la
interpretación, que a menudo se centra en cómo el texto en cuestión era entendido por sus
contemporâneos. Este enfoque, que se remonta cuando menos a Friedrich Schleiermacher
(1768-1834), está íntimamente ligado con el enfoque Verstehen hacia las ciencias sociales,
y fue defendido fuertemente en años recientes por Hans-Georg Gadamer (1900-2002). Al
igual que otras teorías sobre la interpretación, la hermenéutica ha sido el tema ocasional
de discusión dentro de la teoría del derecho. La teoría jurídica positivista de H. L. A. Hart
(1907-1992) tiene elementos hermenéuticos importantes. Algunas veces el término
‘hermenéutica’ es usado de forma más vaga y general, para referirse a cualquier búsqueda
del significado de algún texto” (BIX, Brian H. Op. cit., p. 145).

32 A origem da palavra hermenêutica, cuja etimologia remete à mitologia grega, mais


especificamente a Hermes, filho de Zeus, mensageiro do Olimpo, responsável por

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Teoria da decisão judicial no Código de Processo Civil:
uma ponte entre hermenêutica e analítica?

interpretar, traduzir e transmitir as mensagens dos deuses para a linguagem humana, é


explorada por muitas tradições culturais. No processo, CABRAL, Antonio do Passo. Pelas
asas de Hermes: a Intervenção do Amicus Curiae, um terceiro especial. Revista de
Processo. vol. 117. p. 9-41. Rio de Janeiro, 2004.

33 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 20. ed. Rio de Janeiro:


Forense, 2011.

34 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback. 15. ed.
Petrópolis: Vozes, 2005.

35 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma


hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer; nova revisão da tradução por Enio
Paulo Giachini. Rio de Janeiro: Vozes, 2008; GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II.
Complementos e índice. Trad. Enio Paulo Giachini, 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

36 A crítica hermenêutica do direito é conjunto da obra de Lenio Luiz Streck, destacando-se


STRECK, Lenio. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da
construção do direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014; STRECK, Lenio.
Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 4. ed. São Paulo: Ed. RT, 2014; STRECK, Lenio.
Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5. ed. rev.,
modificada e ampl. São Paulo: Saraiva, 2014; STRECK, Lenio. O que é isto – decido
conforme minha consciência. 5. ed., rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2015.

37 DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jéferson Luiz Camargo; revisão técnica:
Gildo Sá Leitão Rios. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

38 STEIN, Ernildo. Em busca da linguagem para um dizer não-metafísico. Natureza


humana. vol. 6. n.1. p. 289-304. PUC-SP. 2004.

39 A fenomenologia hermenêutica heideggeriana identifica o logos hermenêutico,


responsável por estruturar a compreensão, e logos apofântico, responsável por explicitar a
compreensão. Assim, “a linguagem traz em si um duplo elemento, um elemento
lógico-formal que manifesta as coisas na linguagem, e o elemento prático de nossa
experiência de mundo anterior à linguagem, mas que não se expressa senão via
linguagem, e este ele é o como e o logos hermenêutico” (STEIN, Ernildo. Aproximações
sobre hermenêutica, Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. p. 20).

40 STRECK, Lenio. O que é isto... cit., p. 15.

41 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo cit., passim.

42 STRECK, Lenio. O que é isto ... cit., p. 84.

43 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I... cit., p. 374-375.

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Teoria da decisão judicial no Código de Processo Civil:
uma ponte entre hermenêutica e analítica?

44 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo cit., p. 210.

45 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I... cit., p. 356. Sobre o círculo


hermenêutico, GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II... cit., p. 72-81.

46 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I... cit., p. 405.

47 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo cit., p. 209.

48 “Referimo-nos, em primeiro lugar, à ‘Espiral Hermenêutica’, segundo a qual a aplicação


do direito envolve uma atividade altamente dinâmica, em que se circula das premissas
menores às maiores, diversas vezes e sucessivamente, até se conformarem fato e direito
naquilo que, apenas descritivamente, ou seja, em sua forma ou aparência externa, será
um silogismo. Aqui, a formulação do juízo de fato e do direito a aplicar são conjunta e
reciprocamente elaborados, um exercendo grande influência sobre o outro, num intenso
movimento da norma ao fato, do fato à norma, até chegar-se ao produto final” (KNIJNIK,
Danilo. Os standards do convencimento judicial: paradigmas para o seu possível controle.
Revista Forense. vol. 353. n. 353. p. 15-52. Rio de Janeiro: Forense, 2001).

49 Nos dizeres de Lenio Streck: “Por intermédio do círculo hermenêutico, faz-se a distinção
entre pré-juízos verdadeiros e falsos, a partir de um retorno contínuo ao projeto prévio de
compreensão, que tem na pré-compreensão a sua condição de possibilidade. O intérprete
deve colocar em discussão seus pré-juízos, isto é, os juízos prévios que ele tinha sobre a
coisa antes de com ela se confrontar. Os pré-juízos não percebidos como tais nos tornam
surdos para a coisa de que nos fala a tradição” (STRECK, Lenio. Verdade e consenso... cit.,
p. 412-413). Um exemplo pode ser dado, a teoria dos precedentes está sendo adotada
dogmaticamente no direito brasileiro de forma gradativa, o problema da vinculatividade
dos precedentes é um problema de teoria do direito que é contemporâneo a todos os
ordenamentos jurídicos, não importando qual a tradição jurídica, contudo, a
pré-compreensão de que se trata de uma “invasão” do common law, de um direito criado
pelos juízes e o senso comum de que o Brasil é um país de civil law faz com que sejam
alegadas falsas incompatibilidades e inconstitucionalidades dos institutos propostos. A
tradição não é uma camisa de força, os problemas jurídicos exigem antes de sua análise o
distanciamento e o afastamento das pré-compreensões. Sobre a teoria dos precedentes
normativos formalmente vinculantes cf. ZANETI JR., Hermes. O valor vinculante dos
precedentes... cit., passim.

50 STEIN, Ernildo. Aproximações sobre hermenêutica cit., p. 71-88.

51 “L’interpretazione ha natura essenzialmente intermediatrice e si coloca tra l’universalità


del texto (la legge, il principio, l’opera, l’azione) e la concretezza dela situazione storica
entro la quale esso è posto” (VIOLA, Francesco; ZACCARIA, Giuseppe. Diritto e
Interpretazione: Lineamenti di Teoria Ermeneutica del Dirrito. Roma/Bari: Laterza, 1999.
p. 109).

52 “Uma lei não quer ser entendida historicamente. A interpretação deve concretizá-la em
sua validez jurídica. (...) se quiser compreendê-lo adequadamente [o texto da lei], isto é,

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Teoria da decisão judicial no Código de Processo Civil:
uma ponte entre hermenêutica e analítica?

de acordo com as pretensões que o mesmo apresenta, tem de ser compreendido em cada
instante, isto é, em cada situação concreta de uma maneira nova e distinta. Aqui,
compreender é sempre também aplicar” (GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I...
cit., p. 461).

53 Curiosamente, Gadamer se vale de uma decomposição analítica para explicar o


fenômeno hermenêutico da applicatio, o que reforça a importância da analítica para tornar
claro o discurso compreendido hermeneuticamente.

54 “A realidade dos costumes, p. ex., é e continua sendo, em âmbitos bem vastos, algo
válido a partir da herança histórica e da tradição. Os costumes são adotados livremente,
mas não criados por livre inspiração nem sua validez nela se fundamenta. É isso,
precisamente, que denominamos tradição: o fundamento de sua validez. E nossa dívida
para com o romantismo é justamente essa correção do Aufklàrung, no sentido de
reconhecer que, à margem dos fundamentos da razão, a tradição conserva algum direito e
determina amplamente as nossas instituições e comportamentos (...) Seja qual for o caso,
a compreensão nas ciências do espírito compartilha com a sobrevivência das tradições,
uma premissa fundamental, a de sentir-se interpelada pela própria tradição” (GADAMER,
Hans-Georg. Verdade e método I... cit., p. 421-424).

55 KAUFMANN, Arthur. A problemática da filosofia do direito ao longo da história. In.:


KAUFMANN, Arthur; HASSEMER, Winfried (org). Introdução à filosofia do direito e à teoria
do direito contemporâneas [1977]. Trad. Marcos Keel. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2002. p. 134.

56 STEIN, Ernildo. Aproximações sobre hermenêutica cit., p. 79-80.

57 “No momento, é importante ter claro que quando se fala em teoria do direito hoje é
inevitável que se faça uma opção: ou somos analíticos ou somos hermenêuticos – não há
meio termo possível nessa questão” (ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini;
OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à teoria e filosofia do direito cit., p. 433-434).

58 Vejamos, apenas a título de exemplo, a doutrina brasileira. Lenio Streck, hermeneuta,


afirma que “a hermenêutica não quer corrigir ou substituir qualquer teoria
epistemo-procedimental. Igualmente, não pretende recorrer com uma teoria do
conhecimento que procure justificar os elementos do conhecimento empírico. A
hermenêutica não proíbe que se faça essa justificação explicitação de forma procedural. Só
que a hermenêutica não concorda com a eliminação do primeiro passo na compreensão,
que é exatamente o elemento hermenêutico” (STRECK, Lenio. Verdade e consenso... cit.,
p. 82). Humberto Ávila, analítico, assevera que “Todavia, a constatação de que os sentidos
são construídos pelo intérprete no processo de interpretação não deve levar à conclusão de
que não há significado algum antes do término desse processo de interpretação. (...)
Wittgenstein refere-se aos jogos de linguagem: há sentidos que preexistem ao processo
particular de interpretação, na medida em que resultam de estereótipos de conteúdos já
existentes na comunicação linguística geral. Heidegger menciona o enquanto
hermenêutico: há estruturas de compreensão existentes de antemão ou a priori, que
permitem uma compreensão mínima de cada sentença sob certo ponto de vista já

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Teoria da decisão judicial no Código de Processo Civil:
uma ponte entre hermenêutica e analítica?

incorporado ao uso comum da linguagem. Miguel Reale faz uso da condição a priori
intersubjetiva: há posições estruturais preexistentes no processo de cognição, que fazem
com que o sujeito interprete algo anterior que se lhe apresenta para ser apresentado”
(ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos.
15. ed. atualizada. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 52-53).

59 ATIENZA, Manuel. Hermenéutica e filosofía analítica en la interpretación del derecho.


Cuestiones judiciales. México: Editorial Fontamara, 2001. p. 101-118.

60 “Poder-se-ia eventualmente sustentar, com Guastini, que a interpretação e aplicação


são atividades exercidas sobre objetos diferentes. A interpretação tem por objeto textos
normativos, ao passo que a aplicação tem por objeto normas (entendidas estas como o
conteúdo de sentido dos textos normativos). Logo, a aplicação não coincide com a
interpretação, porque a pressupõe ou inclui como uma parte constitutiva. Mas é
precisamente essa circunstância que faz com que ambas – interpretação e aplicação –,
quando praticadas pelo intérprete autêntico – implicando, portanto, a concreção da lei em
cada caso –, consubstanciem um processo unitário” (GRAU, Eros Roberto. Por que tenho
medo dos juízes: a interpretação/aplicação do direito e os princípios. 6. ed. São Paulo:
Malheiros, 2014. p. 48, nota de rodapé n. 38).

61 KAUFMANN, Arthur. A problemática da filosofia... cit., p. 134.

62 “(...) A imbricação entre a argumentação e a interpretação, no plano judiciário, é


realmente simétrica à imbricação entre compreensão e explicação no plano das ciências do
discurso e do texto. Em contraposição a uma abordagem puramente dicotômica da
polaridade famosa, no passado eu concluíra minha defesa do tratamento dialético como
uma formula em forma de aforismo: ‘Explicar mais para compreender melhor’. Como
conclusão do debate entre interpretação e argumentação proponho uma formula parecida
que restitui à epistemologia do debate judiciário sua unidade complexa. O ponto no qual
interpretação e argumentação se interseccionam é o ponto no qual se cruzam o caminho
regressivo e ascendente de Dworkin e o caminho progressivo e descendente de Alexy e
Atienza”. Cf. RICOEUR, Paul. Interpretação e/ou argumentação. In.: O justo 1. A justiça
como regra moral e outra instituição. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes,
2008. p. 153-173, p. 172.

63 No original: “necesidad de utilizar determinados procedimientos o métodos para pasar


de un enunciado a interpretar” (…) “un problema de atribución de significado a un término,
a un enunciado o a un conjunto de enunciados (es decir, a un material jurídico)” (ATIENZA,
Manuel. Hermenéutica e filosofía… cit., p. 114-115).

64 Como já mencionado, a justificação interna e externa é devida a Jérzy Wrobléwski e é


hoje acatada por parcela significativa de teorias partidárias da filosofia analítica, veja-se
em ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como
teoria da fundamentação jurídica. Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva. 3. ed. Forense: Rio
de Janeiro, 2013. p. 219-278; TARUFFO, Michele. A motivação da sentença civil... cit., p.
234-247; GUASTINI, Riccardo. Interpratare ed Argumentare. Milano: Giuffrè, 2011. p.
354-356; CHIASSONI, Pierluigi. Tecnica dell’Interpretazione Giuridica. Bologna: Il Mulino,

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uma ponte entre hermenêutica e analítica?

2007, passim.

65 No original: “el fundamento último de ese proceso argumentativo no puede ser otro que
una teoría de naturaleza moral y política” (…) “la asunción de una determinada teoría
moral” (ATIENZA, Manuel. Hermenéutica e filosofía… cit., p. 114-115).

66 “A questão central da ‘virada hartiana’, com o estabelecimento do ponto de vista interno


como necessário, passa pelo reconhecimento de que as perguntas formuladas pelos oficiais
responsáveis por aplicar o direito todos os dias, as perguntas sobre ‘como aplicar uma
norma N’ ou ‘como interpretar a norma N em relação aos fatos Y, que não estavam antes
sobre debate quando a norma N foi estabelecida’, passa a ser central para se definir a
validade da própria norma a ser aplicada”, cf. HART, H. L. A., The Concept of Law, p. 103.
A questão também foi identificada na doutrina brasileira: “a teoria jurídica de Hart, ao
atrair a atenção para o denominado ‘ponto de vista interno’, contém o germe para a
destruição do ontologismo essencialista que caracteriza as teses filosóficas do positivismo
descritivo, já que este ponto de vista (interno) reclama uma abordagem hermenêutica do
filósofo do direito”, cf. BUSTAMANTE, Thomas. A breve história do positivismo descritivo. O
que resta do positivismo jurídico depois de H. L. A. Hart? Revista Novos Estudos Jurídicos.
vol. 20. n. 1. p. 307-327. jan.-abr. 2015.

67 DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press,


1977.

68 “Sem uma compreensão sistemático-conceitual a ciência do direito não é viável como


uma disciplina racional (...) Seria impossível falar de um controle um controle racional das
valorações indispensáveis à ciência do direito e de uma aplicação metodologicamente
controlada do saber empírico” (ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad.
Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 49).

69 Ressalte-se, inclusive, que o jurista alemão deixa muito claro em sua teoria dos direitos
fundamentais que “é possível distinguir três dimensões da dogmática jurídica: uma
analítica, uma empírica e uma normativa”. A dimensão analítica corresponderia à
“dissecação sistemático conceitual do direito vigente”; a dimensão empírica se referiria à
“cognição do direito positivo válido”, não só a legislação, mas também a práxis
jurisprudencial; e, por fim, a dimensão normativa diria respeito à “elucidação e à crítica da
práxis jurídica, sobretudo a jurisprudencial”, de modo a questão central desta dimensão é
“determinar qual a decisão correta em um caso concreto” [perspectiva hermenêutica,
registramos]. Alexy defende que apesar de existir um movimento pendular de prevalência
de cada dimensão na história da ciência do direito, “o caráter prático da ciência do direito
revela-se como um princípio unificador. Se a ciência jurídica quiser cumprir sua tarefa
prática de forma racional, deve ela combinar essas três dimensões”. Não há, portanto, uma
sobreposição da analítica em relação às outras dimensões, o que corrobora o fato de que
discurso analítico ultimamente vem sendo renovado. Cf. idem, p. 32-38.

70 STRECK, Lenio. Hermenêutica jurídica e(m) crise... cit., p. 239-331.

71 Por isto, como adverte Franca D’Agostini, a partir da experiência do debate filosófico

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uma ponte entre hermenêutica e analítica?

italiano, não se pode deixar que um tema tão relevante possa ser reenviado ao debate
entre o farmacêutico e o padre, entre a ciência e a fé, entre techies e fuzzies (D’AGOSTINI,
Franca. Analitici e Continentali: um Progetto Fallito? Bollettino Filosofico. vol. 29. p. 79.
2014). Este tema é muito importante para ser abandonado à escuridão e ao jogo de
preferências. A relação entre hermenêuticos e analíticos é central ao giro linguístico e, no
direito, em especial, com a centralidade da linguagem e da interpretação assumida nos
últimos anos na filosofia jurídica e na teoria do direito, ou avançamos, ou aprofundaremos,
ainda mais, a fissura entre a vida prática do direito, o profissional do fórum, e o discurso
dos teóricos.

72 D’AGOSTINI, Franca. Analitici e Continentali... cit., p. 87.

73 Idem, p. 88.

74 Por modelo jurídico entende-se a “pluralidade de normas entre si articuladas compondo


um todo irredutível às suas partes componentes” (REALE, Miguel. Fontes e modelos do
direito: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 30). Neste
particular, a existência de um modelo de precedentes normativos formalmente vinculantes
(arts. 489, § 1.º, V e VI, 926 e 927 do CPC/2015 (LGL\2015\1656)) se deve ao
reconhecimento de uma ordenação estrutural e lógica de normas que, embora dispersas,
façam sentido quando relacionadas entre si: “(...) há um sentido prospectivo ou vetorial
em todo modelo jurídico, pois, como vimos, este é sempre de natureza normativa, e toda
norma é emanada para reger atos ou acontecimentos futuros” (REALE, Miguel. Op. cit., p.
48). Há que se fazer referência, também, aos processos de formação cultural dos modelos
jurídicos, que permitem a análise e o debate de modelos no âmbito do direito comparado,
independentemente das particularidades de cada ordenamento jurídico dado. Sobre o
modelo de precedentes normativos formalmente vinculantes, em seus aspectos teóricos e
dogmáticos, cf. ZANETI JR., Hermes. O valor vinculante dos precedentes... cit., passim.

75 Cf., sobre o ceticismo moderado, CHIASSONI, Pierluigi. Tecnica dell’Interpretazione


Giuridica cit., p. 147.

76 ZANETI JR., Hermes. A constitucionalização do processo... cit., passim.

77 Sobre a fundamentação das decisões judiciais no Código de Processo Civil de 2015, há


trabalhos já publicados que abordam a temática sob uma perspectiva analítica, como se vê
em MOTTA, Otávio Verdi. Justificação da decisão judicial: a elaboração da motivação e a
formação de precedente. São Paulo: Ed. RT, 2015; e sob uma perspectiva hermenêutica,
como se vê em SCHIMTZ, Leonard Ziesemer. Fundamentação das decisões judiciais: a
crise na construção de respostas no processo civil. São Paulo: Ed. RT, 2015.

78 Desde já, escusando-se pela eventual ausência de nomes da doutrina analítica e


hermenêutica, vejamos, apenas com caráter exemplificativo. Em relação à analítica, a
Itália é representada por Norberto Bobbio, que originou o movimento no direito italiano, e
por seus discípulos Uberto Scarpelli, Giovanni Tarello, Luigi Ferrajoli. Tarello estimulou a
criação de uma escola analítica na Universidade de Gênova, conhecida como Escola de
Gênova, de que são expoentes Riccardo Guastini, Paolo Comanducci e, mais

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uma ponte entre hermenêutica e analítica?

recentemente, Pierluigi Chiassoni. Analíticos de destaque na doutrina italiana são muitos,


vale lembrar Michele Taruffo, por sua notável importância para o direito processual civil
comparado e para a teoria do processo, inclusive quebrando o tecnicismo resultante de
certo divórcio entre o direito processual e a filosofia, e Giorgio Pino, mais recentemente, na
teoria e filosofia do direito, entre muitos. Um quadro completo dos autores italianos e do
histórico da filosofia analítica italiana pode ser encontrado em FERRAJOLI, Luigi. A cultura
jurídica... cit. No restante do mundo, a partir dos estudos de Jeramy Bentham, John Austin,
na Inglaterra, e Hans Kelsen, na Alemanha (CHIASSONI, Pierluigi. L’indirizzo Analitico...
cit.) e do renascimento da filosofia analítica do direito com H.L.A. Hart, renovando as
premissas do positivismo jurídico a partir da segunda metade do século XX, além de nomes
ligados ao positivismo crítico e ao pós-positivismo inclusivo como o do jurista alemão
Robert Alexy e do jurista escocês Neil MacCormick, também se destacam como analíticos.
Como advertimos acima qualquer lista neste quesito é incompleta e aproximativa. No
Brasil, a analítica encontra guarida no construtivismo lógico-semântico, derivado do
positivismo linguístico, de Lourival Vilanova, Paulo de Barros Carvalho e Tarék Moysés
Moussallem. Especificamente no direito processual, com algumas premissas desta escola
construtivista lógico-semântica, tem-se Fredie Didier Jr. (DIDIER JR., Fredie. Sobre a
teoria geral do processo, essa desconhecida – de acordo com o novo CPC
(LGL\2015\1656). 3. ed [2012]. Salvador: JusPodivm, 2016). Com abordagem claramente
analítica, conferir José Carlos Barbosa Moreira e Daniel Mitidiero, este último se afirmando
próximo à Escola de Gênova, confessadamente analítica. Em relação à hermenêutica, a
Itália pode ser representada por Giuseppe Zaccaria e Francesco Viola, na teoria e filosofia
do direito, e no processo, por Alessandro Giuliani e Nicola Picardi. O Common Law,
especificamente os Estados Unidos, mas com influência em toda a filosofia do direito
contemporânea, pode ser representado por Ronald Dworkin, como um grande defensor
das premissas da teoria hermenêutica do direito. No Brasil, além da clássica obra de Carlos
Maximiliano, que não pode ser enquadrada na hermenêutica filosófica, os estudos sobre
hermenêutica filosófica realizados por Ernildo Stein influenciaram a escola formada no
Lenio Streck, da qual são partidários Georges Abboud e Rafael Tomaz de Oliveira.
Especificamente no direito processual, os nomes de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira,
Ovídio Araújo Baptista da Silva, José Joaquim Calmon de Passos e Dierle Nunes se
destacam por uma abordagem preocupada com temas da hermenêutica jurídica, muitas
vezes com citações de Heiddeger, Gadamer e outros textos do cânone hermenêutico. A
convergência no direito processual civil é mais concreta a partir da necessidade de lidar
com conceitos de ambas as tradições teóricas que foram inseridos no Código de Processo
Civil de 2015, especialmente nos arts. 8.º e 489, §§ 1.º e 2.º e 926, caput. É preciso
perceber que este tema ingressou no Código de Processo Civil por força do debate
contemporâneo entre Alexy e Dworkin no direito brasileiro, este debate apresenta
convergências e divergências (ZANETI JR., Hermes. O valor vinculante dos precedentes...
cit., p. 362-366) e este texto pretende dar mais um passo na desmitificação da polêmica
em prol da operabilidade do Código de Processo Civil. Criticando a colocação de Ronald
Dworkin entre os hermeneutas cf. COELHO, André Luiz Souza. Dworkin e Gadamer: qual
conexão? Per. vol. 6. p. 19-43. 2014; criticando a inserção de Alexy entre os analíticos
poderíamos opor que apesar de se ocupar de temas analíticos ao adotar a pretensão de
correção Alexy partiria de uma premissa hermenêutica, a ontologia fraca, neste tema, com
referências bibliográficas ver ZANETI JR., Hermes. A constitucionalização do processo...
cit., p. 154. O que essas observações revelam é que se tem uma classificação por

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uma ponte entre hermenêutica e analítica?

tendência, permitindo o agrupamento de autores, mas sem um critério definitivo. Isto


reforça a tese da convergência.

79 O clássico trabalho de Michele Taruffo, recentemente traduzido para o português, é um


estudo notavelmente analítico, apesar da profundidade com que trata a questão na história
do direito. TARUFFO, Michele. A motivação da sentença civil cit., p. 276-330.

80 PECZENIK, Aleksander. Can Philosophy Help Legal Doctrine? Ratio Juris. vol. 17. n. 1. p.
106-117. mar. 2004.

81 Não à toa, Robert Alexy evidencia as limitações do discurso jurídico em relação ao


discurso prático geral e diz que no processo as limitações são ainda maiores porque “os
papeis estão desigualmente distribuídos: a participação, por exemplo, do acusado não é
voluntária e o dever de veracidade é limitado. O processo de argumentação é limitado
temporalmente, sendo regulamentado por regras processuais. As partes podem
orientar-se segundo seus interesses. Como frequência, talvez como regra, as partes não
buscam exatamente a sentença correta ou justa, mas a que lhe é vantajosa” (ALEXY,
Robert. Teoria da argumentação jurídica… cit., p. 210).

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