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Solange Maria Alves

FREIRE E VIGOTSKI
um diálogo entre a pedagogia freireana
e a psicologia histórico-cultural

Chapecó, 2012
Reitor: Odilon Luiz Poli
Vice-Reitora de Ensino, Pesquisa e Extensão: Maria Aparecida Lucca Caovilla
Vice-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento: Claudio Alcides Jacoski
Vice-Reitor de Administração: Antônio Zanin

Diretora de Pesquisa e Pós-Graduação Stricto Sensu: Maria Assunta Busato

Este livro ou parte dele não podem ser reproduzidos por qualquer meio sem autorização
escrita do Editor.

306.43 Alves, Solange Maria


A474f Freire e Vigotski: um diálogo entre a pedagogia freireana
e a psicologia histórico-cultural / Solange Maria Alves. –
Chapecó : Argos, 2012.
274 p. : 23 cm. – (Debates ; 2)

Inclui bibliografias.
ISBN: 978-85-7897-040-6

1. Freire, Paulo. 2. Vigotski, Liev Semionovich.


3. Sociologia educacional. I. Título.

CDD 306.43
Catalogação elaborada por Caroline Miotto CRB 14/1178
Biblioteca Central da Unochapecó

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Rosana Maria Badalotti (presidente), Carla Rosane Paz Arruda Teo (vice-presidente),
César da Silva Camargo, Dirceu Luiz Hermes, Elison Antonio Paim,
Érico Gonçalves de Assis, Maria Aparecida Lucca Caovilla, Maria Assunta Busato,
Murilo Cesar Costelli, Tania Mara Zancanaro Pieczkowski

Coordenador:
Dirceu Luiz Hermes
Agradecimentos
Gosto de ser gente porque a História em que me faço
com os outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de
possibilidades e não de determinismo.
Paulo Freire

À professora Marta Kohl de Oliveira, pelas discussões, pela liber-


dade tão característica de sua prática como orientadora, que faz crescer
e assumir a dor e a delícia do processo de construção do conhecimento.
À CAPES, fonte financiadora do processo de doutoramento, pela
bolsa de pesquisa sem a qual boa parte dessa trajetória teria padecido.
Ao Moisés e ao Gianfranco, partes de mim que compartilham
comigo a experiência social na qual se constituem como individuali-
dades sem as quais eu não seria o que sou.
À Fabiana, irmã solidária, que atravessou comigo a fúria das
turbulências emocionais, as metamorfoses que experimentei nesse
processo, para muito além da produção da tese.
À Marizélia e à Rachel, ombros amigos nos quais me amparei
tantas vezes. Interações que me modificaram como mulher, como
profissional, como gente.
Ao meu pai e à minha mãe (Antonio e Verondina), subjetivi-
dades marcadas pela história, lugar onde me reconheço a cada “causo”
contado, revivido, rememorado. Com eles vivi, compreendi, de fato, a
expressão de Marx: “Os homens fazem sua própria história, mas não
a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias
de sua escolha, mas sob aquelas circunstâncias com que se defrontam
diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.”
À Sueli, casa limpa, suco gelado, chá quentinho, gelatina, água
quente para o mate, sorriso e prontidão, aconchego e cuidado, nas
horas em que esqueci de mim entregue ao cansaço da solitária pro-
dução científica.
A tantos e tantas amigos e amigas que, de modos muito singelos,
reequiparam minhas energias e me ajudaram na “arte de brincar de
renascer” como ente histórico que sou.
Escrevi no chão do outrora
e agora me reconheço:
pelas minhas cercanias
passeio, mal me frequento.
Mas pelo pouco que sei
de mim, de tudo que fiz,
posso me ter por contente,
cheguei a servir à vida,
me valendo das palavras.
[...] Trabalho que nem um mouro,
estou sempre começando.
Tudo dou, de ombros e braços,
e muito de coração,
[...] Nada criei de novo.
Nada acrescentei às formas
tradicionais do verso.
Quem sou eu para criar coisas novas,
pôr no meu verso, Deus me livre, uma invenção.
Thiago de Mello
Sumário

11 Prefácio
Marta Kohl de Oliveira

13 Apresentação

33 CAPÍTULO I
Psicologia e pedagogia, Vigotski e Freire:
reflexões iniciais

35 Psicologia histórico-cultural e pedagogia freireana:


reconhecendo o objeto no contexto histórico da relação
psicologia-pedagogia

55 Entre Freire e Vigotski: o (des)encontro e o diálogo


77 CAPÍTULO II
Trabalho, linguagem e consciência:
tecendo o humano concreto em Freire e Vigotski

82 Trabalho: atividade vital e gênero humano

103 A consciência: o reflexo superior da realidade

123 Linguagem: a palavra é práxis

159 CAPÍTULO III


Psicologia histórico-cultural e pedagogia freireana:
o diálogo pelas categorias teóricas internas

160 Mediação simbólica em Vigotski e mediação pedagógica


em Freire: linguagem, consciência e conteúdo

187 O conhecimento em Freire, a elaboração conceitual


em Vigotski

211 CAPÍTULO IV
Educação escolar: território do encontro entre
Freire e Vigotski

245 Considerações finais

255 Referências
Prefácio

“O problema do qual me ocupo nesta pesquisa tem sua gênese na


reflexão sobre a prática vivenciada ao longo de oito anos de adminis-
tração popular na cidade de Chapecó (SC).” Essa frase, a primeira
da tese que deu origem ao presente livro, anuncia a importância da
convivência, na pessoa da autora Solange Maria Alves, da educadora
militante com a docente pesquisadora. Convivência tensa, no melhor
sentido, já que gerou uma motivação muito mais do que apenas inte-
lectual para o desenvolvimento do projeto de doutorado de Solange,
conforme pude testemunhar como sua orientadora no programa de
pós-graduação da Faculdade de Educação da Universidade de São
Paulo. Essa tensão entre militância e pesquisa, teoria e prática, ação
e reflexão, resultou na definição de um projeto de contraposição e
busca de diálogo entre a pedagogia de Paulo Freire e a psicologia
histórico-cultural de Vygotsky, que começa com a análise de categorias
conceituais e termina não na sala de aula, como Solange inicialmente
desejava, mas na reflexão sobre o território da educação escolar como
lugar privilegiado de encontro entre Freire e Vygotsky.

!!
A análise teórica empreendida concentrou-se nas categorias de
trabalho, atividade fundamental e distintiva do ser humano; linguagem,
sistema semiótico presente em todos os grupos culturais, com um
papel essencial no desenvolvimento psicológico; e consciência, lócus
da subjetividade especificamente humana, historicamente forjada.
Recorrendo a autores de filiação materialista dialética, Solange apro-
funda a discussão de cada uma dessas categorias e busca compreender
como elas emergem nos pensamentos de Freire e Vigotski e como
possibilitam o diálogo entre eles.
Ao chegar ao território escolar como espaço historicamente
constituído de desenvolvimento humano e lugar em que explicita-
mente interagem a psicologia e a pedagogia, a autora busca construir
novas possibilidades de diálogo entre os pensadores por ela escolhi-
dos, aproximando as categorias de mediação simbólica em Vygotsky
e de mediação pedagógica em Freire, trabalhando com a questão do
conhecimento nas duas teorias e propondo a compatibilidade entre a
pedagogia freireana e a psicologia histórico-cultural.
Se na primeira frase do texto Solange explicita a gênese de sua
reflexão numa história pessoal de compromisso político com o mundo
real, seu parágrafo final evidencia que esse compromisso permaneceu
vivo ao longo de sua passagem pelo programa de doutorado e essencial
em sua relação com o próprio processo de construção de conhecimento.
Esse processo tem como meta, para Solange e para os autores que ela,
não por acaso, escolheu estudar, a transformação e a produção daquilo
que é novo para o ser humano, sempre em desenvolvimento.

Marta Kohl de Oliveira


Faculdade de Educação da USP.

!"
Apresentação

Pedagogia freireana e psicologia histórico-cultural:


gênese do problema

O problema do qual me ocupo nesta pesquisa tem sua gênese na


reflexão sobre a prática vivenciada ao longo de oito anos de adminis-
tração popular na cidade de Chapecó (SC).
Particularmente, o processo do qual se originou o presente
estudo teve início em 1998, mais precisamente quando a rede muni-
cipal de ensino, mediante a elaboração coletiva de proposta político-
-pedagógica iniciada ainda em 1997, assumiu o compromisso com o
desenvolvimento de uma política pública caracterizada pela ideia de
educação com participação popular,1 cujo aporte teórico principal é a
concepção de Paulo Freire.

1. É importante observar que na região oeste de Santa Catarina está a origem de


muitos movimentos sociais populares, como é o caso destes: Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), Movimento de Mulheres Agriculto-

13
O movimento originado a partir de então foi sendo materiali-
zado pela criação de um Sistema Municipal de Ensino que, por sua
vez, viabilizou a organização de um Conselho Municipal de Educação
com componentes eleitos nos diferentes segmentos envolvidos.2 Esse
conselho foi responsável pela análise, aprovação e pelo acompanha-
mento da política pública em educação do município amplamente
discutida com a comunidade.
Tal política propunha (e implementou durante os oito anos de
gestão) um movimento de reorientação curricular com a organização
de processos pedagógicos fortemente articulados com a ideia e a prática
de uma escola comprometida com a comunidade na qual se insere;
uma escola cujo funcionamento depende da participação efetiva de
professores, alunos, pais e mães em Conselhos Escolares – instância

ras (MMA), Movimento dos Atingidos pelas Barragens (MAB), Movimen-


to das Oposições Sindicais, Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA),
movimentos indígenas, entre outros. De certo modo, todos articulados com
as características econômicas da região e também a instituições vinculadas e
comprometidas com políticas de esquerda no País e fora dele. Além disso, na
origem desses movimentos está a prática da Teologia da Libertação, coman-
dada pela Igreja Católica e também por outras religiões, de modo especial a
Luterana, que, ao longo do bispado de Dom José Gomes (hoje falecido), esteve
à frente da organização desses movimentos através de uma pedagogia veiculada
pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e por outras pastorais. Isso pode ser
observado, por exemplo, nos estudos de J. Poli (1987), O. Poli (1994), Renk
(1997) e Uczai (1992). Desse contexto vêm muitas das lideranças que, a partir
do governo popular eleito em 1996 e empossado em 1997, vão compor a equi-
pe da Secretaria Municipal de Educação; essas lideranças, pelas características
históricas da luta de esquerda no município, carregam consigo marcas e o de-
sejo de efetivar políticas públicas em favor do povo no sentido democrático e
popular.
2. De professores, alunos, comunidade – pais e mães – a entidades como sindica-
tos, universidade, rede pública estadual, rede particular de educação infantil. Ao
todo, 17 entidades representadas.

14
decisória em âmbito escolar, eleita por seus pares; em plenárias para
avaliação do processo pedagógico da escola e na disponibilização de
seu pensar, das significações construídas no seu cotidiano para serem
colhidas, estudadas, compreendidas e transformadas em conteúdo
mediador de novas interpretações de mundo, como propõe a pedagogia
da libertação assumida por tal política educacional.
Trata-se, portanto, de uma relação visceral entre escola e comu-
nidade. Parafraseando Cortella (2000), uma “escola dos muros para
fora”, que acolha a comunidade, mas que também se coloque para a
comunidade como espaço possível de articulação das demandas da
população, através da apropriação do conhecimento como ferramenta
de libertação.
Colocar no chão da escola essa política demandou o enfren-
tamento severo de questões de ordem tanto estrutural (tempo para
planejamento e tomada de decisões pelo coletivo da escola) quanto
pedagógicas no sentido da reorganização do sistema por ciclos de
formação, pautados pelo conceito de ciclo como tempo histórico de
aprendizagem e desenvolvimento para além do tempo cronológico de
cada indivíduo; um tempo histórico da vida e de uma vida inserida
num contexto, construída com os aportes de uma dada cultura.

Transformar implica agir, agir conscientemente, agir constru-


tivamente. Ação global, coletiva, entendendo a escola como
mais do que a soma de suas partes. A escola do real vivido que
se relaciona organicamente com a comunidade na qual está
inserida. Espaço significativo de construção do conhecimento.
(SMED/SP – Cadernos de Formação, 1990, p. 9).

Para a perspectiva freireana, o conteúdo mediador de novas in-


terpretações da realidade não vem do livro didático ou de programas

15
pré-definidos. Ao contrário, vem das falas da comunidade, das falas
de alunos e alunas, das representações que eles têm das vivências ou
das experiências construídas nas relações cotidianas com os espaços
comunitários mais próximos, mas também com os acontecimentos
em nível contextual maior à medida que se colocam como sujeitos
imersos em redes de relações sociais, políticas, econômicas e culturais
que demarcam e influenciam fortemente, por assim dizer, seu modo
de agir e pensar. Segundo Freire (1987, p. 86), é “a partir da situação
presente, existencial, concreta, refletindo o conjunto de aspirações do
povo, que podemos organizar o conteúdo programático da educação
ou da ação política”. Ou ainda, como esclarece Silva (2004, p. 1):

Uma educação crítica e libertadora concebe o currículo como o


conjunto de práticas socioculturais que – de forma explícita ou
implícita, consciente, intencional, empírica ou incorporada in-
conscientemente – se inter-relacionam nas diferentes instâncias
e momentos do espaço-tempo escolar. Assume-se a defesa de
uma intervenção pedagógica crítica na prática educativa desu-
manizadora vigente, na perspectiva de um currículo responsável,
comprometido com os socialmente excluídos, que parta das
necessidades e dos conflitos vivenciados para tornar-se signi-
ficativo, crítico, contextualizado, transformador e popular. [...]
Assim, se toda prática escolar está arraigada a um contexto que
se manifesta nas dimensões da realidade local, em seus sujeitos e
processos de construção do real, ou seja, nas inter-relações entre
culturas e saberes, comportamentos e posicionamentos éticos,
práticas socioculturais da comunidade [...].

Trata-se de um movimento pedagógico para o qual o conheci-


mento, muito embora necessário, não é desvinculado da prática que
liberta, como também, no dizer de Damke (1995), não será uma prática
sem reflexão que poderá fazê-lo.

16
A práxis pedagógica libertadora, como o próprio nome sugere,
indica a necessidade de uma educação vista como um movimento
em direção à liberdade. Não se trata, no entanto, de libertação num
sentido metafísico, de uma essência dada e naturalmente inerente ao
humano, “mas de libertação de um ‘ente-histórico’ que se constrói
enquanto constrói o mundo, através da práxis” (Damke, 1995, p. 58).
No âmbito específico das práticas escolares, torna-se necessário,
a partir de então, compreender a realidade e suas contradições, a lógica
estabelecida nas falas de cada pessoa e o relacionamento estabelecido
com os outros. Esse processo novo e desafiador colocou, entre outras
demandas, não menos importantes, a necessidade de superar concep-
ções de desenvolvimento humano marcadamente liberais – centradas
no indivíduo – e fortemente presentes em significativa parcela das
práticas pedagógicas.
A interpretação de falas como manifestações vivas de conteúdo
histórico, cultural e ideológico da concreticidade humana (como quer
Freire) não cabe em concepções pautadas na meritocracia individual,
na passividade do ser humano compreendido como um acumulado de
reflexos, de estímulos e respostas ou marcado pelo destino absoluto
de suas condições físicas e/ou espirituais. Ao contrário, o exercício de
interpretar falas como manifestações de um sujeito humano concreto,
que vive, sente e significa a experiência histórica nas condições de vida
real em que se encontra, requer outros parâmetros teóricos.
Este cenário dá origem a inúmeras indagações. De modo parti-
cular, emerge daí a necessidade de dialogar com uma teoria psicológica
que favoreça a construção de instrumentos de análise da palavra da
comunidade, a partir de aportes condizentes com a crença e o com-
promisso da pedagogia de Paulo Freire. Essa demanda aproximou a
pedagogia freireana da psicologia histórico-cultural e constitui terreno
fértil para o problema que se coloca neste estudo.

17
Num primeiro momento, a reflexão em torno da possibilidade de
um diálogo mais próximo e mais intenso entre essas teorias surge, de
modo especial, em face de indagações como estas: quem são os sujeitos
que falam, que emitem a palavra que, interpretada, se transforma em
conteúdo problematizador e conscientizador? São sujeitos concretos,
responde Freire. E o que é um sujeito concreto? A palavra emitida por
este sujeito é reveladora da constituição da consciência desse sujeito?
Tomado esse referencial inquisitório, a aproximação com a psico-
logia histórico-cultural passou a constituir quase uma necessidade vital.
Se feitas as mesmas perguntas a Vigotski,3 Luria e Leontiev – escola
histórico-cultural de psicologia –, a resposta caminha numa direção
muito semelhante à de Freire no campo da pedagogia. Evidentemente,
ficam resguardadas as diferenças decorrentes dos tempos, espaços e
áreas do conhecimento a partir das quais constroem suas reflexões,
suas teorias.
Para Vigotski e colaboradores, o homem é, antes e sobretudo,
um ser cuja constituição depende fundamentalmente das relações
socioculturais nas quais se insere e com as quais, ativamente, interage.

3. Várias têm sido as formas de grafia para o nome desse autor, a partir da trans-
literação do alfabeto russo, dependendo do lugar e das formas linguísticas ado-
tadas. É o caso da grafia Vygotsky, bastante utilizada nas traduções estaduni-
denses e inglesas. Por sua vez, nas edições espanholas tem prevalecido a grafia
Vygotski; na Alemanha, Wygotski. Contudo, em obras do campo da psicolo-
gia, publicadas pela editora estatal soviética dos idos vividos por este autor – a
Editora Progresso, de Moscou –, traduzidas diretamente para o espanhol, bem
como em edições recentes publicadas no Brasil, verifica-se a adoção da grafia
Vigotski. Assim, preservadas as grafias adotadas pelo referencial consultado
para este estudo, esta última se define como opção gráfica para o texto e o con-
teúdo em questão.

18
Essa condição humana, por assim dizer, é resultado de um longo
processo histórico marcado fundamentalmente pela invenção e pelo
uso de instrumentos técnicos utilizados para o trabalho – atividade
vital humana – e pela linguagem, fruto da necessidade de comunica-
ção e intercâmbio entre os homens. Assim, podemos dizer que o ser
humano é síntese de um processo complexo de relações sociais desde
a sua origem. E compreender o pensamento e o comportamento hu-
mano implica compreender os processos sociais constitutivos desse
pensamento e/ou comportamento. Pensamento que, na concepção
de Paulo Freire, manifesta-se na palavra, cujo conteúdo é analisado e
transformado em conteúdo mediador de novas interpretações acerca
da realidade vivida pelos sujeitos.
Há, portanto, uma possibilidade concreta que se apresenta como
terreno fértil para um diálogo e uma aproximação entre a pedagogia
freireana e a psicologia histórico-cultural, de tal modo que aquela
pode constituir-se efetivamente em um campo mediador da psicologia
histórico-cultural no âmbito de práticas educativas escolares.
Ou, dizendo de outro modo, a pedagogia da libertação, tal como
proposta por Paulo Freire, encontra na psicologia histórico-cultural os
aportes necessários – no âmbito de uma concepção de subjetividade e
de constituição da subjetividade humana, da relação entre desenvol-
vimento e aprendizagem e das bases psicológicas para o processo de
construção do conhecimento escolar – para efetivar-se como práxis
educativa.
Aqui nasce a questão central deste estudo. Gerado a partir
da reflexão sobre a práxis, passa a constituir-se, porque incorpora o
movimento dialético de um processo de indagações e vivências, num
objeto teórico, ou seja, não se caracteriza por uma análise de dados
ou situações empíricas mediadas por opções teóricas, mas define-se
como uma questão de cunho teórico que tem por objetivo estabelecer

19
relações entre dois campos distintos do conhecimento que, a partir de
suas especificidades, estabelecem possibilidades efetivas de diálogo.
De um lado, a pedagogia freireana,4 como já observado an-
teriormente, propõe uma práxis pedagógica alicerçada na relação
homem-mundo, cuja manifestação mais explícita se encontra no
“pensamento-linguagem”5 do povo. O que coloca como demanda con-
creta a compreensão e a significação do que se entende por pensamento

4. Muito embora várias expressões traduzam as ideias de Freire para a educa-


ção – pedagogia da libertação, pedagogia dialógica, pedagogia emancipatória –,
estou optando majoritariamente pelo uso da expressão pedagogia freireana, por
entender que ela traduz de modo mais fiel a concepção de Paulo Freire sobre o
ser humano, sobre a sociedade, sobre a educação, sobre a escola e sua forma de
inserção na sociedade, que, nessa perspectiva, deve ser sempre emancipatória,
dialógica, libertadora. Faço referência, no entanto, a uma reflexão de Clodovis
Boff que me parece amplamente sugestiva para a opção que faço neste estudo.
Diz Boff: “Entre nós, a idéia de educação popular vem infalivelmente associada
ao nome de Paulo Freire. Não porque Paulo Freire tenha ‘inventado’ não sei que
‘teoria’ ou ‘método’ de educação. Nada mais falso e nada mais contrário ao pen-
samento do próprio Paulo Freire. Mas não há dúvida de que este tem o mérito
histórico de ter sido o que melhor interpretou e com mais felicidade formulou
uma verdadeira ‘pedagogia do oprimido’, uma autêntica ‘educação libertadora’
que se busca praticar em diferentes áreas do trabalho popular, seja em nível sin-
dical e partidário, seja nas mais diversas associações e movimentos sociais. Pau-
lo Freire representa socialmente, no sentido preciso e mais forte do termo, esse
novo modo de aproximação do povo oprimido, de sorte que dizer ‘Educação
Paulo Freire’ é já definir uma postura específica de acercamento da realidade
popular, postura feita de humildade, escuta, respeito e confiança, e ao mesmo
tempo de crítica, interrogação, diálogo, solidariedade e envolvimento transfor-
mador. Numa palavra, trata-se da educação como ‘ato amoroso’, enfatizando-se
igualmente os dois termos: ‘ato’ como ação, prática, libertação, e ‘amoroso’ como
bem-querer, confiança e reciprocidade.” (Clodovis Boff na apresentação do li-
vro Que fazer: teoria e prática em educação popular, p. 9, de Paulo Freire e Adriano
Nogueira. Disponível em: <www.ppbr.com/ipf/escritos.html>).
5. Expressão cunhada por Freire em Pedagogia do Oprimido e Extensão ou comu-
nicação?

20
e linguagem, por relação homem-mundo, e de como esses fatores,
por assim dizer, compõem processos de constituição da subjetividade
humana. Uma pedagogia para a qual o processo de conhecimento
(aprendizagem) implica um movimento da consciência no sentido
de ir e vir à realidade. O que indica a concepção de ser humano como
sujeito concreto, cuja feitura, para usar uma expressão de Freire, é
tecida na relação homem-mundo. Trata-se, portanto, de um sujeito
ativo cuja atividade cognitiva traduz-se em instrumento de apropriação,
compreensão e interação com a realidade.
De outro lado, a psicologia histórico-cultural preconiza a com-
preensão do funcionamento psicológico tipicamente humano como
produto de relações sociais, ou seja, o humano é condição que não se
herda biologicamente, mas se constitui no processo de apropriação
que o indivíduo concreto, historicamente situado, realiza dos artefatos
materiais e simbólicos presentes na cultura.
Outra forte razão, que leva ao exercício de diálogo entre as teorias
em debate, situa-se no lugar ocupado pela escola no âmbito da psicologia
marxista. A abordagem histórico-cultural tem a educação escolar como
instrumento central para o processo de humanização, tendo em vista
que compreende a prática pedagógica como espaço fundamental de
mediação simbólica, de interações e de ações pedagógicas deliberadas,
intencionais, voltadas para um fim que, em última instância, constitui-
-se no desenvolvimento de funções psicológicas tipicamente humanas.
Assim, se a psicologia histórico-cultural carrega em si instru-
mentos teóricos fundamentais para a compreensão do ser humano
como sujeito sócio-histórico, e se essa leitura ou concepção responde
às demandas centrais da pedagogia freireana, coloca-se o desafio de
estabelecer comparações entre os conceitos centrais de tais teorias e
verificar as possibilidades de diálogo efetivo entre ambas, tendo sempre

21
em vista a qualificação da práxis pedagógica. Daí que o objeto cen-
tral se defina pelo diálogo entre a pedagogia freireana e a psicologia
histórico-cultural.

Situando o problema e a dimensão metodológica da


pesquisa: os autores e as categorias de análise

De uma perspectiva dialética materialista, um objeto nunca é


“verdadeiramente” compreendido sem que se estabeleça o conjunto
de relações do qual é produto e processo. Trata-se de um princípio
fundamental da dialética: a totalidade – tudo se relaciona. No dizer de
Ciavatta (2001, p. 123), “[...] a totalidade social construída não é uma
racionalização ou modelo explicativo, mas um conjunto dinâmico de
relações que passam, necessariamente, pela ação de sujeitos sociais.”
E, mais adiante, prossegue a autora (p. 123, grifo nosso):

No sentido marxiano, a totalidade é um conjunto de fatos arti-


culados ou o contexto de um objeto com suas múltiplas relações,
ou ainda, um todo estruturado que se desenvolve e se cria como
produção social do homem. A dialética da totalidade (Kosik,
1975) é uma teoria da realidade onde seres humanos e objetos
existem em situação de relação, e nunca isolados, como alguns
processos analíticos podem fazer crer. Neste sentido a dialética
da totalidade é um princípio epistemológico e um método de
produção do conhecimento. Estudar um objeto é concebê-lo
na totalidade de relações que o determinam, sejam elas de nível
econômico, social, cultural, etc.

E, também, nas palavras de Frigotto (1995, p. 28):

22
A totalidade concreta, como nos adverte Kosik (1978), não é
tudo e nem é a busca do princípio fundador de tudo. Investigar
dentro da concepção da totalidade concreta significa buscar
explicitar, de um objeto de pesquisa delimitado, as múltiplas
determinações e mediações históricas que o constituem. A
historicidade dos fatos sociais consiste fundamentalmente na
explicitação da multiplicidade de determinações fundamentais
e secundárias que os produz.

Sob este prisma, o objeto através do qual se mobiliza este es-


tudo – o diálogo entre a pedagogia freireana e a psicologia histórico-
-cultural – requer um cuidadoso recorte que, ao mesmo tempo que
focalize o objeto, não o isole das inúmeras possibilidades de relações
pelas quais se compõe, por assim dizer, a totalidade em que se insere.
Trata-se do estudo de um diálogo possível entre duas teorias,
cuja gênese encontra-se marcada por tempos, lugares e vivências
contextuais, por processos de ordem política, econômica, cultural e
ideológica ao mesmo tempo distintos e semelhantes, pois guardam
coincidências importantes, especialmente se tomado como ponto em
comum o compromisso explícito que ambas têm com a educação.
O foco de análise está ancorado no materialismo histórico-
-dialético. O que implica esclarecer que se trata do esforço de não
dissociar o campo da ciência da história (materialismo histórico) do
campo da dialética materialista como teoria do conhecimento ou
filosofia marxista (Althusser, 1969 apud Pino, 2000, p. 50-51):

O materialismo dialético não é só método [...]. Ele é também


uma teoria, ou seja, um complexo conceptual que permite pensar
um objeto. É teoria e método, como elementos interligados e
aspectos diferentes de uma mesma realidade. Não só teoria, pois
não escaparia do dogmatismo das teorias clássicas da filosofia
do conhecimento. Não só método, pois perderia o estatuto de

23
ciências que precisa de um objeto. [...] Como diz Althusser, “no
materialismo dialético pode-se considerar, esquematicamente,
que é o materialismo o que representa o aspecto da teoria, en-
quanto que a dialética representa o aspecto do método” (1969,
p. 46). Um remete ao outro. É o materialismo que confere à
dialética seu caráter histórico, pois expressa os princípios das
condições concretas da produção do conhecimento, ou seja: a.)
distinção entre o real e o conhecimento desse real e b.) a primazia
do real sobre o conhecimento. O primeiro desses princípios, além
de permitir escapar das concepções racionalistas e empiricistas,
implica o fato de que entre o real e o conhecimento desse real
existe um distanciamento em que opera a atividade produtiva
do sujeito. O segundo faz do real o ponto de partida do conhe-
cimento [...] um ponto de partida que não se perde no processo
de produção do conhecimento. O objeto de conhecimento não
é o real em si, tampouco um mero objeto de razão. Ele é o real
transformado pela atividade produtiva do homem, o que lhe
confere um modo humano de existência.

Produzir conhecimento, fazer ciência, pois, é um ato de produção


humana. É atividade produtiva do ser humano. Isso confere à ciência
o seu caráter histórico e provisório, real e contraditório.
O método, analisa Frigotto (1994), está vinculado a uma con-
cepção de realidade, de mundo e de vida no seu conjunto. A questão
da postura, nesse sentido, antecede à do método. Este constitui-se
numa espécie de mediador no processo de aprender, revelar e expor a
estruturação, o desenvolvimento e transformação dos fenômenos sociais.

[...] se quiser pesquisar a estrutura da coisa e quiser perscrutar


“a coisa em si”, se apenas quer ter a possibilidade de descobrir a
essência oculta ou a estrutura da realidade – o homem, já antes
de iniciar qualquer investigação, deve necessariamente possuir
uma segura consciência do fato de que existe algo susceptível a
ser definido como estrutura da coisa, essência da coisa, “coisa em

24
si”, e de que existe uma oculta verdade da coisa, distinta dos fe-
nômenos que se manifestam imediatamente. (Kosik, 1975, p. 17).

É nisso que está implicado o detour de que fala Kosik. Fazer


um detour é fazer um desvio – ele indica – no esforço de descobrir a
verdade que, por ser histórica, é também provisória. Explicita o autor:

Como as coisas não se mostram ao homem diretamente tal


como são e como os homens não têm a faculdade de ver as
coisas diretamente na sua essência, a humanidade faz um detour
para conhecer as coisas e a sua estrutura. Justamente porque
tal detour é o único caminho acessível ao homem para chegar
à verdade. Periodicamente, a humanidade tenta poupar-se o
trabalho desse desvio e procura observar diretamente a essência
das coisas [...] com isso corre o perigo de perder-se ou de ficar
no meio do caminho, enquanto percorre tal desvio. (Kosik, 1975,
p. 27, grifos do autor).

Produzir conhecimento, sob o prisma do materialismo


histórico-dialético, implica reconhecer a dialeticidade a) do objeto
como objeto em si a ser conhecido, compreendido no movimento
contraditório e histórico em que se processa; b) do sujeito que,
distanciando-se do objeto para sobre ele debruçar-se, realiza uma
atividade de produção compreendida, no âmbito do gênero humano,
como atividade vital humana, tal como definida por Marx, ou seja,
através da qual se garantem os aspectos fundamentais da existência
humana, não apenas como espécie, mas como gênero,6 como ser social,

6. Como gênero humano entendo toda produção referida à história e às formas de


relações sociais constitutivas e constituídas pela humanidade. Ver, a esse respeito,
Duarte (1993).

25
cuja humanização depende da apropriação das objetivações humanas
presentes nas relações sociais. Daí que conhecer signifique transformar
o mundo, ou seja, é a ação transformadora do ser humano no mundo
que, a um só tempo, modifica o mundo e o humano.
Ocorre que, nas ciências humanas, a separação entre sujeito e
objeto do conhecimento é tarefa árdua, visto que, no mais das vezes,
ambos estão no mesmo campo e são, à luz da dialética materialista,
construtos sociais, portanto, históricos e contraditórios.
O desafio está em manter a coerência da análise, observando os
critérios da dialética como método e do materialismo como teoria, tal
como explicitado na citação de Pino, destacada anteriormente, sem
que isso signifique um engessamento do objeto num quadro teórico
de análise. Ao contrário, exatamente por assumir o compromisso com
um viés dialético materialista, deve-se ter na teoria um campo de
mediação necessário para a leitura dos processos que se apresentam
no objeto que, neste caso, é ciência humana.

[...] não considera os produtos fixados, as configurações e os


objetos, todo o conjunto do mundo material reificado, como
algo originário e independente. Do mesmo modo como assim
não considera o mundo das representações e do pensamento
comum, não os aceita sob seu aspecto imediato: submete-os
a um exame em que as formas reificadas do mundo objetivo e
ideal se diluem, perdem a sua fixidez, naturalidade e pretensa
originalidade, para se mostrar como fenômenos derivados e
mediatos, como sedimentos e produtos da práxis social da hu-
manidade. (Kosik, 1975, p. 20).

Assim, se tomado o nível da aparência ou manifestação ime-


diata do fenômeno – no caso, a relação psicologia histórico-cultural e
pedagogia freireana –, arriscar-se-ia afirmar uma quase direta relação

26
entre ambas, visto que pertencem ao campo das teorias críticas,7 cujo
fundamento ancora-se no materialismo histórico-dialético. Entretan-
to, comungando com o pensamento de Paulo Freire, o óbvio precisa

7. A expressão “Teoria Crítica” deve ser compreendida, nos limites desse estudo,
tendo como base inicial o referencial marxista. Além disso, o emprego do ter-
mo também está relacionado às reflexões advindas da Escola de Frankfurt que,
através dos seus vários filiados, vai, ao longo do tempo, construindo um refe-
rencial importante para a expressão Teoria Crítica, cujas características centrais
podem ser, talvez, colocadas a partir de duas ideias ou princípios: a) a Teoria
Crítica coloca-se em oposição crítica ao que se concebe como Teoria Tradicio-
nal. Esse último conceito ganha contornos diferenciados em tempos e contex-
tos igualmente distintos. A Teoria Tradicional pode reportar ao conhecimento
produzido pela modernidade capitalista, à economia política e à estrutura de
mercado que se instala a partir do advento da lógica capitalista de sociedade. A
Teoria Crítica fará a análise da ciência moderna, apontando os caminhos que
não deverão ser seguidos por esta. b) A Teoria Crítica tem sentido de denúncia
e de anúncio (Freire), ou seja, trata-se de um dizer e de um fazer; de descrever o
mundo social e, sem se reduzir a isso, desenvolver perspectivas de transformação
dentro das condições concretas de existência. Ainda, como destacado por Nobre
(2004 apud Jahen, 2005, p. 29), “[...] a orientação para a emancipação e o com-
portamento crítico são os princípios fundamentais da teoria crítica. A orientação
para a emancipação constitui-se na base e é o que confere sentido ao trabalho
teórico.” Significa que “a teoria não pode se limitar a descrever o mundo social,
mas deve examiná-lo sob a perspectiva da distância que separa o que existe das
possibilidades nele embutidas e não realizadas, [...] à luz da carência do que
é frente ao melhor que pode ser.” Nesse sentido, ambas as teorias em estudo
apresentam um olhar comum que as caracteriza e as filia no terreno das Teo-
rias Críticas: tanto a pedagogia freireana quanto a psicologia histórico-cultural,
embora por caminhos diferentes, têm uma orientação clara para a emancipação
do homem concebido como um sujeito situado em termos sociais, históricos e
culturais. Além disso, ao mesmo tempo que se posicionam radicalmente frente
à produção da ciência, radicalidade essa demonstrada na capacidade de olhar
para si mesma e a partir de um lugar definido estabelecer considerações sobre
outros saberes apontando seus limites e possibilidades, apontam caminhos de
superação daquilo que criticam. Nisso reside uma das principais características
que unificam Freire e Vigotski. Ambos, antes de apresentarem suas teses e suas
proposições, resgatam as contribuições e os limites daquilo que criticam, o que é,
por si, uma lição sobre como fazer ciência sob o enfoque dialético-materialista.

27
ser explicitado para que seja, de fato, notado, transformado-se em
algo “para si”. E, com o argumento marxista de Vigotski (1996a) e
de Kosik (1975, p. 17), é preciso fazer um detour, mesmo porque, se
aparência e essência coincidissem, dizem os autores citando Marx e
Engels, a investigação se tornaria inócua: “Se a aparência fenomênica
e a essência das coisas coincidissem diretamente, a ciência e a filosofia
seriam inúteis.”8 (Kosik, 1975, p. 17). E acrescenta:

Não é possível compreender imediatamente a estrutura da coisa


ou a coisa em si mediante a contemplação ou a mera reflexão,
mas sim mediante uma determinada atividade. Não é possível
penetrar na “coisa em si” responder à pergunta – que coisa é a
“coisa em si”? – sem análise da atividade mediante a qual ela
é compreendida; ao mesmo tempo, esta análise deve incluir
também o problema da criação da atividade que estabelece o
acesso à “coisa em si”. Estas atividades são os vários aspectos ou
modos de apropriação do mundo pelos homens. (Kosik, 1975,
p. 28, grifos do autor).

Neste caso, o caminho de busca de possíveis respostas, o detour,


inicia no momento em que se colocam indagações tanto acerca do
processo de construção do conhecimento pelos sujeitos quanto acerca
dos processos de constituição do próprio sujeito que emite a palavra
no âmbito da prática pedagógica de base freireana. E, olhando esse
processo a partir do enfoque histórico-cultural da psicologia, inicia
um movimento de interrogações a respeito da possibilidade de diálogo
efetivo entre ambas as teorias, marcado sobretudo pela necessidade

8. “[...] se os homens apreendessem imediatamente as conexões, para que serviria


a ciência?” (Marx; Engels, 1993).

28
de verificar cruzamentos possíveis entre os campos conceituais fun-
damentais.
No âmbito da educação escolar orientada para a libertação
humana, coloca-se fortemente o desafio de compreender o sujeito
humano como síntese de relações sociais e, no interior dessa leitura,
o desafio de transformar a fala desses sujeitos situados historicamente
em conteúdo mediador de novas interpretações da realidade. Aqui se
colocam questões do tipo: como interpretar a representação humana
sobre a realidade? Que elementos se colocam como fundamentais ou
imprescindíveis para essa tarefa? Como fala e conteúdo transformam-
-se em instrumento mediador da leitura do mundo?
Afinal, quando Freire propõe e defende que a organização da
práxis pedagógica libertadora só se efetiva observando a manifestação
do mundo pela palavra pronunciada por sujeitos humanos situados
em termos históricos, não estaria pressupondo uma abordagem
histórico-cultural do desenvolvimento humano, tal como defendida
por Vigotski e seus colaboradores?9
Freire também sublinha a ação educativa como ação de tomada
de consciência e conscientizadora. No âmbito da consciência, destaca
a importância de que os homens particulares e concretos reconhe-
çam a si próprios por meio do processo pedagógico de modo a irem
exercitando a ação consciente da mudança ou a conscientização. E
argumenta que a práxis libertadora eleva a consciência ingênua ao

9. Para os propósitos deste estudo, o nome de Vigotski está sempre associado ao


de seus colaboradores, especialmente Alexander Luria e Alexei Leontiev. Dessa
forma, as expressões “psicologia histórico-cultural”, “Vigotski e colaboradores”
ou somente “Vigotski” referenciam a troika da psicologia soviética, evidente-
mente resguardadas as diferenças entre esses pensadores, tema que não é trata-
do nos limites desta pesquisa.

29
nível da consciência máxima possível.10 Por seu turno, Vigotski insiste
no papel de autorregulação que a escola pode ajudar a desenvolver
nos sujeitos. Autorregulação vista como tomada de consciência de
seu próprio funcionamento psicológico. Essas observações sinalizam
para um diálogo entre as teses freireanas acerca da consciência e da
conscientização e as formas culturais de pensamento, cuja compreensão
exige situar o homem em termos sócio-históricos? Não abriria espaço
de diálogo com uma psicologia que concebe a consciência como um
reflexo psíquico cuja gênese só pode se encontrar na vida, na atividade
do sujeito inserido numa dada realidade sócio-histórica e cuja reali-
zação traduz um movimento de deslocamento do sujeito em relação
aos processos sociais e culturais vivenciados? E, ainda, porque afirma
que a elevação da consciência como resultado do trabalho pedagógico
escolar só se efetiva pela mediação de conteúdos fortemente articu-
lados com a realidade vivida e significada pelo sujeito, possibilitaria
uma aproximação forte com a ideia de elaboração conceitual tal como
proposta por Vigotski?
O olhar sobre tais questões, somado à crença de que o desenvol-
vimento humano constitui-se como fenômeno mediado socialmente
e que para tal, concordando com a escola de Vigotski, a organização
dos processos pedagógicos na escola tem particular importância,
aproxima e fomenta uma inquietação para a investigação em torno de
um diálogo possível entre a pedagogia de Paulo Freire e a abordagem
histórico-cultural de Vigotski e colaboradores.

10. Consciência ingênua e consciência máxima possível são categorias utilizadas


e desenvolvidas por Paulo Freire e que serão devidamente aprofundadas nos
capítulos deste estudo.

30
Assim, colocam-se como fontes inspiradoras iniciais estas re-
flexões: a Escola de Vigotski tem como base teórico-epistemológica
o materialismo histórico-dialético. Freire e toda sua reflexão e ação
denotam a moldura materialista histórica e dialética de sua obra. Quais
os encontros possíveis aqui? A partir desses questionamentos e de um
intenso trabalho de aprofundamento e investigação, estruturou-se o
presente livro no formato de quatro capítulos.
O primeiro capítulo procura situar o encontro entre a pedago-
gia freireana e a psicologia histórico-cultural, no contexto histórico
da relação entre pedagogia e psicologia. A intenção é explicitar, nos
meandros de um quadro contextual básico, em que consiste o diálogo
proposto, demonstrando a diferença que este encontro pode significar
para a educação escolar.
Situado o tema no contexto histórico, o presente estudo foca a
atenção na verificação de quais diálogos se sustentam entre psicologia
histórico-cultural e pedagogia freireana. A reflexão desencadeada a
partir daqui compõe o segundo capítulo e procura, fundamentalmente,
refletir as bases teóricas para o diálogo proposto, alicerçado em três
categorias centrais de análise consideradas articuladoras do diálogo
proposto: o trabalho, a linguagem e a consciência.
A questão há pouco referida gera a necessidade de olhar cuida-
dosamente para os conceitos centrais da abordagem histórico-cultural
e para o modo como cada um deles dialoga (ou não) com aspectos
teóricos trabalhados pela pedagogia freireana. Com esse compromisso,
o terceiro capítulo propõe o diálogo através dos conceitos centrais
de cada uma das teorias em questão. Assim, mediação simbólica e
mediação pedagógica, elaboração conceitual e conhecimento, além
de temas em torno da linguagem e educação, constituem o conteúdo
desta parte do livro.

31
Todos esses elementos centrais se encontram, efetivamente,
no chão da escola. É a sala de aula, o pátio escolar, lugar de ensinar
e de aprender, espaço grávido de possibilidades de desenvolvimento
humano, o território mediador do diálogo aqui proposto. O quarto
capítulo procura, então, o encontro entre Freire e Vigotski na educação
escolar propriamente dita.
Por fim, nas considerações finais, procuro refletir acerca da
relevância do tema no contexto educacional atual, marcado pelas
importantes mudanças do mundo globalizado, e apontar algumas
possibilidades efetivas de, em que pesem as controvérsias da contem-
poraneidade, alimentar a esperança ativa (Freire) na direção da luta
e conquista permanente de espaços nos quais o ato de educar seja
um ato de transformação dialética, simultaneamente, da sociedade
e dos sujeitos.

32
CAPÍTULO I

Psicologia e pedagogia, Vigotski e Freire:


reflexões iniciais

Quando me refiro à especificidade da relação entre a psicologia


histórico-cultural e a pedagogia freireana, pretendo sublinhar que, entre
outras fortes razões, esse diálogo pressupõe um processo interativo
entre duas áreas do conhecimento que comungam de uma posição
teórico-epistemológica e política de defesa do homem como ser em
transformação, produto e processo do movimento dialético das relações
socioculturais nas quais se encontra imerso.
Trata-se, pois, de identificar o lugar-comum a partir do qual
ambas se colocam como concepções críticas do conhecimento e do
desenvolvimento histórico-social. A expressão “concepção crítica” im-
plica, nos limites deste estudo, compreender que se concebem o homem
e os processos sociais por ele construídos e dele constitutivos como
fenômenos complexos, mas, sobretudo, situados e circunstanciados
historicamente. O que impõe como princípio a crença na realidade
material, movendo-se dialeticamente a partir de uma característica
fundamental: a contradição.

33
Assim, quando se diz “o homem é um ser social”, como preconi-
zam tanto a psicologia histórico-cultural quanto a pedagogia freireana,
diz-se igualmente que, do lugar-comum de ambas as teorias, o homem
é um ser ativo, social e histórico. Por sua vez, a sociedade e a trama de
relações que a caracterizam é produção histórica, feita da humanidade
articulada pelo trabalho, pela produção dos meios de vida material,
pela produção das ideias como representações da realidade criada por
essa mesma humanidade.
Notadamente, esse lugar-comum de onde tomam posição no
cenário teórico e social a pedagogia freireana e a psicologia histórico-
-cultural, se de um lado demarca o parâmetro da reflexão aqui empre-
endida, de outro não se constitui único e tampouco hegemônico. Antes
é o lugar da crítica e da construção efetiva da crença de que a essência
humana não é inata e imutável, e também não é fruto das pressões de
um meio imediato e destituído de história. A essência humana é “o
conjunto das relações sociais” (Marx; Engels, 1993, p. 13). Assumir
esse princípio implica o reconhecimento de que “toda a vida social
é essencialmente prática. Todos os mistérios que levam a teoria para
o misticismo encontram sua solução racional na práxis humana e na
compreensão dessa práxis.” (Marx; Engels, 1993, p. 14).
No âmbito do funcionamento psicológico do ser humano, isso
implica

[...] sair dos limites do organismo, buscar as origens desta


vida consciente e do comportamento “categorial”, não nas
profundidades do cérebro ou da alma, mas sim nas condições
externas da vida e, em primeiro lugar, na vida social, nas for-
mas histórico-sociais da existência do homem. (Vigotski apud
Luria, 1986, p. 20, 21).

34
Sob este olhar, a prática pedagógica focaliza a necessidade de
compreender o processo de aprendizado como um movimento de
atividade do sujeito a partir da reflexão mediada sobre a prática social
desse mesmo sujeito. Logo, os encaminhamentos ou as estratégias
pedagógicas daí decorrentes deverão privilegiar atividades de interação,
diálogo e apropriação ativa do conteúdo capazes de contribuir para a
ressignificação da realidade na qual estão imersos os sujeitos e através
da qual se constituem como gênero humano.
Reconhecidamente isso não tem sido assim ao longo da história
da relação psicologia-pedagogia. Daí que (re)conhecer as possibilidades
de diálogo entre a psicologia histórico-cultural e a pedagogia freireana
traz consigo, entre outras demandas importantes, a necessidade de
compreender essa relação no interior de outra: a que se dá historica-
mente entre psicologia e pedagogia em termos gerais, como duas áreas
do saber humano que coexistem e se fundem de modos diferenciados ao
mesmo tempo que traduzem as marcas dos contextos sociais, políticos,
econômicos e culturais através dos quais se constituíram.

Psicologia histórico-cultural e pedagogia freireana:


reconhecendo o objeto no contexto histórico da
relação psicologia-pedagogia

É importante observar que, ao tratar da relação pedagogia-


-psicologia, se está tratando de concepções de mundo, de concepções
de desenvolvimento humano, de modos de conceber os processos de
aprendizagem e desenvolvimento humano, entendidos aqui como
tarefa educacional fundamentalmente escolar. Tem-se a escola como
instituição social por excelência, designada para esse fim. Assim, se

35
tomada a relação pedagogia-psicologia desde o processo histórico
em que tal relação se constitui, verificam-se com relativa facilidade as
marcas recíprocas que ambas carregam e que as caracterizam como
áreas funcionais do conhecimento em torno do ser humano.
Autores como Ghirardelli (1987), Bock (1995) e Cambi (1999)
lembram que, desde a Grécia Antiga, passando pela Idade Média,
contexto cuja marca principal traduz-se pelo domínio do Cristianismo,
as reflexões acerca da razão humana, do modo humano de aprender e
desenvolver, têm sido fortemente impregnadas pelas matrizes idealistas
e empiristas da filosofia que, por sua vez, influenciaram sobremaneira
a organização de processos pedagógicos.1
No contexto da Idade Média, mais especificamente, a hegemonia
das concepções filosóficas de base idealista favoreceu e fomentou a
crença numa humanidade inata e imutável, num universo hierárquico
e naturalmente organizado, harmônico, estável, sob o comando de
uma divindade onipresente, onipotente e masculina. Ou, no dizer de
Bock (2002, p. 18),

Um mundo paralisado, no qual cada um já nascia no lugar que


deveria ficar. Um universo que tinha a terra como centro. Um
mundo de fé e dogmas religiosos que ofereciam aos homens
idéias prontas e valores a serem adotados. Um mundo que des-
conheceu individualidades, impedindo que os sujeitos se cons-
tituíssem como tais. Um mundo que não precisou da psicologia.

1. Não cabe aqui um aprofundamento dessa reflexão acerca da história da pedagogia e


da psicologia. Sobre isso, há vários estudos importantes a serem consultados e que
fazem de modo competente o resgate dessas ciências nos diferentes contextos da
sociedade humana. Entre os inumeráveis, cito, fundamentalmente, na pedagogia,
Cambi (1999) e, na psicologia, Bock (1995, 2002), já indicados no texto.

36
A demanda por uma psicologia e por uma pedagogia como
ciência é um feito da modernidade. Aqui, ao contrário do contexto
anterior, a psicologia se torna necessária à medida que o modelo ca-
pitalista de produção requer um novo indivíduo, um “novo homem”,
como ser produtivo e consumidor, crente nas suas possibilidades
individuais como única força propulsora do seu sucesso social.2 Esse
contexto coloca tanto a psicologia quanto a pedagogia num patamar
diferenciado em termos de desenvolvimento como ciência. Notada-
mente observados aí os marcos estruturais dos idos de emergência
da burguesia como classe hegemônica e do pensamento liberal como
aporte teórico-ideológico fundamental da era capitalista, cuja orga-
nização deixará marcas indeléveis na ciência psicológica e na ciência
pedagógica. Como sublinha Bock (2002, p. 15):

A psicologia tem muitos anos de existência, pois, o marco que


temos considerado para a sua instituição enquanto área especí-
fica na ciência é o ano de 1875. As condições para a construção
da Psicologia encontram-se, pois, no século XIX. Nesse período
a burguesia moderna ascende enquanto classe social. Todas as

2. É ilustrativa a esse respeito a lenda do Barão de Münchhausen, recuparada por


Michael Löwy na obra As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen
(1987). A análise da história de um ponto de vista psicológico é realizada por Ana
Bock no livro Aventuras do Barão de Münchhausen na psicologia (1999). Conta o
Barão: “Uma certa vez quis saltar um brejo mas, quando me encontrava a meio
caminho, percebi que era maior do que imaginava antes. Puxei as rédeas no
meio do meu salto e retornei à margem que acabara de deixar, para tomar mais
impulso. Outra vez me saí mal e afundei no brejo até o pescoço. Eu certamente
teria perecido se, pela força do meu próprio braço, não tivesse puxado pelo meu pró-
prio cabelo preso em rabicho, a mim e a meu cavalo que segurava fortemente entre os
joelhos”. (Raspe, [s.d.], p. 40 apud Bock, 1999, p. 12, grifo da autora). A ideia de
uma autonomia quase absoluta sintetiza a visão liberal de homem presente na
ciência positivista e na ideologia do capitalismo moderno.

37
transformações daí decorrentes são consideradas condições
históricas para o surgimento da ciência moderna e posterior-
mente da Psicologia. A ênfase na razão humana, na liberdade
do homem, na possibilidade de transformação do mundo real
e a ênfase no próprio homem foram características do período
de ascensão da burguesia que permitiram uma ciência racional,
que buscou desvendar as leis da natureza e construir um conhe-
cimento pela experiência e pela razão. Um método científico
rigoroso permitia ao cientista observar o real e construir um
conhecimento racional, sem interferência de suas crenças e va-
lores. Assim, surge a ciência moderna: experimental, empírica,
quantitativa.

Sob esse olhar, um marco importante e que pode ser definido pon-
to de partida para uma análise da relação psicologia-pedagogia está nas
chamadas revoluções burguesas (França e Inglaterra). Seguramente, aqui
emergem com vigor significativo novos modos de produzir, distribuir e
pensar a organização social, os valores e os comportamentos adequados
ao sucesso da sociedade emergente. Como alerta Hobsbawm (1982),
para compreender o processo e o significado histórico da implemen-
tação da lógica liberal de sociedade e de mercado, é sugestivo iniciar
pela tese da revolução sem precedentes promovida pelo advento do
modo capitalista; revolução esta comparável aos grandes momentos
de conquistas da humanidade como a invenção da agricultura e da
metalurgia, da escrita, da cidade e do Estado. Em suma, como lembra
Patto (1996, p. 11), o capitalismo mudou a face do mundo:

[...] até o final do século XIX praticamente varreu a monarquia


como regime político, destituiu a nobreza e o clero do poder
econômico e político, inviabilizou a relação servo-senhor feudal
enquanto relação de produção dominante, empurrou grandes
contingentes de populações rurais para os centros industriais,
gerou os grandes centros urbanos com seus contrastes, veio co-

38
roar o processo de constituição dos estados nacionais modernos
e engendrou uma nova classe dominante – a burguesia – e uma
nova classe dominada – o proletariado.

Assim, num cenário de mudanças rápidas para seu tempo, a


lógica hegemônica que se instala amparada no pensamento liberal
e na ciência positivista cuidadosamente cria as condições materiais
e culturais para sua própria manutenção e reprodução. De modo
particular, no campo da produção do conhecimento, algumas carac-
terísticas importantes merecem destaque e observância, dado que sua
materialização constitui, ainda na contemporaneidade, argumentos
presentes nas práticas pedagógicas e psicológicas. Como destaca Bock
(2002, p. 15-16, grifos nossos), a ciência moderna nascente e que se
constitui hegemônica é:

[...] positivista, porque se constitui como sistema baseado no


observável; racionalista, pela ênfase na razão como possibilidade
de desvendar as leis naturais; mecanicista, porque se pautou na
idéia do funcionamento regular do mundo, guiado por leis que
poderiam ser conhecidas; associacionista, porque se baseou na
concepção de que as idéias se organizam na mente de forma a
permitir associações que resultam em conhecimento; atomista,
pela certeza de que o todo é sempre o resultado da organização
de partes; e determinista, porque pensou o mundo como um
conjunto de fenômenos que são sempre causados e que essa
relação de causa-efeito pode ser descoberta pela razão humana.

É essa concepção de ciência que, majoritariamente, estará na base


das abordagens psicológicas e pedagógicas ao longo desse processo
histórico. Por conta dessa feição da ciência, fortalece-se sobremaneira
a crença no homem como indivíduo livre, sujeito de livre-arbítrio,

39
naturalmente capaz de decidir qual o seu lugar na engrenagem social.
Logo, as condições materiais nas quais vivem os sujeitos passam a ser
secundarizadas, tendo em vista que cada um determina o seu destino
a partir de desejos próprios, individuais.

O homem que surge com o advento do capitalismo é o indivíduo


livre, sujeito de sua vida. O desenvolvimento das forças produ-
tivas capitalistas põe em relevo o indivíduo, como possuidor de
livre-arbítrio, capaz de decidir que lugar ocupar na sociedade.
Isso é possível já que a nova sociedade se abre como um mer-
cado no qual todos podem vender e comprar em função de
seus próprios talentos. A necessidade de produzir mercadorias
impõe aos homens uma participação na sociedade na forma
de indivíduos, produtores e/ou consumidores de mercadorias.
(Gonçalves, 2002, p. 39).

Nasce e se desenvolve, na era do capitalismo, a noção de “eu”,


de individualização, de um mundo interno inerente a cada sujeito.
Mundo para o qual se reivindicam respeito, liberdade e privacida-
de. Mundo que demarca as possibilidades de cada sujeito na nova
ordem social. Daí que cada um deve ser o que é, o que sua essência
determina que seja. Constitui-se desse modo o terreno ideológico
propício para justificar a sociedade a partir da individualização: uma
boa sociedade faz-se de bons indivíduos, cada qual com seus talen-
tos, suas competências, e cada qual em seu lugar, de modo que tudo
funcione adequadamente.
É neste cenário, inicialmente, que a psicologia científica pau-
tada na teoria da evolução natural e na reificação da ciência cumpre,
segundo Patto (1996, p. 36, grifo da autora), sua primeira tarefa social:

40
[...] descobrir os mais e os menos aptos a trilhar ‘a carreira aberta
ao talento’ supostamente presente na nova organização social
e assim colaborar, de modo importantíssimo, com a crença na
chegada de uma vida social fundada na justiça. Entre as ciências
que na era do capital participaram do ilusionismo que escondeu
as desigualdades sociais, historicamente determinadas, sob o véu
das supostas desigualdades pessoais, biologicamente determinadas,
a psicologia certamente ocupou lugar de destaque.

Não sem coincidência, estar mais ou menos apto para deter-


minados talentos e ou espaços sociais assemelha-se a estar adaptado
a valores, normas, modos de comportamento, hábitos e habilidades
típicos da classe dominante, ascendente ao poder.
Então, se antes o papel da psicologia consistia em “descobrir” os
mais e os menos aptos, ou os com mais “talento” para trilhar o caminho
natural do mercado liberal que se instalava, agora, no contexto da glo-
balização neoliberal, o papel consiste em trabalhar o desenvolvimento
de competências e habilidades individuais sem as quais o sujeito se
torna “inempregável”.3

Não por coincidência, o desprestígio do coletivo, a ideologia do


descartável, do “fim da história”, as “novas” propostas educativas
substituem o conceito de formação humana básica pela noção de
competências individuais para o mercado. (Frigotto, 2001, p. 11).

3. Expressão cunhada nos idos da década de 1990 e início da de 2000, referindo-


-se à ausência de formação necessária ao novo perfil de trabalhador requerido
pela lógica liberal de mercado, que caminhava velozmente para a flexibilização
dos processos de produção e das relações de trabalho. Há uma vasta produção
acadêmica sobre esse movimento. De modo particular, recomendo as leituras de
Ciavatta (2001), Frigotto (2001), Ferretti (1994), Segnini (1992), Leite (1994),
para citar algumas.

41
As novas habilidades cognitivas requeridas estão diretamente
ligadas aos novos processos de organização da produção e das relações
de trabalho, que, por sua vez, dada a conjuntura e a hegemonia liberal,
determinam em larga escala as políticas educacionais, cujos fundamen-
tos estão igualmente alicerçados nas pedagogias e psicologias liberais,
para ficar no tema proposto.
Desse modo, seja no momento do advento do capitalismo, seja
no momento de seu reordenamento global ora vivenciado, o produto
final esperado da produção escolar é um homem completamente
adequado ao funcionamento da sociedade capitalista. Esse tem sido
o marco da relação psicologia-pedagogia no contexto da hegemonia
liberal capitalista desde seu surgimento.
No âmbito dos processos de aprendizagem escolar, esse prisma
conceptual tem determinado fortemente a organização seriada, a clas-
sificação via avaliação, enfim, uma gama de rituais escolares de certo
modo fossilizados no comportamento pedagógico. Somada a isso está
a ideia ainda forte no campo da pedagogia de que as competências
humanas para o aprendizado são talentos individuais que, via escola,
podem ser (ou não) afirmados. O resultado tem sido o fortalecimento
do argumento pedagógico de que alguns são naturalmente aptos e se
adaptam com muito mais facilidade que outros, considerados menos
aptos. Naturaliza-se, assim, a subjetividade humana concebida como
fenômeno a-histórico que, porque inerente a cada indivíduo, determina
e acerta para cada um o seu lugar na engrenagem social.
A escola e, nela, as práticas pedagógicas passam a constituir-se
em terreno fértil para a propagação de crenças psicológicas que, ou
por razões inatas ou por razões adquiridas, justificam as capacidades
individuais para aprender ao mesmo tempo que, privilegiando o indi-
vidualismo, criam as condições necessárias para justificar a sociedade

42
organizada sob a lógica liberal, ou seja, desobrigam a sociedade pelas
possibilidades e/ou pelos limites de cada um para a escolarização.
Sob o enfoque inatista, alicerçado na filosofia idealista ou aprio-
rista, a educação pouco ou nada pode fazer para alterar as determina-
ções inatas de cada indivíduo.

Os processos de ensino só podem se realizar na medida em que


a criança estiver “pronta”, madura para efetivar determinada
aprendizagem. A prática escolar não desafia, não amplia nem
instrumentaliza o desenvolvimento de cada indivíduo, pois se
restringe àquilo que já conquistou. Este paradigma promove uma
expectativa significativamente limitada do papel da educação
para o desenvolvimento individual, na medida em que consi-
dera o desempenho do aluno fruto de suas capacidades inatas.
O processo educativo fica assim na dependência de seus traços
comportamentais ou cognitivos. Desse modo, acaba gerando
um certo imobilismo e resignação provocados pela convicção
de que as diferenças não serão superáveis pela educação. (Rego,
1995, p. 86-87).

Por outro lado, as abordagens ambientalistas ou comportamen-


talistas, pautadas pela filosofia empirista, conduzem as práticas esco-
lares à modelagem comportamental de modo a adequar o indivíduo,
em termos morais e intelectuais, aos parâmetros sociais considerados
ótimos. O professor é detentor do saber a ser transmitido e o aluno é
o receptáculo que, via memorização, recebe um conjunto de saberes
desconectados da vida e desarticulados entre si. É muito presente
aqui a ideia de que tudo já foi inventado, descoberto pela ciência e
que cabe ao aluno (sujeito passivo) apenas receber a informação e
adequar-se a ela.

43
Valoriza-se o trabalho individual, a atenção, a concentração,
o esforço e a disciplina como garantias para a apreensão do
conhecimento. As trocas de informações, os questionamentos,
as dúvidas e a comunicação entre os alunos, enfim, a interação
entre pares, são interpretadas como falta de respeito, dispersão,
bagunça, indisciplina e “conversas paralelas”. Dá-se, portanto,
privilégio à relação adulto-criança. (Rego, 1995, p. 90).

Sob o discurso da educação messiânica, segundo o qual cada


um pode galgar os degraus do sucesso, conseguir emprego, entrar no
mercado de trabalho, a educação escolar, a exemplo dos processos
produtivos, organiza-se por seriação, currículo próprio e pré-elaborado,
conteúdos estáticos e reproduzidos como verdades absolutas da ciência
positivista.
Em termos comportamentais, para lembrar a estreita relação com
a psicologia positivista, a pedagogia organiza espaços de modelagem
do movimento corporal através de rituais próprios, como carteiras
enfileiradas, corpos infantis e adolescentes, destinados ao acento duro
e estreito por horas a fio, filas decrescentes (maiores à frente menores
atrás), entre outros.
No aspecto mais específico da formação intelectual ou do de-
senvolvimento cognitivo, a pedagogia tratou de fortalecer práticas de
repetição mecânica, pouco ou nenhum debate, crença na verdade do
livro didático, perguntas e respostas do tipo “siga o modelo”. Isso acabou
favorecendo o desenvolvimento e o funcionamento psicológico estático,
pouco flexível e apático.4 O que se vê refletida na prática pedagógica

4. Há uma gama significativa de estudos que confirmam esse argumento. De modo


particular, cito aqui Patto (1996), Moyses e Collares (1996), Arroyo (1997), entre
outros.

44
escolar, comungando com Bock (2002, p. 25), em sua reflexão crítica
sobre a história da psicologia, é a incapacidade desta ciência de,

[...] ao falar do fenômeno psicológico, falar de vida, das con-


dições econômicas, sociais e culturais nas quais se inserem os
homens. A Psicologia tem, ao contrário, contribuído signifi-
cativamente para ocultar essas condições. Fala-se da mãe e do
pai sem falar da família como instituição social marcada histo-
ricamente pela apropriação dos sujeitos; fala-se da sexualidade
sem falar da tradição judaico-cristã de repressão à sexualidade;
fala-se da identidade das mulheres sem falar das características
machistas de nossa cultura; fala-se do corpo sem inseri-lo na
cultura; fala-se de habilidade e aptidões de um sujeito sem se
falar das suas reais possibilidades de acesso à cultura; fala-se do
homem sem falar de trabalho; fala-se do psicológico sem falar
do cultural e do social. Na verdade, não se fala de nada. Faz-se
ideologia.

A contemporaneidade, por sua vez, experimenta novos movi-


mentos. Uma crise paradigmática que, ao mesmo tempo que questiona
os fundamentos do humano, gera um espaço de novas possibilidades
para as relações homem-mundo. Um novo momento histórico dentro
do tempo da modernidade, denominado pós-modernidade,5 traz hoje

5. Não pretendo fazer aqui uma análise pormenorizada da relação modernidade-


-pós-modernidade. Busco apenas situar a reflexão que preciso fazer em torno da
relação pedagogia-psicologia no conjunto das relações históricas que a constitui
e a engendra. Leituras focadas nesse tema podem ser buscadas em autores já
citados em nota anterior. Limito-me a citá-los como fontes inspiradoras para
análise do meu objeto nesta seção de estudo, e a utilizá-los como fundamento
de minha posição em relação à temática da pós-modernidade no que tange aos
aspectos da concepção de sujeito e, decorrente disso, de concepções de ensino e
aprendizagem, o que recorta o conteúdo para a relação pedagogia-psicologia.

45
um conjunto de questionamentos relativos à ordem moderna. No
âmbito do conhecimento e do desenvolvimento humano, isso não
seria diferente. Mesmo porque o sujeito preconizado pelo apogeu
da modernidade parece agora não mais responder às suas demandas
estimadas na base da necessidade de um sujeito ativo, cooperativo,
crítico, flexível e capaz de decisões.
Em torno da expressão pós-modernidade, há um forte debate que,
a meu ver, caracteriza também uma viragem no campo das ciências e
das relações homem-universo. Além disso, o cenário “pós-moderno”
constitui terreno fértil, onde se processam revisões teóricas importantes
por um lado e, por outro, visualiza-se uma espécie de metamorfose
do sistema de produção capitalista que, em face de suas próprias cria-
ções materiais e simbólicas, reorganiza-se tendo em vista a própria
sobrevivência.
Contudo, é válido observar que se cria, no entorno da pós-
-modernidade, um campo de disputa ideológica através do qual se
originam terrenos um tanto pantanosos para a reflexão e a constru-
ção de novas proposições no âmbito da práxis. Tal como Gonçalves
(2002) e Frigotto (2001), concebo a expressão pós-modernidade como
indicativo de uma atualização histórica que ainda não implica o rom-
pimento com os limites da modernidade, uma vez que a análise tem se
reduzido, no mais das vezes, à negação pura e simples, sem indicação
de possibilidades de superação efetiva, o que acaba caracterizando
essa negação como não dialética e como lugar a partir do qual muitos
discursos outrora conservadores e extremistas acabam encontrando
espaço de contestação meramente via narrativas linguísticas que, em
última instância, ocultam posições conservadoras. A crítica discursiva
da modernidade não caracteriza ruptura e por isso não é pós-moderna.
Como bem ilustra Gonçalves (2002, p. 54-55):

46
[...] a modernidade é contraditória como expressão da contra-
dição histórica que a engendrou, e aí ser “pós” à modernidade
implicaria um posicionamento em relação aos antagonismos que
ela encerra. Não é o que faz a “pós-modernidade” que tem um
discurso crítico homogeneizador de negação (não dialética) de
todas as metanarrativas. Mesmo quando se conservam algumas
referências gerais da modernidade, como é o caso de pensadores
que se apóiam na matriz marxista, as ressalvas e revisões pro-
postas apresentam riscos de desconsiderar aspectos essenciais
da análise histórica [...].

Trata-se, pois, de ver a pós-modernidade a partir de sua cons-


tituição histórica, como movimento marcado por um contexto de
mudanças gerais, de ordem política, econômica, social e cultural.
Nesse sentido, a pós-modernidade não pode ser outra coisa que
não “[...] um sinal cultural de um novo estágio na história do modo
de produção vigente.” (Anderson, 1999, p. 66). Ou no sentido do ar-
gumento de Frigotto (2001, p. 27), ao posicionar-se dizendo:

É, pois, sob as novas formas de sociabilidade do capital e as


determinações históricas que as produzem, que encontramos o
chão onde o pensamento pós-moderno ganha compreensão. Nos
termos daquilo que Marx nos lega em sua análise materialista
histórica, não é a consciência que cria a materialidade social das
noções do pós-modernismo; pelo contrário, é a partir da mate-
rialidade do capitalismo atualmente vigente que o pensamento
pós-moderno se forja, tornando-se este modo de pensamento,
ele próprio, um elemento material desta realidade.

Majoritariamente, as posturas pós-modernas têm se caracte-


rizado pela defesa da diversidade, da alteridade e da diferença, do
multiculturalismo. Nada tão espantoso não fosse o fato de que esse

47
movimento está também imbuído de argumentos que, em última
instância, “[...] reforçam o individualismo, o particularismo, a fragmen-
tação, a descontinuidade e o evento, negando as dimensões estruturais
e a continuidade histórica.” (Frigotto, 2001, p. 26).
Frigotto cita Marcos Coelho (1999) como texto que traduz a
caricatura desse momento da história:

O ser humano não existe: existem ingleses, chineses, ameri-


canos. O americano não existe: existem mulheres americanas,
negros americanos, gays americanos. A mulher americana não
existe: existem mulheres americanas de classe média, mulheres
americanas negras e operárias... Isto não é tudo. As classes
sociais também não existem. São grupos que se redefinem a
cada momento, a cada circunstância: motoristas de táxi se dis-
solvem em corinthianos ou palmeirenses, que se dissolvem em
adolescentes ou velhos que se constroem enquanto moradores
do Bixiga ou da Lapa. A Lapa não existe: é uma construção
imaginária, uma identidade geográfica criada segundo juízos de
valores, experiências subjetivas, jogos de linguagem sedimen-
tados historicamente. Só que a história não existe tampouco:
existem ficções, narrativas que podemos organizar conforme
uma estrutura de começo, meio e fim, mas que sempre irão
trair a arbitrariedade básica com a qual cada sujeito compõe
os dados da realidade. Lembre-se, também, que o sujeito não
existe. É um campo onde se entrecruzam percepções, desejos,
linguagens. De resto, a realidade não existe tampouco. (Coelho,
1999 apud Frigotto, 2001, p. 26).

A totalidade desaparece, a unidade desaparece, a identidade


social/coletiva desaparece. Ao denunciar alguns dos profundos equí-
vocos da modernidade, o movimento pós-moderno, sem romper com
a lógica de sociedade instalada, coloca-se ao lado do ideário segun-
do o qual a luta por modos outros de organização social e vida são

48
processos individualizados, o que, no campo ideológico, fundamenta
argumentos e posições favoráveis àquilo que é, em última instância,
vital para a reprodução das formas atuais de vida social: o individua-
lismo, o consumismo, a competitividade, nos diversos níveis possíveis
de manifestação e organização da vida.
Trata-se – concordando com autores como Facci e Duarte
(2004) e observando a trajetória histórica que fez da relação psicologia-
-pedagogia terreno fértil de disputas ideológicas no processo dialético
que faz da escola o lugar efetivo dessa disputa – de observar aí uma
retomada dessas forças revigoradas pelo movimento de reorganização
do modelo capitalista de ser e de viver, batizado, pelas classes sociais
hegemônicas, de globalização.
Nesse cenário contemporâneo, psicologia e pedagogia, como
outros campos da ciência e da práxis humana, compõem terrenos
férteis de disputa em diferentes campos ideológicos. A fragmentação
do sujeito é, ao mesmo tempo, a individualização do próprio sujei-
to e a dos modos de inserção desse indivíduo nas práticas sociais
também elas individualizadas, particularizadas a ponto de tornar
fluídos a realidade e o humano por ela constituídos. Sob esse olhar
fragmentário, a prática educativa acaba assumindo características
fundamentalmente individualistas; é a prática pedagógica centrada
no indivíduo com uma realidade completamente particular e incom-
parável a qualquer outra.
Note-se que a morte do sujeito, reivindicada pelo pensamento
pós-moderno, não implica a morte do indivíduo. Como argumenta
Duarte (2004), com base na análise dos escritos de Rosenau (1992),
os pós-modernos céticos substituíram o conceito de sujeito moderno
pelo peculiar conceito de indivíduo satisfeito com a alienação. Nas
palavras de Duarte (2004, p. 228),

49
A autora [referindo-se a Rosenau] é bastante clara ao enfatizar
que o indivíduo pós-moderno não pode de forma alguma ser
visto como uma pessoa nos moldes do sujeito da modernidade,
isto é, o indivíduo pós-moderno não é uma pessoa consciente, livre
e autônoma. Sua existência é anônima. Trata-se de uma pessoa
descontraída, flexível, que ouve seus sentimentos e emoções e
procura aceitar a si mesma tal como é. Tem seu próprio estilo
de vida mas não procura ser exemplo para ninguém, pois não
pretende possuir nenhuma verdade. Cultiva o senso de humor, a
fantasia, a cultura do desejo e a gratificação imediata (Rosenau,
1992, p. 53). Vive o presente e prefere aquilo que é passageiro,
momentâneo, tendo horror ao que é estável, permanente. Va-
loriza a espontaneidade e vê com maus olhos a disciplina e o
planejamento. Gosta do que é diferente, exótico, místico, prove-
niente de tradições do passado e daquilo que é local, singular e
não do que é comum, generalizado, universal. Preocupa-se com
a sua própria vida pessoal e suas necessidades pessoais e não
está interessada em laços com instituições tradicionais como a
família, Igreja, partido, nação, etc.

Segundo Rosenau (1992, p. 54), o indivíduo pós-moderno não


possui uma forte identidade pessoal, é fragmentado, sem pontos fixos
de referência e tolerante consigo mesmo. Está mais interessado na
livre expressão, na dispersão e na diversidade do que na coerência, na
concentração e na organização.
O ceticismo pós-moderno descarta os sujeito da modernidade
sob o argumento de que este é produto da visão iluminista triunfante
na Revolução Francesa e, portanto, filho de uma visão “eurocêntrica,
colonialista, centrada na cultura, na ciência e na tecnologia ocidentais”
(Duarte, 2004, p. 226). A crítica à concepção moderna de sujeito acaba
constituindo-se na crítica à concepção moderna de ser humano como
genericidade constituída no processo histórico e, portanto, contraponto
às demais formas de organização da vida. Trata-se de negar o gênero

50
humano e, em última instância, argumentar em favor de uma certa
naturalização das relações sociais agora particularizadas num indiví-
duo que é também fragmento de diversidades inerentes aos processos
multiculturais, igualmente fragmentários e fragmentados.
A fluidez da pós-modernidade e a crítica cética à existência do
sujeito moderno como sujeito racional, capaz de conhecer e dominar
a realidade, está ancorada na não aceitação da ideia de subjetividade,
uma vez que esta implica a existência do seu contraponto, ou seja, a
objetividade. Ainda com base na análise de Rosenau (1996), Duarte
(2004, p. 227) explica que

Os pós-modernos poderiam aceitar a idéia de subjetividade se


isso não implicasse a existência daquilo que não é a subjetivi-
dade: o mundo objetivo. A distinção entre realidade objetiva e
a representação subjetiva é inaceitável para o pós-modernisno.
Atacar a idéia de um sujeito racional, capaz de conhecer e
dominar a realidade, significa para o pós-modernismo atacar a
ciência moderna e a epistemologia que fundamenta tal ciência.
Isso teria como conseqüência, acreditam os pós-modernos, o
fim da legitimação de formas de poder e de hierarquias sociais
pautadas na posse de conhecimentos pretensamente verdadei-
ros. Não há detentores da verdade se não há distinção entre
verdadeiro e falso, afirma o pós-modernismo.

Esse conjunto de argumentos pós-modernos acaba, no âmbito


da prática educativa escolar e, portanto, da pedagogia, referenciando
um retorno das ideias escolanovistas e tecnicistas. Estas marcadas pela
ênfase nas tecnologias de informação também no campo da educação.
Não raro observa-se a queixa de inúmeros profissionais da educação
acerca de sua impossibilidade em competir com as tecnologias da in-
formação a que os alunos têm acesso com relativa facilidade, ao passo

51
que o mesmo não ocorre com quem está encarregado da docência. O
argumento docente de que não sabem como lidar com educandos que
têm “maior número de informações do que eles” é revelador de uma
prática educativa que não consegue lidar com um fenômeno típico
de seu tempo e, ainda, não consegue perceber que, na escola, a tarefa
não é repassar informações, mas organizar, transmitir, mediar proces-
sos de conhecimento. Sob este prisma, as tecnologias da informação
são aliadas mais que fatores de competição. Além de constituírem
um lastro de informações a serem transformadas em conhecimento,
podem ampliar espaços de trocas e diálogos entre pares e auxiliar a
docência na atuação sobre o que Vigotski chamou de Zona de De-
senvolvimento Proximal.
Assiste-se a uma reificação dos meios tecnológicos que, em
contraposição ao conhecimento historicamente acumulado, esvazia
a prática pedagógica de seu conteúdo fundamental e a coloca numa
condição de subalterna, sem que se perceba, nas entrelinhas desse
processo, que a própria tecnologia é produção humana, é produto e
produtora do gênero humano e, dialeticamente, pode ser concebida
como instrumento de mediação de apropriações de artefatos materiais
e simbólicos centrais para que cada sujeito tome parte ativa da história
da humanidade.6
No caso do movimento escolanovista, a ênfase recai sobre a
expressão do “aprender a aprender”, tão característica dessa concepção
liberal de educação e que, arrisco-me aqui afirmar, trata-se de um barão
de Münchhausen7 na educação, dado que, desse lugar, o processo peda-

6. O escolanovismo, que se recoloca no debate educacional, pode ser melhor com-


preendido a partir das análise de Saviani (1986), Libâneo (1995), entre outros.
7. Ver nota 2 neste capítulo.

52
gógico estará centrado no indivíduo. Resumidamente, é a criança quem
dá a direção do processo pedagógico. Todo o ensino, nada mais é do
que a satisfação dos interesses da criança. Esse princípio escolanovista
permeia vários documentos oficiais nacionais e internacionais, como são
os PCNs no Brasil e o Relatório da Comissão Internacional da Unesco.8
O lema “aprender a aprender” evoca, em última instância, um
indivíduo capaz de aprender sozinho (puxa-se pelos cabelos e salva-se
a si e ao seu cavalo). Um indivíduo multifacetado porque constituído na
particularidade das realidades em que se encontra imerso e onde desen-
volveu habilidades singulares que devem ser, na escola, tomadas como
princípio fundamental. Contudo, é um indivíduo sem história, fluido,
imediato, descontextualizado em termos de genericidade humana.
Outro elemento importante, a meu ver, decorrente do lema
“aprender a aprender”, é a secundarização dos processos de media-
ção social e pedagógica como elementos da ação educativa. Se o
indivíduo aprende sozinho, dispensa-se a intencionalidade típica da
prática pedagógica. Decorre daí uma concepção de que ao professor
ou professora não cabe a teorização e o planejamento do processo
educativo. Da mesma forma, aqui, as bases históricas da sociedade e
do conhecimento não importam. É como se a escola, por ela própria,
desse conta da resolução dos problemas sociais. Desloca-se a preocu-
pação do eixo político, histórico e social para o âmbito reducionista
da técnica, ou seja, o problema passa a ser visto como decorrente de
processos técnico-pedagógicos. Não sem coincidência, pois se observa
um forte argumento em favor da educação como o grande e único
fator de mudança social.

8. Análises pertinentes a esse respeito podem ser encontradas em Arce (2004),


Duarte (2000, 2004) e Facci (2004).

53
Situar a pedagogia freireana e a psicologia histórico-cultural
nesse breve esboço contextual, não apenas como contrapontos teóricos
e epistemológicos, mas também como contrapontos sociopolíticos
para colocar a ciência a serviço da efetiva transformação das relações
sociais é afirmar que ambas as teorias se deslocam do eixo teórico-
-epistemológico e ideológico que articula os diferentes tempos his-
tóricos de maneira relativamente hegemônica.
Quando se pensa e se concebe o homem – o humano – como
síntese de relações sociais, compreende-se a constituição desse sujeito
como uma complexidade que reúne da herança filogenética aos pro-
cessos de atividade própria do gênero humano. Uma trama que, simul-
taneamente, revela e constitui formas específicas de funcionamento
psicológico e explicita, sugere, aponta princípios fundamentais para a
prática pedagógica alicerçada na crença de que o avanço do homem
está, também, na ampliação das suas possibilidades de reflexão sobre
o próprio fazer. E mais, compreende que nesse pensar sobre a práxis
desenvolvem-se e tomam forma modos cada vez mais complexos de
atividade consciente.
Ainda mais, tanto para a pedagogia freireana quanto para a
psicologia histórico-cultural, diferentemente das concepções de cunho
positivista no âmbito da pedagogia e da psicologia – cuja crença
define um sujeito fragmentado e a-histórico –, o sujeito humano é
uma totalidade complexa e articulada, constituída no conjunto das
relações sociais.
Aproximar essas duas teorias, compreender a especificidade de
cada uma e as possibilidades de encontro de ambas implica a leitura,
ainda que breve, das obras de Paulo Freire e Liev S. Vigotski e seus
colaboradores, particularmente Alexander Luria e Alexei Leontiev,
situando-as como aporte teórico-epistemológico, mas também como
postura ética e política. Esta tarefa procuro cumprir no que segue.

54
Entre Freire e Vigotski: o (des)encontro e o diálogo

Carregamos conosco a memória de muitas tramas,


o corpo molhado de nossa história, de nossa
cultura; a memória, às vezes difusa, às vezes
nítida, clara, de ruas da infância, da adolescência.
[...] Experimentamos, é certo, na travessia
que fazemos, um alvoroço na alma, síntese de
sentimentos contraditórios.
Paulo Freire

Tempos históricos distantes, experiências históricas distintas que, no


entanto, guardam entre si semelhanças, identidades ou identificações,
constituídas, a meu ver, por um desejo, uma utopia comum: fazer da
práxis humana uma práxis crítica e transformadora, práxis a partir da
qual se constituem o humano e o mundo, o mundo e o humano, num
processo dialético e ininterrupto, tendo como horizonte a construção
de relações sociais justas e democráticas. Assim se pode definir, em
rápidas palavras, o lugar de encontro – ainda que se trate de um desen-
contro em termos temporais e geográficos – entre duas personalidades
cuja perenidade já é indiscutível.
Não pretendo aqui retomar a biografia desses pensadores.
Tampouco construir (ou reconstruir) uma linha de tempo completa
acerca de suas trajetórias.9 Desejo, antes, registrar, através de uma breve

9. Não cabe nos limites deste estudo um resgate biográfico de Paulo Freire. O que
pode ser facilmente consultado em Gadotti (1989), ou nas palavras registradas
pelo próprio Paulo Freire nas suas inúmeras obras. No entanto, o que parece
válido e necessário registrar são alguns fragmentos que, mais do que contar a
história desse professor brasileiro, ajudem a perceber a grandiosidade de sua
contribuição para o conhecimento humano. Por isso, optei por trabalhar de

55
retomada dos perfis desses pensadores, as imagens que se fazem para
mim a partir de seus escritos, do modo como olham e elaboram suas
experiências como homens, fazedores de ciência, teóricos, sujeitos hu-
manos ativos cuja temporalidade não se reduz à existência mesma de
cada um, mas se estende pela história da humanidade, e que, sobretudo,
se fazem marcas indeléveis nos processos formativos daqueles que, de
um ou de outro modo, continuam dando prosseguimento às suas obras.
Pontuar o diálogo entre Freire e Vigotski implica, nos parâmetros
deste estudo, observar e explicitar, o máximo possível, aspectos desses
dois perfis que, diferentes, encontram-se para conversar e desnudar
as possibilidades de comunhão inerentes àquilo que disseram e que
fizeram na e pela humanidade, a partir de lugares distintos também
em termos de área do conhecimento: um da pedagogia, outro da psi-
cologia. Nesse sentido, é preciso lembrar que

modo mais explícito alguns conceitos importantes para a pedagogia freireana,


como o significado de ser uma pedagogia crítica, o sentido de crítico para Freire,
sua concepção de consciência e a necessidade de tornar esses conceitos fundamento
de uma prática pedagógica libertadora. Sobre Vigotski e a trajetória da troika
da psicologia marxista, bons exemplos de retomadas são o prefácio de Psicologia
Pedagógica (2003) e “Vygotski: o homem e sua casa”, publicado no livro de Luis
C. Moll Vygotski e a educação: implicações pedagógicas da psicologia sócio-histórica,
ambos escritos por Guilhermo Blanck. Além disso, boas leituras podem ser en-
contradas em Freitas (1998), Palangana (1994), Rego (1995) e Oliveira (1996).
Cito ainda o texto de Michael Cole e Sylvia Scribner na introdução da obra
Formação Social da Mente, de Vigotski, publicado pela Martins Fontes (1996).
A exemplo do modo como falo de Freire, também sobre Vigotski e a psicologia
histórico-cultural, não me atenho a uma retomada biográfica. Antes, procuro, na
retomada do contexto histórico, visualizar alguns elementos teóricos importantes
para o diálogo com a pedagogia freireana, de modo particular os conceitos de
consciência, desenvolvimento humano e educação.

56
[...] o diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encon-
tro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos
endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não
pode reduzir-se a um ato de depositar idéias de um sujeito no outro,
nem tampouco tornar-se simples troca de idéias a serem consumidas
pelos permutantes. [...] Não é também discussão guerreira, po-
lêmica, entre sujeitos que não aspiram a comprometer-se com
a pronúncia do mundo. [...] Porque é encontro de homens que
pronunciam o mundo, não deve ser doação do pronunciar de uns
a outros. É um ato de criação. (Freire, 1987, p. 79, grifos nossos).

É sob esse conceito que se orienta o presente texto, o que impli-


ca o exercício de explicitação das diferenças e das semelhanças entre
os dois pensadores e seus legados teóricos, éticos e políticos para a
educação.
Na feitura da pedagogia freireana, encontro um Paulo humano,
amoroso, simples, tolerante. Mas também crítico, corajoso, esperançoso,
rigoroso em sua construção teórica e em sua posição política. Intran-
sigente na defesa de uma educação libertadora e de uma sociedade
justa, fraterna, solidária.
Um Paulo feito de uma infância e adolescência simples, vividas
na aridez do nordeste brasileiro.10 Contudo, plenas em amorosidade
como ele mesmo lembra ao escrever a Cristina:

10. Paulo Freire nasceu no Recife, capital do estado de Pernambuco, em 19 de


setembro de 1921, e morreu em 2 de maio de 1997, em São Paulo. Gostava de
revisitar sua infância. Fez isso de modo particular em vários textos. Destaco aqui
dois deles: A importância do ato de ler e Cartas a Cristina.

57
[...] não fui um menino desesperadamente só nem desamado.
Jamais me senti ameaçado, sequer, pela dúvida em torno da
afeição de meus pais entre si e de seu amor por nós, por meus
irmãos, por minha irmã e por mim. E terá sido essa segurança
o que nos ajudou a enfrentar, razoavelmente, o real problema
que nos afligiu durante grande parte de minha infância e ado-
lescência – o da fome. Fome real, concreta, sem data marcada
para partir, mesmo que não tão rigorosa e agressiva como outras
fomes que conhecia. (Freire, 2003, p. 39).

Cresceu brincando entre mangueiras, junqueiras, pitombeiras,


cajueiros. Plantas frondosas do quintal de sua casa. Foi ali também
que se alfabetizou, escrevendo no chão com gravetos das árvores.
Lembra afetuoso a continuidade dada pela professora da escola de
sua comunidade ao seu processo de aprender a ler já iniciado em casa
junto com seus pais.
Há ainda um Paulo advogado que só se encontrou mesmo como
professor. E na experiência de ser professor revela-se um Paulo feito de
tantos outros, atuando inicialmente no SESI11 do Recife, conhecendo

11. De modo particular, Paulo Freire vive essa tensão nos anos de atuação como educador
no Serviço Social da Indústria. Tensão que Paulo, mais que viver, elaborou como
aprendizado e como fonte – matéria-prima – para a organização de sua proposta
de uma pedagogia da libertação. Graças a essa tensão dialética – categoria que esse
pensador utilizou ao longo de sua vida –, Freire percebe, compreende e elabora
criticamente a contradição estrutural da sociedade e, mais especificamente, no
caso brasileiro. Percebe a contradição estrutural do populismo como projeto
político que propõe a emergência do povo, mas o faz com vistas a constituir
uma base social de sustentação político-eleitoral. Uma leitura a esse respeito
encontra-se em Pedagogia dialógica, de José Eustáquio Romão, editado pela
Cortez e pelo Instituto Paulo Freire. Ainda, muito da elaboração de Freire sobre
sua experiência de abandonar a advocacia para tornar-se educador pode ser vista
em Pedagogia da Esperança, editado pela Paz e Terra.

58
ou, como ele gosta de referir, “re-vendo” a realidade na qual estava
ele próprio inserido, só que agora com olhos de docente. Depois, nos
movimentos sociais, nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), no
exílio, aprendendo e ensinando com camponeses, operários, militantes
de esquerda, marxistas ortodoxos, cristãos ortodoxos. Do Brasil afetado
pelo golpe militar de 1964 para o Chile de Salvador Allende, e daí
para o mundo – Suíça, Guiné Bissau, Nova Iorque e outros muitos
lugares –, sempre revendo-se a si mesmo como homem de práxis que
foi e reafirmando seus votos e sua crença na potencialidade humana,
para construir caminhos emancipatórios.
Um Paulo que se abre completa e irrestritamente para ensi-
nar que ser educador é muito mais do que dominar um conteúdo e
expô-lo para outras pessoas que “não o dominam”. Ser educador é
compreender-se sujeito histórico e contraditório, inacabado,12 com
possibilidades e limites, como alguém que sabe, mas não sabe tudo,
alguém que ensina e, ao fazê-lo, aprende porque o faz no diálogo com
o outro que também sabe e que também ensina ao dizer o seu saber.
Um diálogo em que se cruzam saberes mediados, de um lado, pelo
conjunto de relações que se objetivam em cada sujeito, de outro, pela
rigorosidade metódica inerente à práxis pedagógica comprometida
com o processo educativo como espaço de emancipação humana.
A pedagogia freireana, como indica a própria nomenclatura,
tem na educação seu principal objeto referido ao compromisso com a
emancipação de sujeitos humanos, cuja existência se encontra marcada
por contextos de desrespeito à vida e à vivência ativa da cidadania. O

12. Uma importante síntese dos saberes implicados no fazer docente é feita por
Paulo Freire em Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa,
editado pela Paz e Terra.

59
sujeito da pedagogia de Freire, por sua vez, não é um sujeito passivo,
moldado pelas pressões do meio, mas um sujeito que significa, com as
armas que tem, a experiência vivida; é dessa significação que se extraem
os conteúdos libertadores para a práxis pedagógica.
Originária de um contexto social e político marcado pela repres-
são de governos militares, a pedagogia freireana nasce comprometida
com a libertação dos povos oprimidos do mundo e não apenas do Brasil
ou da América Latina. Nasce também batizada como ferramenta de
luta de diferentes espaços educativos – não se reduzindo ao espaço
escolar. E encontrará, de modo especial na América Latina, no movi-
mento da igreja conhecido como teologia da libertação, e em governos
democráticos e populares espalhados pelo mundo,13 um terreno fértil
de diálogo e construção efetiva de espaços de emancipação.
Mas não é só isso, o que já não é pouco em termos de organi-
zação e prática pedagógica. A educação, tal como definida por Paulo
Freire, encontrará sua identidade à medida que assumir um caráter
próprio de crítica e autocrítica permanente. Por isso, não pode ser uma
educação que se reduza, que se feche em si mesma, gerando assim o
inverso daquilo que preconiza. É preciso perguntar sempre para quê?
Por quê? A favor de quê/quem? Contra quê/quem? – um tal conteúdo
se justifica para o processo pedagógico, ensina-nos Freire.
Definir-se, pois, como uma pedagogia crítica implica, no sentido
freireano, análise séria e o mais profunda possível – o que subentende
uma rede de conhecimentos que se cruzam e dialogam –, das condições
de vida das populações, de modo particular das populações pobres.

13. É o caso, por exemplo, da Guiné-Bissau e do Chile, onde, exilado, Freire participa
ativamente do movimento de construção de formas mais justas e igualitárias de
organização social.

60
Implica incorporação dos saberes, das significações do povo, manifestas
pela sua palavra e construídas no espaço social que ocupa na trama de
relações maiores, de modo crítico, não reificado.
Implica, ainda, observância de reais possibilidades de mudança
a partir dos espaços reais em que se travam as relações, tanto por parte
de quem faz a prática pedagógica quanto dos que, através dela, por
causa dela e com ela, fazem-se num processo mútuo, em que quem sabe
ensina e quem não sabe aprende. Mas, como todos tomam ciência do
seu inacabamento,14 sabem que o que sabem não é nunca o bastante e
por isso, ao ensinar o que sabem, aprendem. Ao passo que quem está
na condição de aprendiz percebe-se, porque movido pela necessária
reflexão sobre a vida, como alguém que ensina.
Freire construiu uma teoria pedagógica crítica que supera a
própria pedagogia. Como sublinha Romão (2002, p. 26),

Paulo será lembrado, sem dúvida, como um dos maiores edu-


cadores do século XX, mas certamente também será incluído
nas antologias dos que deram uma contribuição ao avanço da
ciência nessa mesma centúria, porque, mais do que um conteúdo
novo, mais do que metas ou objetivos inéditos, ele propôs uma
profunda transformação paradigmática na maneira de pensar o
mundo, dando continuidade à tradição crítico-transformadora-
-libertária do pensamento ocidental.

A contemporaneidade de Paulo Freire pode ser sentida ainda


mais de perto quando observados os movimentos educacionais que se

14. Expressão usada por Freire em Pedagogia da Autonomia, referindo-se ao homem


como ser histórico e, portanto, em processo e, assim, inacabado.

61
espraiam, não apenas no Brasil,15 de modo especial nos processos vol-
tados para a educação de jovens e adultos, como também no exterior,16
onde um significativo número de intelectuais têm assumido a tarefa
de difundir o legado da pedagogia freireana, além de propor novos
desafios ancorados nessa herança teórica e metodológica.
Se, de um lado, tenho um Paulo Freire que é a um só tempo pessoa,
educador e político, de outro, na arquitetura da psicologia histórico-
-cultural, encontro um Vigotski empenhado na construção de uma
psicologia do homem concreto. Um psicólogo comprometido com a
vivência plena das condições político-sociais e culturais de uma sociedade
pós-revolucionária, focada na tensão gerada pela necessidade de conso-
lidar a revolução socialista de 1917. Mas também ele profundamente
atento ao debate e ao processo de produção da ciência de seu tempo.
Vigotski nasceu em uma pequena cidade da região nordeste da
República Bielorussa chamada Orsha, em 5 de novembro de 1896, e
faleceu em 1934, aos 37 anos de idade. Viveu sua infância, adolescên-
cia e juventude em Gomel, cidade localizada a sudeste daquele país,
caracterizada por um intenso movimento cultural e por ser o lugar de
confinamento dos judeus na Rússia czarista.
Filho de judeus, Lev Vigotski (o segundo de oito irmãos) herda a
rigorosidade que se impõe a essa opção religiosa no contexto de então.

15. As políticas públicas definidas a partir do Ministério da Educação têm apontado


Paulo Freire como fundamento e concepção para educação – alfabetização e
letramento – de jovens e adultos. O Programa Brasil Alfabetizado é exemplo
disso, como pode ser verificado no site do MEC.
16. Se por um lado é preciso observar as diferenças inerentes aos modos de fazer
educação, por outro é importante reconhecer em intelectuais como Peter Mclaren
e Hanry Giroux, entre outros, difusores árduos do pensamento freireano no
exterior.

62
Por conta disso, foi alfabetizado em casa. Aprendeu alemão com a mãe
e recebeu educação primária pelas mãos de “um tutor particular que
tinha sido exilado na Sibéria devido ao seu ativismo revolucionário”
(Blanck, 1996, p. 32).
Desde tenra idade, Vigotski experimentou nas relações familiares
um clima de muita leitura, cultivo intelectual e artístico, conversa e
acolhimento. Seu preceptor se utilizava de técnica de ensino embasada
em complexos diálogos socráticos (cf. Blanck, 1996). Blanck observa
que talvez esteja aí o prenúncio do que mais tarde se tornaria elemento-
-chave na teoria psicológica construída por Vigotski: os estudos sobre
mediação semiótica, pensamento e palavra.
O autor ainda enfatiza que a infância e a juventude marcadas
pela participação ativa no movimento cultural típico de seu contexto,
possivelmente, levaram Vigotski a inclinar-se para as áreas de arte e
literatura. Aos dezenove anos conclui o ensaio sobre Hamlet iniciado
na adolescência. Esse ensaio compõe o livro Psicologia da Arte.
O cuidado de sua família com a educação dos filhos o conduziu
desde cedo para escolas de boa qualidade acadêmica que, somadas
à vivacidade tão própria dele, provavelmente fruto de processos mi-
crogenéticos de sua experiência pessoal, fomentaram a emergência do
grande intelectual e coconstrutor de ideias que foi e cujo legado é, ainda
hoje, fonte de inspiração para estudos em psicologia e em educação.
Como ele mesmo escreve: todo inventor, até mesmo um gênio, sempre
é consequência de seu tempo e ambiente (Vigotski, 1987).
Como Freire, Vigotski cursou direito – depois de desistir da
medicina. Ao mesmo tempo, aprofundou estudos em filosofia, psi-
cologia, arte e literatura. Estudou várias línguas e, dentro dos limites
experimentados pelos judeus de seu país, destacou-se como homem,

63
como intelectual e como cidadão.17 Após sua formatura em duas
universidades, retornou a Gomel e desenvolveu sua experiência como
professor ensinando literatura e russo, psicologia e lógica.
A trajetória desse pensador – que desde muito jovem se reve-
la interessado e estudioso entusiasta – é traduzida por aqueles que
conviveram e seguiram dando continuidade à sua obra como sendo a
trajetória de um gênio. O destaque sempre fica por conta das amplas
habilidades, da rapidez de pensamento, da aguçada memória, da pro-
fundidade e do respeito com que tratava os temas que lhe interessavam.
Contudo, vale observar, como lembra Valsiner (1996), que nenhum
cientista pode criar o novo do nada. Novas ideias articulam-se aos
contextos que as cercam e é preciso vê-las como produto de processos
sociais coletivos, da história social em que se dá o percurso de vida do
cientista, das relações interpessoais específicas aos processos contex-
tuais mais amplos.
Vigotski viveu plenamente a Rússia pós-revolucionária de 1917,
época de grandes transformações no seu lugar. Juntamente com Luria
e Leontiev, compôs um grupo de estudiosos cuja tarefa central era
desenvolver uma psicologia marxista, fundamentada nos princípios
do materialismo histórico-dialético.
A psicologia histórico-cultural busca, desde sua origem, além
da produção de uma nova concepção acerca do funcionamento psi-
cológico humano, a superação da clássica dicotomia inerente às visões

17. Na Rússia czarista, apenas 3% das vagas nas universidades eram oferecidas aos
judeus.

64
mecanicistas da psicologia.18 A exemplo do pensamento, da análise
e crítica sociológica marxista, Vigotski reivindicava que a psicologia
deveria ter “o seu próprio o capital ”.

A presença de Marx é chave para a possibilidade de estruturar


uma teoria científica da mente humana. Não pode haver qual-
quer teoria científica da mente sem uma teoria científica dos
seres humanos, e não pode haver qualquer concepção do ser
humano sem Marx. Este era o elemento crítico percebido por
Vygotsky (Blanck, 1983a). Enfrentando o impasse aparente da
psicologia de sua época, Vygotsky estava convencido de que,
para arquitetar uma psicologia autenticamente científica, suas
bases deveriam ser fundamentadas a partir de uma perspectiva
marxista – “Eu quero descobrir como a ciência deve ser constru-
ída para abordar o estudo da mente tendo aprendido o método
de Marx em sua totalidade.” (Cole e Scribner, 1978, p. 8). A
filosofia marxista poderia contribuir com o tipo mais elevado
de organização metodológica. Vygotsky adotou não apenas a
instância metodológica de Marx, mas também as teses essenciais
do materialismo histórico. (Blanck, 1996, p. 39).

Ainda é preciso enfatizar que, no contexto de existência de


Vigotski, a ciência era extremamente valorizada como instrumento a
serviço dos ideais revolucionários. E ele, como estudioso e alinhado a
esses ideais, empenha-se visceralmente na construção de uma psico-
logia que viesse ao encontro dos problemas sociais e econômicos do
povo soviético (Palangana, 1994).

18. Há uma gama de excelentes autores que explicitam essa crise da psicologia.
Dentre eles, sugere-se a leitura de Palangana (1996); Blanck (1996); Gonçalves
(2002); Bock (1995, 2002); e Bock, Gonçalves e Furtado (2002).

65
Mas a posição política e a coerência, a seriedade e o compro-
misso com que assumia a concepção materialista dialética o impe-
diram de fazer ciência com cunho meramente ideológico, como era
o desejo de algumas personalidades mais enfáticas da revolução, de
modo especial durante o governo de Stalin.19 E essa atitude de fir-
meza e coerência teórico-epistemológica levou Vigotski ao exílio em
seu próprio país. Foi interrogado (idos de 1932) pelos ideólogos do
partido comunista que também se empenharam na investigação do
conteúdo ideológico supostamente presente no trabalho de Vigotski.
O crime: não se referir, em seus escritos, “[...] a conceitos considerados
importantes pela visão de mundo comunista, tais como: classe social,
trabalho, meios de produção, mais valia e também por apresentar como
central o conceito de cultura que era considerado abstrato.”20 (Freitas,
1998, p. 18). A acusação: sua teoria foi considerada não marxista. A
sentença: sua obra foi proibida em toda a então União Soviética. Anos
mais tarde (1956), no governo Krushev, seus escritos foram reunidos
e novamente publicados (Freitas, 1998).

19. Para uma leitura mais aprofundada sobre a trajetória de Vigotski, ver obras
referenciadas nas notas anteriores.
20. Note-se que essa acusação, efetivametne, não procede. Pois, ao contrário do
que preconiza o conteúdo de tal fato, os conceitos centrais do materialismo
histórico-dialético constituem, sem dúvida, uma base coesa e coerente dos
estudos desse autor acerca do psiquismo humano. Basta uma leitura atenciosa
de suas obras para se encontrar ali, por inúmeras passagens, a forte referência ao
trabalho como fator de desenvolvimento humano no campo psicológico. Mesmo
com relação às classes sociais, Vigotski faz sempre questão de lembrar que a
constituição do sujeito se dá na trama social que ele experimenta a partir do
lugar social que ocupa nessa mesma trama. Vide “A formação social da mente”,
“A construção do pensamento e da linguagem”, “Obras escogidas IV: psicologia
infantil”, entre outras. Neste livro mesmo, procuro resgatar esse fundamento do
trabalho e das relações sociais, de modo especial no capítulo 2.

66
Contudo, Vigotski persevera na tarefa que impõe a si mesmo.
Com base nas teses do materialismo histórico-dialético, constrói sua
teoria e conclui que as formas superiores de pensamento presentes no
homem são produto da experiência histórico-cultural. Nesse sentido,
argumenta que a gênese do comportamento consciente deve ser bus-
cada nas relações sociais que o sujeito mantém com o mundo exterior,
na atividade prática. O que significa conceber o funcionamento psi-
cológico do ser humano não como herança de forças transcendentais
divinas, como acreditavam os idealistas, tampouco como mero resul-
tado das pressões do meio, como pregavam os empiristas ou adeptos
do materialismo mecanicista, mas sim como resultado de uma síntese
dialética entre a filogênese, a ontogênese e a sociogênese. Como escre-
vem Vigotski e Luria (1996, p. 151) em A história do comportamento:
o macaco, o primitivo e a criança:

Se desejarmos estudar a psicologia do homem cultural adulto,


devemos ter em mente que ela se desenvolveu como resultado
de uma evolução complexa que combinou pelo menos três tra-
jetórias: a evolução biológica desde os animais até o ser humano,
a da evolução histórico-cultural, que resultou na transformação
gradual do homem primitivo no homem cultural moderno, e a
do desenvolvimento individual de uma personalidade específica
(ontogênese), com o que um pequeno recém-nascido atravessa
inúmeros estágios, tornando-se um escolar e a seguir um homem
adulto cultural.

Uma síntese das asserções básicas do pensamento vigotskiano


nos informa que antes e sobretudo, a atividade mental – consciência – é
atividade exclusivamente humana. É resultado da aprendizagem social,
da internalização de signos sociais, da cultura e das relações sociais.
Esse foi, aliás, o problema central sobre o qual Vigotski se debruçou nos
poucos anos de sua existência. Sua pergunta fundamental referia-se à

67
compreensão de como os indivíduos pertencentes a uma determinada
cultura alcançam o controle do sistema de signos correspondentes e
como eles chegam a ser internalizados.
Blanck (1996, p. 43, grifos nossos) sintetiza as conclusões de
Vigotski ao dizer que, nos parâmetros da psicologia histórico-cultural,

A cultura é interiorizada sob a forma de sistemas neurofísicos


que formam parte da atividade fisiológica do cérebro huma-
no. A atividade nervosa interior, usando termos pavlonianos,
permite a formação e o desenvolvimento de processos mentais
superiores nos humanos, em contraste com outros animais
filogeneticamente avançados. A atividade neuronal superior dos
seres humanos não é, como já foi uma vez considerada, simples-
mente uma “atividade nervosa superior”, mas sim uma atividade
nervosa superior que interiorizou significados sociais derivados da
atividade cultural dos seres humanos mediados por signos. Esse pro-
cesso ocorre durante o curso do desenvolvimento ontogenético,
tal como ocorre nas atividades das crianças com os adultos, os
transportadores da experiência social. A atividade social e as
ações práticas também facilitam a interiorização de esquemas
sensório-motores, importantes no domínio dos significados
sociais. Finalmente o processo de interiorização das funções
mentais superiores é histórico por natureza. As estruturas de per-
cepção, a atenção voluntária e a memória, as emoções, o pensamento,
a linguagem, a resolução de problemas e o comportamento assumem
diferentes formas, de acordo com o contexto histórico da cultura, suas
relações e suas instituições.

Assim, a teoria histórico-cultural de psicologia concebe e explica


o processo de desenvolvimento psicológico do ser humano como resul-
tado de uma complexa interação entre os planos genéticos de desen-
volvimento: a filogênese, a ontogênese, a sociogênese e a microgênese.

68
Nascido com as características de sua espécie, cada indivíduo
humano percorre o caminho da ontogênese informado e ali-
mentado pelos artefatos concretos e simbólicos, pelas formas
de significação, pelas visões de mundo fornecidas pelo grupo
cultural em que se encontra inserido. A imensa multiplicidade
de conquistas psicológicas que ocorrem ao longo da vida de cada
indivíduo gera uma complexa configuração de processos de de-
senvolvimento que será absolutamente singular para cada sujeito.
[...] Os processos microgenéticos constituem, assim, o quarto
plano genético, que interage com os outros três, caracterizando
a emergência do psiquismo individual no entrecruzamento do
biológico, do histórico, do cultural. (Oliveira, 1999, p. 10).

Isto denota a constituição da subjetividade como processo que


reúne a complexidade sugerida pela teoria histórico-cultural. Assim,
o indivíduo é sempre síntese de uma multiplicidade de relações e da
articulação dialética entre os planos genéticos colocados.
Desse modo, a teoria histórico-cultural da psicologia supera a
dicotomia inerente às clássicas concepções de viés idealista e empi-
rista. Ao analisar o desenvolvimento humano como resultado dessa
trama complexa, essa teoria assume uma posição marcadamente não
determinista, já que o curso do desenvolvimento referido à espécie e
ao processo de maturação só se efetiva na inserção do indivíduo na
cultura e nas relações sociais. Ou seja, não há dotação prévia para um
tal comportamento ou tipo de funcionamento psicológico. Daí que,

[...] sejam os seres humanos diferentes ou não na origem, o que


importa para a compreensão de seu psiquismo é o processo de
geração de singularidade ao longo de sua história. Ao postular
a cultura como constitutiva do psiquismo, por outro lado, essa
abordagem não a toma como uma força que se impõe a um
sujeito passivo, moldando-o de acordo com padrões preestabele-
cidos. Ao contrário, a ação individual, com base na singularidade

69
dos processos de desenvolvimento de cada sujeito, consiste em
constante recriação da cultura e negociação interpessoal. Se
assim não fosse, teríamos culturas sem história e geração de
sujeitos idênticos em cada grupo cultural. (Oliveira, 1999, p. 10).

De um ponto de vista educacional, isso faz toda a diferença, à


medida que não há como conceber um processo pedagógico fixado
na ideia da homogeneidade dos processos de aprendizagem escolar. A
pedagogia, tal como concebida por Vigotski e colaboradores, caracteriza-
-se mais como espaço privilegiado de trocas e interações que favorecem
sobremaneira o desenvolvimento de formas complexas de pensamento.
Nesse sentido, Vigotski e a escola histórico-cultural de psico-
logia atribuem um significado ímpar ao papel da escola como espaço
interativo cujas mediações, que se efetivam no processo pedagógico, se
caracterizam por uma clara intencionalidade na direção de fomentar,
por via da aprendizagem, o desenvolvimento psicológico. Esse desen-
volvimento que se cumpre mais e melhor em termos qualitativos à
medida que, em termos metodológicos, as práticas escolares estiverem
afinadas com o princípio dialético de tomar a prática social como
referência primeira para o processo de construção do conhecimento.
Ainda é preciso acrescentar ao perfil desse que foi o principal
expoente da psicologia histórico-cultural a maestria com que conjuga
seu método dialético. Marxista sim, mas não ortodoxo, não fechado
em si mesmo. Antes um defensor incansável do respeito e do diálogo
com os seus contemporâneos. Essa postura se explicita no modo co-
mo Vigotski trata o pensamento alheio em seus escritos. Apresenta o
pensamento do outro, nega-o, para em seguida apresentar sua síntese,
seu próprio pensamento como forma de superação. Reside nisso, a meu
ver, uma lição de ética e de profunda clareza do conceito, do sentido e
da capacidade de agir dialeticamente sem abrir mão dos princípios do

70
materialismo histórico, além da seriedade com que encara a produção
do conhecimento, o fazer ciência.
Vigotski e Freire são diferentes, uma vez que vivem contextos
sociais e políticos diferentes e olham o desenvolvimento humano a
partir de lugares teóricos distintos.
O primeiro (1896-1934), desde a Rússia pós-revolução socialista
e sob a hegemonia do pensamento marxista – ao menos no âmbito das
políticas a serem implantadas pelo processo revolucionário –, torna-se
o principal expoente da abordagem histórico-cultural de psicologia
arraigada nos fundamentos do materialismo histórico-dialético. Além
do comprometimento político com a então República Socialista Sovi-
ética, Vigotski tomou para si a responsabilidade de adentrar na crise
que caracterizava a psicologia da época. Na década de 1920, período
em que Freire nascia, Vigotski (e a escola marxista de psicologia)
já tomava posição e elaborava sua contundente crítica às vertentes
idealistas e empiristas da psicologia, cujas marcas na educação se
fizeram sentir ao longo do processo histórico de consolidação dos
ideais revolucionários burgueses que marcaram a modernidade, como
já destaquei anteriormente.
O segundo (1921-1997), desde o Brasil e a América Latina,
na vivência de infância e adolescência experimentadas na pobreza, de
juventude e vida adulta alicerçadas na postura crítica e em práticas
políticas emancipatórias, na formação e na construção de uma con-
vicção humanista vinda primeiro do humanismo cristão e depois do
marxismo,21 torna-se uma marca perene na educação comprometida

21. De acordo com Gadotti (2002), a influência do marxismo na formação de Paulo


Freire se deu depois da influência humanista cristã. São momentos distintos,
diz o autor, porém não contraditórios. Freire é um dialético e combina, na sua

71
com a transformação dos sujeitos e da sociedade. Na década de 1930 –
período em que Vigotski experimenta a crise de saúde que o levará à
morte –, Freire ainda vivia sua juventude. Anos mais tarde, o Brasil
e a América Latina testemunham a emergência de um educador que
tece severas críticas às correntes psicológicas que Vigotski também
condenara em seu tempo. Freire desenvolve o conceito de educação
bancária, para demonstrar com clareza as consequências funestas das
teorias behavioristas na organização dos processos pedagógicos e rituais
educativos escolares em geral.22
As diferenças entre esses pensadores podem ser melhor obser-
vadas tomando como referência as categorias teóricas que articulam
o tema desta tese: trabalho, consciência e linguagem.23
Vigotski, do lugar da psicologia e na adesão visceral ao seu
contexto político, social e epistemológico, olha para o desenvolvimento
psicológico do ser humano. Isso significa que seu argumento em favor de
uma concepção materialista histórico-dialética da psicologia trará as
marcas dessa especificidade. Assim, os conceitos, as categorias através

pedagogia dialética-dialógica, temas cristãos e marxistas. A educação é uma


prática antropológica por natureza, portanto, ético-política. Por essa razão, pode
tornar-se uma prática libertadora. O tema da libertação é tanto cristão quanto
marxista. O que difere são o método e as estratégias e não o fim. A relação
opressor-oprimido lembra a relação senhor escravo de Hegel. Depois, vieram
Marx, Gramsci, Habermas. Seu pensamento é humanista e dialético.
22. Sobre este tema, ver Pedagogia do Oprimido (1987). Ainda, muito embora não
faça uso desse conceito, procuro demonstrar, na primeira parte deste texto, as
consequências dessas correntes da psicologia para a pedagogia, o que, nas palavras
de Freire, constitui a “educação bancária”.
23. O capítulo II tratará com maior profundidade desses conceitos, articulados às
teorias em debate. Aqui faço apenas uma breve referência, cujo intuito é o de
demonstrar as especificidades dos pensadores e os pontos de diálogo entre ambos.

72
das quais articula a psicologia ao seu fundamento teórico-filosófico
traduzem o componente referido a essa especificidade.
A psicologia histórico-cultural desenvolve o argumento na de-
fesa de que tais processos – trabalho, consciência e linguagem – têm
origem sempre na dinâmica das relações socioculturais, o que leva
essa teoria ao trato cuidadoso de alguns princípios do materialismo
histórico-dialético que influenciarão sobremaneira a construção das
teses vigotskianas acerca do desenvolvimento psicológico.
Assim, mesmo observando a realidade e a trama das relações
sociais como foco privilegiado para o desenvolvimento de funções
psicológicas superiores,24 Vigotski observará que o desenvolvimento
de tais funções também se inviabilizaria sem o substrato biológico que
as sustenta de algum modo.
Daí que essa abordagem concebe o cérebro humano como sendo
esse substrato biológico do funcionamento psicológico e, coerentemen-
te em relação aos fundamentos da dialética materialista, como órgão
funcional de grande plasticidade, ou seja, em movimento. A referência
à realidade ou aos processos culturais, aqui, tem a ver com a crença
de que eles demarcam as características próprias do desenvolvimento
psicológico dos sujeitos inseridos em sistemas interativos mediados
pelos artefatos materiais e simbólicos do seu grupo cultural.

24. Funções psicológicas superiores. Conceito desenvolvido por Vigotski para refe-
rir-se ao tipo especificamente humano de funcionamento psicológico. Trata-se
de funções como abstração, atenção voluntária, memória lógica (mediada),
compreensão, classificação, seriação, análise, síntese etc. Elaborações cognitivas
que só acontecem graças aos processos de mediação social e fundamentalmente
pelo sistema semiótico ao qual os sujeitos se encontram imersos. As funções
psicológicas superiores têm, portanto, origem social. Nas palavras de Vigotski
(1996a), toda função psicológica superior foi antes uma relação social.

73
Ao passo que, desde a pedagogia freireana, as categorias de tra-
balho, consciência e linguagem assumem um viés socioantropológico
que, muito embora também referenciado no campo filosófico do mate-
rialismo histórico-dialético, analisa o ser humano tendo como aspecto
central não apenas a relação homem-mundo, mas o lugar social a partir
do qual desenvolve sua práxis e onde as categorias citadas formam um
amálgama importante para a compreensão do sujeito. É na práxis e
como ser de práxis que o homem desenvolve a consciência de si no
mundo, e é desse lugar que significa a experiência e a comunica como
expressão do seu pensamento-linguagem.
Mas, por outro lado, esses pensadores se assemelham de modo
peculiar quando observados a partir do modo como se colocam nos
contextos com os quais compartilharam sua experiência de vida e
através dos quais se constituíram como intelectuais e como homens.
Embora tenham vivido tempos históricos e tempos de vida diferentes,
a intensidade com que viveram marca um primeiro aspecto importante
para o diálogo pretendido. Trata-se de personalidades profundamente
comprometidas com o seu tempo.
Mais, ainda, Vigotski desde a psicologia e Freire desde a peda-
gogia convergem na concepção de que a consciência humana25 tem
sua origem nos processos de vida histórico-culturais. Explicitam a
filosofia marxista na origem da concepção de consciência gerada nas

25. Cabe, contudo, esclarecer que, no âmbito da psicologia histórico-cultural, o


termo consciência tem forte relação com formas complexas de funcionamento
psicológico. E, no âmbito da pedagogia freireana, ganha o contorno de
conscientização como ato através do qual o sujeito toma ciência de sua própria
ação no mundo e da ação do mundo sobre si. Ou seja, tem uma dimensão
política que figura mais claramente e está alicerçada na concepção de práxis
transformadora de viés sociológico do materialismo histórico-dialético.

74
práticas sociais dos sujeitos, circunstanciados pelos modos de orga-
nização das relações de trabalho e pelos modos de apropriação das
produções simbólicas produzidas nas relações sociais. A partir desse
princípio básico, ambos enfocam sobremaneira o papel do trabalho e
da linguagem no processo de desenvolvimento humano.
A ideia de que as formas individuais de consciência têm origem
na apropriação de formas coletivas de atividade não é a única que
aproxima esses dois pensadores nas bases do materialismo histórico-
-dialético. Vigotski e Freire compartilham também a crença de que o
funcionamento intelectual humano se forma e se transforma mediante
a apropriação ativa do sujeito em situação de interação, de troca, de
convívio, de atividade coletiva, e o faz mais e melhor à medida que a
atividade coletiva de reflexão estiver vinculada às práticas sociais dos
sujeitos. Ambos comungam ainda a concepção de que o funcionamento
mental ou cognoscitivo encontra seus fundamentos na história cultural.
Além disso, a transformação das práticas educativas institucio-
nalizadas é, tanto para Freire quanto para Vigotski, condição sine qua
non para fazer desse lugar um espaço rico para o desenvolvimento de
formas de organização e funcionamento da consciência. A educação
como espaço dialógico, a cultura e as experiências de vida concreta
como pontos de partida e de chegada para o desenvolvimento da
consciência renderam a ambos mais uma coincidência: a censura
de suas obras por setores sociais e políticos detentores do poder nas
épocas por eles vividas.
O que se tem, então, é uma pedagogia e uma psicologia que, em
tempos diferentes, se caracterizam, entre outros aspectos, não menos
importantes, pela ligação visceral com as questões colocadas pelo
movimento do seu contexto histórico e social, comprometidas com
a produção de uma ciência que se define em favor de concepções de

75
mundo e de ser humano voltadas para a justiça e para formas menos
excludentes de humanização.
Se, por um lado, Vigotski e a teoria psicológica que formulou
em conjunto com Luria e Leontiev, entre outros, têm claramente o
materialismo histórico-dialético como moldura filosófica, por outro,

O pensamento de Freire pode agora ser claramente percebido


como uma expressão da pedagogia socialista e a análise de
Freire tem sido, através do tempo, trabalhada dentro de uma
moldura histórico-materialista, redefinindo seus velhos temas
existencialistas e fenomenológicos sem, no entanto, adotar uma
postura ortodóxica. (Torres, 1998, p. 82).

Estes pensadores de tempos tão distantes entre si encontram-se


na seriedade teórica e epistemológica com que tratam seus campos
de estudo; na capacidade de diálogo interdisciplinar; na importância
dada à educação como lugar de diálogo e desenvolvimento humano;
no compromisso político com as questões sociais de seus tempos.
Ainda que um esteja na psicologia e outro na pedagogia, e isso
demarque diferenças e semelhanças na forma como constituem suas
teorias, ambos possibilitam – exatamente por conta das diferenças
e semelhanças – uma qualidade ímpar para o diálogo que procuro
detalhar na sequência deste estudo.

76
Sobre a autora

Solange Maria Alves


Graduada em pedagogia pela Unoesc-Chapecó (hoje Unochapecó –
Universidade Comunitária da Região de Chapecó), possui especia-
lização em educação especial pela mesma instituição. Tem mestrado
em educação pela Unicentro-Unicamp, com área de concentração
em metodologia e ensino, e doutorado em educação, com área de
concentração em psicologia e educação, pela Faculdade de Educação
da Universidade de São Paulo. Atuou na Unochapecó como docente
universitária, em psicologia e educação, teorias da aprendizagem e do
desenvolvimento e metodologia de ensino, e em assessorias a proje-
tos pedagógicos no âmbito da educação superior. Foi pró-reitora de
graduação da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), onde
atualmente é docente, atuando em componentes curriculares como
psicologia e educação e organização escolar.
Argos Editora da Unochapecó
www.unochapeco.edu.br/argos

Título Freire e Vigotski: um diálogo entre a pedagogia


freireana e a psicologia histórico-cultural

Autora Solange Maria Alves

Coleção Debates

Coordenação Dirceu Luiz Hermes

Assistente editorial Alexsandro Stumpf

Assistente de vendas Neli Ferrari

Secretaria Leonardo Favero

Divulgação, distribuição e vendas Neli Ferrari


Felipe Alison Zuanazzi
Luana Paula Biazus
Renan Klaus Alves de Souza

Projeto gráfico e capa da coleção Alexsandro Stumpf

Capa desta edição Alexsandro Stumpf

Diagramação Caroline Kirschner


Sara Raquel Heffel

Preparação dos originais Araceli Pimentel Godinho

Revisão Carlos Pace Dori


Araceli Pimentel Godinho
Marizete Bortolanza Spessatto
Rodrigo Junior Ludwig

Formato 16 X 23 cm

Tipologia Adobe Caslon Pro entre 10 e 14 pontos

Papel Capa: Supremo 280 g/m2


Miolo: Pólen Soft 80 g/m2

Número de páginas 274

Tiragem 800

Publicação 2012

Impressão e acabamento Gráfica e Editora Pallotti – Santa Maria (RS)


Este livro está à venda:

www.unochapeco.edu.br/argos
O diálogo entre Lev S. Vigotski e Paulo Freire,
proposto neste livro, é, antes de tudo, um
diálogo entre duas ciências, cujas matrizes ISBN  978-­85-­7897-­040-­6
teóricas filiam-se a concepções críticas
comprometidas com práticas transformadoras
das relações sociais e dos sujeitos feitos e
fazedores dessas relações: a psicologia
histórico-cultural e a pedagogia freireana. Isso
traduz, entre outras coisas, as possibilidades
que esse diálogo tem de fundamentar a
organização de processos pedagógicos no
âmbito da práxis educativa comprometida
com a transformação social.

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