FREIRE E VIGOTSKI
um diálogo entre a pedagogia freireana
e a psicologia histórico-cultural
Chapecó, 2012
Reitor: Odilon Luiz Poli
Vice-Reitora de Ensino, Pesquisa e Extensão: Maria Aparecida Lucca Caovilla
Vice-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento: Claudio Alcides Jacoski
Vice-Reitor de Administração: Antônio Zanin
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escrita do Editor.
Inclui bibliografias.
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César da Silva Camargo, Dirceu Luiz Hermes, Elison Antonio Paim,
Érico Gonçalves de Assis, Maria Aparecida Lucca Caovilla, Maria Assunta Busato,
Murilo Cesar Costelli, Tania Mara Zancanaro Pieczkowski
Coordenador:
Dirceu Luiz Hermes
Agradecimentos
Gosto de ser gente porque a História em que me faço
com os outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de
possibilidades e não de determinismo.
Paulo Freire
11 Prefácio
Marta Kohl de Oliveira
13 Apresentação
33 CAPÍTULO I
Psicologia e pedagogia, Vigotski e Freire:
reflexões iniciais
211 CAPÍTULO IV
Educação escolar: território do encontro entre
Freire e Vigotski
255 Referências
Prefácio
!!
A análise teórica empreendida concentrou-se nas categorias de
trabalho, atividade fundamental e distintiva do ser humano; linguagem,
sistema semiótico presente em todos os grupos culturais, com um
papel essencial no desenvolvimento psicológico; e consciência, lócus
da subjetividade especificamente humana, historicamente forjada.
Recorrendo a autores de filiação materialista dialética, Solange apro-
funda a discussão de cada uma dessas categorias e busca compreender
como elas emergem nos pensamentos de Freire e Vigotski e como
possibilitam o diálogo entre eles.
Ao chegar ao território escolar como espaço historicamente
constituído de desenvolvimento humano e lugar em que explicita-
mente interagem a psicologia e a pedagogia, a autora busca construir
novas possibilidades de diálogo entre os pensadores por ela escolhi-
dos, aproximando as categorias de mediação simbólica em Vygotsky
e de mediação pedagógica em Freire, trabalhando com a questão do
conhecimento nas duas teorias e propondo a compatibilidade entre a
pedagogia freireana e a psicologia histórico-cultural.
Se na primeira frase do texto Solange explicita a gênese de sua
reflexão numa história pessoal de compromisso político com o mundo
real, seu parágrafo final evidencia que esse compromisso permaneceu
vivo ao longo de sua passagem pelo programa de doutorado e essencial
em sua relação com o próprio processo de construção de conhecimento.
Esse processo tem como meta, para Solange e para os autores que ela,
não por acaso, escolheu estudar, a transformação e a produção daquilo
que é novo para o ser humano, sempre em desenvolvimento.
!"
Apresentação
13
O movimento originado a partir de então foi sendo materiali-
zado pela criação de um Sistema Municipal de Ensino que, por sua
vez, viabilizou a organização de um Conselho Municipal de Educação
com componentes eleitos nos diferentes segmentos envolvidos.2 Esse
conselho foi responsável pela análise, aprovação e pelo acompanha-
mento da política pública em educação do município amplamente
discutida com a comunidade.
Tal política propunha (e implementou durante os oito anos de
gestão) um movimento de reorientação curricular com a organização
de processos pedagógicos fortemente articulados com a ideia e a prática
de uma escola comprometida com a comunidade na qual se insere;
uma escola cujo funcionamento depende da participação efetiva de
professores, alunos, pais e mães em Conselhos Escolares – instância
14
decisória em âmbito escolar, eleita por seus pares; em plenárias para
avaliação do processo pedagógico da escola e na disponibilização de
seu pensar, das significações construídas no seu cotidiano para serem
colhidas, estudadas, compreendidas e transformadas em conteúdo
mediador de novas interpretações de mundo, como propõe a pedagogia
da libertação assumida por tal política educacional.
Trata-se, portanto, de uma relação visceral entre escola e comu-
nidade. Parafraseando Cortella (2000), uma “escola dos muros para
fora”, que acolha a comunidade, mas que também se coloque para a
comunidade como espaço possível de articulação das demandas da
população, através da apropriação do conhecimento como ferramenta
de libertação.
Colocar no chão da escola essa política demandou o enfren-
tamento severo de questões de ordem tanto estrutural (tempo para
planejamento e tomada de decisões pelo coletivo da escola) quanto
pedagógicas no sentido da reorganização do sistema por ciclos de
formação, pautados pelo conceito de ciclo como tempo histórico de
aprendizagem e desenvolvimento para além do tempo cronológico de
cada indivíduo; um tempo histórico da vida e de uma vida inserida
num contexto, construída com os aportes de uma dada cultura.
15
pré-definidos. Ao contrário, vem das falas da comunidade, das falas
de alunos e alunas, das representações que eles têm das vivências ou
das experiências construídas nas relações cotidianas com os espaços
comunitários mais próximos, mas também com os acontecimentos
em nível contextual maior à medida que se colocam como sujeitos
imersos em redes de relações sociais, políticas, econômicas e culturais
que demarcam e influenciam fortemente, por assim dizer, seu modo
de agir e pensar. Segundo Freire (1987, p. 86), é “a partir da situação
presente, existencial, concreta, refletindo o conjunto de aspirações do
povo, que podemos organizar o conteúdo programático da educação
ou da ação política”. Ou ainda, como esclarece Silva (2004, p. 1):
16
A práxis pedagógica libertadora, como o próprio nome sugere,
indica a necessidade de uma educação vista como um movimento
em direção à liberdade. Não se trata, no entanto, de libertação num
sentido metafísico, de uma essência dada e naturalmente inerente ao
humano, “mas de libertação de um ‘ente-histórico’ que se constrói
enquanto constrói o mundo, através da práxis” (Damke, 1995, p. 58).
No âmbito específico das práticas escolares, torna-se necessário,
a partir de então, compreender a realidade e suas contradições, a lógica
estabelecida nas falas de cada pessoa e o relacionamento estabelecido
com os outros. Esse processo novo e desafiador colocou, entre outras
demandas, não menos importantes, a necessidade de superar concep-
ções de desenvolvimento humano marcadamente liberais – centradas
no indivíduo – e fortemente presentes em significativa parcela das
práticas pedagógicas.
A interpretação de falas como manifestações vivas de conteúdo
histórico, cultural e ideológico da concreticidade humana (como quer
Freire) não cabe em concepções pautadas na meritocracia individual,
na passividade do ser humano compreendido como um acumulado de
reflexos, de estímulos e respostas ou marcado pelo destino absoluto
de suas condições físicas e/ou espirituais. Ao contrário, o exercício de
interpretar falas como manifestações de um sujeito humano concreto,
que vive, sente e significa a experiência histórica nas condições de vida
real em que se encontra, requer outros parâmetros teóricos.
Este cenário dá origem a inúmeras indagações. De modo parti-
cular, emerge daí a necessidade de dialogar com uma teoria psicológica
que favoreça a construção de instrumentos de análise da palavra da
comunidade, a partir de aportes condizentes com a crença e o com-
promisso da pedagogia de Paulo Freire. Essa demanda aproximou a
pedagogia freireana da psicologia histórico-cultural e constitui terreno
fértil para o problema que se coloca neste estudo.
17
Num primeiro momento, a reflexão em torno da possibilidade de
um diálogo mais próximo e mais intenso entre essas teorias surge, de
modo especial, em face de indagações como estas: quem são os sujeitos
que falam, que emitem a palavra que, interpretada, se transforma em
conteúdo problematizador e conscientizador? São sujeitos concretos,
responde Freire. E o que é um sujeito concreto? A palavra emitida por
este sujeito é reveladora da constituição da consciência desse sujeito?
Tomado esse referencial inquisitório, a aproximação com a psico-
logia histórico-cultural passou a constituir quase uma necessidade vital.
Se feitas as mesmas perguntas a Vigotski,3 Luria e Leontiev – escola
histórico-cultural de psicologia –, a resposta caminha numa direção
muito semelhante à de Freire no campo da pedagogia. Evidentemente,
ficam resguardadas as diferenças decorrentes dos tempos, espaços e
áreas do conhecimento a partir das quais constroem suas reflexões,
suas teorias.
Para Vigotski e colaboradores, o homem é, antes e sobretudo,
um ser cuja constituição depende fundamentalmente das relações
socioculturais nas quais se insere e com as quais, ativamente, interage.
3. Várias têm sido as formas de grafia para o nome desse autor, a partir da trans-
literação do alfabeto russo, dependendo do lugar e das formas linguísticas ado-
tadas. É o caso da grafia Vygotsky, bastante utilizada nas traduções estaduni-
denses e inglesas. Por sua vez, nas edições espanholas tem prevalecido a grafia
Vygotski; na Alemanha, Wygotski. Contudo, em obras do campo da psicolo-
gia, publicadas pela editora estatal soviética dos idos vividos por este autor – a
Editora Progresso, de Moscou –, traduzidas diretamente para o espanhol, bem
como em edições recentes publicadas no Brasil, verifica-se a adoção da grafia
Vigotski. Assim, preservadas as grafias adotadas pelo referencial consultado
para este estudo, esta última se define como opção gráfica para o texto e o con-
teúdo em questão.
18
Essa condição humana, por assim dizer, é resultado de um longo
processo histórico marcado fundamentalmente pela invenção e pelo
uso de instrumentos técnicos utilizados para o trabalho – atividade
vital humana – e pela linguagem, fruto da necessidade de comunica-
ção e intercâmbio entre os homens. Assim, podemos dizer que o ser
humano é síntese de um processo complexo de relações sociais desde
a sua origem. E compreender o pensamento e o comportamento hu-
mano implica compreender os processos sociais constitutivos desse
pensamento e/ou comportamento. Pensamento que, na concepção
de Paulo Freire, manifesta-se na palavra, cujo conteúdo é analisado e
transformado em conteúdo mediador de novas interpretações acerca
da realidade vivida pelos sujeitos.
Há, portanto, uma possibilidade concreta que se apresenta como
terreno fértil para um diálogo e uma aproximação entre a pedagogia
freireana e a psicologia histórico-cultural, de tal modo que aquela
pode constituir-se efetivamente em um campo mediador da psicologia
histórico-cultural no âmbito de práticas educativas escolares.
Ou, dizendo de outro modo, a pedagogia da libertação, tal como
proposta por Paulo Freire, encontra na psicologia histórico-cultural os
aportes necessários – no âmbito de uma concepção de subjetividade e
de constituição da subjetividade humana, da relação entre desenvol-
vimento e aprendizagem e das bases psicológicas para o processo de
construção do conhecimento escolar – para efetivar-se como práxis
educativa.
Aqui nasce a questão central deste estudo. Gerado a partir
da reflexão sobre a práxis, passa a constituir-se, porque incorpora o
movimento dialético de um processo de indagações e vivências, num
objeto teórico, ou seja, não se caracteriza por uma análise de dados
ou situações empíricas mediadas por opções teóricas, mas define-se
como uma questão de cunho teórico que tem por objetivo estabelecer
19
relações entre dois campos distintos do conhecimento que, a partir de
suas especificidades, estabelecem possibilidades efetivas de diálogo.
De um lado, a pedagogia freireana,4 como já observado an-
teriormente, propõe uma práxis pedagógica alicerçada na relação
homem-mundo, cuja manifestação mais explícita se encontra no
“pensamento-linguagem”5 do povo. O que coloca como demanda con-
creta a compreensão e a significação do que se entende por pensamento
20
e linguagem, por relação homem-mundo, e de como esses fatores,
por assim dizer, compõem processos de constituição da subjetividade
humana. Uma pedagogia para a qual o processo de conhecimento
(aprendizagem) implica um movimento da consciência no sentido
de ir e vir à realidade. O que indica a concepção de ser humano como
sujeito concreto, cuja feitura, para usar uma expressão de Freire, é
tecida na relação homem-mundo. Trata-se, portanto, de um sujeito
ativo cuja atividade cognitiva traduz-se em instrumento de apropriação,
compreensão e interação com a realidade.
De outro lado, a psicologia histórico-cultural preconiza a com-
preensão do funcionamento psicológico tipicamente humano como
produto de relações sociais, ou seja, o humano é condição que não se
herda biologicamente, mas se constitui no processo de apropriação
que o indivíduo concreto, historicamente situado, realiza dos artefatos
materiais e simbólicos presentes na cultura.
Outra forte razão, que leva ao exercício de diálogo entre as teorias
em debate, situa-se no lugar ocupado pela escola no âmbito da psicologia
marxista. A abordagem histórico-cultural tem a educação escolar como
instrumento central para o processo de humanização, tendo em vista
que compreende a prática pedagógica como espaço fundamental de
mediação simbólica, de interações e de ações pedagógicas deliberadas,
intencionais, voltadas para um fim que, em última instância, constitui-
-se no desenvolvimento de funções psicológicas tipicamente humanas.
Assim, se a psicologia histórico-cultural carrega em si instru-
mentos teóricos fundamentais para a compreensão do ser humano
como sujeito sócio-histórico, e se essa leitura ou concepção responde
às demandas centrais da pedagogia freireana, coloca-se o desafio de
estabelecer comparações entre os conceitos centrais de tais teorias e
verificar as possibilidades de diálogo efetivo entre ambas, tendo sempre
21
em vista a qualificação da práxis pedagógica. Daí que o objeto cen-
tral se defina pelo diálogo entre a pedagogia freireana e a psicologia
histórico-cultural.
22
A totalidade concreta, como nos adverte Kosik (1978), não é
tudo e nem é a busca do princípio fundador de tudo. Investigar
dentro da concepção da totalidade concreta significa buscar
explicitar, de um objeto de pesquisa delimitado, as múltiplas
determinações e mediações históricas que o constituem. A
historicidade dos fatos sociais consiste fundamentalmente na
explicitação da multiplicidade de determinações fundamentais
e secundárias que os produz.
23
ciências que precisa de um objeto. [...] Como diz Althusser, “no
materialismo dialético pode-se considerar, esquematicamente,
que é o materialismo o que representa o aspecto da teoria, en-
quanto que a dialética representa o aspecto do método” (1969,
p. 46). Um remete ao outro. É o materialismo que confere à
dialética seu caráter histórico, pois expressa os princípios das
condições concretas da produção do conhecimento, ou seja: a.)
distinção entre o real e o conhecimento desse real e b.) a primazia
do real sobre o conhecimento. O primeiro desses princípios, além
de permitir escapar das concepções racionalistas e empiricistas,
implica o fato de que entre o real e o conhecimento desse real
existe um distanciamento em que opera a atividade produtiva
do sujeito. O segundo faz do real o ponto de partida do conhe-
cimento [...] um ponto de partida que não se perde no processo
de produção do conhecimento. O objeto de conhecimento não
é o real em si, tampouco um mero objeto de razão. Ele é o real
transformado pela atividade produtiva do homem, o que lhe
confere um modo humano de existência.
24
si”, e de que existe uma oculta verdade da coisa, distinta dos fe-
nômenos que se manifestam imediatamente. (Kosik, 1975, p. 17).
25
cuja humanização depende da apropriação das objetivações humanas
presentes nas relações sociais. Daí que conhecer signifique transformar
o mundo, ou seja, é a ação transformadora do ser humano no mundo
que, a um só tempo, modifica o mundo e o humano.
Ocorre que, nas ciências humanas, a separação entre sujeito e
objeto do conhecimento é tarefa árdua, visto que, no mais das vezes,
ambos estão no mesmo campo e são, à luz da dialética materialista,
construtos sociais, portanto, históricos e contraditórios.
O desafio está em manter a coerência da análise, observando os
critérios da dialética como método e do materialismo como teoria, tal
como explicitado na citação de Pino, destacada anteriormente, sem
que isso signifique um engessamento do objeto num quadro teórico
de análise. Ao contrário, exatamente por assumir o compromisso com
um viés dialético materialista, deve-se ter na teoria um campo de
mediação necessário para a leitura dos processos que se apresentam
no objeto que, neste caso, é ciência humana.
26
entre ambas, visto que pertencem ao campo das teorias críticas,7 cujo
fundamento ancora-se no materialismo histórico-dialético. Entretan-
to, comungando com o pensamento de Paulo Freire, o óbvio precisa
7. A expressão “Teoria Crítica” deve ser compreendida, nos limites desse estudo,
tendo como base inicial o referencial marxista. Além disso, o emprego do ter-
mo também está relacionado às reflexões advindas da Escola de Frankfurt que,
através dos seus vários filiados, vai, ao longo do tempo, construindo um refe-
rencial importante para a expressão Teoria Crítica, cujas características centrais
podem ser, talvez, colocadas a partir de duas ideias ou princípios: a) a Teoria
Crítica coloca-se em oposição crítica ao que se concebe como Teoria Tradicio-
nal. Esse último conceito ganha contornos diferenciados em tempos e contex-
tos igualmente distintos. A Teoria Tradicional pode reportar ao conhecimento
produzido pela modernidade capitalista, à economia política e à estrutura de
mercado que se instala a partir do advento da lógica capitalista de sociedade. A
Teoria Crítica fará a análise da ciência moderna, apontando os caminhos que
não deverão ser seguidos por esta. b) A Teoria Crítica tem sentido de denúncia
e de anúncio (Freire), ou seja, trata-se de um dizer e de um fazer; de descrever o
mundo social e, sem se reduzir a isso, desenvolver perspectivas de transformação
dentro das condições concretas de existência. Ainda, como destacado por Nobre
(2004 apud Jahen, 2005, p. 29), “[...] a orientação para a emancipação e o com-
portamento crítico são os princípios fundamentais da teoria crítica. A orientação
para a emancipação constitui-se na base e é o que confere sentido ao trabalho
teórico.” Significa que “a teoria não pode se limitar a descrever o mundo social,
mas deve examiná-lo sob a perspectiva da distância que separa o que existe das
possibilidades nele embutidas e não realizadas, [...] à luz da carência do que
é frente ao melhor que pode ser.” Nesse sentido, ambas as teorias em estudo
apresentam um olhar comum que as caracteriza e as filia no terreno das Teo-
rias Críticas: tanto a pedagogia freireana quanto a psicologia histórico-cultural,
embora por caminhos diferentes, têm uma orientação clara para a emancipação
do homem concebido como um sujeito situado em termos sociais, históricos e
culturais. Além disso, ao mesmo tempo que se posicionam radicalmente frente
à produção da ciência, radicalidade essa demonstrada na capacidade de olhar
para si mesma e a partir de um lugar definido estabelecer considerações sobre
outros saberes apontando seus limites e possibilidades, apontam caminhos de
superação daquilo que criticam. Nisso reside uma das principais características
que unificam Freire e Vigotski. Ambos, antes de apresentarem suas teses e suas
proposições, resgatam as contribuições e os limites daquilo que criticam, o que é,
por si, uma lição sobre como fazer ciência sob o enfoque dialético-materialista.
27
ser explicitado para que seja, de fato, notado, transformado-se em
algo “para si”. E, com o argumento marxista de Vigotski (1996a) e
de Kosik (1975, p. 17), é preciso fazer um detour, mesmo porque, se
aparência e essência coincidissem, dizem os autores citando Marx e
Engels, a investigação se tornaria inócua: “Se a aparência fenomênica
e a essência das coisas coincidissem diretamente, a ciência e a filosofia
seriam inúteis.”8 (Kosik, 1975, p. 17). E acrescenta:
28
de verificar cruzamentos possíveis entre os campos conceituais fun-
damentais.
No âmbito da educação escolar orientada para a libertação
humana, coloca-se fortemente o desafio de compreender o sujeito
humano como síntese de relações sociais e, no interior dessa leitura,
o desafio de transformar a fala desses sujeitos situados historicamente
em conteúdo mediador de novas interpretações da realidade. Aqui se
colocam questões do tipo: como interpretar a representação humana
sobre a realidade? Que elementos se colocam como fundamentais ou
imprescindíveis para essa tarefa? Como fala e conteúdo transformam-
-se em instrumento mediador da leitura do mundo?
Afinal, quando Freire propõe e defende que a organização da
práxis pedagógica libertadora só se efetiva observando a manifestação
do mundo pela palavra pronunciada por sujeitos humanos situados
em termos históricos, não estaria pressupondo uma abordagem
histórico-cultural do desenvolvimento humano, tal como defendida
por Vigotski e seus colaboradores?9
Freire também sublinha a ação educativa como ação de tomada
de consciência e conscientizadora. No âmbito da consciência, destaca
a importância de que os homens particulares e concretos reconhe-
çam a si próprios por meio do processo pedagógico de modo a irem
exercitando a ação consciente da mudança ou a conscientização. E
argumenta que a práxis libertadora eleva a consciência ingênua ao
29
nível da consciência máxima possível.10 Por seu turno, Vigotski insiste
no papel de autorregulação que a escola pode ajudar a desenvolver
nos sujeitos. Autorregulação vista como tomada de consciência de
seu próprio funcionamento psicológico. Essas observações sinalizam
para um diálogo entre as teses freireanas acerca da consciência e da
conscientização e as formas culturais de pensamento, cuja compreensão
exige situar o homem em termos sócio-históricos? Não abriria espaço
de diálogo com uma psicologia que concebe a consciência como um
reflexo psíquico cuja gênese só pode se encontrar na vida, na atividade
do sujeito inserido numa dada realidade sócio-histórica e cuja reali-
zação traduz um movimento de deslocamento do sujeito em relação
aos processos sociais e culturais vivenciados? E, ainda, porque afirma
que a elevação da consciência como resultado do trabalho pedagógico
escolar só se efetiva pela mediação de conteúdos fortemente articu-
lados com a realidade vivida e significada pelo sujeito, possibilitaria
uma aproximação forte com a ideia de elaboração conceitual tal como
proposta por Vigotski?
O olhar sobre tais questões, somado à crença de que o desenvol-
vimento humano constitui-se como fenômeno mediado socialmente
e que para tal, concordando com a escola de Vigotski, a organização
dos processos pedagógicos na escola tem particular importância,
aproxima e fomenta uma inquietação para a investigação em torno de
um diálogo possível entre a pedagogia de Paulo Freire e a abordagem
histórico-cultural de Vigotski e colaboradores.
30
Assim, colocam-se como fontes inspiradoras iniciais estas re-
flexões: a Escola de Vigotski tem como base teórico-epistemológica
o materialismo histórico-dialético. Freire e toda sua reflexão e ação
denotam a moldura materialista histórica e dialética de sua obra. Quais
os encontros possíveis aqui? A partir desses questionamentos e de um
intenso trabalho de aprofundamento e investigação, estruturou-se o
presente livro no formato de quatro capítulos.
O primeiro capítulo procura situar o encontro entre a pedago-
gia freireana e a psicologia histórico-cultural, no contexto histórico
da relação entre pedagogia e psicologia. A intenção é explicitar, nos
meandros de um quadro contextual básico, em que consiste o diálogo
proposto, demonstrando a diferença que este encontro pode significar
para a educação escolar.
Situado o tema no contexto histórico, o presente estudo foca a
atenção na verificação de quais diálogos se sustentam entre psicologia
histórico-cultural e pedagogia freireana. A reflexão desencadeada a
partir daqui compõe o segundo capítulo e procura, fundamentalmente,
refletir as bases teóricas para o diálogo proposto, alicerçado em três
categorias centrais de análise consideradas articuladoras do diálogo
proposto: o trabalho, a linguagem e a consciência.
A questão há pouco referida gera a necessidade de olhar cuida-
dosamente para os conceitos centrais da abordagem histórico-cultural
e para o modo como cada um deles dialoga (ou não) com aspectos
teóricos trabalhados pela pedagogia freireana. Com esse compromisso,
o terceiro capítulo propõe o diálogo através dos conceitos centrais
de cada uma das teorias em questão. Assim, mediação simbólica e
mediação pedagógica, elaboração conceitual e conhecimento, além
de temas em torno da linguagem e educação, constituem o conteúdo
desta parte do livro.
31
Todos esses elementos centrais se encontram, efetivamente,
no chão da escola. É a sala de aula, o pátio escolar, lugar de ensinar
e de aprender, espaço grávido de possibilidades de desenvolvimento
humano, o território mediador do diálogo aqui proposto. O quarto
capítulo procura, então, o encontro entre Freire e Vigotski na educação
escolar propriamente dita.
Por fim, nas considerações finais, procuro refletir acerca da
relevância do tema no contexto educacional atual, marcado pelas
importantes mudanças do mundo globalizado, e apontar algumas
possibilidades efetivas de, em que pesem as controvérsias da contem-
poraneidade, alimentar a esperança ativa (Freire) na direção da luta
e conquista permanente de espaços nos quais o ato de educar seja
um ato de transformação dialética, simultaneamente, da sociedade
e dos sujeitos.
32
CAPÍTULO I
33
Assim, quando se diz “o homem é um ser social”, como preconi-
zam tanto a psicologia histórico-cultural quanto a pedagogia freireana,
diz-se igualmente que, do lugar-comum de ambas as teorias, o homem
é um ser ativo, social e histórico. Por sua vez, a sociedade e a trama de
relações que a caracterizam é produção histórica, feita da humanidade
articulada pelo trabalho, pela produção dos meios de vida material,
pela produção das ideias como representações da realidade criada por
essa mesma humanidade.
Notadamente, esse lugar-comum de onde tomam posição no
cenário teórico e social a pedagogia freireana e a psicologia histórico-
-cultural, se de um lado demarca o parâmetro da reflexão aqui empre-
endida, de outro não se constitui único e tampouco hegemônico. Antes
é o lugar da crítica e da construção efetiva da crença de que a essência
humana não é inata e imutável, e também não é fruto das pressões de
um meio imediato e destituído de história. A essência humana é “o
conjunto das relações sociais” (Marx; Engels, 1993, p. 13). Assumir
esse princípio implica o reconhecimento de que “toda a vida social
é essencialmente prática. Todos os mistérios que levam a teoria para
o misticismo encontram sua solução racional na práxis humana e na
compreensão dessa práxis.” (Marx; Engels, 1993, p. 14).
No âmbito do funcionamento psicológico do ser humano, isso
implica
34
Sob este olhar, a prática pedagógica focaliza a necessidade de
compreender o processo de aprendizado como um movimento de
atividade do sujeito a partir da reflexão mediada sobre a prática social
desse mesmo sujeito. Logo, os encaminhamentos ou as estratégias
pedagógicas daí decorrentes deverão privilegiar atividades de interação,
diálogo e apropriação ativa do conteúdo capazes de contribuir para a
ressignificação da realidade na qual estão imersos os sujeitos e através
da qual se constituem como gênero humano.
Reconhecidamente isso não tem sido assim ao longo da história
da relação psicologia-pedagogia. Daí que (re)conhecer as possibilidades
de diálogo entre a psicologia histórico-cultural e a pedagogia freireana
traz consigo, entre outras demandas importantes, a necessidade de
compreender essa relação no interior de outra: a que se dá historica-
mente entre psicologia e pedagogia em termos gerais, como duas áreas
do saber humano que coexistem e se fundem de modos diferenciados ao
mesmo tempo que traduzem as marcas dos contextos sociais, políticos,
econômicos e culturais através dos quais se constituíram.
35
tomada a relação pedagogia-psicologia desde o processo histórico
em que tal relação se constitui, verificam-se com relativa facilidade as
marcas recíprocas que ambas carregam e que as caracterizam como
áreas funcionais do conhecimento em torno do ser humano.
Autores como Ghirardelli (1987), Bock (1995) e Cambi (1999)
lembram que, desde a Grécia Antiga, passando pela Idade Média,
contexto cuja marca principal traduz-se pelo domínio do Cristianismo,
as reflexões acerca da razão humana, do modo humano de aprender e
desenvolver, têm sido fortemente impregnadas pelas matrizes idealistas
e empiristas da filosofia que, por sua vez, influenciaram sobremaneira
a organização de processos pedagógicos.1
No contexto da Idade Média, mais especificamente, a hegemonia
das concepções filosóficas de base idealista favoreceu e fomentou a
crença numa humanidade inata e imutável, num universo hierárquico
e naturalmente organizado, harmônico, estável, sob o comando de
uma divindade onipresente, onipotente e masculina. Ou, no dizer de
Bock (2002, p. 18),
36
A demanda por uma psicologia e por uma pedagogia como
ciência é um feito da modernidade. Aqui, ao contrário do contexto
anterior, a psicologia se torna necessária à medida que o modelo ca-
pitalista de produção requer um novo indivíduo, um “novo homem”,
como ser produtivo e consumidor, crente nas suas possibilidades
individuais como única força propulsora do seu sucesso social.2 Esse
contexto coloca tanto a psicologia quanto a pedagogia num patamar
diferenciado em termos de desenvolvimento como ciência. Notada-
mente observados aí os marcos estruturais dos idos de emergência
da burguesia como classe hegemônica e do pensamento liberal como
aporte teórico-ideológico fundamental da era capitalista, cuja orga-
nização deixará marcas indeléveis na ciência psicológica e na ciência
pedagógica. Como sublinha Bock (2002, p. 15):
37
transformações daí decorrentes são consideradas condições
históricas para o surgimento da ciência moderna e posterior-
mente da Psicologia. A ênfase na razão humana, na liberdade
do homem, na possibilidade de transformação do mundo real
e a ênfase no próprio homem foram características do período
de ascensão da burguesia que permitiram uma ciência racional,
que buscou desvendar as leis da natureza e construir um conhe-
cimento pela experiência e pela razão. Um método científico
rigoroso permitia ao cientista observar o real e construir um
conhecimento racional, sem interferência de suas crenças e va-
lores. Assim, surge a ciência moderna: experimental, empírica,
quantitativa.
Sob esse olhar, um marco importante e que pode ser definido pon-
to de partida para uma análise da relação psicologia-pedagogia está nas
chamadas revoluções burguesas (França e Inglaterra). Seguramente, aqui
emergem com vigor significativo novos modos de produzir, distribuir e
pensar a organização social, os valores e os comportamentos adequados
ao sucesso da sociedade emergente. Como alerta Hobsbawm (1982),
para compreender o processo e o significado histórico da implemen-
tação da lógica liberal de sociedade e de mercado, é sugestivo iniciar
pela tese da revolução sem precedentes promovida pelo advento do
modo capitalista; revolução esta comparável aos grandes momentos
de conquistas da humanidade como a invenção da agricultura e da
metalurgia, da escrita, da cidade e do Estado. Em suma, como lembra
Patto (1996, p. 11), o capitalismo mudou a face do mundo:
38
roar o processo de constituição dos estados nacionais modernos
e engendrou uma nova classe dominante – a burguesia – e uma
nova classe dominada – o proletariado.
39
naturalmente capaz de decidir qual o seu lugar na engrenagem social.
Logo, as condições materiais nas quais vivem os sujeitos passam a ser
secundarizadas, tendo em vista que cada um determina o seu destino
a partir de desejos próprios, individuais.
40
[...] descobrir os mais e os menos aptos a trilhar ‘a carreira aberta
ao talento’ supostamente presente na nova organização social
e assim colaborar, de modo importantíssimo, com a crença na
chegada de uma vida social fundada na justiça. Entre as ciências
que na era do capital participaram do ilusionismo que escondeu
as desigualdades sociais, historicamente determinadas, sob o véu
das supostas desigualdades pessoais, biologicamente determinadas,
a psicologia certamente ocupou lugar de destaque.
41
As novas habilidades cognitivas requeridas estão diretamente
ligadas aos novos processos de organização da produção e das relações
de trabalho, que, por sua vez, dada a conjuntura e a hegemonia liberal,
determinam em larga escala as políticas educacionais, cujos fundamen-
tos estão igualmente alicerçados nas pedagogias e psicologias liberais,
para ficar no tema proposto.
Desse modo, seja no momento do advento do capitalismo, seja
no momento de seu reordenamento global ora vivenciado, o produto
final esperado da produção escolar é um homem completamente
adequado ao funcionamento da sociedade capitalista. Esse tem sido
o marco da relação psicologia-pedagogia no contexto da hegemonia
liberal capitalista desde seu surgimento.
No âmbito dos processos de aprendizagem escolar, esse prisma
conceptual tem determinado fortemente a organização seriada, a clas-
sificação via avaliação, enfim, uma gama de rituais escolares de certo
modo fossilizados no comportamento pedagógico. Somada a isso está
a ideia ainda forte no campo da pedagogia de que as competências
humanas para o aprendizado são talentos individuais que, via escola,
podem ser (ou não) afirmados. O resultado tem sido o fortalecimento
do argumento pedagógico de que alguns são naturalmente aptos e se
adaptam com muito mais facilidade que outros, considerados menos
aptos. Naturaliza-se, assim, a subjetividade humana concebida como
fenômeno a-histórico que, porque inerente a cada indivíduo, determina
e acerta para cada um o seu lugar na engrenagem social.
A escola e, nela, as práticas pedagógicas passam a constituir-se
em terreno fértil para a propagação de crenças psicológicas que, ou
por razões inatas ou por razões adquiridas, justificam as capacidades
individuais para aprender ao mesmo tempo que, privilegiando o indi-
vidualismo, criam as condições necessárias para justificar a sociedade
42
organizada sob a lógica liberal, ou seja, desobrigam a sociedade pelas
possibilidades e/ou pelos limites de cada um para a escolarização.
Sob o enfoque inatista, alicerçado na filosofia idealista ou aprio-
rista, a educação pouco ou nada pode fazer para alterar as determina-
ções inatas de cada indivíduo.
43
Valoriza-se o trabalho individual, a atenção, a concentração,
o esforço e a disciplina como garantias para a apreensão do
conhecimento. As trocas de informações, os questionamentos,
as dúvidas e a comunicação entre os alunos, enfim, a interação
entre pares, são interpretadas como falta de respeito, dispersão,
bagunça, indisciplina e “conversas paralelas”. Dá-se, portanto,
privilégio à relação adulto-criança. (Rego, 1995, p. 90).
44
escolar, comungando com Bock (2002, p. 25), em sua reflexão crítica
sobre a história da psicologia, é a incapacidade desta ciência de,
45
um conjunto de questionamentos relativos à ordem moderna. No
âmbito do conhecimento e do desenvolvimento humano, isso não
seria diferente. Mesmo porque o sujeito preconizado pelo apogeu
da modernidade parece agora não mais responder às suas demandas
estimadas na base da necessidade de um sujeito ativo, cooperativo,
crítico, flexível e capaz de decisões.
Em torno da expressão pós-modernidade, há um forte debate que,
a meu ver, caracteriza também uma viragem no campo das ciências e
das relações homem-universo. Além disso, o cenário “pós-moderno”
constitui terreno fértil, onde se processam revisões teóricas importantes
por um lado e, por outro, visualiza-se uma espécie de metamorfose
do sistema de produção capitalista que, em face de suas próprias cria-
ções materiais e simbólicas, reorganiza-se tendo em vista a própria
sobrevivência.
Contudo, é válido observar que se cria, no entorno da pós-
-modernidade, um campo de disputa ideológica através do qual se
originam terrenos um tanto pantanosos para a reflexão e a constru-
ção de novas proposições no âmbito da práxis. Tal como Gonçalves
(2002) e Frigotto (2001), concebo a expressão pós-modernidade como
indicativo de uma atualização histórica que ainda não implica o rom-
pimento com os limites da modernidade, uma vez que a análise tem se
reduzido, no mais das vezes, à negação pura e simples, sem indicação
de possibilidades de superação efetiva, o que acaba caracterizando
essa negação como não dialética e como lugar a partir do qual muitos
discursos outrora conservadores e extremistas acabam encontrando
espaço de contestação meramente via narrativas linguísticas que, em
última instância, ocultam posições conservadoras. A crítica discursiva
da modernidade não caracteriza ruptura e por isso não é pós-moderna.
Como bem ilustra Gonçalves (2002, p. 54-55):
46
[...] a modernidade é contraditória como expressão da contra-
dição histórica que a engendrou, e aí ser “pós” à modernidade
implicaria um posicionamento em relação aos antagonismos que
ela encerra. Não é o que faz a “pós-modernidade” que tem um
discurso crítico homogeneizador de negação (não dialética) de
todas as metanarrativas. Mesmo quando se conservam algumas
referências gerais da modernidade, como é o caso de pensadores
que se apóiam na matriz marxista, as ressalvas e revisões pro-
postas apresentam riscos de desconsiderar aspectos essenciais
da análise histórica [...].
47
movimento está também imbuído de argumentos que, em última
instância, “[...] reforçam o individualismo, o particularismo, a fragmen-
tação, a descontinuidade e o evento, negando as dimensões estruturais
e a continuidade histórica.” (Frigotto, 2001, p. 26).
Frigotto cita Marcos Coelho (1999) como texto que traduz a
caricatura desse momento da história:
48
processos individualizados, o que, no campo ideológico, fundamenta
argumentos e posições favoráveis àquilo que é, em última instância,
vital para a reprodução das formas atuais de vida social: o individua-
lismo, o consumismo, a competitividade, nos diversos níveis possíveis
de manifestação e organização da vida.
Trata-se – concordando com autores como Facci e Duarte
(2004) e observando a trajetória histórica que fez da relação psicologia-
-pedagogia terreno fértil de disputas ideológicas no processo dialético
que faz da escola o lugar efetivo dessa disputa – de observar aí uma
retomada dessas forças revigoradas pelo movimento de reorganização
do modelo capitalista de ser e de viver, batizado, pelas classes sociais
hegemônicas, de globalização.
Nesse cenário contemporâneo, psicologia e pedagogia, como
outros campos da ciência e da práxis humana, compõem terrenos
férteis de disputa em diferentes campos ideológicos. A fragmentação
do sujeito é, ao mesmo tempo, a individualização do próprio sujei-
to e a dos modos de inserção desse indivíduo nas práticas sociais
também elas individualizadas, particularizadas a ponto de tornar
fluídos a realidade e o humano por ela constituídos. Sob esse olhar
fragmentário, a prática educativa acaba assumindo características
fundamentalmente individualistas; é a prática pedagógica centrada
no indivíduo com uma realidade completamente particular e incom-
parável a qualquer outra.
Note-se que a morte do sujeito, reivindicada pelo pensamento
pós-moderno, não implica a morte do indivíduo. Como argumenta
Duarte (2004), com base na análise dos escritos de Rosenau (1992),
os pós-modernos céticos substituíram o conceito de sujeito moderno
pelo peculiar conceito de indivíduo satisfeito com a alienação. Nas
palavras de Duarte (2004, p. 228),
49
A autora [referindo-se a Rosenau] é bastante clara ao enfatizar
que o indivíduo pós-moderno não pode de forma alguma ser
visto como uma pessoa nos moldes do sujeito da modernidade,
isto é, o indivíduo pós-moderno não é uma pessoa consciente, livre
e autônoma. Sua existência é anônima. Trata-se de uma pessoa
descontraída, flexível, que ouve seus sentimentos e emoções e
procura aceitar a si mesma tal como é. Tem seu próprio estilo
de vida mas não procura ser exemplo para ninguém, pois não
pretende possuir nenhuma verdade. Cultiva o senso de humor, a
fantasia, a cultura do desejo e a gratificação imediata (Rosenau,
1992, p. 53). Vive o presente e prefere aquilo que é passageiro,
momentâneo, tendo horror ao que é estável, permanente. Va-
loriza a espontaneidade e vê com maus olhos a disciplina e o
planejamento. Gosta do que é diferente, exótico, místico, prove-
niente de tradições do passado e daquilo que é local, singular e
não do que é comum, generalizado, universal. Preocupa-se com
a sua própria vida pessoal e suas necessidades pessoais e não
está interessada em laços com instituições tradicionais como a
família, Igreja, partido, nação, etc.
50
humano e, em última instância, argumentar em favor de uma certa
naturalização das relações sociais agora particularizadas num indiví-
duo que é também fragmento de diversidades inerentes aos processos
multiculturais, igualmente fragmentários e fragmentados.
A fluidez da pós-modernidade e a crítica cética à existência do
sujeito moderno como sujeito racional, capaz de conhecer e dominar
a realidade, está ancorada na não aceitação da ideia de subjetividade,
uma vez que esta implica a existência do seu contraponto, ou seja, a
objetividade. Ainda com base na análise de Rosenau (1996), Duarte
(2004, p. 227) explica que
51
que o mesmo não ocorre com quem está encarregado da docência. O
argumento docente de que não sabem como lidar com educandos que
têm “maior número de informações do que eles” é revelador de uma
prática educativa que não consegue lidar com um fenômeno típico
de seu tempo e, ainda, não consegue perceber que, na escola, a tarefa
não é repassar informações, mas organizar, transmitir, mediar proces-
sos de conhecimento. Sob este prisma, as tecnologias da informação
são aliadas mais que fatores de competição. Além de constituírem
um lastro de informações a serem transformadas em conhecimento,
podem ampliar espaços de trocas e diálogos entre pares e auxiliar a
docência na atuação sobre o que Vigotski chamou de Zona de De-
senvolvimento Proximal.
Assiste-se a uma reificação dos meios tecnológicos que, em
contraposição ao conhecimento historicamente acumulado, esvazia
a prática pedagógica de seu conteúdo fundamental e a coloca numa
condição de subalterna, sem que se perceba, nas entrelinhas desse
processo, que a própria tecnologia é produção humana, é produto e
produtora do gênero humano e, dialeticamente, pode ser concebida
como instrumento de mediação de apropriações de artefatos materiais
e simbólicos centrais para que cada sujeito tome parte ativa da história
da humanidade.6
No caso do movimento escolanovista, a ênfase recai sobre a
expressão do “aprender a aprender”, tão característica dessa concepção
liberal de educação e que, arrisco-me aqui afirmar, trata-se de um barão
de Münchhausen7 na educação, dado que, desse lugar, o processo peda-
52
gógico estará centrado no indivíduo. Resumidamente, é a criança quem
dá a direção do processo pedagógico. Todo o ensino, nada mais é do
que a satisfação dos interesses da criança. Esse princípio escolanovista
permeia vários documentos oficiais nacionais e internacionais, como são
os PCNs no Brasil e o Relatório da Comissão Internacional da Unesco.8
O lema “aprender a aprender” evoca, em última instância, um
indivíduo capaz de aprender sozinho (puxa-se pelos cabelos e salva-se
a si e ao seu cavalo). Um indivíduo multifacetado porque constituído na
particularidade das realidades em que se encontra imerso e onde desen-
volveu habilidades singulares que devem ser, na escola, tomadas como
princípio fundamental. Contudo, é um indivíduo sem história, fluido,
imediato, descontextualizado em termos de genericidade humana.
Outro elemento importante, a meu ver, decorrente do lema
“aprender a aprender”, é a secundarização dos processos de media-
ção social e pedagógica como elementos da ação educativa. Se o
indivíduo aprende sozinho, dispensa-se a intencionalidade típica da
prática pedagógica. Decorre daí uma concepção de que ao professor
ou professora não cabe a teorização e o planejamento do processo
educativo. Da mesma forma, aqui, as bases históricas da sociedade e
do conhecimento não importam. É como se a escola, por ela própria,
desse conta da resolução dos problemas sociais. Desloca-se a preocu-
pação do eixo político, histórico e social para o âmbito reducionista
da técnica, ou seja, o problema passa a ser visto como decorrente de
processos técnico-pedagógicos. Não sem coincidência, pois se observa
um forte argumento em favor da educação como o grande e único
fator de mudança social.
53
Situar a pedagogia freireana e a psicologia histórico-cultural
nesse breve esboço contextual, não apenas como contrapontos teóricos
e epistemológicos, mas também como contrapontos sociopolíticos
para colocar a ciência a serviço da efetiva transformação das relações
sociais é afirmar que ambas as teorias se deslocam do eixo teórico-
-epistemológico e ideológico que articula os diferentes tempos his-
tóricos de maneira relativamente hegemônica.
Quando se pensa e se concebe o homem – o humano – como
síntese de relações sociais, compreende-se a constituição desse sujeito
como uma complexidade que reúne da herança filogenética aos pro-
cessos de atividade própria do gênero humano. Uma trama que, simul-
taneamente, revela e constitui formas específicas de funcionamento
psicológico e explicita, sugere, aponta princípios fundamentais para a
prática pedagógica alicerçada na crença de que o avanço do homem
está, também, na ampliação das suas possibilidades de reflexão sobre
o próprio fazer. E mais, compreende que nesse pensar sobre a práxis
desenvolvem-se e tomam forma modos cada vez mais complexos de
atividade consciente.
Ainda mais, tanto para a pedagogia freireana quanto para a
psicologia histórico-cultural, diferentemente das concepções de cunho
positivista no âmbito da pedagogia e da psicologia – cuja crença
define um sujeito fragmentado e a-histórico –, o sujeito humano é
uma totalidade complexa e articulada, constituída no conjunto das
relações sociais.
Aproximar essas duas teorias, compreender a especificidade de
cada uma e as possibilidades de encontro de ambas implica a leitura,
ainda que breve, das obras de Paulo Freire e Liev S. Vigotski e seus
colaboradores, particularmente Alexander Luria e Alexei Leontiev,
situando-as como aporte teórico-epistemológico, mas também como
postura ética e política. Esta tarefa procuro cumprir no que segue.
54
Entre Freire e Vigotski: o (des)encontro e o diálogo
9. Não cabe nos limites deste estudo um resgate biográfico de Paulo Freire. O que
pode ser facilmente consultado em Gadotti (1989), ou nas palavras registradas
pelo próprio Paulo Freire nas suas inúmeras obras. No entanto, o que parece
válido e necessário registrar são alguns fragmentos que, mais do que contar a
história desse professor brasileiro, ajudem a perceber a grandiosidade de sua
contribuição para o conhecimento humano. Por isso, optei por trabalhar de
55
retomada dos perfis desses pensadores, as imagens que se fazem para
mim a partir de seus escritos, do modo como olham e elaboram suas
experiências como homens, fazedores de ciência, teóricos, sujeitos hu-
manos ativos cuja temporalidade não se reduz à existência mesma de
cada um, mas se estende pela história da humanidade, e que, sobretudo,
se fazem marcas indeléveis nos processos formativos daqueles que, de
um ou de outro modo, continuam dando prosseguimento às suas obras.
Pontuar o diálogo entre Freire e Vigotski implica, nos parâmetros
deste estudo, observar e explicitar, o máximo possível, aspectos desses
dois perfis que, diferentes, encontram-se para conversar e desnudar
as possibilidades de comunhão inerentes àquilo que disseram e que
fizeram na e pela humanidade, a partir de lugares distintos também
em termos de área do conhecimento: um da pedagogia, outro da psi-
cologia. Nesse sentido, é preciso lembrar que
56
[...] o diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encon-
tro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos
endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não
pode reduzir-se a um ato de depositar idéias de um sujeito no outro,
nem tampouco tornar-se simples troca de idéias a serem consumidas
pelos permutantes. [...] Não é também discussão guerreira, po-
lêmica, entre sujeitos que não aspiram a comprometer-se com
a pronúncia do mundo. [...] Porque é encontro de homens que
pronunciam o mundo, não deve ser doação do pronunciar de uns
a outros. É um ato de criação. (Freire, 1987, p. 79, grifos nossos).
57
[...] não fui um menino desesperadamente só nem desamado.
Jamais me senti ameaçado, sequer, pela dúvida em torno da
afeição de meus pais entre si e de seu amor por nós, por meus
irmãos, por minha irmã e por mim. E terá sido essa segurança
o que nos ajudou a enfrentar, razoavelmente, o real problema
que nos afligiu durante grande parte de minha infância e ado-
lescência – o da fome. Fome real, concreta, sem data marcada
para partir, mesmo que não tão rigorosa e agressiva como outras
fomes que conhecia. (Freire, 2003, p. 39).
11. De modo particular, Paulo Freire vive essa tensão nos anos de atuação como educador
no Serviço Social da Indústria. Tensão que Paulo, mais que viver, elaborou como
aprendizado e como fonte – matéria-prima – para a organização de sua proposta
de uma pedagogia da libertação. Graças a essa tensão dialética – categoria que esse
pensador utilizou ao longo de sua vida –, Freire percebe, compreende e elabora
criticamente a contradição estrutural da sociedade e, mais especificamente, no
caso brasileiro. Percebe a contradição estrutural do populismo como projeto
político que propõe a emergência do povo, mas o faz com vistas a constituir
uma base social de sustentação político-eleitoral. Uma leitura a esse respeito
encontra-se em Pedagogia dialógica, de José Eustáquio Romão, editado pela
Cortez e pelo Instituto Paulo Freire. Ainda, muito da elaboração de Freire sobre
sua experiência de abandonar a advocacia para tornar-se educador pode ser vista
em Pedagogia da Esperança, editado pela Paz e Terra.
58
ou, como ele gosta de referir, “re-vendo” a realidade na qual estava
ele próprio inserido, só que agora com olhos de docente. Depois, nos
movimentos sociais, nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), no
exílio, aprendendo e ensinando com camponeses, operários, militantes
de esquerda, marxistas ortodoxos, cristãos ortodoxos. Do Brasil afetado
pelo golpe militar de 1964 para o Chile de Salvador Allende, e daí
para o mundo – Suíça, Guiné Bissau, Nova Iorque e outros muitos
lugares –, sempre revendo-se a si mesmo como homem de práxis que
foi e reafirmando seus votos e sua crença na potencialidade humana,
para construir caminhos emancipatórios.
Um Paulo que se abre completa e irrestritamente para ensi-
nar que ser educador é muito mais do que dominar um conteúdo e
expô-lo para outras pessoas que “não o dominam”. Ser educador é
compreender-se sujeito histórico e contraditório, inacabado,12 com
possibilidades e limites, como alguém que sabe, mas não sabe tudo,
alguém que ensina e, ao fazê-lo, aprende porque o faz no diálogo com
o outro que também sabe e que também ensina ao dizer o seu saber.
Um diálogo em que se cruzam saberes mediados, de um lado, pelo
conjunto de relações que se objetivam em cada sujeito, de outro, pela
rigorosidade metódica inerente à práxis pedagógica comprometida
com o processo educativo como espaço de emancipação humana.
A pedagogia freireana, como indica a própria nomenclatura,
tem na educação seu principal objeto referido ao compromisso com a
emancipação de sujeitos humanos, cuja existência se encontra marcada
por contextos de desrespeito à vida e à vivência ativa da cidadania. O
12. Uma importante síntese dos saberes implicados no fazer docente é feita por
Paulo Freire em Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa,
editado pela Paz e Terra.
59
sujeito da pedagogia de Freire, por sua vez, não é um sujeito passivo,
moldado pelas pressões do meio, mas um sujeito que significa, com as
armas que tem, a experiência vivida; é dessa significação que se extraem
os conteúdos libertadores para a práxis pedagógica.
Originária de um contexto social e político marcado pela repres-
são de governos militares, a pedagogia freireana nasce comprometida
com a libertação dos povos oprimidos do mundo e não apenas do Brasil
ou da América Latina. Nasce também batizada como ferramenta de
luta de diferentes espaços educativos – não se reduzindo ao espaço
escolar. E encontrará, de modo especial na América Latina, no movi-
mento da igreja conhecido como teologia da libertação, e em governos
democráticos e populares espalhados pelo mundo,13 um terreno fértil
de diálogo e construção efetiva de espaços de emancipação.
Mas não é só isso, o que já não é pouco em termos de organi-
zação e prática pedagógica. A educação, tal como definida por Paulo
Freire, encontrará sua identidade à medida que assumir um caráter
próprio de crítica e autocrítica permanente. Por isso, não pode ser uma
educação que se reduza, que se feche em si mesma, gerando assim o
inverso daquilo que preconiza. É preciso perguntar sempre para quê?
Por quê? A favor de quê/quem? Contra quê/quem? – um tal conteúdo
se justifica para o processo pedagógico, ensina-nos Freire.
Definir-se, pois, como uma pedagogia crítica implica, no sentido
freireano, análise séria e o mais profunda possível – o que subentende
uma rede de conhecimentos que se cruzam e dialogam –, das condições
de vida das populações, de modo particular das populações pobres.
13. É o caso, por exemplo, da Guiné-Bissau e do Chile, onde, exilado, Freire participa
ativamente do movimento de construção de formas mais justas e igualitárias de
organização social.
60
Implica incorporação dos saberes, das significações do povo, manifestas
pela sua palavra e construídas no espaço social que ocupa na trama de
relações maiores, de modo crítico, não reificado.
Implica, ainda, observância de reais possibilidades de mudança
a partir dos espaços reais em que se travam as relações, tanto por parte
de quem faz a prática pedagógica quanto dos que, através dela, por
causa dela e com ela, fazem-se num processo mútuo, em que quem sabe
ensina e quem não sabe aprende. Mas, como todos tomam ciência do
seu inacabamento,14 sabem que o que sabem não é nunca o bastante e
por isso, ao ensinar o que sabem, aprendem. Ao passo que quem está
na condição de aprendiz percebe-se, porque movido pela necessária
reflexão sobre a vida, como alguém que ensina.
Freire construiu uma teoria pedagógica crítica que supera a
própria pedagogia. Como sublinha Romão (2002, p. 26),
61
espraiam, não apenas no Brasil,15 de modo especial nos processos vol-
tados para a educação de jovens e adultos, como também no exterior,16
onde um significativo número de intelectuais têm assumido a tarefa
de difundir o legado da pedagogia freireana, além de propor novos
desafios ancorados nessa herança teórica e metodológica.
Se, de um lado, tenho um Paulo Freire que é a um só tempo pessoa,
educador e político, de outro, na arquitetura da psicologia histórico-
-cultural, encontro um Vigotski empenhado na construção de uma
psicologia do homem concreto. Um psicólogo comprometido com a
vivência plena das condições político-sociais e culturais de uma sociedade
pós-revolucionária, focada na tensão gerada pela necessidade de conso-
lidar a revolução socialista de 1917. Mas também ele profundamente
atento ao debate e ao processo de produção da ciência de seu tempo.
Vigotski nasceu em uma pequena cidade da região nordeste da
República Bielorussa chamada Orsha, em 5 de novembro de 1896, e
faleceu em 1934, aos 37 anos de idade. Viveu sua infância, adolescên-
cia e juventude em Gomel, cidade localizada a sudeste daquele país,
caracterizada por um intenso movimento cultural e por ser o lugar de
confinamento dos judeus na Rússia czarista.
Filho de judeus, Lev Vigotski (o segundo de oito irmãos) herda a
rigorosidade que se impõe a essa opção religiosa no contexto de então.
62
Por conta disso, foi alfabetizado em casa. Aprendeu alemão com a mãe
e recebeu educação primária pelas mãos de “um tutor particular que
tinha sido exilado na Sibéria devido ao seu ativismo revolucionário”
(Blanck, 1996, p. 32).
Desde tenra idade, Vigotski experimentou nas relações familiares
um clima de muita leitura, cultivo intelectual e artístico, conversa e
acolhimento. Seu preceptor se utilizava de técnica de ensino embasada
em complexos diálogos socráticos (cf. Blanck, 1996). Blanck observa
que talvez esteja aí o prenúncio do que mais tarde se tornaria elemento-
-chave na teoria psicológica construída por Vigotski: os estudos sobre
mediação semiótica, pensamento e palavra.
O autor ainda enfatiza que a infância e a juventude marcadas
pela participação ativa no movimento cultural típico de seu contexto,
possivelmente, levaram Vigotski a inclinar-se para as áreas de arte e
literatura. Aos dezenove anos conclui o ensaio sobre Hamlet iniciado
na adolescência. Esse ensaio compõe o livro Psicologia da Arte.
O cuidado de sua família com a educação dos filhos o conduziu
desde cedo para escolas de boa qualidade acadêmica que, somadas
à vivacidade tão própria dele, provavelmente fruto de processos mi-
crogenéticos de sua experiência pessoal, fomentaram a emergência do
grande intelectual e coconstrutor de ideias que foi e cujo legado é, ainda
hoje, fonte de inspiração para estudos em psicologia e em educação.
Como ele mesmo escreve: todo inventor, até mesmo um gênio, sempre
é consequência de seu tempo e ambiente (Vigotski, 1987).
Como Freire, Vigotski cursou direito – depois de desistir da
medicina. Ao mesmo tempo, aprofundou estudos em filosofia, psi-
cologia, arte e literatura. Estudou várias línguas e, dentro dos limites
experimentados pelos judeus de seu país, destacou-se como homem,
63
como intelectual e como cidadão.17 Após sua formatura em duas
universidades, retornou a Gomel e desenvolveu sua experiência como
professor ensinando literatura e russo, psicologia e lógica.
A trajetória desse pensador – que desde muito jovem se reve-
la interessado e estudioso entusiasta – é traduzida por aqueles que
conviveram e seguiram dando continuidade à sua obra como sendo a
trajetória de um gênio. O destaque sempre fica por conta das amplas
habilidades, da rapidez de pensamento, da aguçada memória, da pro-
fundidade e do respeito com que tratava os temas que lhe interessavam.
Contudo, vale observar, como lembra Valsiner (1996), que nenhum
cientista pode criar o novo do nada. Novas ideias articulam-se aos
contextos que as cercam e é preciso vê-las como produto de processos
sociais coletivos, da história social em que se dá o percurso de vida do
cientista, das relações interpessoais específicas aos processos contex-
tuais mais amplos.
Vigotski viveu plenamente a Rússia pós-revolucionária de 1917,
época de grandes transformações no seu lugar. Juntamente com Luria
e Leontiev, compôs um grupo de estudiosos cuja tarefa central era
desenvolver uma psicologia marxista, fundamentada nos princípios
do materialismo histórico-dialético.
A psicologia histórico-cultural busca, desde sua origem, além
da produção de uma nova concepção acerca do funcionamento psi-
cológico humano, a superação da clássica dicotomia inerente às visões
17. Na Rússia czarista, apenas 3% das vagas nas universidades eram oferecidas aos
judeus.
64
mecanicistas da psicologia.18 A exemplo do pensamento, da análise
e crítica sociológica marxista, Vigotski reivindicava que a psicologia
deveria ter “o seu próprio o capital ”.
18. Há uma gama de excelentes autores que explicitam essa crise da psicologia.
Dentre eles, sugere-se a leitura de Palangana (1996); Blanck (1996); Gonçalves
(2002); Bock (1995, 2002); e Bock, Gonçalves e Furtado (2002).
65
Mas a posição política e a coerência, a seriedade e o compro-
misso com que assumia a concepção materialista dialética o impe-
diram de fazer ciência com cunho meramente ideológico, como era
o desejo de algumas personalidades mais enfáticas da revolução, de
modo especial durante o governo de Stalin.19 E essa atitude de fir-
meza e coerência teórico-epistemológica levou Vigotski ao exílio em
seu próprio país. Foi interrogado (idos de 1932) pelos ideólogos do
partido comunista que também se empenharam na investigação do
conteúdo ideológico supostamente presente no trabalho de Vigotski.
O crime: não se referir, em seus escritos, “[...] a conceitos considerados
importantes pela visão de mundo comunista, tais como: classe social,
trabalho, meios de produção, mais valia e também por apresentar como
central o conceito de cultura que era considerado abstrato.”20 (Freitas,
1998, p. 18). A acusação: sua teoria foi considerada não marxista. A
sentença: sua obra foi proibida em toda a então União Soviética. Anos
mais tarde (1956), no governo Krushev, seus escritos foram reunidos
e novamente publicados (Freitas, 1998).
19. Para uma leitura mais aprofundada sobre a trajetória de Vigotski, ver obras
referenciadas nas notas anteriores.
20. Note-se que essa acusação, efetivametne, não procede. Pois, ao contrário do
que preconiza o conteúdo de tal fato, os conceitos centrais do materialismo
histórico-dialético constituem, sem dúvida, uma base coesa e coerente dos
estudos desse autor acerca do psiquismo humano. Basta uma leitura atenciosa
de suas obras para se encontrar ali, por inúmeras passagens, a forte referência ao
trabalho como fator de desenvolvimento humano no campo psicológico. Mesmo
com relação às classes sociais, Vigotski faz sempre questão de lembrar que a
constituição do sujeito se dá na trama social que ele experimenta a partir do
lugar social que ocupa nessa mesma trama. Vide “A formação social da mente”,
“A construção do pensamento e da linguagem”, “Obras escogidas IV: psicologia
infantil”, entre outras. Neste livro mesmo, procuro resgatar esse fundamento do
trabalho e das relações sociais, de modo especial no capítulo 2.
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Contudo, Vigotski persevera na tarefa que impõe a si mesmo.
Com base nas teses do materialismo histórico-dialético, constrói sua
teoria e conclui que as formas superiores de pensamento presentes no
homem são produto da experiência histórico-cultural. Nesse sentido,
argumenta que a gênese do comportamento consciente deve ser bus-
cada nas relações sociais que o sujeito mantém com o mundo exterior,
na atividade prática. O que significa conceber o funcionamento psi-
cológico do ser humano não como herança de forças transcendentais
divinas, como acreditavam os idealistas, tampouco como mero resul-
tado das pressões do meio, como pregavam os empiristas ou adeptos
do materialismo mecanicista, mas sim como resultado de uma síntese
dialética entre a filogênese, a ontogênese e a sociogênese. Como escre-
vem Vigotski e Luria (1996, p. 151) em A história do comportamento:
o macaco, o primitivo e a criança:
67
compreensão de como os indivíduos pertencentes a uma determinada
cultura alcançam o controle do sistema de signos correspondentes e
como eles chegam a ser internalizados.
Blanck (1996, p. 43, grifos nossos) sintetiza as conclusões de
Vigotski ao dizer que, nos parâmetros da psicologia histórico-cultural,
68
Nascido com as características de sua espécie, cada indivíduo
humano percorre o caminho da ontogênese informado e ali-
mentado pelos artefatos concretos e simbólicos, pelas formas
de significação, pelas visões de mundo fornecidas pelo grupo
cultural em que se encontra inserido. A imensa multiplicidade
de conquistas psicológicas que ocorrem ao longo da vida de cada
indivíduo gera uma complexa configuração de processos de de-
senvolvimento que será absolutamente singular para cada sujeito.
[...] Os processos microgenéticos constituem, assim, o quarto
plano genético, que interage com os outros três, caracterizando
a emergência do psiquismo individual no entrecruzamento do
biológico, do histórico, do cultural. (Oliveira, 1999, p. 10).
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dos processos de desenvolvimento de cada sujeito, consiste em
constante recriação da cultura e negociação interpessoal. Se
assim não fosse, teríamos culturas sem história e geração de
sujeitos idênticos em cada grupo cultural. (Oliveira, 1999, p. 10).
70
materialismo histórico, além da seriedade com que encara a produção
do conhecimento, o fazer ciência.
Vigotski e Freire são diferentes, uma vez que vivem contextos
sociais e políticos diferentes e olham o desenvolvimento humano a
partir de lugares teóricos distintos.
O primeiro (1896-1934), desde a Rússia pós-revolução socialista
e sob a hegemonia do pensamento marxista – ao menos no âmbito das
políticas a serem implantadas pelo processo revolucionário –, torna-se
o principal expoente da abordagem histórico-cultural de psicologia
arraigada nos fundamentos do materialismo histórico-dialético. Além
do comprometimento político com a então República Socialista Sovi-
ética, Vigotski tomou para si a responsabilidade de adentrar na crise
que caracterizava a psicologia da época. Na década de 1920, período
em que Freire nascia, Vigotski (e a escola marxista de psicologia)
já tomava posição e elaborava sua contundente crítica às vertentes
idealistas e empiristas da psicologia, cujas marcas na educação se
fizeram sentir ao longo do processo histórico de consolidação dos
ideais revolucionários burgueses que marcaram a modernidade, como
já destaquei anteriormente.
O segundo (1921-1997), desde o Brasil e a América Latina,
na vivência de infância e adolescência experimentadas na pobreza, de
juventude e vida adulta alicerçadas na postura crítica e em práticas
políticas emancipatórias, na formação e na construção de uma con-
vicção humanista vinda primeiro do humanismo cristão e depois do
marxismo,21 torna-se uma marca perene na educação comprometida
71
com a transformação dos sujeitos e da sociedade. Na década de 1930 –
período em que Vigotski experimenta a crise de saúde que o levará à
morte –, Freire ainda vivia sua juventude. Anos mais tarde, o Brasil
e a América Latina testemunham a emergência de um educador que
tece severas críticas às correntes psicológicas que Vigotski também
condenara em seu tempo. Freire desenvolve o conceito de educação
bancária, para demonstrar com clareza as consequências funestas das
teorias behavioristas na organização dos processos pedagógicos e rituais
educativos escolares em geral.22
As diferenças entre esses pensadores podem ser melhor obser-
vadas tomando como referência as categorias teóricas que articulam
o tema desta tese: trabalho, consciência e linguagem.23
Vigotski, do lugar da psicologia e na adesão visceral ao seu
contexto político, social e epistemológico, olha para o desenvolvimento
psicológico do ser humano. Isso significa que seu argumento em favor de
uma concepção materialista histórico-dialética da psicologia trará as
marcas dessa especificidade. Assim, os conceitos, as categorias através
72
das quais articula a psicologia ao seu fundamento teórico-filosófico
traduzem o componente referido a essa especificidade.
A psicologia histórico-cultural desenvolve o argumento na de-
fesa de que tais processos – trabalho, consciência e linguagem – têm
origem sempre na dinâmica das relações socioculturais, o que leva
essa teoria ao trato cuidadoso de alguns princípios do materialismo
histórico-dialético que influenciarão sobremaneira a construção das
teses vigotskianas acerca do desenvolvimento psicológico.
Assim, mesmo observando a realidade e a trama das relações
sociais como foco privilegiado para o desenvolvimento de funções
psicológicas superiores,24 Vigotski observará que o desenvolvimento
de tais funções também se inviabilizaria sem o substrato biológico que
as sustenta de algum modo.
Daí que essa abordagem concebe o cérebro humano como sendo
esse substrato biológico do funcionamento psicológico e, coerentemen-
te em relação aos fundamentos da dialética materialista, como órgão
funcional de grande plasticidade, ou seja, em movimento. A referência
à realidade ou aos processos culturais, aqui, tem a ver com a crença
de que eles demarcam as características próprias do desenvolvimento
psicológico dos sujeitos inseridos em sistemas interativos mediados
pelos artefatos materiais e simbólicos do seu grupo cultural.
24. Funções psicológicas superiores. Conceito desenvolvido por Vigotski para refe-
rir-se ao tipo especificamente humano de funcionamento psicológico. Trata-se
de funções como abstração, atenção voluntária, memória lógica (mediada),
compreensão, classificação, seriação, análise, síntese etc. Elaborações cognitivas
que só acontecem graças aos processos de mediação social e fundamentalmente
pelo sistema semiótico ao qual os sujeitos se encontram imersos. As funções
psicológicas superiores têm, portanto, origem social. Nas palavras de Vigotski
(1996a), toda função psicológica superior foi antes uma relação social.
73
Ao passo que, desde a pedagogia freireana, as categorias de tra-
balho, consciência e linguagem assumem um viés socioantropológico
que, muito embora também referenciado no campo filosófico do mate-
rialismo histórico-dialético, analisa o ser humano tendo como aspecto
central não apenas a relação homem-mundo, mas o lugar social a partir
do qual desenvolve sua práxis e onde as categorias citadas formam um
amálgama importante para a compreensão do sujeito. É na práxis e
como ser de práxis que o homem desenvolve a consciência de si no
mundo, e é desse lugar que significa a experiência e a comunica como
expressão do seu pensamento-linguagem.
Mas, por outro lado, esses pensadores se assemelham de modo
peculiar quando observados a partir do modo como se colocam nos
contextos com os quais compartilharam sua experiência de vida e
através dos quais se constituíram como intelectuais e como homens.
Embora tenham vivido tempos históricos e tempos de vida diferentes,
a intensidade com que viveram marca um primeiro aspecto importante
para o diálogo pretendido. Trata-se de personalidades profundamente
comprometidas com o seu tempo.
Mais, ainda, Vigotski desde a psicologia e Freire desde a peda-
gogia convergem na concepção de que a consciência humana25 tem
sua origem nos processos de vida histórico-culturais. Explicitam a
filosofia marxista na origem da concepção de consciência gerada nas
74
práticas sociais dos sujeitos, circunstanciados pelos modos de orga-
nização das relações de trabalho e pelos modos de apropriação das
produções simbólicas produzidas nas relações sociais. A partir desse
princípio básico, ambos enfocam sobremaneira o papel do trabalho e
da linguagem no processo de desenvolvimento humano.
A ideia de que as formas individuais de consciência têm origem
na apropriação de formas coletivas de atividade não é a única que
aproxima esses dois pensadores nas bases do materialismo histórico-
-dialético. Vigotski e Freire compartilham também a crença de que o
funcionamento intelectual humano se forma e se transforma mediante
a apropriação ativa do sujeito em situação de interação, de troca, de
convívio, de atividade coletiva, e o faz mais e melhor à medida que a
atividade coletiva de reflexão estiver vinculada às práticas sociais dos
sujeitos. Ambos comungam ainda a concepção de que o funcionamento
mental ou cognoscitivo encontra seus fundamentos na história cultural.
Além disso, a transformação das práticas educativas institucio-
nalizadas é, tanto para Freire quanto para Vigotski, condição sine qua
non para fazer desse lugar um espaço rico para o desenvolvimento de
formas de organização e funcionamento da consciência. A educação
como espaço dialógico, a cultura e as experiências de vida concreta
como pontos de partida e de chegada para o desenvolvimento da
consciência renderam a ambos mais uma coincidência: a censura
de suas obras por setores sociais e políticos detentores do poder nas
épocas por eles vividas.
O que se tem, então, é uma pedagogia e uma psicologia que, em
tempos diferentes, se caracterizam, entre outros aspectos, não menos
importantes, pela ligação visceral com as questões colocadas pelo
movimento do seu contexto histórico e social, comprometidas com
a produção de uma ciência que se define em favor de concepções de
75
mundo e de ser humano voltadas para a justiça e para formas menos
excludentes de humanização.
Se, por um lado, Vigotski e a teoria psicológica que formulou
em conjunto com Luria e Leontiev, entre outros, têm claramente o
materialismo histórico-dialético como moldura filosófica, por outro,
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Sobre a autora
Coleção Debates
Formato 16 X 23 cm
Tiragem 800
Publicação 2012
www.unochapeco.edu.br/argos
O diálogo entre Lev S. Vigotski e Paulo Freire,
proposto neste livro, é, antes de tudo, um
diálogo entre duas ciências, cujas matrizes ISBN 978-85-7897-040-6
teóricas filiam-se a concepções críticas
comprometidas com práticas transformadoras
das relações sociais e dos sujeitos feitos e
fazedores dessas relações: a psicologia
histórico-cultural e a pedagogia freireana. Isso
traduz, entre outras coisas, as possibilidades
que esse diálogo tem de fundamentar a
organização de processos pedagógicos no
âmbito da práxis educativa comprometida
com a transformação social.