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INVASÃO CULTURAL: UMA TENTATIVA DE DESTITUIÇÃO DA INFÂNCIA

EDSON FASANO1

INTRODUÇÃO

O presente trabalho é resultado de um conjunto de estudos desenvolvido


pelo Grupo de Estudos e Pesquisa Paulo Freire da Universidade Metodista de
São Paulo2.
O grupo tem se dedicado a estudar e investigar os conceitos freireanos de
educação e as possíveis relações com a infância.
A historicidade humana, processo fundamental em nossa humanização ou
em sua negação, desafia-nos a ler o mundo dialeticamente. Perceber os
nossos condicionamentos, mas ao mesmo tempo o potencial transformador
das nossas condições materiais e culturais, implicando em um processo de
criação estético-ético do mundo.
Com tais fundamentos, percebemos que o processo de construção da
consciência, envolve uma luta permanente e viva de leitura do mundo, que
procura vencer a ingenuidade e a naturalização das diferentes dimensões de
opressão, bem como de apropriação e uso do poder.
O conceito de conscientização presente nas obras de Freire e
especialmente na Pedagogia do Oprimido tem sido motivo de grandes debates.
Freire discute que o processo de consciência humana transita de um
estado inicial, mágico, ingênuo, em que o ser humano imerso no mundo, não
se vê no mundo, mas naturalizado com o próprio mundo. A pedagogia da
libertação deve ser um processo construtivo para a consciência crítica, em que
1
Edson Fasano, mestre em educação pela Universidade Metodista de São Paulo, professor do curso de
pedagogia presencial e a distância da UMESP, exerce o cargo de diretor de escola de educação infantil na
Secretaria Municipal de Educação da Cidade de São Paulo.
2
O Grupo de Estudos e Pesquisa Paulo Freire da Universidade Metodista de São Paulo (GEPF-UMESP)
deu início as suas atividades em setembro de 2004, tendo sido cadastrado no Diretório de Grupos de
Pesquisa do CNPq, com certificação da Universidade Metodista de São Paulo ( UMESP), em 2008. Está
sob a coordenação da Professora Doutora Maria Leila Alves, da linha de pesquisa Gestão e Políticas
Educacionais e do Professor Doutor Elydio dos Santos Neto, da linha de pesquisa de Formação de
Educadores, contando também com a participação do Prof. Dr. Danilo Di Manno de Almeida desta
mesma linha de pesquisa. O grupo é constituído por pesquisadores de ambas as linhas de pesquisa do
Programa de Mestrado em Educação da UMESP, contando com mestrandos, alunos egressos do
programa, alunos da graduação em pedagogia, teologia , filosofia e também egressos do curso de
pedagogia.

1
os sujeitos humanos, inseridos culturalmente e historicamente no mundo, por
meio da problematização da sua realidade, percebem-se como aqueles (as)
que não são, mas que estão sendo e que a opressão não se constitui como
algo dado, mas ideologicamente construído. Dessa forma, emergem dos
condicionamentos e se comprometem com a transformação do real. A
consciência crítica se constitui como a consciência histórica, do inacabamento
humano, portanto, destaca a possibilidade da vocação humana em ser mais.

A pedagogia tem de ser forjada com ele (o oprimido) e não


para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante de
recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça da
opressão e de suas causas objeto da reflexão dos oprimidos,
que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua
libertação, em que esta pedagogia se fará e refará. (FREIRE,
[1970]3 2005, p.45)

O diálogo se constitui como o processo pedagógico para a libertação.


Freire compreende a necessidade de reconhecimento da existência do outro
(a), como um ser que inserido em sua cultura, em sua classe social, e em
tantos outros condicionantes, leva-o a possuir uma forma própria de pensar,
sentir, de estar sendo. “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho:
os homens se libertam em comunhão” (FREIRE, [1970] 2005, p.78 ).
A dialeticidade presente na leitura de mundo leva-nos a refletir sobre a
temporalidade e “territorialidade”, das teorias e concepções que nos identificam
que nos aproximam, ou mesmo, nos distanciam. Tal historicidade faz-nos seres
do tempo da vida, das experiências refletidas, seres da práxis e do quefazer.
Nessa perspectiva, nosso grupo de estudo, não pretende repetir e/ou
reproduzir as obras escritas por Paulo Freire, mas partindo delas, desafiar-nos
ao ato reflexivo-ativo, criativo e curioso. Reinventar Freire, a partir dos desafios
colocados pelo nosso tempo, pelo nosso mundo, pela nossa história.
No caminhar do grupo, nos aproximamos da Cátedra do Oprimido do
Instituto Paulo Freire de São Paulo, e a partir dos diálogos ali realizados,
considerando o histórico de pesquisa e a produção que algumas pessoas do

3
Na presente pesquisa utilizamos a 17ª Edição da Pedagogia do Oprimido, publicada pela Paz e Terra
em 2005, no entanto, procuramos colocar entre colchetes [ ] a data da primeira publicação, ou seja,
1970.

2
grupo vinham realizando com a Educação Infantil, assumimos o compromisso
de investigar a idéia da Infância Oprimida.
Estudar a infância a partir dos pressupostos Freireanos faz algum sentido?
Paulo Freire não desenvolveu um método para a alfabetização de adultos?
É inegável a contribuição de Freire para a educação popular,
especialmente voltada a Educação de Jovens e Adultos, no entanto, como ele
próprio afirmava a Pedagogia Libertadora não se restringe a um método, mas a
uma epistemologia para a libertação, em que todos os oprimidos, rompendo
com as amarras da opressão, poderão libertar-se e conseqüentemente libertar
os seus opressores.
As relações de poder, especificamente, o uso que os grupos sociais e /ou
pessoas fazem dele, encontram-se presentes nas diferentes instâncias das
relações humanas e nos ciclos da vida.
Pensar a infância como categoria de análise, a partir da epistemologia
freireana, coloca-nos a questão sobre a existência de culturas infantis, de
linguagens próprias para ler o mundo e estar no mundo.
A infância, compreendida em sua dimensão cultural, como invenção
humana, mas historicamente negada pelo mundo adultocêntrico, tem convivido
com o infanticídio físico e pedagógico. Pensamos que apesar de tal, crianças
resistem ao trabalho infantil, resistem à ocupação do ócio por tarefas e mais
tarefas por meio da imposição do cronos e do tempo fabril. Como? Pela sua
práxis, pelo seu quefazer infantil, o brincar.
Existem referências implícitas e/ou explícitas à criança e/ou infância, nas
obras escritas por Paulo Freire? Essa tem sido a nossa problemática
investigativa.
Para viabilizar essa investigação, alimentando a nossa curiosidade
epistemológica, mas profundamente comprometida com a práxis, enquanto
educadores voltados ao quefazer organizamos didaticamente o nosso estudo
em cinco períodos:
1- primeiro período: obra escrita antes do exílio (1964);
2- segundo período: obras escritas no exílio (1964 a 16/06/1980);
3- terceiro período: do retorno do exílio até a sua saída da Secretaria Municipal
de Educação de São Paulo (maio de 1991);
4- quarto período de maio de 1991 até a sua morte ( 02/05/1997);

3
5- as obras publicadas postumamente.4
O presente trabalho procurou analisar as referências à criança e/ou infância
em uma das obras fundamentais de Paulo Freire: A Pedagogia do Oprimido,
que compõem o segundo período da nossa divisão temporal.

A PEDAGOGIA DO OPRIMIDO:

Elaborada no Chile em 1968, sua primeira publicação ocorreu em 1970. A


Pedagogia do Oprimido, resultado de uma práxis sensível de Freire como
educador, como ser humano indignado com a opressão, mas radicalmente
comprometido com a libertação, apresenta os grandes fundamentos das
concepções antropológicas, políticas e epistemológicas defendidas por Paulo
Freire no decorrer de sua vida e de suas produções textuais.
Pedagogia do Oprimido possuiu o prefácio escrito pelo professor Ernani
Maria Fiori, que nos anos 50, conheceu Paulo Freire. Em entrevista concedida
por Freire, o mesmo descreve a primeira impressão sobre esse encontro:

“Se você me perguntar agora os temas básicos que


conversamos naquele dia, naquela manhã dos anos 50, eu não
saberia dizer (...) quando eu deixei a casa de Ernani eu trouxe
comigo algumas convicções. A primeira de que eu havia
conhecido um homem extraordinário (...) A outra convicção que
eu trazia era que eu iniciara uma nova amizade” ( SILVA,
Tomaz Tadeu, 1986, p. 5).

Nos anos 60, Fiori foi presidente do Instituto de Cultura Popular de Porto
Alegre e em 1965 exilado no Chile, mesmo local de exílio de Paulo Freire. No
Chile, trabalhou no Instituto de Educação Rural e como Vice-Reitor da
Universidade Católica do Chile. Ficou responsável pelo prefácio da obra que é
fundante da pedagogia freireana.
Freire inicia a apresentação do livro dedicando o mesmo aos oprimidos e
excluídos do mundo, em uma belíssima e sensível dedicatória que já nos
apresenta a utopia da libertação:

4
A divisão temporal organizada pelo GEPF, objetivando o estudo e pesquisa dos conceitos de infância e
criança nas obras de Paulo Freire, foi anteriormente divulgada no artigo intitulado Por uma pedagogia da
infância oprimida, de autoria de Marta Regina Paulo da Silva, Elydio dos Santos Neto e Maria Leila
Alves, trabalho apresentado na 31ª Reunião Anual da ANPED, no GT 07 – Educação de Crianças de 0 a 6
anos.

4
Aos esfarrapados do mundo
E aos que neles se
Descobrem e, assim
Descobrindo-se, com eles
Sofrem, mas, sobretudo
Com eles lutam. (FREIRE, [1970] 2005, p.23)

Segundo Freire, a Pedagogia do Oprimido foi resultado de suas


observações nos cinco anos de exílio, assim como as realizadas no Brasil.
Destaca que em observações realizadas nos cursos por ele ministrados, algo
que lhe chamava a atenção era o “medo da liberdade”, ou que muitos afirmam
como “perigo da conscientização”.
Fazendo breve comentário sobre a construção da consciência crítica, Freire
afirma que é por meio da consciência que o sujeito poderá efetivamente inserir-
se no processo histórico.
Afirma ainda que a Pedagogia do Oprimido deva ser pensada como um
ensaio, pois como tal é inacabada. Considera e enfatiza que a Pedagogia do
Oprimido é uma Pedagogia para homens radicais.
Expressa a idéia do processo de radicalização como sendo criador, crítico e
libertador. Estabelece fortes críticas aos sectários, pois, segundo ele, assumem
posições fechadas ao diálogo, logo, irracionais. Destaca que um dos objetivos
dos sectários é a domesticação.
Propõe que as pessoas assumam o papel de radicais, comprometidos com
a libertação dos homens, cuidadosos em não se sentirem “donos do tempo,
nem dos homens, muito menos libertadores dos oprimidos”. Mas
comprometidos com estes sujeitos e categorias.
O livro procura estabelecer um diálogo com o leitor, de forma que o mesmo
possa compreender conceitos e pressupostos das dimensões de opressão e a
proposta radical de rompimento de tais práticas e seus fundamentos,
apresentando-nos uma nova epistemologia. Dessa forma, as conclusões
apresentadas no término do livro estão diretamente relacionadas às
concepções presentes no decorrer do livro.
O sumário do livro está assim constituído:

Primeiras Palavras:
1. Justificativa da pedagogia do oprimido:
A contradição opressores-oprimidos. Sua superação.

5
A situação concreta de opressão e os opressores.
A situação concreta de opressão e os oprimidos.
Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os
homens se libertam em comunhão.
2- A concepção bancária da educação como instrumento da
opressão. Seus pressupostos, sua crítica:
A concepção problematizadora e libertadora da educação.
Seus pressupostos.
A concepção bancária e a contradição educador-educando.
Ninguém educa ninguém, ninguém se educa a si mesmo, os
homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo.
O homem como um ser inconcluso, consciente de sua
inconclusão, e seu permanente movimento de busca do ser
mais.
3- A dialogicidade, essência da educação como prática da
liberdade:
Educação dialógica e diálogo
O diálogo começa na busca do conteúdo programático.
As relações homens-mundo, os temas geradores e o conteúdo
programático desta educação.
A investigação dos temas geradores e sua metodologia.
A significação conscientizadora da investigação dos temas
geradores. Os vários momentos da investigação.
4- A teoria da ação antidialógica:
A teoria da ação antidialógica e suas características: a
conquista, dividir para manter a opressão, a manipulação e a
invasão cultural.
A teoria da ação dialógica e suas características: a co-
laboração, a união, a organização e a síntese cultural.

O prefácio da obra, escrito por Fiori, apresenta os principais conceitos


desenvolvidos por Freire na obra “Pedagogia do Oprimido”. Interessante
observar que Fiori inicia o texto afirmando que Freire é um pensador e um
educador comprometido com a vida. Ao defini-lo dessa forma, o autor do
prefácio declara o forte vínculo de Freire com o processo de humanização.
Apresenta-nos a Pedagogia do Oprimido como uma reflexão
epistemológica e não apenas como um método de alfabetização, reafirmando a
amplitude e radicalidade dos conceitos apresentados no livro.

UMA PEDAGOGIA DA INFÂNCIA OPRIMIDA:

...A preocupação neste trabalho é apresentar alguns aspectos


do que parece constituir o que vimos chamando de pedagogia
do oprimido: aquela forjada com ele e não para ele, enquanto
homens e povos, na luta incessante de recuperação de sua
humanidade... (FREIRE, [1970] 2005, p.34)

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Um dos pressupostos básicos da Pedagogia do Oprimido encontra-se na
idéia de que a mesma é construída com o oprimido e não para o oprimido. A
história de educação infantil, especialmente no Brasil, construiu-se pela
polarização entre assistência e educação, marcada por um recorte de classe
social, em que o modelo infantil centrou-se na sociedade burguesa. Não se
olhava para a criança a partir da criança, mas do modelo construído por um
dos recortes do mundo adulto.
Embora com propostas pedagógicas diferenciadas, esperava-se que as
crianças pudessem passar pela infância sendo estimuladas a compreender o
mundo, por meio do olhar adulto, bem como da legitimação da suas
linguagens, entre elas a escrita.
A infância enquanto um dos ciclos da vida humana possui sua história
marcada por processos de desumanização, na medida em que não possui o
reconhecimento das especificidades desse momento da vida.
O que significou ser criança nos diferentes momentos históricos, nas
diferentes localidades, nas diferentes classes sociais?
A negação da existência das diferentes culturas infantis, bem como das
suas especificidades, constituiu pedagogias voltada ao atendimento da infância
em que a criança acabava se constituindo como objeto de intervenções
pedagógicas e não um sujeito de direitos. Uma pedagogia adultocêntrica,
forjada para a criança e não com o sujeito infante.
A Pedagogia da Infância Oprimida é o reconhecimento de que a criança é
um sujeito de direitos, que realiza a leitura de mundo, mesmo antes de adentrar
no espaço escolar, mas que tais leituras possuem linguagens específicas do
ser criança.
Considerar a criança como sujeito é levar em conta, nas
relações que com ela estabelecemos que ela tem desejos,
idéias, opiniões, capacidade de decidir, de criar, de inventar,
que se manifestam, desde cedo, nos seus movimentos, nas
suas expressões, no seu olhar, nas suas vocalizações, na sua
fala. É considerar, portanto, que essas relações não devem ser
unilaterais – do adulto para a criança -, mas relações dialógicas
– entre adulto e criança -, possibilitando a constituição da
subjetividade da criança como também contribuindo na
contínua constituição do adulto como sujeito. ( FARIA e
SALLES, 2007, p.44)

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Forjar com a criança o processo contínuo de significação do mundo, deve
caracterizar-se como o objeto de reflexão para constituição da autonomia
infantil, logo da sua libertação. A libertação do ser criança significará a
libertação do mundo adulto e de suas amarras opressivas.
A criança vivendo e experimentando a infância, expressando a sua razão
infantil, estimulada em sua curiosidade, pode despertar no adulto a
sensibilidade e reconhecimento de outra razão, de uma razão infante, levando-
o a libertar-se do conceito de uma única forma e lugar de ler o mundo.

PRÁXIS E QUEFAZER

Um dos conceitos desenvolvidos por Freire refere-se à práxis e quefazer.


No estudo da Pedagogia do Oprimido procuramos refletir sobre as
aproximações possíveis entre práxis e quefazer, compreendendo-as como
ações resultantes da Pedagogia Libertadora.

Por outro lado, se o momento já é o da ação, esta fará


autêntica práxis se o saber dela resultante se faz objeto da
reflexão crítica. É neste sentido que a práxis constitui a razão
nova da consciência oprimida e que a revolução, que inaugura
o novo momento histórico dessa razão, não pode encontrar
viabilidade fora dos níveis de consciência oprimida (FREIRE,
[1970] 2005, p.59).

O conceito de práxis apresentado por Paulo Freire é desenvolvido a partir


da concepção marxista. Para tanto, é fundamental afirmar que apenas os
seres humanos são capazes da práxis.
Os homens e mulheres, por meio da ação intencional no meio natural e
social, constroem sentido para a natureza (cultura), objetivando a qualificação
da vida.
Gramsci, grande inspirador de Freire, compreende a práxis como o
processo de construção do sentido da vida humana, que se constitui por meio
da ação refletida no real. A experiência humana, ganha intencionalidade por
meio da ação-reflexão-ação, o que Freire denomina de humanização.
Na perspectiva da luta de classes, Gramsci, afirma que a intervenção
humana no meio é constituída por conflitos e relações de poder. Na Pedagogia
do Oprimido, a luta pelo fim das relações opressoras se expressa por meio da

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práxis, em que os sujeitos conscientes da realidade opressora se
comprometem com a transformação do real concreto.
Muito próximo do conceito de práxis, Freire utiliza-se, também do conceito
quefazer. A idéia do quefazer enquanto uma ação radicalmente refletida e
vinculada com a prática, mas também comprometida com a utopia de seres
humanos livres e felizes.
Nossa investigação sobre tais conceitos levou-nos a uma obra publicada em
1902, intitulada Quefazer? Escrita por Vladimir Lênin, e que por diferentes
momentos foi citado em notas de rodapé, por Paulo Freire, no livro ora
analisado. Lênin, uma das referências teóricas de Paulo Freire, procurou
apresentar a necessidade de constituir-se uma ação revolucionária, por meio
do que denominou de Liberdade Crítica como contraposição à liberdade
burguesa. Propôs o quefazer como uma ação revolucionária em contrapartida a
uma visão reformista, que acabava por não alterar radicalmente a lógica
instituída.
A tão conhecida afirmação de Lênin: Sem teoria revolucionária
não pode haver movimento revolucionário significa
precisamente que não há revolução com verbalismos, nem tão
pouco com ativismo, mas com práxis, portanto, com reflexão e
ação incidindo sobre as estruturas a serem transformadas
(FREIRE, [1970] 2005, p.142)

Mas por que destacar os conceitos de práxis e quefazer na investigação


sobre Infância/Criança na Pedagogia do Oprimido? Para refletir se é possível
inferir a existência de uma práxis, ou quefazer, específico da infância.

O QUEFAZER INFANTIL

Pensar o mundo infantil a partir do olhar das crianças pode significar o


rompimento do silenciamento opressivo realizado pelas culturas adultas.
A criança apesar ter sido invisibilizada em diferentes momentos históricos
encontra-se no mundo desde que passamos a concebê-lo como tal, resistindo
contra a negação da sua humanidade.
A invasão cultural da infância se expressa pelo silenciamento dos infantes,
pela imposição da leitura de mundo adulta, pela negação da voz, bem como
das expressões e linguagens infantis.

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O processo de conceitualização do mundo, procurando a construção de
sentido e de ocupação “consciente” do espaço, possui a vida como a principal
motivação e estratégia, voltada a experiência.

As crianças, de certa forma, reconstroem o caminho percorrido


pela humanidade. Claro que, nessa reconstrução, não
precisam inventar novamente, uma vez que, por meio das
interações com os outros sujeitos da cultura, vão sendo
inseridas no mundo já construído, constituído por numerosas
descobertas realizadas pela civilização. Dependendo da forma
como o adulto atua nesse seu processo de reinvenção do
mundo, as crianças podem apenas se apropriar
mecanicamente das conquistas culturais da humanidade, como
se tudo já estivesse pronto, ou podem redescobrir e
transformar esse mundo, à sua maneira e de acordo com as
possibilidades de seu momento de desenvolvimento, guiadas
pela sua curiosidade e pelo desejo de aprender. (FARIA E
SALLES, 2007, p.62)

Como um ser da práxis, a criança, não concebe a vida, ela a experimenta.

E pensar não é somente raciocinar ou calcular ou argumentar,


como nos tem ensinado algumas vezes, mas é sobretudo dar
sentido ao que somos e ao que nos acontece. (LARROSA,
2002, p.21)

Concebendo que o quefazer, significa uma ação radical sobre a realidade,


refletir sobre as próprias ações, procurando compreender e transformar o meio
humanizá-lo. Aprender, descobrir, criar e recriar faz parte do processo de
experimentar o mundo, do quefazer.
Apesar do reconhecimento de que os estudos da infância destacam
diferentes fatores como constituintes das culturas infantis, tais como diferenças
de classes sociais, de temporalidade e regionalidade, existe uma linguagem
própria da infância. Linguagem que procura construir sentido ao real, que
procura construir significado, resistir à visão adultocentrica, de forma
imaginativa e criativa, que é o brincar.
Crianças que possuem a sua infância oprimida, resistem , reagem ao ato
de desgentificação utilizando-se o brincar. Brincam durante o trabalho infantil,
brincam durante as aulas de português, de matemática, de história...
Defendemos a concepção do brincar, como estratégia de resistência da
razão infantil. Paulo Freire procurou associar dois conceitos importantes em
sua leitura de mundo, rebeldia e consciência.

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A rebeldia apresenta-se como uma reação diante da indignação frente às
ações de opressão e de destituição do ser. Uma das questões centrais com
que temos que lidar é a promoção de posturas rebeldes em posturas
revolucionárias que nos engajam no processo radical de transformação do
mundo. (FREIRE, 1996, p.32)
O conceito de resistência para Freire não está centrado em uma postura
rebelde dissociada da utopia, mas em uma ação revolucionária e
conseqüentemente associada ao sonho e ao compromisso com a
transformação. Ação que rompe com uma razão dominante, que desestrutura
verdades petrificadas e naturalizadas.
Para o marxismo a linguagem se caracteriza com um fenômeno
essencialmente social que exterioriza a consciência. Sendo a consciência
crítica uma construção libertadora, que se efetiva na e com a práxis, logo o
quefazer infantil não pode prescindir do brincar.

O brincar é uma das formas privilegiadas de as crianças se


expressarem, se relacionarem, descobrirem, explorarem,
conhecerem e darem significado ao mundo, bem como de
construírem a sua subjetividade, constituindo-se como sujeitos
humanos em determinada cultura. (FARIA E SALLES, 2007,
p.70)

Ao brincar a criança desestrutura a razão adulta, por meio da


representação do “real”, utilizando-se do imaginário, explicita as culturas
adultas, ressignificando-as a partir do seu olhar
O soviético Vigotsky aprofunda-se na discussão sobre a linguagem, a partir
dos princípios enunciados por Marx, e afirma que a construção do pensamento
da criança se constitui por meio das relações que a mesma estabelece com as
demais pessoas e com o mundo, fundamentalmente marcadas pelas
dimensões culturais. Afirma que o brincar se constitui na principal ferramenta
infantil para construção de sentido das relações estabelecidas. 5
Vygotsky (1998), um dos representantes mais importantes da
psicologia histórico-cultural, partiu do princípio que o sujeito se
constitui nas relações com os outros, por meio de atividades

5
A citação de Vigotsky no corpo do texto fundamenta-se na concepção de que a linguagem é construída
por meio da interação com o meio e a cultura, ultrapassando uma visão psicologizante do brincar. No
entanto, divergimos do mesmo ao conceber o brincar como uma ferramenta, bem como uma das
linguagens infantis. Defendemos o brincar como a principal linguagem da Infância que se constitui como
estratégia para representação do mundo e resistência da razão infantil.

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caracteristicamente humanas, que são mediadas por ferramentas
técnicas e semióticas. Nesta perspectiva, a brincadeira infantil assume
uma posição privilegiada para a análise do processo de constituição do
sujeito; rompendo com a visão tradicional de que ela é atividade
natural de satisfação de instintos infantis, o autor apresenta o brincar
como uma atividade em que, tanto os significados social e
historicamente produzidos são construídos, quanto novos podem ali
emergir. A brincadeira e o jogo de faz-de-conta seriam considerados
como espaços de construção de conhecimentos pelas crianças, na
medida em que os significados que ali transitam são apropriados por
elas de forma específica. (QUEIROZ, 2006, p.1)

A Pedagogia da Infância Oprimida, passa pelo reconhecimento do quefazer


da infância, pela potencialização da infância enquanto ciclo da vida e como tal,
a experiência como estimuladora da dialogicidade.
O brincar como fonte de prazer, do fazer desinteressado, da capacidade
imaginativa, tem se constituído, no decorrer da história da humanidade, como
uma linguagem infante, que resiste á busca da destituição do mundo infantil.
Gramsci, ao propor um processo educacional que pudesse se caracterizar
como contra-hegemônico, falava de uma educação desinteressada.

(...) o estudo ou a maior parte dele deve ser (ou assim aparecer
aos discentes) desinteressado, ou seja, não deve ter
finalidades práticas imediatas ou muito imediatas, deve ser
formativo ainda que instrutivo, isto é, rico de noções concretas (
GRAMSCI, 2001,p.49).

O brincar enquanto quefazer infantil se constitui de forma espontânea,


desinteressada, prazerosa, criativa, mas fundamental para significação do
mundo. Dessa forma, a ação pedagógica construída com a infância, não pode
ignorar as expressões das culturas infantis evitando a didatização do brincar e
conseqüentemente a perda do prazer e da curiosidade.

SER INACABADO – SER INFANTE


A compreensão de que somos seres da história, logo detentores e
produtores de cultura, conceituam-nos antropologicamente como seres
inacabados.
Segundo Freire o processo de humanização se constitui por meio da
expressão e do anúncio do mundo, dessa forma o ser humano não se adapta

12
ao mundo, mas o transforma. Transformando o mundo, transforma a si mesmo
e com os outros.
A curiosidade epistemológica marca fundamental do infante, do
inacabamento humano, caracteriza-se pela problematização dos
condicionamentos históricos. A história compreendida não apenas como uma
mensuração temporal, mas como um processo experimental, construtivo,
transformador. Dessa forma, para além de um ciclo de vida, também podemos
pensar a infância como Infantes, inquietos, aqueles e aquelas que estão em
permanente busca.
A inquietude, a busca do por que, marcas fundamentais da infância, são
armas poderosas na destituição da naturalização das diferentes formas de
opressão.

CRIANÇA E INFÂNCIA NA PEDAGOGIA DO OPRIMIDO

Voltamos à problemática da nossa investigação: existem referências


implícitas e/ou explícitas à criança e/ou infância, na obra Pedagogia do
Oprimido?
Identificamos referências explicitas à infância/ criança na obra analisada,
apenas no final do livro quando o autor analisa a teoria antidialógica e suas
características: a conquista, dividir para manter a opressão, a manipulação e a
invasão cultural. “Como manifestação da conquista, a invasão cultural conduz a
inautenticidade do ser dos invadidos” (FREIRE, [1970] 2005, 174).
Nesta perspectiva, a educação infantil que objetiva o processo de
antecipação da vida adulta, que destitui as linguagens infantis, bem como
desconsidera a leitura de mundo da criança, torna inautêntico o agir, o pensar o
sentir da criança, oprimindo-lhe a infância.

As relações pais-filhos, nos lares, refletem, de modo geral, as


condições objetivo-culturais da totalidade de que participam. E,
se estas são condições autoritárias, rígidas, dominadoras,
penetram nos lares que incrementam o clima de opressão.
Quanto mais se desenvolvem essas relações de feição
autoritária entre pais e filhos, tanto mais vão os filhos, na
infância, introjetando a autoridade paterna. ( FREIRE,[1970]
2005 , p.176 ).

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Crianças deformadas num ambiente de desamor, opressivo,
frustradas em suas potências, como diria Fromm, se não
conseguem na juventude, endereçar-se no sentido da rebelião,
autêntica, ou se acomodam numa demissão total do seu
querer, alienados à autoridade e aos mitos de que lança mão
esta autoridade para formá-las, ou poderão vir a assumir
formas de ação destrutivas. ( Ídem, p.176).

Esta influência do lar se alonga na experiência da escola. Nela


os educandos cedo descobrem que, como no lar, para
conquistar alguma satisfação tem de adaptar-se aos preceitos
verticalmente estabelecidos. E um destes preceitos é não
pensar. ( Ídem, p.177 ).

Introjetando a autoridade paterna através de um tipo rígido de


relações, que a escola enfatiza, sua tendência, quando se
fazem profissionais, pelo próprio medo que neles se instala, é
seguir os padrões rígidos em que se deforma. ( Ídem , p.177 ).

Conforme podemos observar, nos fragmentos apresentados acima, escritos


por Freire, as referências explicitas à criança, infância e filhos, encontram-se na
idéia de que uma educação autoritária, não dialógica, incrementam um clima
de opressão, que acaba sendo absorvidos pelas crianças e jovens.
Interessante pensar que intencionalmente, o autor afirma que a invasão
cultural representa uma das características a ação antidialógica, logo
opressora.
Podemos compreender que a imposição de uma visão autoritária e
adultocêntrica buscam destituir a criança da sua identidade infantil, logo do seu
quefazer, criando um clima de opressão, por meio da invasão cultural. De que
invasão? Da destituição da cultura da infância, por meio da imposição do
mundo adulto e não dialógico, da negação do brincar enquanto “linguagem
universal” da infância.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo representa apenas uma parte da pesquisa que estamos


realizando. A análise do conjunto das obras poderá possibilitar conclusões
mais abrangentes sobre as referências e concepções apresentadas por Freire
em relação à infância e as crianças.

14
O estudo da obra Pedagogia do Oprimido foi iniciado por nosso grupo,
procurando realizar uma leitura que nos possibilitasse rastrear as referências
explícitas sobre infância e criança na referida obra.
Nesta “primeira” leitura, conforme mencionamos no corpo do texto,
identificamos que Paulo Freire se refere diretamente a criança e infância no
último sub-título do livro, quando analisa a teoria anti-dialógica.
Em tais referências Paulo Freire critica a educação familiar e escolar
centrada no autoritarismo de pais e professores que desrespeitam a anulam as
idéias e formas de expressão de crianças, jovens e alunos. Afirma Freire que a
educação antidialógica representa uma das dimensões da opressão que é
introjetada pelo oprimido e que caso este não se rebele, viverá o processo de
desumanização, por meio da invasão cultural
Freire concebe a rebelião autêntica como forma de rompimento com o
estado opressivo que procura negar a condição ontológica do ser mais. Para
que se efetive tal rebelião é necessário que o olhar do oprimido seja
estabelecido como foco da ação. Qualquer olhar? Não. O olhar que se volte
para a construção de sentido da realidade e conseqüentemente da sua
transformação.
Uma das principais linguagens utilizadas pela criança, que possibilita que a
mesma se relacione ludicamente com a realidade e seus contextos, é o brincar.
Brincando desinteressadamente, criativamente e prazerosamente, a
criança constrói significado ao real, dialoga com a cultura, com a história,
transforma a si e ao mundo.
O problema da pesquisa foi novamente colocado: é possível inferir a
existência de uma práxis ou quefazer específico da infância? Utilizando-nos,
obviamente, dos conceitos de quefazer e práxis apresentados na Pedagogia do
Oprimido.
Concluímos que sim. A partir do olhar infantil, o brincar se constitui em um
quefazer. Negar as culturas infantis, negar a criança como sujeito, representam
práticas de uma pedagogia opressiva, de silenciamento e de negação à
infância.
As crianças resistem a tal negação por meio do brincar. Resistem à invasão
cultural adulta, resistem à educação anti dialógica.

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Construir uma Pedagogia da Infância Oprimida significa construir o processo
educacional junto com a infância em um diálogo que privilegie o olhar infantil e
a sua leitura de mundo, para tanto o brincar torna-se imprescindível.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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Scipione, 2007.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido 17 ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra,


2005 [1970].

___________. Desafios da educação de adultos frente a nova


reestruturação tecnológica, 1996

GRAMSCI, Antonio. Intelectuais e a organização da cultura. São Paulo,


Civilização Brasileira, 1989.

__________. Cadernos do cárcere. Os intelectuais. O princípio educativo.


Jornalismo. Volume 2, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. In:


Revista Brasileira de Educação, Jan-Abr/2002, n°19. (p.20-28).

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http://www.marxists.org/portugues/lenin/1902/quefazer/index.htm. Pesquisa
realizada em 02/10/2008.

QUEIROZ, Norma Lúcia Neris. Brincares. Universidade Federal de Minas,


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SAUL. Ana Maria (org). Paulo Freire e a formação de educadores: múltiplos


olhares. São Paulo: Editora Articulação Universidade/Escola, 2000.

SILVA, Tomaz Tadeu. Ernani Fiori: um intelectual apaixonado. In: Educação


& Realidade. V. 11, nº 01, janeiro/junho, Porto Alegre, 1986.

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