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Revista Eletrônica

Fundação Educacional São José


9ª Edição ISSN:2178-3098

ANÁLISE DA INTERTEXTUALIDADE NO POEMA "É ELA!


É ELA! É ELA! É ELA!" DE ÁLVARES DE AZEVEDO.

Maria José Rezende Campos1

RESUMO

O presente artigo trabalha o conceito de intertextualidade, dando enfoque aos estudos de


Bakhtin e Julia Kristeva, e o emprega em uma análise do poema É ela! É ela! É ela! É ela! de
Álvares de Azevedo. Essa poesia dialoga com textos de Goethe, Shakespeare, Dante e
Petrarca.

Palavras-chave: Intertextualidade. Álvares de Azevedo. Bakhtin. Poesia.

ABSTRACT

This essay explores the concept of intertextuality, focusing on studies of Bakhtin and Julia
Kristeva, and then it is developed in an analysis of Álvares de Azevedo’s poem É ela! É ela! É
ela! É ela!. This poem establishes a dialogue with texts of Goethe, Shakespeare, Dante and
Petrarch.

Keywords: Intertextuality. Álvares de Azevedo. Bakhtin. Poetry.

1
Mestranda em Letras - Área de Concentração em Literatura Brasileira - Centro de Ensino Superior de
Juiz de Fora - CES/JF.
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SECÃO: Artigos Originais
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9ª Edição ISSN:2178-3098

ANÁLISE DA INTERTEXTUALIDADE NO POEMA "É ELA! É ELA! É ELA! É


ELA!" DE ÁLVARES DE AZEVEDO.

1. Introdução

Neste artigo foram feitas considerações sobre a intertextualidade e a análise do poema


"É ela! É ela! É ela! É ela!" do poeta Álvares de Azevedo, publicado postumamente em 1853;
única obra cuja edição o poeta começara a preparar para publicação e para a qual escrevera
prefácios referentes a uma primeira e uma segunda partes.
Pode-se dizer que a Lira se articula em dois níveis: individual, enquanto expressão
dos anseios do poeta e universal, enquanto inter-relação com outros textos; visto que,
enquanto leitor ávido, sua obra é carregada de citações e referências dos “(...) bons escritores
gregos, latinos, ingleses, italianos, alemães e franceses. Especialmente Shakespeare, Tasso,
Byron, Werner, Musset, Victor Hugo e Sand são seus autores prediletos” (ROMERO, 2000,
p. 28).
Álvares de Azevedo, escritor da segunda geração do romantismo brasileiro, que é um
dos maiores representantes do “Mal do Século” e que como os demais poetas desta geração
geralmente descrevem a mulher como pura, intocável. A mulher é endeusada e considerada
heroína.
Porém, neste poema, Álvares de Azevedo desconstrói a mulher idealizada das obras de
Shakespeare, Goethe, Dante e Petrarca, fazendo intertextualidade com Otelo, Os sofrimentos
do jovem Werther, Beatriz e Laura (as duas foram musas inspiradoras de Dante e Petrarca,
respectivamente).

2. Intertextualidade

O que caracteriza a intertextualidade é o diálogo entre dois ou mais textos, ou seja,


quando um texto dialoga com outro, citando-o de modo explícito ou nas entrelinhas.
O conceito de intertextualidade tem sua origem nos formalistas russos Tynianov e
Chklovski, mas é Bakhtin quem normalmente é apresentado como o primeiro teórico a
elaborar o referido conceito.
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Para Bakhtin o processo de leitura não pode ser concebido desvinculado da noção de
intertexto, já que o princípio dialógico permeia a linguagem e confere sentido ao discurso,
elaborado sempre a partir de uma multiplicidade de outros textos.
Segundo Julia Kristeva, um texto é uma réplica de outros textos. A linguagem poética
surge como um diálogo de textos lidos pelo escritor.
Umberto Eco afirma: "descobri o que os escritores souberam (e nos disseram muitas e
muitas vezes): os livros sempre falam sobre outros livros, e toda estória conta uma estória que
já foi contada”. (ECO apud Hutcheon, 1988, p. 166)
Oficialmente é Julia Kristeva que compõe e introduz o termo intertextualidade,
primeiramente em 1966, em sua obra A palavra, o diálogo, o romance, e pela segunda vez,
em 1967, na obra O texto fechado, em que precisa a definição de intertextualidade como
"cruzamento num texto de enunciados tomados de outros textos" (KRISTEVA, 1969, p. 115),
"transposição [...] de enunciados anteriores ou sincrônicos" (KRISTEVA, 1969, p. 133).
É a partir da análise e da difusão da obra de Mikhail Bakhtin que Kristeva produz sua
definição: “todo texto se constrói como um mosaico de citações, todo texto é absorção e
transformação de um outro texto”. (KRISTEVA, 1969, p. 145).
De acordo com Philippe Sollers: “Todo texto situa-se na junção de vários textos dos
quais ele é ao mesmo tempo a releitura, a acentuação, a condensação, o deslocamento e a
profundidade". (SOLLERS, 1971, p. 75).
Bakhtin esclarece:

Nosso ponto de vista não vem absolutamente afirmar uma espécie de


passividade do autor, que faria apenas uma montagem dos pontos de vista
dos outros, das verdades dos outros, que renuncia inteiramente ao seu ponto
de vista, à sua verdade. Não se trata absolutamente disso, mas de uma inter-
relação inteiramente nova e particular entre sua verdade e a verdade de
outrem. O autor é profundamente ativo, mas sua ação tem um caráter
dialógico particular [...]. Dostoievski interrompe frequentemente a voz do
outro, mas não a cobre nunca, não a termina nunca a partir de si, isto é de
uma consciência estrangeira (a sua). (BAKHTIN, 2002, p. 509).

Segundo Barthes:

[...] Todo texto é um tecido novo de citações passadas [...]


A intertextualidade não se reduz evidentemente a um problema de fontes ou
de influências; o intertexto é um campo geral de fórmulas anônimas, cuja
origem é raramente localizável, de citações inconscientes ou automáticas,
feitas sem aspas.
(BARTHES, 2004, p.275-276)
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Para Riffaterre, o texto torna-se "um conjunto de pressuposições de outros textos", daí
a necessidade de compreendê-lo a partir de seu intertexto, então definido como "a percepção
pelo leitor de relações entre uma obra e outra que a precederam ou a seguiram".
(RIFFATERRE apud Compagnom, 1999, p. 113). Estendida ao conjunto do corpus literário, a
noção de intertextualidade reduz, no entanto, seu campo de ação e se torna, assim, um
instrumento decisivo para análise.
Gérard Genette, em sua obra Palimpsestes (1982) define intertextualidade como: "a
presença efetiva de um texto em outro".
Laurent Jenny, em La stratégie de la forme (1976) define intertexto como o texto
"que fala uma língua cujo vocabulário é a soma dos textos existentes".
Schneider afirma que “um texto é feito de fragmentos originais, reuniões singulares,
referências, acidentes, reminiscências, empréstimos voluntários.” (SCHNEIDER, 1985, p.
12).
A intertextualidade pode apresentar-se sob duas formas opostas: a da paráfrase ou a da
paródia.
Na paródia um autor retoma o texto para, de modo geral, satirizá-lo, tratando-o
criticamente com humor, e na paráfrase um autor reescreve o texto sem subvertê-lo, apenas
atualizando-o, conforme o novo contexto histórico-social.
O conceito de paródia tornou-se mais sofisticado a partir de Tynianov, quando ele o
estudou lado a lado com o conceito de estilização.
Para ele:

A estilização está próxima da paródia. Uma e outra vivem de uma vida


dupla: além da obra há um segundo plano estilizado ou parodiado. Mas na
paródia, os dois planos devem ser necessariamente discordantes, deslocados:
a paródia de uma tragédia será uma comédia (não importa se exagerando o
trágico ou substituindo cada um de seus elementos pelo cômico); a paródia
de uma comédia pode ser uma tragédia. Mas, quando há a estilização, não há
mais discordância, e, sim, ao contrário, concordância dos dois planos: o do
estilizando e do estilizado, que aparece através deste. Finalmente da
estilização à paródia não há mais que um passo; quando a estilização tem
uma motivação cômica ou é fortemente marcada, se converte em paródia.
(TYNIANOV apud SANT'ANNA, 1985, p.13-14)

Segundo Bakhtin:

Com a paródia é diferente. Aqui também, como na estilização, o autor


emprega a fala de um outro; mas, em oposição à estilização, se introduz
naquela outra fala uma intenção que se opõe diretamente à original. A
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segunda voz, depois de se ter alojado na outra fala, entra em antagonismo


com a voz original que a recebeu, forçando-a a servir a fins diretamente
opostos. A fala transforma-se num campo de batalha para interações
contrárias. Assim, a fusão de vozes, que é possível na estilização ou no
relato do narrador, não é possível na paródia; as vozes na paródia não são
apenas distintas e emitidas de uma para outra, mas se colocam, de igual
modo, antagonisticamente. É por esse motivo que a fala do outro na paródia
deve ser marcada com tanta clareza e agudeza. Pela mesma razão, os
projetos do autor devem ser individualizados e mais ricos de conteúdo. É
possível parodiar o estilo de um outro em direções diversas, aí introduzindo
acentos novos, embora só se possa estilizá-lo, de fato, em uma única direção
– a que ele próprio se propusera. (BAKHTIN apud SANT'ANNA 1985,
p.14)

Para entendermos a intenção da paródia, muitas vezes é necessário um pré-


conhecimento da obra original.
A paródia é então denominada intertextualidade quando se utilizam textos alheios e
intratextualidade quando o autor emprega os próprios textos.
Além de textos literários, ela também é encontrada nas artes plásticas, músicas,
propagandas dentre outros.
Podemos concluir que a paródia é um tipo de intertextualidade em que o escritor
transforma os textos assimilados através da ironia. Nos poemas de Milton Rezende que serão
apresentados pode-se ver claramente que ele dialoga com várias obras.
Podemos concluir que a paródia é um tipo de intertextualidade em que o escritor
transforma os textos assimilados através da ironia. No poema que será apresentado de Álvares
de Azevedo pode-se ver claramente que ele utilizou obras clássicas e com humor desconstrói
a mulher idealizada, pura e intocável.
"É Ela! É Ela! É Ela! É Ela!" é um poema irônico no qual Álvares de Azevedo brinca
com o próprio romantismo, ridicularizando-o.

3. Álvares de Azevedo e a Lira dos Vinte Anos

Álvares de Azevedo, poeta da segunda geração do romantismo foi fortemente


influenciado por Lord Byron, Musset e outros escritores românticos europeus. Sua poesia é
marcada pelo subjetivismo, melancolia e sarcasmo.
Os temas mais comuns são o desejo de amor e a busca pela morte. O amor é idealizado
e causa dor e sofrimento. A morte é uma fuga, pois seu eu-lírico se sente impotente frente ao
mundo e vê na morte a libertação.
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Os poetas dessa fase do romantismo utilizam os temas lúgubres, a morbidez e a paixão


platônica por mulheres puras.
Manoel Antônio Álvares de Azevedo nasceu em São Paulo em 12 de setembro de
1831 e faleceu no Rio de Janeiro em 25 de abril de 1852. Apesar de sua curta existência é um
dos poetas mais representativos de sua geração e escreveu nos mais diversos gêneros
literários, sendo que seus poemas são considerados a sua obra de maior valor.

Segundo Edgar Cavalheiro:

Faltou-lhe para ser gênio, exclusivamente isso: tempo. Fez vibrar todas as
cordas da lira, do mais ingênuo lirismo ao mais desabusado erotismo. É
zombeteiro e irônico, alegre e triste, vibrante e meigo, sensual e pudico.
Devemos-lhe a introdução do humor na poesia brasileira.

Álvares de Azevedo tinha uma verdadeira obsessão pela leitura e pelo conhecimento
literário. Segundo Luciana Stegagno-Picchio, em História da literatura brasileira:

Paulista de nascimento e de aculturação acadêmica, iria concluir aos vinte e


um anos incompletos, ceifado por um tumor, uma parábola literária, nascida
sob o signo de Byron e em geral dos românticos ingleses, mas nutrida de
cultura francesa (Musset, Nerval, Vigny, Gautier, mas também Lamartine e
Victor Hugo), alemã (Hoffmann e Goethe) e quiçá também italiana
(Leopardi). (STEGAGNO-PICCHIO, p. 98).

Segundo Sílvio Romero:


A grande qualidade de Azevedo é o fato de que arranca-nos de vez da
influência exclusiva portuguesa, por ser leitor voraz dos bons escritores
gregos, latinos, ingleses, italianos, alemães e franceses, especialmente
Shakespeare, Tasso, Byron, Werner, Musset, Victor Hugo e Sand, seus
autores prediletos. (ROMERO, 1980, p. 949).

Álvares de Azevedo, um jovem com uma breve passagem pela vida, tornou-se
imortalizado pelas letras. A fonte de tudo está na leitura dos grandes nomes do romantismo na
época, a maioria em suas línguas de origem. Esse grande conhecimento sobre a literatura
mundial influenciou direta e indiretamente suas obras.
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A Lira dos vinte anos compõe-se do que há de melhor na produção de Álvares de


Azevedo.
Estruturalmente a Lira é dividida em três partes; mas do ponto de vista temático, em
apenas duas, pois a primeira e terceira partes têm temas assemelhados entre si: a morte, a
família, os temas da adolescência, o sonho, a religiosidade, a forma feminina como obsessão;
a segunda parte, no entanto, traz o irônico, o "satânico", a mulher, ainda que em sonho
aproximada do erótico, carnal.
Prefácio da segunda parte da Lira:

Cuidado, leitor, ao voltar esta página! Aqui dissipa-se o mundo visionário e


platônico. Vamos entrar num mundo novo, terra fantástica, verdadeira ilha
Baratária de D. Quixote, onde Sancho é rei e vivem Panúrgio, sir John
Falstaff, Bardolph, Fígaro e Sganarello de D. João Tenório: a pátria dos
sonhos de Cervantes e Shakespeare. Quase que depois de Ariel esbarramos
em Caliban.
A razão é simples. É que a unidade deste livro funda-se numa binômia: duas
almas que moram nas cavernas de um cérebro pouco mais ou menos de
poeta escreveram este livro, verdadeira medalha de duas faces. (...)
(...) O poeta acorda na terra. Demais o poeta é homem (...) isto é, antes e
depois de ser um ente idealista, é um ente que tem corpo. (...)
(...) Ficarás tão adiantado agora, meu leitor, como se não lesses essas
páginas, destinadas a não serem lidas. Deus me perdoe! Assim é tudo! ... até
prefácios! (AZEVEDO, 2007, p. 66-67).

Pelos trechos do prefácio, acima citados, Álvares de Azevedo ressalta que na segunda
parte da Lira, estão contidos poemas irônicos, as paródias, e um suposto "satanismo"
encontrado em Noite na Taverna.
A compreensão do significado desse humor em Álvares de Azevedo não é tarefa
difícil, pois Azevedo foi talvez o único poeta romântico brasileiro a deixar registro de uma
teoria sobre a própria criação poética.

4. Análise da intertextualidade no poema "É ela! É ela! É ela! É ela!"

Ao utilizar a paródia, Álvares de Azevedo comprova a modernidade de seu projeto


criador, metapoético, altamente imbuído de autoconsciência reflexiva.
Analisaremos o poema "É ela! É ela! É ela! É ela!" em que Álvares de Azevedo
parodia Shakespeare em Otelo, o Mouro de Veneza; Goethe em Os Sofrimentos do Jovem
Werther; Laura a musa inspiradora de Petrarca e Beatriz a musa inspiradora de Dante, que
reelabora um dos mais típicos temas da lírica convencional do autor: o tema amoroso.
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Os recursos utilizados com mais recorrência na poética de Álvares de Azevedo, para


deflagrar o discurso parodístico são a ironia e o humor.
A intertextualidade no citado poema de Álvares de Azevedo feita com Otelo, O
Mouro de Veneza de William Shakespeare, escrito em 1603 tendo como personagens
principais: Otelo (um general mouro que serve o reino de Veneza); sua esposa Desdêmona;
Cássio (tenente) e Lago (sub-oficial). Os temas são amor, ciúme e traição. (...) "Otelo,
desesperado ao saber que matara sua amada esposa injustamente, apunhalou-se, caindo sobre
o corpo de sua mulher e morreu beijando a quem tanto amara (...)"
Álvares de Azevedo faz também intertextualidade com Os sofrimentos do jovem
Werther – romance de Johann Wolfgang Von Goethe de 1774.
Os personagens são: Werther; Guilherme; Alberto e Carlota (amada de Werther e
noiva de Alberto).
Beatriz, era a musa inspiradora de Dante Alighieri.
Dizem que Dante viu Beatriz uma única vez, e nunca falou com ela, nutrindo uma
paixão que iria inspirar seus poemas e deixado sua marca na cultura italiana, com a obra Vida
Nova.
Álvares de Azevedo faz também intertextualidade com a amada Laura de Petrarca.
Petrarca já figuraria como um nome basilar da poesia universal, mas há um detalhe na
biografia do poeta que definiu sua poesia: a paixão por Laura de Noves, tema central de seu
Canzioniere (Cancioneiro), obra-prima composta de 317 sonetos e 29 canções. Laura, dama
casada que o poeta conheceu em 1327, passou para a história da literatura como a primeira
musa – que seria sucedida pela Beatriz de Dante, pela Dark Lady de Shakespeare, pela
Marília de Dirceu, pela Matilde de Neruda e tantas outras. Ela reuniu, no imaginário do poeta,
todos os seus amores de antes e depois.
O seguinte soneto de Petrarca, o "Soneto XLIX" demonstra a dor do poeta diante da
morte de Laura e da constatação de que teria de viver sem ela.

Não poderia resistir à dor de sobreviver a Laura.

A aura que o verde louro e a trança fina


Move, suavemente, suspirando,
Prende as almas ao seu semblante brando,
À sua graça humilde e peregrina.

Rosa entre espinhos, clara e purpurina,


Onde houve igual a ti? e como? e quando?
Glória do Tempo! Jove venerando
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Morrer primeiro seja a minha sina.

Que eu não assista o grande mal profundo


De perder o seu sol o obscuro mundo
E os olhos meus a sua única chama.

Sempre exista à minha alma que sempre a ama!


Sempre exista ao ouvido meu que apenas
Sabe ouvir suas falas tão serenas.

Transcreveremos o poema "É ela! É ela! É ela! É ela!" de Álvares de Azevedo para
continuarmos a análise proposta:

É ela! é ela! — murmurei tremendo,


e o eco ao longe murmurou — é ela!
Eu a vi... minha fada aérea e pura —
a minha lavadeira na janela.

Dessas águas furtadas onde eu moro


eu a vejo estendendo no telhado
os vestidos de chita, as saias brancas;
eu a vejo e suspiro enamorado!

Esta noite eu ousei mais atrevido,


nas telhas que estalavam nos meus passos,
ir espiar seu venturoso sono,
vê-la mais bela de Morfeu nos braços!

Como dormia! que profundo sono!...


Tinha na mão o ferro do engomado...
Como roncava maviosa e pura!...
Quase caí na rua desmaiado!

Afastei a janela, entrei medroso...


Palpitava-lhe o seio adormecido...
Fui beijá-la... roubei do seio dela
um bilhete que estava ali metido...

Oh! decerto... (pensei) é doce página


onde a alma derramou gentis amores;
são versos dela... que amanhã decerto
ela me enviará cheios de flores...

Tremi de febre! Venturosa folha!


Quem pousasse contigo neste seio!
Como Otelo beijando a sua esposa,
eu beijei-a a tremer de devaneio...

É ela! é ela! — repeti tremendo;


mas cantou nesse instante uma coruja...
Abri cioso a página secreta...
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Oh! meu Deus! era um rol de roupa suja!

Mas se Werther morreu por ver Carlota


Dando pão com manteiga às criancinhas,
Se achou-a assim tão bela... eu mais te adoro
Sonhando-te a lavar as camisinhas!

É ela! é ela, meu amor, minh'alma,


A Laura, a Beatriz que o céu revela...
É ela! é ela! — murmurei tremendo,
E o eco ao longe suspirou — é ela!

Neste poema, Álvares de Azevedo aborda o tema da paixão impossível, da mulher


inalcançável, do amor sem limites. Todavia, o autor zomba dos próprios ditames românticos
byronistas dos quais ele lançou mão para escrever outros poemas. Assim, encontra-se, nos
versos, um sujeito lírico, cuja musa é uma pobre trabalhadora, que veste vestidos de chita, um
pano barato. A mulher retratada no poema, diferentemente das outras que aparecem noutros
versos do autor é uma lavadeira que ronca ao dormir e não tem a graciosidade típica das
musas românticas. Ela não se parece com as donzelas frágeis, com rostos angelicais dos
poemas românticos.
O eu-lírico segue ironizando a paixão platônica e sua musa, uma vez que rouba dos
seios dela um bilhete que descobrirá que se trata de uma lista de roupas sujas.
As estrofes a seguir demonstram que há uma expectativa de que o papel seria um
poema, porém, há somente uma lista de roupas sujas:

Oh! decerto... (pensei) é doce página


onde a alma derramou gentis amores;
são versos dela... que amanhã decerto
ela me enviará cheios de flores...
Tremi de febre! Venturosa folha!
Quem pousasse contigo neste seio!
Como Otelo beijando a sua esposa,
eu beijei-a a tremer de devaneio...

É ela! é ela! — repeti tremendo;


mas cantou nesse instante uma coruja...
Abri cioso a página secreta...
Oh! meu Deus! era um rol de roupa suja!

Na nona estrofe, o poeta lança mão da intertextualidade, trazendo uma referência à


obra de Goethe, Os sofrimentos do jovem Werther. Ele compara o ato de Carlota (paixão de
Werther, e uma das razões de seu suicídio) a dar pão às criancinhas com a sua amada a lavar
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roupa, confronta uma imagem angelical de uma musa típica do romantismo com uma cena
prosaica e incompatível com uma mulher idealizada, a imagem de uma mulher lavando
roupas.

Não pude resistir à tentação; fui obrigado a procurá-la. Aqui estou de volta,
Guilherme; vou tomar minha ceia, e te escrever. Que prazer é para mim o
vê-la entre as amoráveis crianças que são os seus irmãos e irmãs. (Goethe, p.
55).

Álvares de Azevedo parodia Laura e Beatriz, musas inspiradoras de Petrarca e Dante,


respectivamente. As mulheres endeusadas, delicadas e puras, que inspiraram grandes poesias
do cânone mundial são comparadas a uma humilde lavadeira, satirizando a idealização
romântica.
Beatriz além de ser a musa inspiradora de Dante Alighieri, é ela, juntamente com
Virgílio, que o guia em sua passagem pelo inferno e pelo purgatório, conduzindo-o ao paraíso.

(...) Aparece-lhe então a imagem de Virgílio, que o reanima e se oferece a


tirá-lo de lá, fazendo-o passar pelo Inferno e pelo Purgatório. Beatriz, depois,
o guiará ao Paraíso. (nota do tradutor José Pedro Xavier Pinheiro, A Divina
Comédia, 2003, p. 17).
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Conclusão

O poema "É Ela! É Ela! É Ela! É Ela!" de Álvares de Azevedo, satiriza a idealização
romântica do amor puro que vence todas as barreiras, até mesmo as barreiras do desnível
social e cultural, o que demonstra que Álvares de Azevedo não fez poemas só de melancolia e
mal de amor, apresentando uma vertente bem humorada, autocrítica e satírica. É um poema
irônico em que Azevedo brinca com o próprio romantismo, ridicularizando-o.
No poema a musa cantada pelo eu-lírico é uma lavadeira desprovida de qualquer
delicadeza ou poeticidade, assim contrariando todas as expectativas de um poema romântico
e, por conseguinte os clichês românticos de representação da mulher pura, ingênua e delicada.

REFERÊNCIAS

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Pinheiro. São Paulo: Atena , 2003. p.17. Disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/download/ texto/eb00002a.pdf>. Acesso em: 19 set.
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BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad. de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1987.

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KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974.

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<www.releituras.com/azevedo>. Acesso em: 09 set. 2011.
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PETRARCA, Francesco. O cancioneiro. Tradução Jamil Almansur Haddad. Rio de Janeiro:


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<http://recanto das letras.com.br/teorialiteraria>. Acesso em: 19 abr. 2011.

REVISTA LITERÁRIA EM FOCO. Uma breve análise dum poema de Álvares de


Azevedo. Disponível em: <www.literaturaemfoco.com>. Acesso em: 09 ago. 2011.

REVISTA OUTRAS PALAVRAS. Intertextualidade, paráfrase e paródia. Disponível em:


<http://outraspalavras.arteblog.com.br>. Acesso em: 09 ago. 2011.

SAMOYAULT, Tiphaine. A intertextualidade. Tradução Sandra Nitrini. São Paulo: Hucitec,


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SANT'ANNA, Affonso Romano de. Paródia, paráfrase & cia. 2. ed. São Paulo: Ática, 1985.

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