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Jacó Lentsman — foi publicado pela primeira vez na U.R.S.S., em 1958, sob os
auspícios da Academia de Ciência. Conheceu, em seguida, uma tradução francesa e
outra espanhola, e está sendo publicada agora, pela primeira vez, em português, pela
Editôra Fulgor, na sua Coleção de Estudos Sociais e Filosóficos. Encarregou-se da sua
tradução o ProL Cunha Andrade, Assistente da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras, da U.S.P., um especialista em História da Filosofia, e uru apaixonado estudioso
dos problemas sociais e religiosos.
Corno o seu nome indica, o presente trabalho é consa4 grado ao estúdo dos principais
problemas das origens e das raízes ideológicas da religião cristã e da edificação da
Igreja Cristã. Durante muitos séculàs aceitou-se pràticarnente sem discussão o caráter
divino do Cristo, a sua qualidade de filho de I)eus, a sua existência histórica, e,
portanto, o caráter sobrenatural e divino da Igreja Cristã, fundada por inspiração direta
do Cristo. E certo que desde os primeiros tempos existiram doutrinas heréticas dentro
do seio do cristianismo, mas essas divergências não se referiam às questões básicas do
caráter divino da própria igreja, e do seu fundador mítico. As grandes dúvidas, . a crítica
fundamentada, que veio abalar os alicerces do edifício construído durante os milénios
de fé cega e irracional, só surgiram mesmo no século XVIII, especialmente devido aos
trabalhos dos enciclopedistas. De lá, para cá, como resultado da ação de sociólogos,
historiadores e psicólogos surgiu na França, na Alemanha, na Inglaterra e na U.R.S.S.,
principalmente, uma verdadeiia escola —- ou escolas, seria melhor dizer — de crítica
racionalista, que encara as manifestações religiosas como fenômenos de ordem
psicológica e social tão naturais quanto quaisquer outros, e, como tal, passíveis de
estudos científicos. Os textos religiosos, sejam êles a Bíblia, ou o Alcorão, o Talrnud,
ou os Vedas, são documentos escritos, de caráter histórico, sem qualquer coisa de
sagrado ou de revelado, que devem ser estudados à luz da crítica racionalista. E é isso
que Jacó Lentsman faz neste livro. Estuda à luz da razão e das conquistas das diversas
ciências as fontes pagãs e cristãs, os autores dos primeiros séculos do cristianismo, os
monumentos que chegaram até nós etc., elucidando, dessa forma, de modo brilhante, as
fases iniciais do complexo processo histórico e social que fz surgir o cristianismo, e que
O transformou lentamente na religião oficial do Império Romano.
TRADUZIDO DO ORIGINAL EM FRANCÊS L’ORIGINE DU CHRISTIANISME
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
EDITORA FULGOR
INDICE
INTRODUÇÃO 11
1 AS FONTES DO CRISTIANISMO 33
1 Fontes cristãs 34
2 O Cristianismo e o Judaísmo 91
VI O CRISTIANISMO DURANTE
6 As Heresias do Século II
CONCLUSÃO 225
A presente obra é consagrada aos principais problemas concernentes às origens e às
raízes da religião cristã, e à constituição da Igreja. Ela apresenta um sumário da
literatura cristã dos primeiros séculos, descreve as fases iniciais do processo histórico
que determinou a transformação do cristianismo em religião oficial do Império
Romano, O leitor nela encontrará, por outro lado, uma exposição da crítica do
cristianismo pelos pensadores da Antigüidade, e um relato das razões do aparecimento
de doutrinas heréticas no século II.
A obra cuja tradução é proposta aos leitores foi publicada em 1958, sob os auspícios da
Academia de Ciências da U.R.S.S. O autor propôs-se o objetivo de nela expor, de
maneira acessível a todos, os resultados das pesquisas efetuadas pelos historiadores
soviéticos a respeito das origens do cristianismo. Em vista das divergências essenciais
entre dois historiadores de primeiro plano, A. Ranovitch e R. Viper, no que concerne à
natureza social do cristianismo primitivo e ao momento de sua aparição, reservamos
grande espaço para a análise de suas opiniões.
Destinado primeiramente aos leitores soviéticos, menos habituados aos textos bíblicos
do que os leitores franceses, em conseqüência da absoluta laicidade do ensino e da
estrita separação entre a Igreja e o Estado em nosso país, êste livro expõe, talvez muito
mais detalhadamente do que seria necessário, o conteúdo do Nôvo Testamento; porém,
se se suprimissem essas passagens na presente tradução, prejudicar-se-ia a unidade da
obra. Ao reexaminar o texto, tendo em vista a sua tradução, o autor achou-se no dever
de levar em maior conta as opiniões dos escritores franceses sôbre a matéria (Alfred
Loisy e outros), e, também, a concepção católica das origens cristãs.
Os textos bíblicos são citados segundo a tradução de Louis Second, Paris, 1952.
9
INTRODUÇÃO
O problema das origens do cristianismo, das fases da sua evolução até o momento em
que se torna a religião dominante do Império Romano em decadência, das razões da sua
vitória sôbre as outras religiões que pretendiam o mesmo papel, não apresenta apenas
um interêsse teórico. Sua solução é também muito importante para se esclarecer o
caráter da ideologia e das opiniões vigentes durante o período de decomposição do
sistema escravagista, mas ela deve seu principal alcance e sua atualidade política ao fato
de, por meio dela, ser possível dissipar-se, à luz da ciência, o mito da origem divina do
cristianismo, e revelar-se as causas materiais do nascimento e do triunfo da religião
cristã, a mais influente das três religiões mundiais.
mostra que esta religião, como tôdas as outras, apareceu em conseqüência de certas
condições econômicas e sociais. Rigorosamente aplicada, ela põe em evidência, por
outro lado, que a vitória do cristianismo resulta, não da qualidade da moral de que seria
o portador, mas de uma série de circunstâncias de natureza bem diferente, entre as quais
convém citar, particularmente, a renúncia da Igreja ao espírito revolucionário das
primeiras comunidades cristãs e a acomodação do alto clero com os meios
governamentais da antiga Roma.
Sendo a análise científica fatal aos dogmas ortodoxos, as pesquisas consagradas aos
começos do cristianismo sempre se desenrolaram num clima de áspera luta política. As
tentativas de encarar os documentos dos primeiros tempos da era cristã, na medida em
que são fontes históricas, aplicando ao seu estudo os métodos científicos em uso,
sempre se defrontaram com a oposição formal da Igreja. Ela prefere, evidentemente,
apresentar as sagradas escrituras como um artigo de fé à margem de qualquer pesquisa,
como um texto sagrado, em que cada palavra se deve à «revelação». O Papa Pio XII,
dirigindo a palavra a um congresso internacional de historiadores que se reuniram em
Roma em 1955, repetiu de nôvo que, para os católicos, o problema da existência de
Jesus concerne à fé, não à ciência.
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12
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
Até aos começos do século XVII, esta questão nunca tinha sido estudada de um ponto
de vista científico, por causa do império sem limites da ideologia religiosa. Os escritores
católicos, assim como os seus adversários, nunca tinham pôsto em dúvida as afirmações
das santas escrituras. Até mesmo os teólogos luteranos, como Osiander (século XVI),
chegavam a declarar que, se os evangelhos expunham certos acontecimentos várias
vêzes e com detalhes muitas vêzes contraditórios — a ressurreição da filha de Jairo, por
exemplo — isso apenas significava que a coisa tinha acontecido mais de uma vez. Até
mesmo os movimentos revolucionários das massas contra o poder da Igreja Católica se
desenrolaram habitualmente sob a palavra de ordem de retôrno aos costumes
evangélicos. Foi o que aconteceu, particularmente, por ocasião das revoltas camponesas
na Inglaterra (a insurreição dirigida por Wat Tyler em 1381), das sublevações dos
taborítas tchecos (1419-1434), da Grande Guerra Camponesa na Alemanha (1524-
1525), da revolução inglêsa do século XVII.
Na França, grande número de ideólogos da burguesia, em luta, por essa época, contra o
feudalismo, particularmente Voltaire,
INTRODUÇÃO 13
No princípio do século XIX, o progresso geral dos métodos de estudo dos documentos
históricos não deixou de influir nas pesquisas relativas às origens do cristianismo. A
análise Crítica dos monumentos mais antigos da literatura grega, tais como os poemas
de Homero, revelou contradições devidas à superposição de textos compostos em
épocas diferentes e assaz distanciadas uma da outra. O estudo dos documentos
concerflentes à história romana dos tempos mais recuados deu resulfados análogos.
A aplicação dos novos métodos de investigação histórica ao estudo dos evangelhos não
tardou a evidenciar a inconsistência completa dos dogmas tradicionais da Igreja. No
decorrer dos primeiros decênios do século passado, deram-se os primeiros passos nesse
‘sentido por iniciativa de Ferdinand-Christian Baur, Professor de Teologia da
Universidade de Tubingue, na Aleanha. Hegeliano convicto, tentou aplicar o método
dialético hegeliano aos primeiros escritos cristãos. Baur e seus discípulos (Escola de
Tubingue) descobriram duas tendências contrárias no Nôvo Testamento: a primeira,
ligada a Pedro, apresenta os sinais das origens judaicas da religião cristã, e a segunda,
ligada ao nome do apóstolo Paulo (paulinismo) opõe-se ao judaísmo. Segundo os
escritores da escola de Tubingue, em conformidade com a concepção filosófica de
Hegel, os evangelhos são a síntese aóssas duas tendências contrárias e devem, por essa
razão, ser çs escritos menos antigos do Nôvo Testamento. Firmes nessa çonvicção, os
adeptos de Baur desenvolveram uma frutuosa atividade para estabelecer a data da
composição dos livros neotestamentários. A Escola de Tubingue submeteu êsses textos
a uma análise sistemática e êsse foi, incontestàvelmente, um dos seus maiores méritos.
Ela revelou diferenças essenciais ntre os evangelhos sinóticos e o Evangelho Segundo
João, assim como grande número de contradições nos evangelhos, demonstrou que a
maioria das epístolas atribuídas ao apóstolo Paulo, tais como nós as conhecemos, não
puderam ter vindo luz antes do século II. Os representantes da Escola de Tubingue
enriqueceram assim muito a crítica científica dos pri-
14
A ORIGEM 00 CRISTIANISMO
meiros escritos cristãos. Porém, idealistas em filosofia, não souberam abordar o aspecto
social do problema das origens do cristianismo.
«A Escola de Tubingue, assinala F. Engeis, (.. . ) vai tão longe no exame crítico, quanto
uma escola teológica poderia
ir. Ela admite que os quatro evangelhos não são (... ) senão arranjos ulteriores de
escritos perdidos ( . . . ). Ela risca da narração histórica, como inadmissíveis, todos os
milagres e tôdas as contradições; do que resta, procura «salvar tudo aquilo que pode ser
salvo» ( ...). Em todo o caso, tudo aquild que a Escola de Tubingue rejeita do Nôvo
Testamento como apócrifo, ou como não histórico, pode ser considerado como
definitivamente rejeitado pela ciência.»1
O passo seguinte no domínio da crítica científica dos evangelhos foi dado pelo teólogo
David-Friedrich Strauss que estudou com a ajuda do método comparativo os dados do
Nóvo Testamento a respeito do Cristo. Nos dois tornos de sua Vida de Jesus,
demonstrou irrefutàvelmente que quase tudo aquilo que os apóstolos dizem sôbre o
Cristo foi emprestado de religiões anteriores ao cristianismo, que a fé na divindade de
jesus tinha sido inspirada pela espera, entre os hebreus, da aparição de um redentor, do
Messias (oint, em hebraico). Convém, contudo, lembrar que, na terceira edição do seu
livro, Strauss atribuiu caráter histórico a certo número de lendas ligadas à vida de Jesus,
visivelmente na esperança dë ser nomead para a cadeira de teologia da Universidade de
Zurich. ao tendo conseguido tal nomeação, êle mesmo anulou, posteriormente, aquela
concessão ao dogma da Igreja. . . Nos Diálogos de Ulrich de Hutten, confessou, um
quarto de século mais tarde: «Meu livro fechou-me o acesso ao professorado, que era
minha aspiração e para o qual tinha aptidões, parece-me. Arrancou-me ao ambiente
normal, lançou-me num meio estranho, condenou-me à solidão. Bendigo, contudo, êsse
livro que, apesar de me ter causado um grande prejuízo, assegurou a serenidade de
minha alma e do meu coração.» Caracterizando num estilo colorido a importância da
vida de Jesus de Strauss, A. Schweitzer diz: «Strauss passou um atestado de óbito a tôda
uma série de interpretações racionalistas das lendas evangélicas. E se estas últimas
ainda figuram na teologia contemporânea, não é senão na qualidade de fantasmas.»2
A obra de David Strauss defrontou-se com uma crítica brutal, muitas vêzes difamatória,
da parte dos teólogos católicos
1 Karl MARX e F. ENGELS: Sur la Religion, Ëditions Sociales, Paris, 1960, pág. 317.
INTRODUÇÃO
15
apresentar o Cristo como um ser humano em uma série de obras que fizeram sensação
na época, entre as quais se destacam sua Vie de Jêsus e Les Apótres.
A principal conclusão das obras críticas dos pesquisadores mencionados foi, portanto,
enunciar que os quatro evangelhos do Nôvo Testamento não teriam podido vir a luz
antes do II século, sendo assim quase os últimos, em data, dos escritos canônicos. O
estabelecimento da data aproximada, e por vêzes exata, da composição das diferentes
epístolas do Nôvo Testamento pôs em evidência que a maior parte delas são anteriores
aos evangelhos. Ora, Jesus é descrito nos evangelhos com
detalhes pseudo-concretos, dos quais não se encontram qualquer vestígio nos escritos
cristãos mais antigos. Esta circunstância levou inevitàvelmente o pesquisador imparcial
a concluir que os evangelhos não são válidos como documentos a respeito da existência
histórica de Jesus.
Uma das lacunas mais graves dos representantes da Escola de Tubingue, assim como de
seus adversários, reside na sua inaptidão para ver no cristianismo um fenômeno
histórico determinado por dadas condições, a expressão ideológica das contradições que
lavravam no seio da sociedade escravagista do Império Romano. Para êles, o
cristianismo era portador de uma verdade absoluta. Nem sequer, procuraram indagar
qual era a tese social do cristianismo primitivo, e qual era seu programa político...
Friedrich Engels consagrou a maior atenção possível a essas questões que nunca
deixaram de lhe interessar, e das quais tratou em trabalhos tais como Ludwig
Feuerbach, AntiDühring, Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado etc. A
herança literária de Engeis compõrta três trabalhos especialmente consagrados à história
do cristianismo nos seus começos: Bruno Bauer e o Cristianismo Primitivo (1882),
Engeis fixou sua atenção nas pesquisas relativas às raízes ideológicas e à natureza social
do cristianismo original, caracterizado por êle como uma religião de escravos e de
oprimidos. Êle frisou que, nos seus princípios, a cristandade englobava um número
infinito de seitas que se degladiavam numa verdadeira straggle for li/e4, e cuja ideologia
não passava de um amontoado de preconceitos e superstições. E que, se o cristianismo
primitivo pôde, apesar de tudo, conquistar as massas
4 Luta pela vida. (Nota do Tradutor.)
INTRODUÇÃO 17
e a elas se impor finalmente, foi porque êle indicava uma solução para as multidões
oprimidas e prêsas de um desespêro e de uma miséria sem nome, solução ilusória, é
certo, porquanto situava-a no outro mundo. Entre os fatôres que favoreceram a difusão
do cristianismo na Antigüidade, Engeis indica a ausência do ritual entre seus primeiros
adeptos, o que destruía as separações étnicas e sociais entre os homens, e proclamava a
idéia de igualdade, se bem que num sentido puramente negativo, uma vez que se tratava
da igualdade do pecado original e diante de Deus. Resumindo suas idéias sôbre o
cristianismo primitivo, Engeis assinala seu espírito rebelde, a sêde sã de vingança dos
primeiros cristãos contra a poder romano.
O comêço do nosso século foi marcado por um nôvo passQ importante no domínio do
estudo das raízes ideológicas do cristianismo. Um grupo de historiadores burgueses,
crentes na sua maioria, e que é conhecido pelo nome de «Escola Mitológica)>,
ultrapassou consideràvelmente os representantes da Escola de Tubingue no que
concerne à crítica do Nôvo Testamento. Tais histriadores proclamaram que não se
dispõe de qualquer prova cientificamente válida a respeito da existência histórica de
Jesus. Tal idéia tinha sido enunciada primeiramente pelos pensadores franceses do
século XVIII, mas foram, sobretudo, os trabalhos da Escola de Tubingue que
contribuíram para o aparecimento da Escola mitológica, porque esta é, de fato, uma
continuadora daquela. As dúvidas a respeito da realidade histórica do suposto fundador
do cristianismo tornaram-se legítimas, com efeito, desde que se estabeleceu que os
evangelhos datavam do século II. E tal realidade foi negada por J. Robertson, W. B.
Smith, A. Niemojevsqui, A. Drews,
Uma das têntativas mais sérias para resolver o problema da origem do mito de Cristo,
foi a do inglês John Robertson, no comêço do nosso século. Êle continuou as pesquisas
do 5eu compatriota, o etnólogo J. Frazer, que numa obra conhecida, The Golden Bough,
tentou demonstrar, valendo-se do método cõmparativo, a existência de um paralelismo
nos usos e cos— lumes dos diversos povos, e de analogias em sua evolução espiritual.
Segundo êste sábio, as raízes da religião devem ser buscadas nos ritos mágicos das
tribos primitivas. Assinala que muitas dessas tribos professavam o culto do deus morto
e ressuscitado e tinham, em particular, o hábito de matar seus chefes ou os filhos dêstes,
acreditando assegurar por tal preço a fertilidade do solo. Aplicando esta idéia como fio
condutor para o estudo do problema da origem da religião cristã, Robertson chegou à
conclusão de que se assistia, aqui também, ao mesmo processo, devendo isto significar
que o mito evangélico nasceu de representações religiosas precedentes. Descobriu
certos traços de um culto de Jesus anterior ao cristianismà, e observou que várias
passagens do Evangelho Segundo Marcos e de outros sinóticos limitam-se a expor
cenas de um rito que tinha por tema «Paixões» pré-cristãs.
18
INTRODUÇÃO 19
20
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
Nos começos do nosso século, entre as obras postas no Índex, proibidas aos leitores
católicos, figuravam as de Louis Duchesne e as de Alfred Loisy, grandes especialistas
da história do cristianismo primitivo. O Abade A. Loisy, um dos fundadores do
modernismo católico, foi excomungado em 1908 pela simples razão de ter querido
estudar as fontes cristãs à luz da ciência, e isto apesar de sua fidelidade à Igreja.8 As
conclusões a que chegou após a análise dessas fontes coincidem, em muitos pontos,
com as conclusões dos representantes da Escola de Tubingue. Acha, igualmente, que os
documentos chegados até nós nada contêm de probante sôbre a vida de jesus e, em
geral, sôbre a ideologia das primeiras comunidades cristãs. A seus olhos, o relato
evangélico justifica apenas a hipótese da existência de um protótipo longínquo do Cristo
que teria servido de modêlo para a lenda conhecida.
A. Loisy, a êste respeito, participava das opiniões dos teólogos liberais do seu tempo,
mas, posteriormente, êle foi muito além, pondo em dúvida a autenticidade das Epístolas
paulinianas. Segundo êle, essas Epístolas teriam sido largamente refundidas, em. várias
ocasiões, no curso do século II, antes de serem incluídas no Nôvo Testamento, de sorte
que apenas uma parte ínfima do seu texto remontaria à época em que o apóstolo Paulo
teria vivido. Ao têrmo de suas longas pesquisas, Loisy desfechou um rude golpe na
tradição ortodoxa, ao provar que os livros do Nôvo Testamento não fornecem
8 Ver F. HEILER: Der Vater des Katholischea Modernismes Aijie d Loisy (1857-
1940),. Munique, 1947, pág. 72.
INTRODUÇÃO 21
qualquer dado válido sôbre Jesus, salvo certas reminiscências relativas à sua
personalidade e à sua morte.
De que modo êste homem profundamente religioso, êste abade, chegou a um ponto de
vista tão radicalmente contrário ao dogma da Igreja Católica e da Protestante? Jovem
ainda, quando estudava no Instituto Católico de Paris, tinha notadô que os evangelhos
sinóticos se contradizem, particularmente quando dão genealogias diferentes do Cristo.
(Nos evangelhos, segundo Mateus, e segundo Lucas.) Os argumentos que seus
professôres opunham à crítica racionalista dos evangelhos eram tão frágeis que êle
mesmo se pôs a estudar essa crítia, movido pelo desejo sincero de defender mais
eficazmente os dogmas do catolicismo. Em suas Memoires9, Alfred Loisy reproduz o
texto da prece em que pedia ao Senhor vinte anos de saúde, paciência e amor ao
trabalho para defender a Igreja contra seus inimigos no campo científico. Porém, êsses
vinte anos de esforços o conduziram a um resultado absolutamente diferente.
Padre, foi, em primeiro lugar, privado do direito de ensinar teologia, depois, seus livros
foram postos no Índex, e êle mesmo viu-se excomungado, pois não quis retratar
piblicamente suas obras, tal como o exigia o Vaticano. Por menos científico que seja, o
exame das origens do cristianismo revela-se incompatível com a fé católica, mesmo
para êste abade bem intencionado...
Não se imagine, contudo, que é apenas o Vaticano que se opõe com tôdas as suas fôrças
à análise científica das origens do cristianismo, particularmente a Pontifícia Comissão
Bíblica, encarregada de sufocar a mínima veleidade de crítica racionalista às santas
escrituras. Friedrich Heiler, biógrafo, muito cristão aliás, de Alfred Loisy, nota à página
225 da obra anteriormente citada: «. . . As pesquisas em nome da verdade chocam-se
não apenas com a resistência da Igreja Romana, mas, também, com a de tôdas as outras
comunidades cristãs, com raras exceções! Além da Cúria de Roma, as ortodoxias
protestantes se encarniçaram contra muitos espíritos nobres e audazes.»
Até mesmo um pastor protestante tal como Albert Schweitzer, . um dos mais eminentes
pesquisadores contemporâneos no domínio da história do cristianismo primitivo, não
pôde evitar as perseguições, ainda que sua vida possa servir de modêlo de virtudes
cristãs.10 Filho de um pastor alsaciano, êle próprio Doutor ém Teologia, na idade de 30
anos tomou a decisão de deixar a Europa, onde tinha a existência garantida, para
22 A ORIGEM DO CRISTIANISMO
A esta escola pertence o inglês Archibald Robertson, historiador progressista cuja obra a
respeito das origens do cristianismo foi recentemente traduzida em russo, e que é
preciso não confundir com John Robertson, um dos fundadores da Escola Mitológica.
Interessado em esclarecer êste problema à luz do materialismo, êste historiador busca as
raízes sociais e econômicas do cristianismo primitivo na conjunctura real na Palestina e
no Império Romano em geral, no alvorecer de nossa era. Apesar de considerar que o
cristianismo primitivo era a religião dos oprimidos e dos deserdados, êle permanece um
partidário convencido da Escola Histórica,
Notemos que os adeptos desta escola não são unânimes em admitir a existência de um
protótipo de Jesus finicamente a titulo de hipótese que facilite a compreensão do
aparecimento do conhecido mito. E preciso não esquecer que o problema das origens do
cristianismo sempre ultrapassou, o quadro da ciência. As declarações a respeito da
existência real de Cristo mistura-se quase sempre o desejo oculto de conciliar a ciência e
, a religião, de adaptar esta àquela. Ajuntemos que nos países capitalistas êste problema
é estudado quase que exclusivamente por teólogos, cujo bem-estar material depende do
reconhecime to da autenticidade do relato evangélico. Se pensarmos nas palavras de
Schweitzer — «O exame crítico da vida de Jesus é para os teólogos uma escola de
honestidade» — é necessário constatar que poucos entre êles levam isso em conta. -
Pode-se, com efeito, contar nos dedos os padres que, a exemplo de Bruno Bauer, Alfred
Loisy, Albert Schweitzei, não hesitam em pôr em perigo seu confôrto material e sua
posição social ao defender suas opiniões científicas. Habitualmente, é o contrário que se
dá: vimos que David Strauss renunciou pro
24
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
O historiador das origens cristãs não pode deixar de valer-se dos trabalhos da Escola
Mitológica e da Escola Histórica, assim como dos resultados de outras investigações
sôbre
INTRODUÇÃO
25
Marcos, foi submetida a um exame detalhado, o que permitiu apreender melhor as
tendências em que se haviam inspirado ao recolher e redigir os evangelhos canônicos.
Outros êxitos parciais foram obtidos no que concerne à análise dos sinóticos, mas a
«ponte» de que falamos acima não pôde ser lançada:
de 600 páginas do seu livro a expor o mito evangélico de acôrdo com a tradição da
Igreja. Reconhecendo, em parte, os méritos do método histórico aplicado ao estudo dos
Evangelhos, êste autor sente-se no dever de lembrar que a análise do Nôvo Testamento
não deve ter senão um único fim: o de afastar as dúvidas a respeito da sua veracidade.
Em lugar de buscar as raízes da ideologia cristã primitiva nas condições da vida material
e espiritual da população mediterrânea na alvorada de nossa era, Daniel-Rops não se
cansa de sublinhar o caráter «excepcional» do cristianismo. Revelação vinda do alto. O
tom de sua polêmica com os teólogos liberais trai contudo o desejo de encontrar uma
posição comum a fim de salvar a tradição ortodoxa em face da ofensiva da crítica
radical.
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
Existentialistes, les Protestants, les Juijs, l’Hindouisme, Paris, 1948. À página 55 dessa
obra, o seu autor exclama com fingido espanto: «A quem se poderia fazer crer que a
religião de S. Paulo é o reflexo das condições econômicas da civilização mediterrânea
do século 1?» Afirmando que não se pode descobrir desacordos fundamentais entre
católicos e protestantes quanto aos dogmas e ao resto, êle qualifica de escandaloso o
cisma da Igreja, opinião compartilhada por alguns protestantes, entre o quais Ch.
Westphal que, em carta endereçada a Daniélou, e que êste último cita em seu livro
(págs. 129-139), proclama a necessidade de esquecer as divergências entre o
catolicismo e o protestantismo, pois, acrescenta- êle, «talvez a existência mesma da
Igreja, no século em que estamos, vai depender dessa conversão. Neste sentido também,
o tempo urge.» Assim, vemos os cleiqcais de tôdas as côres pregarem a união em face
do perigo que os ameaça. . . E isto, naturalmente, à base de uma ortodoxia vagamente
renovada, depurada de - suas obscuridades mais flagrantes, mas sempre a mesma quanto
ao fundo e ao preço do esquecimento das conclusões críticas da Escola Mitológica e
também daquelas, muito menos radicais, da Escola de Tubingue. De fato, torna-se cada
vez mais difícil descobrir qualquer diferença entre os teólogos - católicos, e os
protestantes, uma vez que êstes últimos encaramos textos do Nôvo Testamento de um
modo cada vez mais dogmático. É preciso acentuar que esta atitude de sua parte não
decorre de um progresso da ciência histórica aplicada aos estudos dos evangelhos; ela
apenas reflete a renúncia da ciência burguesa às tradições liberais do seu passado.
Atualmente, a Escola Mitológica não tem continuadores no Ocidente, s-e bem que as
conclusões críticas enunciadas por seus representantes nada tenham perdido do seu
valor.
13 Ver P.- ALFARXC: A l’Éçole de la Raison. Eudes sar les O-eigines Chruíiernes,
Paris, 1957.
INTRODUÇÃO
27
A partir dessa data, tem participado cada vez rnaís enèrgicamente da ação da União
Racionalista dirigida por F. Joliot-Curíe.
Como Alfred Loisy, Prosper Alfaric assinalou nas suas Memoires a «dificuldade sem
cessar crescente de conciliar a fé tradicional, com urna razão sempre mais exigente.»
Mas, diferentemente do seu predecessor, êle achava que a vida de Jesus apresenta
muitas semelhanças com os mitos de Osíris, de Mitra e de Atis. Durante os últimos anos
de sua vida, acompanhou com viva atenção as escavações arqueológicas na região de
Coumrâ, e, estudando os manuscritos que aí se encontraram, foi levado à conclusão que
êle eram o elo que faltava até então à história do cristianismo primitivo, que êles
demonstravam que êste tinhaS nascido no seio da seita dos essênios.
Seu biógrafo relata certa passagem de sua vida que muito bem o caracteriza. Como lhes
apresentassem alguém muito susceptível em prosseguir as pesquisas a respeito da
história das origens do cristianismo, êle refletiu a respeito dos méritos do candidato, e
respondeu: «Inegàvelmente é um sábio de valor, mas tem muito receio de aborrecer o
padre Daniélou. . . »
na França.
origens cristãs. Eles publicaram durante os últimos decênios muitas obras de valor nesse
domínio. Já nas décadas de 20 e de 30, apareciam Como Nascem e Morrem os Deuses e
as Deusas, de J. Iaroslavsqui, vários escritos devidos à pena de
ideologia cristã refletia já, em grande medida, a das classes possuidoras da antiga
sociedade romana. Sua negação da existência .do cristianismo durante a segunda metade
do século 1 e a primeira metade do século II suscita, contudo, graves objeções pelo fato
de não ter êle levado em conta papiros e monumentos ristãos que datam justamente da
primeira metade do século II. Este historiador não aceita a idéia de que o cristianismo
nos seus começos fôsse a religião dos oprimidos; considera que êle refletia, desde o seu
nascimento, os interêsses das classes possuidoras, sem poder explicar de que maneira a
ideologia cristã pôde aparecer de repente, quase que inteiramente elaborada.
•nos primeiros escritos cristãos por sua evolução, da categoria de uma divindade, para a
de um Homem-Deus, os apóstolos aparecem no Nôvo Testamento na ualidade de
simples mortais podendo ter, por conseguinte, protótipos históricos reais, ainda que
aureolados por um clarão legendário.
30 A ORIGEM DO CRISTJÀNISMO
orientais, revestem-se de uma grande importância para o estudo aprofundado das
origens do cristianismo no decorrer dos três primeiros séculos da era nova. Citemos,
entre êsses escritos, o livro de A. Ranovitch, As Províncias Orientais do Império
Romano, do Século 1 ao III, 1949, alguns artigos de E. Staçrmann sôbre a ideologia da
população laboriosa do Império Romano: «As Revoltas Africanas do Século III»,
«Reflexo das Contradições de Classe no Culto de Hércules nos Séculos II e III», «As
Perseguições dos Cristãos no III século», «Sôbre a História das Correntes Ideológicas
nos Séculos II e III». Não podemos recordar aqui tudo aquilo que já se escreveu entre
nós sôbre êsse assunto, porém mencionaremos ainda o trabalho de 1. Frantsev:
Contribuição à História do Aparecimçnto do Cristianismo no Egito. Digamos, enfim,
algumas palavras sôbre a obra recente de um historiador polonês, B. Lapiqui, A Cultura
Ética da Antiga Roma, e o Cristianismo Primitivo, 1958. Comparando os diversos
sistemas ideológicos da Roma antiga, com o cristianismo primitivo, B. Lapiqui afirma
que as fontes de que dispomos permitem distinguir duas correntes ideológicas
fundamentais no seio da sociedade romana na alvorada da nossa era: a corrente das
classes dominantes e aquela, essencialmente diferente, dos filósofos romanos, correntes
às quais a nova ideologia cristã se opunha rad.icalmente. Na opinião dêste escritor,
enquanto que os filósofos romanos, humanitários, colocavam o homem no centro de
tudo, a ideologia cristã era teocêntrica, e não humanitária, apesar do seu humanismo. As
conclusões de B. Lapiqui são, às vêzes, disçutíveis, porém sua obra não deixa de chamar
a atenção para um aspecto da ideologia cristã primitiva que é muito importante e que foi
pouco esclarecido até então na literatura marxista.
Os principais resultados do estudo das origens cristãs durante mais de um século e meio
podem ser resumidos como segue:
4. O desmentido dado a esta tese destrói inevitàvelmente, por outro lado, a concepção
tradicional de uma Igreja única, fundada desde os começos por apóstolos que visavam
assegurar a observação dos ensinamentos de Cristo. A Igreja proveio, ao contrário, de
uma infinidade de comunidades de crentes, muitas vêzes em luta umas contra as outras,
e não se constituiu senão no século II.
32 A ORIGEM DO CRISTIANISMO
sem preferido a tôdas as outras religiões esta absurdidade pregada pelos oprimidos e
pelos escravos. - . »14
Dedicamos grande espaço nas páginas que se vão ler à análise dos evangelhos e a outros
escritos cristãos, bem como à data de sua composição. Sem isso, é impossível
apresentar um quadro histàricamente fiel da evolução do cristianismo, de pôr em
evidência as transformações sofridas por essa religião. Ao escrever êste livro, quis o
autor tratar, sobretudo, das questões referentes à gênese da imagem evangélica do
Cristo, da formação dos dogmas cristãos, da atitude dos ideólogos da nova religião em
face da escravidão e do poder secular, da composição social das comunidades cristãs
primitivas, do aparecimento do clero e das primeiras heresias.
AS FONTES DO CRISTIANISMO
Os documentos cristãos chegados até nós são muito mais abundantes do que os não
cristãos, e isso por duas razões: a) o interêsse que a igreja tinha de conservar Inícamente
os velhos escritos redigidos por ela própria, e b) sua tendênçia a destruir todos aquêles
que expunham a história do cristiánismo primitivo de modo contrário à sua
interpretação dos acontecimentos.
33
34 A ORIGEM DO CRISTIANISMO
mãos dos eclesiásticos. É isso que explica, primeiro, por que nos resta tão pouco da
abundante literatura anticristã nos textos cristãos dos primeiros tempos, e, segundo, as
numerosas falsificações e interpolações que êsses textos sofriam. É por isso que os
enigmas do aparecimento e dos começos do cristianismo só podem ser decifrados
penosamente, graças a um paciente estudo comparado dêsses textos, e aos esforços
conjugados de todos os especialistas.
1. FONTES CRISTÃS
Inútil será dizer que nenhuma diferença real existe entre êsses dois grupos de
documentos cristãos. O problema de se saber quais os escritos que deviam entrar para o
cânone suscitou nos começos ásperas discussões, e isso ressalta das obras dos escritores
cristãos dos tempos antigos. Eusébio, Bispo de Cesaréia, que viveu no século IV, diz na
sua História Eclesiástica (III, 3 e seguintes) das divergências no seio da Igreja a
propósito da introdução no cânone do Apocalípse de João, das Epístolas de Paulo e de
alguns outros escritos. O estabelecimento definitivo dos textos canônicos só se deu,
aproximadamente, na segunda metade do século IV, para o oriente do Mediterrâneo, e
no comêço do século V, para o Ocidente. Assim se deu porque as comunidades cristãs,
durante muito tempo, consideraram diferentes escritos como sagrados e, também,
porque o estabelecimento do cânone foi precedido de uma luta encarniçada entre grupos
clericais opostos.
bôca dos representantes da Igreja outro sentido senão o de uma comunicação sôbre a
obra do «Filho de Deus» que aceitou o martírio para resgatar os pecados do gênero
humano. Mas, êsse têrmo já figurava na antiga literatura grega, a começar pela Odisséía
de Homero (Cap. XIV, versículos 152 e 166) e, no final do século 1 antes de nossa era,
nós o encontramos empregado sem qualquer relação com a religião cristã, em uma
inscrição de Priene, antiga cidade da Jônia, na qual se comemora o dia do nascimento
do Imperador Augusto. (Ogis, 458, II 40-41,)
Além dos quatro evangelhos conhecidos, existiam dezenas de outros escritos do mesmo
gênero que não foram incluídos no Nôvo Testamento por diversas razões. Irineu,
escritor cristão do último quarto do século II, proclamava no seu Tratado Contra as
Heresias (III, 11): «Há quatro evangelhos, nem um a mais, nem um a menos, e só
pessoas d espírito leviano, os ignorantes e os insolentes é que, falseando a natureza dos
evangelhos, podem aumentar ou diminuir o seu número.» E claro que Irineu não teria
falado assim se tal questão não despertasse paixões no seu tempo. O Evangelho
Segundo Lucas se refere, também, desde as primeiras linhas, a «muitos» autores que
«teriam empreendido compor» evangelhos, e nas obras antigas, encontram-se
referências a evangelhos dos nazarenos, dos judeus, dos egípcios, dos ebionitas, de
Pedro, de Tomás, de Barnabé etc. Depois do triunfo do cristianismo, a Igreja impôs- se
o dever de destruir ou de ocultar todos êsses textos, alguns dos quais foram
reencontrados recentemente no Egito.
36
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
duzir de modo mais ou menos exato o que êstes últimos teriam comunicado. Depois,
segundo a tradição da Igreja, sômente Mateus e João foram apóstolos ligados
pessoalmente a Jesus, enquanto que Marcos e Lucas foram, respectivamente, discípulos
de Pedro e de Paulo. Por isso é que dissemos que, mesmo do ponto de vista estritamente
ortodoxo, os evangelhos não são obras de testemunhas oculares dos acontecimentos que
nêles são relatados.
Os três primeiros evangelhos são consagrados essencial- mente a um só tema: a vida de
Jesus e a sua doutrina, O estudo comparativo dos evangelhos sinóticos, isto é, segundo
Mateus, Marcos e Lucas, que deu origem a uma vasta literatura, mostra que,
aproximadamente, um têrço do seu conteúdo é comum a todos os três. As passagens que
se encontram tinicamente em cada ‘um dêsses evangelhos constituem a metade do texto
do Evangelho Segundo Lucas, um têrço do Evangelho Segundo Mateus e um décimo,
aproximadamente, do Evangelho Segundo Marcos. Se os sinóticos se assemelham, tal
se dá visivelmente porque têm uma fonte comum, a compilação perdida de parábolas e
sentenças atribuídas a Jesus. Admite-se geralmente que o Evangelho Segundo Marcos2,
o mais curto aliás, seria mais fiel a êsse suposto modêlo. Os autores dos dois outros
sinóticos utilizavam o Evangelho Segundo Marcos, ou a fonte dêste, encompridaram-
no, ajuntando-lhe detalhes que nãd se sabe de onde procedem.
2 O problema de se saber qual dos dois primeiros evangelhos é o mais antigo suscitou
no passado, e suscita ainda agora, entre os teólogos, encarniçadas discussões, O
Evangelho Segundo Mateus seria, segundo a tradição da Igreja, o primeiro
cronolàgicamente, mas os teólogos liberais da segunda metade do século passado e do
comêço do nosso estabeleceram que o Evangelho Segundo Marcos é anterior a todos os
outros, opinião que se procurou refutar em seguida, mas em vão, segundo nosso parecer.
SCJIWEITZER acha que êsses dois primeiros evangelhos foram compostos quase ao
mesmo tempo.
AS FONTES DO CRISTIANISMO
37
Pode-se perguntar por’ que teria sido necessário compor tantas biografias de Jesus e por
que os textos evangélicos, tão divergentes, foram incluídos, apesar de tudo, no cânone.
Isto não foi, de modo algum, obra do azar ou da negligêncía: os evangelhos não são
anais que tenham a intenção de informar a posteridade, êles foram compostos para a
predicação, e cada um dêles visava um auditório diferente. O Evangelho Segundo
Mateus, por exemplo, deveria servir às necessidades da propaganda do cristianismo
entre os judeus. Nêle se encontram, mais do que nos outros, referências às profecias do
Antigo Testamento, sôbre o Messias. Seu autor tem o cuidado de advertir: «Não creias
que vim para abolir a lei ou os profetas: vim não para abolir, mas para cumprir.» (V,
versículo 17.) Além disso, êle se dispensa de explicar os antigos têrmos hebraicos.
Apesar dessa tendência judaica, por assim dizer, do primeiro evangelho, enganar-nos-
íamos se o acreditássemos composto por um hebreu da Palestina, tal como o mito
apresenta o apóstolo Mateus. Apesar dos esforços empregados pelos teólogos para
demonstrar que, ao menos, o texto dêsse evangelho foi traduzido do hebraico, como tal
deveria ter sido, não
35
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
se encontrou até os nossos dias o menor vestígio de um original hebraico dêste, ou dos
outros evangelhos. A língua do Evangelho Segundo Mateus é muito aproximada do
grego literário da época, e da língua dos outros livros do Nôvo Testamento, E por isso
que Erasmo, de Rotterdam, já achava que o Evangelho Segundo Mateus tinha sido
redigido originàriamente em grego, não sendo, portanto, uma tradução do hebraico.
o Evangelho Segundo Marcos, as do apóstolo Pedro. Era destinado, segundo parece, aos
leitores gregos. O relato que oferece a respeito da estada de Jesus na Palestina é mais
lacônica, sua genealogia remonta à Adão, as datas dos acontecimentos são dadas em
função do Império Romano, sua linguagem se aproxima ao máximo do dialeto literário
ático de então. O Evangelho Segundo Marcos também era destinado a um auditório bem
determinado.
Assim, cada evangelho era endereçado a um meio determinado, e tinha limitada, dêsse
modo, sua esfera de ação a uma ou outra região. Sua inclusão no cênone deu-se mais
tarde, como conseqüência de uma escolha dos escritos cristãos mais autorizados aos
olhos dos crentes.
AS FONTES DO CRISTIANISMO
39
pelo ano 80.3 As datas de composição dos outros escritos canônicos foram estabelecidas
por êles segundo o mesmo «princípio», donde se segue que o Nôvo Testamento já
existia na sua íntegra na segunda metadci do século 1. A Igreja Católica, bem como a
Igreja Ortodoxa, proclama que a ordem cronológica dos livros do Nôvo Testamento
corresponde à ordem em que são apresentados no cênone, sendo, portanto, os
evangelhos, anteriores às epístolas, e estas, ao Apocalipse, de João, o Evangelho
Segundo Mateus anterior ao de Marcos, e assim por diante.
O autor mais antigo que fala dos evangelhos, sem contudo empregar essa palavra, foi o
filósofo Justino, apologista cristão
qüe escreveu a partir do ano 150 e cujas obras chegaram até nós. Não conhecendo ainda
o Nôvo Testaménto, Justino apenas fala em «Recordações dos Apóstolos», e, fazendo
alusão às sentenças de jesus, êle informa que elas são «curtas e lacônicas», o que está
longe de corresponder ao estilo freqüentemente prolixo dos evangelistas.
Os quatro evangelhos canônicos são citados como tais, pela primeira vez, por Irineu. A
maneira como ‘êle fala, a referência a êsses evangelhos no fragmento de Muratori’4,
que é um pouco posterior, e o silêncio de Justino a respeito dêles, parece provar também
que êles não poderiam ter sido compostos antes dos meados do século II. Doutra parte,
numerosos heréticos consideravam como falsos tais ou quais escritos canônicos,
particularmente o Evangelho Segundo João. As heresias do século II defendiam, em
geral, as idéias do cristianismo primitivo, das quais se distanciava a Igreja Episcopal,
em curso de formação; é por isso que as suas declarações a respeito. do caráter não
autêntico de tal ou qual escrito evangélico são habitualmente levadas em consideração
enquanto argumento probante de que êles foram compostos mais tarde. Tais são os
motivos que obrigam os pesquisadores a encarar os evangelhos como sendo os livros
menos antigos do Nôvo Testamento.
Os Atos dos Apóstolos, situados no Nôvo Testamento imediatamente depois dos quatro
evangelhos, expõem a predicação do cristianismo entre os judeus e entre os pagãos
pelos «discípulos de Jesus Cristo», Pedro e, sobretudo, Paulo. Sendo êste escrito uma
espécie de continuação dos evangelhos, alguns teólogos católicos declaram que êle foi
composto por volta do ano 50, mas semelhante afirmação não resiste à menor análise.
Justino ignora totalmente os Atos Apostólicos e não diz uma palavra sôbre Paulo. A
comunicação da Igreja a respeito do desenvolvimento vertiginoso do cristianismo nos
países orientais do Mediterrâneo em meados do século 1 não é confirmada por qualquer
documento digno de fé. Os Atos dos Apóstolos expõem principalmente o conteúdo de
14 epístolas atribuídas a Paulo, e incluídas no cânone. Trazidas para Roma no ano 140
por Marcião, contemporâneo de Justino, essas epístolas não puderam ser adotadas
imediatamente pelos cristãos locais, e isso demonstra que os Atos, êles também, não
podem ser anteriores aos meados,, ou melhor, à segunda metade
4 Documento cristão que data aproximadamente do ano 200 e que dá uma lista de
escritos cristãos reconhecidos como “sagrados”; essa relação compreende 22 dos 27
livros do Nôvo Tessamento, além de alguns apócrifos. Ludovico MURATORI,
historiador italiano do século XVIII, descobriu éste fragmento entre os manuscritos da
Biblioteca Ambrosiana de Milão.
AS FONTES DO CRISTIANISMO
As 14 epístolas do apóstolo Paulo são endereçadas aos romanos,, aos coríntios, aos
galatas etc. . . Elas ainda não expõem o relato evangélico da vida de Jesus, mas já o
apresentam como um deus encarnado num homem. O Cristo já adquire nêles alguns
traços humanos, nasceu de uma mulher, sofreu o martírio. Jesus morre para resgatar os
pecados dos homens: tal é o leitmotiv dessas epístolas. Mas, não se encontram nelas os
numerosos detalhes próprios ao mito evangélico do Cristo. Segundo o parecer de
Engels, as epístolas ditas de Paulo, «pelo menos na sua redação atual, são 60 anos
posteriores ao Apocalipse.»5 E, coisa característica, muitos dos cristãos adversários da
Igreja oficial no século II se recusavam a reconhecer as epístolas de Paulo. Tal era o
caso dos ebionitas e dos severianos como Eusebio o diz na sua História Eclesiástica (III,
27; IV, 29) e como Irineu o confirma. Justino, apologista cristão, apesar da sua
ortodoxia, silencia a respeito dêsse apóstolo. Não foi, portanto, por acaso que, há mais
de 30 anos,
A. Harnack, chefe dos teólogos protestantes, teve de admitir que os cristãos romanos
dos fins do culo 1 e dos começos do século II ignoravam as epístolas paulinianas.
O mais antigo dos escritos canônicos é o Apocalipse de João, que encerra o Nôvo
Testamento. Seu autor conhecia sô. mente sete comunidades cristãs da Ásia Menor. O
nome de Jesus nêle figurava apenas identificado, segundo parece, ao Cordeiro, que nada
tem de comum com o Homem-Deus dos evangelhos. O Cordeiro do Apocalipse possui
«sete cornos e sete olhos» (V, 6), foi imolado «desde a fundação do mundo» (XIII, 8).
Diferentemente dos outros livros evangélicos, que pregam o princípio segundo o qual «é
preciso dar a César o que é de César», o Apocalipse de João ferve num ódio
inconciliável contra «a grande cidade que exerceu a realêza sôbre os reis da Terra»
(XVII, 18), e prediz o fim de Roma num futuro próximo.
5 Karl MARX e Friedrich ENGELS: Sai’ la Religion, d. Sociales, Paris, 1960, pág. 324.
42
por Deus» suscitou no século IV debates apaixonados. (Eusébià, ob, cit., VII, 25 e
outras.) Lutero e Zwinglio declararam mais tarde que êste escrito tinha sido incluído no
cânone por engano.
Vê-se, portanto, que a Igreja dispôs os livros do Nôvo Testamento na ordem inversa à
do seu aparecimento. O Apocalipse, que é o mais antigo de todos, remonta ao ano de
68. Depois, vêm as epístolas (primeira metade do século II). Os quatro evangelhos não
foram compostos senão em meados do século II, e deve-se considerar os Atos dos
Apóstolos como o mais recente dêsses escritos. Tal é a única ordem cronológica
possível se se parte não da lenda a respeito do caráter divino do cânone, mas dos dados
que se encontram nas obras datadas de Justino e de Irineu.
Esta passagem da Epístola de Inácio aos Filadelfianos (Cap. VIII), que data do século ii,
é igualmente muito característica das falsificações e das deformações freqüentes na
época: «Ouvi alguns dizerem: Não creio no que está escrito nos evangelhos, se não o
encontro nos arquivos.»6 E quando eu lhes respondia que isso lá estava dizia-me: «É
preciso ainda demonstrá-lo.»
O que se passou com os Atos de Pilatos não é menos significativo. Uma comunicação
do Governador Romano da Judéia a respeito do fundador do cristianismo seria
evidentemente a mais válida das provas de sua existência real. Os primeiros apologistas
cristãos afirmavam, a princípio de um modo um pouco hesitante (Justino), depois com
um tom mais
AS FONTES DO CRISTIANISMO
43
seguro (Tertuliano), que o texto desta carta deveria estar nos arquivos imperiais, em
Roma. Contudo, mesmo depois da ascensão do cristianismo à categoria de religião
oficial não se pôde descobrir o menor vestígio dêsse documento. E, no século IV, os
zelosos servidores da Igreja tomaram a decisão de fabricar um, em todos os seus
pormenores. O próprio Daniel-Rops, apesar da sua ortodoxia, se viu na obrigação de
reconhecer que tal documento é mesmo falso.7 Acrescente-se, ainda, que a
«comunicação» em questão é endereçada não ao Imperador Tibério, sob o qual Pôncio
Pilatos era governador, mas ao Imperador Cláudio que reinou de 41 a 34.
O texto grego do Nôvo Testamento adotado nos nossos dias remonta a dois códigos que
datam dos meados do século IV: o sinaico, descoberto, em 1959, em um convento do
monte Sinaí, e guardado hoje no Museu Britânico, e o do Vaticano, que só foi publicado
nos fins do século passado. Compostos, tanto um, como o outro, na cidade de
Alexandria, no Egito, reproduzem a redação já citada do Nóvo Testamento, devida a
Hesiquius.
Descobriu-se em 1931 um papiro como o mais antigo texto das epístolas de Paulo e
outros escritos ainda do Antigo e do Nôvo Testamento.8 Este código remonta
aproximadamente ao ano 200 e é, por conseguinte, um século e meio anterior ao código
sinaico, e ao do Vaticano. O papiro em questão, fato importante, foi escrito pouco
depois da composição das epístolas, que êle reproduz, notemo-lo, numa ordem diferente
da do cânone: a Epístola aos Romanos é, nêle, seguida imediatamente pela Epístola aos
Hebreas. Não se encontram nêle as epístolas pastorais do Nôvo Testamento (primeira e
segunda epístolas a Timóteo, Epístola a Tito), cujo conteúdo, mostra-lo-emos em
seguida, difere sensivelmente das outras mensagens de Paulo.
8 F. G. KENY0N: The Chester Beatty Biblical Papyri, parte 1-4, Londres, 19331934.
44 A ORIGEM DO CRISTIANISMO
Muitas das passagens dêsse papiro são diferentes do texto canônico e, além das
modificações estilísticas e erros de escrita, êste último revela mudanças de natureza
dogmática: os redatores do texto canônico se afervoravam em depurar as epístolas das
fórmulas que a Igreja declarava heréticas.
ano 254, no qual Taciano omite a genealogia de Jesus e outras passagens do Nôvo
Testamento, e no qual êle diz que o Cristo descendia dos reis da Judéia. O Diatessarão
era muito difundido no Oriente e êle é o evangelho oficial da Igreja Síria. No século V,
um bispo de Ciro retirou de sua diocese 200 exemplares do Evangelho de Taciano e os
sübstituiu pelos textos canônicos. A doutrina de Taciano diferia sob muitos aspectos dos
dogmas da Igreja oficial. Pertencia êle à seita cristã dos encrátitas, que se dedicavam ao
ascetismo. Taciano condenava o casamento, a consumação de carne e de vinho.
Atenágoras também foi discípulo de Justino. Sua Apologia Para os Cristãos, composta
no ano 180, no fundo, apenas desenvolvia as idéias da Apologia do seu mestre. Como
êle, Atenágoras se levantava contra a condenação dos cristãos pela imnica razão de
pertencerem à nova religião, e acentua, mais ainda do que o seu mestre, a lealdade dos
seus adeptos, do ponto de vista político. «Rezamos, declará êle dirigindo-se ao
Imperador Marco-Aurélio e a seu filho Cômodo, pela manutenção do vosso poder, para
que o reinado do pai passe, em herança, ao seu sucessor, para que o vosso poderio seja
cada vez mais forte e para que todo o mundo vos obedeça.» (Apologia, 37.) Atenágoras
consagra sua obra, sobretudo, à defesa dos cristãos, contra as acusações habituais de
ateísmo, de incesto de massacre dos recém-nascidos.
O mais importante dos escritores cristãos do século II foi Trineu, Bispo de Lião.
Compôs em 180, a Exposição e Refutação da Gnose Falsamente Assim Chamada, vasto
tratado contra as heresias. O texto desta obra, conservado em tradução latina, é de alta
importância para a reconstituição da história do cristianismo primitivo, e da Igreja, em
particular. Diferentemente de Justino, de Taciano e dos outros apologistas, irineu se
detém, sobretudo, nos desvios dos dogmas que estavam a caminho de se formarem.
Enumerou os evangelhos e as epístolas que, no seu tempo, já eram consideradas de
inspiração divina, e elaborou a lista cronológica dos bispos de Roma, e de outras
cidades. Irineu foi, portanto, o autor da primeira história sistemática do cristianismo,
ainda que nela seja grande a parte da lenda e da invenção. Muitas das passagens da
História Eclesiástica de Eusébio não fazem mais do que reproduzir o que é dito por
Irineu em sua obra.
A abundância de fontes cristãs datadas do século II, ao qual se ligam, nós vimos
anteriormente, quase todos os livros canônicos e um grande número de obras dos
apologistas, nos permite enfim seguir com segurança a evolução do cristianismo e da
Igreja, a partir dêsse século e, mais precisamente, da sua segunda metade. Quanto às
conclusões relativas ao período anterior do cristianismo, ao seu aparecimento,
sobretudo, elas
46
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
47
Os escritos dos antigos apologistas e dos Padres da Igreja constituem, portanto, com o
Nôvo Testamento, o segundo grupo importante de fontes concernentes à história do
cristianismo primitivo. Êstes documentos são um pouco posteriores aos escritos
canônicos, mas aquêles têm sôbre êstes a vantagem, tal como já o assinalamos, de ter
escapado a remodelações cuidadosas e diversas. Êste grupo de documentos é rico de
informações a respeito das relações entre as comunidades de crentes e o poder temporal,
a respeito da constituição da dogmática, da formação do clero, da luta contra as
heresias, da estrutura das comunidades cristãs.
Muitos dos apócrifos gozavam de um alto prestígio em certas comunidades, porém, por
diversos motivos, não foram introduzidos no cânone da Igreja e conservam por essa
razão traços específicos destruídos nos textos do Nôvo Testamento,
48
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
pelos seus redatores, O estabelecimento da data dos apócrifos está ligada, aliás, a
dificuldades consideráveis, se bem que não se possa duvidar de que a maior parte dos
que acabamos de citar remonte ao século II. R. Viper, inclinado, aliás, em cronologia a
um criticismo exagerado, situa o Pastor e a Dida quê no século 1 e até mesmo antes da
Guerra dos Judeus. E verdade que A. Ranovitch opôs argumentos de pêso a tal data, que
êle considera muito recuada.
A Didaquê é, de qualquer modo, um dos mais antigos escritos cristãos. Nada diz ela
ainda a respeito da natureza humana do Cristo, que concebe unicamente como sendo o
Filho de Deus. Não se encontra na Didaquê, fato bastante significativo, qualquer alusão
à passagem do Cristo pela Terra, coisa já acontecida nesse momento segundo os
Evangelhos. Seu último capítulo exorta apenas os crentes a se prepararem para a vinda
do Cristo, e isso para a primeira, não para a sëgunda. Tantos indícios permitem afirmar
que a Didaquê não pode ser posterior à primeira metade do século II.
O Pastor de Hermas difere muito dos escritos cristãos. Compõe-se de três partes: as
«Visões» os «Preceitos», as «Similitudes». Quanto ao estilo, lembra os romances
antigos, procura despertar o interêsse do leitor pelo herói, descreve as suas aventuras.
Obra quase literária, o Pastor é rico em alegorias. O arrependimento apresentado como
o caminho do aperfeiçoamento moral de acôrdo com• as exigências da Igreja, tal é o
tema principal dêste escrito que, sem dizer uma palavra sôbre Cristo, fala muito da
Igreja. A data da sua composição não foi elucidada de modo preciso. Dando-se crédito
aos dados do Fragmento de Muratori, êle deverá remontar à segunda metade do século
II.
49
papiros foi situada entre meados do século III e meados do século IV. Recordemos, a
título de comparação, que o texto mais antigo da Bíblia, diz o Código do Vaticano, data
do século IV, ou seja, da mesma época. Os papiros foram descobertos numa caverna,
encerrados em um cofre com outros objetos, tendo sido aí escondidos já sob
Constantino, sem dúvida para escapar às perseguições da Igreja.
Uma parte dêsses papiros reproduz justamente os escritos contra os quais polemizavam
Irineu, Orígenes, e outros Padres da Igreja. Datam, portanto, do século II. O conteúdo
dos outros não encontra qualquer reflexo nas obras dos escritores eclesiásticos da
Antigüidade que, segundo parece, não conheceram êsses documentos. Alguns títulos
correspondem aos dos evangelhos apócrifos conhecidos uinicamente pelas referências
dos autores eclesiásticos, tais como os apocalipses de Messe e de Zotrian, o evangelho
gnóstico dos egípcios, o Evangelho Segundo Filipe, segundo Tomás, a Sabedoria de
Jesus e outros escritos similares.
A importância da descoberta dêsses papiros reside no fato de que em lugar dos dados
incompletos e freqüentemente deformados sôbre o gnosticismo, fornecidos pelas obras
dos apologistas ortodoxos, o historiador possui agora uma excelente coleção de escritos
saídos da pena dos próprios autores gnósticos. Isto permite definir de modo mais
adequado e preciso as relações entre o gnosticismo cristão e a dogmática da Igreja, as
divergencias das diversas correntes no seio do gnosticismo.
50
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
nada prova. Os mais antigos epitáfios cristãos que se conhecem datam do século II
apenas.
Em todo caso, porém, isto não impede que a imprensa do Ocidente anuncie, de tempos
em tempos, sob títulos sensa cionais, a pretensa descoberta de monumentos cristãos que
remontam, se não à primeira metade, pelo menos aos meados do século 1.
Eis alguns exemplos. Em 1920 foi descoberto em Filadélfia, no Egito, um papiro com
um decreto do Imperador Cláudio datado do ano 41 e no qual, referindo-se aos conflitos
e colisões ocorridos em Alexandria entre os judeus e os gregos, êle ameaça os primeiros
de punição por «terem provocado certa doença no mundo inteiro.» Isto bastou para que
vários historiadores franceses e italianos declarassem que se tinha ali a prova da difusão
do cristianismo já durante a primeira metade do século 1. Essas perturbações foram
descritas amplamente nas obras de Filon de Alexandria nas quais não se encontra,
contudo, como nesse papiro, qualquer alusão aos cristãos.
A «inscrição nazarena» que se publicou em 1929, e cuja data presumida foi fixada entre
Augusto e Cláudio (do ano 31 antes de nossa era, ao ano 54 de nossa era), continha uma
disposição imperial que interditava as exumações e qualquer profanação dos túmulos;
num relance vários escritores viram nesse documento um eco da ressurreição de Jesus!
Em 1947, foram descobertos perto de Coumrã, a noroeste do Mar Morto, numerosos
rolos de couro com textos, em hebraico, dos profetas do Antigo’ Testamento, e alguns
escritos apócrifos. Num dêsses rolos encontra-se, à guisa de comentários aos textos do
profeta Habacuc, a descrição das perseguições contra uma seita judia, notadamente a
execução do seu chefe denominado, nesse texto, «Mestre da justiça». Imediatamente,
uma multidão de artigos apareceram na imprensa de vários países «demonstrando» que
êsse chefe era justamente Jesus, e que êsses papiros eram os monumentos mais antigos
do cristianismo. Divergências bastante sérias apareceram, contudo, entre os
historiadores, quanto à idade dêsses papiros, que poderiam datar do século ii, à época
das cruzadas. Depois de ulteriores escavações, efetuadas a partir de 1932, e da análise
dos restos orgênicos dos rolos com os métodos modernos, pôde- se estabelecer que
alguns dêles remontam do século 1. Os escritos descobertos em Coumrã são, portanto,
muito impor-
dos defuntos e provavam, com efeito, que se tratava de uma sepultura pagã; mas a
ausência dessas siglas absolutamente não prova tratar-se de uma tumba cristã. As
fórmulas DM e DMS não aparecem senão a partir da época de AUGUSTO, a partir do
ano 31 da nossa era, e era, a princípio de emprêgo bastante raro...
A5 FONTES DO CRISTIANISMO
51
tantes para o estudo da pré-história do cristianismo; êles esclarecem a ideologia das
antigas seitas judias radicais que já anunciavam a aparição das comunidades cristãs
primitivas, mas êles não contêm dados que possam confirmar a existência terrestre de
Jesus.
Por iniciativa de Pio XII, efetuaram-se escavações sob as criptas do Vaticano em 1940
e, sobretudo, durante os anos que se seguiram à guerra. Nos fins da década de 40 dêste
século, a imprensa ocidental, a católica em primeiro lugar, fêz um grande alarde em
tôrno das escavações de Roma dizendo que, enfim, elas tinham sido coroadas de êxito,
que tinha sido descoberto o sepulcro de S. Pedro e, até mesmo, seus restos. Isso
confirmaria que êle não era apenas um mito, e, ao mesmo tempo, que êle teria vivido
algum tempo em Roma, assim como S,. Paulo, tal como o quer a tradição da Igreja.
Todo êsse falatório tinha apenas um fim: fortalecer a autoridade do Vaticano e do Papa
enquanto «sucessor direto» dêsses dois «discípulos de Jesus».
A análise objetiva dos resultados das escavações vaticana’ mostrou que nada havia de
verdadeiro em tudo isso. E com tanta evidência que o próprio Pio XII foi obrigado a
reconhecer, em dezembro de 1930, em discurso radiodifundido, a impossibilidade de se
afirmar com certeza que essas ossadas pertenciam a S. Pedro. De fato, apenas tinham
sido encontrados três sepulcros anônimos, datados do século 1, e, em um dêles, uma
telha da época de Vespasiano, imperador romano de 69 a 79, enquanto que, segundo a
tradição da Igreja, o apóstolo Pedro teria morrido em 66. Nada se descobriu capaz de
provar que êsses túmulos encerravam restos de cristãos e, muito menos, de um dos
apóstolos.
Entre as moedas encontradas nas criptas cristãs, uma pertence à época de Antonino, o
Piedoso, imperador romano de 138 a 161, seis são datadas do ano de 168 ao ano de 185,
e mais de quarenta remontam aos fins do século II e aos começos do IV. Isso atesta a
existência de uma comunidade cristã primitiva em Roma já no século II. O
estabelecimento nas criptas vaticanas do altar cristão que, segundo uma versão
posterior, se levanta sôbre o lugar em que os apóstolos estavam enterrados, remonta
visivelmente a meados dêsse século. Tal foi, no que se refere aos dois primeiros séculos
de nossa era, o único resultado das escavações do Vaticano.”
11 H. T0RP: “The Vatican Excavations and the Cult of St. Peter”, ia Acta Archeolo
gira, XXIV, 1953, págs. 27-66; confira R. T. O’ CALLAGHAN: “Vatican Excavations
and the Tomb of Peter”, in Biblical Archaeologis. , XVI, 1959, n 4, págs. 70-87.
52
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
AS FONTES DO CRISTIANISMO
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
data está fixada entre o ano de 125 e o ano de 165 15 foram publicados em 193516
Bem diferentes são as catacumbas de Calixto (Bispo de Roma nos começos do século
III). Ësse cemitério dos cristãos da época em que ocorreram as mais encarniçadas
perseguiç&s é cheio de imagens de peixes, de cordeiros, do Bom Pastor, dos
sacramentos do batismo, da eucaristia, da confissão e de diversos assuntos bíblicos.
Descobriram-se nestas catacumbas vários túmulos de bispos romanos.
A simples comparação ‘das catacumbas de Lucina com as de Calixto basta para dar uma
idéia da profunda evolução da comunidade cristã de Roma, no espaço de apenas um
século. Vê-se aí, doutra parte, que as repressões contra os cristãos dessa
15 H. J. BELL: Cults and Cs’eeds in Greco-Rornan Egypt, Liverpool,
AS FONTES DO CRISTIANISMO
55
época de nenhum modo impediam que êles observassem seus ritos fúnebres.
Grande parte dos monumentos encontrados por ocasião das escavações vaticanas
remontam ao século III. Em 1952, foi descoberto em Roma o rico sarcófago do cristão
Valérius Vasatulus sôbre o qual se vê um desenho, assinado por Petrus, representando
dois homens, e o texto de uma prece pela salvação da alma dos cristãos. Êsse sarcófago
data do ano 280.
Notemos que os mais antigos monumentos cristãos de que dispomos, tanto literários,
como arqueológicos e papirográficos, datam, em sua maioria, dos meados do século II,
e fornecem informações da extrema pobreza sôbre o primeiro século da nova religião.
Os monumentos arqueológicos relativos ao cristianismo primitivo datam dos meados do
século II, e os papiros os precedem de um ou dois decênios apenas. Nada mais do que
esta circunstância nos faz duvidar, e vigorosamente, de que a composição dos
evangelhos date dos meados cIo século 1, tal como o afirma o dogma ortodoxo. O
exame das fontes judias e greco-romanas nos vai mostrar como o cristianismo nascente
aparecia aos olhos do mundo circundante.
Não se encontra qualquer alusão aos adeptos da nova fé nas fontes não cristãs que
datam do século 1. A maioria das informações a respeito dêles deveria provir, dir-se-á,
dos autores judeus da época. As obras dêstes oferecem com efeito muitos dados
relativos à pré-história do cristianismo, às condições sob as quais a ideologia cristã se
constitui e começou a se desenvolver. Sob êste aspeto, são êles muito importantes, é
rerto, mas não contêm qualquer informação direta sôbre os cristãos. O aparecimento de
uma nova seita na Palestina, os milagres de Jesus, as peripécias dramáticas de sua vida,
tal como é descrita nos evangelhos, e, finalmente, a irradiação e difusão rápida da nova
religião deveriam ter atraído, forçosamente, a atenção dos escritores judeus dêsse
tempo, escritores que nos legaram uma crônica minuciosa de acontecimentos até mesmo
insigniicantes ocorridos então no pequeno país que era a Judéia.
56
A’ ORIGEM DO CRISTIANISMO
Ora, seu silêncio é total a êsse respeito. Isto só se pode explicar pelo fato de o relato dos
evangelhos sôbre os primeiros passos do cristianismo na Palèstina datar do séculõ II, e
não de antes.
Conhecemos três autores judeus do século 1: Filon de Alexandria, Flávio Josefo e Justo
de Tiberíade. De Filon e de Flávio Josefo possuímos não poucas obras, e se estas
chegaram até nós foi, certamente, e antes de tudo, por causa de sua importância para a
história do aparecimento do cristianismo.
Pode-se formular como se segue sua concepção filosófica e religiosa: Deus é um ser
absoluto, que sempre existiu, sendo eterno e todo-poderoso. Dirige o mundo por
intermédio de seu Filho, o Logos (o Verbo), que intercede junto de Deus, a favor dos
homens. O homem marc’ado pelo pecado original só consegue sua salvação libertando-
se da vida material. O Logos o associa a Deus.
Salta aos olhos a semelhança entre a idéia do Logos dêsse filósofo e o papel atribuído
pela teologia cristã a jesus, Homem- Deus. Isto não escapou aos Padres da Igreja. Um
dêles, Santo Ambrósio (século IV), sentia tanta admiração por Filon, que estêve a pique
de classificar êsse judeu entre os fundadores da religião do Cristo. Tendo as opiniões de
Filon servido de ponto de partida para a constituição da ideologia cristã, não nos
devemos espantar com o fato de a maioria dos seus escritos se terem conservado
enquanto desapareceram tantas .obras da Antigüidade. Os livros do judeu de
Alexandria, que Engels tão bem qualificou de «pai do cristianismo», pertencem dêsse
modo às fontes do Nôvo Testamento, que, segundo os teólogos, seria de inspiração
divina.
As afinidades entre as idéias de Filon e a ideologia cristã dão mais significação ainda à
ausência de qualquer menção direta ao cristianismo nos seus escritos. Se as
comunicações dos evangelhos a respeito das atividades de Jesus na Judéia fôssem
verdadeiras, Filon, que escreveu várias obras depois do ano 40, não teria -podido
silenciar sôbre o predicador palestino cujas opiniões coincidiam a tal ponto com as suas.
O segundo historiador judeu do século 1, Flávio Josefo (nascido em 37, morto em 100)
viveu na Palestina até a destruição de Jerusalém no ano 70, excluindo-se uma estada de
três anos
AS FONTES DO CRISTIANISMO
57
A Guerra dos Judeus e as Antigüidades Judaicas são as duas obras capitais dêsse
escritor. Na primeira, depois de um breve apanhado consagrado ao passado da Judéia,
Flávio Josefo expõe de modo circunstanciado os acontecimentos que provocaram a
guerra em questão, e a própria guerra, até a queda de Jerusalém. A segunda obra
descreve a história da nação judia desde a sua constituição até a época em que vivia o
escritor, e os três últimos capítulos são dedicados particularmente a seu século.
Flávio Josefo permaneceu, durante tôda a sua vida, fiel à fé dos seus ancestrais, o que
não o impediu, contudo, de servir lealmente aos imperadores romanos que haviam
devastado sua pátria. É óbvio que nada tinha em comum com os adeptos da nova
religião. Seus escritos, no entanto, constituem uma fonte preciosa para o estudo da
história da Palestina no primeiro século da nossa era. Nas Antigüidades Judaicas, Flávio
Josefo relata, sem omitir qualquer detalhe, os acontecimentos ocorridos em sua época,
em seu país; fornece informações muito importantes a respeito dos essênios e de outras
seitas da Judéia. A profusão de dados de tôda espécie que se encontra nesta obra torna
ainda mais eloqüente eu total silêncio sôbre os cristãos.
58
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
de modo algum se poderá aceitar que tenha dado tal título a Jesus também. Segundo a
opinião geral dos historiadores, essas linhas não passam de uma interpolação posterior,
devida a um copista, tão ingênuo, quanto piedoso.
Em outra página das Antigüidades Judãicas (XX, 9), Flávio Josefo fala da condenação
de certo «Pedro, irmão de Jesus, chamado o Cristo, e de alguns outros.» Em meados do
século III, Orígenes, em diversas ocasiões, referiu-se a essa passagem que, à primeira
vista, parece muito mais digna de fé do que a que citamos anteriormente. Mas, como
admitir que essas palavras são da pena de Flávio Josefo, uma vez que êsse mesmo
Orígenes o acusou de duvidar de que Jesus fôsse o Messias (o Cristo)? Pode ser que o
original se referisse a outro Jesus. É evidente, em todo o caso, que esta passagem
também traz vestígios da intervenção de copistas cristãos. Nos escritos de Flávio Josefo
nada mais se encontra que se relacione com o cristianismo.
59
<muitas das coisas de primeira importância e, como judeu, não falou do Cristo, de seus
milagres.» É, portanto, claro que, no tempo de Justo, o mito de Jesus ainda não existia.
18
Entre as outras antigas fontes judaicas apenas o Talmud cita o nome de Jesus. Mas, êle
o une a personagens e acontecimentos que se localizam nos primeiros 25 anos do século
primeiro antes da nossa era, portanto, a um século anterior ao dos evangelhos. Esta parte
do Talmud foi composta no século III, e não há a menor dúvida de que apresentaria
muito mais informações concretas sôbre Jesus, se êste tivesse existido realmente. Uma
menção no Talmud (Jesus é aí habitualmente chamado de Ben-Pandira) não pode de
modo algum servir de argumento a favor da historicidade de Jesus. Esta obra data do
século III, quando o cristianismo, já há muito tempo existente, mantinha uma luta
encarniçada contra o judaísmo; o que os redatores do Talmud dizem de Jesus foi
colhido na literatura
As obras de Sêneca (nascido no ano 4 antes de nossa era, morto em 65), filósofo estóico
dos mais eminentes, contam-se entre aquelas dos escritores greco-romanos que
desempenharam um grande papel na formação da ideologia cristã. Preceptor de Nero,
sua influência foi grande durante os primeiros anos do reinado dêste último. Tendo sido
alvo das generosidades de Nero, Sêneca enriqueceu-se fabulosamente.
Nos seus numerosos escritos filosóficos, enuncia êle a idéia de um Deus absoluto e
todo-poderoso, donde a necessidade da resignação ante os golpes do destino, uma vez
que tudo acontece segundo a vontade do Altíssimo. Classificava os homens em duas
categorias: os sábios, que desprezam os bens terrestres, e os tolos, sequiosos de poder e
de riqueza. Contudo, sua vida parecia desmentir suas teorias. - - Engels, que chamou
Sêneca de «tio do cristianismo», caracteriza como segue o contraste entre os seus
costumes e a sua filosofia: «Êste estóico, que pregava a virtude da abstinência, foi um
intrigante de
60 A ORIGEM DO CRISTIANISMO
marca maior na côrte de Nero, e realizava sua tarefa com grande servilismo; foi dêsse
modo que conseguiu ganhar muito dinheiro, bens, jardins, palácios, e apesar de propor
um pobre Lázaro como modêlo, era êle, na realidade, o rico da parábola evangélica. »19
19 K. MARX e F. ENGELS: Sur la Religion, ditions Sociales, Paris, 1960, pág. 198.
AS FONTES DO CRISTIANISMO 61
O primeiro testemunho inegável a respeito do cristianismo como tal nos vem de Plínio,
o jovem, escritor romano, nascido em 62, morto depois de 113. Tendo exercido a pró-
pretoria em Bitínia, na Ásia Menor, de 111 a 113, mantinha corres-
62 A ORJGEM 00 CRISTIANISMO
pondência regular com o Imperador Trajano, e suas cartas assim como várias respostas
de Trajano chegaram até nós. Em uma vasta mensagem (X, 96), Plínio pergunta como
deve proceder em relação aos cristãos. Trajano (X, 97) responde que não é necessário
adotar medidas especiais a êsse respeità, bastará punir aquêles que, acusados de
professar a nova fé, não a quiserem renegar. A missiva de Plínio revela vestígios
evidentes de interpolações que revelam o grau de propaganda do cristianismo na Bitínia
nessa época, os costumes virtuosos dos cristãos etc. Mas, não parece que ela seja
totalmente falsa: Tertuliano já se refere a ela no século II, assim como à resposta de
Trajano.
O primeiro, nascido em 125 e morto em 195, foi um dos mais brilhantes escritores
gregos da Antigüidade. Atribuem-se- lhe aproximadamente 80 escritos conservados; de
pequena extensão, na sua maioria, têm, geralmente, a forma de diálogos. «Luciano de
Samosata, escreveu Engeis, o Voltaire da Antigüidade, que mantinha uma atitude
igualmente cética a respeito de tôda espécie de superstição religiosa, e que, por
conseguinte, não tinha motivos — nem por crença pagã, nem por política
obras anticristãs, estas não chegaram até nós senão pelas citações
1,1,3.)
A ORIGEM DO CRISTIANISMO 64
Vimos, páginas atrás, que os meados do século II marcam uma mudança no que
concerne ao número dos documentos relativos ao cristianismo; Quais são, portanto, as
fontes anteriores a essa época? O documento mais antigo, não apenas da literatura cristã
primitiva, mas também da cristandade em geral, é o Apocalipse de João, do qual pelo
menos os temas maiores remontam ao final da década dos 60, do século 1. Depois do
Apocalipse vêm, com algumas dezenas de anos de intervalo, as primeiras epístolas de
São Paulo e, datando dos primeiros anos do século II, os Anais de Tácito e a
correspondência de Plínio, o jovem, com Trajano. Ao segundo quarto do século 11 se
ligam as epístolas paulinianas seguintes, a breve relação de Suetônio, e vários pequenos
fragmentos evangélicos em papiros.
Dispomos, além disso, de uma série de documentos cristãos primitivos cuja data exata
não está estabelecida, mas que, em todo caso, remontam à primeira metade do século II.
São êles a Dida quê, grande parte das epístolas do Nôvo Testamento atribuídas a outros
apóstolos e, evidentemente, uma parte das epístolas não apostólicas. A êste último
grupo pertencem a primeira epístola de Clemente, Bispo de Roma, as epístolas de
Inácio, e outros documentos menos importantes. Os mais antigos monumentos cristãos
descobertos durante escavações nas catacumbas de Roma datam também dêste período.
E, encerrando a série, temos as obras de Justino, primeiro apologista cristão, escritos por
volta do ano de 150, as Sentenças de Jesus e as Recordações dos Apóstolos, coletâneas
hoje perdidas, mas que forneceram a matéria prima para o Evangelho Segundo Marcos.
O segundo grupo de fontes, provenientes da segunda metade do século II, é muito mais
abundante. Luciano e Celso, críticos do cristianismo, escreveram de 150 a 175. Os
evangelhos introduzidos no cânone da Igreja, as epístolas pastorais de Paulo, os escritos
de Taciano, discípulo de Justino, também pertencem a êsse período.
AS FONTES DO CRISTIANISMO 65
Por volta de 180, Irineu escreveu seu tratado contra as heresias, e Hermas, o seu Pastor.
Os Atos dos Apóstolos, o escrito mais recente do Nôvo Testamento, foram redigidos
defi nitivamente nesta época também. As primeiras obras de Tertuliano e de Clemente
de Alexandria datam dos fins do século II.
Da primeira metade do século III, temos muitos escritos devidos a êsses autores e a
outros Padres da Igreja, Orígenes particularmente. Seus dados são completados por
numerosas descobertas arqueológicas e papirográficas, pelas alusões aos cristãos que
encontramos numa série de obras antigas não cristãs, por testemunhos das mais diversas
origens. A partir desta época, dispomos já de uma quantidade mais ou menos suficiente
de documentos que tratam do nosso problema.
A abundância relativa, a partir dos meados do século II, de escritos cristãos, assim como
o aparecimento de obras dirigidas contra o cristianismo, atesta que êste último já era
uma corrente religiosa relativamente poderosa, que já havia atingido certa maturidade
há alguns decênios. Esta circunstância nos faz duvidar, por si só, da justeza da tese do
Acadêmico R. Viper, segundo a qual o cristianismo acabava, nesse momento, de surgir.
Três séculos são um período muito longo, mesmo se levarmos em conta a lentidão da
evolução histórica durante a Antigüidade. O islamismo, por exemplo, levou dois séculos
para se expandir por um território muito vasto. Recordemos, doutra parte, que a difusão
do cristianismo não seguiu sempre uma linha ascendente; durante êsses trezentos anos, a
nova religião conheceu períodos em que sua popularidade subia a pino, e outros em que
o número de seus fiéis diminuia catastr ficamente. Seu conteúdo mudava também muito
ràpidamente. O triunfo espetacular do cristianismo sôbre as outras religiões da
Antigüidade não deixa de ser, contudo, um acontecimento de primordial importância e
exige como tal uma explicação estritamente científica.
No decorrer de dois séculos (dos - meados do III, à segunda metade do 1 antes da nossa
era), o Estado Romano, que, a princípio, se extendia nicamente à Península Itálica,
tornou-se a primeira potência do mundo antigo. Englobou, progressivamente, a
totalidade dos países mediterrâneos, limi
67
68
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
tando-se a Leste, pelo Eufrates, ao Norte, pelo Danúbio e o Reno, a Oeste, pelas
margens do Atlântico, ao Sul, pel@ Deserto de Saara e as cataratas do Nilo. Todos os
centros culturais da Antigüidade cairam sob o poder romano, com exceção da India, da
Partia e da China.
A aglutinação dos países da bacia mediterrânea sob o signo do Império foi o resultado
de uma série de causas. A principal foi a escravidão, muito mais antiga nos países
conquistados, do que em Roma, e que havia provocado a decadência dêsses países. Os
escravos não estavam de modo algum interessados em elevar a produtividade do
trabalho. Nessas sociedades, o trabalho físico era desprezado; era considerado indigno
do homem livre. A única exceção era a agricultura. Como o trabalho dos escravos ia
substituindo o trabalho dos homens livres, isso frenava o desenvolvimento das fôrças
produtivas. Durante a Antigüidade, os Estados escravagistas em decomposição caiam
freqüentemente sob a dominação de outros, mais poderosos precisamente porque a
escravidão nêles era menos desenvolvida, e porque dispunham de uma vasta camada de
cultivadores livres que fornéciam combatentes de boa têmpera. A Grécia, por êsse
motivo, foi conquistada pela Macedônia, reduzida, por sua vez, a província romana.
Uma vez que ambas «repousam elas próprias sôbre a escravidão — notou
A constituição do Império Romano foi justamente uma repetição dêsse processo num
nível superior, e, nos seus quadros, as relações escravagistas se estenderam a um imenso
território.
69
de escravidão. Mas, êles custavam tão pouco, que podiam ser fàcilmente substituídos
por outros mais jovens.
Para servir no exército, os cultivadores livres eram afastados durante longos anos de
suas terras. As guerras exteriores e, sobretudo, as guerras civis que causavam estragos
na Itália traziam grandes prejuízos às pequenas economias camponesas, enquanto os
ricos senhores de escravos se recuperavam muito fàcilmente. Tôdas essas
circunstâncias, sem ter determinado a desaparição completa dos médios e dos pequenos
cultivadores, contribuíram, contudo, para diminuir consideràvelmente o seu número.
O trabalho dos escravos era também largamente empregado no artesanato, sem atingir,
todavia, as proporções que êle tinha nas cidades evoluídas da Grécia. O trabalho manual
e o artesanato eram considerados em Roma como ocupações incompatíveis com o
exercício dos deveres do cidadão romano. Sômente as profissões «intelectuais»
gozavam de certa consideração. Em meados do século 1 antes da nossa era, centenas de
milhares de romanos viviam graças a distribuições graciosas de alimentos.
A conquista romana não era menos trágica para as provmncias. - Era acompanhada de
terríveis destruições das fôrças produtivas. Os conquistadores levavam para a
escravidão centenas de milhares de cativos. Nenhum historiador romano esquece de
mencionar quantas libras de ouro ou de prata tal ou qual general trazia consigo no seu
retôrno triunfal a Roma. As guerras, fonte de enriquecimento para os generais e legion
rios de sorte, deixavam atrás delas rumas. Os escritores da antiga Roma o constatam
mesmo na Grécia, onde os conquistadores se mostraram contudo menos ferozes do que
em outros lugares. «Quàndo do meu retôrno da Ásia, escrevia a Cícero um dos seus
amigos, fui de barco, de Egina, a Megara, e pus-me a observar as costas. Atrás -de mim,
estava Egina; na frente, Megara; à direita, o Pireu; à esquerda, Corinto; essas cidades,
Outrora florescentes, encontram-se hoje completamente devas. tadas.» Estrabão,
geógrafo grego que escreveu no limiar de. nossa era, nota que, em Esparta, de cem
cidades apenas umas trinta subsistiam após a invasão. Plutarco (século II.°) diz que no
seu tempo, a Grécia não podia opor ao inimigo mais que três mil hoplitas (soldado de
infantaria pesadamente
70
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
armado), enquanto que outrora a pequena Megara teria podido, ela só, equipar tal
número.
Êstes fatos mostram que, depois das operações militares, outros fatôres intervieram e
impediram durante centenas de anos o soerguimento das regiões conquistadas pelos
romanos. Nos países vencidos, em lugar das legiões e, muitas vêzes, antes de sua
partida, chegavam os famosos publicanos, coletores dos dinheiros públicos, e tôda sorte
de usurários que completavam a obra de destruição. Um dos exemplos mais eloqüentes
da pilhagem que os governadores romanos realizavam nas províncias é dado por Caius
Verres, Protetor da Sicília, que, do ano 73 ao ano 71 antes de nossa era, embolsou a
colossal soma de
40 milhões de sestércios pela violência, pelo impôsto sôbre o vinho, pelo roubo, e assim
por diante. Depois dessas suas investidas, a metade, aproximadamente, das terras
aráveis foram abandonadas e em muitos lugares a população baixou de dois terços. Um
sistema complexo e ruinoso de impostos, de contribuições e de outras exações absorvia
a seiva vital das cidades subjugadas por Roma. As taxas da usura se elevavam
ordinàriamente a 12% de juros anuais, freqüentemente a 24% e, às vêzes, a 4896. Não é
por acaso que, nos evangelhos, os publicanos, recebedores dos impostos, figuram entre
os pecadores mais inveterados. Os devedores que não podiam pagar suas dívidas eram
vendidos no mercado de escravos.
As massas dos países conquistados já não eram livres antes da instauração do poder
romano, mas, agora, depois da vitória de Roma, o eram ainda menos. A linha política
dos conquistadores consistia em não se imiscuir nos negócios religiosos, apoiando
invariàvelmente as classes possuidoras, contra a população sôbre a qual passava, então,
a pesar um duplo jugo, o dos dominadores estrangeiros, e o dos opressores indígenas.
Nos países em que existiam cidades autônomas, os romanos conservaram os conselhos
urbanos e outras instituições locais, mas isso era apenas formal porque, na realidade,
todo poder pertencia aos funcionários romanos. É por isso que, depois da conquista da
Grécia, a vida política tão intensa das cidades- estados anemiou-se cada vez mais, até
extinguir-se finalmente de uma vez.
71
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
Ibérica, os fberos mantiveram durante dezenas de anos lutas violentas contra seus
opressores.
Esta palavra não deve ser tomada muito ao pé da letra, repetimos. No decorrer dêsse
período alguns motins rebentavam de tempos em tempos no seio das Jegiões, algumas
revoltas ocorriam nas províncias. Mas, eram perturbações locais que, regra geral, não
ameaçavam o poder imperial. Em relação ao que se tinha visto durante a crise da
República Romana, o movimento das massas atravessava uma fase de refluxo.
73
século 1 da nossa era, os ricos proprietários territoriais e senhores de escravos
procuravam descobrir as razões da decadência da agricultura na Itália. Columelo,
escritor romano da época de Nero, via a causa dêsse mal no aumento da escravidão.
«Confiamos o cultivo da terra, escrevia êle, aos piores dos nossos escravos como a
carrascos que devem punir o solo, enquanto que os nossos antepassados o trabalhavam,
êles mesmos, com o maior cuidado.» Columelo acusa os escravos de causar grandes
prejuízos aos campos, de alugar os bois a outros, de pastorar o gado sem nenhum
cuidado, de lavrar a terrá negligentemente.
Tais coisas eram, antes de tudo, manifestações da luta de classe dos escravos contra seus
opressores. O colonato era considerado pelos grandes proprietários territoriais como a
única saída possível para passar a novos métodos de exploração. Começaram por
arrendar aos lavradores empobrecios e às pessoas qtie se achavam sob sua dependência
lotes de terra, em troca de parte das colheitas. Êsses arrendatários, estabelecidos sôbre
uma parcela de terra, receberam o nome de colonos. Concediam-se lotes, pecules, quase
nas mesmas condições a alguns escravos. A diferença entre êsses escravos e os colonos
se devanecia com o tempo; .êstes últimos, embaraçados pelas dívidas, perdiam o direito
de abandonar sua parcela de terra, na qual ficavam assim enraizados.
No decorrer dos dois primeiros séculos do Império Romano, o número de colonos não
deixou de crescer. Convém lembrar que mesmo aquêles que estavam fixados ao solo
pelas suas dívidas não eram escravos no sentido corrente do têrmo:
não podiam ser vendidos em sua parcela e estavam até certo ponto interessados na
produtividade do seu trabalho. Friedrich Engels achava que os colonos romanos da
Antigüidade foram os predecessores dos servos da Idade Média.
Sem sair dos quadros do regime escravagista encontrou-se dêsse modo um meio de
aumentar provisàriamente o rendimento do trabalho rural. Esta passagem a novas
formas de exploração era tanto mais necessária quanto durante êste período a afluência
de escravos vindos de fora estava diminuindo sensivelmente por causa do
desaparecimento quase completo das guerras de conquista.
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
A normalização da vida econômica das províncias foi favorecida também pela sua
divisão em dois grupos, umas submetidas à jurisdição do Senado, outras à pessoa do
Imperador. Se, na época da República, os governadores romanos eram substituidos
anualmente — período durante o qual êles pilhavam sem piedade — agora, os
funcionários eram nomeados por um prazo mais longo, e, graças a isso, certa ordem foi
introduzida por êles na cobrança dos impostos. A criação de uma máquina
administrativa das províncias, submetida ao Imperador, teve como resultado a
consolidação de sua economia. Suetônio, historiador romano, relata a êsse respeito, no
seu Tibério (XXXII), o seguinte: «A governadores que lhe aconselhavam aumentar os
impostos de suas províncias, êle escreveu que um bom pastor devia tosquiar suas
ovelhas, não esfolá-las.»
75
Não se deve, naturalmente, exagerar a importância dcs fatos citados. No seu conjunto,
não fazem mais do que explicar as causas da instauração do regime imperial, e da sua
estabiliclade em ielação à ordem anterior, O Império não podia, com tôda evidência,
eliminar as contradições inerentes io regime escravagista. Tôda tentativa de as recalcar
devia preparar explosões ultcriores muito mais poderosas, o que efetivamente aconteceu
quando o Império Romano desmoronou, e, com êle, seu modo dc produção fundado na
escravidão. .itqunto que, sob a República, os movimentos revolucionários dos escravos
e dos pobres seguiam cada um seu próprio curso, não coincidindo senão
cronolàgicamente, sob o Império, a aparição do colonato criou condições favoráveis à
ação conjugada das diversas camadas da população oprimida. A concessão dos direitos
de cidadão romano, que, a princípio, tinha alargado a base social do poder imperial,
tornou-se, por fim, simples formalidade. O edito do ano 212, concedendo êsses direitos
a tôda a população livre do Império, foi acolhido com indiferença. Certas vantagens que
as províncias tinham obtido quando da introdução da nova ordem administrativa sob
Augusto no tardaram a se transformar em encargos suplementares. A medida que as
dificuldades econômicas e, sobretudo, as financeiras, se agravavam, a máquina imperial,
melhor organizada do que a da República, via-se na contingência de drenar todos os
recursos das províncias.
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
É óbvio, doutra parte, que a doutrina cristã não se formou inicamente por via de
empréstimos. Acontecimento histórico de primeiro plano, ela trazia uma nova
mensagem, sem a qual não teria conseguido conquistar as massas e tornar-se,
finalmente, a religião dominante dos países da bacia mediterrânea. Porém, o que a
mensagem cristã continha de nôvo ela o absorvia nas condições históricas bem
concretas do Oriente antigo. E por isso que a análise do conteúdo ideológico da nova
religião deve partir do estudo das concepções sociais e, antes dc tudo, religiosas,
professadas io limiar da nossa era, pela população do Império Romano.
77
78
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
A instauração do regime imperial provocou uma trans formação não menos séria na
mentalidade das massas popuiares Fortalecido o poder da classe dos escravagistas, e
sufocada a vida política nos países subjugados por Roma, o misticismo religioso
começou a se difundir, cada vez mais, no seio do povo. No século 1, a influência dos
cultos orientais e das crenças messiânicas espalharam-se ràpidamente pelo Império. A
esperança de abrandar as duras condições de vida em lugar de ser ligada à luta das
massas, associava-se à idéia de um Salvador enviado do céu, que estabeleceria o reino
de Deus na Terra. Era sômente nas províncias mais distantes, na J udéia, na Gélia e ao
noroeste da África, onde se esperava ainda conseguir a vitória pelas armas, que se
davam sérias revoltas, mas as legiões romanas as esmagavam sem grandes esforços.
A ideologia de uma parte das camadas superiores da sociedade romana, cujo papel não
foi dos últimos na formação e no desenvolvimento da ideologia cristã, encontrou
brilhante expressão nas obras de Sêneca. Estóico, representava a escola filosófica a que
Cícero, que vivera vários decênios antes dêle, havia acrescentado muitas coisas. E é isso
que torna mais significativa ainda a diferença entre as opiniões políticas dêsses dois
ilustres filósofos romanos. Cícero achava que devíamos tomar parte na vida da
sociedade. A luta política, os conflitos, na Capital e nas províncias, impressionavam-no
vivamente; êle propunha o seu próprio programa, visando a transformação da
República. A vasta correspondência deixada por Cícero mostra a que ponto os
acontecimentos da época o apaixonavam.
De Sêneca, temos também muitas obras, e sua correspondência. Ainda que preceptor de
Neto, e, depois, seu ministro, mostra-se indiferente à política; declara que não existe
pior quinhão para o homem que o de manter causas judiciárias, de participar das intrigas
políticas, de escrever requerimentos. Segundo êle, o sábio, obrigado a trabalhar pelo
bem da pátria, deve aspirar, em primeiro lugar, ao aperfeiçoamento moral, pensar em
Deus, consagrar-se às meditações.
Até mesmo em suas últimas obras, as Consolações, por exemplo, Sêneca proclama que
tudo é vão neste mundo, e
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procura inculcar no leitor a idéia de qae a morte é o bem supremo. Afirma que, depois
da morte, a alma do justo vai para o céu, onde a felicidade o aguarda. A resignação
diante do destino seria, a dar-se-lhe crédito, a maior sabedoria do mundo efêmero em
que vivemos, o único meio, aliás, de ser, feliz. A luta contra os reveses da sorte é
indigno de um sábio.
Considerando irrevogáveis os decretos do destino, Sêneca chega a uma conclusão
importante e nova para o seu tempo:
Nos seus últimos escritos, Sêneca formula pensamentos que, apesar de desenvolverem
os que acabamos de expor, diferem radicalmente das concepções do mundo clássico da
Antigüidade, no qual o patriotismo era a pedra angular da CidadeEstado. Na sua obra
Da Ociosidade (Cap. IV), introduz Cícero uma distinção entre «a grande e a pequena
república.»
80 A ORIGEM DO CRISTIANISMO
«Existem duas repúblicas: uma grande e verdadeiramente pública que abarca os deuses
e os homens; nela, não nos confinamos em tal ou qual recanto particular, e a cidade em
que habitamos não tem outros limites, senão os do Sol; a outra república, aquela a que
nos prende o. acaso do nascimento (seja Atenas, Cartago, ou qualquer outra cidade), não
inclui mais todos os homens, mas um grupo de homens determinado.» O dever do sábio
consiste justamente em servir à grande república.
Vê-se, portanto, que o filósofo romano não tinha qualquer simpatia pelo patriotismo
local. Mais ainda: era também indiferente ao patriotismo em relação ao Império. A
«grande república» de Sêneca, dirigida pelos justos, engloba, em teoria naturalmente,
todo o gênero humano. Esta idéia do filósofo foi retomada e desenvolvida pelo
cristianismo, que nega, em princípio, qualquer importância às diferenças étnicas e
sociais. Neste ponto, tal república iria corresponder à «Igreja universal» e ao «reino de
Deus».
Acabamos de ver que as idéias religiosas de Sêneca, e, sob muitos aspectos, suas idéias
sociais e políticas, se antecipam àquelas que o cristianismo iria em breve proclamar.
Convém, contudo, sublinhar que sua filosofia correspondia à ideologia de uma parte das
elites da sociedade romana, enquanto que o cristianismo, o original pelo menos,
recrutava seus adeptos nas classes inferiores. Foi por isso que os ideólogos da nova
religião não puderam limitar-se ao empréstimo das idéias do
1 Ver Gaston BoIssIER: La Religion Romaine d’Auguste aux An’toChas, P. Hachette,
Paris, T. II, págs. 47-83; Cf. LAPIcKJ, ob. cit., pág. 10.
Porém, a religião dos vencedores iria sofrer também, no mesmo grau, a influência dêsse
acontecimento. As antigas divindades romanas, como as das outras nações do mundo
antigo, tinham sido talhadas, de acôrdo com a expressão de Engels, seguindo a medida
de uma comunidade pouco numerosa, neste caso o agrupamento que povoava as
margens do Tibre. Para dar-se uma idéia da tenacidade das sobrevivências religiosas,
basta lembrar que, até a aurora de nossa era, os romanos estabeleciam uma nítida
distinção entre di indigetes (deuses locais) e di novensides (deuses adventícios). À
primeira categoria pertenciam as divindades que simbolizavam as fôrças da natureza
ligadas à agricultura e ao pastoreio, dos quais as mais importantes eram Júpiter, Juno e
Marte, que eram colocadas,
certa modificação nas suas funções. Marte, originàriamente deus das plantas, e Júpiter,
deus das chuvas e, portanto, da
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A ORIGEM DO CRISTIANISMO
No que concerne aos cultos religiosos, os romanos tomaram muito de empréstimo aos
povos vizinhos, particularmente aos etruscos e aos gregos da Itália meridional. Aos
etruscos, quase tôdas as cerimônias rituais, notadamente das divinações que eram muito
consideradas em Roma; aos gregos, os cultos dos deuses helênicos, com os quais
identificaram os seus: Júpiter, a Zeus, Juno, a Hera, Minerva, a Atenas, Mercúrio, a
Hermes, e assim por diante. Doutra parte, à medida que as fronteiras do Império se
alargavam para o Oriente, as religiões orientais vindas do Egito, da Ásia ocidental e da
Judéia iam-se difundindo em Roma.
A política religiosa dos primeiros imperadores seguia duas direções. De uma parte,
Otávio Augusto, de acôrdo com a tendência conservadora, cercava de honrarias as
funções sacerdotais e restaurava os velhos tempos. Chegou a condenar a propagação dos
cultos orientais decretando particularmente a interdição de se construírem templos a
deuses egípcios dentro dos limites da Cidade Eterna. Procurando fazer reviver o
prestígio da religião romana tradicional, Otávio conferiu-se entre outros títulos o de
Pontífice Supremo.
Por outro lado, considerando a impopularidade dos deuses romanos e, ao mesmo tempo,
a necessidade de cercar o nôvo regime de uma auréola mística, os representantes do
poder não economizam esforços para impor o culto dos imperadores. Nas províncias
orientais do Império, onde a divinização dos reis locais era praticada desde longa data,
êsse culto não tardou a se impor. Colégios augustinianos eram nelas organizados com
êsse fim, e nelas se elevaram numerosos templos, dois e até três em uma única cidade.
Já em 29 antes da nossa era, isto é, dois anos apenas após a vitória de Otávio sôbre
Antônio, êste culto era instituído em Efeso e em Pérgamo, cidades da Ásia
AS RAÍZES IDEOLÓGICAS DO CRISTIANISMO
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Diferentemente dêste culto impôsto do alto e que só tinha influência sôbre as classes
superiores da sociedade, as diversas religiões orientais, durante os dois primeiros
séculos da nossa era, gozaram de um prestígio crescente em tôdas as camadas da
população, particularmente nas classes médias. A afluência a Roma e a outras cidades
recentemente fundadas na parte ocidental do Império, de grande número de pessoas
oriundas do Egito, da Grécia e da Judéia, fêz aparecer também aí adeptos dos cultos
egípcios, sírios e, igualmente, judaicos. Tais adeptos encontravam-se tanto entre os
escravos das províncias orientais, como também, e em grande número, entre os artesãos
e os comerciantes que tinham deixado Seus lugares de nascimento por esta ou aquela
razão. Era Roma, sobretudo, que os atraía. Os novos cultos, por outro lado, eram
trazidos pelos legionários romanos que retornavam da fronteira oriental do Império. Isto
se deu, particularmente, com o culto persa de Mitra. — Os cultos orientais começaram a
penetrar em Roma desde
O Béculo III antes da nossa era. Sua influência se acentuou fortemente durante o
período de crise da República. O estabelecimento do Império deu nôvo impulso à sua
difusão. E sees cultos não eram professados apenas pelos indivíduos originários do
Oriente. A renúncia à atividade política e a tendência ao misticismo criaram um clima
extremamente favorável a esses cultos, mesmo entre os naturais da metade ocidental
84 A ORIGEM DO CRISTIANISMO
A influência das crenças orientais aumentava com tal intensidade que os imperadores,
fiéis em geral a sua política de não-intervenção nos assuntos religiosos, se viram, mais
de uma vez, obrigados a se oporem à propaganda dêste ou daquele culto oriental, É
assim que Suetônio relata, na sua biografia de Tibério, que êste imperador teve o
cuidado de proibir os ritos egípcios e judaicos, em Roma. Medida que se revelou vã,
como o atesta a existência de editos posteriores análogos, de outros imperadores
romanos.
Uma cena da Assembléia dos Deuses de Luciano apresenta um interêsse muito especial
sob êste aspecto. Os velhos deuses do Olimpo nela decidem «purificar» o céu
«considerando que grande número de estrangeiros ( . . . ) tonseguiram inscrever-se em
nossos registros, e insinuar-se, não se sabe como, entre os deuses, atravancando o céu a
tal ponto que o banquete do Olimpo tornou-se uma barafunda, um ajuntamento confuso
de gente que fala mil gírias diversas; considerando que o nectar e a ambrosia
consumidos por essa multidão de bêbados tornam-se rarós e caros.» É tomada a
resolução de verificar-se os títulos de família dos deuses, sob pena de os remeter de
volta aos túmulos dos seus ancestrais na Terra e, também, a de atribuir um único
emprêgo a cada deus, o que prova o grande desenvolvimento do sincretismo religioso,
já no século II.
O culto de Isis e de Osíris, divindades egípcias, era muito difundido nas margens do
Mediterrâneo, durante os dois primeiros séculos de nossa era. Segundo o mito, Osíris e
[sis, sua irmã e mulher, reinavam no Egito, onde êste deus itroduziu a agricultura. Êle
foi morto pèrfidamente pr seu irmão Set, que cortou seü corpo em 14 pedaços e os
dispersou pelos quatro cantos do mundo. [sis, depois de ter vagueado por muito tempo
com seu filho Horus, consegue reunir os membrrs do seu espôso e êste ressuscita para
tornar-se o soberano do Reino dos Mortos. Finalmente, Set é vencída por Horus. Temos
aqui uma entrc as muitas variantes existentes do mito do deus moita e ressuscitado.
Na época imperial, êste culto era muito popularizado, dum canto a outro do Império. As
escavações arqueológicas têm revelado milhares de inscrições em honra de [sis, não só
no Egito e na Síria, como também nos Balcãs, na Itália, no território da Alemanha atual,
e até na Inglaterra. No cé1ebrr romance de Apuleu, as Metamorfoses, o protagonista
Lúcio, depois de ter sido transformado em asno, retorna à condição humana graças,
principalmente, à intervenção de ísis.
A medida que se difundia, o culto desta deusa sofria profundas modificações. Se, no
Egito, a versão inicial do mito de Osíris, que morria e ressuscitava, simbolizava a
renovação anual das fôrças criadoras da natureza, posteriormente êsse sen tido foi
esquecido e Isis foi colocada no primeiro plano do culto. Em uma inscrição datada do
século II, ou do III (Buletin de Correspondance Heilenique, 1927, pág. 378), Isis é
chamada de rainha de tôda a Terra, inventora da escrita, legisladora. Segundo esta
incrição, foi ela que separou a Terra, do céu, traçou as órbitas dos astros, fundou a
navegação marítima, aboliu o poder dos tiranos, e é ela que comanda os rios, os ventos e
as vagas dos mares.
86 A ORIGEM DO CRISTIANISMO
A religião cristã nascente imitou em muitos aspectos o culto de Isis. A virgem com o
Jesus menino nos braços é apenas uma cópia de uma imaem muito mais antiga de Isis
com o pequeno Horus. Maria fugiu às perseguições de Herodes, carregando Jesus sôbre
um asno, exatamente como [sis diante da cólera de Set. A Santa-Virgem deve assim
muitos de seus traços à deusa egípcia, da mesma forma que se reconhece o deus egípcio
no mito de Jesus, cujos criadores se inspiraram em particularidades comuns a Osíris e a
Horus.
Notemos que, nos começos da nossa era, o mito de Osíris muda de conteúdo:
simbolizando, a princípio, os fenômenos da natureza, segundo o sentido inicial do mito,
adquire êle, no decorrer dos séculos, aspectos sociais. Sua morte toma pouco a pouco a
significação de um sacrifício expiatório, de um resgate dos pecados dos homens, e sua
ressurreição torna-se a garantia da beatitude futura dos que crêem nos céus. Foi
interpretado dêsse modo que o mito de Osíris serviu de protótipo a um dos elementos
maiores da ideologia cristã.
O culto iraniano de Mitra era também muito popular nessa época. Segundo as crenças
religiosas dos persas, o mundo é perpètuamente a arena de um combate entre
Auramazda (Ormus), deus do fogo e da luz, e Angramainiu (Arimã), divin dade cruel
das trevas. O primeiro é secundado por seu filho
AS RAÍZES IDEOLÓGICAS DO CRISTIANISMO
Esta religião apareceu no Império Romano nos fins do século 1 antes de nossa era. Em
sua biografia de Pompeu (Cap. 24), Plutarco relata que os piratas sicilianos foram os
primeiros a celebrar em Roma os mistérios de Mitra, e o. historiador atesta que tais
mistérios se celebravam ainda no seu tempo. Os vestígios mais antigos do culto de
Mitra foram descobertos por ocasião das escavações arqueológicas em Ostia, pôrto da
antiga Roma. A imagem mural de Mitra que aí foi encontrada data do século 1.
Durante o período imperial, o mitraísmo penetrou nos países mediterrâneos por três
vias. Foi difundido, em primeiro lugar, .pelos mercadores que vinham do Oriente, nas
cidades marítimas do . Império. Em segundo lugar, pelos legionários romanos
recrutados na Ásia Menor que deixaram muitos monumentos do culto de Mitra nos
locais em que se fixavam depois de desmobilizados. Em terceiro lugar, êste culto
contava com numerosos adoradores entre escravos e libertos oriundos das mesmas
províncias orientais. Possuem-se dados que atestam a existência, no século II, de
comunidades mitraístas ao longo do Danúbio e do Reno, assim como da fronteira
nórtica das colônias romanas na Inglaterra. O culto a Mitra era professado em templos
subterrâneos e era acompanhado de banquetes rituais com pão e vinho, análogos às
refeições em comum dos cristãos. No século III, por ocasião da crise do Império, o
mitraísmo começou mesmo a ser implantado por representantes do poder imperial.
O culto sírio do Sol Invencível (Sol Invictus) apresentava numerosas semelhanças com
o de Mitra, e se caracterizava, como êle, por seu espírito guerreiro. Sob Aureliano (270-
275),
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88 A ORIGEM DO CRISTIANISMO
culto mitraísta, no qual era o emblema do Sol radiante. O leão, o touro, a águia,
símbolos mitraístas, designam na literatura cristã primitiva os evangelistas Marcos,
Lucas e João. Nas imagens antigas que representam a crucificação de Jesus encontram-
se o Sol e a Lua, características do culto de Mitra. O ritual do mitraísmo, exatamente
como o do cristianismo, empregava pias batismais, água benta, refeições em comum, e
consagrava o domingo, a Deus. As duas religiões inculcavam as mesmas crenças sôbre
a imortalidade da alma, a vida no além com o inferno e o paraíso, a ressurreição, o juízo
final.
É óbvio que não se pode atribuir apenas ao acaso tantas coincidências, e os primeiros
apologistas cristãos o compreenderam perfeitamente. Um dêles, Justino, via nisso um
ardil do Maligno... Uma vez que se possui a prova da existência dêsse culto no território
do Império muito antes do nascimento do cristianismo, a única explicação plausível é a
de que a religião cristã, ao criar sua simbologia e o seu ritual, valeu-se de elementos
emprestados do culto em voga no século II, do mitraísrno, particularmente. Lembremos,
por outro lado, que a transformação dos templos pagãos, em igrejas, e dos deuses, em
santos, e até mesmo em mártires cristãos, era uma tática muito corrente, sobretudo,
depois do triunfo do cristianismo. Foi assim que os Dioscuros gregos vieram a ser os
santos Cosme e Damião. Tal como os irmãos Dioscuros, Castor e Polux, êstes santos
são os protetores dos doentes e, sobretudo, dos marinheiros em perigo. Outro exemplo:
os cristãos freqüentavam, tal como os pagãos, um templo de Esis, perto de Alexandria,
onde se consultava o oráculo; Teófilo, bispo dessa cidade, apressou-se a erguer ao seu
lado uma igreja, onde se depositaram os restos de vários santos, e onde também se
anunciavam profecias. Esta flexibilidade foi seguramente uma das razões da rápida
popularidade da nova religião nas províncias orientais do Império.
Convém notar aqui, antes de tudo, os elementos de um sincretismo cada vez mais
evidente. Apesar do politeísmo oficial,
vê-se desenvolver nos começos de nossa era, no Ocidente também, a tendência a
confundir as funções dos deuses. Tal foi, por exemplo, o caso do culto de Hércules,
adorado não só como filho de Zeus, mas também como deus protetor das cidades, dos
ofícios, e até do Estado, fundador dos refúgios para evadidos, inclusive os escravos,
deus do lucro, dos guerreiros, das colheitas, vencedor das fôrças do Mal etc. A mesma
tendência aparece no poder atribuído a Telus, personificação da Terra, que urna
inscrição proveniente da Gália chama de Mãe da Natureza, que dá origem às divindades
e às nações, rainha e deusa dos deuses. Isto se liga ao Priapo que, de deus pouco
importante da Fecundidade, tornou-se criador do mundo e da natureza; a Silvano, deus
das florestas e dos campos, que ascende à categoria de deus do universo material, e
recebe ainda, inopinadamente) o título de «Invencível».
O sincretismo tinha menor influência, é certo, sôbre os velhos deuses do primeiro plano
tais como Júpiter e Marte, cujas funções tinham recebido a sanção dos tempos. Mas,
isso põe ainda mais em evidência a evolução das divindades inferiores como Priapo,
Telus, Silvano. Nas províncias ocidentais do Império, esta evolução é semelhante àquela
do culto de Esis no Oriente, e que encontrou sua expressão mais acabada no
monoteísmo cristão.
A evolução das idéias a respeito da vida futura preparou também o caminho para o
cristianismo, O epitáfio seguinte sôbre a tumba de uma escrava caracteriza o que
pensava pre. cedentemente sôbre êsse assunto: «Primitiva, adeus; e tu, caminhante,
quem quer que sejas, sê feliz; eu não existia, não existo mais, e isso pouco me importa.»
O mesmo tom desolado nos é dado por esta inscrição sepulcral que se refere a um
menino escravo de seis anos: «A vida foi para mim um suplício, e não a morte, que me
deu a paz.» Nesses dois epitáfios a morte é encarada não como uma passagem para a
outra vida, mas como uma libertação da escravidão. Nenhum alusão aqui imortalidade
da alma, nem à recompensa no paraíso.
Estas concepções mais ou menos materialistas logo iriam ser substituídas por outras,
próximas do cristianismo. Epit fios um pouco posteriores exprimem já a esperança de
que as virtudes e vida laboriosa dos humildes preparam sua beatitude futura na mansão
dos deuses. Descrevem minuciosamente a felicidade nos céus, prevêem até mesmo a
transformação dos homens virtuosos em divindades, e pedem aos justos que J4
morreram que protejam aquêles que a êles se vão reunir. Um dos dogmas maiores do
cristianismo, o do reino celeste, .urgla assim espontâneamente, apoiando-se na evolução
das
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90 A ORIGEM DO CRISTIANISMO
obras de Sêneca, que a endereçava, note-se isto, apenas •às ca madas superiores. A
mesma moral de submissão diante dos poderosos é pregada, coisa característica, nos
provérbios e nas fábulas em curso nos começos da nossa era. Provérbios tais como os
seguintes: «Tu és escravo se obedeceres de má vontade; tornar-te-ás o auxiliar do teu
senhor se o fizeres voluntàriamente» e «O jugo pesa mais sôbre um pescoço
insubmisso», refletiam, menos os interêsses dos senhores, do que a situação sem saída
dos escravos. E esta filosofia, como se sabe, tornou-se parte integrante da nova
ideologia cristã.
91
Êstes traços específicos do cristianismo serão examinados nos capítulos dêste livro
consagrados aos diversos escritos cristãos dos primeiros tempos.
2. O CRISTIANISMO E O JUDAISMO
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
a mesma tendência para o monoteísmo, e, secundo, que o judaísmo não foi sempre
monoteísta.
O sistema filosófico e religioso de Sêneca não era menos monoteísta do que o judaísmo.
A ampliação das funções de Isis, deusa egípcia, de Mitra, deus mazdeano, e até mesmo
de uma divindade romana como Telus mostra que a tendência ao monoteísmo era
comum a tôdas as religiões da época. Uma religião monoteísta era, no fim das contas, a
que melhor convinha a uma potência mundial como o Império Romano.
93
cristãos.
o da fonte javeísta.
Pode-se dividir do mesmo modo o relato bíblico da criação,
como está dito no segundo livro dos Reis (Cap. XXII), surgiu
berto «por acaso» em um templo de Jerusalém, simples subterf gio da parte dos
sacerdotes dêsse templo, desejosos de revestir
94
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
O seguinte exemplo ilustra mais claramente ainda a maneira pela qual se redigiu o
Pentateuco. A expulsão de Adão e Eva do Jardim do Eden é nêle ligada, como se sabe, à
árvore da vida e do conhecimento do Bem e do Mal. Na Bíblia, essa expulsão se explica
pela desobediência do primeiro homem e da primeira mulher. Nas tábuas em caracteres
cuneiformes descobertas em Ras Shanra, na Síria, está escrito que êles foram expulsos
do paraíso porque os deuses temiam que Adão e Eva, tendo comido o fruto da árvore da
vida, pudessem tornar-se iguais a êles. Achando certamente tal temor indigno de Jeová,
os redatores dor Génese modificaram essa passagem no seu relato, apesar de terem
conservado alguns vestígios dela, como se vê no versículo 22 do capítulo III.
95
encontra-se sob a proteção da Igreja e das clases dominantes dos países capitalistas,
profundamente interessados em envolver em mistério o aparecimento do cristianismo.
Sem essas barreiras, as conclusões da crítica científica dos evangelhos seriam, nos
nossos dias, admitidas em geral, do mesmo modo que aquelas relativas ao Antigo
Testamento.
haja mais espaço, e que habitem sós no meio do país! » E em Miqueas, (II, vers. 1-2):
«Malditos sejam os que meditam a.iniqüidade e que forjam o mal nos seus leitos! Ao
amanhecer, êles o executam quando têm o poder nas mãos. Cobiçam as terras e delas se
apoderam, e as casas, e as roubam; lançam sua violência contra o homem e sôbre sua
casa, sôbre o homem e sua herança.» Estas passagens e muitas outras do mesmo gênero
mostram como a situação do povo hebreu era aflitiva, refletem sem nenhuma dúvida o
protesto das massas contra o jugo das classes possuidoras, mostram que a diferenciação
social entre os antigos hebreus era já profunda. Mas, os profetas
muito tempo que os escritos atribuídos a tal ou qual profeta contêm textos pertencentes
a épocas tão distanciadas uma das
outras que não se pode admitir que sejam obra de um só autor. Isto se refere
particularmente ao livro de Isaias, em cujo início se diz que Isaías profetizava nos
tempos de vários reis de Judá no século VII antes de nossa era; contudo, a partir do
capítulo XLI trata-se já, inegàvelmente, de Ciro, Rei da Pérsia que, no ano de 538,
permitiu o retôrno dos hebreus à Palestina, após seu cativeiro babilônico. O estudo do
texto de Isaías deixou claro que êste livro se compõe pelo menos de três partes
independentes, das quais a primeira e a segunda rio, às vêzes, chamadas de Proto-Isaias
ou Deutero-Isaías. Os livros dos outros profetas podem ser analisados de maneira
análoga.
O principal fim visado pelos livros dos profetas hebreus era a atenção das contradições
de classe no seio do povo
96
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
judeu. Seus autores, sem apelar para a luta contra os nobres e os ricos, limitam-se a
censurar os opressores. Não esperam socorros senão de Jeová. Contudo, os livros dos
profetas diferem essencialmente da posição do corpo sacerdotal de Jerusalém por sua
forte tendência messiânica, que o cristianismo adotará depois, apesar de a modificar e a
desenvolver. A salvação do povo hebreu, a derrota dos seus inimigos, a queda dos
deuses estrangeiros e a instauração do reino de Jeová estão ligados, nos profetas, à vinda
à Terra do próprio Jeová ou de um messias divino, por êle enviado. A palavra messias,
do hebraico machiac, ungido, traduzida em grego dá precisamente cristos, o Cristo.
o Egito e muitos outros detalhes de sua vida contidos nos sinóticos são constantemente
acompanhados das seguintes palavras: «a fim de que se cumprisse o que tinha sido
anunciado pelos profetas.»
Os destinos históricos do povo hebreu distinguiam-se dos das outras nações da
Antigüidade pr uma particularidade essencial. A Palestina se encontrava numa
encruzilhada do Egito e da Mesopotâmia. Os choques armados entre a Babilônia, e
depois da Assíria, dé um lado, e o Egito, do outro, se desenrolaram durante vários
séculos. A Palestina era um campo de batalha permanente entre duas potências quase
iguais. Ela conservou durante muito tempo uma independência que não foi totalmente
ilusória, e nunca caiu sob uma dominação tão longa que determinasse a extinção do
povo hebreu. Foi isso que permitiu a algumas tribos judaicas manter-se firmes duiante
todo um milênio antes da nossa era, sem perder sua fisionomia própria.
97
desgraças de Israel não eram senão provações impostas pelo Eterno. Os escritos
judaicos mais importantes dêsse gênero são o livro de Daniel e o livro de Eno que, que
não foi incluído na Biblia (século II antes da nossa era), o livro dos Jubileus. uma parte
dos livros sibilinos e os Salmos de Salomuio (século 1 antes de nossa era). A
apocaliptica cristã proveio da judaica.
Uma outra particularidade, ainda, do destino histórico dos antigos hebreus iria favorecer
enormemente a difusão do cristianismo primitivo, Temos em vista a dispersão dos
Judeus fora da Palestina, a partir da ascenção da dinastia persa dos Aquemenídios,
Grande parte dentre êles preferiu permanecer «nas paragens babilônicas», ao invés de
retornar à pátria. Possuem provas da existência, sob os Aquemenídios (séculos VI e IV
antes de nossa era), de uma numerosa colônia judaica em Elefantina, Ilha do Nilo, ao sul
do Egito. Na época helenística, que se distinguiu pela fundação de muitas cidades, já
havia muitos judeus em Alexandria (Egito) e nas cidades da Asia Menor. Ptolomeu 1
exilou para Alexandria grande número de judeus da Palestina, depois da submissão
desta. nviou provàvelmente quase cem mil para a Cirenaica. Outros monarcas helenistas
agiram da mesma maneira. Por fim, as conquistas romanas fizeram afluir massas
consideráveis de prisioneiros judeus para a parte central da bacia do Mediterrâneo,
principalmente para Roma. Certo número desses escravos judeus, rendo ol?tido a
liberdade ao cabo de certo tempo, fixou-se nas cidades, principalmente como artesãos.
Assim apareceu a diáspora, conjunto de comunidades de judeus que viviam fora da
judéia, depois da dispersão. No século 1 sua população judia era várias vêzes superior à
da Judéia. Segundo cálculos aproximativos dos historiadores, o Império Romano
contava, no século 1 da nossa era, com quatro a quatro milhões e meio de judeus, dos
quais apenas 700 mil na Palestina 3 Em Meandria, os judeus constituíam
aproximadamente 40% da população. Em todo o Egito, seu número atingia a mais de
um milhão; em Roma, viviam várias dezenas de milhares, sta dispersão dos judeus em
um território imenso e nas grandes cidades muito favoreceu o crescimento do
cristianismo, sobretudo durapte sua fase inicial.
é)oca, sete milhões, dos quais quatro milhões na diáspo’a. Ver, também,
273-278.
98
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
Não seria necessário dizer que as tentativas de colocar uma ponte entre o sistema
religioso judaico, nascido no seio das tribos judias da Palestina, com seus usos e
costumes particulares, e as doutrinas filosóficas gregas só se poderia fundar em
construções escolásticas desprovidas da lógica mais elementar.
99
gundo João, na Epístola aos Hebreus, atribuída a Paulo, e nas epístolas do apóstolo
João. Os autores dêsses escritos, do primeiro em particular, emprestaram de Filon não
tanto seu método alegórico, mas sua idéia do Logos, mediador entre os
homens, e Deus.
Desejoso de adaptar o judaísmo ortodoxo aos sistemas filosóficos gregos, Filon não
apresentava Jeová como uma divindade nacional da Israel do Antigo Testamento, mas o
elevava à categoria de Senhor Supremo do Universo, de um Ser transcendente. Os
homens eram incapazes de concebê-lo, e êle só os toca graças às potências que dêle
emanam, das quais a principal é o Logos, o primeiro servidor de Deus, junto do qüal êle
intercede em favor dos homens, o criador do mundo, à Messias. É fácil perceber-se que
a doutrina cristã do Filho de Deus não é senão uma variante da idéia do Logos, adotada,
e depois desenvolvida, pela nova religião. No Evangelho Segundo João, Jesus é
francamente identificado ao Logos.
A propaganda do nôvo culto era favorecida, doutra parte, pela organização das colônias
judias da diáspora em tôrno das sinagogas onde se concentravam tanto a vida religiosa,
como a vida social. Os judeus ali se reuniam aos sábados para exercer o culto, e também
para discutir os assuntos correntes da comunidade. A ligação entre as sinagogas nãó era
regular e só se fazia por intermédio de viajantes. Estas formas foram conservadas pelos
judeus-cristãos do comêço do cristianismo, e, depois da separação dêste do judaísmo, as
primeiras comunidades cristãs
4 K. MARX e F. ENGELs: Sur la Reirgion, Ëditions Sociales, Paris, 1960, pág. 195.
100
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
Apesar dos esforços empregados pelo corpo sacerdotal de Jerusalém, notadamente pelos
grandes padres, para concentrar em suas mãos o poder, tanto religioso, como temporal,
jamais o conseguiram. Flávio Josefo traça nas suas Antigüidades Jucltiicas um quadro
colorido da áspera luta política e religiosa na Palestina, desde o século II antes de nossa
era, até a sua época.
Os fariseus eram adversários intransigentes dos saduceus. Esta seita exigia a estrita
observância dos ritos, estigmatizava qualquer compromisso, qualquer relaxamento
nesse plano. «Havia então entre os judeus — lê-se nas Antigüidades Judaicas (XVII, 2,
4) — pessoas que se orgulhavam de observar rigorosamente a lei dos ancestrais e que se
acreditavam, por isso, particularmente amadas por Deus. Eram sobretudo as mulheres
que mais se ligavam a êles. Tinham tais pessoas uma grande fôrça, e conseguiam apõr-
se à vontade do Rei. Mostravam-se muito prudentes aliás, e esperavam sempre uma boa
ocasião para incitar a revolta.» Os evangelhos descrevem os fariseus como hipócritas
orgulhosos e cúpidos.
Duas outras seitas ligavam-se a êles, os zelotas e os essênios. Se bem que fôssem
numèricamente inferiores aos saduceus e aos fariseus, 4esempenharam todavia um
papel importante na aparição do cristjanismo. Falaremos mais adiante dos essênios.
Quanto aos zelotas, representavam a ala extrema-esquerda dos fariseus, Segundo Flávio
Josefo (Antigüidades Judaicas, XVIII, 1, 6), os zelotas só reconheciam um chefe e um
só senhor: o Eterno. Condenavam a passividade dos fariseus no domínio político, e, na
esperança de serem ajudados pelas potências celestes, exigiam a luta armada contra os
romanos. Inimigos das camadas
101
Depois da queda do reino dos Selêucidas, no ano de 63 antes da nossa era, a Judéia viu-
se sob a dependência de Roma. Esta incentivou ainda mais a luta entre fariseus e
saduceus. Depois da morte do Rei Herodes 1, que reinou do ano 37 ao ano 4 antes de
nossa era, e ao qual os evangelhos atribuem. sem nenhum fundamento a matança dos
inocentes, a Judéia foi transformada em província romana. Tôdas as tentativas de
insurreição fracassavam. Mas, a situação na Palestina tornava-se cadá vez mais tensa.
Em 66 estourou a Guerra dos Judeus. Durou vários anos, e terminou com a destruição
do templo de Jeová, em Jerusalém, que era o centro religioso da Palestina.
como resultado a desaparição dos zelotas como corrente política. A questão das relações
entre o cristianismo e quarta seita
Judia, os essênios, é muito mais complexa. Enumerando as seitas judias, Flávio Josefo
assinala que os essênios esmeravam-se
a oferecer sêres vivos em sacrifícios. Sua doutrina estava fixada em livros pr6prios.
102
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
Tais são as informações que Flávio Josefo, Fion de Ale xandria e Plínio, o Velho,
fornecem a respeito desta seita. Sua veracidade despertou dúvidas e suscitou discussões
entre os historiadores: alguns acham que Filon e Josefo idealizaram o modo de vida dos
essênios, para o fazer contrastar com os costumes grego-romanos da época. Verificam-
se, doutra parte, diferenças sensíveis entre as comunicações de Josefo e as de Fion a êste
respeito. Os manuscritos descobertos em Coumrã, aos quais já nos referimos
anteriormente, relacionar-se-iam, precisamente, com esta seita, apesar de certas
diferenças entre os seus dados, e aquêles de que se dispunham até então.
Outro documento descoberto em Coumrâ, a Guerra dos Filhos da Luz, Contra os Filhos
das Trevas, também não se assemelha de modo algum aos monumentos do cristianismo
primitivo. Dá uma descrição tipicamente judaica do combate dos justos contra o
«exército de Belial». Êles são dirigidos por padres, suas tropas se dividem em milhares
e em centenas de
AS RAÍZES IDEOLÓGICAS DO CRISTIANISMO
103
104
pgs. 162-202.
CAPÍTULO IV
O APARECIMENTO DO CRISTIANISMO
Entre o século II e o III, Tertuliano definiu como se segue o credo cristão: «Nós cremos
num Deus único, criador do mundo, que êle tirou do nada, com sua palavra engendrada
antes dos séculos. Acreditamos que esta Palavra é o Filho de Deus que, por muitas
vêzes, apareceu aos patriarcas sob o nome de Deus, inspirou os profetas, desceu por
obra do Espírito Santo no ventre da Virgem Maria, nêle se encarnou, e dela nasceu;
cremos que esta Palavra é Nosso Senhor Jesus Cristo, que pregou a nova aliança e a
nova promessa do reino dos céus. Cremos que Jesus Cristo realizou numerosos
milagres, foi crucificado, ressuscitou dos mortos e subiu ao céu
Assim, segundo a tradição, nos começos da nossa era, a Virgem Maria deu à luz Jesus,
Filho de Deus, o Messias cuja vinda tinha sido anunciada desde há muito tempo pelos
profetas. Realizando milagres, êle demonstrou que era o enviado do céu para salvar o
gênero humano, mergulhado na impiedade e corrõído pelos vícios. Crucificado em
Jerusalém, por ter combatido o judaísmo oficial, Jesus resgatava com sua morte os
pecados dos homens. Os primeiros cristãos estavam coüvencidos de que jesus Cristo
não tardaria a retornar para instalar o reina de Deus sôbre a Terra.
105
106 A ORIGEM DO CRISTIANISMO
Parece que tudo foi calculado nesse esquema, adotado tanto pela Igreja Católica como
pela Igreja Ortodoxa, para o tornar o mais verossímil possível. Milhares de teólogos o
examinaram a fundo, atentos a cada uma de suas afirmações, para delas eliminar
qualquer contradição. Durante tôda a Idade Média, quando as letras estavam quase que
monopolizadas pela Igreja, e todos os manuscritos históricos encontravam-se nos
monastérios, qualquer escrito que se afastasse por
• pouco que fôsse dêsse esquema era impiedosamente destruído. Quanto às fontes que,
por esta ou por aquela razão, não podiam ser destruídas, não exitavam em corrigi-las no
sentido desejado. Não intercalaram no manuscrito do judeu ortodoxo Flávio Josefo a
afirmação de que Jesus era... o Messias?
O esquema exposto proclamava, sobretudo, êstes três pontos: 1) a existência histórica
de Jesus, Homem-Deus, cuja passagem pela Terra está descrita nos evangelhos; 2) a
pureza e a continuidade da doutrina cristã anunciada pessoalmente pelos discípulos do
suposto fundador da nova religião, expressas nas palavras que se lhe são atribuídas; 3) a
existência da Igreja desde o círculo de apóstolos, no momento do nascimento do
cristianismo, até os nossos dias. Êste último ponto desempenha um papel
particularmente importante na doutrina católica, segundo a qual os papas romanos
seriam os sucessores diretos dos apóstolos Pedro e Paulo.
Há 50 anos que a crítica das fontes do cristianismo original vem alcançando êxitos
notáveis, graças ao progresso geral da ciência histórica; essa crítica desferiu um golpe
fulminante na tradição ortodoxa. Qual é atualmente a concepção científica a respeito da
aparição •do cristianismo e das primeiras comunidades cristãs?
Que o esquema da Igreja, mesmo sem falar de. milagres, seja inaceitável, demonstra-se
claramente à luz dos quatro argumentos seguintes:
até os meados do século III, de outro, o que não pode ser explicado senão pelo fato de a
literatura evangélica sômente ter aparecido no século II.
4. Não se encontra na literatura cristã, nem mesmo nos antigos escritos, qualquer
informação sôbre uma igreja sàlidamente constituída na Judéia desde a segunda metade
do século 1.
D’outra parte, o fato de que, apesar de tudo, o induíram no Nôvo Testamento mostra
que suas concepções se aproximavam das do cristianismo original.
S. Dionisio, Bispo de Alexandria no século III, ao assinalar que alguns dos seus
predecessores «rejeitavam completamente e refutavam de todos os modos possíveis» o
Apocalipse, cita uma versão em curso entre o clero, segundo a qual êle teria sido
composto pelo heresiarca Cerinto, que pregava «o reino terrestre do Cristo.» Quanto ao
próprio S. Dionísio, êle confessa que «não ousa refutar êste livro, respeitado por muitos
dos nossos irmãos.» Acrescenta que o estilo e a língua do Apocalipse, diferentemente
dos dos evangelhos, «não sãO puramente gregos, mas misturados com dialetos
estrangeiros e incorretos em certos aspectos.» A última observação é absolutamente
justa, e milita igualmente em favos da antigüidade dêste escrito.
claro que a dificuldade para a Igreja não residia nas particularidades do estilo do
Apocalipse: o que a irritava era seu conteúdo, incompatível com o espírito dos outros
escritos do Nôvo Testamento. O reino terrestre do Cristo que êle anuncia contradiz
nitidamente o reino celeste no outro mundo, proclamado pelos evangelhos, O ódio ao
poderio romano, e a sede de vingança de que as páginas do Apocalipse estão cheias não
se enquadram de modo algum na linha política adotada pela Igreja. E se esta o incluiu,
apesar de tudo, no cânone, foi sàmente por causa do prestígio que êsse documento
extremamente antigo da literatura cristã tinha aos olhos de «muitos dos irmãos. *
escritores cristãos, lembram sem cessar que o lugar de ação do Messias seria justamente
a Judéia, Jerusalém, a «cidade santa». Os evangelhos, inspirando-se nas professias do
Antigo Testamento, fazem remontar a genealogia de Jesus ao Rei David, o que tornava
obrigatório situar os primeiros passos do cristianismo na Judéia.
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
Para encontrar uma saída para esta contradição, foi, muito mais tarde, entre os séculos II
e IV, inventada uma lenda, segundo a qual os cristãos de Jerusalém, «obedecendo a uma
ordem do céu» (Eusébio: História Eclesiástica, III, 3), teriam deixado a cidade antes de
sua destruição pelos romanos, para se fixarem num país vizinho. Porém, êste piedoso
subterfúgio não pode salvar os zelosos defensores da versão tradicional, porque não
existe qualquer relato sôbre o destino ulterior dessa comunidade.
Tôdas essas razões nos obrigam a nos restringirmos a conclusões bem limitadas: a
versão tradicional sôbre o nascimento do cristianismo na Palestina não é digna de fé; as
informações mais verossímeis sôbre as comunidades cristãs mais antigas nos levam à
Ásia Menor sem, todavia, nos dar a certeza de que foi por lá que elas apareceram em
primeiro lugar; o problema do lugar de nascimento do cristianismo deve, visivelmente,
ficar em suspenso até a descoberta de novas fontes.1
Um argumento de pêso a favor do nascimento do cristianismo entre os judeus da
diáspora, e não na Palestina, reside no regime teocrático estritamente centralizado da
Judéia, onde tudo estava submetido ao poder da aristocracia sacerdotal do templo de
Jerusalém, e onde a população se encontrava sob a férula das múltiplas prescrições do
judaísmo. Nessas condições, é difícil conceber o aparecimento, na Palestina, de uma
seita que ousava elevar-se, desde o comêço, contra os dogmas oficiais do judaísmo,
diante dos quais se inclinavam tôdas seitas que conhecemos, dos essênios, aos saduceus.
1 Ver 1. P,. FRANTSEV: Das Fontes da Religião e do Ateísmo, Moscou, págs. 425-
487. (Edição russa)
o APA1ECIMEI DO CRISTIANISMO
111
Apesar das obscuridades do estilo, o Apocalipse de João apresenta um quadro bem claro
do estado de espírito, das esperanças e, mesmo, da ideologia dos antigos cristãos ou,
melhor, das primeiras comunidades judaico-cristãs. Êste escrito foi magistralmente
analisado há mais de meio século por Friedrich Engels.2 Bastar-nos-á, aqui, recordar
suas principais conclusões, que conservam todo o seu valor científico.
O traço mais característico das comunidades cristãs citadas no Apocalipse era a luta
verdadeiramente darwiniana pela existência, que elas mantinham entre si, segundo a
justa expressão de Friedrich Engels. Os capítulos segundo e terceiro do Apocalipse
descrevem em poucas palavras o estado de coisas que vigora no seio de cada uma delas.
Descobrem-se, assim, na comunidade de feso, criaturas «que se dizem apóstolos, e que
não o são; mentirosos, apenas» (II, 2), e ainda certos nico. laítas dos quais se constata
também a presença na comunidade de Pérgamo. O autor do Apocalipse censura a vários
cristãos por abandonarem a fé, e os exorta a se arrependerem. (Cap. II, versículo 5 e
outros.) Ële verifica que os membros das comunidades de Smirna e de Filadélfia são
caluniados por «aquêles que se dizem judeus, e que não o são.» (II, v. 9 e III, v. 9.)
Condena os fiéis de Tiátire por deixarem «a mulher Jezabel, que se diz profetiza,
ensinar e seduzir os servidores de Deus [os cristãosj, para que êles se abandonem à
impudicícia e comam carnes sacrificadas aos ídolos.» (II, 20.) O relato das querelas sem
fim entre os diversos grupelhos religiosos é acompanhado, no Apocalipse, pela
descrição dos castigos do céu que esperam os renegados da verdadeira fé.
3 Donde a palavra Igreja, em francês. Os teólogos, tirando partido do seu duplo sentido
em grego, procuram provar, dessa maneira, que a Igreja nasceu com o cristianismo. Na
versão russa do Nôvo Ter tarnenso o têrmo grego é sempre traduzido por “igreja”.
autênticos. Antes de descrever os castigos reservados aos incrédulos, êle previne que
essas desgraças serão poupadas a «cento e quarenta e quatro mil (homens) de tôdas as
tribos dos filhos de Israel.» (Apocalipse, VII, 4 e XXI, 12.) E não se pode duvidar que
êle tem em vista não aos cristãos em geral, mas, explicitamente, aos judeus-cristãos,
porquanto êle precisa que êsses justos pertencem às doze tribos israelitas atribuindo êsse
título «àqueles que não se macularam com mulheres, pois êles são virgens; êles seguem
o cordeiro por onde êle vá; foram resgatados entre os homens. » (Apocalipse,
cristã não se realizava senão entre os judeus; portanto apenas uma parte dêles podia
esperar, segundo o autor do Apocalipse, a salvação e o reino de Deus. Êste escrito é,
portanto, também judaico, até certo ponto.
Convém notar, contudo, que êste documento cristão, dos mais antigos entre todos, já
difere muito dos outros escritos judaicos dêsse gênero e, primeiramente, por sua fé em
Jesus, o enviado de Deus; fé que é proclamada desde as primeiras linhas: «Revelação de
Jesus Cristo, que Deus lhe deu para mostrar aos seus servidores as coisas que devem
acontecer brevemente. » O texto seguinte retorna várias vêzes a Jesus, mas aqui êle de
modo algum se assemelha ao personagem evang lico. O Apocalipse não diz uma única
palavra sôbre a sua vida terrestre.4 Trata-se de uma figura cósmica, o «alfa e
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
115
Sabemos que no centro das divergências no seio das comunidades cristãs encontrava-se
a questão dos sacrifícios aos ídolos (como se vê no capítulo II do Apocalipse), questão
que não deixou de ter um grande papel na história do cristianismo primitivo, até a sua
transformação em religião oficial do Império Romano. Os sacrifícios eram parte
integrante e essencial de tôdas as religiões da Antigüidade. Aquêle que participava
dessas cerimônias, notadamente comendo as carnes sacrificadas aos ídolos, dava, com
isso, de qualquer modo, uma prova de lealdade política. O caráter político dêsse ritual
acêntuou-se mais ainda na época em que um nôvo culto começou a se difundir: o dos
imperadores. Sendo os sacrifícios usuais entre os adeptos de quase tôdas as religiões da
Antigüidade, aquêles que se exigiam em honra do Imperador não suscitavam qualquer
oposição.
O cristianismo, porém, era uma religião nova. Vinda do judaísmo, recusava-se, como
êle, a reconhecer a natureza divina dos imperadores romanos, e, por conseguinte, a lhes
oferecer sacrifícios, o que apontou imediatamente os cristãos à desconfiança das
autoridades romanas. Os ideólogos do cristianismo compreenderam, por outro lado, e
bem depressa, que para o difundir entre os pagãos era necessário primeiramente rejeitar
o ritual judaico tradicional e, com êle, os sacrifícios em geral. Ora, como o sublinhou
Engeis, «desembaraçar-se dos sacrifícios era a condição primeira de urna religião
universal.»5
116
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
Nas religiões anteriores, o ritual servia, sobretudo, para unir estreitament os fiéis,
separando-os dos incrédulos. Essas religiões não se propunham a objetivo de conquistar
todos os homens, acima das barreiras étnicas, sociais e outras; seus ritos
desempenhavam sua função, que consistia em manter a união dos fiéis, e apenas dos
fiéis. Mas, êles, dêsse modo, impediam a conquista de novos prosélitos. O cristianismo,
ao contrário, ao abolir os sacrifícios e o ritual, facilitou consideràvelmente sua própria
tarefa de propaganda.
Ësse era um meio extremamente atuante de propaganda religiosa, tanto para estimular a
fé dos cristãos, como para converter os pagãos. Quanto mais próximo parecia o dia do
Juízo Final, mais adeptos conquistava a predicação do cristianismo...
Os primeiros cristãos nutriam a esperança de ser reçompensados ainda durante sua vida,
por sua fidelidade aos ensinamentos do Cristo. Esta esperança da recompensa para os
justos, e de castigo para os pecadores, representados por Roma e suas classes
exploradoras, num futuro próximo, tornava o cristianismo primitivo radicalmente
diferente das religiões precedentes.
«Ai, ai daquela grande cidade, que estava vestida de linho fino, de púrpura escarlata; e
adornada com ouro, pedras preciosas e pérolas! Em uma hora apenas tantas riquezas
foram destruí- das!» (XVII, 16 e também os versículos 10 e 19.) O autor dêsse escrito se
rejubila com as lágrimas e as lamentações, não apenas dos romanos, mas, também, de
todos aquêles cuja sorte estava ligada à da Capital do Império: reis submetidos a Roma,
ricos mercadores, donos de naves. Foi preciso todo um século de adaptaçãà do
cristianismo aos interêsses dos altos meios para substituir o grito cheio de ódio contra os
opressores:
«Ela caiu, ela caiu, Babilônia, a grande prostituída! » (XVIII, 2), pela máxima
açucarada dos evangelhos: «Dai, pois; a César o que é de César, e a Deus o que é de
Deus.» (Mateus, XXII, 21.)
Não possuímos dados sôbre a composição social das comunidades cristãs da Ásia
Menor. Mas, a ardente espera do fim do mundo, o ódio às autoridades romanas e seus
cúmplices, o apêlo ao martírio em nome da fé, demonstram de modo
possível que tais fôssem as funções dos 24 velhos do Apocalipse. Sômente duas
categorias de fiéis se clistinguiam da massa
Não é inutil notar aqui que a linha nitidamente anti- romana do Apocalipse coincide
com a estrutura democrática das comunidades cristãs mais antigas que conhecemos. Isto
uão era efeito de mero acaso. Veremos, subseqüentemente, que a tendência cada vez
mais acentuada a compor-se com o poder imperial, os apelos de submissão às
autoridades romanas são paralelos e são determinados em grande parte pela aparição, e,
depois, pelo fortalecimento gradual do episcôpado monárquico, até o momento em que
os cristãos, «uma vez seu culto tornado religião do Estado», já se tinham «esquecido»
das «ingenui
120
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
Pode-se dizer que o autor do Apocalipse não chegou a se opor ao judaísmo e a êle
permaneceu fiel, de fato, sob muitos aspectos. Êle dirige-se aos judeus apenas, e
promete a felicidade na Jerusalém celeste, sômente aos eleitos entre êles. As imagens
apocalípticas dêste escrito são em grande parte empres- tadas da anterior literatura
judaica do mesmo gênero. Engeis acentua que o Apocalipse «nos traz em sua
integridade o que o. judaísmo, fortemente influenciado por Alexandria, legou ao
cristianismo. Tudo aquilo que lhe é posterior é acréscimo ocidental, greco-romano.»9
Portanto, o Apocalipse não é um escrito puramente judaico, más judaico-cristão: êle já
fala de um Jesus-Cordeiro, que foi imolado e resgatou com seu sangue os crentes (V, 9).
O Cordeiro aí aparece na qualidade de principal mèdiador entre Deus e os homens. A
descrição do advento de Jesus Cristo ocupa o lugar central. Tudo isso distingue êste
antigo monumento do cristianismo, da literatura judia de idêntica natureza. Precisemos,
contudo, que «o cristianismo de então, que ainda não tinha consciência de si, estava
ainda muito distante da religião universal, dogmàticamente fixada pelo Concílio de
Nicéia». 10 O Cordeiro do Apocalipse não se assemelha ao Homem- Deus dos
evangelhos. O Apocalipse ignora a Santíssima Trindade, o batismo e o pecado original.
A ideologia judaico- cristã era, assim, apenas o embrião de uma nova religião que ainda
não tinha rompido suas ligações com o judaísmo. Isto quer dizer que, se os argumentos
já apresentados não bastassem para estabelecer a data exata da composição do
Apocalipse, seu conteúdo nos levaria, pelo menos, à conclusão de que êle constitui o
documento mais antigo do cristianismo.
338.
121
É útil comparar, para têrmos uma idéia mais exata do cristianismo nascente, a ideologia
e os costumes das comunidades cristãs primitivas segundo o Apocalipse, com os dados
dos documentos descobertos em Coumrã. As informações fornecidas por essas duas
fontes têm muito de comum. Mostram, ambas, que as primeiras comunidades eram
formadas de judeus, que se desligavam do judaísmo, que elas professavam crenças
messiânicas e o desprêzo pelas coisas terrenas, que seus adeptos pertenciam
visivelmente às camadas deserdadas da população. É de se crer, além disso, que tanto os
essênios, como os cristãos do tempo do Apocalipse, eram hostis à escravidão.
mente aos seus sacerdotes, enquanto que, a julgar pelo que se lê no Apocalipse, as
comunidades cristãs primitivas da Ásia Menor não conheciam qualquer espécie de
clero, de tal modo que, nelas, o papel principal pertencia aos «inspirados tocados pela
graça», apóstolos e profetas.
Por todos êsses motivos, a comunidade de Coumrã permaneceu uma seita do judaísmo,
e foi condenada a desaparecer depois da queda de Jerusalém, enquanto que a ideologia
expressa no Apocalipse, renegando o caráter limitado do judaísmo, pôde transformar-se,
em seguida, numa religião mundial.
CAI4TULO V
Segundo o Apocalipse, a evolução da nova religião reflete-se tanto nas fontes cristãs,
como nas não cristãs que datam dos primeiros decênios do século II. Ao primeiro grupo
pertencem as epístolas mais antigas, atribuídas a S. Paulo, algumas outras epístolas do
Nôvo Testamento e a Didaquê. No outro grupo, figuram diversas passagens dos escritos
de Plínio, o jovem, de Suetônio e, provàvelmente, de Tácito.
O leitor sabe que, por tôda uma série de razões, não se poderia considerar como
autênticas tôdas as informações sôbre o cristianismo que figuram nos manuscritos
dêsses historiadores romanos. A correspondência entre Plínio, o jovem, e o Imperador
Trajano revela notadamente os vestígios de uma «correção» da parte de um piedoso
copista cristão (X, 96 e 97). Segundo a passagem de uma carta de Plínio, em que êle
comunica que obriga as pessoas suspeitas de professar a religião cristã, a adotar a
imagem do Imperador e a renegar a Jesus Cristo, lê-se, por exemplo: «Impossível levar
os verdadeiros cristãos a fazer tanto uma, como a outra dessas coisas.» A interpolação é
manifesta. Outra intercalação posterior é, megàvelmente, aquela em que os cristãos são
caracterizados como pessoas «que se comprometiam por juramento ( . . . ) a não
cometer roubo, extorsão e adultério, a nunca faltar à sua promessa, a jamais negar um
depósito.» Uma opinião tão favorável aos adeptos do cristianisplo é bastante estranha
em uma mensagem oficial endereçada ao Imperador, pelo Governador de uma província
romana. É claro que Plínio não colocaria o problema do comportamento das autoridades
romanas em relação os cristãos, se tivesse sôbre êles tão boa opinião.
Isto não quer dizer que a correspondência entre Plínio e Trajano seja inteiramente
falsificada como o atesta, por exemplo, R. Viper em sua obra Roma e o Cristianismo
Primitivo. Êsse documento continha certamente passagens em que se fala dos cristãos,
uma vez que Tertuliano a êle se refere no limiar do século III, portanto, muito antes do
acesso da Igreja ao poder. Não se ‘poderia presumir, doutra parte, que, já no século II,
um escrito não cristão tenha podido ser objeto de interpolações tão consideráveis. Não
há dúvida, por conseguinte, de que algumas das informações sôbre os cristãos,
existentes na correspondência em questão, são autênticas. Isto
123
O Imperador mostra a Plínio que não vale a pena andar atrás especialmente dos fiéis do
Cristo, que não se deve levar em conta as delações anônimas contra êles, que é preciso
punir iinicamente os crentes que, obstinadamente, se recusam a renegar sua fé. Tudo
prova que o cristianismo não era então considerado como perigoso pelos homens do
poder.
Os escritos não cristãos dêste período não fornecem senão informações muito pobres
sôbre a nova religião. Porém, atestam o fato importante de certa difusão do cristianismo
sôbre o território da Ásia Menor, durante os primeiros decênios do século II, e relatam
como os funcionários romanos se portaram em relação aos cristãos. As fontes cristãs
oferecem muito mais dados para o estudo da ideologia do cristianismo primitivo, e, o
que é principal, para o conhecimento da composição e da estrutura das primeiras
comunidades cristãs.
Ao examinar êste grupo de documentos, é preciso levar em conta que, por essa época, e
mesmo um pouco mais tarde,
AS COMUNIDADES CRISTÃS... 125
o cristianismo não era ainda uma doutrina acabada com o seu credo, seu sistema de
dogmas, sua organização clerical tal como nos séculos seguintes. Tôdas as espécies de
seitas e grupelhos chamavam-se, então, cristãos, e mantinham entre si uma luta das mais
encarniçadas. As relações com o judaísmo, o problema de saber se se devia pregar a fé
entre os pagãos, se era preciso observar as prescrições do culto judaico, a data do
advento do reino de Deus, e a maneira pela qual os crentes, para êle, deveriam-se
preparar, problemas tais como o da comunidade dos bens entre os cristãos, a abolição da
escravatura, a admissão de um segundo casamento, a permissão ou não de comer carnes
sacrificadas aos ídolos etc., tudo isso era motivo para ásperas discussões. O único traço
de união entre os cristãos era, nesse tempo, a fé na divindade de Jesus, ou, para
empregar a terminologia antiga, a crença de que Jesus era o Cristo, isto é, o Messias.
Contudo, mesmo êste ponto essencial provocava graves divergências entre êles.
Enquanto alguns cristãos admitiam que Jesus era um ser celeste, outros insistiam na sua
origem terrestre, e grupos intermediários bastante numerosos, procurando conciliar os
extremos, falavam da dupla natureza, divina e humana, de Jesus. Havia mesmo seitas,
como os docetos (do grego doquein, aparecer), que, em geral, negavam a existência
terrestre de Jesus, afirmando que êle tinha sido apenas uma visão.
126
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
1. A SEPARAÇÃO DO JUDAÍSMO
127
Neste plano, o mais importante aspecto das primeiras epístolas se relaciona com a
evolução da imagem do Jesus. No Apocalipse, Jesus, ou o Cordeiro, é apenas o Fiho de
Deus, um chefe do «exército celeste», isento de traços humanos. As epístolas mais
antigas já o apresentam na qualidade de Homem- Deus, sublinhando fortemente,
todavia, o lado divino de sua natureza. Já adquire nelas traços humanos, mas ainda
estamos longe do relato evangélico sôbre o fundador do cristianismo. Não se encontra,
nas primeiras epístolas, a menor alusão ao nascimento de Jesus na Palestina, ao
conteúdo de sua pregação, às suas parábolas. Apesar de repetirem com freqüência o
nome de Jesus, as quatro primeiras epístolas não fornecem senão as seguintes
informações, de extrema pobreza, sôbre sua existência terrestre: «nasceu de uma
mulher, nasceu sob a lei» (Epístola aos Gálatas, IV, 4), «morreu por nossos pecados»
(...), «ressuscitou no terceiro dia» e apareceu aos apóstolos e a muitos crentes (1,
Coríntios XV, 3-7). Não se encontra nessas epístolas nenhuma das numerosas sentenças
atribuídas a Jesus nos evangelhos.1
Êste silêncio sôbre a vida terrestre de Jesus não pode ser fortuito, pois tôdas as epístolas
começam e acabam dese-
jando a graça e a paz em seu nome, e são consagradas aos seus ensinamentos. Tudo leva
a crer, portanto, que elas foram compostas antes da biografia evangélica do Cristo.
Jesus, Deus feito homem, apesar de ser considerado como o Messias, o Salvador
anunciado pelos profetas hebreus, aparece nas epístolas sob uma forma nitidamente
distinta da do Messias dos dogmas judaicos. No Antigo Testamento, êle é habitualmente
apresentado como o enviado de Deus encarregado de estabelecer seu reino sôbre a
Terra. A nova doutrina cristã contradizia esta versão, ao afirmar que o advento do
Messias já tinha ocorrido sem ter sido notado. Por outro lado, a situação do povo hebreu
cuja sorte, segundo os profetas, deveria melhorar depois da vinda do Messias, ia de mal
a pior, durante e após a Guerra dos Judeus.
Para vencer, o cristianismo devia primeiramente rejeitar os traços do judaísmo que eram
objeto das caçoadaá dos pagãos e que provocavam, mesmo entre êles, um sentimento de
repugnância. Tratava-se, no caso, de um conjunto de prescrições meticulosamente
elaboradas, designadas no Nôvo Testamento pela palavra «lei», e, em primeiro lugar, do
rito da circuncisão. Segundo o dogma judaico, a observação da «lei» era a condição
essencial da salvação. Os pregadores da nova religião achavam, ao contrário, que era
preciso renegar a «lei» para se salvar a alma.
XII, 13.) «Não há mais escravo nem livre.» (Gálatas III, 28.)
130
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
Lembremos uma vez mais, contudo, que o cristianismo, mesmo em sua fase inicial,
nunca reivindicou a libertação dos escravos: as declarações sôbre a igualdade de todos
os homens, livres ou não, assumiam um caráter abstrato, não tinham em vista senão a
igualdade em relação a fé e diante de Deus. A religião cristã não exigia mesmo dos
senhores que libertassem seus escravos, cristãos como êles. As palavras mais radicais
do cristianismo sôbre a escravidão foram as seguintes: «Fôste chamado? Não te
inquietes; mas se podes tornar-te livre, aproveita-te disso antes: Porque o escravo que
foi chamado pelo Senhor é um liberto do Senhor; e, da mesma maneira, o homem livre
que foi chamado é um escravo de Cristo. Fôstes comprados por um grande preço; não
vos tomeis escravos dos homens. » (1 Corz’ntios, VII, 21, 23.)
131
XII, 1-5.)
Não se nota aqui como certos meios religiosos se mostravam conciliantes em relação ao
poder imperial nos começos do século II? Com que espantosa rapidez o cristianismo
renunciou à santa cólera do Apocalipse contra Roma, «a grande prostituída», e se pôs a
afirmar que ela servia a Deus, e que os crentes deviam prestar-lhe obediência não por
temor, mas em sã consciência,
A ordem dada por Traj ano de não se perseguir em vão aos cristãos, e a atitude
benevolente de Plínio a respeito dêles,
em data que coincide muito aproximadamente com aquela em que as primeiras epístolas
foram compostas, mostram claramente que o conflito entre o Império e o cristianismo
foi extremamente exagerado nos escritos dos apologistas posteriores. A passagem acima
citada atesta, além disso, como a tradição clerical se distancia da verdade no que
concerne às perseguições de que teriam sido vítimas os primeiros cristãos. O convite à
obediência aos podêres constituídos não poderia ter sido formulado senão no clima de
tolerância religiosa que caracterizou o período dos Antoninos (século II).
132
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
Cormntios, II, 17.) No cap. XI, versículo 4, censura certos crentes por sua
complascência para com aquêles que pregam «outro Jesus», «outro Espírito», «outro
Evangelho». A Epístola aos Gálatas mantém o mesmo tom: «Espanta-me que vos
afasteis tão prontamente daquele que vos chamou pela graça do Cristo, para passar a
outro evangelho.» (Epístola aos Gálatas, 1, 6.) As epístolas falam freqüentemente de
falsos apóstolos (II Corz’ntios, XI, 13) e falsos irmãos (Gálatas, II, 4), acusando-os de
deformar a verdade dos evangelhos. Trata-se aí, em todos êsses casos, não de uma luta
entre cristãos, e adeptos de outras religiões, mas de querelas e de desacordos no seio das
comunidades cristãs. A existência de um grande número de seitas, as modificações
constantes dos escritos evangélicos, as divergências quanto ao credo atestam que os
cristãos não dispunham -nessa época de evangelhos canônicos reconhecidos por todos.
A passagem seguinte da primeira Epístola aos Corz’ntios (VIII, 5), sôbre a qual os
teólogos silenciam, mostra de um modo eloqüente a confusão ideológica que reinava
nas comunidades cristãs primitivas: «. . . existem realmente vários deuses e vários
senhores, contudo para nós não há senão um Deus ( ..
Estas citações das primeiras epístolas paulinianas provam que as comunidades cristãs
dos começos do século II, bem como as que existiam meio século antes, encontravam-se
longe da concórdia e da unidade descritas na história eclesiástica. Unânimes em sua fé
no advento de Jesus, as diversas seitas cristãs interpretavam, cada uma a seu modo, os
dogmas da nova religião, pregavam evangelhos diferentes, e, o que é ainda mais
característico, passavam fàcilmente de uma doutrina a outra. No decorrer da luta, duas
tendências se constituíram entre as seitas que se consideram cristãs; uma delas, ligada
ao nome do apóstolo Paulo, assumiu a chefia de numerosos grupos cristãos, e lançou as
bases da fundação da Igreja episcopal; a outra per
133
AS COMUNSOADES CRISTÃS..
Eis ainda outro traço a êsse respeito. A primeira Epístola aos Corín tios dedica longo
trecho à maneira de se celebrar a ceia ao Senhor, que encerrava as assembléias dos
cristãos, e, em seguida, nota com indignação (cap. XI, versículos 21 e 22):
«Quando estão à mesa, cada um começa por tomar sua própria ceia, de -sorte que um
tem fome, e outro se embriaga.» Acentua que aquêles que assim procedem
«envergonham os que nada têm». Os cristãos que não matavam sua fome eram
numerosos nessa época, segundo parece. -
A profecia era também um traço distintivo da vida das comunidades cristãs primitivas.
A Igreja e o clero não existiam ainda, de modo que os profetas desempenhavam um
papel importante na época. Caíam em êxtase nas assembléias de fiéis, e quanto mais
caóticos e ininteligíveis eram seus discursos, mais se acreditava estarem êles inspirados
pela «graça de Deus». A Igreja iria ensinar mais tarde que a «graça» era privilégio do
clero. Nas primeiras epístolas, os profetas ainda são bastante considerados, e a única
coisa que se exige é que tudo «se faça decentemente, e com ordem.» (1 Cormntios,
XIV, 40.)
Convém ter em conta, para dar a essa passagem seu justo valor, que a população urbana,
notadamente a leste do Império, não era homogênea. Além dos gregos e dos romanos,
existia nas cidades um considerável número de grupos étnicos e lin
134
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
güísticos: judeus, egípcios, sírios, germanos etc. A massa cristã, composta sobretudo de
escravos e de pobres, era particular- mente heterogênea do ponto de vista étnico. Caindo
em êxtase, os fiéis exprimiam-se naturalmente em sua língua natal. Tudo isso revela
que, na época em que as primeiras epístolas atribuídas a Paulo foram escritas, as
comunidades cristãs primitivas se compunham já em grande escala não só de judeus,
mas também de pagãos.
O divórcio cada vez mais pronunciado entre os chefes das comunidades, e a massa dos
crentes, aparece numa declaração extremamente franca do autor da segunda Epístola aos
Coríntios (XI, 20): «Se alguém vos põe em servidão, se alguém vos devora, se alguém é
arrogante, se alguém vos bate no rosto, vós deveis suportar.» Trata-se aí, segundo o
contexto, das relações no seio das comunidades cristãs da época.
AS COMUNIDADES CRISTÃS..
135
O conteúdo das primeiras epístolas paulinianas nos permite, assim, compreeder certos
traços distintivos da evolução ideológica e das mudanças de estrutura das comunidades
cristãs, no decorrer do seu primeiro meio século de vida. A tendência geral é a ruptura
gradual com o judaísmo, a transformação de Jesus, divindade, em Homem-Deus, a
ardente espera do Juízo Final, e, finalmente, a inexistência de qualquer ritual.
A linha politica e social da pregação cristã não estava determinada ainda em grande
escala pela composição social dos adeptos da nova religião: a difusão desta, quase que
exclusivamente entre as massas laboriosas, obrigava os autores das epístolas a colocar,
êles próprios, de qualquer forma, o problema da atitude que era preciso adotar em
relação à riqueza, à escravidão, e, inicialmente, ao poder romano. Depois de um curto
período de negação do poder imperial, o cristianismo passou ao reconhecimento da
autoridade de Roma e, em seguida, à paz com o Império.
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
culo II. -
Sua atitude em relação ao rito da circuncisão é probante a êsse respeito. A Epístola aos
Romanos declarava a circuncisão necessária para os cristãos de origem judaica, e
obrigatória a observância da lei mosaica para todos. (Epístola aos Romanos, II, 13 e 25.)
Nas epístolas do segundo grupo, muda-se o tom sôbre êsse assunto. Expressões tais
como as seguintes:
«Cuidado com os cães, cuidado com os maus trabalhadores, cuidado com os falsos
circuncisos» (Filipenses, III, 2) não figuram em qualquer texto das primeiras mensagens
paulinianas. O tom da primeira Epístola aos Tessalônicos é mais violento ainda. Ela
formula contra os judeus, pela primeira vez, a acusação de terem causado a morte de
Jesus Cristo e dos profetas, e de serem «inimigos de todos os homens.» (1 Epístola aos
Tessalônicos, II, 15.) Foi apoiando-se nessas acusações que os representantes da Igreja
perseguiram os judeus durante tantos séculos. As palavras «inimigos de todos os
homens». nos autorizam, por outro lado, a situar, de modo bastante preciso, esta epístola
na época da insurreição de Bar-Cocheba (132-136), ou um pouco mais tarde. Daí se
pode ainda tirar a conclusão de que nessa época o cristianismo já se tinha destacado do
judaísmo, e que sua difusão era grande entre os pagãos.
AS COMUNIDADES CRISTÃS
137
revela uma das fases da formação do mito conhecido. Sabe-se que os evangelhos não
dizem em parte alguma que o Cristo apareceu sob o aspecto de um servo, de um
escravo. Conclui-se, pois, que a epístola em questão conserva os traços de uma das
variantes apócrifas da lenda sôbre o fundador do cristianismo. E é preciso dizer que
semelhante versão era muito útil à propaganda desta religião entre os escravos, para
conquistá-los para a nova fé. Esta versão não encontrou lugar nos evangelhos, porque, a
partir da segunda metade do século II, as camadas superiores da população começaram
a desempenhar um papel cada vez mais importante no cristianismo, e a imagem de um
Deus-Escravo não era de feitio agradável para elas.
Eis ainda outra passagem do segundo grupo de epístolas que traz as marcas dos escritos
cristãos dêste período e que não foram incluídos no cânone. Na Epístola aos E/e’sios lê-
se (V, 14): «Foi por isso que se disse: Desperta, tu que dormes, levanta-te de entre os
mortos, e Cristo te esclarecerá.» A fórmula: «É por isso que se disse» é aplicada no
Nôvo Testamento aos textos do Antigo Testamento e dos evangelhos. As palavras
«levanta-te, sê esclarecido» figuram no Livro do Projeta Isaías (LX, 1). Não há dúvida
de que a outra parte da frase foi tirada de um evangelho apócrifo. Tudo leva a crer que
alguns escritos que se consideravam como santos no momento em que a Epístola aos
E/ésios foi composta não foram incluídos por qualquer razão, nem no Antigo
Testamento, nem no Nôvo Testamento. Os casos dêsse gênero não são raros.
O autor da segunda Epístola aos Tessalônicos declara a êsse respeito: «Quanto à vinda
de nosso Senhor Jesus Cristo e nossa reunião com êle, nós vos rogamos, irmãos, . que
não vos deixeis fàcilmente afastar do vosso bom senso, e não vos perturbeis, seja por
qualquer inspiração, seja por qualquer palavra, seja por qualquer carta que digam escrita
por nós, como
138
A ORIGSM DO CRISTIANISMO
se o dia do Senhor estivesse já perto.» (II Tessalônicos, II, 1.) ËIe explica que o dia do
Senhor só chegará quando a iriiqüídade atingir seu apogeu. Em contrapartida, descreve
sem poupar detalhes os sinais do dia do Senhor: a voz de um arcanjo, o som da trombeta
de Deus, os crentes arrebatados sôbre nuvens e assim por diante. (1 Tessalônicos IV,
16.) O reino de Deus é definitivamente protelado, e passa-se a acentuar a beatitude que
aguarda os crentes no outro mundo.
Compreende-se que semelhante modificação não podia ser aceita de improvíso por
tôdas as comunidades cristãs. A êsse respeito, a súplica que Paulo endereça aos crentes,
exortando-os a não se deixarem perturbar por cartas que diriam vindas dêle, é bastante
interessante, assim como passagens tais como a da Epístola aos Filipenses, em que êle
se levanta contra os que «pregam o Cristo por inveja e por espírito de disputa.»
(Fuipenses, 1, 15.) O comêço desta epístola é também bastante característico. Seu autor
começa como de costume na primeira pessoa, mas passa, siibitamente, à terceira, no
texto que chegou até nós, a partir do sexto versículo do primeiro capítulo onde se diz: «.
. . aquêle que começou em vós esta boa obra a tornará perfeita até ao dia de Jesus
Cristo», o que não o impede de continuar, depois, falando em nome do apóstolo Paulo.
Pode-se crer que as palavras que acabamos de citar se referiam, no texto inicial, ao autor
da epístola, que estaria convencido de que sobreviveria até o «dia do Senhor», pelo
menos. Posteriormente esta passagem foi redigida de modo a salvar a autoridade do
apóstolo.
Contudo, seria errado crer que, já durante a primeira metade do século II, o cristianismo
era a religião das classes possuidoras de Roma. O reconhecimento da escravidão e o
apêlo
que é direito.» (E/e’sios, IV, 28.) O célebre preceito: «Se alguém não quiser trabalhar,
que não coma também» (II Tessalônicos, III, 10) só poderia ter surgido evidentemente
num meio laborioso. A maioria das exortações são dirigidas contra os «falsos profetas»,
que erravam de comunidade em comunidade, e que abusavam da boa fé dos crentes. A
freqüente repetição dêsses apélos prova suficientemente que a massa dos cristãos
pertencia à população laboriosa. O autor de uma dessas epístolas declara, em
conseqüência, a propósito da atitude que
pregadores devem observar: «Não temos comido gratuita- mente o pão de ninguém;
mas com trabalho e fadiga, trabalhando noite e dia, para não sermos pesados a nenhum
de vóz. » (II Tessalônicos, III, 8.
140
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
em que a Epístola aos Efésios foi composta. É claro que a palavra «evangelistas» aqui
não designa os autores dos evangelhos incluídos no Nôvo Testamento. A Epístola aos
Fuipenses (1, 1) fala, é certo, de «bispos e diáconos», uma única vez, aliás, mas,
segundo a opinião geral, trata-se, aqui, de uma interpolação posterior, pois, tanto as
primeiras epístolas paulinianas como as do segundo grupo, ignoram completamente o
episcopado.
Assim, o segundo grupo de epístolas atribuídas ao apóstolo Paulo nos permite constatar
vários aspectos novos no cristianismo. Durante o segundo quarto do século II, a religião
cristã derruba tôdas as barreiras étnicas e sociais, e rompe definitivamente com o
judaísmo. Ela evita a anunciação do fim iminente do mundo; procura um meio de
entendimento com o poder. Tendo proclamado a igualdade de todos os sêres humanos
diante de Deus, trata de pregar aos escravos a submissão aos seus senhores. Quanto à
composição social, as comunidades cristãs permanecem mais ou menos homogêneas;
suas fileiras continuam sendo constituídas por elementos pertencentes às camadas
pobres e laboriosas da população. A idéia da Igreja convocada para unir sob o seu signo
as comunidades cristãs parece surgir igualmente durante êste período.
O aparecimento, nas epístolas pastorais, do clero separado da massa dos fiéis é o seu
traço mais característico. Encontramos nelas, pela primeira vez, êste personagem: o
bispo, considerado não sômente como chefe de tal ou qual comunidade cristã, mas,
ainda, de uniões de comunidades. Assim, Tito, Bispo de Creta, é encarregado de
«estabelecer anciões em tôdas as cidades.» (Tito, 1, 5.)
A primeira Epístola a Timóteo enumera de modo detalhado as funções dos bispos, dos
diáconos, dos anciãos e de
AS COMUNIDADES CRISTÃS...
141
outros membros do clero. Em particular, nela se informa que não se deve «receber
acusação contra um ancião, se ela não se firmar no depoimento de duas ou de três
testemunhas.» (1 Timóteo, V, 19.) Segundo o contexto, compreende-se que essas
acusações emanavam dos cristãos, e pode-se delas concluir que os conflitos entre os
fiéis agrupados, e o clero, eram então bastante freqüentes. As constantes exortações do
autor das epístolas aos bispos e aos diáconos a serem desinteressados, a não buscarem
proveitos sórdidos (1 Timóteo, III, 3 e 8, Tito, 1, 7) levam também a crer que êsses
conflitos eram devidos, muitas vêzes, à apropriação, pelo clero, dos bens das
comunidades.
142
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
sível que, a partir da segunda metade do século II, as camadas possuidoras da população
começam a desempenhar um papel decisivo no seio das comunidades cristãs, e,
primeiro que tudo, na Igreja.
Não há a menor dúvida de que as epístolas atribuídas ao apóstolo Paulo não são tôdas
devidas a um só homem. Elas se contradizem continuamente, e podemos observar,
nelas, diferenças muito sensíveis de estilo e de linguagem. A melhor maneira de se
explicar tudo isso consiste em atribuir as epístolas a diferentes autores, classificando-os
em grupos que representam, cada qual, uma fase determinada na evolução da ideologia
cristã. Semelhante método permite elaborar um quadro bastante completo das
modificações sofridas pela nova religião, no decorrer do primeiro século da sua
existência.
3 A. Lojsy, obra citada, pág 9, nota, irônicamente, que, pala explicar “a incoerência
doutrinal” das diversas epístolas paulinianas e, muitas vêzes, no texto de uma mesma
epístola, ter-se-ia podido imaginar “uma explicação melhor do que a mobilidade de
espírito da qual era superabundantemente dotado o apóstolo Paulo, segundo se é
ordinàriamente obrigado a admitir.”
AS COMUNIDADES CRISTÃS.
143
4. A TENDÊNCIA .TLJDAICO-CRISTÃ
Além das epístolas atribuídas a Paulo, o cânone do Nôvo Testamento comporta sete
epístolas apostólicas, das quais uma é atribuída a Tiago, duas a Pedro, três a João e uma
a Judas. Diferentemente das mensagens paulinianas, êstes escritos são bem curtos e,
considerados em conjunto, ocupam menor espaço do que, por exemplo, as duas
epístolas aos coríntios, de Paulo. Seu conteúdo é, por outro lado, bastante homogêneo.
Compostas por um grupo de correligionários, não apresentam contradições
surpreendentes comà as que assinalamos nas epístolas de Paulo. Em conjunto,
representam uma tendência bem definida e distinta daquela das mensagens paulinianas.
Tal fato é reconhecido até mesmo por seus autores numa passagem do Nôvo
Testamento, em que se condenam abertamente outros escritos canônicos. Na segunda
Epístola de Pedro diz-se que «tôdas as cartas» do «irmão Paulo» contêm «pontos
difíceis de compreender, que as pessoas ignorantes e inconstantes torcem, como os das
escrituras, para sua própria perdição.» (Pedro, III, 15-17.) O autor desta epístola põe os
crentes em guarda contra o perigo de serem arrastados ao êrro pelos ímpios, e os exorta
a permanecerem firmes em sua fé. Êsse tom polêmico, brutal, contra uma parte tão
importante dos escritos do Novo
144
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
Necessário é dizer aqui que a Epístola aos Gálatas traça uma linha de demarcação
bastante nítida entre Paulo, a quem «o evangelho para os incircuncisos foi confiado» (II,
7), e Pedro, a quem a mesma missão foi destinada em relação aos circuncisos. Um
pouco mais abaixo, nos versículos 12-14, Pedro é acusado de «judaizar». Os evangelhos
sinóticos não se esquecem de descrever minuciosamente como Pedro, por três vêzes,
renegou Jesus. Isto não impede a Mateus de dizer a respeito dêsse apóstolo que êle é a
pedra sôbre a qual a Igreja será construída, e que o Cristo lhe dará as chaves do reino
dos céus. (Mateus, XVI, 18.)
Todos êsses fatos atestam a presença no No’vo Testamento de pelo menos duas
tendências claramente opostas. O principal ponto de divergência entre elas diz respeito à
sua respectiva atitude em face do judaísmo e dos judeus. A linha pró-judeu ou, melhor,
judaico-cristã das epístolas não paulinianas aparece em várias questões. Assim, o autor
da Epístola de Tiago se endereça sàmente «às doze tribos que andam dispersas» (1, 1),
portanto, micamente aos judeus estabelecidos fora da Palestina, e não a todos os
cristãos. A primeira Epístola de Pedro, do mesmo modo, é dirigida «àqueles que são
estrangeiros e dispersos no Ponto, na Galácia, na Capadócia, na Asia e na Bitínia, e que
são os eleitos segundo a pré-ciência de Deus, o Pai» (1, 1) isto é, apenas aos judeus da
Ásia Menor. As epístolas não paulinianas nunca se endereçam aos cristãos de origem
pagã. Há, portanto, motivos para se crer que seus autores, à semelhança do autor do
Apocalipse de João, não concebiam o cristianismo senão como um ramo do judaísmo.
Diferentemente das epístolas paulinianas, estas nunca atacam os judeus e o judaísmo.
145
AS COMUNIDADES CRISTÂ,s...
A espera da vinda do Cristo é expressa aqui com mais vigor do que nas epístolas
paulinianas, e de modo quase tão claro como no Apocalipse. A Epístola de Tiago diz:
«... a vinda do Senhor está próxima, ( . . . ) eis que o juiz está à porta.» (Tiago, V, 8.) E
as de João (1 João, II, 18) e de Judas (Judas, 1, 18) proclamam: «É já a última hora»,
«os últimos tempos». Tal é o motivo central que retorna sem cessar neste grupo de
epístolas. À semelhança das mensagens paulinianas, elas se interrogam sôbre o
retardamento da segunda vinda do Senhor, que deveria trazer aos fiéis a compensação
por seus sofrimentos. Àqueles que dizem: «Onde está a promessa de sua vinda? Porque
desde que os pais morreram tôdas as coisas permanecem como desde o princípio da
criação. . . » (II Pedro, III, 4), o autor não encontra outra coisa para responder, fraca
consolação, senão que «diante do Senhor, um dia é como mil anos», e que, se êle tarda,
é por que usa de paciência para dar ao gênero humano tempo para que chegue ao
arrependimento.
Protelava-se, dêsse modo, para uma data indeterminada, o cumprimento das promessas
escatológicas, às quais a massa cristã, composta de trabalhadores, ligava a esperança de
se livrar da miséria, e de ver os opressores punidos.
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
compara aos pecadores de Sodoma e de Gomorra. (Judas, 1, 8.) Assim, o ódio contra
Roma e contra os opressores é substituído pela pregação da submissão aos governantes
e da renúncia à luta, em nome da esperança ilusória da segunda vinda em uma data que
se perde no indeterminado. Êstes apelos de obediência e submissão às autoridades nos
dois grupos de epístolas do Nôvo Testamento revelam não apenas a acentuação da
tendência à conciliação com o poder imperial, mas, também, a persistência no seio do
cristianismo das tradições anti-romanas do Apocalipse.
É necessário dizer, contudo, que os autores dêste grupo de epístolas estabelecem ainda
certa diferença entre o reconhecimento do poder dos ricos e da escravidão, de um lado,
e sua atitude moral em relação à riqueza, do outro. A Epístola de Tiago consagra largo
trecho à condenação dos ricaços, nestes têrmos: «Agora é a vossa vez, oh, ricos! Chorai
e pranteal por causa das desgraças que vos hão de vir (...) Vosso ouro e vossa prata se
enferrujaram; e a sua ferrugem dará testemunho contra vós, e comerá vossa carne como
um fogo (...) Eis o salário dos trabalhadores que ceifaram vossos campos, que não foi
pago por vás; e os clamores dos que ceifaram entraram nos ouvidos do Senhor dos
exércitos.» (Tiago, V, 1-4.) Estas palavras atestam inequlvocamente que as
comunidades cristãs primitivas se compunham principalmente de pobres e de pessoas
que ganhavam o pão com o suor do seu rosto. Tiago considera-se no dever de prevenir
que não é necessário aceitar personalidades nas assembléias cristãs e distinguir um
homem «com anel de ouro e vestes magníficas», de um «pobre miseràvelmente
vestido», e lembra: «Não são os ricos que vos oprimem e vos arrastam diante dos
tribunais?» (Tiago, II, 2-6.) Não há dúvida de que a composição social das comunidades
cristãs primitivas, nas quais a Epístola de Tiago gozava de
As COMUNIDADES CRISTÃS..
147
Não se imagine, contudo, que, já durante a primeira metade do século II, a corrente pró-
judaísmo e a corrente pauliniana se apresentassem como absolutamente inconciliáveis.
Até mesmo os evangelhos canônicos, compostos mais tarde, procuravam de diversas
maneiras estabelecer um compromisso entre as duas tendências que, aliás, coincidiam
em muitos pontos. Ambas
A Dida quê, «doutrina dos doze apóstolos», monumento da literatura cristã primitiva,
que, durante muito tempo, se acreditou perdido, só foi descoberta em 1873, e não tardou
a ser publicada. Éste escrito foi composto muito antes da aparição dos evangelhos
canônicos. Êle remonta aproximadamente ao comêço do século II e tinha por fim
comunicar os dogmas da nova religião ãôs seus adeptos.
A Didaquê compõe-se de três partes, a primeira das quais (capítulos 1-VI) compara
«dois caminhos, o da vida com o da morte»; a segunda, (capítulos VII-X) descreve o
ritual e reproduz as orações; a terceira (capítulos XI-XVI) expõe os
148
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
sê dócil, paciente, benévolo, pacífico, caridoso. » (Dida quê, III, 6-8.) Ela roga aos
cristãos que «não virem as costas aos pobres», que ponham tudo em comum com seus
irmãos, sem nunca dizer «isto me pertence», que, estando encolerizados, não dêem
ordens aos seus escravos, os quais põem suas esperanças no mesmo Deus, «para que
êles não deixem de temer a Deus.» (Didaquê, IV, 8-9.) O Capítulo V da Didaquê, em
que se trata do «caminho da morte», adverte os crentes contra os ímpios, entre os quais
figuram aquêles que «dão as costas aos pobres, que procuram supliciar com o trabalho
aquêle que já foi supliciado, os que adulam os ricos e são juízes injustos para os
miseráveis. » (Dida quê, V, 2.)
Êstes ensinamentos mostram que a Dida quê se endereçava a representantes das classes
laboriosas no seio das quais a condenação dos ricos e predicação da virtude e do amor
do próximo não podiam deixar de ter uma grande ressonância. O que mais atraía as
pessoas dessas classes era a esperança de salvação e o reino de Deus em caso de
observância dos preceitos cristãos. Concebe-se que o ódio aos opressores e a idéia,
ainda que vaga, da comunidade de bens só poderia manifestar-se no seio das camadas
deserdadas da população. Porém, a comunidade de bens não era concebida como uma
abolição da propriedade privada: o autor da Dida quê se abstém de exigir, mas, também,
de aconselhar a libertação dos escravos cristãos, quando mais não fôsse, pelos senhores
que professavam a mesma fé. A libertação dos escravos era, contudo, a primeira
condição para se chegar à comunidade de bens. A Didaque se limita a convidar os
senhores de escravos a serem brandos com êles, e isso r’inicamente em atenção à
religião.
A segunda parte da Dida quê trata do sacramento do batismo, reproduz diversas
orações, notadamente aquelas que se pronunciam durante a eucaristia. No que concerne
ao batismo, encontra-se nela a mais antiga fórmula da literatura cristã, forma essa que
contém duas referências à Santíssima Trindade. Êste escrito dá muita atenção ao jejum
que deve ser seguido antes do batismo e, além disso, duas vêzes por semana, porém,
obrigatôriamente nos dias em que os «hipócritas», isto é, os judeus ortodoxos, não o
observam. Quanto às orações, os cristãos não
AS COMUNIDADES CRISTÃS...
149
devem mais rezar corno os «hipócritas» (Didaquê, VIII, 1.) A Dida quê apresenta uma
antiga variante da oração dominical, um pouco diferente da evangélica. Outras preces
reproduzidas neste escrito, e que devem ser pronunciadas antes e depois das refeições,
chamam Jesus de «Filho de Deus». (Didaquê, IX-13.)
Esta parte da Dida quê distingue-se por seus elementos relativamente elaborados, que
ela apresenta do ritual da nova religião, e dos quais não se descobre qualquer vestígio
nos escritos canônicos. E êsse ritual, coisa característica, se bem que constituído por
oposição ao do judaísmo, revela, contudo, numerosas coincidências com êle. O vinho,
por exemplo, chama- se na Didaquê «vinha sagrada de David». (Didaquê, IX, 2.) Este é
chamado de filho de Deus, como Jesus, e nenhuma diferença nela se estabelece entre
ambos. As orações reproduzidas neste escrito rogam a Deus que reúna os «eleitos»
dispersados nos quatro cantos do mundo, prece legítima na bôca de judeus da diáspora,
ansiosos de retornar à Palestina, mas inconcebível, por exemplo, nas mensagens de
Paulo, nas quais o caráter universal do cristianismo é sublinhado a cada passo. O que
caracteriza, antes de tudo, a Didaquê, é, pois, o fato de ser uma curiosa amálgama de
temas judaicos e de temas cristãos.
Sua terceira parte é menos específica, e tem, sobretudo, como tarefa prevenir os crentes
contra os «falsos profetas» e os «falsos apóstolos». Notemos, entre parênteses, que,
neste escrito, os apóstolos também não são os discípulos de Cristo dos evangelhos, mas
simples mensageiros das comunidades cristãs. Segundo a Didaquê, reconhecem-se os
«falsos pregadores» pelo fato de importunarem os crentes pedindo-lhes dinheiro, e por
procurarem ficar o maior tempo possível na mesma comunidade vivendo à custa dos
seus membros. Ela recomenda aos crentes que lhes dêem na hora da partida apenas pão,
e isso êinícamente «até à noite», isto é, o que seria necessário para subsistir até a
comunídade vizinha. Tudo parece indicar que entre êsses pregadores ambulantes
encontravam-se personagens semelhantes àqueles que Luciano descreveu em seus
cantos satíricos. No que concerne à permanência nas comunidades cristãs, a Didaquê
excetua apenas os artesãos itinerantes:
«se se tratar de um artesão, e se êle quiser viver em vossa casa, deixai-o trabalhar e
comer ( . . . ). Se êle não concordar, será um traidor de Cristo.» (Didaquê, XII, 3-5.)
O papel de dirigente nas comunidades cristãs descritas na Didaquê pertence aos profetas
inspirados, sujeitos ao carisma. O clero não existia. A ligação entre os agrupamentos
cristãos era efetuado pelos pregadores itinerantes, e é por isso que se tratava
cuidadosamente de os identificar. Os conselhos do autor
150
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
A Didaquê não condena nitidamente o judaísmo. Seu autor procura desligar-se dos
dogmas oficiais dessa religião, mas, ao fazer isso, não deixa de se considerar como um
representante da «verdadeira Israel». Nem mesmo supãe que o cristianismo venha a ser
uma religião universal. Segundo seu parecer, êle não é senão a «boa nova», destinada
sômente aos eleitos, O «caminho da vida» traçado na Didaquê lhe parece tão árduo, que
o autor se apressa em precisar que não é
AS COMUNIDADES CRISTÃS...
151
preciso segui-lo estritamente, mas, que se deve segui-lo apenas na medida do possível.
A descrição do «caminho da vida» na Dida quê revela certas afinidades entre êste
escrito e os manuscritos descobertos em Coumrã, com a seguinte diferença radical: os
essênios de Coumrã exigiam a observância rigorosa de suas Regras, enquanto que os
primeiros cristãos não viam em seus preceitos senão um ideal mais ou menos abstrato, o
que facilitava grandemente a conquista de novos prosélitos. A seita dos essênios nunca
esteve em condições de se tornar um movimento de massa.
A Dida quê nada diz sôbre a atitude dos cristãos em relação a Roma. Seu autor se limita
a proibir categàricamente qualquer manifestação de descontentamento contra as
autoridades. Sem nenhum sentimento de ódio contra o poder romano em particular,
condena em geral a menor oposição à política das classes dominantes. Neste escrito, os
apelos do cristianismo à luta foram substituídos pela pregação da resignação, da
submissão incondicional aos governantes. O conselho evangélico de apresentar a face
esquerda àquele que nos bate na direita já é enunciado na Diria quê, sem que, então, se
faça menção ao nome de Jesus.
Tudo isso nos autoriza a concluir que, apesar dos numerosos temas comuns à Diria quê
e aos dois grupos de epístolas do Nôvo Testamento, êste documento parece representar
uma terceira tendência do cristianismo primitivo. Veremos mais adiante que muitas das
coisas da Didaquê foram incluídas no cânone, na segunda metade do século II.
6. AS PRIMEIRAS HERESIAS
152
A ORIGEM DO CRISTIANGMO
conteúdo ideológico. Por ora, vamos nos limitar a breves indicações sôbre aquelas das
quais se conhece a existência durante a primeira metade do século II.
Apesar do elevadíssimo número de heresias no decorrer dêste período, podem elas ser
divididas em três grupos principais: heresias judaico-cristãs, montanistas e gnósticas.
Não há dados sôbre o primeiro grupo, até os meados do século II. Mas, acabamos de ver
que já no comêço dêste último, a luta no seio do cristianismo desenrolava-se sobretudo
em tôrno da atitude a tomar em relação ao judaísmo, questão que constitui,
prôpriamente falando, o fundo do paulinismo. Quando êste passou a ser a ideologia
oficial da Igreja, seus adversários, que permaneceram nas posições do Apocalipse de
João e, mesmo, na da Dida quê, viram-se enquadrados automàticamente entre as seitas
judaico-cristãs, das quais a principal era a dos ebionitas.
A julgar-se pelas declarações de Irineu (1, 23, 2), a doutrina desta seita renegava o
apóstolo Paulo, exigia a prática da circuncisão e a observância dos preceitos da lei
mosaica. Os ebionitas achavam que Jesus era um dos mais antigos profetas hebreus,
mas não o Messias. Tudo leva a crer que esta seita já existia nos começos do século II. Ë
até mesmo possível que, durante o período em que o cristianismo se desligava do
judaísmo, a massa fundamental das comunidades cristãs professasse crenças ebionitas
ou, pelo menos, judaico-cristãs.
A ideologia montanista não fazia outra coisa que não fôsse desenvolver o programa
social e político do Apocalipse de João. Em oposição ao dogma da Igreja, que protelava
sine die o esta-
As COMUNIDADES CRISTÃS..
153
Apocalipse. Foi assim que, nos meados do século II, a dogmática da Igreja começou a
se formar por via da «seleção natural»
É claro que o caminho pelo qual Justino chegou ao cristianismo não foi o da grande
massa dos adeptos da nova religião. Éstes eram atraídos não pelas profecias sôbre o
Messias, enunciadas no Velho Testamento, mas pela esperança da punição dos ricos e
da felicidade que aguardava os humildes no reino de Deus. Os pobres e os escravos
buscavam no cristianismo o reconhecimento de seus direitos humanos, uma igualdade
ainda que ilusória. Os sermões sôbre a redenção dos pecados dos homens, pelo martírio
do filho de Deus, tocava, por outro lado, a imaginação das massas. No que concerne a
Justino, foi a decepção pela filosofia antiga que o impeliu para o cris-
AS COMUNIDADES CRISTÃS... 155
tianismo, tal como aconteceu com outros representantes das classes possuidoras.
Os argumentos que Justino avança em favor da religião cristã são de uma incrível
pobreza. Não acha nada a censurar aos pitagóricos, por exemplo, a não ser a exigência
que faziam de se estudar Matemática, antes de se passar às meditações sôbre Deus. A
preferência de Justino pelos profetas traduzia apenas sua renúncia ao raciocínio lógico.
Êle não admitia a menor dúvida a respeito da realidade dos milagres realizados pelos
profetas do Antigo Testamento. Essas perorações de Justino dão a medida da profunda
degradação do pensamento filosófico no século II.
Nas suas Apologias, Justino diz que não se deve levar um cristão à barra dos tribunais
umicamente por êle ser cristão, que é preciso, para isso, que êle tenha violado as leis, e
êle explica, minuciosamente, em seguida, os dogmas da nova religião. Seu Diálogo
Com o Judeu Trilônio, outra obra dêste escritor que chegou até nós, descreve sua
conversão, fala da atitude dos cristãos em relação ao Nôvo Testamento, que é
apresentado como uma aliança provisória, referente a um ónico povo, enquanto que o
cristianismo é proclamado como uma nova aliança eterna, trazida para tôda a
humanidade. Esta obra de Justino tem por tema principal a interpretação das profecias
do Antigo Testamento, visando a demonstrar que Jesus Cristo foi efetivamente o
Messias anunciado. Na parte final do Diálogo, tenta provar que os cristãos são a «nova
Israel.»
das Oliveiras (Cap. 103), informações que não figuram nos textos canônicos.
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
meados do sécuio II; 2) os evangelistas não foram testemunhas das supostas atividades
de Jesus, mas o que escreveram está sômente baseado nas máximas que se lhe
atribuíam, e nas profecias correspondentes do Antigo Testamento. No que concerne às
primeiras, preferiam ignorar algumas delas por diversas razões: nos escritos de Justino e
nos manuscritos de Oxirincos encontram-se algumas das sentenças que não são citadas
em nenhuma parte dos evangélicos canônicos. As conclusões que acabamos de formular
são ainda reforçadas pelo fato de Justino ser o único dos escritores cristãos da
Antigüidade que empregou a expressão «recordação dos apóstolos» em lugar de
«evangelhos». Basta lembrar que uma das heresias mais importantes, o arianismo,
apareceu como conseqüência de uma disputa por causa de uma única letra do texto da
escritura, para se compreender que Justino não teria podido utilizar a palavra
«recordação», em lugar de «evangelho», por mera negligência.
Encontram-se nos escritos de Justino numerosos detalhes reproduzidos no relato
evangélico. Êle fala da fuga para o Egito (Diálogo, cap. 78), da matança dos inocentes
(Ibidem), dos magos (Ibidem, cap. 77), de Pôncio Pilatos (Apologia, 1, 13). Porém, sua
obra contém igualmente contradições com os evangelhos. Segundo êle, por exemplo,
Jesus nasceu numa caverna (Diálogo, cap. 78), e não numa mangedoura (Lucas, II, 7).
Nos sessenta capítulos do Diálogo consagrados a Jesus, justino não se refere jamais à
genealogia que remonta ao Rei David. Dissemos já que Taciano, discípulo dêste autor,
no seu Diatessarão, evangelho que êle compôs no final do século II, não quis introduzir
no seu texto a genealogia de Jesus que figurava nos Evangelhos Segundo Mateus e no
Evangelho Segundo Lacas. Temos aqui outro elo, e êste posterior a Justino, da criação
do mito de Jesus.
O conteúdo do Diálogo Com o Judeu Trifânio nos permite compreender melhor não
sàmente aquilo que se atribuía a Jesus durante o período de elaboração dos evangelhos,
mas, também, como o faziam. Desejoso de convencer seu interlocutor, de que Jesus era
o Messias anunciado pelos profetas, Justino cita numerosas passagens do Antigo
Testamento, interpretando-as de um modo que não poderia ser mais extravagante. Vê,
por exemplo, o símbolo da cruz na passagem em que está escrito que Moisés assistiu a
uma batalha com os braços estendidos horizontalmente, e foi precisamente esta
circunstência que, segundo êle, decidiu a vitória. Segundo Justino, o próprio nome de
Jesus seria simbólico (significa em hebréico «Deus Salvador»), e teria pertencido a um
judeu apenas, antes dêle:
Josué, filho de Num, chefe do povo de Israel depois da morte de Moisés. Considera êste
argumento tão decisivo, que não hesita em pôr as seguintes palavras na bôca de
Trifônio,
As COMUNIDADES CRISTÃS
157
que o ouve: «O nome de Josué dado ao filho de Num me dispõe a aceitar isso», isto é,
que Jesus era o Cristo, o Messias.
declara: «Deus engendrou a partir de si mesmo uma fôrça racional nomeada de diversas
maneiras: ora Filho, ora Anjo, ora Senhor, ora Verbo.» (Diálogo, cap. 61.) Afirma,
dêsse modo, a pré-existência de Jesus, vivendo antes da criação do mundo.
Justino parece, contudo, levado a um beco sem saída por esta pergunta repetida por
Trifônio: «Mas, se alguém quer
158
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
Jesus crucificado e reconhecer que êle é o Cristo enviado por Deus, será que tal
indivíduo também poderá ser salvo ?» Depois de muitas hesitações, Justino acaba por
dizer que essas pessoas podem ser salvas, com a condição de não exigirem a circuncisão
para os cristãos de origem pagã. Aqui, chegamos ao ponto mais vulnerável da
argumentação do apologista. Ao fazer essa pergunta, Trifônio tinha em vista os
ebionitas, uma das mais importantes seitas judaico-cristãs do período inicial do
cristianismo. Justino não se decide a condenar os ebionitas, porque, para sei
conseqüente, deveria negar também o Apocalipse. Porém, êle também não os podia
defender porque isso teria dado certa vantagem à corrente judaico-cristã, e teria trazido
um grande prejuízo para a propagação do cristianismo entre os pagãos. É precisamente
por isso que o compromisso por êle proposto foi estigmatizado ulteriormente pela
Igreja, como sendo uma heresia.
As declarações dos apologistas contra o judaísmo deviam levar inevitàvelmente à
elaboração e à consagração da dogmática cristã, dogmática cujos elementos já
apresentam contornos bem nítidos nas obras de Justino. Assinalamos já a importância
que êle atribuía ao sinal da cruz. Acrescentemos que êle. dava muita importância ao
sacramento da eucaristia, e via nêle o «sangue e o corpo» de Jesus. (Apologia, 1. 67.)
Faz alusão, também, ao batismo, que ainda chama de «ablução». (Apologia, 1, 61,
Diálogo, cap. 13.) Dando-se conta das afinidades entre certos ritos cristãos e os
mistérios da religião Mitra que êles imitam, Justino declara que aí se trata de «um ardil
do Malígno. . .» (Apologia, 1, 66.) Éle já nos dá um esbôço do credo cristão: «Éle
nasceu da Virgem, recebeu o nome de Jesus, foi crucificado e, ressuscitando depois de
sua morte, subiu ao céu.» (Apologia, 1, 52.) Menciona a Santíssima Trindade. (Ibidem,
13.) Da ressurreição da carne, fala com certa dúvida: «Nutrimos a esperança de ver
reaparecer nossos corpos transformados em pó, julgando que não há nada impossível
para Deus.» Éste homem, que se julgava filósofo, permitia-se admitir semelhante coisa,
contrária ao bom senso e à evidência, invocando a onipotência de Deus. Um dos antigos
críticos da nova religião notou, com muito espírito, a êsse respeito: «O Altíssimo não
pode fazer com que dois mais dois sejam cinco, ao invés de quatro! »
159
não nos devemos espantar com o nascimento das heresias no decorrer dêsse processo. E
Justino não se limita apenas a enumerar as heresias em suas obras. Mostra-se
francamente hostil em relação a elas. Além dos ebionitas, dos quais não refere o nome
aliás, Justino faz constantes alusões aos marciofitas, aos valentinianos, aos saturnilianos
etc. (Diálogos, 35, Apologia, 1, 25, 38.) Confessa que muitos cristãos seguem o
heresiarca Márcio.
Os temas escatológicos ocupam grande espaço nos escritos de Justino. Fala muitas
vêzes do «último dia», crê na Jerusalém celeste, à semelhança do autor do Apocalipse, e
convida os cristãos, de conformidade com as esperas quiliásticas, a se prepararem para o
reino milenar de Deus, escrevendo no Diálogo: «Com outros cristãos lúcidos, sei que os
cadáveres ressuscitarão, e que o milênio terá lugar na Jerusalém que se edificará
gloriosa e bela.» Ële nota, contudo, que o quiliasma não é professado por todos os
cristãos. Contendo muitas das idéias próprias do cristianismo original, esta crença foi
condenada posteriormente pela Igreja.
Justino foi o primeiro a falar dos dois adventos do Senhor, um já ocorrido, em que o
Cristo desempenha o papel de um. mártir impotente, conspurcado, crucificado, e o
outro, que é esperado, quando Jesus descerá do céu, fulgurante de glória. (Diálogo,
110.) O apologista foi levado a expressar-se dêsse modo pelo desejo de conciliar as
afirmações contraditórias dos profetas do Antigo Testamento, que descreviam o futuro
Messias, ora como vencedor, ora como vítima.
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
), saberão que com êle estarão no reino do céu, e beneficiar-se-ão de uma herança eterna
e imperecível. » (Diálogo, cap. 139.) Assim, no que concerne à escravidão, êste
apologista, que desempenhou um papel tão importante durante o período de constitução
do cristianismo, professa, desde o comêço, o ponto de vista que vai triunfar em seguida
no seio da Igreja. Em lugar da liberdade e da igualdade na Terra, promete aos escravos a
beatitude no outro mundo...
A obra de Justino marca uma nova fase no desenvolvimento da ideologia cristã. Nos
meados do século II, o cristianismo já aparece como uma religião completamente
separada do judaísmo, possuindo seus dogmas, seu próprio ritual e sua organização, se
bem que esta última ainda esteja longe do grau de centralização que ela irá adquirir
posteriormente. Os escritos de Justino são de grande importância, e esclarecem as fontes
do mito evangélico de Jesus. Sob êste aspecto, eles precedem imediatamente os
evangelhos canônicos.
•terrestre do Cristo, fundada nas profecias do Antigo Testamento, foi, enfim, teminada
nos evangelhos. Nesse momento, começam a se formar os dogmas e o ritual cristãos
(Dida quê), a escatologia cristã se elabora, transferindo para o outro mundo e para um
futuro indeterminado a punição dos ímpios e a recompensa dos justos. Tal evolução de
um dos temas principais do cristianismo primitivo embotava sua acuidade política, e foi
a premissa ideológica que facilitou em seguida a acomo. dação da Igreja, com o poder
imperial.
As COMUNIDADES CRISTÃS...
161
Êste lapso de tempo se caracteriza pela ausência da igreja, competindo o papel dirigente
nas comunidades cristãs aos profetas iluminados. (Dzaa quê e primeiras epístolas de
Paulo.) O aparecimento dos bispos e a constituição da futura hierarquia clerical
começam sõmente nos meados do século II. Não se constatam ainda, então, ligações
sistemáticas e organizadas entre as diversas comunidades, cujos contatos são
assegurados apenas pelas viagens ocasionais dos pregadores errantes. Era isso muito
natural, por causa da luta encarniçada que existia entre as várias seitas da nova religião.
As bases do futuro cânone só puderam ser lançadas, e a Igreja só pôde se constituir ao
cabo de um longo período de conflitos e disputas exacerbadas.
Que foi que favoreceu a difusão do cristianismo durante êste período? As causas disso
diferem muito das que asseguram o triunfo do nôvo culto nos começos do século IV. O
cristianismo do tempo de Constantino, com sua organização clerical e seus dogmas
fixados no Nôvo Testamento, distinguia-se muito daquele que aparece nas fontes
citadas anteriormente. As causas do compromisso entre a Igreja e o Império Romano no
século IV nada têm a ver com as causas que permitiram aõ cristianismo conquistar os
espíritos durante os primeiros séculos da nossa era.
A principal razão do êxito do cristianismo durante sua fase tnicial foi a seguinte: as
idéias por êle proclamadas correspondiam ao máximo ao estado de espírito das massas
na época da desa
162
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
O êxito obtido pelo cristianismo entre as massas foi determinado pela solução, se bem
que ilusória, que êle indicava às massas submetidas a sofrimentos sem nome. Nas
condições concretas dos séculos 1 e II, enquanto não existia solução real para a situação
calamitosa da população, a exaltante promessa do reino de Deus não podia deixar de
encontrar um eco profundo. Quanto mais piorava o estado das camadas laboriosas, mais
os apelos escatológicos do cristianismo se impunham às multidões.
A nova religião não reivindicava a libertação dos escravos, mas êstes sentiam-se iguais
aos homens livres nas comunidades cristãs. Apesar do caráter legendário das listas de
bispos romanos, não é por acaso que os primeiros tinham nomes de escravos. Isto quer
dizer que os fiéis desta condição podiam ascender nas comunidades cristãs a postos
inacessíveis para êles em outro meio. Não se pode duvidar de que esta igualdade entre
crentes exercia também uma grande atração sôbre as massas laboriosas.
Outra razão do êxito da nova religião consistia no fato de que ela não se endereçava a
tal ou qual grupo étnico, mas a
AS COMUNIDADES CRISTÃS...
163
A partir dos meados do século II e durante alguns decênios sàmente, a Igreja episcopal
se fortaleceu, os evangelhos foram compostos, o cânone do Nôvo Testamento estava a
ponto de ser constituído. E isso no decorrer de uma das mais ásperas lutas, não apenas
contra outras religiões, mas, também, contra diversas tendências cristãs. Nesta época, o
mito de Jesus de Nazaré, o Homem-Deus, assumiu sua forma definitiva. Exposta nos
evangelhos, canonizada pela Igreja, esta lenda não iria mais sofrer qualquer
modificação. A coincidência de tôdas essas circunstâncias autoriza a dizer que foi
durante êste período, relativamente breve, que o cristianismo se cristalizou, tanto do
ponto de vista ideológico, como quanto às suas formas de organização.
O rápido desenvolvimento da religião cristã nesta época foi determinado por uma série
de razões, das quais uma das principais foi o agravamento das contradições inerentes ao
Império Romano, um sensível enfraquecimento do poder imperial. No comêço de nossa
era, Roma não tinha sofrido, durante século e meio, qualquer invasão estrangeira que
oferecesse algum perigo. As campanhas levadas a cabo pelo Império não foram tão
exaustivas quanto as operações militares sob a República. Alguns movimentos de
libertação nacional, tais como a Guerra dos judeus, por exemplo, desenrolaram-se nas
regiões fronteiriças, mas foram fàcilmente dominadas pelas legiões romanas. Os
conflitos entre pretendentes ao título de Imperador eram raros; o único verdadeiramente
importante foi a guerra civil do ano 68 a 69. Ésses choques, sem o concurso das massas,
terminavam depois de uma ou duas batalhas. A Pax Romana, proclamada pelo poder
imperial, assegurou, assim, uma longa trégua às classes possuidoras do Império.
165
166
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
vez que os combates cessaram quase que totalmente nas fronteiras do Império,
exceptuadas as campanhas de Trajano contra os dácios no comêço do século II, os
povos vizinhos tiravam igualmente partido dessa situação, desenvolviam suas fôrças
produtivas, formavam federações. Durante um século, a relação das fôrças entre o
Império Romano e os países vizinhos se modificou inegàvelmente em detrimento do
primeiro.
Foi sob o reinado dêste imperador que as guerras contra outros povos coincidem, pela
primeira vez, com o aparecimento dos movimentos de libertação. No ano de 172,
explodiu no Egito a revolta dos bucoles. Destruindo total e râpidamente tôda uma legião
romana, êles puseram em perigo Alexandria,
capital egípcia. Avidius Cassius, um dos maiores generais romanos da época, só os pôde
conter com duros esforços. Quase na mesma época desta insurreição, outra estalou no
norte da África, na Mauritânia. Os rebeldes conseguiram ocupar quase todo o território
de sua província e, atravessando o estreito de Gibraltar, devastaram várias regiões da
Espanha. No ano de 175, teve lugar a rebelião dirigida por aquêle mesmo Cassius que,
nesse meio tempo, concebera o plano de se fazer proclamar imperador. O Govêrno
Romano só conseguiu esmagar esta revolta depois de uma luta encarniçada.
Os elementos das camadas possuidoras, das quais uma parte, abalada pela crise, aderira
à nova fé, começam então a desempenhar um papel cada vez mais importante nas
comunidades cristãs
que não cessam de aumentar. É das suas fileiras precisamente que saíam os bispos e
outras personagens do clero em via de formação. A constituição do episcopado acelerou
a aproximação entre a Igreja e o poder. De sorte que tôda uma série de circunstâncias
agiam, tanto de um lado como do outro, em favor da aliança entre o cristianismo, e o
Império.
168
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
nos meados do século II, menos de cem anos tinham decorrido désde o aparecimento do
cristianismo primitivo anunciandø a queda próxima da «grande prostituída, Babilônia».
A popularidade da nova religião, sobretudo entre os oprimidos e os deserdados,
tornavam-na também muito suspeita aos olhos dos nobres. Durante seu período inicial,
o cristianismo tinha dado maior relêvo às promessas messiânicas e escatológicas, e seu
programa social era nitidamente oposto ao regime.
Além disso, apesar do rápido crescimento do seu número, seus fiéis eram ainda
numèricamente inferiores aos adoradores de outros cultos, do mitraísmo por exemplo.
o Império «pagão», suas descrições das brutais perseguições de que teriam sido vítimas
os cristãos durante o século II são muito exageradas, e as fontes de que se dispõe não as
confirmam. E certo que em algumas cidades deram-se choques entre as autoridades
romanas e os comunidades cristãs. Um conflito dêsse gênero ocorreu sob Marco
Aurélio, em 177, em Lugdunum (nome latino de Lyon) e foi descrito por Eusébio. (Ob.
cit., V-1.) Porém, o clima geral era antes de tolerância diante tanto do cristianismo,
como de tôdas as outras religiões. Não foi por acaso que, às vésperas do século III, o
apologista Tertuliano qualificou Marco Aurélio de «defensor dos cristãos».
(Apologétka, V.)
Apresentaremos mais adiante uma série de outros testemunhos sôbre o fato de que as
comunidades cristãs eram legais em muitas das cidades do Império Romano.
2. O JESUS EVAGLICO
Durante a primeira metade do século II, verifica-se uma excessiva pobreza de fontes
cristãs e um silêncio quase total dos escritores greco-romanos sôbre a nova religião,
porém esta situação se modifica nos começos da segunda metade dêsse século. Os
principais documentos relativos à história do cristianismo, que datam dêsses períodos,
são: 1) os livros menos antigõs dc Nôvo Testamento (os evangelhos e os Atos dos
Apóstolos); 2) as obras de Irineu e de Hermas; 3) os escritos de autores não cristãos
(Celso e Luciano). Com tal abundância de fontes, podemos apreender não sômente a
tendência fundamental da evolução do cristianismo, mas ainda a luta, em seu seio, das
O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO a
169
170
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
171
Assinalemos, por outro lado, que Friedrich Engeis, em tôdas as suas obras sôbre o
cristianismo primitivo, nunca propôs a questão da existência histórica de Jesus. A.
Robertson, citado acima, admite, por seu lado, o caráter histórico do fundador do
cristianismo, o que não o impede de procurar resolver o problema da origem desta
religião, partindo de posições marxistas.
172
A ORIGEM DO CEISTIANISMO
Antes de tudo, esta argumentação peca pelo seu método de pesquisa, radicalmente falso.
Os partidários da historicidade de Jesus esforçaram-se para depurar os escritos cristãos
de que dispomos de suas contradições mais evidentes e, tendo executado essa tarefa
mais ou menos bem, pretendem, depois disso, que aquilo que sobrou é uma fonte digna
de confiança. Procedendo dêsse modo pode-se «demonstrar», e até mesmo com mais
êxito, que personagens da mitologia grega tais como Hércules e Teseu, ou Rômulo,
fundador lendário de Roma, e outras figuras também «históricas», existiram realmente.
Aliás, no mundo antigo, acreditava-se nessas personagens tão firmemente quanto os
meios cristãos dos nossos dias acreditam na realidade de Jesus Cristo.
As alusões a Jesus nas mais antigas fontes do cristianismo e os detalhes que foram
acrescentando no decorrer dos anos à sua «biografia» não podem ser explicados pela
sua existência
3 S. LUBLINSKI: Die Entsiehung des Chyistentums aus dee Antiken Kultur, Jena,
191O pág. 3.
A relativa abundância de informações sôbre Jesus em uma só e mesma fonte não pode
também servir de prova de sua existência histórica, pois esta fonte mesma torna-se
pouco segura, porquanto o saeculi silentium, o mutismo dos contemporâneos, dos
autores judeus e greco-romanos do século 1 sôbre Jesus, constitui uma argumento muito
forte contra a tese da sua historicidade.
Tôdas essas razões autorizam a negar aos evangelhos canônicos a qualidade de fontes
válidas para a «biografia» de Jesus. Isto não significa que neguemos seu valor para o
estudo da
174
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
ideologia cristã a partir da segunda metade do século II, e, notadamente, para o estudo
da história da constituição definitiva do mito de Jesus. Dito de outro modo: os
evangelhos não fornecem qualquer argumento válido em apoio da tese sôbre a
divinização do Jesus-Homem; fornecem, ao contrário, grande número de argumentos a
favor da transformação do Jesus-Deus, em homem. Comparando-se os sinóticos, com as
passagens correspondentes dos mais antigos escritos cristãos, evidencia-se a última fase
da gênese do mito em questão, que é um extravagante emaranhado de elementos
messiânicos judaicos, e de empréstimos de diversos cultos orientais de deuses mortos e
ressuscitados. Diferentemente dos primeiros escritos cristãos, os evangelhos nos
permitem seguir o processo de elaboração do ritual cristão.
Os dados sôbre a «vida» de Jesus, comunicados pelos evangelhos, podem ser divididos
em três grupos. Ao primeiro, pertencem as citações das palavras dos profetas do Antigo
Testamento, que são apresentadas à guisa de «argumentos». Ao segundo, as descrições
dos milagres e, particularmente, das curas efetuadas pelo Cristo, «dados» êstes que têm
lugar de destaque nos evangelhos. Ao terceiro, enfim, os episódios de sua morte, e da
sua ressurreição. Para penetrar no laboratório dos mitos cristãos, procuremos, antes de
tudo, analisár o primeiro e o terceiro grupo dessas «informações», tais como as
encontramos, por exemplo, no Evangelho Segundo Mateus, que é o de maior autoridade
para a Igreja.
A inconsistência total dessa genealogia é evidente. Mesmo omitindo-se o fato de que ela
contradiz aquela, não menos gratuita, dada por Lucas, ela não se mantém de pé, do
ponto de vista da lógica mais elementar. Não se poderia dizer, por outro lado, que ela
atesta a descendência de Jesus em linha reta de David, uma vez que é José, espôso de
Maria, que tinha por ancestral o Rei David, enquanto que, segundo Mateus, Jesus
nasceu não de José, mas graças à intervenção do Espírito Santo. O autor dêste
evangelho não foi capaz, simplesmente, de fazer remontar a genealogia do Cristo por
linha masculina até David e, ao mesmo tempo, atribuir-lhe uma origem divina,
«imaculada». O primeiro capítulo de Mateus representa, portanto, uma tentativa de
conciliar duas versões inconciliáveis da origem de Cristo: a do Antigo Testamento,
segundo à qual seria êle uma descendente do Rei David, e a versão pagã, que afirmava a
natureza divina do deus morto e ressuscitado.
o Messias: «Mas, antes que o menino saiba rejeitar o mal, e escolher o bem, o país do
qual tu temes os dois reis será abandonado.» (Isaias, VII, 16.) Isaías não atribui nada de
sobrenatural ao seu nascimento, êle prediz que a criança verá a luz em uma época que
precede de sete séculos a data dos evangelhos e diz, aliás, que o hão de chamar de
Emanuel. Para eliminar esta contradição, Mateus pretende que um anjo visto em sonho
por José lhe ordenou que desse ao menino o nome de Jesus, que quer dizer em hebreu
«Deus Salvador».,
Portanto, nada neste capítulo pode servir para confirmar a historicidade de Jesus. Ao
contrário, sua genealogia, a concepção imaculada, a citação de Isafas, o anjo que
apareceu a José, demonstram que Mateus procurou, bastante desajeitadamente aliás,
juntar as profecias sôbre o Messias, e os elementos dos cultos orientais, o que nos
permite discernir fàcilmente as partes constitutivas do mito de Jesus.
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
Rei Herodes; seu nascimento foi anunciado pelo aparecimento de uma estrêla, e magos
do Oriente vieram adorá-la; tendo sabido disto, o Rei Herodes ordenou a matança de
tôdas as crianças de menos de dois anos, em Belém; José, avisado por um anjo, fugiu
secretamente com sua família para o Egito, onde ficou até a morte de Herodes, depois
retornou a Israel e se fixou em Nazaré.
Vemos, pois, que as informações sôbre a vida terrestre de Jesus foram inventadas pelos
autores dos sinóticos, com o objetivo de confirmar as profecias do Antigo Testamento.
É característico que cada um dêsses «acontecimentos» é seguido da frase: «Tudo isso
acontece a fim de que se cumpra o que
o Senhor tinha anunciado pelo profeta.» Êste «a fim de», que é omitido na tradução
sinodal russa, mostra claramente que a biografia de Jesus nos evangelhos foi construída
a golpes de profecias a fim de evitar possíveis objeções da parte dos adeptos do
judaísmo.
hebreus, à atividade do seu lendário legislador para, dêsse modo, acentuar o papel
messiânico de Jesus.
O modo pelo qual os autores dos evangelhos falam de Nazaré não é menos
característico. Seu nome não figura no Antigo Testamento. Os autores judeus do século
1 também nada dizem sôbre ela, se bem que êles se façam notar (particularmente Flávio
Josefo) pela amplitude de suas informações sôbre o pequeno país que era a Judéia.
Ouve-se falar de Nazaré, pela primeira vez, nas fontes que datam do século III. Ora, nos
evangelhos, Nazaré é chamada de «cidade». (Mateus, II, 33; Lucas, 1, 26; II, 39, etc.)
Não parece, portanto, que Nazaré tenha sido uma cidadezinha perdida que pudesse ser
ignorada por todos os historiadores da Judéia.
Porém, por que se encontra êsse nome tantas vêzes nos evangelhos? Para explicar isso,
convém lembrar que no Livro dos Juízes, no Antigo Testamento, fala-se, por duas
vêzes, que Sansão será o «nazareno de Deus». A raiz dessa palavra em hebráico, nazir,
significa um justo cuidadoso na observância estrita de certos ritos. Os autores dos
evangelhos não conheciam a Judéia senão pelos textos do Antigo Testamento e
achando, visivelmente, que «nazareno» significava originário de Nazaré, deram êsse
nome ao lugar do nascimento do Cristo, sem sequer suspeitar que semelhante localidade
ou vila não existia na Judéia.
As observações relativas aos dois primeiros capítulos do Evangelho Segundo Mateus
permitem enunciar já várias conclusões bastante importantes. Se bem que o Evangelho
Segundo Mateus contenha quase todos os elementos essenciais do mito de Jesus
Homem-Deus, êste mito ainda não encontrou nêle sua última expressão. Êle continuou a
evoluir, enriquecendo-se com pormenores ausentes neste evangelho, que é mais curto
do que os outros.
Os sinóticos descrevem, no início, Jesus como sendo um homem que tem o dom da
profecia e da cura, e atribuem-lhe, assim, sômente as qualidades que, segundo as
crenças dos judeus, eram comuns a todos os profetas. A única diferença é que em Jesus
êsse dom era muito mais poderoso que nos profetas precedentes, João Batista inclusive.
Só algum tempo depois, tal como Mateus apresenta a coisa (XVI, 16), é que os
discípulos de Jesus, impressionados pelos milagres do seu mestre, decidiram que êle
não era um simples profeta, mas o «Cristo, o Filho de Deus vivo», conclusão emitida
nesse evangelho pelo apóstolo Pedro. Nos capítulos seguintes, Jesus é quase sempre
chamado de Filho de Deus, e Mateus dá menos relêvo aos milagres operados por êle, do
que aos elementos da religião cristã que a separam do judaísmo, tais como as predições
de Jesus sôbre o martírio
êle dirigia estas palavras: «Mulher, que tenho eu contigo?» (II, 4), e diz de si mesmo
que êle é «o pão que desceu do céu (VI, 41), e que êle não é «dêste mundo». (João, VIII,
23.) Aos judeus que não crêem nêle, êle lança: «Tendes o diabo por pai» (VIII, 44), e
acentua: «Eu e o Pai somos um.» (João X, 30.)
No Evangelho Segundo João, o que o autor faz Jesus dizer é menos significativo, talvez,
do que aquilo que êle omite. Os autores dos outros evangelhos, ao descreverem sua
crucificação, atribuem-lhe a conhecida exclamação: «Meu Deus, meu Deus, por que me
abandonaste?» (Mateus, XXVII, 46; Marcos, XV, 34.) Porém, João achou impossível
ou inoportuno citar essas palavras. Lucas também. 1 claro que essas palavras atribuídas
a Jesus nos dois primeiros evangelhos canônicos, assim como sua omissão nos dois
últimos não provam absolutamente a hístoricidade de Jesus. Essas diferenças entre os
evangelhos mostram sômente que seus autores, ao criarem o mito do Cristo, obedeciam,
cada um por si, aos imperativos da propaganda.
Assim, o quarto evangelho distingue-se dos três anteriores, em primeiro lugar, pelo fato
de acentuar de tôdas as maneiras possíveis o caráter divino de Jesus. Sob êste aspecto,
êle está muito mais próximo do autor do Apocalipse, do que dos três outros
evangelistas.
Significará isto que o Evangelho Segundo João foi composto muito antes dos sinóticos?
Não. Porque muitas coisas neste texto contradizem semelhante suposição. O Evangelho
Segundo João proclama, logo nas primeiras linhas: «No comêço era o Verbo, e o Verbo
estava com Deus, e o Verbo era Deus. » Esta frase só se torna compreensível se se
subentende que o Verbo era filho de Deus, isto é, Jesus. Êste é justamente o pensamento
de João. Segundo sua opinião, Jesus não é uma criatura humana, e êle acentua por tôda
parte seus traços divinos. Segundo a doutrina dos gnósticos, que muito influiu na
formação da ideologia cristã, o intermediário entre os homens e Deus, e defensor dêles
diante de Deus é precisamente o Logos, isto é, o Verbo. Tudo leva a crer que a imagem
de Jesus no quarto evangelho não foi tirada do Apocalipse, onde o Cordeiro é sobretudo
o chefe dos exércitos celestes, mas, antes, que sofreu a influência do gnosticismo. Além
disso, o conteúdo dêsse escrito lembra melhor os sermões dos teólogos, do que as
parábolas edificantes dos sinóticos e as visões fantásticas do Apocalipse.
meira vez nos escritos de Papias, apologista cristão da primeira metade do século II.
Eusébio assinala na obra citada (III, 39) que Papías criticava os escritos de Marcos e,
em parte, os de Mateus. Trata-se, evidentemente, dos seus evangelhos. Porém, êsse
mesmo Papias não diz qualquer palavra a respeito do Evangelho Segundo João: sem
dúvida, porque êle ainda não existia no seu tempo.
Os escritos não canônico também são muito importantes para a restauração da gênese
do mito de Jesus. O protoevangelho de Tiago, que chegou até nós integralmente, e em
diversas redações, descreve a infância e a juventude de Maria, até o nascimento de
Jesus. Muitos elementos do culto da Virgem baseam-se neste escrito, se bem que êle
não tenha sido incluído no cânone. O Evangelho de Pedro afirma, contràriarnente aos
sinóticos, que Jesus, na cruz, não sentia qualquer dor. Outros evangelhos, os dos judeus,
os dos ebionitas etc., vêem em Jesus não um Homem-Deus, mas o maior dos profetas.
Disso se conclui, portanto, que o mito evangélico assumia as mais diversas formas,
segundo as circunstâncias. O Jesus do quarto evangelho canônico difere do Jesus dos
sinóticos, e nestes últimos percebe-se muito bem, tanto os traços judaicos, corno os não
judaicos do Cristo. E mesmo no aspecto judaico do mito pode-se distinguir, de um lado,
a tendência a considerá-lo como um profeta, e, de outro, como o Messias.
Por conseguinte, o relato evangélico da vida de Jesus não pode ser considerado como
um relato histórico. Sua ausência nos primeiros documentos cristãos se explica
iinicamente pelo fato de que êle só foi composto nos meados do século II. Adotando os
quatro evangelhos e rejeitando, ao mesmo tempo, grande número de outros escritos
cristãos análogos, a Igreja canonizou a imagem de Jesus e tôdas as contradições dos
evangelhos. Pràticarnente, isso fêz parar a evolução ulterior dos mitos do cristianismo,
pelo menos no que concerne ao seu lendário fundador.
Pode-se elucidar, assim mesmo, a maneira pela qual se constituiu o mito evangélico? Se
o Cristo era um Deus que se transformou em homem, qual seria a origem dos
pormenores pseudo-reais atribuídos à sua pessoa, e por que foi necessário inventá-los?
Êste problema é muito importante, mas a ciência histórica não está ainda em condição
de dar a êsse tema uma resposta categórica e tão exata corno aquela referente à data dos
primeiros monumentos cristãos. É preciso dizer, contudo, que o enigma da gênese do
mito de Jesus torna-se cada vez mais claro.
Passando ao exame das fontes do mito evangélico, recordemos que já falamos daqueles
antecedentes possíveis, entre os quais o do «Mestre de Justiça» citado nos manuscritos
descobertos em Coumrã e que se pretendia igualmente ter ressuscitado. Contudo, os
acontecimentos descritos nesses documentos remontam, segundo a opinião geral, à
primeira metade do século 1 antes da nossa era, isto é, todo um século antes do período
durante o qual Jesus Cristo teria vivido, segundo os evangelhos. A êsse respeito, é útil
lembrar que segundo o testemunho, muito posterior, é verdade, do Talmud, Jesus
BenStada ou Ben-Pandira, com o qual se identifica habitualmente
J. Robertson, historiador inglês dos começos dêste século, chamou a atenção para as
palavras seguintes dirigidas, segundo o Evangelho de Marcos, pelo apóstolo João, a
Jesus: «Mestre, vimos um homem que em teu nome expulsava demônios; e nós lh’o
proibimos porque não nos segue.» (Marcos, IX, 38.) Esta passagem atesta
evidentemente que houve um culto não cristão de Jesus.
Deve-se ainda a Robertson outra observação dêsse gênero. O relato nos sinóticos de
certos episódios que . precedem a prisão de Jesus só se torna lógico se os considerarmos
como cenas de um drama ritual. Assim, no Evangelho Segundo Marcos (XIV, versículo
32 e seguinte), apresenta-se Jesus aproximando-se três vêzes, para despertar três
discípulos adormecidos:
Pedro, Tiago e João. Tudo se passa. sem testemunhas, mas Marcos descreve êsse
episódio de maneira pormenorizada. Como cena de um mistério, isso é aceitável, mas,
na qualidade de fato real, não tem sentido. Outro pormenor: o traidor Judas Iscariote
recebe trinta dinheiros para entregar Jesus, mas Jesus não andava escondido, êle pregava
abertamente em Jerusalém. Aceitável como processo dramático, mas absurdo, como
fato. O relato evangélico nos transporta em seguida para a assembléia noturna do
Sanhedrin judaico, onde Jesus é interrogado, interrogatório êsse que, sàmente no
Evangelho Segundo Lucas,
tem lugar durante o dia, portanto, de modo mais verossímil. A representação ritual
exigia a continuidade da ação. Mas, tal relato de acontecimentos, desde que se queria
fazer passar por um relatório exato, parece muito forçado.
sempre contrapôs as palavras de Jesus: «Meu reino não é déste mundo» (João, XVIII,
36), e a promessa da felicidade eterna nos céus, para ‘que os deserdados suportassem
pacienternente as terríveis condições de sua vida neste mundo.
A predicação evangélica foi durante muito tempo considerada •por milhões de fiéis
como o ápice da moral humana. Em palavras tais como «Venham a mim, todos os que
estão cansados e oprimidos, e eu- lhes darei repouso» (Mateus, XI, 28) e «Muitos dos
primeiros serão os últimos, e muitos dos últimos serão os primeiros» (Idem, XIX, 30),
as massas popu‘lares buscavam a consolação para a sua miséria e seus sofrimentos,
esperando que o advento do reino de Deus não tardaria a pôr um fim à injustiça, à
exploração e às dôres da humanidade. Aos olhos do povo trabalhador, que tinha sofrido
tantos revezes na luta contra os opressores, o cristianismo original se apresentava como
um ideal distante, uma época em que todos os cristãos eram justos, amavam-se como
irmãos, abandonavam seus bens, e até mesmo suas famílias, atraídos pelos discursos do
carpinteiro de Nazaré.
Quanto mais a exploração das massas se intensificava por parte dos feudais e do clero,
quanto mais os costumes dos representantes da Igreja suscitavam a indignação geral,
mais os crentes sonhavam com a restauração da ordem evangélica sôbre a Terra. Na
Europa, durante todo um milênio, e até mais — e isso não é um curto período na
História — os
184 A ORIGEM DO CRISTIANISMO
Como explicar a atração exercida pelos evangelhos sôbre as massas de crentes durante
tantos séculos? Ela tem múltiplas causas. Uma delas reside no fato de os evangelhos
representarem uma seleção longa e paciente de textos sagrados, por parte de centenas de
pregadores. Atribuíram a Jesus as pará- bolas e as máximas que encontravam maior
ressonancla nos ouvintes O estilo lacônico, colorido, freqüentemente rico de imagens
dos aforismos evangélicos aumentava seu poder sôbre os crentes.
Em segundo lugar, os pregadores da nova religião, durante sua fase inicial, dirigiam-se
quase que exclusivamente aos deserdados e aos oprimidos, «aos humildes dêste
mundo», Os ataques dos evangelhos contra os ricos e os aristocratas continuaram,
mesmo posteriormente, a exercer uma poderosa influência sôbre os trabalhadores. O
cristianismo soube explorar esta circunstância no decorrer dos séculos seguintes.
Em terceiro lugar, a Igreja, tanto antes, como depois do seu acesso ao poder, não
pretendia mesmo aplicar seus próprios ensinamentos, vendo nêles apenas regras de
conduta puramente teóricas, abstratas. Os costumes do clero, sobretudo do alto clero,
não se distinguiam muito dos costumes dos fariseus estigmatizados nos evangelhos.
Ëste afastamento cada vez maior, entre a prática, e o ideal evangélico, suscitava a
indignação da massa dos fiéis, e fazia com que êstes almejassem cada vez mais
apaixonadamente o retôrno à pureza dos tempos evangélicos.
Em quarto lugar, os evangelhos, diferentemente dos outros escritos cristãos, dão maior
relêvo à felicidade no céu. A negação da ordem antiga era o traço característico do
cristianismõ primitivo, produto da desagregação do regime escravagista. Esta tendência
é desenvolvida nos evangelhos até a condenação ao apêgo aos bens terrestres em geral.
Encontra-se aí a raiz do seu desprêzo pelas riquezas, do saber e, até mesmo, da família.
A estática espera do reino de Deus implicava Rgicamente a renúncia às coisas dêste
mundo. Êste estado de espírito e estas aspirações se impuseram durante séculos a todos
aquêles que não podiam se resignar com a injustiça na Terra.
A popularidade dos evangelhos foi ainda devida, e em grande escala, ao fato de êles
constituírem um compromisso entre as diversas tendências existentes no seio do
cristianismo.
Não é por acaso que a predicação de Jesus no Evangelho Segundo Marcos começa
assim: «O tempo está cumprido, e o
186
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
A doutrina cristã do «reino de Deus» adquire nos evangelhos sua forma definitiva. Em
relação ao messianismo do Antigo Testamento, êles apresentam a seguinte novidade: o
advento dêsse reino está ligado à destruição de Jerusalém e
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
acrescentada pelos autores dos evangelhos por causa mesmo do seu não cumprimento, e
é por isso que êles proclamam que ela é devida sem dúvida à Jesus, personagem
histórica.
À primeira vista, o argumento parece convincente. Não sendo os autores dos evangelhos
muito escrupulosos, como já o demonstramos, é claro que não teriam hesitado em
suprimir de seus escritos uma profecia que não se tinha realizado, se razões mais
poderosas não lhes tivessem paralisado a mão. Alguns historiadores contemporâneos, A.
Robertson inclusive, acham que a única explicação para a conservação desta profecia
nos evangelhos é a piedosa fidelidade dos autores dêstes às próprias palavras de Jesus.
Assim fazendo, os historiadores em questão tomam suas próprias conclusões por
premissas, esquecendo que é preciso ainda demonstrá-las.
Em realidade, os autores dos evangelhos, repetindo essa profecia várias vêzes, poderiam
ter tido outros motivos, não menos importantes para êles. Lembremos que a insistência
sôbre o próximo advento do Cristo caracterizava a predicação cristã nos seus começos.
A atribuição de uma profecia dêsse gênero a Jesus devia, além disso, acentuar-lhe a
santidade, estimulando assim a fé dos fiéis. A predicação ficou no ar, mas isso de modo
algum inquietou os autores dos evangelhos, para os quais esta circunstância era, ao
contrário, a garantia de que se cumpriria um dia que não tardaria muito. Vemos, pois,
que as tendências escatológicas dos evangelhos canônicos não podem ser ligadas à
questão da existência real do Cristo.
«Acautelai-vos, para que ninguém vos engane. Porque muitos virão em meu nome. . . »
(Mateus, XXIV, 4.) Nos Atos dos Apóstolos, sua resposta a êsse respeito é formal:
«Não vos é dado conhecer os tempos ou os momentos que o Pai fixou por sua própria
autoridade.» Assim, se as epístolas paulinianas limitam-se já a descrever sômente os
sinais do advento do Senhor, os evangelhos transformam a questão da sua data, tão
apaixonante para os crentes, num verdadeiro tabu. Interessada em manter os temas
escatológicos da pregação cristã, a Igreja tratou, ao mesmo tempo, de dissimular a
contradição entre as profecias, e a realidade.
gelhos, o advento do reino dos céus em parte alguma está associado à punição dos
exploradores e dos opressores; apenas os ímpios é que devem ser punidos. Não se
encontra nos sinóticos a mínima alusão a castigos reservados aos detentores do poder. O
ódio contra a «grande prostituída, Babilônia» cede o lugar à pacífica divisa: «dai a
César o que é de César.» Enquanto o Apocalipse está marcado, do comêço ao fim, pelo
desejo de vingança, os evangelhos, ao contrário, preconizam: «Se alguém te bate na face
direita, oferece-lhe também a outra.» (Mateus, V, 39.) Os apelos à luta contra o mal,
endereçados aos primeiros cristãos, são substituídos nos evangelhos pela propaganda da
não resistência, e do perdão. Fazem tábula rasa da oposição ativa aos opressores, que se
manifestava no messianismo cristão dos primeiros tempos. A doutrina do advento do
reino dos céus absolutamente não era perigosa para as classes dominantes do Império
Romano. A pregação escatológica na época do estabelecimento do cânone evangélico,
ao contrário, revigorava o regime escravagista, porque ela entorpecia as massas
populares, desviava-as dos combates, disseminando a esperança da felicidade no
paraíso.
A atitude dos evangelhos em relação ao judaísmo é dupla; apresenta os vestígios de um
compromisso, e reveste-se, às vêzes, de um caráter bem contraditório. Esta questão, que
embaraçava muito os ideólogos do cristianismo original, era ainda complicada para os
autores dos evangelhos. A inclusão nos seus textos de tôda sorte de pormenores
«biográficos» sôbre o suposto fundador do cristianismo, que eram emprestados dos
profetas do Velho Testamento, obrigava os evangelistas a inventar outros episódios
mais sôbre a infância de Jesus na Palestina, transformada em teatro do mito. Mas, na
época em que os evangelhos foram compostos, o cristianismo já havia passado por uma
longa evolução, e é claro que a nova religião não poderia continuar a progredir, se não
rompesse definitivamente com o judaísmo: nenhuma religião universal poder-se-ia
fundar sôbre o dogma do Antigo Testamento, segundo o qual os antigos hebreus seriam
o povo eleito. Justino, o leitor o sabe, já declarava que o número de cristãos de origem
pagã ultrapassava de muito os fiéis de origem judia. Não há dúvida de que, depois de
Justino, essa relação se modificou ainda mais a favor dos primeiros.
Como na questão do momento do advento do reino dos céus, os autores dos evangelhos
professam pontos de vista diferentes sôbre o judaísmo. A mais conciliadora atitude a
seu respeito é a de Mateus, enquanto que Lucas e João mostram-se muito hostis contra
êle; não se pode, contudo, deixar de notar que êles têm hesitações, e se contradizem
nesse assunto.
190
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
A questão da pregação do cristianismo entre os pagãos é o tema central dos Atos dos
Apóstolos. Os capítulos X e XIII não falam senão nisso; o décimo descreve com grande
luxo de pormenores como Pedro se decidiu a converter ao cristianismo o centurião
Cornélio, depois de ter tido uma visão, e o décimo terceiro mostra Paulo dedicando-se
ao apostolado entre os pagãos em conseqüência ünicamente da oposição dos judeus de
Pamfilia.
Lembremos ainda uma circunstância que, até hoje, recebeu pouca atenção, da parte dos
historiadores. Nos evangelhos, a responsabilidade pela crucificação de Jesus é atribuída
muito mais aos hebreus, do que a Pôncio Pilatos, Governador Romano, que, segundo a
lenda, sancionou a execução do Cristo. Esta fora de dúvida, contudo, que a introdução
de Pilatos no relato devia refletir o ódio das massas populares contra a dominação de
Roma. Porém, mesmo no Evangelho Segundo Mateus, o acontecimento é apresentado
de modo a limpar Pilatos, na medida do possível. Êle se impressiona com o silêncio de
Jesus (XVII, 14), chama-o de «justo», opõe-se, a princípio, à sua execução, e, cedendo
finalmente à insistência do povo, lava as mãos. A mulher de Pilatos roga-lhe que poupe
Jesus. Esta maneira de expor o mito revela o desejo de torná-lo aceitável aos olhos das
autoridades romanas. E muito significativo, contudo, que Marcos (XV, 1-13), o mais
antigo dos evangelistas, seja muito menos favorável a Pilatos: êste não aplica a Jesus o
epiteto de «justo», nem lava as mãos sim-
O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADÉ DO SÉCULO II 191
bolicamente etc. No Evangelho Segundo Lucas, ao contrário, êle exprime por três vêzes
o desejo de libertar Jesus e, no Evangelho Segundo João, sua resposabilidade é atenuada
ainda mais. Estas diferenças caracterizam bem o caminho seguido pelos autores dêsses
escritos: quanto mais a tendência para a conciliação com o poder romano se acentuava
no seio do cristianismo, mais os evangelistas, ao descrever os romanos, apagavam os
aspectos sombrios.
sua atitude diante do poder romano. Nada de hesitações sôbre êste ponto, em nenhum
dêles. Lucas defende Jesus contra a acusação de incitar o povo a não pagar o tributo a
César (XXII, 2 e 14). Os evangelhos não se queixam em parte alguma das autoridades
romanas. Mesmo no quadro que hosquejam sôbre as perseguições que esperam os
crentes, êles se esquivam de dizer que elas emanarão do poder secular. Ao declarar que
«aquêles que se servirem da espada, perecerão pela espada», os evangelhos condenam
qualquer recurso às armas, mesmo para a defesa do cristianismo, posição
dilametralmente oposta às opiniões do autor do Apocalipse, e que era, visivelmente, o
apoio máximo que a religião cristã podia oferecer aos imperadores romanos naquela
época.
Já falamos da atitude dos evangelhos em relação à riqueza. E útil acrescentar a isso que,
paralelamente à simpatia pelos deserdados e oprimidos, os evangelistas limitam-se
apenas a estigmatizar as atividades mais repugnantes dos negociantes e dos usurários,
contra as quais numerosos escritores antigos não deixaram de protestar, atacando de
preferência os recebedores de impostos.
192
A ORIGEM DO CRISTIANISMO /
25.) A expulsão dos vendilhões do templo (Mateus, XXI, 12) simboliza o protesto
contra a intrusão no seu recinto nos negócios terrestres, e não contra a pilhagem
praticada pelos vendilhões. Não é por acaso que, nesse episódio, os compradores são
estigmatizados da mesma maneira que os vendedores e cambistas.
A única coisa que os evangelhos pedem constantemente aos ricos é que dêem
generosamente esmolas ao pobres, o que correspondia aos interêsses da Igreja; a
beneficência, notadamente quando praticada por intermédio do clero, fortalecia o poder
do episcopado. Notemos que êsses reiterados apelos dos evangelhos nesse sentido
mostram por êles só que, durante a segunda metade do séculõ II, o cristianismo já tinha
adeptos entre os ricos. O episódio com Ananias e Safira nos Atos dos Apóstolos (V, 1-
10) é significativo. Tendo vendido um campo, Ananias depositou aos pés dos apóstolos
parte da soma recebida. Por ter retido a outra, êle e sua mulher foram punidos. com a
morte. Segundo os Atos, Ananias foi punido por ter ocultado aos apóstolos o preço do
campo vendido. Ora, segundo a opinião de alguns historiadores do cristianismo, êste
episódio provaria que não havia propriedade privada nas comunidades cristãs
primitivas, cujo modo de vida teria sido socialista ou comunista. Afirmam que Jesus foi
o primeiro socialista e que as comunidades cristãs primitivas exigiam dos seus fiéis a
renúncia à propriedade privada. Porém, nós já mostramos que o «socialismo»
evangélico significava apenas, no melhor dos casos, o desprêzo das riquezas, e a
condenação da cupidez. E, mesmo a êste respeito, as informações são vagas. Portanto,
só resta como certo os apelos dos evangelhos à caridade.
«E ninguém dizia que coisa alguma do que possuia era sua própria; mas tôdas as coisas
lhes eram comuns», afirmação que é desenvolvida assim no capítulo II, versículo 44 dos
Atos: «E todos os que criam estavam juntos, e tinham tudo em comum. Vendiam suas
propriedades e fazendas, e repartiam com todos, segundo as necessidades de cada um.»
Notemos a propósito destas passagens, primeiro, que a situação que elas descrevem não
é confirmada pelas outras fontes cristãs; segundo, que a comunidade de Jerusalém a que
elas se referem não existiu, como já o mostramos; terceiro, que os Atos falam da
comunidade dos bens em ligação com a punição de Ananias e de Safira, visando
evidentemente a justificá-la do ponto de vista moral. Se as comunidades cristãs
primitivas tivessem verdadeiramente renunciado à propriedade privada, as fontes
antigas o assinalariam obrigatàriamente, e, com maior razão, os críticos antigos do
cristianismo.
O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SICULO II 193
Assim, o programa político e social dos evangelhos se faz notar antes de tudo por sua
dualidade. Na época em que êles apareceram, o cristianismo ainda era a religião dos
«abatidos e oprimidos», aos quais ela dirigia, em primeiro lugar, a sua predicação,
prometendo a essas camadas sociais a única coisa possível, a guisa de consolação: uma
lugar no reino dos céus. Mas, ao mesmo tempo, o cristianismo renunciava já à luta
contra o poder de Roma, ao espírito de vingança contra os opressores, proclamava que a
não resistência era o único meio capaz de aniquilar o mal. Sua maneira de considerar a
riqueza muda também: em lugar de a condenar categàricamente, pede aos fiéis que
façam esmolas para assegurarem, a preço módico, a própria entrada no paraíso.
Foi êsse o resultado das modificações na estrutura social das comunidades cristãs em
que, ao lado dos pobres, elementos das classes possuidoras começaram a aderir.
Lembremos que os evangelhos ainda ignoram os bispos, os diáconos etc. Isso dava um
tom democrático às primeiras comunidades cristãs.
4. A IGREJA EPISCOPAL
A Igreja é um fato histórico tal como o Estado, a ordem feudal e o próprio cristianismo.
A premissa primordial de sua constituição foi a união das comunidades cristãs
dispersas.
194
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
Enquanto estas seguiam cada uma seu próprio caminho, enquanto não havia um clero
destacando-se da massa dos fiéis, e a luta interna das seitas se desenrolava livremente,
não se sentia a necessidade de existir um órgão autoritário, centralizado, capaz de impor
por decreto os princípios da fé, e de empregar contra os dissidentes todo um aparato
hierárquico. O processo que levou ao aparecimento da Igreja foi paralelo ao
estabelecimento da dogmática cristã e à constituição do clero.
Esta tendência a exaltar o episcopado, no mais alto grau possível, aparece notadamente
na História Eclesiástica de Eusébio, que considera como bispos os chefes das
comunidades cristãs de Roma, de Corinto e de Alexandria, ünicamente por causa de
suas funções nessas comunidades. Lendo-se esta obra tem-se a impressão que Eusébio a
escreveu, sobretudo, para demonstrar a santidade dos livros canônicos, e para
estabelecer a sucessão cronológica dos bispos nas grandes cidades do Império Romano.
Ële dá muita atenção à data do govêrno de cada bispo, descreve a sucessão dêles em
tôda uma série de capítulos (III, 2, 4, 11, 13, 15 etc.), começando sempre pelos
apóstolos da Lenda. Tudo isso se deve naturalmente às «pesquisas» ulteriores dos
apologistas cristãos, que não dispunham de outras fontes além das epístolas, onde tais
ou quais persosonagens são niencionados. Assim Irineu, e depois Eusébio, põem em
suas listas, na qualidade de primeiro bispo de Roma depois de Pedro, certo Lin, cujo
nome figura na segunda Epístola a Timóteo (IV, 21). É significativo que até mesmo
Eusébio evita chamar de bispos aos primeiros dentre êles, entre os quais Apiano de
Alexandria, por exemplo, fato êsse digno de nota porquanto os antigos documentos
cristãos, em parte alguma, falam de bispos: no comêço, a julgar-se por uma
O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II
195
série de escritos um pouco posteriores, a autoridade déles, nas comunidades, era inferior
à de outras personagens.
A palavra «bispo», assim como muitas outras que figuram no Nôvo Testamento, não
era, nessa época, espec’ifican-iente cristã. Ela se compõe, em grego, da preposição epi
(sôbre) e e da raiz do verbo scopeo (olhar), significando em latim inspector, vigilante
(surveillant). Os escritores da Antigüidade empregavam freqüentemente êste têrmo em
sentido não religioso, e êle se encontra igualmente na tradução grega do Velho
Testamento, que foi terminada muito antes da nossa era.
a partir dos meados do século II, isto é, depois da composição dos primeiros
documentos da literatura cristã primitiva.
196
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
Acabamos de ver que os livros do Nôvo Testamento nada dizem a respeito dos bispos,
ou quase nada, com exceção das epístolas pastorais. Ë significativo que a palavra grega
episcopoí seja traduzida corretamente nas edições sinodais russas da Bíblia: vigilantes e
não bispos. (Atos dos Apóstolos, XX, 28.) O Nôvo Testamento parece ignorar quase
que totalmente os bispos, mas os escritos não-canônicos, que remontam certamente ao
século II, falam muito dêles, notadamente. as epístolas de S. Clemente Romano, aos
Coríntios. A primeira delas, que a Igreja pretende tenha sido composta no final do
século 1, é de data muito posterior; foi escrita, sem dúvida alguma, depois das epístolas
paulinianas já analisadas anteriormente. O motivo que impeliu Clemente enviar essa
epístola é muito interessante. Segundo êle, na comunidade de Corinto, «pessoas
desonestas levantaram-se contra pessoas honradas, homens ignóbeis, contra homens
gloriosos, tolos, contra inteligentes.» (Cap. III.) Ëles privaram o bispo de seu título, e
Clemente vê aí um grave pecado, incompatível com a moral cristã. Êle chama a atenção,
sobretudo, para o papel primordial do bispo na comunidade e, para provar que êste não
pode ser deposto por rebeldes, declara que, tanto os bispos, corno os diáconos, são
ordenados pelos apóstolos em pessoa.
A julgar por esta epístola não canônica, no comêço do século II, a comunidade cristã de
Corinto foi o palco de um processo muito importante para o desenvolvimento ulterior
do cristianismo. As epístolas canônicas aos Coríntios mostram que a direção desta
comunidade achava-se nas mãos dos fiéis «tocados pela graça» (apóstolos, profetas,
doutores), estando os negócios práticos e administrativos confiados aos anciãos.
Porém, pouco a pouco, a direção passou às mãos dos bispos e dos seus auxiliares, os
diáconos, encarregados a princípio,
Uma das causas da influência crescente dos bispos e dos diáconos consistia em que
pertenciam às camadas ricas da população; êles deviam, em primeiro lugar, ser
responsáveis pelos valores materiais que lhes eram confiados, e, em segundo lugar,
dispor de tempo necessário para o exercício de suas funções. As condições de vida dos
escravos e dos cristãos pobres não lhes permitiam pretender semelhantes postos nas
comunidades.
Postas essas premissas, prescreve-se aos fiéis que nada empreendam sem o
consentimento do bispo ou dos anciãos. (Magnesianos, 7.) Inácio ataca violentamente
«os que reconhecem a autoridade do bispo em palavras, mas fazem tudo sem êle.»
(Ibidem, 4.) E êle considera-se no dever de repetir várias vêzes que os crentes que
desobedecem ao bispo colocam-se fora da Igreja. (Tralianos, 3 e 7.) Sua afirmação:
«Aquêle que não se encontra no interior do altar se priva do pão de Deus» (Efésio, 5),
tese diametralmente oposta ao espírito das primeiras epístolas paulinianas por exemplo,
torna-se, no final do século II, a pedra angular da dogmática cristã e do comportamento
da Igreja.
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
É necessário dizer que tal desvio da igualdade dos crentes dos primeiros tempos não
podia deixar de suscitar a resistência dos crentes. Encontram-se vestígios dêsse
descontentamento nas comunidades de Corinto e da Ásia Menor. Os apelos à unidade,
endereçados aos crentes, testemunham que aquela oposição era muito séria. Mas, o
triunfo na luta entre as tendências cristãs estava reservado ao clero pela fôrça das coisas.
O combate em tôrno dos direitos dos bispos e do papel do clero nascente revestia as
mais diversas formas, e não se limitava apenas à questão da competência dos bispos.
Essp luta encontrou uma expressão pouco particular num escrito cristão apócrifo: o
Pastor de Hermas, cujo conteúdo é consagrado principalmente ao problema da Igreja.
Hermas conta que teve a visão de uma mulher idosa que lhe mostrava uma alta tôrre em
vias de construção, em cuja base viam-se pedras brilhantes e quadradas. Os construtores
escolhiam outras pedras que também eram utiilzadas, e afastavam aquelas que não
queriam, seja por causa de sua forma, seja porque elas estavam fendidas. A aparição
explicou-lhe que a tôrre simbolizava a Igreja, as pedras polidas da base eram os
apóstolos, os bispos e os diáconos. O resto do material representava a massa dos
crentes, que deviam ainda vir a ser virtuosos, como o cristianismo o exige, para se
tornarem dignos de fazer parte do edifício da Igreja. A aparição acrescentou que,
quando a tôrre estivesse acabada, já seria muito tarde, e que as pessoas que se tivessem
revelado inúteis não poderiam mais esperar a salvação.
O Pastor proclama, dêsse modo, a tese das epístolas de Clemente e de Inácio, segundo a
qual só a Igreja representa o cristianismo, sendo o clero a sua base, enquanto que os
outros crentes apenas condicionalmente fazem parte dela.
A crescente influência dos bispos e a ampliação de suas funções aumentava o seu papel
nas comunidades. Os cargos que
Tendo os bispos à sua disposição somas muito elevadas, parece que isso engendrou
abusos da parte dêles: os autores das epístolas pastorais lembram sem cessar que os
bispos e os diáconos devem se distinguir pelo seu desinterêsse pelo dinheiro. (1
Timo’teo, III, 3 e 8; Tito, 1, 7 etc.) Os apelos reiterados que se lhes dirige, exortando-os
a não se darem ao vinho, a evitarem os gestos violentos, a serem castos, bosquejam um
quadro bem eloqüente dos costumes pouco virtuosos do clero.
A principal função dos bispos era, contudo, a luta contra as heresias. Já as epístolas
pastorais, assim como as mensagens não canônicas de Inácio, deixam de recomendar a
pregação entre os adeptos de outros cultos, e insistem sôbre a necessidade de evitar «as
disputas de palavras, que só servem para arruinar a fé dos que as ouvem.» (II Timóteo,
II, 14.) Os discursos que se endereçam aos heréticos são qualificados no versículo 16 de
«vãos e profanos». Assim, o principal meio de ação dos bispos sôbre suas ovelhas não é
mais a pregação, são as medidas repressivas e a beneficência. É significativo que não se
pensava mais em exigir dos pretendentes ao título de bispo o dom da eloqüência
sagrada, a aptidão para desfazer as dúvidas dos crentes, o conhecimento das santas
escrituras etc.
Uma vez que estamos tratando da constituição do episcopado monárquico, será útil
determo-nos um pouco mais longa. mente no exame do desenvolvimento da
comunidade cristã de Roma, primeiramente porque possuímos. sôbre ela mais infor
200
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
Porém, essas linhas do Evangelho Segundo Mateus são posteriores, sem dúvida, à
redação primitiva. Os evangelistas, em geral, evitam empregar a palavra «Igreja». Salta
aos olhos, por outro lado, que a anunciação do fim do mundo num futuro próximo
contradiz o projeto de edificação de uma Igreja universaL Além disso, a passagem
citada não figura nos outros evangelhos.
A comunidade cristã de Roma não se formou, visivelmente, senão no século II, fato êsse
que é confirmado pela própria arqueologia cristã. Os vestígios mais antigos de cristãos
em Roma remontam apenas aos meados do século 1, e isso, é atestado pelos
documentos literários da Antigüidade. A lista de bispos romanos remontando a Pedro,
apresentada, p.ela primeira vez, por Irineu, só é verídica a partir da segunda metade do
século II.
Os chefes da comunidade cristã de Roma não tinham pretendido, até essa época,
qualquer prerrogativa especial em relação aos bispos de outras cidades. Tertuliano e
Orígenes levantaram-se enèrgicamente contra a idéia de que a Igreja teria sido fundada
sàmente por Pedro, e não por todos os apóstolos. Quando, no ano de 178, o bispo
romano Eleutério considerou-se no dever de estigmatizar as seitas montanistas, as
comunidades da Gália acharam possível dirigir-se a êle para pedir que renunciasse aos
seus ataques. Vitor, seu sucessor, excomungou as comunidades da Ásia Menor por
celebrarem a páscoa na mesma época que os judeus, mas quando Irineu reclamou uma
solução conciliatória, êle vciltou atrás na sua decisão. Tertuliano perguntou-lhe
irônicamente se convinha admitir que êle estava se preparando, «julgando-se pontifex
maximus, bispo dos bispos, para dar ordens a êstes.»
Tudo isso prova que os bispos romanos começaram a tatear o terreno visando a
submeter ao seu poder as outras comunidades cristãs, sàmente a partir da segunda
metade do século II, isto é, depois da constituição do episcopado monárquico. Porém,
detiveram-se ante a oposição despertada nessas comunidades, e se viram, mais de uma
vez, obrigados a bater em retirada. Só conseguiram se impor às comunidades orientais
do Império ao cabo de um século, no final do século III, e, definitivamente, no comêço
do século IV. Mas, o estudo dêste problema ultrapassa os planos da presente obra, de
modo que nos devemos limitar a assinalar o papel ativo dos bispos romanos daquele
período, no que concerne ao estabelecimento do cânone da Igreja. Os mais antigos
catálogos de escritos canônicos provêm da comunidade de Roma, precisamente das que
se encontravam diretameite sob sua influência. Os bispos romanos mantiveram também
uma luta particularmente tenaz contra os montaistas e os gnósticos.
202
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
da luta do clero contra o prestígio dos profetas «inspirados», alguns traços da vida das
comunidades cristãs primitivas, ligados pela tradição ao nome dos apóstolos, não
deixaram de ser honrados mesmo durante a segunda metade do século II.
Lembremos, aqui, que, tal como a palavra «bispo», a palavra «apóstolo» não era, no
comêço, especificamente cristã, nem mesmo religiosa, pois apenas significava
«mensageiro» em grego, nada mais. Os judeus chamavam dêsse modo aos emissários
religiosos palestinos encarregados, por exemplo, de recolher as contribuições dos
crentes nas comunidades da diáspora. Os primeiros cristãos empregaram êsse têrmo
aproximadamente no mesmo sentido. Foi só depois da aparição do mito de Jesus que se
deu o nome de apóstolos aôs discípulos do Cristo. Que os apóstolos não passam de
figuras simbólicas, o pormenor seguinte o confirma: nos Atos está dito (1, 15-28) que,
quando Jesus foi crucificado, seus discípulos decidiram que, tendo Judas traído, faltava
ainda um apóstolo para continuar sendo doze; ora, doze era visivelmente um número
mágico tal como o das «doze tribos de Israel».
A partir da segunda metade do século II, o cristianismo já possuia uma vasta literatura,
nascida nas diversas comunidades, e cujo grau de autoridade aos olhos dos crentes
dependia das circunstâncias. Êsses escritos expunham os dogmas cristãos, cada um a
seu modo. Já vimos que mesmo uma questão tão fundamental como a da existência
terrestre de Jesus é inter-
o CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO StCULO II 203
A fixação do cânone cristão assumia tal— importância aos olhos da Igreja, que Eusébio,
autor da primeira história eclesiástica, considerou-se no dever de a consagrar
principalmente ao exame daquela questão. Não se limitou a enumerar os livros
reconhecidos como canônicos, assinalou também a existência de divergências quanto à
inclusão no cânone das epís tolas de Tiago, de judas e das últimas epístolas de Pedro e
de João, divergências do mesmo caráter que as suscitadas pelo Apocalipse. No que
concerne aos evangelhos não canônicos, Eusébio nota que «suas idéias e as teses que
êles expõem afastam-se muito da verdadeira fé, não passando, sem dúvida alguma, de
invenções dos heréticos.»
Esta situação só muda a partir da segunda metade do século II, pois dispomos então de
testemunhos sôbre o cristianismo primitivo tão preciosos como as obras de Luciano, e,
sobretudo, a de Celso. Nem o primeiro, nem o segundo tinham razões para serem mais
hostis a esta religião do que a qualquer outro culto oriental, o que nos garante, de certo
modo, o caráter mais ou menos objetivo de suas informações.
Êle conta as aventuras de Peregrinus que, convertido ao cristianismo, passa por cima
dos padres e dos doutores cristãos, assume a direção dêles, torna-se profeta, chefe da
comunidade, e «faz tudo sôzinho, interpretando os escritos cristãos, explicando-os e
compondo outros por conta própria.» Encarcerado por ser cristão, viu-se,
repentinamente, objeto dos cuidados de todos os adeptos de Cristo. «Desde o
amanhecer, via-se em roda da prisão uma multidão de velhas, de viúvas, de órfãos. Os
chefes da seita depois de terem subornado o carcereiro passavam a noite junto dêle. Não
se poderia imaginar maior dedicação em semelhante ocorrência; para dizer tudo em
poucas palavras, nada era difícil para êles.» Emissários das cidades
O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II 205
da Ásia Menor vieram à Síria para intervir junto às autoridades, em favor do pobre
Peregrinus! Luciano nota mais adiante que os cristãos nutriam a esperança de serem
recompensados no reino dos céus, «desprezam também todos os bens, e os põem em
comum. De sorte que, se surgir entre êles um impostor, um velhaco sagaz, não terá êle
de dispender grandes esforços para se enriquecer muito depressa, rindo-se a socapa da
simplicidade dêles.»
Peregrinus não interpreta apenas as escrituras, êle também compõe por «conta própria».
Quem sabe se algumas das suas obras não deslizaram para o cânone! Luciano ainda
ignora os bispos e os diáconos. As comunidades cristãs que êle descreve são dirigidas
por profetas e anciãos, tal como aquelas a que se referem as primeiras epístolas
paulinianas, mas, segundo êle, elas já mantêm relações bastante estreitas, umas com as
outras.
A se julgar por êsse relato, assim como por outras fontes, s perseguições contra os
cristãos muito raramente tinham um caráter maciço. Encarcerado por ter aderido ao
cristianismo, Peregrinus é assistido, dia e noite, pelos chefes cristãos que trazem sempre
fartas refeições. Finalmente, o Governador da Síria o deixa «partir em paz, achando que
êle não é digno nem mesmo de ser punido. »
Assinalemos ainda que Luciano insiste sôbre o desprêzo dos adeptos do Cristo pelos
bens dêste mundo, constatação tomada ao vivo sem dúvida alguma, e essa atitude cristã
se explica pela espera extática do advento do reino de Deus.
As superstições cristãs não foram submetidas, nas obras de Luciano e de Celso, a uma
crítica sistemática. Orígenes acusou este último de seguir a doutrina epicurista, mas sem
qualquer fundamento: Celso, que gosta muito de citar os filósofos gregos, nunca se
refere, contudo, a Epicuro, e ataca o cristianismo apenas do ponto de vista do idealismo
antigo. Apesar disso, soube apreender os mais vulneráveis aspectos da ideologia cristã,
e suas observações foram utilizadas pelos críticos ulteriores do cristianismo, os
enciclopedistas franceses inclusive.
206
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
No seu Discurso Verdadeiro, mostra-se bastante indignado pelo fato de que certos
cristãos «se recusam a explicar ou a deixar que se lhes explique sua fé, repetindo frases
tais como «não pergunta, crê», «a fé te salvará» (1, 9). Segundo êle, os cristãos buscam
difundir sua religião sômente entre os ignorantes e os tolos absolutamente estranhos à
filosofia, entre os escravos, -as mulheres, as crianças. Vê o autor na inclinação do povo
por tôda espécie de fábulas, a causa principal do êxito do cristianismo.
Tudo isso correspondia à situação nos meios cristãos do século II. Convém lembrar,
contudo, que Celso não podia compreender que a oposição dci cristianismo aos outros
cultos e sua pregação aos humildes não era a fraqueza, mas o ponto forte do
cristianismo. Êle também se engana ao compará-lo com os outros cultos, com o
judaísmo, por exemplo, que êle considerava igualmente como sendo uma superstição,
mas cujos adeptos eram a seus olhos mais dignos de estima: «observando os ritos ( . . . )
dos seus ancestrais, êles se comportam como todos os homens.» (Discurso Verdadeiro,
V. 25.) Outra coisa que não lhe agradava nos cristãos era o apêlo que faziam aos
homens de tôdas as nações.
Religioso êle próprio e acreditando nos mitos gregos, Celso admitia a existência de
Jesus. Achava, apenas, que êle não era Filho de Deus como o afirmavam os cristãos,
mas um simples mistificador. Espantava-se da puerilidade daqueles que consideravam o
Cristo como uma divindade sem razões suficientemente válidas. A admissão por Celso
da fé religiosa como tal nada tem de estranho uma vez que êle venerava os
Celso revela-se bastante versado tanto na literatura judia como na cristã; conhecia não
sômente os livros sagrados dessas religiões, mas também os escritos de diversas seitas
cristãs. Era tão erudito nesse domínio que até o próprio Orígenes, um dos mais
importantes Padres da Igreja do século III, se vê enrodilhado em dificuldades por êle.
Celso estudou, em particular, as atividades dos profetas, não sàmente nos livros, mas
também observando-os êle mesmo. Nota, indignado, que «muitos indivíduos obscuros,
nos templos e nas ruas,- e até mendigos errando de cidade em cidade, de campo em
campo, tomam fàcilmente, na época, a pôse de profetas.» Grande número dêles,
desmascarados pelo autor, confessaram que inventavam por conta própria seus
discursos incoerentes.
Êsses personagens são, com efeito, figuras bem típicas do cristianismo original, assim
como de outras religiões da época. Êles são freqüentemente mencionados nas epístolas
paulinianas em que se expõem as regras de conduta dos profetas, em que se formulam
os deveres das comunidades para com êles, e a maneira de distinguir, entre êles, os
«falsos», dos «verdadeiros». Luciano também se refere a êles com muitos pormenores, e
não há dúvida de que os traços que lhes atribui foram colhidos o vivo.
Os escritos cristãos dos primeiros tempos não eram muito mais verídicos do que as
profecias- orais. Celso nota, indignado, que «alguns fiéis (...) num estado semelhante à
embriaguez retocavam por três, quatro vêzes e ainda mais o texto original dos
evangelhos para terem a possibilidade de subtraí-los às acusações.» Isso se aplica
também aos evangelhos canônicos que estão repletos de contradições, apesar dos
numerosos retoques. Celso diz também que os cristãos introduziam «blasfêmias» nos
livros sibilinos (coletânea de profecias).
Dá, por outro lado, muita atenção à luta entre as diversas tendências cristãs e diz de seus
adeptos: «No comêço eram pouco numerosós e professavam a mesma crença, mas, ao
se multiplicarem, dividiram-se, querendo cada um ter sua fração.» E mais adiante: «Éles
[os cristãos] só têm de comum o nome. É a única coisa que não gostam de rejeitar;
quanto ao resto, diferem em tudo.» Segundo a opinião de Celso, a nova religião
distinguia-se não sômente pelo grande número de suas seitas, mas também pelo
combate sem tréguas que elas mantinham umas contra as outras. Enumerando as seitas
cristãs, êle cita os sibiinos, os simonianos, os marcelinos, os carpocratiaflos, os adeptos
de Salomé, de Mariana, de Marta, de Márcio, e muitos çIutros. Descrevendo as relações
entre as seitas, Celso escreve:
Celso constata a existência entre os cristãos de uma «igreja principal», outro testemunho
importante. Dá essa denominação ao grupo de fiéis que veneram o Deus Pai dos judeus
e reconhecem a cosmogonia do Velho Testamento; tal informação pode servir de
critério seguro para estabelecer - a data da fundação da igreja episcopal. Celso nos
informa ainda que no final do terceiro quarto do século II, a Igreja já existia, e se tinha
separado nltidamente das outras correntes do cristianismo, e êsse fato não escapou ao
perspicaz adversário dos cristãos.
Porém, no tempo de Celso, êsse processo ainda estava longe do seu término. Em seu
livro, êle dirige sua crítica das crenças cristãs não contra o dogma oficial da Igreja, mas
contra os gnósticos, o que indica que considerava o gnosticismo como a tendência mais
difundida entre os cristãos. O combate contra essa corrente, que via em Jesus um ser
divino, mas não
Celso sublinha que a composição social das comunidades cristãs não tornava a nova
religião digna de respeito aos olhos dos romanos instruídos. Apesar de admitir que se
podia encontrar entre os cristãos «homens de experiência e de juízo», declara que sua
doutrina era professada, em geral, pelas pessoas humildes, achando isso natural aliás,
pois, segundo êle, êles evitam abrir a bôca nos lugares públicos diante de pessoas de
qualidade, enquanto que, ao depararem jovens, grupos de escravos ou de exaltados, êles
se fatigavam contando-lhes maravilhas. Sempre segundo Celso, nos meios privados, os
predicadores do cristianismo eram «tecelões, sapateiros, calceteiros, em suma, a gente
mais grosseira» que se esforçava por espalhar sua fé entre as crianças, as mulheres e os
escravos. Ële repete, por várias vêes, isso, e confessa seu aborrecimento por ver os
cristãos empenhados em «expor a sabedoria divina a escravos ou a criaturas desprovidas
de qualquer educação. . . »
O quadro da composição social das comunidades cristãs por êle descrito coincide
inteiramente com os dados dos primeiros documentos cristãos. Ao examinarmos as
epístolas paulinianas mais antigas e os evangelhos, verificamos a mesma coisa quanto à
base social do cristianismo primitivo. A influência desta religião sôbre as camadas
abastadas da população sé começou a se tornar patente a partir da segunda metade do
século II. Quando Celso compôs seu Discurso Verdadeiro «os trabalhadores e os
oprimidos» formavam ainda a grande massa dos adeptos do Cristo. Porém, aquilo que o
escritor considerava como sendo a fraqueza do cristianismo, isto é, suas ligações com as
camadas profundas do povo, revelou-se, por fim, um dos principais fatôres do seu
reconhecimento pelos imperadores romanos, os quais avaliam a fôrça do cristianismo
justamente por sua influência sôbre as vastas massas da população.
210
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
Celso não faz qualquer alusão à hostilidade dos cristãos contra as autoridades romanas,
o que é um importante índice do grau de evolução do crístianismo no momento em que
êle escrevia e, ao mesmo tempo, uma prova da sua lucidez de observador. Na única
passagem em que fala do «espírito rebelde» dos cristãos (Discurso Verdadeiro, III, 14),
êle está se referindo não ao ódio contra o Estado Romano, mas aos sentimentos que os
cristãos manifestam contra as outras religiões.
Celso consagra largo espaço do seu livro à refutação de um dos dogmas fundamentais
do cristianismo: a ressurreição de Jesus depois da crucificação. Os evangelhos vêem
nisso a prova suprema da divindade de Jesus, e João acentua• que foi uma ressurreição
da carne. Não é por acaso que tanto se fala da incredulidade de Tomé, um dos doze, que
não queria acreditar na ressurreição antes de pôr seu dedo «no lugar dos cravos» e a
«mão no lado» de Jesus. (Evangelho Segundo Jogo, XX, 25-27.) A crença dos cristãos
na ressurreição do Senhor é tratada com ácida ironia por Celso. «Os mortos, escreve êle,
são a esperança dos vermes. Que alma humana pode ter saudades de um corpo
decomposto?» Esta frase prova até que ponto a religião cristã era incompatível com o
nível dos conhecimentos de então. Celso ridiculariza com muito talento as
representações antropocêntricas dos cristãos, que êle compara a vermes que se põem a
dizer: «Deus existe, e depois dêle fomos nós que viemos, nascidos de Deus e feitos à
sua imagem. Tudo nos está submetido: a Terra, as águas, o ar e os astros, tudo existe
para nós, e para nos servir. Mas, alguns entre nós pecaram, e é por isso que Deus deve
vir, ou enviar seu Filho, para castigar os ímpios e ajudar-nos a atingir a vida eterna com
êle.» Apesar de venerar os velhos deuses greco-romanos, Celso sabia mostrar quão
irrisórias eram as idéias religiosas dos cristãos.
Na última parte da sua obra, Celso expõe as razões que o levaram a escrever. Apesar de
sua atitude claramente negativa em relação aos cristãos, êle não lhes pede senão que
dêem prova de lealdade política para com o Imperador. Uma vez
211
que os adeptos do Cristo vivem no território romano, diz Celso, êles «estão na
obrigação de prestar as homenagens habituais àqueles que o governam, a executar seus
deveres nesta vida antes de se libertarem das suas cadéias.» Segundo êle, os cristãos são
obrigados «a defender o Imperador com tôdas as suas fôrças, partilhar suas penas, bater-
se em seu nome, participar de Suas campanhas quando fôr necessário.» Com esta
condição,, devem êles gozar, segundo Celso, do díreito de professar abertamente sua fé,
tal como todos os outros habitantes do Império.
Esta posição de Celso, que tinha relações com os círculos governamentais de Roma,
prova que a Igreja já se tinha transformado então em uma fôrça que os funcionários
romanos não podiam inais negligenciar. Esta posição mostra, de outro lado, que não
havia perseguições sistemáticas contra os cristãos, sob os Antoninos. As lendas da
Igreja, a respeito dos numerosos mártires cristãos que suportaram galhardamente os
suplícios a que foram submetidos, não são confirmadas pelos documentos de que
dispomos.
6. AS HERESIAS DO SËCULO II
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
Esta definição lacônica, mas bastante clara, das opiniões religiosas dos ebionitas, parece
que nos transporta para a época do Apoclipse e da Epístola aos Romanos, dois dos mais
antigos documentos cristãos. No Apocalipse de João, o reino de Deus assume o aspecto
de uma Jerusalém celeste, e a Epístola aos Romanos reconhece a circuncisão, a lei
mosaica e os costumes
214
A ORIGEM DO CRISTIANISMO
dos judeus. Aquilo que Irineu acusa nos ebionitas, considerando-os desviados do
cristianismo, corresponde, na realidade, às prescrições dos primeiros escritos cristãos.
Tertuliano nos oferece uma importante informação s6bre os ebionitas quando assinala
que êles vêem em Jesus não o Filho de Deus, mas sàmente um dos profetas. Ëste ponto
parecia ser um protesto contra o Evangelho Segundo João, já canonizado na época de
Tertuliano, no qual se acentua particularmente a natureza divina do lendário fundador
do cristianismo. Eusébio detém-se ainda mais longamente no exame dêste aspecto da
doutrina dos ebionitas, esclarecendo, em sua História Eclesiástica (III, 27), que êles
consideravam Jesus como «um pobre semelhante a todos os outros, que tinha recebido o
título de justo sômente por causa de sua virtude, e que tinha nascido da união de Maria
com seu espôso.» Eusébio acrescenta que outro grupo de ebionitas admitia que
o Cristo tinha nascido de Maria e do Espírito Santo, mas «recusavam-se a ver nêle o
Verbo e a Sabedoria Divina.» Ainda segundo êste escritor, os ebionitas celebravam o
sábado e, apesar de observarem também a festa dominical, seguiam, quanto ao resto, os
usos e os costumes dos judeus. De todos êsses dados, pode-se concluir que os ebionitas
eram uma seita tipicamente judaico-cristã, o que explica, aliás, sua oposição às epístolas
paulinianas, em que a tendência antijudaica aparece com maior relêvo.
começos do século II, e compôs escritos que apresentavam uma mistura de idéias
judaicas e de idéias cristãs.
A Igreja teve de lutar mais longamente contra o montanismo que, tal como as heresias
judaico-cristãs, conservava muitos dos traços do cristianismo original, mas tratava-se
justamente dos seus traços não judaicos. A luta da Igreja contra os montanistas foi
longa, encarniçada, e ela só conseguiu a vitória à custa de grandes esforços, tão
considerável foi a influência desta heresia no século II.
Os escritos dos montanistas não foram conservados, mas outras fontes contêm
referências aos seus evangeffios, epístolas etc. Eusébio, em particular, fala dos escritos
de certo montanista: Astérius Urbanus. Também não dispomos das obras dos
adversários do montanismo: Apolinário, Apolônio, Milcíades etc. Mas, Irineu, Eusébio
e Tertuliano consagraram muita atenção a esta heresia, que êste último escritor abraçou
no fim da sua vida. O quinto livro da História Eclesiástica de Eusébio contém seis
capítulos bastante longos sôbre o montanismo. Essas fontes e ainda outras nos permitem
fazer uma idéia bem nítida das doutrinas de Montanus.
O montanismo deve seu nome ao seu fundador, que foi, a princípio, sacerdote de Cibele
na Frígia (Ásia Menor), e que se mutilou durante a celebração de um mistério.
Convertido em seguida ao cristianismo, não tardou a impor-se às comunidades cristãs
locais. Sua doutrina também é conhecida sob o nome de heresia catafrigiana. Eusébio,
baseando-se em escritos anteriores, diz que «muito dominado pelo desejo de ser o
primeiro, certo Montanus, recentemente convertido, submeteu-se ao Inimigo [isto é, ao
Diabo. 3-I.L] e sibitamente possuído, prêsa do delírio, pôs-se a divulgar as coisas mais
estranhas, enunciando profecias contrárias à tradição fielmente conservada pela Igreja.»
Eusébio reproduz também esta informação de Apolônio, sôbre Montanus: «Êle pregou o
divórcio, estabeleceu jejuns rituais, deu a Pepuza e Tinion, pequenas cidades da Frígia,
o nome de Jerusalém, com o fim de ali reunir gente de todos os países do mundo.
Nomeou recebedores de donativos e, sob a cobertura de oferendas, deu margem às
concussões.»
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A ORIGEM DO CRISTIANISMO
fetisas: Priscila e Maximilia, cujas atividades remontam à segunda metade do século II.
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substituída pela dos evangelhos canônicos, nos quais se tinham apagado, na medida do
possível, os vestígios do cristianismo original.
O gnosticismo foi a terceira corrente herética com que a Igreja se chocou no sécúlo II.
Seu nome é derivado da palavra grega gnosis, que significa «conhecimento», mas um
conhecimento despojado, entre os gnósticos, convém lembrar, de qualquer sentido
racional: referiam-se ao conhecimento de Deus, não ao da natureza. A questão que mais
os preocupava era a das relações entre a matéria e o Altíssimo. A matéria não era senão
pecado para os gnósticos, e - êles achavam que Deus nunca teria se rebaixado para criar
êste mundo impuro, e é por isso que concebiam, entre êle e a natureza, tôda uma série
de entidades mediadoras, os eons, mais ou menos divinos, cuja definição seria o objeto
de uma disciplina especial: a gnose, o conhecimento.
Eis uma passagem de Irineu, em que é apresentada uma amostra típica do pensamento
gnóstico: «O primeiro lugar [na doutrina do grióstico Valentino] é ocupado pela parelha
em que um é o Inexprimido, e o outro, o Silêncio. Essa parelha engendra outra,
formada, segundo êle, pelo Pai e pela Verdade, a qual dá nascimento, por seu turno, à
Palavra e à Vida, ao Homem e à Igreja; tudo isso compõe o primeiro oitavário. A
Palavra e a Vida fizeram surgir, diz êle, dez Potências ( . . . ),
o Homem e a Igreja, doze. Êle estabelece dois limites: um, entre o Abismo e o Pieroma,
separa os eons criados, do Pai increado; o outro, separa a Mãe, dos eons do Pleroma. O
Cristo proveiu não dos eons do Pleroma, mas da Mãe, independente dêle. Na qualidade
de ser masculino, o Cristo se desembaraça da sombra para ir ao Pleroma. Quanto à sua
Mãe, que permanece com sua sombra, privada da substância espiritual, dá à luz a outro
filho. Ë o Demiurgo, que Valentino chama de Senhor do Universo.»
Êsse delírio não foi inventado pelos gnósticos cristãos: o gnosticismo apareceu antes do
cristianismo. Sua influência se faz sentir notadamente em certas obras de Filon, de
Alexandria. Incoerente, ultramístico, o gnosticismo representa nos seus começos uma
das correntes da filosofia greco-romana na época de sua decadência. Os gnósticos
cristãos procuravam adaptar de qualquer maneira os dogmas da nova religião à filosofia
idealista da época, da qual sua filosofia, para êles, não era no fundo senão um ramo.
Diferentemente das heresias montanistas e das judaico- cristãs, das quais nenhum
escrito nos chegou, possuímos numerosas obras gnósticas, greco-romanas e cristãs.
Descobriu-se,
Por outro lado, os gnósticos levantavam-se contra o dogma dos sinóticos referentes ao
Jesus Homem-Deus, procurando ultrapassar, de diversas maneiras, as contradições dos
evangelhos. Alguns entre êles afirmavam que Jesus não tinha mesmo nascido de Maria,
outros proclamavam, ao contrário; que êle nada tinha de divino, que êle era um homem
cheio de Espírito Santo ünicamente graças à sua virtude. Os gnósticos distinguiam
Jesus, do Cristo, o homem, do Messias, argüindo que só o primeiro, enquanto criatura
humana, poderia ter sido crucificado.
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todos os homens por sua eqüidade, seu bom senso e sua sabedoria. Durante o batismo
do Cristo, o enviado do Príncipe inicial desceu sôbre êle, sob o aspecto de uma pomba;
depois disso, êle anunciou o Pai desconhecido e realizou milagres. Separado em seguida
do Cristo, Jesus sofreu o suplício, morreu e ressuscitou, O Cristo, ser espiritual, nada
sofreu.» Quanto a Cerdon, Irineu diz que êle pregava em Roma, no tempo do Bispo
Higino, no ano 140, «que o Deus proclamado pela Lei dos profetas não é o Pai de Nosso
Senhor Jesus Cristo, porque tinha-se conhecido o primeiro, mas não se tinha conhecido
o Pai de Cristo.»
O mais importante dos representantes do gnosticismo cristão foi Márcio, sôbre o qual
possuímos muitas informações provenientes de fontes anti-heréticas. Tertuliano compôs
uma obra em cinco livros Contra Márcio, e Irineu, assim como Justino, seu precursor,
consagrou também grande atenção à heresia marcionita.
Rico armador, nascido no Ponto, província romana da Ásia Menor, Márcio foi chamado
irônicamente, por Tertuliano, de «navegante do Ponto Euxino.» (Nome antigo do Mar
Negro.) Fixou-se em Roma, na mesma época que Cerdon. Aderindo à comunidade
cristã local, doou-lhe a bela soma de 200 mil sestércios, e ocupou logo em seguida uma
posição de destaque. A luta contra êste heresiarca foi longa. Foi excomungado por duas
vêzes mas, tendo se arrependido no final dos seus dias, como o atesta Tertuliano,
morreu no regaço da Igreja. Sua influência era tão grande, que a Igreja já tinha decidido
deixá-lo em paz se êle consentisse em fazer retornar a eia aquêles que êle havia
«afastado dela.»
.) apareceu ao povo de Israel sob o aspecto de um homem que destruía a autoridade dos
profetas, da Lei, a obra de Deus, que criou o mundo.» E êle acrescenta: «Márcio procura
convencer seus discípulos de que êle é mais digno de confiança do que os apóstolos que
transmitiram os evangelhos, dos quais êle apenas lhes comunica uma parte ínfima. Êle
risca também,
As idéias do gnosticismo cristão estão expressas de modo mais ordenado num dos
escritos de Chenobosquion, o Apócrifo de João, que expõe a Revelação transmitida por
Jesus a êste apóstolo no Monte das Oliveiras. No preâmbulo, o autor previne que esta
Revelação não deve ser comunicada senão às pessoas dignas e capazes de compreender
o seu sentido. Diz-se nela que Deus é o Ser supremo do «mundo da luz»,
completamente diferente do nosso, que é material. Ligados apenas a êste, somos
incapazes de conceber a natureza de Deus.
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Màs, Deus plantou no Éden a árvore da ciência, e o Cristo compeliu Adão a comer seus
frutos, O dilúvio foi obra de Ialdabaoth. Noé foi guiado por Deus. Sua mulher, Nona6,
inspirada por Ialdabaoth, põe fogo na arca, por três vêzes. Para se destruir o poder da
Ialdabaoth, é preciso possuir a gnose, o conhecimento de Deus. E todos podem vencer o
princípio do Mal, porque todos trazem em si a centelha divina. Porém, se o Mal triunfa
no homem, sua alma, quando êle morre, tranSmigra para outro ser vivo, até o dia em
que o Mal seja vencido. A perdição eterna é o quinhão apenas daqueles que renunciam a
verdade, depois de a ter conhecido.
Assinalamos já que a influência dos gnósticos era grande desde a época de Celso. Não é
por acaso que em sua obra sôbre o cristianismo êle dedica sua atenção não ao dogma
que triunfou em seguida, mas à corrente gnóstica da nova religião.
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goria de religião oficial do Império Romano, êle era dominante apenas na Ásia Menor,
na Armênia e na Trácia. Sua influência era grande na Síria, no Egito, no noroeste da
África, no sul da Espanha e em outras regiões costeiras da bacia mediterrênea. Nas
regiões centrais da Península Balcânica, e da Península Ibérica, assim como na Itália e
na Sicília, o cristianismo era ainda pouco difundido. No que concerne ao território das
outras províncias do Império, não se possui nenhuma informação sôbre a existência de
comunidades cristãs durante êsse período. Os cálculos de A. Harnack mostram que, nos
começos do século IV, os cristãos totalizavam apenas 10 ou 1.5% da população do
Império, o que permite afirmar que êles eram muito menos numerosos ainda no limiar
do século anterior.
A segunda questão da qual não tratamos aqui é a que se refere às perseguições contra os
cristãos. Os escritores eclesiásticos falam de centenas, até mesmo de milhares de
mártires, procurando, assim, dar a impressão de que a religião cristã era terrivelmente
perseguida desde os seus começos, mas êles exageram, porque o poder romano não
combatia nenhum culto em particular, pela simples razão de isso não ser possível num
Estado de tal modo multínacional. Roma queria ganhar o apoio das camadas abastadas
das nações conquistadas, e, por essa razão, devia dar provas de tolerância. O Estado
Romano só se considerava na obrigação de reprimir uma religião, quando seus adeptos
se insurgiam contra êle, como foi o caso por ocasião das revoltas judias do século 1, e
começos do II.
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Sàmente no III século é que esta situação muda bruscamente. Os meados dêsse século, e
depois o período do reinado de Diocleciano e de seus sucessores (a partir do ano de 284)
foram marcados, de fato, por perseguições maciças e simuitâneas contra os cristãos em
todo o Império. As informações de que se dispõe a êsse respeito são assaz abundantes.
Mas, segundo tôdas as fontes, o Estado Romano lançou-se, então, contra a Igreja por
motivos puramente políticos, e não religiosos. As perseguições eram aliás de curta
duração e, nos intervalos, o cristianismo existia legalmente. Êsse fato é ilustrado pelo
seguinte pormenor: Quando, sob Aureliano (270-275), a heresia de Paulo, bispo de
Antióquia, suscitou dissidências, o Imperador ordenou-lhe que transmitisse a igreja
local «àqueles que correspondem em sua religião aos bispos itálicos e romanos.»
(Eusébio, História Eclesiástica, VII, 80.) Isto prova, de um lado, a legalidade do
cristianismo, e, de outro, que os soberanos de Roma consideravam os bispos romanos
como chefes da Igreja cristã em todo o Império. Segue-se ainda que os imperadores
pagãos desempenhavam o papel de árbitros nos conflitos entre cristãos. E uma vez que
as coisas se passavam dêsse modo, não resta dúvida alguma de que as perseguições
contra os cristãos não eram permanente.
• A situação política do Império no século III, tanto no interior, como no exterior,
favorecia a difusão do cristianismo. O período de progresso econômico terminou com
os Antoninos. Sob a dinastia dos Severos (de 193 a 233), a tendência para a agravação
das contradições políticas no Império se acentuou cada vez mais. Nenhum imperador
consegue subir ao trono sem antes ter mantido um combate encarniçado contra os seus
rivais. As relações entre os imperadores e o Senado, que representava a aristocracia
escravagista, se envenenavam progressivamente. O exército torna-se sob os Severos não
sàmente o único apoio militar, mas também o sustentáculo social do poder, fato êsse
que encontrou sua expressão no consêlho atribuído a Sétimo Severo, fundador da
dinastia, e que êle deu aos seus filhos antes de morrer: «Sêde amigos, enriquecei vossos
soldados e zombai do resto.» Êste conselho lhes foi fatal, todavia: durante os 42 anos da
dinastia dos Severos oito imperadores se sucederam, e apenas um morreu de morte
natural.
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de ordem política e social. A crise do modo de produção escravagista frenava o
desenvolvimento das fôrças produtivas, tornando cada vez mais agudas as contradições
entre as classes. Sob os Severos, as massas se agitaram cada vez mais. Os escritores
desta época queixam-se continuamente da freqüência de pretensos «atos de pilhagem»
que nada mais eram do que uma forma de protesto contra o jugo dos opressores. Apuleu
refere-se muito a êsss «salteadores» em. suas obras. Em pleno coração da Itália, certo
Bula permaneceu, por muito tempo, burlando os que o queriam prender, e êle
aconselhava aos senhores «que alimentassem seus escravos, para evitar que êles se
tornassem salteadores. » Na mesma época, aproximadamente, falava-se na Gália das
aventuras de outro salteador: Maternus. Em meados do século III, o movimento das
massas .tornou-se tão grande que várias revoltas se desencadearam.
Sapor 1, Rei Sassanida, invadiu, no ano 260, várias províncias riéntais do Império, e,
pela primeira vez na história de Roma, um imperador — Valério — foi feito prisioneiro.
Não podendo o poder central garantir mais a segurança da aristocracia das províncias,
Estados independentes começaram a se constituir, tanto no Oriente, como no Ocidente.
Tendo conseguido sustar a ofensiva dos persas, o Governador da pequena Palmira
recebeu o título de Imperador, e submeteu, em segttida, várias províncias orientais, entre
as quais o Egito. Um império gaulês subsistiu durante mais de um decênio; êle
englobava a Gália, a Espanha e a Bretanha. Em Roma e na Sicília expiodiam revoltas de
escravos e de pobres.
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fôrças. O fortalecimento do Império teve lugar sob Diocleciano (284-303) com o qual
começou o período da monarquia absoluta, caracterizada pela liquidação da antiga
ordem «constitucional», a decadência definitiva do Senado, a concentração do poder nas
mãos dos imperadores, aos quais se rendiam honras divinas. A grande propriedade
territorial tornou-se, ainda em mais alto grau, o apoio social do regime. O exército e a
administração foram separados, a máquina do Estado totalmente reorganizada.
Tôdas essas medidas fortaleceram temporàriamente o poder imperial, mas elas foram
incapazes de liquidar as contradições inerentes ao sistema escravagista. Depois de
Diocleciano, a luta se acendeu de nôvo. Constantino, pretendente ao trono, filho de um
dos tetrarcas de Diocleciano, buscou o apoio da Igreja, prometendo-lhe o
reconhecimento do cristianismo. A Igreja o obteve pelo Edito de Milão (em 313), e não
tardou a conquistar uma posição dominante no Império.
Tais foram as condições econômicas e sociais em que a Igreja cristã lutou, e acabou por
triunfar. O desmoronamento da ordem antiga, as invasões dos bárbaros e tôdas as
espécies de cataclismos sociais foram um terreno dos mais propícios para o êxito da
predicação do cristianismo. No momento em qúe o Estado Romano milenar estremecia
em suas bases, tanto os pobres, como também um grande número de elementos das
classes médias acrèditavam que o fim do mundo se aproximava, e o clero soube
explorar êsse estado de espírito. Apesar das múltiplas tentativas feitas pela Igreja
visando a uma conciliação com o Estado imperial, na situação concreta de então, a
Igreja continuava sendo o mais resoluto adversário da ordem antiga, e é por isso que a
crise política e social do regime lhe era proveitosa. O poderio crescente da Igreja a
opunha objetivamente às tendências retrógradas, apesar da inclinação do clero para a
acomodação com o poder. Tal foi a razão das perse. guições desencadeadas contra ela
pelos imperadores Décio e Diocleciano.
No século III e nos com; eços do IV, a Igreja continuou a seguir pelo mesmo caminho
que ela vinha percorrendo durante o século anterior buscando: 1) obter o
reconhecimento do cristianismo nas mesmas condições que as outras religiões; 2)
apagar o «extremismo» do cristianismo original; 3) estabelecer definitivamente seus’
dogmas e seu ritual; 4) centralizar ainda mais o aparato eclesiástico (concílios locais), e
aumentar a influência do clero; 5) vencer as velhas e as novas heresias.
maior amplitude ainda. As comunidades cristãs dispunham de bens cada vçz mais
consideráveis. Às capelas do período anterior vieram-se ajuntar casas que serviam de
igrejas e, nos começos do século IV, templos, com tôda sorte de objetos rituais e
coleções de livros sagrados. Na literatura cristã encontram-e longas listas de bens
materiais confiscados à Igreja durante o período das perseguições. As catacumbas
romanas, com duas e até três galerias superpostas, e estendendo-se por vários
quilômetros sob a cidade e seus subúrbios, testemunham a importância dos cemitérios
cristãos da época. As instituições de beneficência ofereciam também aos bispos um
vasto campo de ação, e tôda a economia era gerada por cristãos ricos e influentes, que
acabaram assenhoreando-se da direção dos negócios das comunidades. Cipriano, Bispo
de Cartago, nos meados do século III, queixa-se em uma carta que outros bispos
«andam de província em província em busca de mercados, em que esperam ganhar mais
dinheiro; acumulam riquezas, enquanto a fome reina nas comunidades; fazem-se
herdeiros por meio das mais baixas bajulações, e multiplicam seus bens praticando a
usura. » (Dos Renegados, 6.) Outro documento significativo sôbre êsse tema é o escrito
de Clemente de Alexandria (entre o II e o III século) cujo título é por si só bastante
eloqüente:
dades cristãs, apesar da aspereza das polêmicas travadas. A partir do século III, qualquer
divergência levava já ao divórcio, e colocava os dissidentes fora da Igreja.
Durante êste século, outras heresias apareceram ao lado das artigas correntes heréticas
judaico-cristãs, do montanismo e do gnosticismo. Algumas entre elas, tal como a dos
nepotianos, continuavam a tendência escatológica e por vêzes quiliástica do
cristianismo original; outras, como os novacianos e, a partir do século IV, os donatistas,
consideravam-se no dever de protestar contra o fortalecimento do poder dos bispos
enquanto que os sabelianos negavam o dogma da Santíssima Trindade. A maioria destas
heresias surgiram durante as perseguições; expremiam a oposição dos crentes à
indulgência do clero em relação aos cristãos das camadas mais ricas que tinham
apostatado. Quanto à Igreja, ela era implacável com os dissidentes, e os punia por tôda
parte do mesmo modo: os concílios, que reuniam muitas vêzes centenas de chefes das
diversas comunidades, estigmatizavam e excomungavam os ,.heréticos.
Tais foram as premissas da aliança da Igreja com o poder imperial, que fêz dela o apoio
das classes exploradoras do Império Romano. Quanto mais o poder imperial se
enfraquecia em conseqüência da agravação da crise da ordem antiga e das guerras
intestinas, mais a Igreja se distanciava das aspirações do cristianismo original e mais
essas duas fôrças, outrora hostis, se aproximavam. O reconhecimento da Igreja sob
Constantino, seguida da passagem do culto cristão categoria de religião dominante, foi,
portanto, o resultado lógico da evolução do cristianismo primitivo.
ACABOU-SE DE IMPRIMIR STE LIVRO NO DIA 21 DE MAIO DE 1963, NAS
OFICINAS DA EDITÔRÀ OBELISCO LTDA. - R. ANHANGUERA, 66 - 5. PAULO
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