Kwame Nkrumah
1967
Primeira Edição: originalmente lido no Seminário Africano que ocorreu no Cairo, sob o convite de
dois órgãos, o “At-Talia” e o “Problemas da Paz e Socialismo”.
Fonte: LavraPalavra
Tradução: Gabriel Landi Fazzio da versão em inglês
https://www.marxists.org/subject/africa/nkrumah/1967/african-socialism-revisited.htm
HTML: Fernando Araújo.
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O termo “socialismo” tornou-se uma necessidade nos discursos de palanque e escritos políticos de
líderes africanos. É um termo que nos une no reconhecimento de que a restauração dos princípios
sociais humanistas e igualitários da África demandam o socialismo. Todos nós, portanto, embora
seguindo políticas bastante contrastantes na tarefa de reconstruir nossos vários Estados-nações,
ainda usamos o “socialismo” para descrever nossos respectivos esforços. “A questão deve, portanto,
ser enfrentada: que significado real o termo retêm no contexto da política africana contemporânea?”
Eu alertei sobre isso em meu livro Consciencism (Londres e Nova York, 1964, p. 105).
E, no entanto, o socialismo na África de hoje tende a perder seu conteúdo objetivo em favor de uma
terminologia diversionista e em favor de uma confusão geral. A discussão centra-se mais sobre os
vários tipos possíveis de socialismo do que sobre a necessidade de desenvolvimento socialista.
Alguns líderes políticos africanos e pensadores certamente usam o termo “socialismo” como
deveria, em minha opinião, ser utilizado: para descrever um conjunto de propósitos sociais e as
políticas econômicas, padrões de organização, estruturas do estatais e ideologias que podem levar à
concretização esses propósitos. Para tais líderes, o objetivo é remodelar a sociedade africana na
direção do socialismo; repensar a sociedade africana de tal maneira que o humanismo da vida
tradicional Africano reafirme a si próprio em uma comunidade tecnicamente moderna.
Consequentemente, o socialismo na África introduz uma nova síntese social em que a tecnologia
moderna é reconciliada com os valores humanos, na qual a sociedade tecnicamente avançada é
realizada sem os espantosos malefícios sociais e profundas cisões da sociedade capitalista
industrial. Isso porque um verdadeiro desenvolvimento econômico e social não pode ser promovido
sem a socialização real dos processos produtivos e distributivos. Os líderes africanos que acreditam
nestes princípios são os socialistas na África.
Há, no entanto, outros líderes políticos africanos e os pensadores que usam o termo “socialismo”
porque acreditam que o socialismo, nas palavras de Chandler Morse, iria “suavizar o caminho para
o desenvolvimento econômico”. Torna-se necessário para eles empregar o termo em um “esforço
carismático para conseguir apoio” para políticas que não promovem realmente o desenvolvimento
econômico e social. Os líderes africanos que acreditam nestes princípios, são, supostamente, os
“Socialistas Africanos”.
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É interessante lembrar que antes da cisão na Segunda Internacional, o marxismo era quase
indistinguível da social-democracia. Na verdade, o Partido Social-Democrata alemão era mais ou
menos o guardião da doutrina do marxismo, e tanto Marx quanto Engels apoiaram esse partido.
Lenin, também, tornou-se membro do Partido Social Democrata. Após a ruptura da Segunda
Internacional, no entanto, o significado do termo “social-democracia” foi alterado e tornou-se
possível traçar uma distinção real entre socialismo e social-democracia. Uma situação semelhante
ocorre na África. Alguns anos atrás, os líderes políticos africanos e escritores usaram o termo
“Socialismo Africano” a fim de rotular as formas concretas que o socialismo poderia assumir na
África. Mas a realidade das diferentes e inconciliáveis propostas políticas, sociais e econômicas
sendo almejadas pelos estados africanos fizeram do termo “Socialismo Africano”, hoje, algo sem
sentido e irrelevante. Parece ser muito mais intimamente associada com a antropologia do que com
a economia política. “Socialismo Africano” já chegou a adquirir alguns dos seus maiores
divulgadores na Europa e América do Norte precisamente por causa de seu charme
predominantemente antropológico. Seus publicistas estrangeiros incluem não só os social-
democratas remanescentes da Europa e da América do Norte, mas outros intelectuais e liberais que
se encontram mergulhados eles próprios na ideologia da social-democracia.
Não foi por acaso, deixe-me acrescentar, que o Colóquio de Dakar, em 1962, valorizou tanto o
“Socialismo Africano”, mas as incertezas quanto ao significado e políticas específicas do
“Socialismo Africano” levaram alguns de nós a abandonar o termo, porque ele falha em expressar o
seu significado original e porque tende a obscurecer o nosso compromisso socialista fundamental.
Hoje, a expressão ” Socialismo Africano” parece se alinhar à visão de que a sociedade tradicional
africana era uma sociedade sem classes, imbuída do espírito de humanismo, e expressa uma
nostalgia por esse espírito. Tal concepção do socialismo produz uma imagem fetichista a sociedade
comunal africana. Mas essa idílica sociedade sem classes africana (em que não havia ricos nem
pobres) que desfrutaria de uma anestesiada serenidade, é certamente uma simplificação fácil; não há
nenhuma evidência histórica ou mesmo antropológica da existência de tal sociedade. Temo que a
realidade das sociedades africanos fosse um pouco mais sórdida.
Não obstante, ainda se poderia argumentar que a organização básica de muitas sociedades africanas
em diferentes períodos da história manifesta um certo comunalismo e que a filosofia e os propósitos
humanistas por trás dessa organização são dignos de serem retomados. A comunidade em que cada
um via o seu bem-estar no bem-estar do grupo certamente foi louvável, mesmo que a maneira pela
qual o bem-estar do grupo fosse perseguido não contribua para os nossos propósitos. Assim, o que o
pensamento socialista na África deve retomar não é a estrutura da “sociedade tradicional africana”,
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mas o seu espírito, porque o espírito do comunitarismo está cristalizado em seu humanismo e em
sua reconciliação do progresso individual com o bem-estar do grupo. Mesmo se houver escassas
evidências antropológicas para reconstituir a “sociedade tradicional africana” com precisão, ainda
podemos recuperar os ricos valores humanos desta sociedade. Em suma, uma abordagem
antropológica da “sociedade tradicional africana” carece demais de comprovação; mas uma
abordagem filosófica está em um terreno muito mais firme, e torna viável a generalização.
Um dos apuros da abordagem antropológica é que há alguma disparidade de pontos de vista sobre
as manifestações da “ausência de classes” na “sociedade tradicional africana”. Enquanto alguns
afirmam que a sociedade era baseada na igualdade dos seus membros, outros sustentam que ela
continha uma hierarquia e divisão de trabalho na qual a hierarquia – e, portanto, o poder – estava
fundado em valores espirituais e democráticas… Claro, nenhuma sociedade pode basear-se na
igualdade de seus membros, embora as sociedades possam ser fundadas sobre o igualitarismo, o que
é algo bem diferente. Da mesma forma, uma sociedade sem classes que, ao mesmo tempo, se
regozija em uma hierarquia de poder (como distinta da autoridade) deve ser contabilizada como
uma maravilha de requinte sociopolítico.
Sabemos, é claro, que a derrota do colonialismo e até mesmo neocolonialismo não irá resultar no
desaparecimento automático dos padrões importados de pensamento e de organização social. Isso
porque esses padrões criaram raízes e são, em diferentes graus, características sociológicas de nossa
sociedade contemporânea. Nem um simples retorno à sociedade comunalística da África antiga
pode oferecer uma solução. Porque defender um retorno, por assim dizer, para a rocha da qual
fomos talhados é um pensamento encantador, mas estamos diante de problemas contemporâneos,
que surgiram a partir da subjugação política, da exploração econômica, do atraso educacional e
social, do aumento da população, do contato com os métodos e produtos industriais, das modernas
técnicas agrícolas. Isso – bem como uma série de outras complexidades – não pode ser resolvido
por qualquer mera sociedade comunalística, não importa o quão sofisticada, e quem assim defende
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deve se ver capturado em dilemas insolúveis do tipo mais excruciante. Todas as provas disponíveis
da história sociopolítica revelam que tal retorno a um status quo anterior é algo sem qualquer
precedente na evolução das sociedades. Não há, de fato, qualquer razão teórica ou histórica para
indicar que isso é possível.
Quando uma sociedade se encontra com outra, a tendência histórica observada é que a aculturação
resulta em um movimento de saldo progressivo, um movimento no qual cada sociedade assimila
certos atributos úteis da outra. A evolução social é um processo dialético; ele tem altos e baixos,
mas, no cômputo geral, ele sempre representa uma tendência ascendente.
Tanto a civilização islâmica quanto o colonialismo europeu são experiências históricas da sociedade
tradicional africana, profundas experiências que mudaram permanentemente a tez da sociedade
tradicional africana. Eles introduziram novos valores e uma organização social, cultural e
econômica na vida africana. As sociedades africanas modernas não são as tradicionais, mesmo se
foram retrógradas, e elas estão claramente em um estado de desequilíbrio socioeconômico. Elas
estão neste estado porque não são ancoradas a uma ideologia estabilizadora.
Senghor tem, em verdade, dado um panorama da natureza do retorno à África. Sua posição é
destacada por declarações, usando algumas de suas próprias palavras: de que o africano é “um
campo de sensações puras”; que ele não mede ou observa, mas “vive” as situações; e que esta forma
de aquisição de “conhecimento” por confrontação e intuição é “negro-africana”; a aquisição de
conhecimento pela razão, “helênica”. Em “Socialismo Africano” [Londres e Nova York, 1964,
pp.72-3], ele propõe:
“Que nós consideramos o negro-africano como ele se defronta com o Outro: Deus, homem, animal,
árvore ou seixo, fenômeno natural ou social. Em contraste com o europeu clássico, o negro-africano
não desenha uma linha entre ele e o objeto, ele não prende pô-lo à distância, nem apenas olha para
ele e o analisa. Depois de segurá-lo à distância, após examiná-lo sem analisá-lo, ele o toma vibrante
em suas mãos, cuidando para não matá-lo ou corrigi-lo. Ele o toca, o sente, o cheira. O negro-
africano é como um daqueles Vermes do Terceiro Dia, um campo de sensações puras… Assim, o
negro-africano se solidariza, abandona a sua personalidade para se identificar com o Outro, morre
para renascer no Outro. Ele não assimila; ele é assimilado. Ele vive uma vida comum com o outro;
ele vive em uma simbiose “.
É claro que o socialismo não pode ser fundado sobre este tipo de metafísica do conhecimento. Para
elucidar, existe uma ligação entre o comunitarismo e do socialismo. O socialismo está para
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comunitarismo como o capitalismo está para a escravidão. No socialismo, os princípios inerentes ao
comunalismo são expressados em circunstâncias modernas. Assim, enquanto o comunalismo em
uma sociedade não-técnica pode ser laissez-faire, deixado livremente a se fazer, em uma sociedade
técnica onde sofisticados meios de produção estão à mão a situação é diferente; pois se os princípios
inerentes ao comunitarismo não recebem uma expressão correlacionada, clivagens de classe
surgirão, que estão relacionadas com as disparidades econômicas e, assim, com as desigualdades
políticas. O socialismo, por conseguinte, pode ser, e é, a defesa dos princípios do comunalismo em
um ambiente moderno; é uma forma de organização social que, guiada pelos princípios inerente aos
comunalismo, adota procedimentos e medidas tornadas necessárias pela evolução demográfica e
tecnológica. Somente no socialismo pode se desenvolver de forma confiável as forças produtivas
dais quais precisamos para o nosso desenvolvimento e ao mesmo tempo garantir que os ganhos de
tais investimentos sejam aplicados para o bem-estar geral.
O socialismo não é espontâneo. Ele não surge por si só. Ele tem princípios palpáveis segundo os
quais os grandes meios de produção e distribuição devem ser socializados se queremos evitar a
exploração de muitos por poucos; isto é, se o igualitarismo na economia deve ser preservado. Países
socialistas na África podem diferir neste ou naquele detalhe das suas políticas, mas essas mesmas
diferenças não devem ser arbitrárias ou sujeitas a caprichos de preferências. Elas devem ser
explicadas cientificamente, como necessidades decorrentes das diferenças nas circunstâncias
particulares dos próprios países.
Existe apenas uma forma de atingir o socialismo: pela elaboração de políticas voltadas para os
objetivos socialistas gerais, cada uma das quais demandando uma forma particular nas
circunstâncias específicas de um determinado estado em um período histórico definido. O
socialismo depende do materialismo dialético e histórico, na visão de que há apenas uma natureza,
sujeita em todas as suas manifestações às leis naturais e que a sociedade humana é, nesse sentido,
parte da natureza e sujeita às suas próprias leis de desenvolvimento.
É a eliminação das fantasias de cada ação socialista que faz do socialismo científico. Supor que
existem socialismos tribais, nacionais ou raciais é abandonar a objetividade em favor do
chauvinismo.