EDSON FASANO1
INTRODUÇÃO
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os sujeitos humanos, inseridos culturalmente e historicamente no mundo, por
meio da problematização da sua realidade, percebem-se como aqueles (as)
que não são, mas que estão sendo e que a opressão não se constitui como
algo dado, mas ideologicamente construído. Dessa forma, emergem dos
condicionamentos e se comprometem com a transformação do real. A
consciência crítica se constitui como a consciência histórica, do inacabamento
humano, portanto, destaca a possibilidade da vocação humana em ser mais.
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Na presente pesquisa utilizamos a 17ª Edição da Pedagogia do Oprimido, publicada pela Paz e Terra
em 2005, no entanto, procuramos colocar entre colchetes [ ] a data da primeira publicação, ou seja,
1970.
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grupo vinham realizando com a Educação Infantil, assumimos o compromisso
de investigar a idéia da Infância Oprimida.
Estudar a infância a partir dos pressupostos Freireanos faz algum sentido?
Paulo Freire não desenvolveu um método para a alfabetização de adultos?
É inegável a contribuição de Freire para a educação popular,
especialmente voltada a Educação de Jovens e Adultos, no entanto, como ele
próprio afirmava a Pedagogia Libertadora não se restringe a um método, mas a
uma epistemologia para a libertação, em que todos os oprimidos, rompendo
com as amarras da opressão, poderão libertar-se e conseqüentemente libertar
os seus opressores.
As relações de poder, especificamente, o uso que os grupos sociais e /ou
pessoas fazem dele, encontram-se presentes nas diferentes instâncias das
relações humanas e nos ciclos da vida.
Pensar a infância como categoria de análise, a partir da epistemologia
freireana, coloca-nos a questão sobre a existência de culturas infantis, de
linguagens próprias para ler o mundo e estar no mundo.
A infância, compreendida em sua dimensão cultural, como invenção
humana, mas historicamente negada pelo mundo adultocêntrico, tem convivido
com o infanticídio físico e pedagógico. Pensamos que apesar de tal, crianças
resistem ao trabalho infantil, resistem à ocupação do ócio por tarefas e mais
tarefas por meio da imposição do cronos e do tempo fabril. Como? Pela sua
práxis, pelo seu quefazer infantil, o brincar.
Existem referências implícitas e/ou explícitas à criança e/ou infância, nas
obras escritas por Paulo Freire? Essa tem sido a nossa problemática
investigativa.
Para viabilizar essa investigação, alimentando a nossa curiosidade
epistemológica, mas profundamente comprometida com a práxis, enquanto
educadores voltados ao quefazer organizamos didaticamente o nosso estudo
em cinco períodos:
1- primeiro período: obra escrita antes do exílio (1964);
2- segundo período: obras escritas no exílio (1964 a 16/06/1980);
3- terceiro período: do retorno do exílio até a sua saída da Secretaria Municipal
de Educação de São Paulo (maio de 1991);
4- quarto período de maio de 1991 até a sua morte ( 02/05/1997);
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5- as obras publicadas postumamente.4
O presente trabalho procurou analisar as referências à criança e/ou infância
em uma das obras fundamentais de Paulo Freire: A Pedagogia do Oprimido,
que compõem o segundo período da nossa divisão temporal.
A PEDAGOGIA DO OPRIMIDO:
Nos anos 60, Fiori foi presidente do Instituto de Cultura Popular de Porto
Alegre e em 1965 exilado no Chile, mesmo local de exílio de Paulo Freire. No
Chile, trabalhou no Instituto de Educação Rural e como Vice-Reitor da
Universidade Católica do Chile. Ficou responsável pelo prefácio da obra que é
fundante da pedagogia freireana.
Freire inicia a apresentação do livro dedicando o mesmo aos oprimidos e
excluídos do mundo, em uma belíssima e sensível dedicatória que já nos
apresenta a utopia da libertação:
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A divisão temporal organizada pelo GEPF, objetivando o estudo e pesquisa dos conceitos de infância e
criança nas obras de Paulo Freire, foi anteriormente divulgada no artigo intitulado Por uma pedagogia da
infância oprimida, de autoria de Marta Regina Paulo da Silva, Elydio dos Santos Neto e Maria Leila
Alves, trabalho apresentado na 31ª Reunião Anual da ANPED, no GT 07 – Educação de Crianças de 0 a 6
anos.
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Aos esfarrapados do mundo
E aos que neles se
Descobrem e, assim
Descobrindo-se, com eles
Sofrem, mas, sobretudo
Com eles lutam. (FREIRE, [1970] 2005, p.23)
Primeiras Palavras:
1. Justificativa da pedagogia do oprimido:
A contradição opressores-oprimidos. Sua superação.
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A situação concreta de opressão e os opressores.
A situação concreta de opressão e os oprimidos.
Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os
homens se libertam em comunhão.
2- A concepção bancária da educação como instrumento da
opressão. Seus pressupostos, sua crítica:
A concepção problematizadora e libertadora da educação.
Seus pressupostos.
A concepção bancária e a contradição educador-educando.
Ninguém educa ninguém, ninguém se educa a si mesmo, os
homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo.
O homem como um ser inconcluso, consciente de sua
inconclusão, e seu permanente movimento de busca do ser
mais.
3- A dialogicidade, essência da educação como prática da
liberdade:
Educação dialógica e diálogo
O diálogo começa na busca do conteúdo programático.
As relações homens-mundo, os temas geradores e o conteúdo
programático desta educação.
A investigação dos temas geradores e sua metodologia.
A significação conscientizadora da investigação dos temas
geradores. Os vários momentos da investigação.
4- A teoria da ação antidialógica:
A teoria da ação antidialógica e suas características: a
conquista, dividir para manter a opressão, a manipulação e a
invasão cultural.
A teoria da ação dialógica e suas características: a co-
laboração, a união, a organização e a síntese cultural.
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Um dos pressupostos básicos da Pedagogia do Oprimido encontra-se na
idéia de que a mesma é construída com o oprimido e não para o oprimido. A
história de educação infantil, especialmente no Brasil, construiu-se pela
polarização entre assistência e educação, marcada por um recorte de classe
social, em que o modelo infantil centrou-se na sociedade burguesa. Não se
olhava para a criança a partir da criança, mas do modelo construído por um
dos recortes do mundo adulto.
Embora com propostas pedagógicas diferenciadas, esperava-se que as
crianças pudessem passar pela infância sendo estimuladas a compreender o
mundo, por meio do olhar adulto, bem como da legitimação da suas
linguagens, entre elas a escrita.
A infância enquanto um dos ciclos da vida humana possui sua história
marcada por processos de desumanização, na medida em que não possui o
reconhecimento das especificidades desse momento da vida.
O que significou ser criança nos diferentes momentos históricos, nas
diferentes localidades, nas diferentes classes sociais?
A negação da existência das diferentes culturas infantis, bem como das
suas especificidades, constituiu pedagogias voltada ao atendimento da infância
em que a criança acabava se constituindo como objeto de intervenções
pedagógicas e não um sujeito de direitos. Uma pedagogia adultocêntrica,
forjada para a criança e não com o sujeito infante.
A Pedagogia da Infância Oprimida é o reconhecimento de que a criança é
um sujeito de direitos, que realiza a leitura de mundo, mesmo antes de adentrar
no espaço escolar, mas que tais leituras possuem linguagens específicas do
ser criança.
Considerar a criança como sujeito é levar em conta, nas
relações que com ela estabelecemos que ela tem desejos,
idéias, opiniões, capacidade de decidir, de criar, de inventar,
que se manifestam, desde cedo, nos seus movimentos, nas
suas expressões, no seu olhar, nas suas vocalizações, na sua
fala. É considerar, portanto, que essas relações não devem ser
unilaterais – do adulto para a criança -, mas relações dialógicas
– entre adulto e criança -, possibilitando a constituição da
subjetividade da criança como também contribuindo na
contínua constituição do adulto como sujeito. ( FARIA e
SALLES, 2007, p.44)
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Forjar com a criança o processo contínuo de significação do mundo, deve
caracterizar-se como o objeto de reflexão para constituição da autonomia
infantil, logo da sua libertação. A libertação do ser criança significará a
libertação do mundo adulto e de suas amarras opressivas.
A criança vivendo e experimentando a infância, expressando a sua razão
infantil, estimulada em sua curiosidade, pode despertar no adulto a
sensibilidade e reconhecimento de outra razão, de uma razão infante, levando-
o a libertar-se do conceito de uma única forma e lugar de ler o mundo.
PRÁXIS E QUEFAZER
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práxis, em que os sujeitos conscientes da realidade opressora se
comprometem com a transformação do real concreto.
Muito próximo do conceito de práxis, Freire utiliza-se, também do conceito
quefazer. A idéia do quefazer enquanto uma ação radicalmente refletida e
vinculada com a prática, mas também comprometida com a utopia de seres
humanos livres e felizes.
Nossa investigação sobre tais conceitos levou-nos a uma obra publicada em
1902, intitulada Quefazer? Escrita por Vladimir Lênin, e que por diferentes
momentos foi citado em notas de rodapé, por Paulo Freire, no livro ora
analisado. Lênin, uma das referências teóricas de Paulo Freire, procurou
apresentar a necessidade de constituir-se uma ação revolucionária, por meio
do que denominou de Liberdade Crítica como contraposição à liberdade
burguesa. Propôs o quefazer como uma ação revolucionária em contrapartida a
uma visão reformista, que acabava por não alterar radicalmente a lógica
instituída.
A tão conhecida afirmação de Lênin: Sem teoria revolucionária
não pode haver movimento revolucionário significa
precisamente que não há revolução com verbalismos, nem tão
pouco com ativismo, mas com práxis, portanto, com reflexão e
ação incidindo sobre as estruturas a serem transformadas
(FREIRE, [1970] 2005, p.142)
O QUEFAZER INFANTIL
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O processo de conceitualização do mundo, procurando a construção de
sentido e de ocupação “consciente” do espaço, possui a vida como a principal
motivação e estratégia, voltada a experiência.
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A rebeldia apresenta-se como uma reação diante da indignação frente às
ações de opressão e de destituição do ser. Uma das questões centrais com
que temos que lidar é a promoção de posturas rebeldes em posturas
revolucionárias que nos engajam no processo radical de transformação do
mundo. (FREIRE, 1996, p.32)
O conceito de resistência para Freire não está centrado em uma postura
rebelde dissociada da utopia, mas em uma ação revolucionária e
conseqüentemente associada ao sonho e ao compromisso com a
transformação. Ação que rompe com uma razão dominante, que desestrutura
verdades petrificadas e naturalizadas.
Para o marxismo a linguagem se caracteriza com um fenômeno
essencialmente social que exterioriza a consciência. Sendo a consciência
crítica uma construção libertadora, que se efetiva na e com a práxis, logo o
quefazer infantil não pode prescindir do brincar.
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A citação de Vigotsky no corpo do texto fundamenta-se na concepção de que a linguagem é construída
por meio da interação com o meio e a cultura, ultrapassando uma visão psicologizante do brincar. No
entanto, divergimos do mesmo ao conceber o brincar como uma ferramenta, bem como uma das
linguagens infantis. Defendemos o brincar como a principal linguagem da Infância que se constitui como
estratégia para representação do mundo e resistência da razão infantil.
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caracteristicamente humanas, que são mediadas por ferramentas
técnicas e semióticas. Nesta perspectiva, a brincadeira infantil assume
uma posição privilegiada para a análise do processo de constituição do
sujeito; rompendo com a visão tradicional de que ela é atividade
natural de satisfação de instintos infantis, o autor apresenta o brincar
como uma atividade em que, tanto os significados social e
historicamente produzidos são construídos, quanto novos podem ali
emergir. A brincadeira e o jogo de faz-de-conta seriam considerados
como espaços de construção de conhecimentos pelas crianças, na
medida em que os significados que ali transitam são apropriados por
elas de forma específica. (QUEIROZ, 2006, p.1)
(...) o estudo ou a maior parte dele deve ser (ou assim aparecer
aos discentes) desinteressado, ou seja, não deve ter
finalidades práticas imediatas ou muito imediatas, deve ser
formativo ainda que instrutivo, isto é, rico de noções concretas (
GRAMSCI, 2001,p.49).
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ao mundo, mas o transforma. Transformando o mundo, transforma a si mesmo
e com os outros.
A curiosidade epistemológica marca fundamental do infante, do
inacabamento humano, caracteriza-se pela problematização dos
condicionamentos históricos. A história compreendida não apenas como uma
mensuração temporal, mas como um processo experimental, construtivo,
transformador. Dessa forma, para além de um ciclo de vida, também podemos
pensar a infância como Infantes, inquietos, aqueles e aquelas que estão em
permanente busca.
A inquietude, a busca do por que, marcas fundamentais da infância, são
armas poderosas na destituição da naturalização das diferentes formas de
opressão.
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Crianças deformadas num ambiente de desamor, opressivo,
frustradas em suas potências, como diria Fromm, se não
conseguem na juventude, endereçar-se no sentido da rebelião,
autêntica, ou se acomodam numa demissão total do seu
querer, alienados à autoridade e aos mitos de que lança mão
esta autoridade para formá-las, ou poderão vir a assumir
formas de ação destrutivas. ( Ídem, p.176).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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O estudo da obra Pedagogia do Oprimido foi iniciado por nosso grupo,
procurando realizar uma leitura que nos possibilitasse rastrear as referências
explícitas sobre infância e criança na referida obra.
Nesta “primeira” leitura, conforme mencionamos no corpo do texto,
identificamos que Paulo Freire se refere diretamente a criança e infância no
último sub-título do livro, quando analisa a teoria anti-dialógica.
Em tais referências Paulo Freire critica a educação familiar e escolar
centrada no autoritarismo de pais e professores que desrespeitam a anulam as
idéias e formas de expressão de crianças, jovens e alunos. Afirma Freire que a
educação antidialógica representa uma das dimensões da opressão que é
introjetada pelo oprimido e que caso este não se rebele, viverá o processo de
desumanização, por meio da invasão cultural
Freire concebe a rebelião autêntica como forma de rompimento com o
estado opressivo que procura negar a condição ontológica do ser mais. Para
que se efetive tal rebelião é necessário que o olhar do oprimido seja
estabelecido como foco da ação. Qualquer olhar? Não. O olhar que se volte
para a construção de sentido da realidade e conseqüentemente da sua
transformação.
Uma das principais linguagens utilizadas pela criança, que possibilita que a
mesma se relacione ludicamente com a realidade e seus contextos, é o brincar.
Brincando desinteressadamente, criativamente e prazerosamente, a
criança constrói significado ao real, dialoga com a cultura, com a história,
transforma a si e ao mundo.
O problema da pesquisa foi novamente colocado: é possível inferir a
existência de uma práxis ou quefazer específico da infância? Utilizando-nos,
obviamente, dos conceitos de quefazer e práxis apresentados na Pedagogia do
Oprimido.
Concluímos que sim. A partir do olhar infantil, o brincar se constitui em um
quefazer. Negar as culturas infantis, negar a criança como sujeito, representam
práticas de uma pedagogia opressiva, de silenciamento e de negação à
infância.
As crianças resistem a tal negação por meio do brincar. Resistem à invasão
cultural adulta, resistem à educação anti dialógica.
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Construir uma Pedagogia da Infância Oprimida significa construir o processo
educacional junto com a infância em um diálogo que privilegie o olhar infantil e
a sua leitura de mundo, para tanto o brincar torna-se imprescindível.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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