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O livro A Origem do Cristianismo, escrito por um renomado historiador soviético —

Jacó Lentsman — foi publicado pela primeira vez na U.R.S.S., em 1958, sob os
auspícios da Academia de Ciência. Conheceu, em seguida, uma tradução francesa e
outra espanhola, e está sendo publicada agora, pela primeira vez, em português, pela
Editôra Fulgor, na sua Coleção de Estudos Sociais e Filosóficos. Encarregou-se da sua
tradução o ProL Cunha Andrade, Assistente da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras, da U.S.P., um especialista em História da Filosofia, e uru apaixonado estudioso
dos problemas sociais e religiosos.

Corno o seu nome indica, o presente trabalho é consa4 grado ao estúdo dos principais
problemas das origens e das raízes ideológicas da religião cristã e da edificação da
Igreja Cristã. Durante muitos séculàs aceitou-se pràticarnente sem discussão o caráter
divino do Cristo, a sua qualidade de filho de I)eus, a sua existência histórica, e,
portanto, o caráter sobrenatural e divino da Igreja Cristã, fundada por inspiração direta
do Cristo. E certo que desde os primeiros tempos existiram doutrinas heréticas dentro
do seio do cristianismo, mas essas divergências não se referiam às questões básicas do
caráter divino da própria igreja, e do seu fundador mítico. As grandes dúvidas, . a crítica
fundamentada, que veio abalar os alicerces do edifício construído durante os milénios
de fé cega e irracional, só surgiram mesmo no século XVIII, especialmente devido aos
trabalhos dos enciclopedistas. De lá, para cá, como resultado da ação de sociólogos,
historiadores e psicólogos surgiu na França, na Alemanha, na Inglaterra e na U.R.S.S.,
principalmente, uma verdadeiia escola —- ou escolas, seria melhor dizer — de crítica
racionalista, que encara as manifestações religiosas como fenômenos de ordem
psicológica e social tão naturais quanto quaisquer outros, e, como tal, passíveis de
estudos científicos. Os textos religiosos, sejam êles a Bíblia, ou o Alcorão, o Talrnud,
ou os Vedas, são documentos escritos, de caráter histórico, sem qualquer coisa de
sagrado ou de revelado, que devem ser estudados à luz da crítica racionalista. E é isso
que Jacó Lentsman faz neste livro. Estuda à luz da razão e das conquistas das diversas
ciências as fontes pagãs e cristãs, os autores dos primeiros séculos do cristianismo, os
monumentos que chegaram até nós etc., elucidando, dessa forma, de modo brilhante, as
fases iniciais do complexo processo histórico e social que fz surgir o cristianismo, e que
O transformou lentamente na religião oficial do Império Romano.
TRADUZIDO DO ORIGINAL EM FRANCÊS L’ORIGINE DU CHRISTIANISME

PUBLICADO POR EDIÇÕES EM LINGUAS ESTRANGEIRAS, MOSCOU - 1961

COLEÇÃO DE ESTUDOS SOCIAIS E FILOSÓFICOS DIREÇÃO DE

JOSÉ SEVERO DE CAMARGO PEREIRA ( U. S. P)

CAPA DE DOMINGOS LOGULLO


RESERVADOS TODOS OS DIREITOS DE

REPRODUÇÃO. DE ADAPTAÇÃO E DE TRADUÇÃO PARA A LÍNGUA


PORTUGUÊSA.

COPYRIGHT — EDITÔRA FULGOR LIMITADA RUA ANHANGUERA. 66 -


TELEFONE 51-3095 CAIXA POSTAL 1 821 - SÃO PAULO – 1963

JACÓ ABRAMOVITCH LENTSMAN

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

TRADUÇÃO DE JOÃO CUNHA ANDRADE

ASSISTENTE DE HISTÓRIA DA FILOSOFIA

DA FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS DA U.S.P.

EDITORA FULGOR
INDICE

PREFÁCIO À TRADUÇÃO FRANCESA 9

INTRODUÇÃO 11

1 AS FONTES DO CRISTIANISMO 33

1 Fontes cristãs 34

2 Fontes não cristãs 55

II O IMPËRJO ROMANO NO SËCULO 1.

PREMISSAS ECONÔMICAS E SOCIAIS DO CRISTIANISMO 67

III AS RAIZES IDEOLÓGICAS DO CRISTIANISMO 77


1 Religiões e Cultos do Império Romano 77

2 O Cristianismo e o Judaísmo 91

IV O APARECIMENTO DO CRISTIANISMO 105

V AS COMUNIDADES CRISTÃS DURANTE

A PRIMEIRA METADE DO SËCULO II 123

1 A Separação do Judaísmo 126

2 Formação da Ideologia Cristã 135

3 O Papel do Clero Segundo as Epístolas Pastorais 140

4 A Tendência Judaico-Cristã nas Epístolas do Nôvo-Testamento 143

5 A Doutrina dos Doze Apóstolos 147

6 As Primeiras Heresias 151

7 Os Escritos do Apologista Justino 154

VI O CRISTIANISMO DURANTE

A SEGUNDA METADE DO SÉULO II 165

1 O Império Romano sob Marco Aurélio e Cômodo 165

2 O Jesus Evangélico 168

3 O Problema Social dos Evangelhos 183

4 A Igreja Episcopal 193

5 Os Críticos Antigos do Cristianismo 204

6 As Heresias do Século II

CONCLUSÃO 225
A presente obra é consagrada aos principais problemas concernentes às origens e às
raízes da religião cristã, e à constituição da Igreja. Ela apresenta um sumário da
literatura cristã dos primeiros séculos, descreve as fases iniciais do processo histórico
que determinou a transformação do cristianismo em religião oficial do Império
Romano, O leitor nela encontrará, por outro lado, uma exposição da crítica do
cristianismo pelos pensadores da Antigüidade, e um relato das razões do aparecimento
de doutrinas heréticas no século II.

PREFÁCIO À TRADUÇÃO FRANCESA

A obra cuja tradução é proposta aos leitores foi publicada em 1958, sob os auspícios da
Academia de Ciências da U.R.S.S. O autor propôs-se o objetivo de nela expor, de
maneira acessível a todos, os resultados das pesquisas efetuadas pelos historiadores
soviéticos a respeito das origens do cristianismo. Em vista das divergências essenciais
entre dois historiadores de primeiro plano, A. Ranovitch e R. Viper, no que concerne à
natureza social do cristianismo primitivo e ao momento de sua aparição, reservamos
grande espaço para a análise de suas opiniões.

Destinado primeiramente aos leitores soviéticos, menos habituados aos textos bíblicos
do que os leitores franceses, em conseqüência da absoluta laicidade do ensino e da
estrita separação entre a Igreja e o Estado em nosso país, êste livro expõe, talvez muito
mais detalhadamente do que seria necessário, o conteúdo do Nôvo Testamento; porém,
se se suprimissem essas passagens na presente tradução, prejudicar-se-ia a unidade da
obra. Ao reexaminar o texto, tendo em vista a sua tradução, o autor achou-se no dever
de levar em maior conta as opiniões dos escritores franceses sôbre a matéria (Alfred
Loisy e outros), e, também, a concepção católica das origens cristãs.

Os textos bíblicos são citados segundo a tradução de Louis Second, Paris, 1952.

9
INTRODUÇÃO

O problema das origens do cristianismo, das fases da sua evolução até o momento em
que se torna a religião dominante do Império Romano em decadência, das razões da sua
vitória sôbre as outras religiões que pretendiam o mesmo papel, não apresenta apenas
um interêsse teórico. Sua solução é também muito importante para se esclarecer o
caráter da ideologia e das opiniões vigentes durante o período de decomposição do
sistema escravagista, mas ela deve seu principal alcance e sua atualidade política ao fato
de, por meio dela, ser possível dissipar-se, à luz da ciência, o mito da origem divina do
cristianismo, e revelar-se as causas materiais do nascimento e do triunfo da religião
cristã, a mais influente das três religiões mundiais.

A análise científica do problema das origens do cristianismo

mostra que esta religião, como tôdas as outras, apareceu em conseqüência de certas
condições econômicas e sociais. Rigorosamente aplicada, ela põe em evidência, por
outro lado, que a vitória do cristianismo resulta, não da qualidade da moral de que seria
o portador, mas de uma série de circunstâncias de natureza bem diferente, entre as quais
convém citar, particularmente, a renúncia da Igreja ao espírito revolucionário das
primeiras comunidades cristãs e a acomodação do alto clero com os meios
governamentais da antiga Roma.

Sendo a análise científica fatal aos dogmas ortodoxos, as pesquisas consagradas aos
começos do cristianismo sempre se desenrolaram num clima de áspera luta política. As
tentativas de encarar os documentos dos primeiros tempos da era cristã, na medida em
que são fontes históricas, aplicando ao seu estudo os métodos científicos em uso,
sempre se defrontaram com a oposição formal da Igreja. Ela prefere, evidentemente,
apresentar as sagradas escrituras como um artigo de fé à margem de qualquer pesquisa,
como um texto sagrado, em que cada palavra se deve à «revelação». O Papa Pio XII,
dirigindo a palavra a um congresso internacional de historiadores que se reuniram em
Roma em 1955, repetiu de nôvo que, para os católicos, o problema da existência de
Jesus concerne à fé, não à ciência.

Apesar da profusão de trabalhos consagrados aos diversos aspectos da historiografia do


cristianismo primitivo, espera-se sempre um estudo de conjunto e leigo, sôbre êste
problema.

11
12

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

A semelhança de muitos outros escritores, Albert Schweitzer em sua Geschichte der


Leben-Jesu-Forschung, uma das obras mais sérias neste plano, reduz tudo, como seu
título o indica, ünicamente à questão da existência histórica de Cristo, questão
importante certamente, mas parcial. F. Engeis, por exemplo, nem sequer a abordou,
apesar de ter consagrado três trabalhos bastante importantes ao cristianismo primitivo. É
preciso dizer, contudo, que os pesquisadores que se dedicaram à lenda de Jesus Cristo,
tal como o Nôvo Testamento a expõe, foram obrigados a exprímir sua opinião sôbre a
autenticidade da tradição evangélica, donde a atualidade de seus escritos para o
historiador não religioso do cristianismo.

Até aos começos do século XVII, esta questão nunca tinha sido estudada de um ponto
de vista científico, por causa do império sem limites da ideologia religiosa. Os escritores
católicos, assim como os seus adversários, nunca tinham pôsto em dúvida as afirmações
das santas escrituras. Até mesmo os teólogos luteranos, como Osiander (século XVI),
chegavam a declarar que, se os evangelhos expunham certos acontecimentos várias
vêzes e com detalhes muitas vêzes contraditórios — a ressurreição da filha de Jairo, por
exemplo — isso apenas significava que a coisa tinha acontecido mais de uma vez. Até
mesmo os movimentos revolucionários das massas contra o poder da Igreja Católica se
desenrolaram habitualmente sob a palavra de ordem de retôrno aos costumes
evangélicos. Foi o que aconteceu, particularmente, por ocasião das revoltas camponesas
na Inglaterra (a insurreição dirigida por Wat Tyler em 1381), das sublevações dos
taborítas tchecos (1419-1434), da Grande Guerra Camponesa na Alemanha (1524-
1525), da revolução inglêsa do século XVII.

O exame crítico dos primeiros escritos cristãos, em geral, e dos evangelhos, em


particular, não começou senão a partir dos fins do século XVII, mas desenvolve-se
muito durante o século XVIII, o «século das luzes». Hermann-Samuel Reimarus,
filósofo alemão, um dos promotores da corrente racionalista que negava os milagres,
sustentava que Jesus nada tinha de divino, que êle fôra apenas um dos profetas hebreus.
No que diz respeito à ressurreição, Reimarus afirmava que os discípulos de Jesus tii
ham inventado essa fábula depois de terem roubado seu cadáver. Temendo as
perseguições da Igreja, o pensador se absteve de publicar sua obra, que só foi publicada
(em parte) depois de sua morte, sob os cuidados de Lessing. Os dogmas da Igreja
também foram criticados pelos materialistas e pelos deístas inglêses do século XVII e
do comêço do século seguinte.

Na França, grande número de ideólogos da burguesia, em luta, por essa época, contra o
feudalismo, particularmente Voltaire,

INTRODUÇÃO 13

os enciclopedistas do círculo de Diderot e D’Holbach, mantiveram, ao mesmo tempo,


um violento combate contra a Igreja Católica, poderoso pilar da ordem feudal. Os
grandes filósofos franceses denunciavam implacàvelmente o obscurantismo dessa
Igreja, conclamavam o povo a «esmagar a infame». Assinalaram grande número de
contradições nos evangelhos. Voltaire, em particular, procurou mostrar as coincidências
que existem até no uso dos têrinos entre o Evangelho de João, e os escritos de Filon de
Alexandria, filósofo grego de origem udaica no .comêço do século 1.

No princípio do século XIX, o progresso geral dos métodos de estudo dos documentos
históricos não deixou de influir nas pesquisas relativas às origens do cristianismo. A
análise Crítica dos monumentos mais antigos da literatura grega, tais como os poemas
de Homero, revelou contradições devidas à superposição de textos compostos em
épocas diferentes e assaz distanciadas uma da outra. O estudo dos documentos
concerflentes à história romana dos tempos mais recuados deu resulfados análogos.

A aplicação dos novos métodos de investigação histórica ao estudo dos evangelhos não
tardou a evidenciar a inconsistência completa dos dogmas tradicionais da Igreja. No
decorrer dos primeiros decênios do século passado, deram-se os primeiros passos nesse
‘sentido por iniciativa de Ferdinand-Christian Baur, Professor de Teologia da
Universidade de Tubingue, na Aleanha. Hegeliano convicto, tentou aplicar o método
dialético hegeliano aos primeiros escritos cristãos. Baur e seus discípulos (Escola de
Tubingue) descobriram duas tendências contrárias no Nôvo Testamento: a primeira,
ligada a Pedro, apresenta os sinais das origens judaicas da religião cristã, e a segunda,
ligada ao nome do apóstolo Paulo (paulinismo) opõe-se ao judaísmo. Segundo os
escritores da escola de Tubingue, em conformidade com a concepção filosófica de
Hegel, os evangelhos são a síntese aóssas duas tendências contrárias e devem, por essa
razão, ser çs escritos menos antigos do Nôvo Testamento. Firmes nessa çonvicção, os
adeptos de Baur desenvolveram uma frutuosa atividade para estabelecer a data da
composição dos livros neotestamentários. A Escola de Tubingue submeteu êsses textos
a uma análise sistemática e êsse foi, incontestàvelmente, um dos seus maiores méritos.
Ela revelou diferenças essenciais ntre os evangelhos sinóticos e o Evangelho Segundo
João, assim como grande número de contradições nos evangelhos, demonstrou que a
maioria das epístolas atribuídas ao apóstolo Paulo, tais como nós as conhecemos, não
puderam ter vindo luz antes do século II. Os representantes da Escola de Tubingue
enriqueceram assim muito a crítica científica dos pri-
14

A ORIGEM 00 CRISTIANISMO

meiros escritos cristãos. Porém, idealistas em filosofia, não souberam abordar o aspecto
social do problema das origens do cristianismo.

«A Escola de Tubingue, assinala F. Engeis, (.. . ) vai tão longe no exame crítico, quanto
uma escola teológica poderia

ir. Ela admite que os quatro evangelhos não são (... ) senão arranjos ulteriores de
escritos perdidos ( . . . ). Ela risca da narração histórica, como inadmissíveis, todos os
milagres e tôdas as contradições; do que resta, procura «salvar tudo aquilo que pode ser
salvo» ( ...). Em todo o caso, tudo aquild que a Escola de Tubingue rejeita do Nôvo
Testamento como apócrifo, ou como não histórico, pode ser considerado como
definitivamente rejeitado pela ciência.»1

O passo seguinte no domínio da crítica científica dos evangelhos foi dado pelo teólogo
David-Friedrich Strauss que estudou com a ajuda do método comparativo os dados do
Nóvo Testamento a respeito do Cristo. Nos dois tornos de sua Vida de Jesus,
demonstrou irrefutàvelmente que quase tudo aquilo que os apóstolos dizem sôbre o
Cristo foi emprestado de religiões anteriores ao cristianismo, que a fé na divindade de
jesus tinha sido inspirada pela espera, entre os hebreus, da aparição de um redentor, do
Messias (oint, em hebraico). Convém, contudo, lembrar que, na terceira edição do seu
livro, Strauss atribuiu caráter histórico a certo número de lendas ligadas à vida de Jesus,
visivelmente na esperança dë ser nomead para a cadeira de teologia da Universidade de
Zurich. ao tendo conseguido tal nomeação, êle mesmo anulou, posteriormente, aquela
concessão ao dogma da Igreja. . . Nos Diálogos de Ulrich de Hutten, confessou, um
quarto de século mais tarde: «Meu livro fechou-me o acesso ao professorado, que era
minha aspiração e para o qual tinha aptidões, parece-me. Arrancou-me ao ambiente
normal, lançou-me num meio estranho, condenou-me à solidão. Bendigo, contudo, êsse
livro que, apesar de me ter causado um grande prejuízo, assegurou a serenidade de
minha alma e do meu coração.» Caracterizando num estilo colorido a importância da
vida de Jesus de Strauss, A. Schweitzer diz: «Strauss passou um atestado de óbito a tôda
uma série de interpretações racionalistas das lendas evangélicas. E se estas últimas
ainda figuram na teologia contemporânea, não é senão na qualidade de fantasmas.»2
A obra de David Strauss defrontou-se com uma crítica brutal, muitas vêzes difamatória,
da parte dos teólogos católicos

1 Karl MARX e F. ENGELS: Sur la Religion, Ëditions Sociales, Paris, 1960, pág. 317.

2 A. SCHwErrzzR: The Quest oj the Histoical Jesus, Londres,

1954, pá. 84.

INTRODUÇÃO

15

e, também, dos protestantes. Porém, pouco a pouco, suas ópiniões se impuseram,


porque os elementos míticos que êle assinalou nos evangelhos são absolutamente
evidentes. Isto levõu os tëólogos a buscar uma explicação para a presença de tais
elementos no Nôvo Testamento e a estudar, por outro lado, o problema da
interdependência dos evangelhos sinóticos. A. Weisse, contemporâneo e discípulo de
Strauss, adiantou a hipótese de que o Evangelho Segundo Marcos era o mais antigo, e
que a inclusão de elementos míticos no Nôvo Testamento se explicava pelas
necessidades da luta contra o gnosticismo, que negava a natureza humana do Cristo.
Bruno Bauer, Professor de Teologia na Universidade de Bonn, distinguiu-se também
por sua análise dos primeiros escritos. De 1840 à 1842, editou a Crítica dos Fatos
Contidos no Evangelho de S. João e a Crítica da História Evangélica dos Sinóticos,
obras em que demonstrou que os evangelhos não são dignos de confiança enquanto
fontes documentárias a respeito da vida de Jesus; que êles só são importantes na medida
em que refletem o clima em que se desenrolam as atividades das comunidades cristãs
primitivas, a situação daqueles tempos. Diferentemente de Strauss, Bruno Bauer
sublinhou nos seus trabalhos posteriores (particularmente em O Cristo e os Césares) não
as fontes judaicas, mas as grecoromanas do cristianismo. Segundo êle, a religião cristã
era a síntese original do estoicismo, corrente filosófica greco-romana, com um judaísmo
helenizado. Semelhante conclusão levou, làgicamente, Bauer à negação da realidade
histórica de Jesus, o que provocou uma verdadeira batalha defensiva nos meios
clericais. Teve de deixar o seu cargo de professor na universidade, seus escritos foram
deliberadamente ignorados e êle sofreu durante muito tempo t6da espécie de
perseguição.

No artigo «Bruno Bauer e o Cristianismo Primitivo», F. Engeis apreciõu da seguinte


maneira o alcance das pesquisas dêsse historiador da religião: «Os teólogos oficiais,
Renan inclusive, o plagiavam e, por êsse motivo, eram unânimes em deixar seu nome
no esquecimento. E, no entanto, êle valia mais do que êles, e fêz mais do que êles no
domínio que tanto nos interessa; a nós socialistas: a questão da origem histórica do
cristianismo.»3

Depois da publicação dos trabalhos dos representantes da Escola de Tubingue, de David


Strauss, de Bruno Bauer, até mesmo certos escritores católicos e ortodoxos
compreenderam a impossibilidade de manter suas antigas posições. A evolução le
Ernest Renan foi típica a êsse respeito. Apesar da sua formação católica, tentou, sob a
influência das novas idéias,

3 Karl MARX e F. ENGELS, ob. cit., pág. 191.


16 A ORIGEM DO CRISTIANISMO

apresentar o Cristo como um ser humano em uma série de obras que fizeram sensação
na época, entre as quais se destacam sua Vie de Jêsus e Les Apótres.

A principal conclusão das obras críticas dos pesquisadores mencionados foi, portanto,
enunciar que os quatro evangelhos do Nôvo Testamento não teriam podido vir a luz
antes do II século, sendo assim quase os últimos, em data, dos escritos canônicos. O
estabelecimento da data aproximada, e por vêzes exata, da composição das diferentes
epístolas do Nôvo Testamento pôs em evidência que a maior parte delas são anteriores
aos evangelhos. Ora, Jesus é descrito nos evangelhos com

detalhes pseudo-concretos, dos quais não se encontram qualquer vestígio nos escritos
cristãos mais antigos. Esta circunstância levou inevitàvelmente o pesquisador imparcial
a concluir que os evangelhos não são válidos como documentos a respeito da existência
histórica de Jesus.

Uma das lacunas mais graves dos representantes da Escola de Tubingue, assim como de
seus adversários, reside na sua inaptidão para ver no cristianismo um fenômeno
histórico determinado por dadas condições, a expressão ideológica das contradições que
lavravam no seio da sociedade escravagista do Império Romano. Para êles, o
cristianismo era portador de uma verdade absoluta. Nem sequer, procuraram indagar
qual era a tese social do cristianismo primitivo, e qual era seu programa político...

Friedrich Engels consagrou a maior atenção possível a essas questões que nunca
deixaram de lhe interessar, e das quais tratou em trabalhos tais como Ludwig
Feuerbach, AntiDühring, Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado etc. A
herança literária de Engeis compõrta três trabalhos especialmente consagrados à história
do cristianismo nos seus começos: Bruno Bauer e o Cristianismo Primitivo (1882),

O Livro da Revelação (1883) e Contribuição à História do Cristianismo Primitivo


(1894), trabalhos em que apresenta um apanhado dos •êxitos obtidos no terreno da
crítica do. Nôvo Testamento, e em que desenvolve uma teoria nova a respeito das
origens cristãs, do ponto de vista do materialismo científico.

Engeis fixou sua atenção nas pesquisas relativas às raízes ideológicas e à natureza social
do cristianismo original, caracterizado por êle como uma religião de escravos e de
oprimidos. Êle frisou que, nos seus princípios, a cristandade englobava um número
infinito de seitas que se degladiavam numa verdadeira straggle for li/e4, e cuja ideologia
não passava de um amontoado de preconceitos e superstições. E que, se o cristianismo
primitivo pôde, apesar de tudo, conquistar as massas
4 Luta pela vida. (Nota do Tradutor.)

INTRODUÇÃO 17

e a elas se impor finalmente, foi porque êle indicava uma solução para as multidões
oprimidas e prêsas de um desespêro e de uma miséria sem nome, solução ilusória, é
certo, porquanto situava-a no outro mundo. Entre os fatôres que favoreceram a difusão
do cristianismo na Antigüidade, Engeis indica a ausência do ritual entre seus primeiros
adeptos, o que destruía as separações étnicas e sociais entre os homens, e proclamava a
idéia de igualdade, se bem que num sentido puramente negativo, uma vez que se tratava
da igualdade do pecado original e diante de Deus. Resumindo suas idéias sôbre o
cristianismo primitivo, Engeis assinala seu espírito rebelde, a sêde sã de vingança dos
primeiros cristãos contra a poder romano.

O comêço do nosso século foi marcado por um nôvo passQ importante no domínio do
estudo das raízes ideológicas do cristianismo. Um grupo de historiadores burgueses,
crentes na sua maioria, e que é conhecido pelo nome de «Escola Mitológica)>,
ultrapassou consideràvelmente os representantes da Escola de Tubingue no que
concerne à crítica do Nôvo Testamento. Tais histriadores proclamaram que não se
dispõe de qualquer prova cientificamente válida a respeito da existência histórica de
Jesus. Tal idéia tinha sido enunciada primeiramente pelos pensadores franceses do
século XVIII, mas foram, sobretudo, os trabalhos da Escola de Tubingue que
contribuíram para o aparecimento da Escola mitológica, porque esta é, de fato, uma
continuadora daquela. As dúvidas a respeito da realidade histórica do suposto fundador
do cristianismo tornaram-se legítimas, com efeito, desde que se estabeleceu que os
evangelhos datavam do século II. E tal realidade foi negada por J. Robertson, W. B.
Smith, A. Niemojevsqui, A. Drews,

P. Couchoud e muitos outros escritores.5

Notemos que a maioria, senão a totalidade, dos representantes da Escola Mitológica,


assim como os da Escola de Tubingue, seus predecessores, estavam longe do marxismo,
mas também do ateísmo. Um grande número dêles buscava «purificar», «melhorar» o
cristianismo, conservando-lhe a auréola da sua superioridade moral sôbre as outras
religiões, trocavam. segundo a expressão de Lenine, «os velho preconceitos
apodrecidos», por «preconceitos novos, ainda mais repugnantes e mais infames.»6
Unânimes no que concerne ao caráter mítico

5 Seus trabalhos principais: J. ROBERTSON: Os Mitos Esangélicos; A,


NIEMOJEVSQUI A Filosofia da Vida de Jesus; A. DREws: O Mito de Jesus e o
Gnosticismo, Fonte do Cristianismo; P. Couci-our: Le .Myst lre de Jésus et Le
Crépusczle de Dieu; E. MOUTIER-ROUSSET: Le Cbrist -t-jl Existá?

6 V. LENINE: “Du Rôle du Materialisme Militant”, (1922), is JC. Marx et sa Doctrine,


Ëd. Sociales, Paris, 1953, pág. 88.
A ORIGEM DO CRISTIANISMO

de Cristo, professavam êsses historiadores opiniões por vêzes muito diferentes a


respeito da origem dessa lenda e das fontes históricas dë que teria saído a imagem
evangélica de Jesus. Tendo criticado de maneira aprofundada os textos do Nôvo
Testamento, os representantes da corrente dita mitológica não souberam indicar suas
fontes de modo suficientemente claro, e isso por diversas razões, entre as quais convém
assinalar, em primeiro lugar, a pobreza da documentação de que dispunham.

Uma das têntativas mais sérias para resolver o problema da origem do mito de Cristo,
foi a do inglês John Robertson, no comêço do nosso século. Êle continuou as pesquisas
do 5eu compatriota, o etnólogo J. Frazer, que numa obra conhecida, The Golden Bough,
tentou demonstrar, valendo-se do método cõmparativo, a existência de um paralelismo
nos usos e cos— lumes dos diversos povos, e de analogias em sua evolução espiritual.
Segundo êste sábio, as raízes da religião devem ser buscadas nos ritos mágicos das
tribos primitivas. Assinala que muitas dessas tribos professavam o culto do deus morto
e ressuscitado e tinham, em particular, o hábito de matar seus chefes ou os filhos dêstes,
acreditando assegurar por tal preço a fertilidade do solo. Aplicando esta idéia como fio
condutor para o estudo do problema da origem da religião cristã, Robertson chegou à
conclusão de que se assistia, aqui também, ao mesmo processo, devendo isto significar
que o mito evangélico nasceu de representações religiosas precedentes. Descobriu
certos traços de um culto de Jesus anterior ao cristianismà, e observou que várias
passagens do Evangelho Segundo Marcos e de outros sinóticos limitam-se a expor
cenas de um rito que tinha por tema «Paixões» pré-cristãs.

A indicação de Robertson a respeito da necessidade de se estudarem as raízes pré-cristãs


do culto de Jesus foi’ seguida por outros historiadores da Escola Mitológica,
notadamente Thomas Whittaker e W. Smith. O primeiro achava que o culto evangélico
de Jesus deriva diretamente do culto judaico pré monoteísta de Josué, que figura no
Velho Testamento como continuador de Moisés, depois da sua morte, O episódio
bíblico em que Josué, filho de Nun, manda o Sol parar prova satisfatàriamente seu papel
divino desde o comêço. W. Smith, erudito americano, procurava demonstrar, por seu
lado, que, muito antes do aparecimento do cristianismo, o nome de Jesus era apenas um
epiteto aplicado ao deus hebreu Jeová, e que aquêles que veneravam Jeová-Jesus
faziam-se chamar nazarenos. O mito de Jesus nos evangelhos é interpretado por W.
Smith como uma pura alegoria.

Arthur Drews é um dos mais conhecidos representantes da Escola Mitológica, mas o


seu mérito principal foi ter pôsto ao

18
INTRODUÇÃO 19

alcance do leitor médio as idéias e os argumentos dos seus predecessores.


Diferentemente de W. Smith, achava que o cristianismo proviera do gnosticismo.7

Nos começos dêste século, A. Niemojevsqui, publicista polonês, partindo de analogias


superficiais, tentou estabelecer um liame entre o mito evangélico do Cristo, e os temas
astrológicos. Porém, foi P. Couchoud, amigo íntimo de Anatole Erance, que trouxe
novas contribuições ao estudo das raízes históricas dêsse mito. Demonstrou de maneira
convincente que a objeção mais séria contra a tese da existência real de Jesus provinha
da representação dêste sob um aspecto divino nos mais antigos escritos cristãos: o
Apocalípse de João, as Epístolas atribuidas ao apóstolo Paulo. Para os primeiros
cristãos, Jesus não era um homem, mas um cordeiro imolado «desde a fundação do
mundo». Segundo Couchoud, a biografia terrestre do Cristo só apareceu no século II,
em seqüência ao crescimento do número de adeptos da nova religião, provenientes dos
meios pagãos, e foi-se enriquecendo gradualmente com tôda espécie de detalhes.
Segundo a opinião dêste autor, o primeiro evangelho foi composto por Márcio, herético
dos meados do II século, filósofo gnóstico. Os evangelhos canônicos teriam sido
elaborados apenas para se oporem ao evangelho marcionita.

As idéias de Couchoud foram desenvolvidas nos trabalhos do seu compatriota, Edouard


Dujardin, que, partindo de considerações gerais, assinala que, se a história ignorava
casos de divinização de profetas, os casos de antropomorfização dos deuses eram, ao
contrário, bastante freqüentes. A literatura cristã dos primeiros tempos apresentava
Jesus não sob o aspeto de um homem, mas de uma divindade. Segundo Dujardin, o
cristianismo teria aparecido com os seus traços específicos lá pelo ano 27 de nossa era,
quando, depois da execução de um rito em que se representavam cenas que tinham por
tema a morte e a ressurreição de Jesus, divindade pré-cristã, um grupo de crentes, aos
quais se deu o nome de apóstolos, afirmaram que tinham visto com seus próprios olhos
a ressurreição de Jesus Cristo, herói do drama sagrado. Dujardin considera que a lenda
evangélica foi composta posteriormente à Guerra dos Judeus, que se desenrolou de 66 a
73, época em que o cristianismo já se considera o sucessor do judaísmo, que entrara em
decadência.

Tais eram, em poucas palavras, as idéias principais da Escola Mitológica no que


concerne às fontes da lenda evan7 Doutrina mística sôbre a gnose, conhecimento da
pretensa ‘essênda divina”, O gnosticismo difundiu-se nas regiões orientais do Império
Romano durante os três primeiros séculos da nossa era.

20

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

gélica. Nem tôdas as suas conjecturas são aceitáveis, particularmente as de


Niemojevisqui e as de Dujardin. A concepção do culto pré-cristão do Jesus-Deus,
transformado no decorrer do II século em Jesus-homem, nos parece extremamente
fecunda nos quadros dos nossos conhecimentos atuais, e vimos que muitos
pesquisadores a confirmam. A principal aquisição da Escola Mitológica no seu conjunto
consiste, portanto, no. seu exame crítico do mito evangélico de Jesus, Homem-Deus.

Não menos significativa que o aparecimento de uma escola mitológica inteira é a


evolução que as concepções da escola dita histórica, isto é, a que admite a existência
terrestre de Jesus, conheceu depois de um século.

.0 exemplo seguinte mostra os progressos da crítica da lenda evangélica, mesmo nos


meios católicos. Em fins do século X1X, os escritos de Ernesto Renan produziram uma
enorme impressão sôbre os crentes; êle afirmava que o relato dos evanvelhos sinóticos
sôbre Jesus era quase que inteiramente autêntido, mas apresentava o Cristo como uma
criatura humana.

Nos começos do nosso século, entre as obras postas no Índex, proibidas aos leitores
católicos, figuravam as de Louis Duchesne e as de Alfred Loisy, grandes especialistas
da história do cristianismo primitivo. O Abade A. Loisy, um dos fundadores do
modernismo católico, foi excomungado em 1908 pela simples razão de ter querido
estudar as fontes cristãs à luz da ciência, e isto apesar de sua fidelidade à Igreja.8 As
conclusões a que chegou após a análise dessas fontes coincidem, em muitos pontos,
com as conclusões dos representantes da Escola de Tubingue. Acha, igualmente, que os
documentos chegados até nós nada contêm de probante sôbre a vida de jesus e, em
geral, sôbre a ideologia das primeiras comunidades cristãs. A seus olhos, o relato
evangélico justifica apenas a hipótese da existência de um protótipo longínquo do Cristo
que teria servido de modêlo para a lenda conhecida.

A. Loisy, a êste respeito, participava das opiniões dos teólogos liberais do seu tempo,
mas, posteriormente, êle foi muito além, pondo em dúvida a autenticidade das Epístolas
paulinianas. Segundo êle, essas Epístolas teriam sido largamente refundidas, em. várias
ocasiões, no curso do século II, antes de serem incluídas no Nôvo Testamento, de sorte
que apenas uma parte ínfima do seu texto remontaria à época em que o apóstolo Paulo
teria vivido. Ao têrmo de suas longas pesquisas, Loisy desfechou um rude golpe na
tradição ortodoxa, ao provar que os livros do Nôvo Testamento não fornecem

8 Ver F. HEILER: Der Vater des Katholischea Modernismes Aijie d Loisy (1857-
1940),. Munique, 1947, pág. 72.
INTRODUÇÃO 21

qualquer dado válido sôbre Jesus, salvo certas reminiscências relativas à sua
personalidade e à sua morte.

De que modo êste homem profundamente religioso, êste abade, chegou a um ponto de
vista tão radicalmente contrário ao dogma da Igreja Católica e da Protestante? Jovem
ainda, quando estudava no Instituto Católico de Paris, tinha notadô que os evangelhos
sinóticos se contradizem, particularmente quando dão genealogias diferentes do Cristo.
(Nos evangelhos, segundo Mateus, e segundo Lucas.) Os argumentos que seus
professôres opunham à crítica racionalista dos evangelhos eram tão frágeis que êle
mesmo se pôs a estudar essa crítia, movido pelo desejo sincero de defender mais
eficazmente os dogmas do catolicismo. Em suas Memoires9, Alfred Loisy reproduz o
texto da prece em que pedia ao Senhor vinte anos de saúde, paciência e amor ao
trabalho para defender a Igreja contra seus inimigos no campo científico. Porém, êsses
vinte anos de esforços o conduziram a um resultado absolutamente diferente.

Padre, foi, em primeiro lugar, privado do direito de ensinar teologia, depois, seus livros
foram postos no Índex, e êle mesmo viu-se excomungado, pois não quis retratar
piblicamente suas obras, tal como o exigia o Vaticano. Por menos científico que seja, o
exame das origens do cristianismo revela-se incompatível com a fé católica, mesmo
para êste abade bem intencionado...

Não se imagine, contudo, que é apenas o Vaticano que se opõe com tôdas as suas fôrças
à análise científica das origens do cristianismo, particularmente a Pontifícia Comissão
Bíblica, encarregada de sufocar a mínima veleidade de crítica racionalista às santas
escrituras. Friedrich Heiler, biógrafo, muito cristão aliás, de Alfred Loisy, nota à página
225 da obra anteriormente citada: «. . . As pesquisas em nome da verdade chocam-se
não apenas com a resistência da Igreja Romana, mas, também, com a de tôdas as outras
comunidades cristãs, com raras exceções! Além da Cúria de Roma, as ortodoxias
protestantes se encarniçaram contra muitos espíritos nobres e audazes.»

Até mesmo um pastor protestante tal como Albert Schweitzer, . um dos mais eminentes
pesquisadores contemporâneos no domínio da história do cristianismo primitivo, não
pôde evitar as perseguições, ainda que sua vida possa servir de modêlo de virtudes
cristãs.10 Filho de um pastor alsaciano, êle próprio Doutor ém Teologia, na idade de 30
anos tomou a decisão de deixar a Europa, onde tinha a existência garantida, para

9 Memoires, T. 1, pág. 103.

10 W. AUGUSTNY: Alberi Schweitzer und De, Berlim, 1947.

22 A ORIGEM DO CRISTIANISMO

ir ao Congo tratar dos negros doentes, na qualidade de médico. Semelhante


manifestação de amor ao próximo deveria despertar a admiração de todos os cristãos
sinceros. Porém, à semelhança de Loisy, Schweitzer tinha começado muito cedo a
duvidar da autenticidade dos relatos evangélicos. . . Na obra a que nos referimos acima,
êle se impôs o dever de proclamar que Jesus não era o Filho de Deus, nem mesmo o
Messias, mas julgava-se apenas o enviado do Senhor na Terra. Segundo Schweitzer,
Jesus permanece nos nossos dias «tão desconhecido e obscuro, como durante a
Antigüidade.» (Op. cit., pág. 401.) Êle negava a maioria dos dogmas da teologia
católica e mesmo os da liberal, e foi por isso que as autoridades de uma sociedade de
missionários se opuseram longamente à sua partida para o Congo, mesmo na qualidade
de simples médico; não lhe deram permissão para tanto, a não ser quando êle conseguiu
os meios para construir, a sua própria custa, um hospital em Lambarené, e prometeu
abster-se de divulgar suas opiniões na África.

Segundo as opiniões de Loisy e as de Schweitzer, ambos teólogos, os evangelhos não


podem servir de fonte ao historiador uma vez que êles não passam de um amontoado de
mitos e. lendas superpostas em diversas épocas. Segundo Schweit. zer, os evangelhos
descrevem apenas um ano da vida de Jesus Cristo, e segundo Loisy, menos ainda.

Referindo-se aos historiadores contemporâneos do cristianismo primitivo, como A.


Schweitzer, C. Guignebert e R. Bultmann 11, A. Robertson constata que, aos olhos
dêles, a «única coisa que sobra entre os escombros da lenda desacreditada (de Jesus) é
que o homem a respeito de cuja vida pouco ou simplesmente nada se sabe, o homem
que segundo Schweitzer nunca declarou psblicamente ser o Messias, que, segundo
Bultmann, não se julgava tal e, segundo Guignebert, talvez não se chamasse Jesus, a
única coisa que resta, é que êste homem foi crucificado por Pilatos e tornou-se o herói
de um romance teológico composto pelas gerações seguintes para servir a seus próprios
interesses. »1 2

11 R. BULTMANN, um dos mais importantes teólogos liberais contemporâneos,


fundador da corrente que se chama de desmitificação, assi nabo a presença nos
evangelhos de numerosos mitos absolutamente contrários ao bom senso, tais como o da
Imaculada Conceição, da ressurreição etc. Afirmou que, verificando, por aqui e por lá,
vestígios da fé dos primeiros cristãos na Revelação, não a encontrava no Nôvo
Tesamenio, e se recusou a crer na incarnação, milagre “ocorrido há 1950 anos.” K.
JASPER5 e R. BULTMANN: Die Prage der Enmy.thologisierung, Munique, 1954, pág.
69.

12 A. R0BERT50N: Jésas: Myth or History, Londres, 1946, pág. 39.


INTRODUÇÃO 23

Vemos que os historiadores modernos do cristianismo primitivo se caracterizam por sua


negação da pretensa veracidade dos detalhes contidos no mito evangélico de Jesus
Cristo, mesmo quando acreditam que êle tenha existido. Os resultados obtidos no
decorrer de um século pela crítica científica dos primeiros escritos cristãos colocaram
certos adeptos da escola dita histórica na obrigação de aceitar do relato evangélico
apenas a comunicação referente à existência de um profeta judeu crucificado por Pôncio
Pilatos, e isto micamente como hipótese de trabalho. A seus olhos, Jesus já deixou de
ser Homem-Deus dos evangelhos e até mesmo o Cristo isento dos atributos
sobrenaturais proposto pelos representantes da Escola de Tubingue; êle não passa, na
maioria das vêzes, de uma abstração que serve melhor do que as outras para explicar a
gênese da doutrina cristã.

A esta escola pertence o inglês Archibald Robertson, historiador progressista cuja obra a
respeito das origens do cristianismo foi recentemente traduzida em russo, e que é
preciso não confundir com John Robertson, um dos fundadores da Escola Mitológica.
Interessado em esclarecer êste problema à luz do materialismo, êste historiador busca as
raízes sociais e econômicas do cristianismo primitivo na conjunctura real na Palestina e
no Império Romano em geral, no alvorecer de nossa era. Apesar de considerar que o
cristianismo primitivo era a religião dos oprimidos e dos deserdados, êle permanece um
partidário convencido da Escola Histórica,

Notemos que os adeptos desta escola não são unânimes em admitir a existência de um
protótipo de Jesus finicamente a titulo de hipótese que facilite a compreensão do
aparecimento do conhecido mito. E preciso não esquecer que o problema das origens do
cristianismo sempre ultrapassou, o quadro da ciência. As declarações a respeito da
existência real de Cristo mistura-se quase sempre o desejo oculto de conciliar a ciência e
, a religião, de adaptar esta àquela. Ajuntemos que nos países capitalistas êste problema
é estudado quase que exclusivamente por teólogos, cujo bem-estar material depende do
reconhecime to da autenticidade do relato evangélico. Se pensarmos nas palavras de
Schweitzer — «O exame crítico da vida de Jesus é para os teólogos uma escola de
honestidade» — é necessário constatar que poucos entre êles levam isso em conta. -
Pode-se, com efeito, contar nos dedos os padres que, a exemplo de Bruno Bauer, Alfred
Loisy, Albert Schweitzei, não hesitam em pôr em perigo seu confôrto material e sua
posição social ao defender suas opiniões científicas. Habitualmente, é o contrário que se
dá: vimos que David Strauss renunciou pro
24

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

visàriamente às suas conclusões avançadas, na esperança de obter uma cátedra na


universidade.

A solução do problema relativo às fontes do mito evangélico de Jesus tornou-se ainda


mais árduo pelo fato de a maioria dos documentos históricos que poderiam esclarecê-lo
terem sido destruídos pela Igreja triunfante, enquanto que aquêles de que dispomos
foram refundidos ou, simplesmente, falsificados. Ainda mesmo nos nossos dias, sua
publicação é monopolizada nos países capitalistas pela casta dos teólogos. E necessário
ter tudo isso em conta se quisermos ter uma idéia exata dos obstáculos com que se
defronta todo pesquisador objetivo.

O historiador das origens cristãs não pode deixar de valer-se dos trabalhos da Escola
Mitológica e da Escola Histórica, assim como dos resultados de outras investigações
sôbre

o Nôvo Testamento. As conclusões dos representantes da Escola de Tubingue a respeito


de os evangelhos canônicos terem sido compostos em data menos recuada do que
aquela que se admitia, conclusões irrefutáveis do ponto de vista científico, obrigaram os
teólogos das diversas Igrejas a tentarem lançar uma ponte para cobrir o espaço de um
século entre a época em que, tradicionalmente, se situava a vida de Jesus (isto é, o
primeiro têrço do século 1), e a época do aparecimento dos textos evangélicos I,no
século II). No limiar do nosso século, várias teorias foram formuladas com o fim de
salvar o prestígio dos evangelhos, esclarecendo a maneira pela qual êles teriam sido
compostos. Dessas teorias, as principais são as seguintes: 1) a teoria da tradiçco
(Traditionshypothese, segundo a terminologia alemã), segundo a qual os evangelistas
compuseram seus evangelhos independentemente, utilizando-se apenas de tradição oral
proveniente das primeiras comunidades cristãs; 2) a teoria das !ontes
(Quellenhypothese), que afirma que todos os evangelistas dispuseram dos mesmos
documentos e nêles se fundaram cada um a seu modo; finalmente, 3) a teoria da
utilização (Benutzungshypothese), segundo a qual os evangelistas teriam composto os
evangelhos conhecidos à base de outros, anteriormente. A discussão entre os
representantes dessas correntes e suas subdivisões foi acompanhada da publicação de
numerosas obras, sem que os teólogos tenham podido chegar a uma conclusão aceitável
por todos. Mas, tal discussão teve pelo menos um aspecto positivo, a saber: fêz avançar
de muito os estudos sôbre o problema dos evangelhos sinóticos. Estabeleceu-se,
particularmente, que o mais antigo entre êles era o segundo e não o primeiro, como o
supunha a Escola de Tubingue. A parte comum dos evangelhos segundo Mateus e
segundo Lucas, que não figura no Evangelho Segundo

INTRODUÇÃO

25
Marcos, foi submetida a um exame detalhado, o que permitiu apreender melhor as
tendências em que se haviam inspirado ao recolher e redigir os evangelhos canônicos.
Outros êxitos parciais foram obtidos no que concerne à análise dos sinóticos, mas a
«ponte» de que falamos acima não pôde ser lançada:

as teorias sôbre tôdas as espéceis de proto-evangelhos e «fontes das fontes»


permaneceram o que eram: hipóteses gratuitas. O fracasso dessas tentativas decorre do
caráter irrealizável da tarefa que os teólogos se propunham buscando, em primeiro
lugar, provas da existência histórica de Jesus, enquanto que as fontes de que dispomos
mostram que a evolução se fêz no sentido contrário, isto é, do Jesus-Deus, ao Jesus-
Homem dos evangelhos. Na multidão de obras consagradas ao estudo da literatura cristã
primitiva, algumas há que contribuíram em larga medida para desenvolver nossos
conhecimentos a respeito da história das origens do cristiánismo, apesar das concepções
idealistas dos seus autores, particularmente os trabalhos especiais relativos a tal ou qual
escrito cristão dos primeiros séculos, tal ou qual aspecto do problema que nos interessa,
como o aparecimento das diferentes heresias, a constituição do episcopado, e assim por
diante, além de tôdas as espécies de obras de referência e de concordância dos têrmos
que figuram na Bíblia etc., que nenhum historiador soviético do cristianismo pode
dispensar.

Os livros aparecidos depois da guerra se revelam, contudo, em nítida regressão no


domínio do estudo do cristianismo original. A literatura católica ortodoxa proclama com
redo brada energia o caráter sagrado dos textos canônicos, tal como o faz H. Daniel-
Rops em Je’sus eu sou Temps, Paris, 1946, obra em que êle admite todos os milagres
descritos no Novo Testamento, a Imaculada Conceição inclusive, e consagra mais

de 600 páginas do seu livro a expor o mito evangélico de acôrdo com a tradição da
Igreja. Reconhecendo, em parte, os méritos do método histórico aplicado ao estudo dos
Evangelhos, êste autor sente-se no dever de lembrar que a análise do Nôvo Testamento
não deve ter senão um único fim: o de afastar as dúvidas a respeito da sua veracidade.
Em lugar de buscar as raízes da ideologia cristã primitiva nas condições da vida material
e espiritual da população mediterrânea na alvorada de nossa era, Daniel-Rops não se
cansa de sublinhar o caráter «excepcional» do cristianismo. Revelação vinda do alto. O

tom de sua polêmica com os teólogos liberais trai contudo o desejo de encontrar uma
posição comum a fim de salvar a tradição ortodoxa em face da ofensiva da crítica
radical.

A mesma tendência se apresenta ainda mais claramente no livro do jesuíta J. Daniélou,


Dialogues Avec les Marxistes, les
26

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

Existentialistes, les Protestants, les Juijs, l’Hindouisme, Paris, 1948. À página 55 dessa
obra, o seu autor exclama com fingido espanto: «A quem se poderia fazer crer que a
religião de S. Paulo é o reflexo das condições econômicas da civilização mediterrânea
do século 1?» Afirmando que não se pode descobrir desacordos fundamentais entre
católicos e protestantes quanto aos dogmas e ao resto, êle qualifica de escandaloso o
cisma da Igreja, opinião compartilhada por alguns protestantes, entre o quais Ch.
Westphal que, em carta endereçada a Daniélou, e que êste último cita em seu livro
(págs. 129-139), proclama a necessidade de esquecer as divergências entre o
catolicismo e o protestantismo, pois, acrescenta- êle, «talvez a existência mesma da
Igreja, no século em que estamos, vai depender dessa conversão. Neste sentido também,
o tempo urge.» Assim, vemos os cleiqcais de tôdas as côres pregarem a união em face
do perigo que os ameaça. . . E isto, naturalmente, à base de uma ortodoxia vagamente
renovada, depurada de - suas obscuridades mais flagrantes, mas sempre a mesma quanto
ao fundo e ao preço do esquecimento das conclusões críticas da Escola Mitológica e
também daquelas, muito menos radicais, da Escola de Tubingue. De fato, torna-se cada
vez mais difícil descobrir qualquer diferença entre os teólogos - católicos, e os
protestantes, uma vez que êstes últimos encaramos textos do Nôvo Testamento de um
modo cada vez mais dogmático. É preciso acentuar que esta atitude de sua parte não
decorre de um progresso da ciência histórica aplicada aos estudos dos evangelhos; ela
apenas reflete a renúncia da ciência burguesa às tradições liberais do seu passado.
Atualmente, a Escola Mitológica não tem continuadores no Ocidente, s-e bem que as
conclusões críticas enunciadas por seus representantes nada tenham perdido do seu
valor.

Os escritos de P. Alfaricl3 constituem, a êsse respeito, a única exceção conhecida pelo


autor destas linhas. Sua biografia lembra sob muitos aspectos a de Alfred Loisy, mas êle
foi mais longe que êste último nas suas conclusões. Fêz seus estudos no Instituto
Católico mas, ordenado padre, renunciou a êsse título em 1910, sob a influência da
excomunhão de Loisy, cujas idéias êle admirava. Em 1932, foi por sua vez -
excomungado, por ter defendído pi.’iblícamente as teses -da Escola Mitológica. Durante
um quarto de século, P. Alfaric ensinou história da religião na Universidade de
Estrasburgo. Em 1945, fundou o Círculo Ernest Renan, sociedade que se propôs o fim
de estudar o cristianismo primitivo do ponto de vista leigo.

13 Ver P.- ALFARXC: A l’Éçole de la Raison. Eudes sar les O-eigines Chruíiernes,
Paris, 1957.

INTRODUÇÃO

27

A partir dessa data, tem participado cada vez rnaís enèrgicamente da ação da União
Racionalista dirigida por F. Joliot-Curíe.

Como Alfred Loisy, Prosper Alfaric assinalou nas suas Memoires a «dificuldade sem
cessar crescente de conciliar a fé tradicional, com urna razão sempre mais exigente.»
Mas, diferentemente do seu predecessor, êle achava que a vida de Jesus apresenta
muitas semelhanças com os mitos de Osíris, de Mitra e de Atis. Durante os últimos anos
de sua vida, acompanhou com viva atenção as escavações arqueológicas na região de
Coumrâ, e, estudando os manuscritos que aí se encontraram, foi levado à conclusão que
êle eram o elo que faltava até então à história do cristianismo primitivo, que êles
demonstravam que êste tinhaS nascido no seio da seita dos essênios.
Seu biógrafo relata certa passagem de sua vida que muito bem o caracteriza. Como lhes
apresentassem alguém muito susceptível em prosseguir as pesquisas a respeito da
história das origens do cristianismo, êle refletiu a respeito dos méritos do candidato, e
respondeu: «Inegàvelmente é um sábio de valor, mas tem muito receio de aborrecer o
padre Daniélou. . . »

P. Alfaríc foí o último representante da Escola Mitológica

na França.

A estagnação da literatura burguesa de após-guerra consagrada às origens cristãs não


impede que se possa lançar no seu ativo a atenção que ela dispensa aos documentos
recentemente descobertos pelos arqueólogos. Por exemplo, os rolos de Courmrã, que
são de grande importância para o estudo das origens cristãs, foram objeto de alguns
artigos e de numerosos livros. Outros documentos novos que podem esclarecer esta
questão são também estudados. atentamente no Ocidente.

Os historiadores soviéticos têm, igualmente, trazido sua contribuição ao estudo da


história das origens do cristíanísmo. Sem falar da publicação na U.R.S.S. de uma
multidão de brochuras de vulgarízação, assim como da tradução para o russo de quase
tôdas as obras estrangeiras importantes sôbre êsse assunto, numerosos dos nossos
especialistas se fazem notar pela amplítude de suas investigações originais. Graças à
separação da Igreja e do Estado em nosso país depois da Grande Revolução Socialista -
de Outubro, os historiadores da religião e do cristianismo, em particular, têm encontrado
entre nós, pela primeira vez no mundo, a possibilidade de estudar êstes problemas de
um modo verdadeiramente livre. A fundação de museus anti-religiosos e de revistas
consagradas à história da religião ajuda os nossos sábios a fazer progredir os estudos
das
28 A ORIGEM DO CRISTIANISMO

origens cristãs. Eles publicaram durante os últimos decênios muitas obras de valor nesse
domínio. Já nas décadas de 20 e de 30, apareciam Como Nascem e Morrem os Deuses e
as Deusas, de J. Iaroslavsqui, vários escritos devidos à pena de

N. Roumiantsev tais como: Morte e Ressurreição dõ Salvador (estudo da mitologia


comparada), O Cristo Pré-cristão, O Apocalípse de João. Porém, entre os trabalhos mais
importantes sôbre êste assunto nos últimos tempos, cumpre analisar com total
prioridade os de A. Ranovitch e os do Acadêmico R. Viper.

O primeiro é o autor de grande número de artigos e de três obras capitais sôbre o


cristianismo nos seus começos: As Fontes Primordiais da História do Cristianismo
Primitivo. Materiais e Documentos, 1933, As Críticas Antigas do Cristianismo
(Fragmentos de Luciano, Por/iro, Celso e Outros Escritores), 1935, Ensaios Sôbre a
Igreja Cristã Primitiva, 1941. Estes livros, com exclusão do terceiro, se julgados pelos
títulos, parecem ser simples coleções de textos; basta, porém, folheá-los para se
verificar o imenso trabalho que o escritor dispendeu, não apenas quanto à escolha e à
tradução dos textos que êle cita, mas ainda para a sua interpretação à luz da ciência
histórica. Nos Ensaios, a melhor monografia soviética sôbre as origens cristãs, A.
Ranovitch apresenta o balanço de suas longas pesquisas cujas conclusões principais são
expostas na presente obra. É preciso acrescentar, contudo, que as descobertas recentes
de novos documentos, de uma grande importância, sôbre o cristianismo primitivo nos
impuseram o dever de reconsiderar algumas de suas afirmações com o objetivo de as
completar, e de as tornar mais precisas.

O Acadêmico Viper publicou após a guerra dois livros:

O Nascimento da Literatura Cristã, 1946, e Roma e o Cristianismo Primitivo, 1956. O


primeiro é consagrado à análise dos escritos cristãos primitivos, incluídos ou não no
No’vo Testamento. Depois de o ter examinado minuciosamente, Ranovitch emitiu
conclusões que aceitamos inteiramente. No segundo,

R. Viper, desenvolvendo as idéias de Bruno Bauer sôbre a estreita ligação entre o


cristianismo e a ideologia do antigo mundo grego-romano e partindo da data da
composição de alguns dos escritos cristãos que êle mesmo estabeleceu, considera êstes
últimos condicionados à ideologia e ao estado de espírito dos meios dominantes no
Império Romano, que conhecemos através das obras dos escritores latinos e gregos da
Antigüidade.

O Acadêmico Viper demonstra de modo convincente, se bem que exagerando um


pouco, que o texto dos evangelhos canônicos e a constituição da Igreja Cristã não
podem ser anteriores aos meados do século II e que, por essa época, a
INTRODUÇÃO 29

ideologia cristã refletia já, em grande medida, a das classes possuidoras da antiga
sociedade romana. Sua negação da existência .do cristianismo durante a segunda metade
do século 1 e a primeira metade do século II suscita, contudo, graves objeções pelo fato
de não ter êle levado em conta papiros e monumentos ristãos que datam justamente da
primeira metade do século II. Este historiador não aceita a idéia de que o cristianismo
nos seus começos fôsse a religião dos oprimidos; considera que êle refletia, desde o seu
nascimento, os interêsses das classes possuidoras, sem poder explicar de que maneira a
ideologia cristã pôde aparecer de repente, quase que inteiramente elaborada.

Entre os últimos trabalhos dos historiadores soviéticos do cristianismo primitivo, um


dos mais dignos de atenção é o artigo «Questões Essenciais das Origens do
Cristianismo», publicado por S. Covalev, em 1958, no Anuário do Museu de História da
Religião e do Ateísmo. Apresentando o balanço das pesquisas procedidas nesse domínio
pelos sábios soviéticos, e propondo a título preliminar novas soluções, Covalev sustenta
que a questão da realidade histórica de Jesus não deve de modo algum figurar no
primeiro plano da historiografia do cristianismo, e apela para que todos os esforços
sejam orien-. tados em função do esclarecimento das causas materiais, sociais e
econômicas da aparição da religião cristã. Situa condicional- mente o nascimento do
cristianismo na Palestina e assinala, pela primeira vez, de um modo bastante nítido, a
diferença radical entre a imagem de Jesus e os traços dos outros personagens
evangélicos. Enquanto que o Crísto se caracteriza

•nos primeiros escritos cristãos por sua evolução, da categoria de uma divindade, para a
de um Homem-Deus, os apóstolos aparecem no Nôvo Testamento na ualidade de
simples mortais podendo ter, por conseguinte, protótipos históricos reais, ainda que
aureolados por um clarão legendário.

Após a descoberta dos manuscritos do Mar Morto, os pesquisadores materialistas


discutem vivamente nestes últimos tempos a questão de se saber onde, geogràficamente,
o cristianismo nasceu. A. Donini, pesquisador italiano, declara em seus trabalhos estar
absolutamente persuadido de que êsses documentos representam a malha que faltava à
longa cadeia de fatos que conduzem ao nascimento da religião cristã. P. Alfaric é quase
da mesma opinião, já o dissemos, e o inglês A. Robertson, historiador materialista, acha
que o relato evangélico se inspirou nas atividades de um revolucionário palestino do
mundo antigo chamado Jesus. Retornaremos muitas vêzes aos argumentos apresentados
pdí’ êsses escritores.

Os trabalhos dos historiadores soviéticos consagrados a algumas províncias do Império


Romano, particularmente às

30 A ORIGEM DO CRISTJÀNISMO
orientais, revestem-se de uma grande importância para o estudo aprofundado das
origens do cristianismo no decorrer dos três primeiros séculos da era nova. Citemos,
entre êsses escritos, o livro de A. Ranovitch, As Províncias Orientais do Império
Romano, do Século 1 ao III, 1949, alguns artigos de E. Staçrmann sôbre a ideologia da
população laboriosa do Império Romano: «As Revoltas Africanas do Século III»,
«Reflexo das Contradições de Classe no Culto de Hércules nos Séculos II e III», «As
Perseguições dos Cristãos no III século», «Sôbre a História das Correntes Ideológicas
nos Séculos II e III». Não podemos recordar aqui tudo aquilo que já se escreveu entre
nós sôbre êsse assunto, porém mencionaremos ainda o trabalho de 1. Frantsev:
Contribuição à História do Aparecimçnto do Cristianismo no Egito. Digamos, enfim,
algumas palavras sôbre a obra recente de um historiador polonês, B. Lapiqui, A Cultura
Ética da Antiga Roma, e o Cristianismo Primitivo, 1958. Comparando os diversos
sistemas ideológicos da Roma antiga, com o cristianismo primitivo, B. Lapiqui afirma
que as fontes de que dispomos permitem distinguir duas correntes ideológicas
fundamentais no seio da sociedade romana na alvorada da nossa era: a corrente das
classes dominantes e aquela, essencialmente diferente, dos filósofos romanos, correntes
às quais a nova ideologia cristã se opunha rad.icalmente. Na opinião dêste escritor,
enquanto que os filósofos romanos, humanitários, colocavam o homem no centro de
tudo, a ideologia cristã era teocêntrica, e não humanitária, apesar do seu humanismo. As
conclusões de B. Lapiqui são, às vêzes, disçutíveis, porém sua obra não deixa de chamar
a atenção para um aspecto da ideologia cristã primitiva que é muito importante e que foi
pouco esclarecido até então na literatura marxista.

Os principais resultados do estudo das origens cristãs durante mais de um século e meio
podem ser resumidos como segue:

1. A análise objetiva e livre de influência religiosa dêste problema não é acessível


em cada época senão aos representantes das classes avançadas. No século XVIII
e durante a primeira metade do século XIX, historiadores burgueses lançaram os
fundamentos da crítica racionalista aos dogmas da Igreja, assinalaram as
contradições dos evangelhos, ensaiaram aplicar à literatura cristã primitiva os
métodos científicos de estudo dos documentos históricos em geral. Quando
renunciou ao seu papel progressista e tornou-se uma fôrça reacionária, seus
ideólogos estabeleceram como seu objetivo principal não esclarecer a verdadeira
evolução histórica da religião cristã, mas salvar
INTRODUÇÂO 31

na medida do possível o prestígio vacilante dos dogmas clericais. A tarefa de estudar


objetivamente, cientificamente, o cristianismo primitivo foi assumida pelos teóricos da
nova classe ascendente, o proletariado contemporâneo, os quais, utilizando as
descobertas dos seus predecessores e os dados recentes, buscam esclarecer as origens
cristãs em função das condições históricas que determinaram o aparecimento do
cristianismo, e, posterior- mente, o seu acesso à categoria de religião universal.

2. O exame concreto dos monumentos da literatura cristã primitiva permitiu que se


estabelecesse terem sido os evangelhos canônicos compostos no século II, terem sido
retocados várias vêzes, de tal modo que a ordem cronológica da composição dos
escritos evangélicos não corresponde, de modo algum, à ordem em que são
apresentados no Nôvo Testamento.

3. Quanto à realidade histórica de Jesus, questão que suscitou mais divergências e


discussões do que qualquer outra, chegou-se à conclusão de que os dados de que se
dispõe estão longe de a confirmar.

4. O desmentido dado a esta tese destrói inevitàvelmente, por outro lado, a concepção
tradicional de uma Igreja única, fundada desde os começos por apóstolos que visavam
assegurar a observação dos ensinamentos de Cristo. A Igreja proveio, ao contrário, de
uma infinidade de comunidades de crentes, muitas vêzes em luta umas contra as outras,
e não se constituiu senão no século II.

Uma vez provada a inconsistência do mito evangélico, devem os historiadores do


cristianismo abordar a tarefa muito mais importante de descobrir as fontes a partir das
quais se formou êste mito até a sua inclusão no Nôvo Testamento. E preciso admitir que
aquêles que se dedicam ao estudo do problema das origens cristãs concentrarão sua
atenção na história das antigas comunidades cristãs existentes nas cidades e províncias
do Império Romano, que estudarão muito especialmente as doutrinas heréticas e a luta
entre estas últimas e a Igreja nascente.
O autor da presente obra não se propôs nenhum objetivo de pesquisador. Impôs-se,
primeiro que tudo, a tarefa de expor, utilizando os documentos conhecidos há muito
tempo e as descobertas recentes, as condições que determinaram o aparecimento do
cristianismo, de assinalar as principais fases da evolução da ideologia cristã, de explicar,
finalmente, «como foi possível que as massas populares do Império Romano tives-

32 A ORIGEM DO CRISTIANISMO

sem preferido a tôdas as outras religiões esta absurdidade pregada pelos oprimidos e
pelos escravos. - . »14

Diferentemente dos autores que acham necessário descrever a história do cristianismo


primitivo até a época de Constantino, nós pararemos a nossa análise no limiar do século
III, uma vez que, subseqüentemente, o cristianismo aparece sob o aspecto de uma
religião já constituída, fortalecida por um código estabelecido, o Nôvo Testamento, e
por um aparelho administrativo, a Igreja. No século III, não se trata mais da formação
da religião nova, tema da nossa obra, mas da luta da religião cristã contra suas rivais
para a dominação no seio do Império Romano, circunstâncias que, sem excluir sua
evolução ulterior, a implicava, ao contrário, em vista da adaptação desta religião aos
interêsses das classes dominantes em Roma.

Dedicamos grande espaço nas páginas que se vão ler à análise dos evangelhos e a outros
escritos cristãos, bem como à data de sua composição. Sem isso, é impossível
apresentar um quadro histàricamente fiel da evolução do cristianismo, de pôr em
evidência as transformações sofridas por essa religião. Ao escrever êste livro, quis o
autor tratar, sobretudo, das questões referentes à gênese da imagem evangélica do
Cristo, da formação dos dogmas cristãos, da atitude dos ideólogos da nova religião em
face da escravidão e do poder secular, da composição social das comunidades cristãs
primitivas, do aparecimento do clero e das primeiras heresias.

14 K. Marx e F. ENGELS: Obras, Ed. Russa, T. XV pg. 603.


CAPÍTULO 1

AS FONTES DO CRISTIANISMO

O problema das fontes do cristianismo primitivo se distingue por sua excessiva


complexidade. O cristianismo apareceu como conseqüência das relações políticas e
sociais existentes sob o regime escravagista. As condições de vida dos judeus da
diáspora (os países da dispersão) tiveram também um papel determinante no nascimento
da nova religião e nas formas de sua organização. Ela iria se difundir ràpidamente
graças sobretudo à situação das massas populares, tanto das províncias romanas, como
da Itália. No que diz respeito aos elementos do nôvo culto, êles não devem sua origem
apenas. aos ritos e crenças religiosas dos antigos hebreus, mas, também, às religiões de
outros povos do Oriente Próximo. Daí, a necessidade de tomar como fontes da pré-
história do cristianismo, num sentido mais amplo, os inumeráveis monumentos de di.
versas sociedades mediterrâneas que datam de muitos séculos antes da nossa era.

No que concerne aos documentos ligados diretamente à história do cristianismo e


chegados até nós, dividem-se êles em dois grupos: documentos cristãos e não cristãos
que, por sua vez, são subdivididos para maior comodidade do exame. Ao primeiro
grupo pertencem: a) os escritos reconhecidos como sagrados pela Igreja e incluídos no
cânone (o Nôvo Testamento); b) os escritos dos apologistas cristãos (defensores da nova
fé) e dos Padres da Igreja; c) os apócrifos, escritos não incluídos no cânone por motivos
diversos, mas aprovados pela Igreja, e, além dêsses, obras e fragmentos de escritores
cristãos heréticos que se opuseram aos dogmas da Igreja; d) inscrições, papiros,
monumentos arqueológicos e outros que restaram das primeiras comunidades cristãs. Às
fontes não cristãs pertencem as obras dos escritores judeus e greco-romanos dos
primeiros séculos da nossa era.

Os documentos cristãos chegados até nós são muito mais abundantes do que os não
cristãos, e isso por duas razões: a) o interêsse que a igreja tinha de conservar Inícamente
os velhos escritos redigidos por ela própria, e b) sua tendênçia a destruir todos aquêles
que expunham a história do cristiánismo primitivo de modo contrário à sua
interpretação dos acontecimentos.

Quase todos os documentos existentes sôbre a cristandade nascente permaneceram


durante mais de quinze séculos nas

33
34 A ORIGEM DO CRISTIANISMO

mãos dos eclesiásticos. É isso que explica, primeiro, por que nos resta tão pouco da
abundante literatura anticristã nos textos cristãos dos primeiros tempos, e, segundo, as
numerosas falsificações e interpolações que êsses textos sofriam. É por isso que os
enigmas do aparecimento e dos começos do cristianismo só podem ser decifrados
penosamente, graças a um paciente estudo comparado dêsses textos, e aos esforços
conjugados de todos os especialistas.

1. FONTES CRISTÃS

Os escritos cristãos canônicos, em número de vinte e sete, compreendem s evangelhos


segundo Mateus, Marcos, Lucas e João, os Atos dos Apóstolos atribuídos a Lucas, uma
série de epístolas de diversos apóstolos, a Paulo particularmente, e o Apocalipse, de
João. Os teólogos, os ortodoxos, em particular, sublinham a diferença entre os escritos
canônicos e os apócrifos relembrando a todo instante que cada palavra dos primeiros
procede da Revelação divina, enquanto que os segundos são devidos a simples
mortais.1

Inútil será dizer que nenhuma diferença real existe entre êsses dois grupos de
documentos cristãos. O problema de se saber quais os escritos que deviam entrar para o
cânone suscitou nos começos ásperas discussões, e isso ressalta das obras dos escritores
cristãos dos tempos antigos. Eusébio, Bispo de Cesaréia, que viveu no século IV, diz na
sua História Eclesiástica (III, 3 e seguintes) das divergências no seio da Igreja a
propósito da introdução no cânone do Apocalípse de João, das Epístolas de Paulo e de
alguns outros escritos. O estabelecimento definitivo dos textos canônicos só se deu,
aproximadamente, na segunda metade do século IV, para o oriente do Mediterrâneo, e
no comêço do século V, para o Ocidente. Assim se deu porque as comunidades cristãs,
durante muito tempo, consideraram diferentes escritos como sagrados e, também,
porque o estabelecimento do cânone foi precedido de uma luta encarniçada entre grupos
clericais opostos.

Segundo os teólogos, o essencial no Nôvo Testamento são os quatro evangelhos, nos


quais se descreve a vida de Jesus e seus milagres e quë, segundo êsses mesmos
teólogos, teriam sido compostos ou ditados pelos discípulos do Cristo. A palavra
evangelho, que significa, em grego, «boa nova», não tem na

1 Na encíclica Providentissimus, o Papa LEÃO XIII, querendo definir o caráter divino


da inspiração dos evangelhistas, afirmou que êles “transmitiram com uma impecável
fidelidade a palavra de Deus, e str’ mente essa palavra”. .. Mostraremos mais adiante,
com base em numerosas passagens do Nôvo Testamento, em que consiste essa
“impecável fidelidade.’
AS FONTES DO CRISTIANISMO 35

bôca dos representantes da Igreja outro sentido senão o de uma comunicação sôbre a
obra do «Filho de Deus» que aceitou o martírio para resgatar os pecados do gênero
humano. Mas, êsse têrmo já figurava na antiga literatura grega, a começar pela Odisséía
de Homero (Cap. XIV, versículos 152 e 166) e, no final do século 1 antes de nossa era,
nós o encontramos empregado sem qualquer relação com a religião cristã, em uma
inscrição de Priene, antiga cidade da Jônia, na qual se comemora o dia do nascimento
do Imperador Augusto. (Ogis, 458, II 40-41,)

Além dos quatro evangelhos conhecidos, existiam dezenas de outros escritos do mesmo
gênero que não foram incluídos no Nôvo Testamento por diversas razões. Irineu,
escritor cristão do último quarto do século II, proclamava no seu Tratado Contra as
Heresias (III, 11): «Há quatro evangelhos, nem um a mais, nem um a menos, e só
pessoas d espírito leviano, os ignorantes e os insolentes é que, falseando a natureza dos
evangelhos, podem aumentar ou diminuir o seu número.» E claro que Irineu não teria
falado assim se tal questão não despertasse paixões no seu tempo. O Evangelho
Segundo Lucas se refere, também, desde as primeiras linhas, a «muitos» autores que
«teriam empreendido compor» evangelhos, e nas obras antigas, encontram-se
referências a evangelhos dos nazarenos, dos judeus, dos egípcios, dos ebionitas, de
Pedro, de Tomás, de Barnabé etc. Depois do triunfo do cristianismo, a Igreja impôs- se
o dever de destruir ou de ocultar todos êsses textos, alguns dos quais foram
reencontrados recentemente no Egito.

• Os evangelhos introduzidos no cânone não cessaram contudo de ser retocados. Celso,


adversário do cristianismo, assinalava entre 170 e 180: «, . . certos fiéis modificam o
primeiro texto do evangelho três, quatro e mais vêzes, para poder subtraí-lo às
refutações.» Os diversos manuscritos dos evangelhos canônicos eram de tal modo
diferentes que os ideólogos da nova religião tentaram, na segunda metade do céculo III,
estabelecer um texto evangélico único. Em vista das divergências entre as comunidades
cristãs da época, três variantes foram então adotadas devidas, respectivamente, a
Hesiquius de Alexandria, a Pânfilo de Cesaréia e a Luciano de Antióquia. Mas, as
citações evangélicas dos papiros cristãos diferem muitas vêzes de cada uma delas, e só
no Evangelho Segundo Lucas existem 3 500 passagens redigidas diferentemente,

Mesmo segundo os Padres da Igreja os Evangelhos canônicos não podem ser


considerados como fontes primordiais no sentido literal dêste têrmo. Primeiramente, o
«segundo» que trazem no título (em grego cata) indica que êles não provieram das mãos
dos evangelistas, que não fazem mais do que repro

36

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

duzir de modo mais ou menos exato o que êstes últimos teriam comunicado. Depois,
segundo a tradição da Igreja, sômente Mateus e João foram apóstolos ligados
pessoalmente a Jesus, enquanto que Marcos e Lucas foram, respectivamente, discípulos
de Pedro e de Paulo. Por isso é que dissemos que, mesmo do ponto de vista estritamente
ortodoxo, os evangelhos não são obras de testemunhas oculares dos acontecimentos que
nêles são relatados.
Os três primeiros evangelhos são consagrados essencial- mente a um só tema: a vida de
Jesus e a sua doutrina, O estudo comparativo dos evangelhos sinóticos, isto é, segundo
Mateus, Marcos e Lucas, que deu origem a uma vasta literatura, mostra que,
aproximadamente, um têrço do seu conteúdo é comum a todos os três. As passagens que
se encontram tinicamente em cada ‘um dêsses evangelhos constituem a metade do texto
do Evangelho Segundo Lucas, um têrço do Evangelho Segundo Mateus e um décimo,
aproximadamente, do Evangelho Segundo Marcos. Se os sinóticos se assemelham, tal
se dá visivelmente porque têm uma fonte comum, a compilação perdida de parábolas e
sentenças atribuídas a Jesus. Admite-se geralmente que o Evangelho Segundo Marcos2,
o mais curto aliás, seria mais fiel a êsse suposto modêlo. Os autores dos dois outros
sinóticos utilizavam o Evangelho Segundo Marcos, ou a fonte dêste, encompridaram-
no, ajuntando-lhe detalhes que nãd se sabe de onde procedem.

Partindo do fato de que o Evangelho Segundo Marcos expõe sobretudo as parábolas


atribuídas a Jesus, enquanto que os evangelhos segundo Mateus e segundo Lucas
contêm, apésar de suas diferenças, dados idênticos a respeito do nascimento do Cristo,
da sua infância etc., avançou-se a hipótese segundo a qual as passagens que coincidem
no primeiro e no terceiro evangelho, e que não figuram no segundo, teriam sido tiradas
de uma compilação anterior, distinta daquela que o Evangelho Segundo Marcos
reproduziria. Esta fonte comum teria fornecido, segundo os partidários da historicidade
de Jesus, dados biográficos autênticos a seu respeito. Contudo, semelhante conjectura
parece inaceitável, pois não se pode admitir que o autor do Evangelho Segundo Marcos
tivesse podido ignorar a

2 O problema de se saber qual dos dois primeiros evangelhos é o mais antigo suscitou
no passado, e suscita ainda agora, entre os teólogos, encarniçadas discussões, O
Evangelho Segundo Mateus seria, segundo a tradição da Igreja, o primeiro
cronolàgicamente, mas os teólogos liberais da segunda metade do século passado e do
comêço do nosso estabeleceram que o Evangelho Segundo Marcos é anterior a todos os
outros, opinião que se procurou refutar em seguida, mas em vão, segundo nosso parecer.
SCJIWEITZER acha que êsses dois primeiros evangelhos foram compostos quase ao
mesmo tempo.
AS FONTES DO CRISTIANISMO

37

existência de documento tão importante a respeito da vida de Jesus. É mais conveniente


pensar que o autor do Evangelho Segundo Lucas utilizou muito simplesmente o texto do
Evangelho Segundo Mateus. Porém, mesmo que êsses dois evangelhos tenham sido
compostos, cada um, a partir de uma fonte anterior idêntica, isso não implica de modo
nenhum que Jesus tenha existido, pois como se poderia explicar então a ausência total
de comunicações sôbre sua vida terrestre em escritos cristãos mais antigos do que êsses?

Os evangelhos sinóticos contradizem-se com bastante freqüência. Veremos mais adiante


essas contradições minuciosamente. Por ora, basta assinalar, a título de exemplo, as
diferentes genealogias de Jesus nos evangelhos segundo Mateus e Segundo Lucas. Se
no primeiro (1, versículos 1-17) sua linhagem remonta a Abraão, e compreende 42
gerações, no segundo (III, versículos 23-28) ela parte de Adão e conta, de Abraão a
Jesus, 55 gerações, em lugar de 42. Como sè vê, é impossível conciliar essas duas
versões,, e isso levou a um bêco sem saída vários apologistas cristãos. Eusébio em sua
História Eclesiástica (1,7) confessando no fundo sua impotência para resolver esta
contradição exclama: «Seja lá corno fôr, só o evangelho anuncia a verdade!»
«Argumento» que nada explica naturalmente, e que não anula a discordância entre êsses
dois evangelistas «inspirados por Deus». As contradições dêsse gênero são muito
numerosas nos evangelhos.

Pode-se perguntar por’ que teria sido necessário compor tantas biografias de Jesus e por
que os textos evangélicos, tão divergentes, foram incluídos, apesar de tudo, no cânone.
Isto não foi, de modo algum, obra do azar ou da negligêncía: os evangelhos não são
anais que tenham a intenção de informar a posteridade, êles foram compostos para a
predicação, e cada um dêles visava um auditório diferente. O Evangelho Segundo
Mateus, por exemplo, deveria servir às necessidades da propaganda do cristianismo
entre os judeus. Nêle se encontram, mais do que nos outros, referências às profecias do
Antigo Testamento, sôbre o Messias. Seu autor tem o cuidado de advertir: «Não creias
que vim para abolir a lei ou os profetas: vim não para abolir, mas para cumprir.» (V,
versículo 17.) Além disso, êle se dispensa de explicar os antigos têrmos hebraicos.

Apesar dessa tendência judaica, por assim dizer, do primeiro evangelho, enganar-nos-
íamos se o acreditássemos composto por um hebreu da Palestina, tal como o mito
apresenta o apóstolo Mateus. Apesar dos esforços empregados pelos teólogos para
demonstrar que, ao menos, o texto dêsse evangelho foi traduzido do hebraico, como tal
deveria ter sido, não
35

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

se encontrou até os nossos dias o menor vestígio de um original hebraico dêste, ou dos
outros evangelhos. A língua do Evangelho Segundo Mateus é muito aproximada do
grego literário da época, e da língua dos outros livros do Nôvo Testamento, E por isso
que Erasmo, de Rotterdam, já achava que o Evangelho Segundo Mateus tinha sido
redigido originàriamente em grego, não sendo, portanto, uma tradução do hebraico.

O terceiro sinótico, o Evangelho Segundo Lucas, expõe, segundo a Igreja, as


predicações do apóstolo Paulo, assim como

o Evangelho Segundo Marcos, as do apóstolo Pedro. Era destinado, segundo parece, aos
leitores gregos. O relato que oferece a respeito da estada de Jesus na Palestina é mais
lacônica, sua genealogia remonta à Adão, as datas dos acontecimentos são dadas em
função do Império Romano, sua linguagem se aproxima ao máximo do dialeto literário
ático de então. O Evangelho Segundo Marcos também era destinado a um auditório bem
determinado.

O Evangelho Segundo Jogo difere consideràvelmente dos sinóticos. Enquanto êstes


narram a vida de Jesus e os seus milagres, o quarto evangelista, como o notou o Padre
da Igreja Clemente, de Alexandria (fim do século II, comêço do século III), «compôs
um evangelho espiritual, ditado por sua inspiração. » As primeiras palavras dêsse livro
do Novo Testamento são características: «No princípio era o Verbo, e o Verbo estava
com Deus, e o Verbo era Deus.» Os filósofos dos séculos 1 e II, particularmente Filon,
de Alexandria, falavam da mesma maneira a respeito do aparecimento do mundo e da
essência dc, Altíssimo... Muitos dos relatos dos sinóticos pouco apropriados aos meios
greco-romanos mais instruídos, foram omitidos ou retocados deliberadamente no
Evangelho Segundo João. Referimo-nos aos episódios relativos, por exemplo, à
tentação no deserto, à cura dos endemoniados e, mesmo, ao batismo de Jesus. Êste
evangelho destinava-se a oferecer de certo modo a filosofia do cristianismo, a adaptá-lo
às teorias filos& ficas da época.

Assim, cada evangelho era endereçado a um meio determinado, e tinha limitada, dêsse
modo, sua esfera de ação a uma ou outra região. Sua inclusão no cênone deu-se mais
tarde, como conseqüência de uma escolha dos escritos cristãos mais autorizados aos
olhos dos crentes.

Em que época se pode fixar o aparecimento dos evangelhos? Os teólogos simplificam


êste problema ao máximo. Afirmam que os relatos dos evangelistas não poderiam ser
postos em dúvida, e situam a composição dos sinóticos em meados do século 1, e a do
quarto evangelho, o de João, mais tarde, lá

AS FONTES DO CRISTIANISMO
39

pelo ano 80.3 As datas de composição dos outros escritos canônicos foram estabelecidas
por êles segundo o mesmo «princípio», donde se segue que o Nôvo Testamento já
existia na sua íntegra na segunda metadci do século 1. A Igreja Católica, bem como a
Igreja Ortodoxa, proclama que a ordem cronológica dos livros do Nôvo Testamento
corresponde à ordem em que são apresentados no cênone, sendo, portanto, os
evangelhos, anteriores às epístolas, e estas, ao Apocalipse, de João, o Evangelho
Segundo Mateus anterior ao de Marcos, e assim por diante.

A análise científica demonstrou de modo irrefutável o caráter perfeitamente artificial


dêsse esquema, conservado com o fim único de salvaguardar a autoridade de cada
palavra do Nôvo Testamento. Na verdade, o mais antigo dos evangelhos, como
assinalamos anteriormente, é o Evangelho Segundo Marcos, e não o de Mateus. No que
diz respeito às epístolas, F. Baur, fundador da Escola de Tubingue, já tinha demonstrado
que elas são anteriores aos evangelhos. Segundo êle, outros historiadores puderam
estabelecer que a parte principal do Apocalipse de João datava do ano 68, sendo êste
escrito, portanto, o mais antigo do Nôvo Testamento. Assim, pouco a pouco, foi sendo
mostrado que a ordem cronológica da composição dos livros do Nôvo Testamento não
corresponde de modo algum ao esquema da Igreja, que os Evangelhos, em particular,
são cronolàgicamente mais recentes do que a maioria dos outros escritos.

As pesquisas dos representantes da Escola de Tubingue mostraram que, tendo o dogma


cristão surgido muito tarde, não pode servir de argumento no que diz respeito ao
estabelecimento da data da composição de tal ou qual parte do Nôvo Testamento. O
único critério válido neste domínio deveria ser encontrado fora dêsses escritos.
Pràticamente, poder-se-ia utilizar as obras exatamente datadas de certos apologistas
cristãos, os dados fornecidos pelos antigos papiros, à medida que fôssem sendo
descobertos.

O autor mais antigo que fala dos evangelhos, sem contudo empregar essa palavra, foi o
filósofo Justino, apologista cristão

3 Procurando demonstrar que os historiadores do cristianismo fixam a composição dos


evangelhos em data cada vez mais próxima dos acontecimentos que êles descrevem,
DANIEL-ROPS nota que, se STRAUSS achava que os evangelhos não eram anteriores
ao ano de 150, RENAN já os situava no último quarto do século 1, e HARNACK, entre
50 e 75. Mas, êle esquece, e conscientemente, que muitos outros historiadores con
temporâneos, Alfred LOISY, por exemplo, afirmam, ao contrário, que os sinóticos
datam da primeira metade do século II. Vários representantes da escola mitológica
consideram, doutra parte, que os sinóticos apa receiam muito mais tarde ainda.
40

A ORIGEM ,bO CRISTIANISMO

qüe escreveu a partir do ano 150 e cujas obras chegaram até nós. Não conhecendo ainda
o Nôvo Testaménto, Justino apenas fala em «Recordações dos Apóstolos», e, fazendo
alusão às sentenças de jesus, êle informa que elas são «curtas e lacônicas», o que está
longe de corresponder ao estilo freqüentemente prolixo dos evangelistas.

Os quatro evangelhos canônicos são citados como tais, pela primeira vez, por Irineu. A
maneira como ‘êle fala, a referência a êsses evangelhos no fragmento de Muratori’4,
que é um pouco posterior, e o silêncio de Justino a respeito dêles, parece provar também
que êles não poderiam ter sido compostos antes dos meados do século II. Doutra parte,
numerosos heréticos consideravam como falsos tais ou quais escritos canônicos,
particularmente o Evangelho Segundo João. As heresias do século II defendiam, em
geral, as idéias do cristianismo primitivo, das quais se distanciava a Igreja Episcopal,
em curso de formação; é por isso que as suas declarações a respeito. do caráter não
autêntico de tal ou qual escrito evangélico são habitualmente levadas em consideração
enquanto argumento probante de que êles foram compostos mais tarde. Tais são os
motivos que obrigam os pesquisadores a encarar os evangelhos como sendo os livros
menos antigos do Nôvo Testamento.

Os Atos dos Apóstolos, situados no Nôvo Testamento imediatamente depois dos quatro
evangelhos, expõem a predicação do cristianismo entre os judeus e entre os pagãos
pelos «discípulos de Jesus Cristo», Pedro e, sobretudo, Paulo. Sendo êste escrito uma
espécie de continuação dos evangelhos, alguns teólogos católicos declaram que êle foi
composto por volta do ano 50, mas semelhante afirmação não resiste à menor análise.
Justino ignora totalmente os Atos Apostólicos e não diz uma palavra sôbre Paulo. A
comunicação da Igreja a respeito do desenvolvimento vertiginoso do cristianismo nos
países orientais do Mediterrâneo em meados do século 1 não é confirmada por qualquer
documento digno de fé. Os Atos dos Apóstolos expõem principalmente o conteúdo de
14 epístolas atribuídas a Paulo, e incluídas no cânone. Trazidas para Roma no ano 140
por Marcião, contemporâneo de Justino, essas epístolas não puderam ser adotadas
imediatamente pelos cristãos locais, e isso demonstra que os Atos, êles também, não
podem ser anteriores aos meados,, ou melhor, à segunda metade

4 Documento cristão que data aproximadamente do ano 200 e que dá uma lista de
escritos cristãos reconhecidos como “sagrados”; essa relação compreende 22 dos 27
livros do Nôvo Tessamento, além de alguns apócrifos. Ludovico MURATORI,
historiador italiano do século XVIII, descobriu éste fragmento entre os manuscritos da
Biblioteca Ambrosiana de Milão.

AS FONTES DO CRISTIANISMO

do século II. O quadro da vasta difusão da nova fé na parte oriental do Mediterrâneo,


descrito nos Atos, corrresponde mais ou menos à essa época, não ao século 1.

As 14 epístolas do apóstolo Paulo são endereçadas aos romanos,, aos coríntios, aos
galatas etc. . . Elas ainda não expõem o relato evangélico da vida de Jesus, mas já o
apresentam como um deus encarnado num homem. O Cristo já adquire nêles alguns
traços humanos, nasceu de uma mulher, sofreu o martírio. Jesus morre para resgatar os
pecados dos homens: tal é o leitmotiv dessas epístolas. Mas, não se encontram nelas os
numerosos detalhes próprios ao mito evangélico do Cristo. Segundo o parecer de
Engels, as epístolas ditas de Paulo, «pelo menos na sua redação atual, são 60 anos
posteriores ao Apocalipse.»5 E, coisa característica, muitos dos cristãos adversários da
Igreja oficial no século II se recusavam a reconhecer as epístolas de Paulo. Tal era o
caso dos ebionitas e dos severianos como Eusebio o diz na sua História Eclesiástica (III,
27; IV, 29) e como Irineu o confirma. Justino, apologista cristão, apesar da sua
ortodoxia, silencia a respeito dêsse apóstolo. Não foi, portanto, por acaso que, há mais
de 30 anos,

A. Harnack, chefe dos teólogos protestantes, teve de admitir que os cristãos romanos
dos fins do culo 1 e dos começos do século II ignoravam as epístolas paulinianas.

O mais antigo dos escritos canônicos é o Apocalipse de João, que encerra o Nôvo
Testamento. Seu autor conhecia sô. mente sete comunidades cristãs da Ásia Menor. O
nome de Jesus nêle figurava apenas identificado, segundo parece, ao Cordeiro, que nada
tem de comum com o Homem-Deus dos evangelhos. O Cordeiro do Apocalipse possui
«sete cornos e sete olhos» (V, 6), foi imolado «desde a fundação do mundo» (XIII, 8).
Diferentemente dos outros livros evangélicos, que pregam o princípio segundo o qual «é
preciso dar a César o que é de César», o Apocalipse de João ferve num ódio
inconciliável contra «a grande cidade que exerceu a realêza sôbre os reis da Terra»
(XVII, 18), e prediz o fim de Roma num futuro próximo.

O essencial do Apocalipse foi composto depois da queda de Nero em 68, e, portanto,


êste livro é o mais antigo do Nôvo Testamento. Seu conteúdo difere extremamente do
dos evangelhos e das epístolas, a língua e o estilo, ao contrário dos outros escritos do
Nôvo Testamento, funde elementos emprestados ao hebraico e ao aramaico. Essas
particularidades não escapam aos Padres da Igreja, e é por isso que a questão da
inclusão do Apocalipse no número dos escritos «inspirados

5 Karl MARX e Friedrich ENGELS: Sai’ la Religion, d. Sociales, Paris, 1960, pág. 324.
42

A ORIGEM ,4J0 CRISTIANISMO

por Deus» suscitou no século IV debates apaixonados. (Eusébià, ob, cit., VII, 25 e
outras.) Lutero e Zwinglio declararam mais tarde que êste escrito tinha sido incluído no
cânone por engano.

Vê-se, portanto, que a Igreja dispôs os livros do Nôvo Testamento na ordem inversa à
do seu aparecimento. O Apocalipse, que é o mais antigo de todos, remonta ao ano de
68. Depois, vêm as epístolas (primeira metade do século II). Os quatro evangelhos não
foram compostos senão em meados do século II, e deve-se considerar os Atos dos
Apóstolos como o mais recente dêsses escritos. Tal é a única ordem cronológica
possível se se parte não da lenda a respeito do caráter divino do cânone, mas dos dados
que se encontram nas obras datadas de Justino e de Irineu.

O estabelecimento da ordem cronológica real dos livros do Nôvo Testamento reveste


uma alta importância sob o ponto de vista do estudo da história das comunidades cristãs
primitivas e, sobretudo, da evolução da ideologia cristã. Notemos, contudo, que o
esquema cronológico apresentado acima indica apenas a data da composição do texto
fundamental dêsses escritos, uma vez que êles continuaram a ser remodelados pelo
menos até ao século IV. Eusébio na sua História Eclesiástica (IV, 23) cita as palavras
seguintes de um escritor cristão que bem caracterizam as falsificações freqüentes de
então: «Compus epístolas segundo a vontade dos irmãos, mas os apóstolos do Diabo
tachando-as de jnverdadeiras cortaram-lhes certas coisas, e lhes acrescentaram outras.»
Irineu tomava o cuidado de endereçar o seguinte pedido aos copistas do seu livro:
«Con- fronta tua cópia com êste original utilizado por ti e corrige-a cuidadosamente.
Não te esqueças, também, de reproduzir na tua cópia êste pedido que te faço!» (Id. V,
20). A inclusão, por Eusébio, de duas citações dêsse gênero em sua obra é, também,
muito significativa.

Esta passagem da Epístola de Inácio aos Filadelfianos (Cap. VIII), que data do século ii,
é igualmente muito característica das falsificações e das deformações freqüentes na
época: «Ouvi alguns dizerem: Não creio no que está escrito nos evangelhos, se não o
encontro nos arquivos.»6 E quando eu lhes respondia que isso lá estava dizia-me: «É
preciso ainda demonstrá-lo.»

O que se passou com os Atos de Pilatos não é menos significativo. Uma comunicação
do Governador Romano da Judéia a respeito do fundador do cristianismo seria
evidentemente a mais válida das provas de sua existência real. Os primeiros apologistas
cristãos afirmavam, a princípio de um modo um pouco hesitante (Justino), depois com
um tom mais

6 Outra tradução possível: “nas antigas escrituras.”

AS FONTES DO CRISTIANISMO

43

seguro (Tertuliano), que o texto desta carta deveria estar nos arquivos imperiais, em
Roma. Contudo, mesmo depois da ascensão do cristianismo à categoria de religião
oficial não se pôde descobrir o menor vestígio dêsse documento. E, no século IV, os
zelosos servidores da Igreja tomaram a decisão de fabricar um, em todos os seus
pormenores. O próprio Daniel-Rops, apesar da sua ortodoxia, se viu na obrigação de
reconhecer que tal documento é mesmo falso.7 Acrescente-se, ainda, que a
«comunicação» em questão é endereçada não ao Imperador Tibério, sob o qual Pôncio
Pilatos era governador, mas ao Imperador Cláudio que reinou de 41 a 34.

Grandes cautelas contra as freqüentes deformações das escrituras foram conservadas no


próprio texto canônico do Nôvo Testamento. É assim que João toma o cuidado de
prevenir ao terminar o Apocalipse: «Se alguém acrescentar alguma coisa nisto, Deus o
castigará com as penas descritas neste livro; e se alguém cortar qualquer coisa do livro
desta profecia, Deus cortará sua parte na árvore da vida e na cidade santa, descritas
neste livro.»
Outros escritos cristãos antigos contêm advertências semelhantes, mas em vão: os
imperativos da luta contra as heresias obrigaram a Igreja a «depurar» continuamente os
textos canônicos de tudo que cheirasse a heresia.

O texto grego do Nôvo Testamento adotado nos nossos dias remonta a dois códigos que
datam dos meados do século IV: o sinaico, descoberto, em 1959, em um convento do
monte Sinaí, e guardado hoje no Museu Britânico, e o do Vaticano, que só foi publicado
nos fins do século passado. Compostos, tanto um, como o outro, na cidade de
Alexandria, no Egito, reproduzem a redação já citada do Nóvo Testamento, devida a
Hesiquius.

Descobriu-se em 1931 um papiro como o mais antigo texto das epístolas de Paulo e
outros escritos ainda do Antigo e do Nôvo Testamento.8 Este código remonta
aproximadamente ao ano 200 e é, por conseguinte, um século e meio anterior ao código
sinaico, e ao do Vaticano. O papiro em questão, fato importante, foi escrito pouco
depois da composição das epístolas, que êle reproduz, notemo-lo, numa ordem diferente
da do cânone: a Epístola aos Romanos é, nêle, seguida imediatamente pela Epístola aos
Hebreas. Não se encontram nêle as epístolas pastorais do Nôvo Testamento (primeira e
segunda epístolas a Timóteo, Epístola a Tito), cujo conteúdo, mostra-lo-emos em
seguida, difere sensivelmente das outras mensagens de Paulo.

7 H. DANIEL-RoPs, ob. cit., pág. 9.

8 F. G. KENY0N: The Chester Beatty Biblical Papyri, parte 1-4, Londres, 19331934.
44 A ORIGEM DO CRISTIANISMO

Muitas das passagens dêsse papiro são diferentes do texto canônico e, além das
modificações estilísticas e erros de escrita, êste último revela mudanças de natureza
dogmática: os redatores do texto canônico se afervoravam em depurar as epístolas das
fórmulas que a Igreja declarava heréticas.

Ao segundo grupo de fontes cristãs, que datam, em particular, da segunda metade do


século II, pertencem os escritos dos apologistas Justino, Taciano, Atenágoras, Irineu, e
outros. Sua data foi estabelecida com bastante precisão e êles sofreram um número bem
menor de retoques, do que os evangelhos e as epístolas canônicas. As obras e os
fragmentos dos primeiros apologistas cristãos são, portanto, dignos de confiança, e um
grande número dêles chegou até nós.

Justino, ao qual já nos referimos a propósito da data da composição dos evangelhos,


estudou filosofia, e daí vem o seu cognome de filósofo. Tem-se, dêle, três obras
autênticas (sem contar outros trabalhos que se lhe atribuem): Primeira Apologia,
Segunda Apologia, Diálogo com o Judeu Trifônio. Nessas apologias, endereçadas aos
imperadores Antonino, o Piedoso, e Marco-Aurélio, Justino sustenta que o título de
cristão não déve bastar para levar alguém diante dos tribunais, que para julgar um
cristão é preciso que êle tenha cometido um crime. Êsses escritos de Justino expõem, de
passagem, os princípios da fé cristã, e fornecem dados preciosos a respeito de
organização da vida interna das comunidades de crentes dessa época. No Diálogo,
procura demonstrar o papel messiânico do Cristo, citando os profetas do Velho
Testamento, que êle interpreta a seu modo. Os trabalhos de Justino são os mais antigos
da apologética cristã, e nisto consiste o seu principal valor; êles foram compostos, sua
Apologia, pelo menos, antes do ano 160.

O Apocalipse de João é o único dos escritos canônicos que êle cita.

O apologista Taciano, discípulo de Justino, escreveu no terceiro quarto do século III.


Duas apenas de suas obras se conservaram: o Discurso aos Gregos e o Diatessarão. No
primeiro, êle submete a rude crítica a cultura grega, notadamentë a filosofia,
declarando-a emprestada das nações «bárbaras» vizinhas. Condena todos os filósofos
gregos, Platão entre êles, filósofo que Justino apreciava consideràvelmente. Segundo
êle, os únicos elementos do pensamento filosófico grego que tinham algum valor
derivam dos escritos do Antigo Testamento.

O Diatessarão (que significa: «segundo os quatro»), escrito a base dos quatro


evangelhos canônicos, veio até nós na tradução siríaca, árabe, latinà e armênia.
Descobriu-se em 1934, por ocasião das escavações em Doura-Europos, cidade às
margens do Eufrates, um fragmento bastante longo dêste trabalho, escrito em língua
grega, que foi reconhecido como anterior ao
AS FONTES DO CRISTIANISMO 45

ano 254, no qual Taciano omite a genealogia de Jesus e outras passagens do Nôvo
Testamento, e no qual êle diz que o Cristo descendia dos reis da Judéia. O Diatessarão
era muito difundido no Oriente e êle é o evangelho oficial da Igreja Síria. No século V,
um bispo de Ciro retirou de sua diocese 200 exemplares do Evangelho de Taciano e os
sübstituiu pelos textos canônicos. A doutrina de Taciano diferia sob muitos aspectos dos
dogmas da Igreja oficial. Pertencia êle à seita cristã dos encrátitas, que se dedicavam ao
ascetismo. Taciano condenava o casamento, a consumação de carne e de vinho.

Atenágoras também foi discípulo de Justino. Sua Apologia Para os Cristãos, composta
no ano 180, no fundo, apenas desenvolvia as idéias da Apologia do seu mestre. Como
êle, Atenágoras se levantava contra a condenação dos cristãos pela imnica razão de
pertencerem à nova religião, e acentua, mais ainda do que o seu mestre, a lealdade dos
seus adeptos, do ponto de vista político. «Rezamos, declará êle dirigindo-se ao
Imperador Marco-Aurélio e a seu filho Cômodo, pela manutenção do vosso poder, para
que o reinado do pai passe, em herança, ao seu sucessor, para que o vosso poderio seja
cada vez mais forte e para que todo o mundo vos obedeça.» (Apologia, 37.) Atenágoras
consagra sua obra, sobretudo, à defesa dos cristãos, contra as acusações habituais de
ateísmo, de incesto de massacre dos recém-nascidos.

O mais importante dos escritores cristãos do século II foi Trineu, Bispo de Lião.
Compôs em 180, a Exposição e Refutação da Gnose Falsamente Assim Chamada, vasto
tratado contra as heresias. O texto desta obra, conservado em tradução latina, é de alta
importância para a reconstituição da história do cristianismo primitivo, e da Igreja, em
particular. Diferentemente de Justino, de Taciano e dos outros apologistas, irineu se
detém, sobretudo, nos desvios dos dogmas que estavam a caminho de se formarem.
Enumerou os evangelhos e as epístolas que, no seu tempo, já eram consideradas de
inspiração divina, e elaborou a lista cronológica dos bispos de Roma, e de outras
cidades. Irineu foi, portanto, o autor da primeira história sistemática do cristianismo,
ainda que nela seja grande a parte da lenda e da invenção. Muitas das passagens da
História Eclesiástica de Eusébio não fazem mais do que reproduzir o que é dito por
Irineu em sua obra.

A abundância de fontes cristãs datadas do século II, ao qual se ligam, nós vimos
anteriormente, quase todos os livros canônicos e um grande número de obras dos
apologistas, nos permite enfim seguir com segurança a evolução do cristianismo e da
Igreja, a partir dêsse século e, mais precisamente, da sua segunda metade. Quanto às
conclusões relativas ao período anterior do cristianismo, ao seu aparecimento,
sobretudo, elas

46

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

exigem sempre um exame do conjunto de todos os dados de que se dispõe. Notemos


que essas fontes não permitem, nem de longe, esclarecer de modo suficientemente
circunstanciado o nascimento da religião cristã. Ë apenas do ponto de vista teológico,
enfim, que todos êsses escritos expõem a história do cristianismo. Esta literatura não
tem um caráter verdadeiramente histórico, é literatura edificante antès de tudo; ela deixa
na sombra muitos fatos e, quase sempre, deforma a verdade.

A partir de Tertuliano e de Clemente de Alexandria as fontes cristãs tornam-se muito


mais numerosas, O que dissemos dos escritores cristãos do século II vale igualmente
para os do século III. Seu testemunho é de uma extrema importância para estudo da
evolução dos dogmas, da luta contra as heresias, das relações entre a Igreja e o poder
temporal, das colisões entre tendências diversas no seio da cristandade. E preciso,
contudo, encarar com o maior espírito crítico as afirmações dos escritores do século III
e dos inícios do século IV: todos êles expõem a história do primeiro centenário do
cristianismo de conformidade com o cânone. Porém, uma vez que os escritores cristãos
dos começos e, mesmo, dos meados do século II só chegaram até nós de modo
incompleto, isto nos coloca no dever de utilizar, ainda que com circunspeção, as
comunicações feitas pelos autores que dispuseram dos escritos dos séculos precedentes.

Tertuliano, Clemente de Alexandria, Orígenes e Eusébio foram os escritores de maior


importância dêsse grupo. Tertuliano, decano da comunidade cartaginesa, desenvolveu
sua atividade literária de 195 a 220. Representante da ala militante do cristianismo,
atacou rudemente o gnosticismo, bem como as’ heresias judaico-cristãs, e outras. No
fim da sua vida, aderiu à seita herética dos montanistas. Os trabalhos de Tertuliano,
conservados em grande número, fornecem um quadro bastante fiel da vida religiosa dos
cristãos da África.

Clemente, contemporâneo de Tertuliano, dirigiu, a partir do ano 200, a escola de


catecúmenos (neófitos) em Alexandria, nessa época, um dos centros mais importantes
da nova religião, no Oriente. Em suas obras, procurou conciliar o cristianismo, com o
helenismo. Declarou que a filosofia grega, tal como o Antigo Testamento, haviam
preparado o Nôvo Testamento, o que nos permite deduzir que a religião cristã começava
a se difundir pelas camadas melhor qualificadas da população grega. Em seu escrito
Salvar-se-á o Rico?, título significativo, êle sustenta, contràriamente ao que diz os
evangelhos (Marcos, X, 21-31 e alhures), que o fato dç ter riquezas não pode impedir
quem quer que seja de entrar no reino de Deus.
AS FONTES DO CRJSTIANISMO

47

Orígenes (185-253), discípulo de Clemente, e um dos mais fecundos escritores cristãos


do século III, é o autor de comentários a todos os livros do Antigo e do Nôvo
Testamento, dos quais a maioria foi conservada, bem como seus outros escritos, Seu
trabalho Contra Celso é o que apresenta maior interêsse para o historiador do
cristianismo primitivo porque contém citações bem longas da obra do mais antigo dos
seus críticos.

Eusébio (260-340, aproximadamente), Bispo de Cesaréia, entre outros livros, compôs a


primeira História Eclesiástica que contém documentos muito importantes relativos ao
século III, e, parcíalmente, ao século II, mas êste autor falsificava freqüentemente os
documentos de que dispunha. Jacob Burckhardt, do qual não se poderia suspeitar de
estar inclinado para o materialismo, refere-se a Eusébio nestes severos têrmos:

«Depois das inumeráveis deformações, reticências e mentiras constatadas nos seus


escritos, não se tem o menor direito de considerá-lo como uma fonte digna de confiança.
Convém acrescentar a tudo isso as obscuridades intencionais, a retórica calculada, as
ambigüidades sem número dêste escritor.»

Os escritos dos antigos apologistas e dos Padres da Igreja constituem, portanto, com o
Nôvo Testamento, o segundo grupo importante de fontes concernentes à história do
cristianismo primitivo. Êstes documentos são um pouco posteriores aos escritos
canônicos, mas aquêles têm sôbre êstes a vantagem, tal como já o assinalamos, de ter
escapado a remodelações cuidadosas e diversas. Êste grupo de documentos é rico de
informações a respeito das relações entre as comunidades de crentes e o poder temporal,
a respeito da constituição da dogmática, da formação do clero, da luta contra as
heresias, da estrutura das comunidades cristãs.

Ao terceiro grupo de fontes cristãs pertencem os apócrifos, muito mais numerosos do


que os escritos incluídos pela Igreja no cânone. Não nos resta, contudo, dessa imensa
literatura, senão: 1) algumas obras relativamente extensas, e 2) fragmentos, algumas
vêzes citações nas obras dos escritores eclesiásticos. Na primeira subdivisão incluem-se
o Pastor de Hermas, publicado em 1883, a Diclaquê (doutrina dos doze apóstolos), as
epístolas de Barnabé, de Clemente, Bispo de Roma, de Inácio, e outros escritos ainda, A
segunda é constituída pelos evangelhos não canônicos, anteriormente enumerados, por
diversas epístolas, apocalipses, atos compostos de ordinário por adversários da doutrina
ortodoxa.

Muitos dos apócrifos gozavam de um alto prestígio em certas comunidades, porém, por
diversos motivos, não foram introduzidos no cânone da Igreja e conservam por essa
razão traços específicos destruídos nos textos do Nôvo Testamento,

48

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

pelos seus redatores, O estabelecimento da data dos apócrifos está ligada, aliás, a
dificuldades consideráveis, se bem que não se possa duvidar de que a maior parte dos
que acabamos de citar remonte ao século II. R. Viper, inclinado, aliás, em cronologia a
um criticismo exagerado, situa o Pastor e a Dida quê no século 1 e até mesmo antes da
Guerra dos Judeus. E verdade que A. Ranovitch opôs argumentos de pêso a tal data, que
êle considera muito recuada.

A Didaquê é, de qualquer modo, um dos mais antigos escritos cristãos. Nada diz ela
ainda a respeito da natureza humana do Cristo, que concebe unicamente como sendo o
Filho de Deus. Não se encontra na Didaquê, fato bastante significativo, qualquer alusão
à passagem do Cristo pela Terra, coisa já acontecida nesse momento segundo os
Evangelhos. Seu último capítulo exorta apenas os crentes a se prepararem para a vinda
do Cristo, e isso para a primeira, não para a sëgunda. Tantos indícios permitem afirmar
que a Didaquê não pode ser posterior à primeira metade do século II.

A Dida quê constitui, juntamente com as epístolas atribuídas ao apóstolo Paulo, a


principal fonte para o estudo da estrutura e da vida interior das comunidades cristãs
primitivas, dos ritos e das cerimônias da religião nova. Se êste escrito não entrou no
cânone foi seguramente por causa do seu silêncio a respeito da vida terrestre de Jesus.
Eusébio certifica, contudo, que ela gozava de grande autoridade em muitas das
comunidades cristãs.

O Pastor de Hermas difere muito dos escritos cristãos. Compõe-se de três partes: as
«Visões» os «Preceitos», as «Similitudes». Quanto ao estilo, lembra os romances
antigos, procura despertar o interêsse do leitor pelo herói, descreve as suas aventuras.
Obra quase literária, o Pastor é rico em alegorias. O arrependimento apresentado como
o caminho do aperfeiçoamento moral de acôrdo com• as exigências da Igreja, tal é o
tema principal dêste escrito que, sem dizer uma palavra sôbre Cristo, fala muito da
Igreja. A data da sua composição não foi elucidada de modo preciso. Dando-se crédito
aos dados do Fragmento de Muratori, êle deverá remontar à segunda metade do século
II.

É preciso citar entre os apócrifos a vasta coleção de papiros gnósticos descobertos em


1946 nas vizinhanças do território em que se encontrava outrora Chenobosquiom, antiga
cidade egípcia situada a cêrca de O quilômetros ao norte de Lucsor.9 Esta coleção
compreende 44 escritos em diversos dialetos da língua copta, perfeitamente conservados
na sua maioria e fàcilmente legíveis. A época da composição dêsses

9 Ver 1. FRANTSEV: As Fontes da Religido e do Ateísmo, pág.

464 da edição russa de 1959.


AS FONTES DO CRISTIANISMO

49

papiros foi situada entre meados do século III e meados do século IV. Recordemos, a
título de comparação, que o texto mais antigo da Bíblia, diz o Código do Vaticano, data
do século IV, ou seja, da mesma época. Os papiros foram descobertos numa caverna,
encerrados em um cofre com outros objetos, tendo sido aí escondidos já sob
Constantino, sem dúvida para escapar às perseguições da Igreja.

Uma parte dêsses papiros reproduz justamente os escritos contra os quais polemizavam
Irineu, Orígenes, e outros Padres da Igreja. Datam, portanto, do século II. O conteúdo
dos outros não encontra qualquer reflexo nas obras dos escritores eclesiásticos da
Antigüidade que, segundo parece, não conheceram êsses documentos. Alguns títulos
correspondem aos dos evangelhos apócrifos conhecidos uinicamente pelas referências
dos autores eclesiásticos, tais como os apocalipses de Messe e de Zotrian, o evangelho
gnóstico dos egípcios, o Evangelho Segundo Filipe, segundo Tomás, a Sabedoria de
Jesus e outros escritos similares.

A importância da descoberta dêsses papiros reside no fato de que em lugar dos dados
incompletos e freqüentemente deformados sôbre o gnosticismo, fornecidos pelas obras
dos apologistas ortodoxos, o historiador possui agora uma excelente coleção de escritos
saídos da pena dos próprios autores gnósticos. Isto permite definir de modo mais
adequado e preciso as relações entre o gnosticismo cristão e a dogmática da Igreja, as
divergencias das diversas correntes no seio do gnosticismo.

Os monumentos da cultura material descobertos por ocasião das escavações


arqueológicas desempenham, de outra parte, um considerável papel no que concerne ao
estabelecimento dos limites cronológicos dentro dos quais se desenrolaram as atividades
das comunidades cristãs primitivas, e facilitam o estudo da evolução de sua ideologia.
Atualmente, a ciência consegue estabelecer a data dêsses monumentos com
aproximações de meio século e até de um quarto de século. E, como as organizações
clericais se impõem o dever de financiar as escavações arqueológicas nos «lugares
santos» e em outros lugares em que se espera descobrir vestígios da cristandade
primitiva, as prospecções dêsse gênero são efetuadas em larga escala na Palestina, no
Egito e em Roma. Contudo, não se conseguiu descobrir até hoje qualquer monumento
cristão que possa ser situado, com certeza, no século 1. E certo que os guias de
antigüidades cristãs consideram corno tais as pedras tumulares em que não se encontra a
inscrição dis manibuslO, mas isso, evidentemente,
10 Nas províncias ocidentais do Império Romano, os epitáfios das pedras tumulares
começavam freqüentemente pelas siglas DM ou DMS (dis manibus, dis manibus
sacrum), que significavam a divinização da alma

50

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

nada prova. Os mais antigos epitáfios cristãos que se conhecem datam do século II
apenas.

Em todo caso, porém, isto não impede que a imprensa do Ocidente anuncie, de tempos
em tempos, sob títulos sensa cionais, a pretensa descoberta de monumentos cristãos que
remontam, se não à primeira metade, pelo menos aos meados do século 1.

Eis alguns exemplos. Em 1920 foi descoberto em Filadélfia, no Egito, um papiro com
um decreto do Imperador Cláudio datado do ano 41 e no qual, referindo-se aos conflitos
e colisões ocorridos em Alexandria entre os judeus e os gregos, êle ameaça os primeiros
de punição por «terem provocado certa doença no mundo inteiro.» Isto bastou para que
vários historiadores franceses e italianos declarassem que se tinha ali a prova da difusão
do cristianismo já durante a primeira metade do século 1. Essas perturbações foram
descritas amplamente nas obras de Filon de Alexandria nas quais não se encontra,
contudo, como nesse papiro, qualquer alusão aos cristãos.

A «inscrição nazarena» que se publicou em 1929, e cuja data presumida foi fixada entre
Augusto e Cláudio (do ano 31 antes de nossa era, ao ano 54 de nossa era), continha uma
disposição imperial que interditava as exumações e qualquer profanação dos túmulos;
num relance vários escritores viram nesse documento um eco da ressurreição de Jesus!
Em 1947, foram descobertos perto de Coumrã, a noroeste do Mar Morto, numerosos
rolos de couro com textos, em hebraico, dos profetas do Antigo’ Testamento, e alguns
escritos apócrifos. Num dêsses rolos encontra-se, à guisa de comentários aos textos do
profeta Habacuc, a descrição das perseguições contra uma seita judia, notadamente a
execução do seu chefe denominado, nesse texto, «Mestre da justiça». Imediatamente,
uma multidão de artigos apareceram na imprensa de vários países «demonstrando» que
êsse chefe era justamente Jesus, e que êsses papiros eram os monumentos mais antigos
do cristianismo. Divergências bastante sérias apareceram, contudo, entre os
historiadores, quanto à idade dêsses papiros, que poderiam datar do século ii, à época
das cruzadas. Depois de ulteriores escavações, efetuadas a partir de 1932, e da análise
dos restos orgênicos dos rolos com os métodos modernos, pôde- se estabelecer que
alguns dêles remontam do século 1. Os escritos descobertos em Coumrã são, portanto,
muito impor-

dos defuntos e provavam, com efeito, que se tratava de uma sepultura pagã; mas a
ausência dessas siglas absolutamente não prova tratar-se de uma tumba cristã. As
fórmulas DM e DMS não aparecem senão a partir da época de AUGUSTO, a partir do
ano 31 da nossa era, e era, a princípio de emprêgo bastante raro...

A5 FONTES DO CRISTIANISMO

51
tantes para o estudo da pré-história do cristianismo; êles esclarecem a ideologia das
antigas seitas judias radicais que já anunciavam a aparição das comunidades cristãs
primitivas, mas êles não contêm dados que possam confirmar a existência terrestre de
Jesus.

Por iniciativa de Pio XII, efetuaram-se escavações sob as criptas do Vaticano em 1940
e, sobretudo, durante os anos que se seguiram à guerra. Nos fins da década de 40 dêste
século, a imprensa ocidental, a católica em primeiro lugar, fêz um grande alarde em
tôrno das escavações de Roma dizendo que, enfim, elas tinham sido coroadas de êxito,
que tinha sido descoberto o sepulcro de S. Pedro e, até mesmo, seus restos. Isso
confirmaria que êle não era apenas um mito, e, ao mesmo tempo, que êle teria vivido
algum tempo em Roma, assim como S,. Paulo, tal como o quer a tradição da Igreja.
Todo êsse falatório tinha apenas um fim: fortalecer a autoridade do Vaticano e do Papa
enquanto «sucessor direto» dêsses dois «discípulos de Jesus».

A análise objetiva dos resultados das escavações vaticana’ mostrou que nada havia de
verdadeiro em tudo isso. E com tanta evidência que o próprio Pio XII foi obrigado a
reconhecer, em dezembro de 1930, em discurso radiodifundido, a impossibilidade de se
afirmar com certeza que essas ossadas pertenciam a S. Pedro. De fato, apenas tinham
sido encontrados três sepulcros anônimos, datados do século 1, e, em um dêles, uma
telha da época de Vespasiano, imperador romano de 69 a 79, enquanto que, segundo a
tradição da Igreja, o apóstolo Pedro teria morrido em 66. Nada se descobriu capaz de
provar que êsses túmulos encerravam restos de cristãos e, muito menos, de um dos
apóstolos.

Entre as moedas encontradas nas criptas cristãs, uma pertence à época de Antonino, o
Piedoso, imperador romano de 138 a 161, seis são datadas do ano de 168 ao ano de 185,
e mais de quarenta remontam aos fins do século II e aos começos do IV. Isso atesta a
existência de uma comunidade cristã primitiva em Roma já no século II. O
estabelecimento nas criptas vaticanas do altar cristão que, segundo uma versão
posterior, se levanta sôbre o lugar em que os apóstolos estavam enterrados, remonta
visivelmente a meados dêsse século. Tal foi, no que se refere aos dois primeiros séculos
de nossa era, o único resultado das escavações do Vaticano.”

11 H. T0RP: “The Vatican Excavations and the Cult of St. Peter”, ia Acta Archeolo
gira, XXIV, 1953, págs. 27-66; confira R. T. O’ CALLAGHAN: “Vatican Excavations
and the Tomb of Peter”, in Biblical Archaeologis. , XVI, 1959, n 4, págs. 70-87.
52

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

Em 1947, arqueólogos israelitas publicaram os resultados das escavações que


realizaram perto de Jerusalém.12 E. Sukenik, que dirigia êsses trabalhos, afirmava que
havia descoberto vestígios extremamente antigos do cristianismo na Palestina. A cripta
desenterrada por êle pertencia a uma família judia muito próspera; data do século 1, o
que foi confirmado pela descoberta, no seu interior, de uma moeda do tempo de Agripa
II, que reinou durante a segunda metade dêsse século. A cerâmica lá encontrada também
é da mesma época. Além disso, Sukenik lá encontrou duas inscrições gregas que se
compunham de duas palavras sômente com o nome de Jesus, e vários emblemas que
apresentavam duas linhas cruzadas. Segundo a opinião dêsse arqueólogo, tratava-se aí
de Jesus Cristo e do sinal da cruz. Semelhante suposição, desde que se demonstrasse ser
exata, teria o valor de urna descoberta da mais alta importância, pois não se tinha
encontrado até então qualquer monumento cristão, arqueológico ou epigráfico, do qual
se pudesse afirmar, sem a menor hesitação, que êle datava do século 1. E tanto mais
valiosa seria a descoberta por ter ocorrido na Palestina, considerada pela Igreja como o
berço do cristianismo.

Mas, os resultados das escavações em Jerusalém não justificavam de nenhum modo a


precipitação com que E. Sukenik formulou tais conclusões. Êle próprio diz que esta
cripta fôra pilhada na Antigüidade. A data das incrições pode, portanto, não coincidir
com a da inumação dos primeiros despojos., Não se tem também qualquer razão para
identificar o nome do Jesus que figura nas inscrições, com o Cristo dos evangelhos. O
emblema que Sukenik toma pelo sinal da cruz é talvez a única circunstância a favor da
sua hipótese. Sabe-se, porém, que a cruz, enquanto símbolo, só foi adotada pelos
cristãos a partir do século IV. Estas reservas, que o próprio Sukenik levanta, em parte,
no seu artigo militam contra sua interpretação dos achados arqueológicos de Jerusalém
como sendo cristãos •1 3
Apesar da extraordinária envergadura das escavações, não se pôde descobrir qualquer
vestígio de monumentos cristãos datando do século 1, e isso prova bastante bem que
êles não existem. E isso é natural: as primeiras comunidades cristãs formaram-se,
seguramente, durante a segunda metade do século 1, sobretudo depois da Guerra dos
Judeus, mas elas não praticavam então qualquer rito, como o veremos mais adiante, fato
êsse

12 E. L. SUKENIIC: «The Eearliest Recordl of Christianity”, in Ameyican Journal of


Archaeology, 1947, n 4, págs. 351-365.

13 C. F. POULSEN: The Two Earliest Jesus Inscriptions, Studies Presented to D. M.


Robinson, V. II, São Luís, 1953, pág. 119. (Ver a exposição das objeções de
WILLOWGBY a SuKENIK.)

AS FONTES DO CRISTIANISMO

que nos permite presumir que delas nunca se encontrarão vestígios.

A ausência de vestígios materiais do tempo dos apóstolos patenteia a inconsistência da


versão oficial da Igreja a respeito da pretensa difusão-relâmpago do cristianismo, a
partir do seu aparecimento. Para sair da dificuldade, os arqueólogos católicos
classificam um grande número de achados dos séculos 1 e II na categoria especial dos
moflumentos criptocristãos, tais corno epitáfios, pinturas murais, e até túmulos que não
podem ser considerados com certeza como cristãos. Os epitáfios sem a sigla DM, sôbre
os quais falamos anteriormente, são igualmente colocados nessa categoria.
Do ponto de vista da investigação científica, nada justifica semelhante categoria. Os
teólogos afirmam que as autoridades romanas proibiam os primeiros cristãos de
realizarem ritos fúnebres, mas isso não é verdade. Sabe-se que as medidas repressivas
das autoridades romanas contra os fiéis da nova fé atingiram o auge no século III e
começos do IV. Ora, existe um grande número de túmulos indubitàvelmente cristãos,
que datam justamente dêsse período, nas catacumbas de Roma, na Ásia Menor, na
África, e em outras regiões. No multinacional Império Romano, não se exigia a renúncia
a tal ou qual culto, mas provas de lealdade política da parte da população. As
perseguições religiosas só ocorriam espordicamente, e por motivos de ordem política.
Além disso, os funcionários do Império nunca se envolviam nos ritos fúnebres. A
criação da categoria de monumentos criptocristãos atesta, uma vez mais, que o
cristianismo começou a se difundir muito mais tarde do que o pretende o dogma da
Igreja.

Tal é o quadro no que concerne aos monumentos cristãos arqueológicos, epigráficos e


papirográficos do século 1 e dos começos do século II. Ële se modifica a partir do
segundo quarto dêsse último século: o número de papiros e monumentos
incontestàvelmente cristãos que datam dêsse período vai aumentando pouco a pouco. O
mais antigo dos documentos desta série é o fragmento de um manuscrito a respeito de
um papiro de. origem desconhecida, cujo texto coincide, no essencial, com o do
Evangelho Segundo João (XVIII — 31-33, 37-38).’4 Se o julgarmos por sua redação,
poderemos situar a data de sua composição em meados, ou, mesmo, no primeiro têrço
do século II. O fragmento de um evangelho desconhecido que se guardou no British
Museum é um pouco posterior ao que acabamos de nos referir. Os textos dêsses dois
papiros, cuja

14 C. H. ROBERTS: 4n Unpublished Fragment of the Fourih Gosp l ia th Joba Rylands


Library, Manchester, 1935.
54

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

data está fixada entre o ano de 125 e o ano de 165 15 foram publicados em 193516

Descobriram-se, doutra parte, entre os papiros desenterrados em Oxirincus (Egito)


fragmentos de evangelhos desconhecidos outrora, assim como várias sentençasl7
atribuídas a Jesus. Recordemos a êsse respeito que o apologista cristão Justino se referiu
a uma coletânea que denomina, precisamente, «Sentenças de Jesus».

De acôrdo com o plano da arqueologia cristã, foram ef etuadas sistemàticamente


escavações em Roma desde os meados do século passado, por iniciativa de Giovanni
Baptista de Rossi. Os materiais recolhidos no decorrer de um século dão uma idéia bem
nítida do caráter dos antigos monumentos da comunidade cristã de Roma. Os que foram
descobertos nas catacumbas de Lucina, de Domitila e de Calixto parecem remontar aos
mais recuados tempos. Estas catacumbas, galerias subterrâneas de vários andáres,
encerram grande número de túmulos, alguns dos quais, note-se isto, pertenciam também
a pagãos.

As mais velhas sepulturas cristãs se encontram nas catacumbas de Lucina e de Domitila


(século II). Elas são excessivamente modestas e suas inscrições, lacônicas, tais como
«Paz à tua alma», «À bemaventurada Sabina». Encofitramos aí emblemas, âncoras
sobretudo, algumas vêzes a imagem de um peixe, símbolo preferido pelos primeiros
cristãos: seu nome em grego, ictis, se compõe das iniciais das palavras «Jesus-Cristo,
Filho de Deus, Salvador», em grego igualmente. Sem nenhuma dúvida, nessas
catacumbas também se enterravam pagãos.

Bem diferentes são as catacumbas de Calixto (Bispo de Roma nos começos do século
III). Ësse cemitério dos cristãos da época em que ocorreram as mais encarniçadas
perseguiç&s é cheio de imagens de peixes, de cordeiros, do Bom Pastor, dos
sacramentos do batismo, da eucaristia, da confissão e de diversos assuntos bíblicos.
Descobriram-se nestas catacumbas vários túmulos de bispos romanos.

A simples comparação ‘das catacumbas de Lucina com as de Calixto basta para dar uma
idéia da profunda evolução da comunidade cristã de Roma, no espaço de apenas um
século. Vê-se aí, doutra parte, que as repressões contra os cristãos dessa
15 H. J. BELL: Cults and Cs’eeds in Greco-Rornan Egypt, Liverpool,

1954, pág. 80.

16 H. J. BELL e T. C. SKEAT: Fragmenis of an Unknown Gos,bel and O.ther Early


Chrisiian Papyri, Londres, 1935.

17 G. GRENFELL e A. HTJNT: Sayings of Oco’ Lord, 1897; G. GRENFELL, L.


DREXEL e A. HUNT: New Sayings of Jesus and Fragmeu: of a Los; Gospel, 1904.

AS FONTES DO CRISTIANISMO

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época de nenhum modo impediam que êles observassem seus ritos fúnebres.

Grande parte dos monumentos encontrados por ocasião das escavações vaticanas
remontam ao século III. Em 1952, foi descoberto em Roma o rico sarcófago do cristão
Valérius Vasatulus sôbre o qual se vê um desenho, assinado por Petrus, representando
dois homens, e o texto de uma prece pela salvação da alma dos cristãos. Êsse sarcófago
data do ano 280.

Acabamos de examinar, de um modo muito geral, os grupos principais de fontes


concernentes ao cristianismo primitivo. Desde que se as estude com espírito crítico,
poder-se-á nelas distinguir o que pertence às diferentes épocas, e, sôbre esta base, seguir
as fases do desenvolvimento da ideologia, das formas de culto e da estrutura interna das
comunidades cristãs primitivas, determinando sua composição ética e social, e
caracterizando sua atitude em face das outraa religiões e da aparelhagem estatal do
Império Romano.

Notemos que os mais antigos monumentos cristãos de que dispomos, tanto literários,
como arqueológicos e papirográficos, datam, em sua maioria, dos meados do século II,
e fornecem informações da extrema pobreza sôbre o primeiro século da nova religião.
Os monumentos arqueológicos relativos ao cristianismo primitivo datam dos meados do
século II, e os papiros os precedem de um ou dois decênios apenas. Nada mais do que
esta circunstância nos faz duvidar, e vigorosamente, de que a composição dos
evangelhos date dos meados cIo século 1, tal como o afirma o dogma ortodoxo. O
exame das fontes judias e greco-romanas nos vai mostrar como o cristianismo nascente
aparecia aos olhos do mundo circundante.

2. FONTES NÃO CRISTÃS

Não se encontra qualquer alusão aos adeptos da nova fé nas fontes não cristãs que
datam do século 1. A maioria das informações a respeito dêles deveria provir, dir-se-á,
dos autores judeus da época. As obras dêstes oferecem com efeito muitos dados
relativos à pré-história do cristianismo, às condições sob as quais a ideologia cristã se
constitui e começou a se desenvolver. Sob êste aspeto, são êles muito importantes, é
rerto, mas não contêm qualquer informação direta sôbre os cristãos. O aparecimento de
uma nova seita na Palestina, os milagres de Jesus, as peripécias dramáticas de sua vida,
tal como é descrita nos evangelhos, e, finalmente, a irradiação e difusão rápida da nova
religião deveriam ter atraído, forçosamente, a atenção dos escritores judeus dêsse
tempo, escritores que nos legaram uma crônica minuciosa de acontecimentos até mesmo
insigniicantes ocorridos então no pequeno país que era a Judéia.
56

A’ ORIGEM DO CRISTIANISMO

Ora, seu silêncio é total a êsse respeito. Isto só se pode explicar pelo fato de o relato dos
evangelhos sôbre os primeiros passos do cristianismo na Palèstina datar do séculõ II, e
não de antes.

Conhecemos três autores judeus do século 1: Filon de Alexandria, Flávio Josefo e Justo
de Tiberíade. De Filon e de Flávio Josefo possuímos não poucas obras, e se estas
chegaram até nós foi, certamente, e antes de tudo, por causa de sua importância para a
história do aparecimento do cristianismo.

Filon de Alexandria (nascido em 30 antes de nossa era, e morto em 54 da era atual)


pertencia a uma família sacerdotal. Fiel à religião judaica, era, ao mesmo tempo, um
grande admirador da cultura grega. Filon consagrou tôda a sua atividade literária à
síntese do judaísmo com a filosofia helenística. Depois das violentas perturbações entre
judeus e gregos em Alexandria, em 38, foi êle quem presidiu a delegação judaica
enviada a Roma.

Pode-se formular como se segue sua concepção filosófica e religiosa: Deus é um ser
absoluto, que sempre existiu, sendo eterno e todo-poderoso. Dirige o mundo por
intermédio de seu Filho, o Logos (o Verbo), que intercede junto de Deus, a favor dos
homens. O homem marc’ado pelo pecado original só consegue sua salvação libertando-
se da vida material. O Logos o associa a Deus.

Salta aos olhos a semelhança entre a idéia do Logos dêsse filósofo e o papel atribuído
pela teologia cristã a jesus, Homem- Deus. Isto não escapou aos Padres da Igreja. Um
dêles, Santo Ambrósio (século IV), sentia tanta admiração por Filon, que estêve a pique
de classificar êsse judeu entre os fundadores da religião do Cristo. Tendo as opiniões de
Filon servido de ponto de partida para a constituição da ideologia cristã, não nos
devemos espantar com o fato de a maioria dos seus escritos se terem conservado
enquanto desapareceram tantas .obras da Antigüidade. Os livros do judeu de
Alexandria, que Engels tão bem qualificou de «pai do cristianismo», pertencem dêsse
modo às fontes do Nôvo Testamento, que, segundo os teólogos, seria de inspiração
divina.

As afinidades entre as idéias de Filon e a ideologia cristã dão mais significação ainda à
ausência de qualquer menção direta ao cristianismo nos seus escritos. Se as
comunicações dos evangelhos a respeito das atividades de Jesus na Judéia fôssem
verdadeiras, Filon, que escreveu várias obras depois do ano 40, não teria -podido
silenciar sôbre o predicador palestino cujas opiniões coincidiam a tal ponto com as suas.
O segundo historiador judeu do século 1, Flávio Josefo (nascido em 37, morto em 100)
viveu na Palestina até a destruição de Jerusalém no ano 70, excluindo-se uma estada de
três anos

AS FONTES DO CRISTIANISMO

57

em Roma. Descendia também de uma família sacerdotal e aristocrática. Educado dentro


do espírito religioso, Flávio Josefo participou da Guerra dos Judeus. Segundo seu
próprio relato foi capturado pelos romanos, e declarou a Vespasiano, futuro imperador
e, então, general das legiões romanas, que a predição dos profetas hebreus sôbre a vinda
do Messias se referia a êle, Vespasíano.

A Guerra dos Judeus e as Antigüidades Judaicas são as duas obras capitais dêsse
escritor. Na primeira, depois de um breve apanhado consagrado ao passado da Judéia,
Flávio Josefo expõe de modo circunstanciado os acontecimentos que provocaram a
guerra em questão, e a própria guerra, até a queda de Jerusalém. A segunda obra
descreve a história da nação judia desde a sua constituição até a época em que vivia o
escritor, e os três últimos capítulos são dedicados particularmente a seu século.

Flávio Josefo permaneceu, durante tôda a sua vida, fiel à fé dos seus ancestrais, o que
não o impediu, contudo, de servir lealmente aos imperadores romanos que haviam
devastado sua pátria. É óbvio que nada tinha em comum com os adeptos da nova
religião. Seus escritos, no entanto, constituem uma fonte preciosa para o estudo da
história da Palestina no primeiro século da nossa era. Nas Antigüidades Judaicas, Flávio
Josefo relata, sem omitir qualquer detalhe, os acontecimentos ocorridos em sua época,
em seu país; fornece informações muito importantes a respeito dos essênios e de outras
seitas da Judéia. A profusão de dados de tôda espécie que se encontra nesta obra torna
ainda mais eloqüente eu total silêncio sôbre os cristãos.

Mas, os doutores da Igreja, percebendo claramente que a essência de qualquer alusão na


obra de Flávio Josefo desacreditava totalmente o mito evangélico, não recuaram diante
de uma falsificação grosseira. Nos manuscritos das Antigüidades Judaicas está escrito
(XVIII, 3, 3) que, sob Pôncio Pilatos, viveu «Jesus, um homem sábio, se é que se pode,
todavia, considerá-lo como um homem, pois foi autor de atos maravilhosos, mestre de
homens que, com alegria, receberam dêle a verdade; êle atraiu muitos judeus, e,
também, muitos gregos. Foi o Cristo. Quando, por denúncia daqueles que eram os
primeiros entre nós, Pilatos o condenou à cruz, aquêles que, desde o princípio, o
amaram continuaram procedendo assim; pois, êle lhes apareceu três dias depois,
ressuscitado de nôvo. E os divinos profetas haviam previsto isto e dez mil outras
maravilhas sôbre êle. Hoje, ainda não desapareceu a seita dos cristãos, nome êsse que
deriva do dêle.» Porém, se se levar em conta a fidelidade de Flávio Josefo à religião
judaica e, também, o fato de êle considerar Vespasiano como o Messias,

58
A ORIGEM DO CRISTIANISMO

de modo algum se poderá aceitar que tenha dado tal título a Jesus também. Segundo a
opinião geral dos historiadores, essas linhas não passam de uma interpolação posterior,
devida a um copista, tão ingênuo, quanto piedoso.

Graças a um feliz acaso, é mesmo possível estabelecer a data dessa intercalação. Um


dos Padres da Igreja, Orígenes, polemizando contra Celso, crítico do cristianismo, acusa
Flávio Josefo de não ter querido admitir que Jesus era o Messias. Eusébio, que compôs
a sua História Eclesiástica no século IV, pouco depois da vitória do cristianismo, já
reproduz as linhas que foram acrescentadas, o que dá lugar à crença de que a passagem
citada foi intercalada nos textos de Flávio Josef o entre os fins do século III e os
começos do século IV. Trata-se de uma interpolação tão manifesta que muitos dos
teólogos católicos não mais ousam negá-la.

Em outra página das Antigüidades Judãicas (XX, 9), Flávio Josefo fala da condenação
de certo «Pedro, irmão de Jesus, chamado o Cristo, e de alguns outros.» Em meados do
século III, Orígenes, em diversas ocasiões, referiu-se a essa passagem que, à primeira
vista, parece muito mais digna de fé do que a que citamos anteriormente. Mas, como
admitir que essas palavras são da pena de Flávio Josefo, uma vez que êsse mesmo
Orígenes o acusou de duvidar de que Jesus fôsse o Messias (o Cristo)? Pode ser que o
original se referisse a outro Jesus. É evidente, em todo o caso, que esta passagem
também traz vestígios da intervenção de copistas cristãos. Nos escritos de Flávio Josefo
nada mais se encontra que se relacione com o cristianismo.

Apesar da ausência de referências ao cristianismo nas duas obras de Flávio Josef o,


tanto urna como outra são indispensáveis ao estudo do problema que nos ocupa, sendo,
com efeito, a única fonte de que dispomos sôbre a história da Palestina antes da Guerra
dos Judeus, e a principal fonte sôbre a história dessa guerra. Se bem que o cristianismo
tenha nascido entre hebreus que viviam fora do seu país, os acontecimentos na Palestina
não deixaram de exercer sôbre êles uma grande influência, onde quer que vivessem, no
Egito, ou na Ásia Menor. É preciso não esquecer, doutra parte, que os autores dos livros
do Nôvo Testamento obtinham dados históricos sôbre a Palestina nos escritos de Flávio
Josefo: vários detalhes dos evangelhos foram emprestados das Antigüidades Judaicas.

Justo de Tiberíades, terceiro historiador judeu do século 1, adversário político de Flávio


Josefo, escreveu várias obras, mas nenhuma delas chegou até nós. Fócio, escritor
bisantino do século IX, Patriarca de Constantinopla, cita, de passagem, sua Crônica dos
Reis Judeus (de Moisés até a morte de Agripa II no ano 100) e acrescenta que Justo
silenciou a respeito de
A FONTES DO CRISTIANISMO

59

<muitas das coisas de primeira importância e, como judeu, não falou do Cristo, de seus
milagres.» É, portanto, claro que, no tempo de Justo, o mito de Jesus ainda não existia.
18

Entre as outras antigas fontes judaicas apenas o Talmud cita o nome de Jesus. Mas, êle
o une a personagens e acontecimentos que se localizam nos primeiros 25 anos do século
primeiro antes da nossa era, portanto, a um século anterior ao dos evangelhos. Esta parte
do Talmud foi composta no século III, e não há a menor dúvida de que apresentaria
muito mais informações concretas sôbre Jesus, se êste tivesse existido realmente. Uma
menção no Talmud (Jesus é aí habitualmente chamado de Ben-Pandira) não pode de
modo algum servir de argumento a favor da historicidade de Jesus. Esta obra data do
século III, quando o cristianismo, já há muito tempo existente, mantinha uma luta
encarniçada contra o judaísmo; o que os redatores do Talmud dizem de Jesus foi
colhido na literatura

cristã, e não na judaica.

Acabamos de ver que os autores judaicos, cujos escritos se conservaram em grande


quantidade, não fornecem a menor prova da existência de Jesus. Teriam êles podido
ignorar de urna maneira tão completa o fundador do cristianismo se no relato dos
evangelhos houvesse uma parcela que fôsse de verdade histórica? Seu silêncio atesta
que o mito de Jesus, Homem-Deus, só foi concebido no século II.

As obras de Sêneca (nascido no ano 4 antes de nossa era, morto em 65), filósofo estóico
dos mais eminentes, contam-se entre aquelas dos escritores greco-romanos que
desempenharam um grande papel na formação da ideologia cristã. Preceptor de Nero,
sua influência foi grande durante os primeiros anos do reinado dêste último. Tendo sido
alvo das generosidades de Nero, Sêneca enriqueceu-se fabulosamente.
Nos seus numerosos escritos filosóficos, enuncia êle a idéia de um Deus absoluto e
todo-poderoso, donde a necessidade da resignação ante os golpes do destino, uma vez
que tudo acontece segundo a vontade do Altíssimo. Classificava os homens em duas
categorias: os sábios, que desprezam os bens terrestres, e os tolos, sequiosos de poder e
de riqueza. Contudo, sua vida parecia desmentir suas teorias. - - Engels, que chamou
Sêneca de «tio do cristianismo», caracteriza como segue o contraste entre os seus
costumes e a sua filosofia: «Êste estóico, que pregava a virtude da abstinência, foi um
intrigante de

18 O silêncio de Justo sôbre Jesus tem embaraçado muitos dos partidários da


historicidade de Jesus. DANIEL-ROPS afirma que se trata de “um silêncio intencional e
revelador”, da mesma natureza que o de PLÁVXO JOSEFO, que êle acusa, sem o
provar, de ter obedecido, no caso, a um cálculo de oportunista.

60 A ORIGEM DO CRISTIANISMO

marca maior na côrte de Nero, e realizava sua tarefa com grande servilismo; foi dêsse
modo que conseguiu ganhar muito dinheiro, bens, jardins, palácios, e apesar de propor
um pobre Lázaro como modêlo, era êle, na realidade, o rico da parábola evangélica. »19

Apesar das diferenças entre as concepções de Sêneca e a ideologia cristã (o filósofo


romano não reconhecia o pecado original e admitia o suicídio), o cristianismo tomou
emprestado dêle muitas coisas. Também os Padres da Igreja, Tertuliano e S. Gerônimo,
o consideravam como um dos seus.
Não se encontra nos escritos de Sêneca, nem nos de outros escritores greco-romanos do
século 1, qualquer alusão a Jesus, ou aos cristãos. Nos começos do século seguinte, a
situação muda um pouco: Tácito e Suetônio já se referem aos adeptos da fé cristã. Nos
Anais (XV, 44) de Tácito fala-se que Nero, depois do incêndio de Roma, em 64,
desejando «emudecer aquêle rumor que o acusava [do incêndio] substituiu os acusados
e infligiu as mais refinadas torturas a homens cujas abominações os tornavam odiosos, e
que o vulgo chamava de cristãos. O responsável por êsse nome, Cristo, tinha sido
condenado ao suplício sôbre o reino de Tibério pelo procurador Pôncio Puatos ( . ..).
Começou-se pela prisão daqueles que se confessavam cristãos, e depois, durante os seus
depoimentos, prendeu-se uma imensa multidão que estava menos convicta de ter
incendiado Roma, do que de odiar o gênero humano.»

Os Anais foram escritos no ano 115 aproximadamente. Nesse momento, o cristianismo


já existia, e o mito do Cristo já começava a se formar. A passagem citada deixa entrever
a hostilidade do historiador para com os cristãos, sentimento muito natural num
representante da velha aristocracia romana. Isto parece confirmar a autenticidade dessas
linhas e, se elas são verdadeiramente do célebre historiador, fizemos, com elas, uma
importante aquisição: êle sabia da existência dos cristãos. Teria podido saber disso
enquanto exercia o proconsulado na Asia Menor, de 112 a 113. Mas, sua afirmação
sôbre a «imensa multidão» de cristãos em Roma no ano de 64 está em contradição com
tôdas as fontes de que dispomos quanto a êste período. Ela não corresponde à verdade e,
fato mais importante ainda, só é encontrada no texto de Tácito porque provém de uma
fonte cristã muito posterior. A referência a Pôncio Pilatos revela igualmente a fonte de
inspiração cristã, porque, apesar de ter desempenhado um papel de primeiro plano no
relato evangélico, Pilatos não era senão um miúdo personagem na escala do Império
Romano.

19 K. MARX e F. ENGELS: Sur la Religion, ditions Sociales, Paris, 1960, pág. 198.
AS FONTES DO CRISTIANISMO 61

As minúcias sôbre os acontecimentos reproduzidos nesse fragmento também despertam


dúvidas. O historiador não as teria podido encontrar nos arquivos, uma vez que sua
crônica é dirigida contra Nero, então no poder. Não se fica sabendo de que eram
considerados culpados os cristão detidos. Do incêndio?! O título de «cristão», por outro
lado, não apareceu senão no século II. E preciso, portanto, admitir-se que esta
passagem, apesar de ser devida a pena de Tácito, foi composta por êle segundo a
tradição cristã, se bem que interpretada contra os cristãos. A versão sôbre a participação
dos cristãos no incêndio de Roma, versão negada pelo próprio historiador romano, foi
naturalmente inventada em todos os seus aspetos. Quanto à existência de grupos
cristãos, ou melhor: judaico- cristãos, em Roma, em 64, nada há de impossível nisso,
especialmente se levarmos em conta que o Apocalipse de João remonta ao ano de 68.
Mas, no seu conjunto, o Anais oferecem muito poucas informações dignas de fé sôbre a
história do cristianismo original.

Suetônio, contemporâneo de Tácito, autor de Os Doze Césares, compostos sob Adriano,


durante o segundo quarto do século II, fala também das perseguições de que os cristãos
tinham sido vítimas da parte de Nero. «Entregaram-se aos suplícios os cristãos, espécie
de gente que se dedica a uma superstiçãci nova e malfazeja.» (Nero, XVI.) No Cláudio
(XXV), Suetônio comunica: «Como os judeus se sublevassem continuamente,
instigados por certo Crestos, êle os expulsou de Roma.» Aqui, trata-se de judeus, não de
cristãos, e a coisa se passa em Roma. Conhecendo a língua grega, gramático cheio de
erudição, Suetônio não poderia de modo algum confundir Crestos, nome de escravo
bastante difundido e que significa «zeloso, útil», e Cristo, do grego Cristos, oint, o
Messias. Não se pode admitir, finalmente, a existência de um número elevado de
cristãos em Roma sob Cláudio (41-54). E claro, portanto, que essa segunda informação
de Suetônio não se refere aos cristãos.

Se as passagens citadas de Tácito e de Suetônio são autênticas, é necessário considerá-


las como testemunhas de grande valor no que concerne à difusão do cristiaiismo durante
a primeira metade do século II; elas indicam que mesmo certos representantes das altas
camadas romanas já conheciam o cristianismo em suas linhas gerais. Porém, nem o
primeiro, nem o segundo dêsses historiadores nos dão uma única informação a respeito
de ideologia cristã no século 1.

O primeiro testemunho inegável a respeito do cristianismo como tal nos vem de Plínio,
o jovem, escritor romano, nascido em 62, morto depois de 113. Tendo exercido a pró-
pretoria em Bitínia, na Ásia Menor, de 111 a 113, mantinha corres-
62 A ORJGEM 00 CRISTIANISMO

pondência regular com o Imperador Trajano, e suas cartas assim como várias respostas
de Trajano chegaram até nós. Em uma vasta mensagem (X, 96), Plínio pergunta como
deve proceder em relação aos cristãos. Trajano (X, 97) responde que não é necessário
adotar medidas especiais a êsse respeità, bastará punir aquêles que, acusados de
professar a nova fé, não a quiserem renegar. A missiva de Plínio revela vestígios
evidentes de interpolações que revelam o grau de propaganda do cristianismo na Bitínia
nessa época, os costumes virtuosos dos cristãos etc. Mas, não parece que ela seja
totalmente falsa: Tertuliano já se refere a ela no século II, assim como à resposta de
Trajano.

Pode-se considerar as duas cartas em questão como o primeiro documento importante


de origem não cristã sôbre os cristãos.20 A correspondência entre Plínio e Trajano nos
informa a respeito da atitude dos círculos governamentais do Império Romano em
relação aos cristãos, bem como sôbre a ação judiciária empregada contra êles, a
composição e a estrutura das comunidades cristãs, ainda que tenham sido acrescentadas
intercalações manifestas exatamente a essas passagens.
Esta correspondência contém, doutra parte, muitos dados sôbre a situação em uma
província da Ásia Menor onde o cristianismo ir-se-ia difundir muito depressa. As outras
cartas de Pumnia, o jovem, e sobretudo as de Trajano, mostram que as autoridades
romanas não estavam muito inclinadas a perseguir os cristãos, por suas convicções
religiosas.

Outros testemunhos de origem não religiosa sôbre o cristianismo só começam a


aparecer depois de um intervalo de vários decênios, a partir da segunda metade do
século II. Encontram-se comunicações lacônicas sôbre os cristãos nos escritos de Marco
Aurélio, imperador-filósofo que reinou de 161 a 180. Luciano e Celso atacaram os
cristãos, em suas obras.

O primeiro, nascido em 125 e morto em 195, foi um dos mais brilhantes escritores
gregos da Antigüidade. Atribuem-se- lhe aproximadamente 80 escritos conservados; de
pequena extensão, na sua maioria, têm, geralmente, a forma de diálogos. «Luciano de
Samosata, escreveu Engeis, o Voltaire da Antigüidade, que mantinha uma atitude
igualmente cética a respeito de tôda espécie de superstição religiosa, e que, por
conseguinte, não tinha motivos — nem por crença pagã, nem por política

— para tratar os cristãos diferentemente de qualquer outra associação religiosa. Ao


contrário, censura a todos por sua

20 O Acadêmico R. Viraz, em Roma e o Cristianismo Primitivo, sustenta que esta carta,


assim como muitas outras, não é de PLÍNI0. A. RANOVITCH, em Províncias do
Império Romano, manifesta opinião diferente dessa.
AS FONTES 00 CRISTIANISMO 63

superstição, tanto aos adoradores de Júpiter, como aos de Cristo. »21

Em a Morte de Peregrino, Luciano fala dos primeiros cristãos com conhecimento de


causa, e com muitos detalhes. No opúsculo Alexandre, ou o Falso Profeta, menciona-os
também, mas de passagem apenas. Estes dois escritores assinalam, com um tom irônico,
certos traços próprios às comunidades cristãs dos meados do século II. A Assembléia
dos Deuses, curta cena satírica de Luciano, caracteriza bem o sincretismo religioso nas
regiões orientais do Império Romano. Suas obras, no seu conjunto, constituem uma das
melhores fontes para o estudo das diversas crenças religiosas em sua época.

Celso, contemporêneo de Luciano, compôs na década dos 70 do século II seu Discurso


Verdadeiro, que conhecemos apenas pelos fragmentos citados por Orígenes em sua obra
Contra Celso. Para criticar as teses de Celso, Orígenes as reproduz e, assim, permite-nos
ter uma idéia bem completa de sua obra. Esta comportava quatro partes, a primeira das
quais continha a crítica do cristianismo, do ponto de vista do judaísmo, a segunda, do
ponto de vista da filosofia e da história, a terceira, a crítica de certos dogmas da religião,
e a última procura demonstrar a possibilidade de conciliar o cristianismo, com os outros
cultos do Império.

Contràriamente a Luciano, Celso criticava o cristianismo não das posições do


materialismo antigo, mas das posições da religião greco-romana oficial. Contudo, seus
excelentes conhecimentos da literatura cristã e do estado das coisas no seio das
comunidades de cristãos conferem aos seus escritos um grande valor histórico. A obra
de Celso é indiscutIvelmente uma fonte indispensável para o historiador do cristianismo
do século II.

O escrito intitulado Coecilius datando, segundo parece, dos

fins do século II, e a obra capital de Porfiro Contra os Cristãos

(sécuin III) se assemelham ao Discurso Verdadeiro de Celso

por seu espírito e por sua argumentação. Assim como outras

obras anticristãs, estas não chegaram até nós senão pelas citações

incluídas nos escritos dos apologistas cristãos. O livro de

Porfiro suscitou particularmente a ira dos representantes da

Igreja e foi objeto, em 448, de um edito especial do Imperador,

que proclamava: «Queimar tudo que Porfiro, impelido pela

loucura, escreveu contra a santa fé cristã, por tôda parte em


que seus escritos sejam descobertos.» (Código Justiniamo,

1,1,3.)

21 Karl MARx e F. ENGELS, ob. cit., pág. 313.

A ORIGEM DO CRISTIANISMO 64

Tiremos algumas conclusões dêste rápido apanhado das fontes cristãs.

Para prosseguirmos na análise do problema das origens cristãs, é preciso classificar as


fontes em ordem cronológica. Êsse é um ponto de primeira importância, pois não se
pode, sem isso, passar ao estudo sistematizado da ideologia do cristianismo primitivo,
da sua composição social, das suas formas de organização e da sua propagação.
Sômente êsse método histórico de abordar a questão nos permitirá seguir as fases da
gênese e do desenvolvimento inicial da religião cristã, a mais influente entre as três
religiões universais.

Vimos, páginas atrás, que os meados do século II marcam uma mudança no que
concerne ao número dos documentos relativos ao cristianismo; Quais são, portanto, as
fontes anteriores a essa época? O documento mais antigo, não apenas da literatura cristã
primitiva, mas também da cristandade em geral, é o Apocalipse de João, do qual pelo
menos os temas maiores remontam ao final da década dos 60, do século 1. Depois do
Apocalipse vêm, com algumas dezenas de anos de intervalo, as primeiras epístolas de
São Paulo e, datando dos primeiros anos do século II, os Anais de Tácito e a
correspondência de Plínio, o jovem, com Trajano. Ao segundo quarto do século 11 se
ligam as epístolas paulinianas seguintes, a breve relação de Suetônio, e vários pequenos
fragmentos evangélicos em papiros.

Dispomos, além disso, de uma série de documentos cristãos primitivos cuja data exata
não está estabelecida, mas que, em todo caso, remontam à primeira metade do século II.
São êles a Dida quê, grande parte das epístolas do Nôvo Testamento atribuídas a outros
apóstolos e, evidentemente, uma parte das epístolas não apostólicas. A êste último
grupo pertencem a primeira epístola de Clemente, Bispo de Roma, as epístolas de
Inácio, e outros documentos menos importantes. Os mais antigos monumentos cristãos
descobertos durante escavações nas catacumbas de Roma datam também dêste período.
E, encerrando a série, temos as obras de Justino, primeiro apologista cristão, escritos por
volta do ano de 150, as Sentenças de Jesus e as Recordações dos Apóstolos, coletâneas
hoje perdidas, mas que forneceram a matéria prima para o Evangelho Segundo Marcos.

O segundo grupo de fontes, provenientes da segunda metade do século II, é muito mais
abundante. Luciano e Celso, críticos do cristianismo, escreveram de 150 a 175. Os
evangelhos introduzidos no cânone da Igreja, as epístolas pastorais de Paulo, os escritos
de Taciano, discípulo de Justino, também pertencem a êsse período.
AS FONTES DO CRISTIANISMO 65

Por volta de 180, Irineu escreveu seu tratado contra as heresias, e Hermas, o seu Pastor.
Os Atos dos Apóstolos, o escrito mais recente do Nôvo Testamento, foram redigidos
defi nitivamente nesta época também. As primeiras obras de Tertuliano e de Clemente
de Alexandria datam dos fins do século II.

Da primeira metade do século III, temos muitos escritos devidos a êsses autores e a
outros Padres da Igreja, Orígenes particularmente. Seus dados são completados por
numerosas descobertas arqueológicas e papirográficas, pelas alusões aos cristãos que
encontramos numa série de obras antigas não cristãs, por testemunhos das mais diversas
origens. A partir desta época, dispomos já de uma quantidade mais ou menos suficiente
de documentos que tratam do nosso problema.

A abundância relativa, a partir dos meados do século II, de escritos cristãos, assim como
o aparecimento de obras dirigidas contra o cristianismo, atesta que êste último já era
uma corrente religiosa relativamente poderosa, que já havia atingido certa maturidade
há alguns decênios. Esta circunstância nos faz duvidar, por si só, da justeza da tese do
Acadêmico R. Viper, segundo a qual o cristianismo acabava, nesse momento, de surgir.

A nítida desproporção entre a pobreza das fontes cristãs do século 1 e a profusão de


documentos cristãos e anticristãos do s&ulo seguinte não pode ser explicada pelo acaso,
ou pela súbita difusão da nova religião. Com tôda evidência, a cons tituição da Igreja
desempenhou nisto um papel decisivo. A criação do episcopado, o fortalecimento das
ligações entre as comunidades crista.s, os imperativos da luta contra as heresias ditaram
a necessidade de santificar certo número de escritos. Outro fator não menos importante
foi o aniquilamento, pela igreja, dos escritos cristãos dos primeiros tempos, contrários
ao espírito dos seus dogmas. Ela nisso se afervorou particular- mente depois da vitória
do cristianismo, quando a máquina do Estado foi posta a seu serviço. Êste estado de
coisas se refletiu na passagem anteriormente citada do Código Justiniano a propósito
dos escritos de Porfiro, na história dos papiros gnósticos de Chenobosquion, na
confiscação do Diatessarão de Taciano. E óbvio que as obras cristãs pouco agradáveis
para a Igreja eram sobretudo as mais antigas, profundamente diferentes, por seu espírito
combativo, não, sàmente, da ideologia clerical oficial, mas, também, dos escritos
cristãos que datam dos meados e da segunda metade do século II. Ë por isso que eles
eram destruídos ou remodelados de acôrdo com as cxiências da Igreja triunfante.

Sendo a ordem cronológica do aparecimento dos primeiros escritos cristãos


diametralmente contrária à ordem de sua disposição segundo a tradição ortodoxa, a
história do nascimento
A ORIGEM DO CRISTIANISMO 66

e do desenvolvimento inicial do cristianismo à luz da ciência difere radicalmente do


esquema teológico adotado pela Igreja, que é tão velho como a História Eclesiástica de
Eusébio. A análise objetiva dos documentos da literatura cristã primitiva e sua
interpretação pelos escritores religiosos se opõem a cada passo no que concerne às
questões, tanto gerais, como particulares, da história do cristianismo.
CAPÍTULO II

O IMPÉRIO ROMANO NO SÉCULO 1. PREMISSAS ECONÓMICAS E SOCIAIS


DO CRISTIANISMO.

O cristianismo apareceu no século 1, entre os judeus da diáspora, país onde se fixavam


após a dispersão. Difundiu-se muito ràpidamente nas províncias orientais do Império
Romano, na Ásia Menor e, particularmente, no Egito. Nos começos do século seguinte,
a nova religião penetrava na Grécia. Durante a primeira metade dêsse século, ela já
tinha fiéis em Roma, durante a segunda, na Gália, na África do Norte, particular- mente
em Cartago cuja comunidade cristã era uma das mais consideráveis da época. No século
III, a Igreja, tornada uma fôrça política, começou a se impor aos podêres romanos;
legalizado nos começos do século IV, o cristianismo não tardou a vir a ser a religião
oficial do Império. Assim, três séculos após seu nascimento, êste culto que - foi tão
combatido no início se transformou em religião dominante em Roma.

Três séculos são um período muito longo, mesmo se levarmos em conta a lentidão da
evolução histórica durante a Antigüidade. O islamismo, por exemplo, levou dois séculos
para se expandir por um território muito vasto. Recordemos, doutra parte, que a difusão
do cristianismo não seguiu sempre uma linha ascendente; durante êsses trezentos anos, a
nova religião conheceu períodos em que sua popularidade subia a pino, e outros em que
o número de seus fiéis diminuia catastr ficamente. Seu conteúdo mudava também muito
ràpidamente. O triunfo espetacular do cristianismo sôbre as outras religiões da
Antigüidade não deixa de ser, contudo, um acontecimento de primordial importância e
exige como tal uma explicação estritamente científica.

Para apreender as razões do êxito do culto cristão, é necessário, inicialmente, analisar a


situação social e política das regiões do Império Romano em que êle nasceu e se
desenvolveu, e sômente depois, as formas religiosas dêsse culto, que correspondem, no
fundo, às relações reais. Tal é o único método materialista nesta ocorrência, portanto, o
único verdadeiramente científico.

No decorrer de dois séculos (dos - meados do III, à segunda metade do 1 antes da nossa
era), o Estado Romano, que, a princípio, se extendia nicamente à Península Itálica,
tornou-se a primeira potência do mundo antigo. Englobou, progressivamente, a
totalidade dos países mediterrâneos, limi

67

68

A ORIGEM DO CRISTIANISMO
tando-se a Leste, pelo Eufrates, ao Norte, pelo Danúbio e o Reno, a Oeste, pelas
margens do Atlântico, ao Sul, pel@ Deserto de Saara e as cataratas do Nilo. Todos os
centros culturais da Antigüidade cairam sob o poder romano, com exceção da India, da
Partia e da China.

A aglutinação dos países da bacia mediterrânea sob o signo do Império foi o resultado
de uma série de causas. A principal foi a escravidão, muito mais antiga nos países
conquistados, do que em Roma, e que havia provocado a decadência dêsses países. Os
escravos não estavam de modo algum interessados em elevar a produtividade do
trabalho. Nessas sociedades, o trabalho físico era desprezado; era considerado indigno
do homem livre. A única exceção era a agricultura. Como o trabalho dos escravos ia
substituindo o trabalho dos homens livres, isso frenava o desenvolvimento das fôrças
produtivas. Durante a Antigüidade, os Estados escravagistas em decomposição caiam
freqüentemente sob a dominação de outros, mais poderosos precisamente porque a
escravidão nêles era menos desenvolvida, e porque dispunham de uma vasta camada de
cultivadores livres que fornéciam combatentes de boa têmpera. A Grécia, por êsse
motivo, foi conquistada pela Macedônia, reduzida, por sua vez, a província romana.
Uma vez que ambas «repousam elas próprias sôbre a escravidão — notou

F. Engeis no Anti-Duhring — houve inicamente um deslocamento do centro, e o


processo se repete num nível superior.»1

A constituição do Império Romano foi justamente uma repetição dêsse processo num
nível superior, e, nos seus quadros, as relações escravagistas se estenderam a um imenso
território.

A constituição do poderio romano mediterrâneo modificou a economia, tanto da Itália,


como de suas províncias. No decorrer dos séculos II e 1 antes de nossa era, o número de
escravos na Itália aumentou consideràvelmente. As guerras quase incessantes forneciam
ao Império centenas de milhares de novos escravos. Se bem que pouco produtivo, o
trabalho dos escravos concorria com o dos produtores livres, com algum êxito. E eis por
que. A concentração das massas de escravos pertencentes a um único senhor assegurava
as vantagens próprias à simples cooperação, permitiam estabelecer entre êles uma
divisão do trabalho ainda que primitiva, favorecia a especialização. Os escravos, por
outro lado, levavam uma vida miserável, não tinham, em geral, uma família para
manter, e os gastos necessários à sua manutenção eram, portanto, muito inferiores
àqueles exigidos pelos trabalhadores livres. A feroz exploração de que êles eram vítimas
os esgotava terrivelmente, e raros eram aquêles que conseguiam viver mais de dez anos
em estado

1 F. ENGELS: Anti-Dühi’ing, c1itions Sociales, Paris 1950, pág. 389.


IMPÉRIO ROMANO NO SÉCULO I

69

de escravidão. Mas, êles custavam tão pouco, que podiam ser fàcilmente substituídos
por outros mais jovens.

Para servir no exército, os cultivadores livres eram afastados durante longos anos de
suas terras. As guerras exteriores e, sobretudo, as guerras civis que causavam estragos
na Itália traziam grandes prejuízos às pequenas economias camponesas, enquanto os
ricos senhores de escravos se recuperavam muito fàcilmente. Tôdas essas
circunstâncias, sem ter determinado a desaparição completa dos médios e dos pequenos
cultivadores, contribuíram, contudo, para diminuir consideràvelmente o seu número.

O trabalho dos escravos era também largamente empregado no artesanato, sem atingir,
todavia, as proporções que êle tinha nas cidades evoluídas da Grécia. O trabalho manual
e o artesanato eram considerados em Roma como ocupações incompatíveis com o
exercício dos deveres do cidadão romano. Sômente as profissões «intelectuais»
gozavam de certa consideração. Em meados do século 1 antes da nossa era, centenas de
milhares de romanos viviam graças a distribuições graciosas de alimentos.

A implantação das relações escravagistas provocou na Itália profundas perturbações


sociais tais como a redução catastrófica do número de produtores livres no artesanatõ e,
sobretudo, na agricultura, e o aparecimento de enormes contingentes de desclassificados
que viviam à custa da sociedade, isto é, graças ao trabalho dos escravos do Império. Em
conseqüência, as condições de vida das massas laboriosas da Itália se agravaram
sensivelmente.

A conquista romana não era menos trágica para as provmncias. - Era acompanhada de
terríveis destruições das fôrças produtivas. Os conquistadores levavam para a
escravidão centenas de milhares de cativos. Nenhum historiador romano esquece de
mencionar quantas libras de ouro ou de prata tal ou qual general trazia consigo no seu
retôrno triunfal a Roma. As guerras, fonte de enriquecimento para os generais e legion
rios de sorte, deixavam atrás delas rumas. Os escritores da antiga Roma o constatam
mesmo na Grécia, onde os conquistadores se mostraram contudo menos ferozes do que
em outros lugares. «Quàndo do meu retôrno da Ásia, escrevia a Cícero um dos seus
amigos, fui de barco, de Egina, a Megara, e pus-me a observar as costas. Atrás -de mim,
estava Egina; na frente, Megara; à direita, o Pireu; à esquerda, Corinto; essas cidades,
Outrora florescentes, encontram-se hoje completamente devas. tadas.» Estrabão,
geógrafo grego que escreveu no limiar de. nossa era, nota que, em Esparta, de cem
cidades apenas umas trinta subsistiam após a invasão. Plutarco (século II.°) diz que no
seu tempo, a Grécia não podia opor ao inimigo mais que três mil hoplitas (soldado de
infantaria pesadamente

70

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

armado), enquanto que outrora a pequena Megara teria podido, ela só, equipar tal
número.

Êstes fatos mostram que, depois das operações militares, outros fatôres intervieram e
impediram durante centenas de anos o soerguimento das regiões conquistadas pelos
romanos. Nos países vencidos, em lugar das legiões e, muitas vêzes, antes de sua
partida, chegavam os famosos publicanos, coletores dos dinheiros públicos, e tôda sorte
de usurários que completavam a obra de destruição. Um dos exemplos mais eloqüentes
da pilhagem que os governadores romanos realizavam nas províncias é dado por Caius
Verres, Protetor da Sicília, que, do ano 73 ao ano 71 antes de nossa era, embolsou a
colossal soma de

40 milhões de sestércios pela violência, pelo impôsto sôbre o vinho, pelo roubo, e assim
por diante. Depois dessas suas investidas, a metade, aproximadamente, das terras
aráveis foram abandonadas e em muitos lugares a população baixou de dois terços. Um
sistema complexo e ruinoso de impostos, de contribuições e de outras exações absorvia
a seiva vital das cidades subjugadas por Roma. As taxas da usura se elevavam
ordinàriamente a 12% de juros anuais, freqüentemente a 24% e, às vêzes, a 4896. Não é
por acaso que, nos evangelhos, os publicanos, recebedores dos impostos, figuram entre
os pecadores mais inveterados. Os devedores que não podiam pagar suas dívidas eram
vendidos no mercado de escravos.

As massas dos países conquistados já não eram livres antes da instauração do poder
romano, mas, agora, depois da vitória de Roma, o eram ainda menos. A linha política
dos conquistadores consistia em não se imiscuir nos negócios religiosos, apoiando
invariàvelmente as classes possuidoras, contra a população sôbre a qual passava, então,
a pesar um duplo jugo, o dos dominadores estrangeiros, e o dos opressores indígenas.
Nos países em que existiam cidades autônomas, os romanos conservaram os conselhos
urbanos e outras instituições locais, mas isso era apenas formal porque, na realidade,
todo poder pertencia aos funcionários romanos. É por isso que, depois da conquista da
Grécia, a vida política tão intensa das cidades- estados anemiou-se cada vez mais, até
extinguir-se finalmente de uma vez.

A colonização romana desempenhou por seu lado um papel importante na desagregação


da antiga ordem de coisas. Para evitar o descontentamento das camadas pobres da
República, as autoridades romanas fundavam colônias nos países conquistados e davam
aos cidadãos de Roma os melhores lotes das terras confiscadas à população local. Essas
colônias, especialmente as do Oeste, eram não apenas bastiões da hegemonia romana,
mas tornaram-se com o tempo centros da vida eco-
O IMPERIO ROMANO NO SÉCULO 1

71

nômica. Os colonos implantavam em tôrno dêles o regime escravagista.

O processo judiciário era outra arma de fortalecimento da dominação romana. Julgava-


se em tôda parte segundo a lei romana, sem levar em conta a legislação local. A
distinção entre homens livres e escravos, proclamada continuamente pelo direito
romano, favorecia o desenvolvimento da escravidão antiga nos novos lugares. Os
privilégios de que gozavam os cidadãos romanos produziam o mesmo efeito.

As nações submetidas ao poder de Roma só se beneficiavam de uma vantagem: a de


uma paz relativa. No decorrer dos dois primeiros séculos depois da fundação do
Império, isto é, do reinado de Augusto (a partir do ano 31 antes da nossa era), até o
início do reinado de Marco Aurélio (no ano 161 de nossa era) esta circunstância
desempenhou seguramente um papel positivo, favorecendo a consolidação das relações
econômicas entre as províncias, o progresso do comércio e, parcialmente, o dos ofícios.

A paz não era conhecida antes da constituição do Império. Considerando-se apenas a


parte oriental do que seria mais tarde o Império, e não se levando em conta os conflitos
menores, essa região foi, sàmente durante os primeiros 70 anos do século 1 antes de
nossa era, arena de três guerras mitridáticas de extrema violência, de guerias contra os
piratas, de choques sangrentos entre as tropas de César e as de Pompeu, entre
republicanos e partidários do segundo triunvirato, entre os soldados de Otávio, e os de
Antônio. A população dessas províncias orientais era, de cada vez, vítima de pesadas
contribuições, impostas por um, ou por outro vencedor.

As conseqüências econômicas e políticas das conquistas romanas exacerbavam no mais


alto grau as contradições sociais. O último século da República Romana, desde os
Gracos (113 antes de nossa era), até a instauração da ditadura de Otávio (31 antes de
nossa era) viu movimentos revolucionários maciços, tanto na Itália, como nas
províncias, movimentos que congregavam os escravos, os cidadãos pobres, e as nações
oprimidas. O comêço dêsse século foi marcado pela primeira rebelião dos escravos
sicilianos, pelo levantamento dos escravos e dos pobres dii Ásia Menor dirigido por
Aristônico, pelas rebeliões de escravos em Delos e na Ática, por choques armados entre
partidários da aristocracia e os adeptos dos Gracos, na própria Roma. Éstes
acontecimentos foram seguidos, desde a aegunda insurreição dos escravos sicilianos,
pela guerra entre romanos e italiotas, pela grande insurreição de escravos chefiada por
Espártacá, e por outros movimentos menos importantes. A guerras mitridáticas a leste
do império revestiram-se tambdm, de certo modo, de um caráter libertador. Na
Península
72

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

Ibérica, os fberos mantiveram durante dezenas de anos lutas violentas contra seus
opressores.

Os grupos sociais que participavam dêsses movimentos anti- romanos permaneciam


isolados, não agiam de acôrdo, daí sua fraqueza. Os contatos eram raros entre os pobres
e os escravos, entre os movimentos populares do centro da bacia mediterranea, e os das
regiões fronteiriças; as legiões romanas conseguiam bater os rebeldes, uns após os
outros.

Em certos momentos, porém, a vaga popular parecia estar a ponto de aniquilar os


conquistadores. A velha máquina de opressão de Roma, a cidade-estado, tornava-se
inoperante contra as massas. A base social da República Romana mostrava-se muito
estreita, pois a única classe dominante em Roma era o patriciado: aristocracia
proprietária de terras e escravagista. Ëste estado de coisas suscitou descontentamento
não apenas dos senhores de escravos, nas províncias, mas também de outras camadas
das classes possuidoras, em Roma. Para conservar o seu poder, a classe dominante foi,
portanto, obrigada a renunciar às formas republicanas de govêrno, e a passar a outros
métodos. E o Império Romano nasceu no decorrer de uma luta política e social das mais
encarniçadas.
Apoiando-se nas mais amplas camadas escravagistas e, antes de tudo, no exército, os
imperadores romanos, exercendo uma ditadura militar, esmagaram finalmente os
movimentos revolucionários das massas, consolidando assim, e por longo tempo, o
poder da classe escravagista. Do primeiro século do Império, até aos últimos anos do
reinado de Nero, as insurreições populares cessaram quase que completamente. Esta
calmaria foi interrompida pela guerra civil de 68 a 69, depois da qual os Flávios e os
Antônios puderam reinar mais de um século, ainda nas condições de uma paz mais ou
menos geral.

Esta palavra não deve ser tomada muito ao pé da letra, repetimos. No decorrer dêsse
período alguns motins rebentavam de tempos em tempos no seio das Jegiões, algumas
revoltas ocorriam nas províncias. Mas, eram perturbações locais que, regra geral, não
ameaçavam o poder imperial. Em relação ao que se tinha visto durante a crise da
República Romana, o movimento das massas atravessava uma fase de refluxo.

A relativa estabilização do poder imperial devia-se, em última análise, ao fato de que o


modo de produção escravagista não tinha ainda esgotado tôdas as suas possibilidades
quanto ao desenvolvimento das fôrças produtivas. Durante os dois séculos do Império, a
produção aumentou apesar de tudo, se bem que de modo diferente e em condições
diversas, a leste, e a oeste,

O colonato apareceu nesta época como o principal meio de aumentar a produtividade do


trabalho, na agricultura. No

O IMPÉRIO ROMANO NO SÉCULO I

73
século 1 da nossa era, os ricos proprietários territoriais e senhores de escravos
procuravam descobrir as razões da decadência da agricultura na Itália. Columelo,
escritor romano da época de Nero, via a causa dêsse mal no aumento da escravidão.
«Confiamos o cultivo da terra, escrevia êle, aos piores dos nossos escravos como a
carrascos que devem punir o solo, enquanto que os nossos antepassados o trabalhavam,
êles mesmos, com o maior cuidado.» Columelo acusa os escravos de causar grandes
prejuízos aos campos, de alugar os bois a outros, de pastorar o gado sem nenhum
cuidado, de lavrar a terrá negligentemente.

Tais coisas eram, antes de tudo, manifestações da luta de classe dos escravos contra seus
opressores. O colonato era considerado pelos grandes proprietários territoriais como a
única saída possível para passar a novos métodos de exploração. Começaram por
arrendar aos lavradores empobrecios e às pessoas qtie se achavam sob sua dependência
lotes de terra, em troca de parte das colheitas. Êsses arrendatários, estabelecidos sôbre
uma parcela de terra, receberam o nome de colonos. Concediam-se lotes, pecules, quase
nas mesmas condições a alguns escravos. A diferença entre êsses escravos e os colonos
se devanecia com o tempo; .êstes últimos, embaraçados pelas dívidas, perdiam o direito
de abandonar sua parcela de terra, na qual ficavam assim enraizados.

No decorrer dos dois primeiros séculos do Império Romano, o número de colonos não
deixou de crescer. Convém lembrar que mesmo aquêles que estavam fixados ao solo
pelas suas dívidas não eram escravos no sentido corrente do têrmo:

não podiam ser vendidos em sua parcela e estavam até certo ponto interessados na
produtividade do seu trabalho. Friedrich Engels achava que os colonos romanos da
Antigüidade foram os predecessores dos servos da Idade Média.

Sem sair dos quadros do regime escravagista encontrou-se dêsse modo um meio de
aumentar provisàriamente o rendimento do trabalho rural. Esta passagem a novas
formas de exploração era tanto mais necessária quanto durante êste período a afluência
de escravos vindos de fora estava diminuindo sensivelmente por causa do
desaparecimento quase completo das guerras de conquista.

O fortalecimento econômico provisório do Império foi favorecido pela propagação da


forma antigá de propriedade e de escravidão em territórios em que formas de exploração
mais primitivas tinham reinado até então. Sob a República, a escravidão se difundiu
sobretudo na Itália. Em seguida, começou a se estender, se bem que em escala mais
reduzida, nas províncias ocidentais onde surgiam novas cidades, desenvolviam-
74

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

se os ofícios e a agricultura, processo que ocorria igualmente nas províncias orientais,


mas sob outras formas. As velhas formas de exploração escravagista cediam o lugar, na
Ásia Menor e no Egito, a uma forma mais evoluída: a antiga.

A normalização da vida econômica das províncias foi favorecida também pela sua
divisão em dois grupos, umas submetidas à jurisdição do Senado, outras à pessoa do
Imperador. Se, na época da República, os governadores romanos eram substituidos
anualmente — período durante o qual êles pilhavam sem piedade — agora, os
funcionários eram nomeados por um prazo mais longo, e, graças a isso, certa ordem foi
introduzida por êles na cobrança dos impostos. A criação de uma máquina
administrativa das províncias, submetida ao Imperador, teve como resultado a
consolidação de sua economia. Suetônio, historiador romano, relata a êsse respeito, no
seu Tibério (XXXII), o seguinte: «A governadores que lhe aconselhavam aumentar os
impostos de suas províncias, êle escreveu que um bom pastor devia tosquiar suas
ovelhas, não esfolá-las.»

O alargamento da base social do poder imperial agia no mesmo sentido. Sob a


República, a classe dominante compunha-se apenas dos escravagistas de Roma. O sinal
de pertencer a esta classe era o título de cidadão romano, se bem que os antigos
cidadãos romanos não fôssem todos grandes escravagistas. Com o tempo, o poder
imperial decidiu conceder êsse título e os direitos correspondentes aos aristocratas e aos
rkos das províncias, a princípio, e depois (a partir do ano 212), a tôda a população livre
do Império.

O poder imperial garantiu ao povo uma paz relativamente durável, como já o


assinalamos anteriormente. A Pax Roma’Ia, tão louvada pelos escritores latinos, e, nos
nossos dias, pelos ideólogos do imperialismo, significava, na prática, o esmagamento
sangrento de qualquer movimento de libertação. As províncias eram pilhadas pelos
homens de Roma, explorava-se ferozrnente a população laboriosa, tanto das regiões
fronteiriças do Império, como na Península Itálica. Esta paz criou, contudo, as
condições indispensáveis à normalização da vida econômica, ao desenvolvimento das
relações comerciais entre as diversas regiões do Império, e, particularmente, ao
florescimento dos ofícios.

A exemplo de todos os grandes impérios da Antigüidade, Roma era um conglomerado


de povos e países que tinham, cada um, sua vida econômica própria. Mas, sendo a sua
produção mercantil, pelo menos durante os dois primeiros séculos da nossa era, muito
superior à produção das outras potências do mundo antigo, Roma pôde vencer as fôrças
centrífugs, e sair da crise excepcionalmente grave que a acometeu no século III. O
Império era estável; êle durou. Graças ao

O IMPIIRIO ROMANO NO SÉCULO 1

75

desenvolvimento das relações comerciais, as províncias o.rientais, muito mais ligadas


econômicamente entre si do que as ocidentais, puderam sobreviver a uma convulsão tão
profunda e séria como as grandes invasões.

Não se deve, naturalmente, exagerar a importância dcs fatos citados. No seu conjunto,
não fazem mais do que explicar as causas da instauração do regime imperial, e da sua
estabiliclade em ielação à ordem anterior, O Império não podia, com tôda evidência,
eliminar as contradições inerentes io regime escravagista. Tôda tentativa de as recalcar
devia preparar explosões ultcriores muito mais poderosas, o que efetivamente aconteceu
quando o Império Romano desmoronou, e, com êle, seu modo dc produção fundado na
escravidão. .itqunto que, sob a República, os movimentos revolucionários dos escravos
e dos pobres seguiam cada um seu próprio curso, não coincidindo senão
cronolàgicamente, sob o Império, a aparição do colonato criou condições favoráveis à
ação conjugada das diversas camadas da população oprimida. A concessão dos direitos
de cidadão romano, que, a princípio, tinha alargado a base social do poder imperial,
tornou-se, por fim, simples formalidade. O edito do ano 212, concedendo êsses direitos
a tôda a população livre do Império, foi acolhido com indiferença. Certas vantagens que
as províncias tinham obtido quando da introdução da nova ordem administrativa sob
Augusto no tardaram a se transformar em encargos suplementares. A medida que as
dificuldades econômicas e, sobretudo, as financeiras, se agravavam, a máquina imperial,
melhor organizada do que a da República, via-se na contingência de drenar todos os
recursos das províncias.

É preciso assinalar, contudo, que os aspectos negativos de regime imperial não


apareceram imediatamente. Até os meados do século II, a situação econômica e política
do Império era bastante sólida, como já o dissemos. As massas popuiares não tinham
esperanças de sacudir o poder de Roma, a «grande Babilônia prostituída». Foi por isso
que a luta política ativa, que caracterizava o período precedente, deu lugar à espera de
um salvador que desceria dos céus e libertaria os oprimidos, bem como a ilusões
místicas cada vez mais difundidas, não apenas no seio do povo, mas, também, entre os
representantes das classes possuidoras. Êste estado de espírito favoreceu no mais alto
grau a difusão das crenças messiânicas, inclusive do cristianismo.

Estas tendências, determinadas pela evolução da formação escravagista, apareciam em


todos os cantos do território mediterrâneo, mas em grau diferente, segundo as
particularidades do desenvolvimento histórico e segundo o nível atingido pela es-
76

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

cravidão nas diversas partes do Império Romano. Aqui, a comparação é necessária,


sobretudo entre as províncias oidentais, e as orientais. Enquanto em grande parte dos
territórios destas ultimas a escravidão existia desde séculos, melhor, há milênios, nas
províncias ocidentais, sua aparição resultou geralmente da conquista romana. Além
disso, na parte oriental da bacia do Mediterrâneo, o nível dos ofícios e do comércio era
mais elevado do que nas províncias ocidentais. É por isso que as possibilidades de
desenvolvimento inerentes ao regime escravagista se esgotaram mais depressa a leste do
Império, onde a crise do mundo antigo começou. As classes possuidoras, movidas pelo
temor das massas populares, sustentavam aí o poder dos imperadores romanos com
tanta crueldade quanto a dos escravagistas da parte ocidental do Império. Em
conseqüência de tôdas essas circunstâncias, a opressão econômica e política fazia-se
sentir mais fortemente a leste, do que a oeste do império. Seria aí, precisamente, que iria
florescer, por primeiro, a tendência para o pessimismo e para o desespêro. O
cristianismo era uma das principais manifestações desta crise ideológica. Nos seus
começos, êle refletia, mais do que qualquer outra doutrina, o protesto das massas contra
a ordem antiga, e contra a sua cultura.
CAPÍTULO III

AS RAÍZES IDEOLÓGICAS DO CRISTIANISMO

O aparecimento do cristianismo, corno qualquer outro f e’ nômeno histórico de primeira


importância, devia ter forçosa. mente por teatro um meio social determinado. Múltiplos
liames prendiam estreitamente o cristianismo nascente a tôdas as espécies de corientes
religiosas e filcsóficas anteriores e, sobretudo, às da época. Nas obras não cristãs do
século 1 de nossa era descobrem-se fàcilmente os vestígios de certas fontes ideológicas
do cristianismo original. A maioria das modificações ulteriores da ideologia cristã
primitiva refletem as transformações sofridas pelo mundo greco-romano no decorrer dos
séculos II e 111. Assim, não apenas as raízes da ideologia cristã, mas, também, várias de
suas partes integrantes se ligam diretamente, a princípio, ao mundo judaico e, depois, ao
greco- romano.

É óbvio, doutra parte, que a doutrina cristã não se formou inicamente por via de
empréstimos. Acontecimento histórico de primeiro plano, ela trazia uma nova
mensagem, sem a qual não teria conseguido conquistar as massas e tornar-se,
finalmente, a religião dominante dos países da bacia mediterrânea. Porém, o que a
mensagem cristã continha de nôvo ela o absorvia nas condições históricas bem
concretas do Oriente antigo. E por isso que a análise do conteúdo ideológico da nova
religião deve partir do estudo das concepções sociais e, antes dc tudo, religiosas,
professadas io limiar da nossa era, pela população do Império Romano.

1. RELIGIÕES E CULTOS DO IMPÉRIO ROMANO

A formação do Império marcou não sômente o início de uma fase nova do


desenvolvimento econômico dos países mediterrâneos, mas foi também mudança
política na vida do Estado Romano. Depois da queda de César, que tinha tentado
instaurar a ditadura, seu sucessor, o Imperador Otávio Augusto, procurou conservar
pelo menos a aparência da ordem repu1 ,lican. O Senado, os magistrados elegíveis, até
mesmo as assembléias de cidadãos, não foram abolidas durante os primeiros tempos do
Império, mas o poder real era exercido pelos imperadores. Êles se apoiavam nas legiões,
exploravam o anseio de paz manifestado pelas camadas possuidoras do Império.

77
78

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

As paixões políticas do último século da Reptiblica foram, pouco a pouco, substituídas


por outro estado de espírito. Nas altas esferas da sociedade, o desamor a respeito da
atividade política era acompanhado, de uma parte, da glorificação das «benfeitorias»
dos imperadores, da aspiração à carreira administrativa e às riquezas, e, doutra parte, de
uma indiferença crescente pelos negócios públicos, de uma tndência a se refugiar na
vida privada; sistemas filosóficos e religiosos surgiram pregando o desprêzo pelas
coisas terrenas.

A instauração do regime imperial provocou uma trans formação não menos séria na
mentalidade das massas popuiares Fortalecido o poder da classe dos escravagistas, e
sufocada a vida política nos países subjugados por Roma, o misticismo religioso
começou a se difundir, cada vez mais, no seio do povo. No século 1, a influência dos
cultos orientais e das crenças messiânicas espalharam-se ràpidamente pelo Império. A
esperança de abrandar as duras condições de vida em lugar de ser ligada à luta das
massas, associava-se à idéia de um Salvador enviado do céu, que estabeleceria o reino
de Deus na Terra. Era sômente nas províncias mais distantes, na J udéia, na Gélia e ao
noroeste da África, onde se esperava ainda conseguir a vitória pelas armas, que se
davam sérias revoltas, mas as legiões romanas as esmagavam sem grandes esforços.

A ideologia de uma parte das camadas superiores da sociedade romana, cujo papel não
foi dos últimos na formação e no desenvolvimento da ideologia cristã, encontrou
brilhante expressão nas obras de Sêneca. Estóico, representava a escola filosófica a que
Cícero, que vivera vários decênios antes dêle, havia acrescentado muitas coisas. E é isso
que torna mais significativa ainda a diferença entre as opiniões políticas dêsses dois
ilustres filósofos romanos. Cícero achava que devíamos tomar parte na vida da
sociedade. A luta política, os conflitos, na Capital e nas províncias, impressionavam-no
vivamente; êle propunha o seu próprio programa, visando a transformação da
República. A vasta correspondência deixada por Cícero mostra a que ponto os
acontecimentos da época o apaixonavam.

De Sêneca, temos também muitas obras, e sua correspondência. Ainda que preceptor de
Neto, e, depois, seu ministro, mostra-se indiferente à política; declara que não existe
pior quinhão para o homem que o de manter causas judiciárias, de participar das intrigas
políticas, de escrever requerimentos. Segundo êle, o sábio, obrigado a trabalhar pelo
bem da pátria, deve aspirar, em primeiro lugar, ao aperfeiçoamento moral, pensar em
Deus, consagrar-se às meditações.

Até mesmo em suas últimas obras, as Consolações, por exemplo, Sêneca proclama que
tudo é vão neste mundo, e

AS RAÍZES IDEOLÓGICAS DO CRISTIANISMO

79

procura inculcar no leitor a idéia de qae a morte é o bem supremo. Afirma que, depois
da morte, a alma do justo vai para o céu, onde a felicidade o aguarda. A resignação
diante do destino seria, a dar-se-lhe crédito, a maior sabedoria do mundo efêmero em
que vivemos, o único meio, aliás, de ser, feliz. A luta contra os reveses da sorte é
indigno de um sábio.
Considerando irrevogáveis os decretos do destino, Sêneca chega a uma conclusão
importante e nova para o seu tempo:

a igualdade de todos os homens, estando compreendidos entre êles os escravos, em face


do destino. Escreveu: «Todos nós somos formados dos mesmos elementos; temos todos
a mesma origem (.. . ) A natureza nos prescreve sermos úteis a todos os homens sem
distinção, sejam êles livres ou escravos, nascidos de pais livres ou libertos.» (Da Vida
Feliz, 24.) Desenvolvendo êste pensamento numa de suas Cartas a Lucilius (n.° 47), diz:
«Êles são escravos. Mas, homens. São escravos. Mas, vivem sob o nosso teto.
Escravos? Não. Nossos companheiros de escravidão, se se pensa no poder do destino,
tanto sôbre nós, como sôbre êles.» Concebe-se fàcilmente que êsses apelos para que se
tratem os escravos como homens eram suscitados pelo mêdo que as massas subjugadas
inspirávam aos escravagistas. Aliás, a idéia de renunciar ao trabalho dos escravos nunca
passou pela mente de Sêneca, e seus ardorosos discursos contra a cupidez não lhe
impediram de acumular uma fabulosa fortuna, sem recuar diante de intrigas de tôdas as
espécies, e do mais humilhante servilismo. Isto não anula a importância, note-se, da sua
defesa do princípio de igualdade dos homens em face do destino ou diante de Deus,
apesar do seu caráter puramente abstrato e especulativo. Esta tese de Sêneca iria ser
desenvolvida mais tarde pelos ideólogos do cristianismo. As palavras dêste filósofo, que
citamos, coincidem perfeitamente com êstes têrmos atribuídos ao apóstolo Paulo:
«Fomos todos, com efeito, batizados num só espírito, para formar um só corpo, sejam
judeus, sejam gregos, sejam escravos, sejam livres.» (Corz’ntios, XII, versículo 13.)

É característico que o reconhecimento da igualdade dos homens não levou Sêneca a


reclamar a libertação dos escravos; tal como o cristianismo, êle se limitou também a
enunciar êsse princípio apenas em teoria. Os ideólogos cristãos concebiam a igualdade
diante de Deus, sem daí tirar qualquer conclusão prática.

Nos seus últimos escritos, Sêneca formula pensamentos que, apesar de desenvolverem
os que acabamos de expor, diferem radicalmente das concepções do mundo clássico da
Antigüidade, no qual o patriotismo era a pedra angular da CidadeEstado. Na sua obra
Da Ociosidade (Cap. IV), introduz Cícero uma distinção entre «a grande e a pequena
república.»
80 A ORIGEM DO CRISTIANISMO

«Existem duas repúblicas: uma grande e verdadeiramente pública que abarca os deuses
e os homens; nela, não nos confinamos em tal ou qual recanto particular, e a cidade em
que habitamos não tem outros limites, senão os do Sol; a outra república, aquela a que
nos prende o. acaso do nascimento (seja Atenas, Cartago, ou qualquer outra cidade), não
inclui mais todos os homens, mas um grupo de homens determinado.» O dever do sábio
consiste justamente em servir à grande república.

Vê-se, portanto, que o filósofo romano não tinha qualquer simpatia pelo patriotismo
local. Mais ainda: era também indiferente ao patriotismo em relação ao Império. A
«grande república» de Sêneca, dirigida pelos justos, engloba, em teoria naturalmente,
todo o gênero humano. Esta idéia do filósofo foi retomada e desenvolvida pelo
cristianismo, que nega, em princípio, qualquer importância às diferenças étnicas e
sociais. Neste ponto, tal república iria corresponder à «Igreja universal» e ao «reino de
Deus».

As afinidades entre as idéias de Sêneca, e as das epístolas atribuídas ao apóstolo Paulo


saltam aos olhos de muitos dos ideólogos do cristianismo. Não é por acaso que os
primeiros escritores cristãos o declaram um dos «seus», tal como Herádito e Sócrates
(ver Tertuliano e outros). Em seguida, os autores eclesiásticos foram ainda mais longe,
fazendo Sêneca figurar entre os Padres da Igreja. S. Gerônimo (IV e V século) fala dêle
nessa qualidade, ao se referir à correspondência, forjada em tôdas as suas peças, entre o
filósofo romano, e o apóstolo Paulo, e que chegou até nós. Para provar que ela é falsa,
basta dizer que nela não fazem mais do que trocar cumprimentos e se preocuparem, um
com a saúde do outro; Sêneca informa que está pregando o cristianismo não sômente ao
seu amigo Lucílio, mas também ao próprio Nero etc. Isso não impediu que certos
escritores clericais publicassem, em época bastante recente, artigos em que tentavam
demonstrar que tais cartas são autênticas.1

Acabamos de ver que as idéias religiosas de Sêneca, e, sob muitos aspectos, suas idéias
sociais e políticas, se antecipam àquelas que o cristianismo iria em breve proclamar.
Convém, contudo, sublinhar que sua filosofia correspondia à ideologia de uma parte das
elites da sociedade romana, enquanto que o cristianismo, o original pelo menos,
recrutava seus adeptos nas classes inferiores. Foi por isso que os ideólogos da nova
religião não puderam limitar-se ao empréstimo das idéias do
1 Ver Gaston BoIssIER: La Religion Romaine d’Auguste aux An’toChas, P. Hachette,
Paris, T. II, págs. 47-83; Cf. LAPIcKJ, ob. cit., pág. 10.

AS RAíZES IDEOLÓGICAS DO CRISTIANISMO

filósofo estóico, precisaram também remodelá-las segundo as exigências do seu próprio


auditório.

A instauração do regime imperial suscitou também modificações importantes no


domínio das crenças religiosas no seio das massas populares. No seu Ludwig
Feuerbach, F. Engels sublinha que, durante a Antigüidade, «as antigas religiões de
tribos e de nações, que eram constituídas de modo natural, não tinham qualquer
tendência para o proselitismo, e perdiam t6da a capacidade de resistência, assim que era
destruída a independência das tribos e das nações.»2 Os deuses antigos não
ultrapassavam, com efeito, o quadro das tribos, e os próprios crentes não lhes conferiam
o caráter universal qüe se tornou o atributo obrigatório de Deus segundo a teologia
contemporânea. Os gregos, os romanos e os judeus da Antigüidade acreditaram sempre
que seus deuses apenas protegiam sua nação, e que o poder de cada um dêles não se
estendia para além do seu território. A guerra entre nações era considerada como uma
guerra entre deuses. E os vencedores carregavam muitas vêzes, à guisa de troféus, as
imagens dos deuses do povo vencido.
A constituição do poderio romano no Mediterrâneo, e, depois, do Império, deu um
golpe fulminante nos antigos cultos; era inevitável. Os povos e as tribos vencidas
percebiam a impotência dos seus deuses à luz trágica da perda de sua lIberdade.

Porém, a religião dos vencedores iria sofrer também, no mesmo grau, a influência dêsse
acontecimento. As antigas divindades romanas, como as das outras nações do mundo
antigo, tinham sido talhadas, de acôrdo com a expressão de Engels, seguindo a medida
de uma comunidade pouco numerosa, neste caso o agrupamento que povoava as
margens do Tibre. Para dar-se uma idéia da tenacidade das sobrevivências religiosas,
basta lembrar que, até a aurora de nossa era, os romanos estabeleciam uma nítida
distinção entre di indigetes (deuses locais) e di novensides (deuses adventícios). À
primeira categoria pertenciam as divindades que simbolizavam as fôrças da natureza
ligadas à agricultura e ao pastoreio, dos quais as mais importantes eram Júpiter, Juno e
Marte, que eram colocadas,

conseqüentemente, à testa do panteão romano. Isso determinou

certa modificação nas suas funções. Marte, originàriamente deus das plantas, e Júpiter,
deus das chuvas e, portanto, da

abundância, tornaram-se respectivamente o deus da guerra (as campanhas começavam


ordinàriamente na primavera, em março)

e o deus supremo de Roma, análogo ao Zeus dos Gregos. Ao

2 F. ENGEL5: Ludwig Feuerbach ei la Fia de la Philosophie Classi4llemandø, Ëd.


Sociales, Paris, 1946, pág. 26.

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82

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

segundo grupo de divíndades (novensides) pertenciam Minerva, Mercúrio, Apoio etc.


Os deuses familiares desempenhavam também um importante papel nas crenças dos
antigos romanos, tais como os làres e os penates, prõtetores do lar doméstico, e os
manes, almas divinizadas dos mortos. Seu culto revelou-se extremamente resistente:
continuou a ser professado muito tempo depois do triunfo do cristianismo.

No que concerne aos cultos religiosos, os romanos tomaram muito de empréstimo aos
povos vizinhos, particularmente aos etruscos e aos gregos da Itália meridional. Aos
etruscos, quase tôdas as cerimônias rituais, notadamente das divinações que eram muito
consideradas em Roma; aos gregos, os cultos dos deuses helênicos, com os quais
identificaram os seus: Júpiter, a Zeus, Juno, a Hera, Minerva, a Atenas, Mercúrio, a
Hermes, e assim por diante. Doutra parte, à medida que as fronteiras do Império se
alargavam para o Oriente, as religiões orientais vindas do Egito, da Ásia ocidental e da
Judéia iam-se difundindo em Roma.

O crescimento do número de deuses refletia o conflito entre as concepções religiosas


nascidas nos quadros relativamente restritos da antiga Roma, cidade-estado, e a
necessidade de uma nova religião melhor adaptada às vastas dimensões do Império, O
principal obstáculo à difusão da religião romana encontrava-se no fato de os seus deuses
serem, apesar de helenizados, muito pouco atraentes aos olhos da população laboriosa
dos países subjugados. Simbolizando a opressão estrangeira, eram quase sempre
odiados pelos povos conquistados.

A política religiosa dos primeiros imperadores seguia duas direções. De uma parte,
Otávio Augusto, de acôrdo com a tendência conservadora, cercava de honrarias as
funções sacerdotais e restaurava os velhos tempos. Chegou a condenar a propagação dos
cultos orientais decretando particularmente a interdição de se construírem templos a
deuses egípcios dentro dos limites da Cidade Eterna. Procurando fazer reviver o
prestígio da religião romana tradicional, Otávio conferiu-se entre outros títulos o de
Pontífice Supremo.

Por outro lado, considerando a impopularidade dos deuses romanos e, ao mesmo tempo,
a necessidade de cercar o nôvo regime de uma auréola mística, os representantes do
poder não economizam esforços para impor o culto dos imperadores. Nas províncias
orientais do Império, onde a divinização dos reis locais era praticada desde longa data,
êsse culto não tardou a se impor. Colégios augustinianos eram nelas organizados com
êsse fim, e nelas se elevaram numerosos templos, dois e até três em uma única cidade.
Já em 29 antes da nossa era, isto é, dois anos apenas após a vitória de Otávio sôbre
Antônio, êste culto era instituído em Efeso e em Pérgamo, cidades da Ásia
AS RAÍZES IDEOLÓGICAS DO CRISTIANISMO

83

Menor. Nas inscrições, Otávio Augusto é freqüentemente chamado de «Filho de Deus»


ou «Salvador», epitetos aplicados, mais tarde, como se sabe, à Jesus Cristo.

A divinização do Imperador não tardou a ganhar adeptos também nas províncias


ocidentais. Na Itália, professava-se o culto do gênio de Augusto, em cuja honra
levantavam-se templos. Depois dêle, outros imperadores romanos promoveram sua
própria divinização. Suetônio guardou esta frase característica de Vespasiano, ao
morrer: «Que desgraça! Acreditei que me tornaria deus! » Durante os curtos anos do seu
reinado, Calígula era considerado como a encarnação de Hélio, Deus do Sol. Filostrato
informa que, sob Tibério, um homem foi acusado de sacrilégios por ter espancado seu
escravo no momento em que êste tinha na mão uma moeda com a efígie do Imperador.

Mas, o culto do Imperador, independente de sua personalidade e de sua conduta, muito


distantes dos ideais, não podia se transformar em religião universal pelas mesmas razões
que impediam a universalização da religião romana. O Império era objeto de um ódio
tão profundo, mesmo da parte da população livre, sem falar já dos escravos, que o culto
do Imperador que o personificava conseguia conquistar apenas a diminuta camada da
aristocracia, sobretudo a provincial.

Diferentemente dêste culto impôsto do alto e que só tinha influência sôbre as classes
superiores da sociedade, as diversas religiões orientais, durante os dois primeiros
séculos da nossa era, gozaram de um prestígio crescente em tôdas as camadas da
população, particularmente nas classes médias. A afluência a Roma e a outras cidades
recentemente fundadas na parte ocidental do Império, de grande número de pessoas
oriundas do Egito, da Grécia e da Judéia, fêz aparecer também aí adeptos dos cultos
egípcios, sírios e, igualmente, judaicos. Tais adeptos encontravam-se tanto entre os
escravos das províncias orientais, como também, e em grande número, entre os artesãos
e os comerciantes que tinham deixado Seus lugares de nascimento por esta ou aquela
razão. Era Roma, sobretudo, que os atraía. Os novos cultos, por outro lado, eram
trazidos pelos legionários romanos que retornavam da fronteira oriental do Império. Isto
se deu, particularmente, com o culto persa de Mitra. — Os cultos orientais começaram a
penetrar em Roma desde

O Béculo III antes da nossa era. Sua influência se acentuou fortemente durante o
período de crise da República. O estabelecimento do Império deu nôvo impulso à sua
difusão. E sees cultos não eram professados apenas pelos indivíduos originários do
Oriente. A renúncia à atividade política e a tendência ao misticismo criaram um clima
extremamente favorável a esses cultos, mesmo entre os naturais da metade ocidental

84 A ORIGEM DO CRISTIANISMO

do Império, primeiramente nas cidades. Seus habitantes, não sômente os escravos e os


pobres, mas também as classes médias, encontravam nas religiões orientais, com sua
mitologia, seus mistérios, seus ritos teatralizados, uma saída, ainda que ilusória, para
suas vidas sem esperança. Doutra parte, a fé na imortalidade da alma, inculcada por
essas religiões, particularmente, pelo mitraísmo, pelo culto de Isis, e, depois, pelo
cristianismo, desempenhou então um grande papel.

A influência das crenças orientais aumentava com tal intensidade que os imperadores,
fiéis em geral a sua política de não-intervenção nos assuntos religiosos, se viram, mais
de uma vez, obrigados a se oporem à propaganda dêste ou daquele culto oriental, É
assim que Suetônio relata, na sua biografia de Tibério, que êste imperador teve o
cuidado de proibir os ritos egípcios e judaicos, em Roma. Medida que se revelou vã,
como o atesta a existência de editos posteriores análogos, de outros imperadores
romanos.

Uma cena da Assembléia dos Deuses de Luciano apresenta um interêsse muito especial
sob êste aspecto. Os velhos deuses do Olimpo nela decidem «purificar» o céu
«considerando que grande número de estrangeiros ( . . . ) tonseguiram inscrever-se em
nossos registros, e insinuar-se, não se sabe como, entre os deuses, atravancando o céu a
tal ponto que o banquete do Olimpo tornou-se uma barafunda, um ajuntamento confuso
de gente que fala mil gírias diversas; considerando que o nectar e a ambrosia
consumidos por essa multidão de bêbados tornam-se rarós e caros.» É tomada a
resolução de verificar-se os títulos de família dos deuses, sob pena de os remeter de
volta aos túmulos dos seus ancestrais na Terra e, também, a de atribuir um único
emprêgo a cada deus, o que prova o grande desenvolvimento do sincretismo religioso,
já no século II.

O culto de Isis e de Osíris, divindades egípcias, era muito difundido nas margens do
Mediterrâneo, durante os dois primeiros séculos de nossa era. Segundo o mito, Osíris e
[sis, sua irmã e mulher, reinavam no Egito, onde êste deus itroduziu a agricultura. Êle
foi morto pèrfidamente pr seu irmão Set, que cortou seü corpo em 14 pedaços e os
dispersou pelos quatro cantos do mundo. [sis, depois de ter vagueado por muito tempo
com seu filho Horus, consegue reunir os membrrs do seu espôso e êste ressuscita para
tornar-se o soberano do Reino dos Mortos. Finalmente, Set é vencída por Horus. Temos
aqui uma entrc as muitas variantes existentes do mito do deus moita e ressuscitado.

Celebravam-se solenemente, todos os anos, mistérios em honra de isis e de Osíris. Na


primavera, procedia-se a consagração do barco em que Isis devia partir em busca dos
restos do seu divino espôso. No outono, realizavam-se os mistérios
AS RAÍZES iDEOLÓGICAS DO CRISTIANISMO 85

consagrados às peregrinações de [sis e à ressurreição de Osíris. Os sacerdotes que se


dedicavam ao culto da deusa dividiam-se em várias categorias das quais a mais alta era
a dos místicos, iniciados nas práticas dos mistérios.

Na época imperial, êste culto era muito popularizado, dum canto a outro do Império. As
escavações arqueológicas têm revelado milhares de inscrições em honra de [sis, não só
no Egito e na Síria, como também nos Balcãs, na Itália, no território da Alemanha atual,
e até na Inglaterra. No cé1ebrr romance de Apuleu, as Metamorfoses, o protagonista
Lúcio, depois de ter sido transformado em asno, retorna à condição humana graças,
principalmente, à intervenção de ísis.

A medida que se difundia, o culto desta deusa sofria profundas modificações. Se, no
Egito, a versão inicial do mito de Osíris, que morria e ressuscitava, simbolizava a
renovação anual das fôrças criadoras da natureza, posteriormente êsse sen tido foi
esquecido e Isis foi colocada no primeiro plano do culto. Em uma inscrição datada do
século II, ou do III (Buletin de Correspondance Heilenique, 1927, pág. 378), Isis é
chamada de rainha de tôda a Terra, inventora da escrita, legisladora. Segundo esta
incrição, foi ela que separou a Terra, do céu, traçou as órbitas dos astros, fundou a
navegação marítima, aboliu o poder dos tiranos, e é ela que comanda os rios, os ventos e
as vagas dos mares.

Aparece aqui, nitidamente, o sincretismo religioso, característico do Império Romano.


Se, outrora, cada deus tinha funções bem delimitadas, nesta época, Isis, como o prova a
inscrição citada, substitui já quase tôdas as divindades. Os escritores clericais não
cessam de afirmar que o judaísmo e o cristianismo, dêle nascido, são superiores às
outras religiões, justamente porque são monoteístas. De fato, a tendência para o
monoteísmo nos começos da nossa era se manifestava até mesmo entre pagãos tão
autênticos quanto os adoradores de [sis.

O culto de ísis e de Osíris era análogo ao de Adonis e de Astartê, divindades sírias, ao


de Cibele e de Átis, em voga na Asia Menor, ao de Tamus, deus babilônico, e a muitos
outros. Êsses cultos, em que os sofrimentos, a morte e a ressurreição das divindades
desempenhava um papel consider vel, ganhavam cada dia maior número de fiéis, tanto
na parte oriental, como na ocidental do Império.
Atraindo enormes multidões, as festas ligadas a êsses cultos, notadamente ao de Isis,
muito favoreciam sua difusão. Eis a descrição de uma delas por Apuleu em
Metamorfoses, XI, 9:

«Mulheres vestidas de branco, coroadas de guirlandas primaveris e tendo tôdas, com ar


alegre, diferentes funções, juncavam c’orn pequenas flôres o caminho por onde
avançava o cortejo

86 A ORIGEM DO CRISTIANISMO

sagrado. Outras carregavam nas costas brilhantes espelhos ( . . .

Algumas empunhavam pentes de marfim (. . .), faziam o gesto de pensar, de ajeitar os


cabelos da sua rainha. Outras, enfim, derramando gôta a gôta um bálsamo precioso e
diversos perfumes, iam regando abundantemente todos os lugares. Em seguida, uma
numerosa multidão, de ambos os sexos, carregava lanternas, tochas, velas ( . . ..) com o
fim de serem favorecidos ( . . . ) pela deusa dos astros que brilham no firmamento.
Vinham, depois, sinfonias deliciosas, canudos e flautas que produziam os mais doces
acordes.»

A religião cristã nascente imitou em muitos aspectos o culto de Isis. A virgem com o
Jesus menino nos braços é apenas uma cópia de uma imaem muito mais antiga de Isis
com o pequeno Horus. Maria fugiu às perseguições de Herodes, carregando Jesus sôbre
um asno, exatamente como [sis diante da cólera de Set. A Santa-Virgem deve assim
muitos de seus traços à deusa egípcia, da mesma forma que se reconhece o deus egípcio
no mito de Jesus, cujos criadores se inspiraram em particularidades comuns a Osíris e a
Horus.

Notemos que, nos começos da nossa era, o mito de Osíris muda de conteúdo:
simbolizando, a princípio, os fenômenos da natureza, segundo o sentido inicial do mito,
adquire êle, no decorrer dos séculos, aspectos sociais. Sua morte toma pouco a pouco a
significação de um sacrifício expiatório, de um resgate dos pecados dos homens, e sua
ressurreição torna-se a garantia da beatitude futura dos que crêem nos céus. Foi
interpretado dêsse modo que o mito de Osíris serviu de protótipo a um dos elementos
maiores da ideologia cristã.

A imitação dó culto de [sis, e de outras religiões da Antigüidade, pelo cristianismo, nada


tem de excepcional.._, Nenhum sistema religioso nasceu da cabeça do seu fundador,
nem foi o fruto de uma revelação divina, como o querem os padres. Êles são muito
estreitamente ligados às condições históricas existentes no momento de sua aparição, ao
meio em que cada um dêles conseguiu expandir-se. Na luta contra as religiões rivais,
temam dos sistemas religiosos precedentes os métodos e os meios mais atuantes para a
conquista de fiéis. Foi o que se deu com o cristianismo. Suas semelhanças com outras
religiões, seus empréstimos de outros cultos provam, apenas, que nada há de
sobrenatural na aparição da ideologia cristã, que seus dogmas se explicam inteiramente
pelas circunstâncias que presidiram ao seu nascimento e à sua evolução.

O culto iraniano de Mitra era também muito popular nessa época. Segundo as crenças
religiosas dos persas, o mundo é perpètuamente a arena de um combate entre
Auramazda (Ormus), deus do fogo e da luz, e Angramainiu (Arimã), divin dade cruel
das trevas. O primeiro é secundado por seu filho
AS RAÍZES IDEOLÓGICAS DO CRISTIANISMO

Mitra, espírito do Bem e da Justiça, e, ao mesmo tempo, mediador entre a humanidade,


e Auramazda. Lutando herôicamente contra Angramainiu, e suportando tôdas as formas
de sofrimentos, Mitra deveria ser enviado um dia à Terra, para vencer as fôrças do Mal,
e fundar, depois disso, o reino milenar de Deus, sôbre a Terra. O mitraísmo, mais do
que o culto de Isis, desenvolvia a doutrina da vida no além, e a do fim do universo.

Esta religião apareceu no Império Romano nos fins do século 1 antes de nossa era. Em
sua biografia de Pompeu (Cap. 24), Plutarco relata que os piratas sicilianos foram os
primeiros a celebrar em Roma os mistérios de Mitra, e o. historiador atesta que tais
mistérios se celebravam ainda no seu tempo. Os vestígios mais antigos do culto de
Mitra foram descobertos por ocasião das escavações arqueológicas em Ostia, pôrto da
antiga Roma. A imagem mural de Mitra que aí foi encontrada data do século 1.

Durante o período imperial, o mitraísmo penetrou nos países mediterrâneos por três
vias. Foi difundido, em primeiro lugar, .pelos mercadores que vinham do Oriente, nas
cidades marítimas do . Império. Em segundo lugar, pelos legionários romanos
recrutados na Ásia Menor que deixaram muitos monumentos do culto de Mitra nos
locais em que se fixavam depois de desmobilizados. Em terceiro lugar, êste culto
contava com numerosos adoradores entre escravos e libertos oriundos das mesmas
províncias orientais. Possuem-se dados que atestam a existência, no século II, de
comunidades mitraístas ao longo do Danúbio e do Reno, assim como da fronteira
nórtica das colônias romanas na Inglaterra. O culto a Mitra era professado em templos
subterrâneos e era acompanhado de banquetes rituais com pão e vinho, análogos às
refeições em comum dos cristãos. No século III, por ocasião da crise do Império, o
mitraísmo começou mesmo a ser implantado por representantes do poder imperial.

O culto sírio do Sol Invencível (Sol Invictus) apresentava numerosas semelhanças com
o de Mitra, e se caracterizava, como êle, por seu espírito guerreiro. Sob Aureliano (270-
275),

o Sol foi declarado oficialmente deus supremo; protetor do Império. O Imperador


tornou-se o Grande Pontífice dêsse culto.

Os cultos de Mitra e do Sol Invencível eram rivais perigosos para o cristianismo. E, se


êste pôde conseguir a vitória to ràpidamente, foi justamente porque apropriou-se de
muitas coisas, tanto de um, como do outro. Assinalemos, a título de exemplo, apenas
algumas correspondências entre o cristianismo e o ,mitraísmo. O Natal é celebrado em
25 de dezembro, dia do solstício de . inverno. A cruz cristã existia também no

87
88 A ORIGEM DO CRISTIANISMO

culto mitraísta, no qual era o emblema do Sol radiante. O leão, o touro, a águia,
símbolos mitraístas, designam na literatura cristã primitiva os evangelistas Marcos,
Lucas e João. Nas imagens antigas que representam a crucificação de Jesus encontram-
se o Sol e a Lua, características do culto de Mitra. O ritual do mitraísmo, exatamente
como o do cristianismo, empregava pias batismais, água benta, refeições em comum, e
consagrava o domingo, a Deus. As duas religiões inculcavam as mesmas crenças sôbre
a imortalidade da alma, a vida no além com o inferno e o paraíso, a ressurreição, o juízo
final.

É óbvio que não se pode atribuir apenas ao acaso tantas coincidências, e os primeiros
apologistas cristãos o compreenderam perfeitamente. Um dêles, Justino, via nisso um
ardil do Maligno... Uma vez que se possui a prova da existência dêsse culto no território
do Império muito antes do nascimento do cristianismo, a única explicação plausível é a
de que a religião cristã, ao criar sua simbologia e o seu ritual, valeu-se de elementos
emprestados do culto em voga no século II, do mitraísrno, particularmente. Lembremos,
por outro lado, que a transformação dos templos pagãos, em igrejas, e dos deuses, em
santos, e até mesmo em mártires cristãos, era uma tática muito corrente, sobretudo,
depois do triunfo do cristianismo. Foi assim que os Dioscuros gregos vieram a ser os
santos Cosme e Damião. Tal como os irmãos Dioscuros, Castor e Polux, êstes santos
são os protetores dos doentes e, sobretudo, dos marinheiros em perigo. Outro exemplo:
os cristãos freqüentavam, tal como os pagãos, um templo de Esis, perto de Alexandria,
onde se consultava o oráculo; Teófilo, bispo dessa cidade, apressou-se a erguer ao seu
lado uma igreja, onde se depositaram os restos de vários santos, e onde também se
anunciavam profecias. Esta flexibilidade foi seguramente uma das razões da rápida
popularidade da nova religião nas províncias orientais do Império.

Na parte ocidental do Império, o cristianismo apareceu com seus dogmas já definidos


quanto ao essencial, e com um ritual em vias de formação. Aqui, recrutou, nos começos,
seus adeptos entre os originários do Oriente, os judeus notadarnente. Somente por volta
do ano 150, Justino, a quem acabamos de nos referir, notou que os cristãos de origem
pagã eram mais numerosos, do que os, de origem judia. No oeste do Império, a nova
religião serviu-se muito menos dos cultos locais. Além da antipatia de que êsses cultos
eram objeto por parte da população, tôda uma série de outras circunstâncias também
favoreciam aí a difusão do cristianismo. A evolução das idéias religiosas seguiu por
tôda parte a mesma direção, apesar de certas diferenças bastante profundas entre o
ocidente e o oriente da bacia do Mediterrâneo.

AS RAÍZES IDEOLÓGICAS DO CRISTIANISMO

Convém notar aqui, antes de tudo, os elementos de um sincretismo cada vez mais
evidente. Apesar do politeísmo oficial,
vê-se desenvolver nos começos de nossa era, no Ocidente também, a tendência a
confundir as funções dos deuses. Tal foi, por exemplo, o caso do culto de Hércules,
adorado não só como filho de Zeus, mas também como deus protetor das cidades, dos
ofícios, e até do Estado, fundador dos refúgios para evadidos, inclusive os escravos,
deus do lucro, dos guerreiros, das colheitas, vencedor das fôrças do Mal etc. A mesma
tendência aparece no poder atribuído a Telus, personificação da Terra, que urna
inscrição proveniente da Gália chama de Mãe da Natureza, que dá origem às divindades
e às nações, rainha e deusa dos deuses. Isto se liga ao Priapo que, de deus pouco
importante da Fecundidade, tornou-se criador do mundo e da natureza; a Silvano, deus
das florestas e dos campos, que ascende à categoria de deus do universo material, e
recebe ainda, inopinadamente) o título de «Invencível».

O sincretismo tinha menor influência, é certo, sôbre os velhos deuses do primeiro plano
tais como Júpiter e Marte, cujas funções tinham recebido a sanção dos tempos. Mas,
isso põe ainda mais em evidência a evolução das divindades inferiores como Priapo,
Telus, Silvano. Nas províncias ocidentais do Império, esta evolução é semelhante àquela
do culto de Esis no Oriente, e que encontrou sua expressão mais acabada no
monoteísmo cristão.

A evolução das idéias a respeito da vida futura preparou também o caminho para o
cristianismo, O epitáfio seguinte sôbre a tumba de uma escrava caracteriza o que
pensava pre. cedentemente sôbre êsse assunto: «Primitiva, adeus; e tu, caminhante,
quem quer que sejas, sê feliz; eu não existia, não existo mais, e isso pouco me importa.»
O mesmo tom desolado nos é dado por esta inscrição sepulcral que se refere a um
menino escravo de seis anos: «A vida foi para mim um suplício, e não a morte, que me
deu a paz.» Nesses dois epitáfios a morte é encarada não como uma passagem para a
outra vida, mas como uma libertação da escravidão. Nenhum alusão aqui imortalidade
da alma, nem à recompensa no paraíso.

Estas concepções mais ou menos materialistas logo iriam ser substituídas por outras,
próximas do cristianismo. Epit fios um pouco posteriores exprimem já a esperança de
que as virtudes e vida laboriosa dos humildes preparam sua beatitude futura na mansão
dos deuses. Descrevem minuciosamente a felicidade nos céus, prevêem até mesmo a
transformação dos homens virtuosos em divindades, e pedem aos justos que J4
morreram que protejam aquêles que a êles se vão reunir. Um dos dogmas maiores do
cristianismo, o do reino celeste, .urgla assim espontâneamente, apoiando-se na evolução
das

89
90 A ORIGEM DO CRISTIANISMO

concepções religiosas nas províncias ocidentais do Império Romano.

O desenvolvimento do cristianismo era ainda favorecido

pelo apêlo à resignação e, em particular, à paz entre senhores

e escravos. Já assinalamos, páginas atrás, essa predicação nas

obras de Sêneca, que a endereçava, note-se isto, apenas •às ca madas superiores. A
mesma moral de submissão diante dos poderosos é pregada, coisa característica, nos
provérbios e nas fábulas em curso nos começos da nossa era. Provérbios tais como os
seguintes: «Tu és escravo se obedeceres de má vontade; tornar-te-ás o auxiliar do teu
senhor se o fizeres voluntàriamente» e «O jugo pesa mais sôbre um pescoço
insubmisso», refletiam, menos os interêsses dos senhores, do que a situação sem saída
dos escravos. E esta filosofia, como se sabe, tornou-se parte integrante da nova
ideologia cristã.

Os dados que acabamos de fornecer a respeito da parte ocidental do Império foram


todos obtidos em fontes não cristãs. Êles atestam que a evolução geral das idéias morais
e religiosas da população dessas regiões, particularmente das classes inferiores, criou
um clima favorável à difusão das doutrinas cristãs sôbre o reino celeste, à não-
resistência aos poderosos dêste mundo etc. Aqui, a diferença em relação aos cultos
orientais residia tinicamente no fato de que o cristianismo, ao aparecer nas províncias
ocidentais, já era uma religião mais ou menos formada graças aos numerosos
empréstimos feitos aos cultos da Asia Menor, o que o tornou muito menos sensível à
influência das crenças difundidas nas províncias dessa parte do Império.

Procuramos mostrar a tendência do desenvolvimento das idéias religiosas no Império


Romano durante os dois primeiros séculos de sua existência. A situação geral era então
indiscutvelmente favorável aó triunfo do cristianismo. Muitos elementos dos cultos
oríentais entraram no arsenal ideológico desta religião:

a crença em um deus ressuscitado depois da morte, a crença na vida no além, na luta


eterna entre o Bem e o Mal, e assim por diante. Errar-se-ia, porém, se se acreditasse que
o cristianismo não foi mais do que uma tecitura de empréstimo de outros cultos. Êle
trouxe elementos qualitativamente novos, que o distinguiam de tôdas as outras religiões
da Antigüidade e que lhe asseguraram, finalmente, a vitória sôbre os cultos rivais. Eis
alguns dêsses elementos. O cristianismo, durante seu período inicial, pelo menos,
renunciou a tôda espécie de sacrifícios, a todos os ritos. F. Engeis vê nisto uma
mudança revolucionária. Diferentemente das outras religiões da Antigüidade, o
cristianismo fazia tabula rasa das diferenças étnicas

AS RAÍZES IDEOLÓGICAS DO CRISTIANISMO

91

no domínio da fé, endereçava-se a tôdas as nações e a todos os povos, sem exceção. As


separações sociais não existiam para êle, em matéria de religião. Endereçando seus
sermões a todos os homens — aos judeus e aos gregos, aos cidadãos livres e aos
escravos — os discípulos de Jesus eram ouvidos e seguidos sobretudo pelos humildes,
pelos escravos, e pelos pobres, o que distinguia nkidamente o cristianismo das outras
religiões dessa época. Outro aspecto importante neste plano:
o cristianismo nestas condições de desagregação do regime escravagista denunciava
àsperamente a ordem antiga e sua cultura, qualificando-as de pagãs. Isso lhe permitiu
escapar à sorte das outras religiões da Antigüidade, que foram arrastadas pela queda da
formação escravagista.

Êstes traços específicos do cristianismo serão examinados nos capítulos dêste livro
consagrados aos diversos escritos cristãos dos primeiros tempos.

2. O CRISTIANISMO E O JUDAISMO

Ao examínarmos as noções religiosas da população do Império Romano, nada dissemos


sôbre o judaísmo. Ora, o cristianismo lhe deve mais do que a tôdas as outras religiões.
Basta dizer que esta religião nasceu entre os judeus, da diáspora evidentemente, e não
da Palestina. Os primeiros cristãos eram fiéis à lei mosaica, e com conhecimento de
causa. Sàmente um século após o aparecimento do cristianismo é que o apologista
Justino pôde declarar que os cristãos de origem pagã eram mais numerosos do que os de
origem judia. Os escritores greco-romanos do comêço do século II consideravam ainda
os cristãos como uma das seitas judaicas. Recordemos, finalmente, que o cristia- nismo
adotou a Bíblia judia. A expressão Antigo Testamento, que designa os livros sagrados
dos judeus, foi concebida para os distinguir dos livros sagrados pràpriamente cristãos,
incluídos no Nôvo Testamento.

Os teólogos judeus e cristãos declaram que, se o judaísmo desempenhou tal papel na


formação do cristianismo, foi graças ao fato de os judeus, contràriamente aos outros
povos\ da Antigüidade, terem sido sempre monoteístas, não admitirem senão um único
deus. Segundo a sua opinião essa foi a causa decisiva da difusão e da vitória da religião
cristã sôbre as outras religiões pagãs. Mas, isso não é justo, não corresponde à realidade.
Se o cristianismo nasceu do judaísmo, não foi por causa do caráter monoteísta dêste
último, mas como conseqüência da situação política e social geral da metade oriental do
Império Romano em meados do século 1. No que respeita ao monoteísmo, enquanto
traço específico do judaísmo, é preciso dizer, primo que tôdas as outras religiões da
época manifestavam
92

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

a mesma tendência para o monoteísmo, e, secundo, que o judaísmo não foi sempre
monoteísta.

O sistema filosófico e religioso de Sêneca não era menos monoteísta do que o judaísmo.
A ampliação das funções de Isis, deusa egípcia, de Mitra, deus mazdeano, e até mesmo
de uma divindade romana como Telus mostra que a tendência ao monoteísmo era
comum a tôdas as religiões da época. Uma religião monoteísta era, no fim das contas, a
que melhor convinha a uma potência mundial como o Império Romano.

O monoteísmo só predominou no judaísmo depois de demorada luta. A Bíblia está


repleta de relatos em que se apresentam os judeus adorando tôdas as espécies de
divindades além de Jeová, o Eterno. Êste teve durante muito tempo, como concorrentes,
a Serpente de Bronze, o Bezerro de Ouro etc. As desgraças sofridas pelos antigos
hebreus são explicadas na Bíblia pela desobediência do povo eleito, que criava fdolos,
apesar dos mandamentos de Jeová. O monoteísmo só se impôs definitivamente aos
judeus a partir do século V antes da nossa era.

O Antigo Testamento teve uma grande importância na

formação da ideologia cristã. Daí, a necessidade de se examinar

o seu conteúdo e, principalmente, as conclusões de sua crítica

à luz da ciência, tanto mais que os métodos desta crítica são

igualmente válidos para os escritos do nôvo.

O Antigo Testamento se compõe do Pentateuco, dos Profetas e de outros livros. O


Pentateuco expõe a criação do mundo e a história do povo hebreu antes de sua chegada
à Palestina. Os Profetas contêm anais e discursos atribuídos a profetas que viveram em
diversas épocas até o século V antes de nossa era. Os livror comportam escritos
religiosos e edificantes pertencentes a gêneros diversos.

A peça mestra da Bíblia é o Pentateuco. Os escritos dos profetas, em que as esperanças


messiânicas encontraram sua mais brilhante expressão, são também de alta importância
no que concerne ao estudo da pré-história do cristianismo.
No Pentateuco encontra-se, em primeiro lugar, a exposição da cosmogonia judaica,
adotada inteiramente pelo cristianismo, cosmogonia que durante quinze séculos
embargou terrivelmente o desenvolvimento das ciências. Em nome de sua conservação,
a Igreja perseguiu Copérnico, e condenou Galileu; em 1925, com o mesmo objetivo, o
Professor Scopes foi levado a barra dos tribunais nos Estados Unidos da América do
Norte, acusado simplesmente de ter ensinado o darwinismo aos seus alunos.

Grande parte do Pentateuco descreve a atividade de Moisés, reformador relevante do


mito, eleito de Deus, que recebeu de Jeová o Decálogo e os princípios do código
judaico. As páginas do Pentateuco consagradas a Moisés so consideradas

RAÍZES IDEOLÓGICAS DO CRISTIANISMO

93

particularmente sagradas aos olhos dos teólogos judeus e dos

cristãos.

A crítica científica privou êste escrito de sua auréola de

santidade. Já no sécuio XVII, os filósofos materialistas Spinosa

e Hobbes demonstraram que o Pentateuco não podia ter sido

composto no segundo milênio antes de nossa era, como o quer


a tradição. Denunciando os numerosos anacronismos e con

tradições desta parte da escritura, Spinosa assinalou, com razão,

que ela não poderia ser anterior ao retôrno dos hebreus do

seu cativeiro na Babilônia. (Século VI antes de nossa era.)

O exame crítico do texto do Pentateuco mostrou que êle

se compõe de, pelo menos, quatro partes fundamentais, cheias

de repetições e de contradições. Não sendo os escritos do

Antigo Testamento, aos olhos dos teólogos, tão sagrados como

os do nôvo, a crítica racionalista dêles defrontou-se com menos

obstáculos, e, pôde, mais fâcilmente, impor suas conclusões,

que, aliás, foram inteiramente confirmadas pelas escavações

arqueológicas feitas na Palestina.

Distinguem-se no Pentateuco quatro fontes principais: os

relatos javeísta e eloísta, o Deuteronômio e o código sacerdotal.

A primeira, que é a mais antiga, remonta ao começo do

primeiro milênio antes de nossa era. As duas primeiras fontes

devem seu nome ao fato de, em certas partes do Pentateuco,

l)eus ser chamado Eloim, e, em outras, javé ou Jeová. Com

parando as passagens do relato do dilúvio, na Bíblia, em que

Deus é designado pelo nome de Eloim, com aquelas em que

êle é chamado de Javé. os historiadores puderam distinguir

duas narrações completamente independentes. Tudo leva a

crer que os redatores da Bíblia que chegou até nós procuraram

conservar o mais possível tanto o texto da fonte eloísta como

o da fonte javeísta.
Pode-se dividir do mesmo modo o relato bíblico da criação,

que se inspira, êle também, em duas fontes paralelas. (Gênese,

caps. 1 e II, e cap. II, a partir do versículo 4.) E as duas

versões, coisa significativa, são freqüentemente contraditórias.

Na primeira, Adão e Eva são criados ao mesmo tempo; na

segunda, o Eterno criou a mulher de uma costela do primeiro

homem. Na primeira, o homem aparece depois dos animais;

na segunda, antes. O Antigo Testamento também dá duas versões

contraditárias da venda de José, e de outros acontecimentos.

O quadro é idêntico no que concerne à fonte deuteronô

• mica, do nome do último livro do Pentateuco, que reproduz

quase tôda a legislação dos livros precedentes. O Deuteronômio,

como está dito no segundo livro dos Reis (Cap. XXII), surgiu

em fins do século VII antes da nossa era, tendo sido desco

berto «por acaso» em um templo de Jerusalém, simples subterf gio da parte dos
sacerdotes dêsse templo, desejosos de revestir

94

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

a nova legislação com a autoridade do Moisés. O Deuteronômiu, tal como as leis


expostas no Êxodo, não pode de modo algum datar da época em que os hebreus
vagavam pelo deserto, uma vez que tôdas elas se endereçam não a nômades, mas a
agricultores estabelecidos definitivamente. Notemos, por outro lado, que grande número
de leis do Pentateuco foram tomadas à legislação do rei babilônico Hamurabi, que é um
milênio mais antiga.

O código sacerdotal, última fonte do Pentateuco, veio à luz na Babilônia, em meados do


século IV antes da nossa era. Êle preconiza o monoteísmo com bastante nexo e, coisa
característica, deformando profundamente os fatos históricos. Isto se manifesta,
notadamente, no que concerne ao rito da circuncisão. Êste rito era próprio não apenas
aos hebreus, mas, também, aos egípcios, aos árabes e a muitos outros povos da
Antigüidade, e é praticado ainda hoje por crentes de várias nações. Ora, nessa fonte, êle
é apresentado como o símbolo da aliança entre Jeová e o povo eleito. Semelhante inter..
pretação não seria possível, a não ser em um país em que não se conhecesse a
circuncisão, na Mesopotâmia neste caso.

O seguinte exemplo ilustra mais claramente ainda a maneira pela qual se redigiu o
Pentateuco. A expulsão de Adão e Eva do Jardim do Eden é nêle ligada, como se sabe, à
árvore da vida e do conhecimento do Bem e do Mal. Na Bíblia, essa expulsão se explica
pela desobediência do primeiro homem e da primeira mulher. Nas tábuas em caracteres
cuneiformes descobertas em Ras Shanra, na Síria, está escrito que êles foram expulsos
do paraíso porque os deuses temiam que Adão e Eva, tendo comido o fruto da árvore da
vida, pudessem tornar-se iguais a êles. Achando certamente tal temor indigno de Jeová,
os redatores dor Génese modificaram essa passagem no seu relato, apesar de terem
conservado alguns vestígios dela, como se vê no versículo 22 do capítulo III.

As conclusões da crítica racionalista do Pentateuco, as quais nem mesmo os mais


encarniçados defensores da religião ousam refutar, são de alta importância, e mostram
os métodos que é preciso adotar para estudar a literatura cristã prôpriamente dita. A
análise científica de qualquer texto religioso revela sempre vestígios de crenças mais
antigas. As escrituras «inspiradas por Deus» aparecem, à luz da ciência, como
estreitainente ligadas às concepções religiosas de povos vizinhos. A pretensa fundação
de um culto por um ser sobrenatural acaba assim por revelar o que ela, de fato, é: uma
mistificação. No que cencërne ao Antigo Testamento, isto é reconhecido hoje por todo
mundo. E se os teólogos nãõ cedem ante a crítica racionalista do Nôvo Testamento, não
é porque esta crítica seja menos vigorosa, mas exclusivamente porque a tradição cristã
AS RAÍZES IDEOLÓGICAS DO CRISTIANISMO

95

encontra-se sob a proteção da Igreja e das clases dominantes dos países capitalistas,
profundamente interessados em envolver em mistério o aparecimento do cristianismo.
Sem essas barreiras, as conclusões da crítica científica dos evangelhos seriam, nos
nossos dias, admitidas em geral, do mesmo modo que aquelas relativas ao Antigo
Testamento.

Os livros dos Profetas desempenharam também um considerável papel na fundação da


ideologia cristã nascente. A literatura burguesa do Ocidente gosta de apresentar êsses
profetas como ideólogos das massas laboriosas da Antigüidade, e, até mesmo, como
precursores do socialismo moderno. Os livros do Antigo Testamento, atribuídos a
Isaias, Jeremias e outros contêm, com efeito, e razoàvelmente, palavras vigorosas contra
os nobres e os ricos, que enfraquecem a capacidade de defesa

da nação, porque oprimem cruelmente as massas laboriosas. Malditos sejam os que


acumulam casa à casa — lê-se em Isaias

(V, vers. 8) — e que ajuntam campo ao campo, até que não

haja mais espaço, e que habitem sós no meio do país! » E em Miqueas, (II, vers. 1-2):
«Malditos sejam os que meditam a.iniqüidade e que forjam o mal nos seus leitos! Ao
amanhecer, êles o executam quando têm o poder nas mãos. Cobiçam as terras e delas se
apoderam, e as casas, e as roubam; lançam sua violência contra o homem e sôbre sua
casa, sôbre o homem e sua herança.» Estas passagens e muitas outras do mesmo gênero
mostram como a situação do povo hebreu era aflitiva, refletem sem nenhuma dúvida o
protesto das massas contra o jugo das classes possuidoras, mostram que a diferenciação
social entre os antigos hebreus era já profunda. Mas, os profetas

• no exortam à luta contra os exploradores. Êles põem tôdas as esperanças apenas em


Deus.

A crítica racionalista dos textos bíblicos demonstrou há

muito tempo que os escritos atribuídos a tal ou qual profeta contêm textos pertencentes
a épocas tão distanciadas uma das

outras que não se pode admitir que sejam obra de um só autor. Isto se refere
particularmente ao livro de Isaias, em cujo início se diz que Isaías profetizava nos
tempos de vários reis de Judá no século VII antes de nossa era; contudo, a partir do
capítulo XLI trata-se já, inegàvelmente, de Ciro, Rei da Pérsia que, no ano de 538,
permitiu o retôrno dos hebreus à Palestina, após seu cativeiro babilônico. O estudo do
texto de Isaías deixou claro que êste livro se compõe pelo menos de três partes
independentes, das quais a primeira e a segunda rio, às vêzes, chamadas de Proto-Isaias
ou Deutero-Isaías. Os livros dos outros profetas podem ser analisados de maneira
análoga.
O principal fim visado pelos livros dos profetas hebreus era a atenção das contradições
de classe no seio do povo

96

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

judeu. Seus autores, sem apelar para a luta contra os nobres e os ricos, limitam-se a
censurar os opressores. Não esperam socorros senão de Jeová. Contudo, os livros dos
profetas diferem essencialmente da posição do corpo sacerdotal de Jerusalém por sua
forte tendência messiânica, que o cristianismo adotará depois, apesar de a modificar e a
desenvolver. A salvação do povo hebreu, a derrota dos seus inimigos, a queda dos
deuses estrangeiros e a instauração do reino de Jeová estão ligados, nos profetas, à vinda
à Terra do próprio Jeová ou de um messias divino, por êle enviado. A palavra messias,
do hebraico machiac, ungido, traduzida em grego dá precisamente cristos, o Cristo.

Os evangelhos canônicos e os apócrifos contêm quase tôclas as declarações dos profetas


do Antigo Testamento sôbre o Messias, declarações que serviam de argumento maior
para os primeiros propagandistas do cristianismo que desejavam demonstrar que Jesus
era o messias esperado. Mais ainda: os autores dos evangelhos tiraram dos livros dos
profetas quase todos os detalhes da vida de Jesus. Basta ler o Diálogo com o judeu
Trifônio, composto por Justino, apologista cristão, no momento em que se formava o
mito evangélico, para se ver que as profecias do Antigo Testamento sôbre o Messias
serviram de ossatura para a biografia de Jesus nos evangelhos. A origem de Jesus, seu
nome, o lugar do seu nascimento, a fuga para

o Egito e muitos outros detalhes de sua vida contidos nos sinóticos são constantemente
acompanhados das seguintes palavras: «a fim de que se cumprisse o que tinha sido
anunciado pelos profetas.»
Os destinos históricos do povo hebreu distinguiam-se dos das outras nações da
Antigüidade pr uma particularidade essencial. A Palestina se encontrava numa
encruzilhada do Egito e da Mesopotâmia. Os choques armados entre a Babilônia, e
depois da Assíria, dé um lado, e o Egito, do outro, se desenrolaram durante vários
séculos. A Palestina era um campo de batalha permanente entre duas potências quase
iguais. Ela conservou durante muito tempo uma independência que não foi totalmente
ilusória, e nunca caiu sob uma dominação tão longa que determinasse a extinção do
povo hebreu. Foi isso que permitiu a algumas tribos judaicas manter-se firmes duiante
todo um milênio antes da nossa era, sem perder sua fisionomia própria.

Tôdas essas circunstâncias deram nascimento, entre os hebreus, a um gênero literário


particular, ao mesmo tempo político e religioso: os apocalipses. A herança de uma
intervenção de Jeová, que não poderia abandonar o povo eleito, aumentava por ocasião
de cada desgraça nacional e, sobretudo, após elas. Os autores dos apocalipses
acreditavam que as

AS RAíZs IDEOLÓGICAS DO CR1SrIANISlO

97

desgraças de Israel não eram senão provações impostas pelo Eterno. Os escritos
judaicos mais importantes dêsse gênero são o livro de Daniel e o livro de Eno que, que
não foi incluído na Biblia (século II antes da nossa era), o livro dos Jubileus. uma parte
dos livros sibilinos e os Salmos de Salomuio (século 1 antes de nossa era). A
apocaliptica cristã proveio da judaica.

Uma outra particularidade, ainda, do destino histórico dos antigos hebreus iria favorecer
enormemente a difusão do cristianismo primitivo, Temos em vista a dispersão dos
Judeus fora da Palestina, a partir da ascenção da dinastia persa dos Aquemenídios,
Grande parte dentre êles preferiu permanecer «nas paragens babilônicas», ao invés de
retornar à pátria. Possuem provas da existência, sob os Aquemenídios (séculos VI e IV
antes de nossa era), de uma numerosa colônia judaica em Elefantina, Ilha do Nilo, ao sul
do Egito. Na época helenística, que se distinguiu pela fundação de muitas cidades, já
havia muitos judeus em Alexandria (Egito) e nas cidades da Asia Menor. Ptolomeu 1
exilou para Alexandria grande número de judeus da Palestina, depois da submissão
desta. nviou provàvelmente quase cem mil para a Cirenaica. Outros monarcas helenistas
agiram da mesma maneira. Por fim, as conquistas romanas fizeram afluir massas
consideráveis de prisioneiros judeus para a parte central da bacia do Mediterrâneo,
principalmente para Roma. Certo número desses escravos judeus, rendo ol?tido a
liberdade ao cabo de certo tempo, fixou-se nas cidades, principalmente como artesãos.
Assim apareceu a diáspora, conjunto de comunidades de judeus que viviam fora da
judéia, depois da dispersão. No século 1 sua população judia era várias vêzes superior à
da Judéia. Segundo cálculos aproximativos dos historiadores, o Império Romano
contava, no século 1 da nossa era, com quatro a quatro milhões e meio de judeus, dos
quais apenas 700 mil na Palestina 3 Em Meandria, os judeus constituíam
aproximadamente 40% da população. Em todo o Egito, seu número atingia a mais de
um milhão; em Roma, viviam várias dezenas de milhares, sta dispersão dos judeus em
um território imenso e nas grandes cidades muito favoreceu o crescimento do
cristianismo, sobretudo durapte sua fase inicial.

Entre a população judia da diás para, as culturas judaicas e helenistas se influenciaram


reclprocamente e se fundiram, e asse processo desempenhou um papel de grande
importância

3 A. DONINI apresenta resultados das últimas pesquisas súbre o

p6mero dêles no comêço de nossa era, segundo as quais constitumain êles

10% da população cio Império Romano. Os judeus totalizavam, nessa

é)oca, sete milhões, dos quais quatro milhões na diáspo’a. Ver, também,

Ch. GUIGNEEERT: Le Monde Jnif Vers le Temps de Jéjus, Paris, 190,

273-278.
98

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

no aparecimento da religião cristã e nas primeiras fases da sua evolução. As


comunidades judias de Alexandria, de Roma e das cidades comerciais da costa ocidental
da Ásia Menor sofreram, durante muito tempo uma forte influência da cultura grega.
Em todos êsses centros, muitos judeus conheciam o grego e o latim, liam os filósofos da
Grécia e se convenceram da superioridade da cultura greco-romana sôbre o judaísmo,
que, na escala do Império Romano, não passava de uma cultura provincial. Grupos
influentes de intelectuais da diáspora, sem se levar em conta o pequeno número de
judeus inteiramente ássimilados, procuraram obter, de qualquer forma, uma síntese do
judaísmo, com a filosofia grega.

Um dos mais notáveis representantes do judaísmo helenizado foi Fion, de Alexandria, já


citado, ao qual se deu o nome de «pai do cristianismo». Achava que se devia observar à
risca os ritos judaicos, considerava sagrados todos os livros do Antigo Testamento, e
condenava os judeus que negavam a necessidade de obedecer formalmente a todos os
preceitos da Lei Mosaica. Acentuando que os livros sagrados dos hebreus continham
tôcla a sabedoria do mundo, Filon ajuntava que a mesma luz divina iluminava as obras
dos pensadores gregos.

Não seria necessário dizer que as tentativas de colocar uma ponte entre o sistema
religioso judaico, nascido no seio das tribos judias da Palestina, com seus usos e
costumes particulares, e as doutrinas filosóficas gregas só se poderia fundar em
construções escolásticas desprovidas da lógica mais elementar.

•A interpretação alegórica dos escritos do Antigo Testamento era o método preferido de


Filon. Percebia um sentido místico oculto em cada palavra dêsses escritos. As plantas
úteis simbolizavam nêle, segundo seu parecer, as virtudes humanas, as plantas nocivas,
os vícios; as flôres, a inteligência; os frutos, as capacidades do homem; Adão, a Terra;
Eva, a vida, e assim por diante. O relato bíblicn da viagem de Abraão, da Ur caudaica,
para a Judéia, simbolizava, para Filon, a evolução do sábio, passando do conhecimento
das coisas terrestres, para a contemplação das esferas celestes; o êxodo dos judeus, a
fuga do mundo dos sentidos, para o mundo espiritual; representava o Egito, na sua
opinião, a sensualidade, porquanto suas terras são molhadas, não do alto, pelas chuvas,
mas, por baixo, pelas águas do Nilo... Semelhantes raciocínios não mereciam a menor
atenção se êste método do filósofo de Alexandria não tivesse sido adotado por dois
Padres da Igreja do século II e do comêço do século III: Clemente, de Alexandria, e
Orígenes. Fundadores da teologia cristã, tanto um como o outro o aplicaram à análise do
Nôvo Testamento.

A influência diretas das concepções filonianas se faz sentir em certos escritos


canônicos, particularmente, no Evangelho Se-

AS RAfZ!S IDEOLÓGICAS DO CRISTIANISMO

99

gundo João, na Epístola aos Hebreus, atribuída a Paulo, e nas epístolas do apóstolo
João. Os autores dêsses escritos, do primeiro em particular, emprestaram de Filon não
tanto seu método alegórico, mas sua idéia do Logos, mediador entre os

homens, e Deus.

Desejoso de adaptar o judaísmo ortodoxo aos sistemas filosóficos gregos, Filon não
apresentava Jeová como uma divindade nacional da Israel do Antigo Testamento, mas o
elevava à categoria de Senhor Supremo do Universo, de um Ser transcendente. Os
homens eram incapazes de concebê-lo, e êle só os toca graças às potências que dêle
emanam, das quais a principal é o Logos, o primeiro servidor de Deus, junto do qüal êle
intercede em favor dos homens, o criador do mundo, à Messias. É fácil perceber-se que
a doutrina cristã do Filho de Deus não é senão uma variante da idéia do Logos, adotada,
e depois desenvolvida, pela nova religião. No Evangelho Segundo João, Jesus é
francamente identificado ao Logos.

Convém não esquecer, contudo, que «o cristianismo proveio das representações


emprestadas de Filon, e popularizadas, e não diretamente dos escritos de Filon. . . »4
Pode-se ilustrar isso assinalando tendências análogas em alguns escritos judaicos apó.
crifos. O autor do Livro IV dos Macabeus declara, por exemplo, que a Lei de Moisés
está de acôrdo com a natureza. Ora, a idéia da harmónia entre os decretos divinos e a
ordem natural caracteriza mais de um sistema filosófico da antiga Grécia. Na Sabedoria
de Salomão, a serpente tentadora do Eden é interpretada como uma alegoria do Diabo;
as trevas egípcias, como o símbolo do remorso, e assim por diante. A epístola apócrif a
de Aristeu tenta dar uma explicação racional para o ritual judaico: a proibição de comer
carnes de aves de rapina significaria que a violência avilta a alma humana, enquanto que
a permissão de comer carne de ruminantes seria devida ao fato de a ruminação
simbolizar as preces reiteradas a Deus. Todos esses apócrifos pré-cristãos
desempenharam um papel importante na formação das crenças religiosas dos primeiros
cristãos.

A propaganda do nôvo culto era favorecida, doutra parte, pela organização das colônias
judias da diáspora em tôrno das sinagogas onde se concentravam tanto a vida religiosa,
como a vida social. Os judeus ali se reuniam aos sábados para exercer o culto, e também
para discutir os assuntos correntes da comunidade. A ligação entre as sinagogas nãó era
regular e só se fazia por intermédio de viajantes. Estas formas foram conservadas pelos
judeus-cristãos do comêço do cristianismo, e, depois da separação dêste do judaísmo, as
primeiras comunidades cristãs

4 K. MARX e F. ENGELs: Sur la Reirgion, Ëditions Sociales, Paris, 1960, pág. 195.
100

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

se organizaram, quanto ao essencial, segundo os mesmos princípios. Isto é atestado


pelos Atos dos Apóstolos, ainda que não se lhe possa dar muita fé no que concerne à
reconstituição da história dos primeiros cristãos: êles vêm, cronolàgicamente, depois de
todos os outros escritos do Nôvo Testamento. As informações que nêles se encontram
sôbre as relações entre os predicadores errantes do cristianismo, e as comunidades
judias, parecem contudo verídicas.

Apesar dos esforços empregados pelo corpo sacerdotal de Jerusalém, notadamente pelos
grandes padres, para concentrar em suas mãos o poder, tanto religioso, como temporal,
jamais o conseguiram. Flávio Josefo traça nas suas Antigüidades Jucltiicas um quadro
colorido da áspera luta política e religiosa na Palestina, desde o século II antes de nossa
era, até a sua época.

Duas seitas, sobretudo, deram-se um combate encarniçado, apresentando cada uma


delas um programa político bem definido. Uma, a dos saduceus, recrutava seus adeptos
nas altas esferas da casta sacerdotal. Apesar de se manterem fiéis à lei judaica, os
saduceus se levantavam contra a observação muito estrita das prescrições do ritual,
tendiam para estabelecer contatos com a cultura helênica e se puseram a pregar, como
conseqüência, o estabelecimento de relações amistosas com as autoridades romanas.
Êste grupo representava os interêsses das camadas ricas da nação judia.

Os fariseus eram adversários intransigentes dos saduceus. Esta seita exigia a estrita
observância dos ritos, estigmatizava qualquer compromisso, qualquer relaxamento
nesse plano. «Havia então entre os judeus — lê-se nas Antigüidades Judaicas (XVII, 2,
4) — pessoas que se orgulhavam de observar rigorosamente a lei dos ancestrais e que se
acreditavam, por isso, particularmente amadas por Deus. Eram sobretudo as mulheres
que mais se ligavam a êles. Tinham tais pessoas uma grande fôrça, e conseguiam apõr-
se à vontade do Rei. Mostravam-se muito prudentes aliás, e esperavam sempre uma boa
ocasião para incitar a revolta.» Os evangelhos descrevem os fariseus como hipócritas
orgulhosos e cúpidos.

Duas outras seitas ligavam-se a êles, os zelotas e os essênios. Se bem que fôssem
numèricamente inferiores aos saduceus e aos fariseus, 4esempenharam todavia um
papel importante na aparição do cristjanismo. Falaremos mais adiante dos essênios.
Quanto aos zelotas, representavam a ala extrema-esquerda dos fariseus, Segundo Flávio
Josefo (Antigüidades Judaicas, XVIII, 1, 6), os zelotas só reconheciam um chefe e um
só senhor: o Eterno. Condenavam a passividade dos fariseus no domínio político, e, na
esperança de serem ajudados pelas potências celestes, exigiam a luta armada contra os
romanos. Inimigos das camadas
101

AS RAÍZES IDEOLÓGICAS DO CRISTIANISMO

ricas da nação judia, que eram favoráveis a um compromisso com os romanos, os


zelotas matavam freqüentemente os ricos, donde seu apelido de sicóríos, de sica, punhal
em latim. As crenças messiânicas foram professadas por esta seita desde o princípio.

Depois da queda do reino dos Selêucidas, no ano de 63 antes da nossa era, a Judéia viu-
se sob a dependência de Roma. Esta incentivou ainda mais a luta entre fariseus e
saduceus. Depois da morte do Rei Herodes 1, que reinou do ano 37 ao ano 4 antes de
nossa era, e ao qual os evangelhos atribuem. sem nenhum fundamento a matança dos
inocentes, a Judéia foi transformada em província romana. Tôdas as tentativas de
insurreição fracassavam. Mas, a situação na Palestina tornava-se cadá vez mais tensa.
Em 66 estourou a Guerra dos Judeus. Durou vários anos, e terminou com a destruição
do templo de Jeová, em Jerusalém, que era o centro religioso da Palestina.

O cristianismo era, desde o comêço, nitidamente hostil aos saduceus e, mais


particularmente, aos fariseus. A ideologia dos primeiros, apanágio das altas classes da
sociedade judia, era estranha para os judeus-cristãos. Os fariseus mostravam-se tão
anàticamente presos à letra do judaísmo, que a menor tentativa de reformar a «lei» não
podia deixar de suscitar entre êles una enérgica oposição. Ora, os primeiros cristãos,
independentemente de suas intenções subjetivas, ultrapassavam os quadros do judaísmo
ortodoxo, e foi por isso que seu conflito com os ariseus tornou-se inevitável. Daí, o tom
brutal dos primeiros escritos cristãos contra êles. No que concerne aos zelotas, os
adeptos da nova religião se aparentavam com êles pela espera

aídente da vinda do Messias. Mas, a Guerra dos Judeus teve

como resultado a desaparição dos zelotas como corrente política. A questão das relações
entre o cristianismo e quarta seita

Judia, os essênios, é muito mais complexa. Enumerando as seitas judias, Flávio Josefo
assinala que os essênios esmeravam-se

«precisamente em praticar uma vida venerável.». (A Guerra dos

judeus, II, 8, 2.) Éles já existiam no século II antes da nossa

era. Na época de Filon e de Josefo, seu número se elevava a quatro mil


aproximadamente. Viviam em vilarejos nas margens

desérticas do Mar Morto. Ao aderirem a esta seita, seus novos

adeptos punham seus bens à disposição da comunidade no seio

da qual êles se nutriam, e onde reinava uma estrita disciplina.

Os essênios faziam o juramento de «nada ocultar aos membros da seita, e de nada


revelar a outros que não êles.» Agricultores

cores, artesãos, era-lhes vedado dedicar-se ao comércio e fabricar

armas. A escravidão não existia entre êles. Do ponto de vista

religioso, aceitavam inteiramente o judaísmo, mas recusavam-se

a oferecer sêres vivos em sacrifícios. Sua doutrina estava fixada em livros pr6prios.
102

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

Tais são as informações que Flávio Josefo, Fion de Ale xandria e Plínio, o Velho,
fornecem a respeito desta seita. Sua veracidade despertou dúvidas e suscitou discussões
entre os historiadores: alguns acham que Filon e Josefo idealizaram o modo de vida dos
essênios, para o fazer contrastar com os costumes grego-romanos da época. Verificam-
se, doutra parte, diferenças sensíveis entre as comunicações de Josefo e as de Fion a êste
respeito. Os manuscritos descobertos em Coumrã, aos quais já nos referimos
anteriormente, relacionar-se-iam, precisamente, com esta seita, apesar de certas
diferenças entre os seus dados, e aquêles de que se dispunham até então.

Para o estudo da pré.história do cristianismo os mais importantes dêsses manuscritos


são o comentário aos dois primeiros capítulos do profeta Habacuc, e a Regra da
Comunidade. No comentário, as professias são aplicadas alegàricamente a
acontecimentos recentes da época. Diz-se nêle que um padre ímpio se encarniçou contra
o Eleito de Deus, o Mestre de Justiça, e os homens do seu conselho, e o fêz executar.
Por cansa dessa iniqüidade, Deus abandonou o Padre às mãos dos seus inimigos, e
Jerusalém caiu sob a dominação dos Citim, povo conquistador. Depois dêsses
acontecimentos, o Mestre de Justiça deve aparecer uma segunda vez para julgar Israel e
todos os povos, estando a salvação reservada apenas aos crentes. Como se vê, os temas
dêste escrito lembram muito de perto os do cristianismo primitivo.

No que concerne à Regra, êste documento insiste, sobretudo, a respeito da comunidade


dos bens, que implica também na entrega dos salários quotidianos nas mãos do questor.
Os membros da comunidade se dividem, segundo a Regra,, em padres e simples irmãos,
achando-se a direção nas mãos dos primeiros cujo título é hereditário. A admissão na
comunidade exige dois anos de provas prévias. As infrações à Regra, por parte dos
irmãos, determinam, segundo o caso, redução da ração alimentar, expulsão provisória,
que pode atingir a dois anos, expulsão definitiva. A Regra centraliza, sobretudo, sua
atenção sôbre a comunidade dos bens e, a observação do ritual religioso. Coincidindo,
assim, com as informações dos escritores da Antigüidade sôbre os essênios, êste
documento não se liga todavia ao crístianismo original: por sua forma, lembra as
fórmulas do regime monástico, mas sabe-se que os claustros cristãos apareceram muito
mais tarde.

Outro documento descoberto em Coumrâ, a Guerra dos Filhos da Luz, Contra os Filhos
das Trevas, também não se assemelha de modo algum aos monumentos do cristianismo
primitivo. Dá uma descrição tipicamente judaica do combate dos justos contra o
«exército de Belial». Êles são dirigidos por padres, suas tropas se dividem em milhares
e em centenas de
AS RAÍZES IDEOLÓGICAS DO CRISTIANISMO

103

homens etc., segundo a idade e a arma. As operações militares aí se desenrolam ao som


das trombetas dos padres. Segundo a opinião geral dos pesquisadores, êste documento é
um eco longínquo da guerra libertadora da época dos macabeus.

As escavações arqueológicas no local em que se descobriram os manuscritos de Coumrã


revelaram que ali se situava outrora o centro de uma vasta comunidade religiosa. As
dimensões da construção principal e das cavernas vizinhas indicam que ç número de
seus habitantes era relativamente pouco elevado, mas descobriram-se mais de 1 100
túmulos no cemitério situado muito perto, o que leva a crer que todos os membros da
comunidade ali eram enterrados, independentemente do lugar em que vivessem. A
presença de fragmentos de centenas de manuscritos e de rolos preparados para escrita
parece atestar que era lá também o centro dos essênios. As moedas encontradas em
Coumrã permitem situar esta colônia de essênios no século II antes de nossa era até a
revolta de Bar-Cocheba (do ano 132 ao ano 136). O número dessas moedas. se eleva a
mais de 200, mas elas se encontravam apenas na habitação principal, nas cavernas das
proximidades nenhuma foi achada, prova suplementar da comunidade de bens na
colônia.

Além do que já sabíamos sôbre os essênios segundo os autores da Antigüidade,


aprendemos, pois, que um dos seus chefes, o «Mestre de Justiça», foi levado à morte
por um padre ímpio, e que êles acreditavam na sua ressurreição. Porém, não se pode
identificar esta seita com as comunidades cristãs mais antigas; primeiro, porque os
principais documentos encontrados em Coumrã se referem a um período muito anterior
ao aparecimento do cristianismo, e a comunicação sôbre o Mestre de Justiça,
particularmente, data da primeira metade do século 1 antes de nossa era; segundo,
porque o modo de vida estrictamente regrado, monástico, dos membros da comunidade
de Coumrã não corresponde aos dados de que dispomos a respeito do modo de vida das
primeiras comunidades cristãs; finalmente, porque a seita de Coumrã ,se fundava em
princípios teocráticos, tinha padres como chefes, enquanto que o clero cristão só
apareceu no século II, como veremos em seguida. Tais são as razões que nos impedem
de aceitar a’ opinião de A. Donini, e de alguns dos seus partidários, sôbre a pretensa
ideologia «tlpicamente cristã» da seita das margens do Mar Môrto. Que alguns dos
elementos da ‘ideologia da comunidade de Coumrã tenham podido passar para os
primeiros cristãos, apesar de terem sido ulteriormente modificados por êles, isso é outra
coisa.

As crenças messiânicas começaram a se manifestar entre os judeus sobretudo a partir do


século II antes da nossa era. Se, entre os antigos profetas, o Messias será um rei da
Judéia, obrigatàriamente saído «do ramo de David», no Livro de Daniel

104

A ORIGEM 1)0 CRISTIANISMO

(século II antes da nossa era) já se vê surgir um nôvo personagem revestido desta


missão: o Filho do Homem (VII, versículo 13), têrmo que acentua sua natureza terrestre,
e não celeste, seus traços humanos, e não divinos. No Livro de Daniel, êste personagem
não é ainda o próprio Messias. A síntese dessas duas concepções ëncontrou sua
expressão um pouco mais tarde no livro apócrifo de Enoch, em que o Filho do Homem
aparece com o aspecto de um ser sobrenatural que existia desde a criação do mundo, e
que seria enviado à Terra para cumprir os desígnios de Deris. A seguir impõe-se a
opinião segundo a qual o Messias, sem descender obrigatàriamente de reis, poderia ter
por pais pessóas simples escolhidas pelo Altíssimo; Notemos que no Escrito de Damas,
anuncia-se que o Messias não përtencerá à casa de Dávid, mas à família sacerdbtal de
Aarão e de Israel. O mesmo pensaménto é sustentado nos Testamentos dos Doze
Patriarcas. Uma versão pàsterior do Talmud, que data do final do século II, fala de
Messias; um, filho de Jcisé ou Efraim, que encontrará a morte lutando contra õs
inimigõs, e, outro, filho de David, que triunfará depois da derràta do seu predecessor.
Esta variante talmúdica visava claramente harmonizar as diversas crenças messiânicas
difundidas entre ó povo. Não se ecclui a hipótese de qüe tenha ela surgido para
contrabalançar a doutrina cristã sôbre êsse assunto. Convém assinalar ainda que, antes
do aparëcimento do cristiai±mo, e paralêlaiientê a êlê, ós judeus admitiam um
Messiasmártir, uma ëspéde de bode expiatório qe devia pagar os pecados de Israel.’
Vimos, portanto, que alguns dós elementos da imagem de Jesüs aparêciam já na
literatura judàica apócrifa, muito antes da época m que a tradição da igreja situa a vida
tei±&re do Cristo.

O judaísmô fõi, assim, a principal fonte do cristianismo. Éste reonhêàu o Aiuigõ


Testamento como revelação divina e, em partirular, adotou a cósmogonia bíblica. Dêle
tirou também a idéia messiânica, úuito modificada, é certo, não de acôrdõ com o Antigo
Testamènto, mas com os ëscritos apÓcrifos.

A novã religião só se distanciou do judaísmo progressivatuente. O principal ponto dêste


último, que ela de modo algum Õderia aceitar, referia-se à sua estreiteza étnica: a
afirmação segundo a qual os hebreus seriam o povõ eleito de Deus. O cristianismo
nascente teve de proclamar, em primeiro lugar, quê os adeptos de Jesus eram a
«verdadeira IsraeL. Isto ocasionou, por sua vez, a necessidade de renunciar às
prescrições do ritual judaico, obstáculo à difusão do nôvo culto entre os que não eram
judeus.

5 Consultar a êste respeito a obra citada de Ch. GUIGNEBERT,

pgs. 162-202.
CAPÍTULO IV

O APARECIMENTO DO CRISTIANISMO

Entre o século II e o III, Tertuliano definiu como se segue o credo cristão: «Nós cremos
num Deus único, criador do mundo, que êle tirou do nada, com sua palavra engendrada
antes dos séculos. Acreditamos que esta Palavra é o Filho de Deus que, por muitas
vêzes, apareceu aos patriarcas sob o nome de Deus, inspirou os profetas, desceu por
obra do Espírito Santo no ventre da Virgem Maria, nêle se encarnou, e dela nasceu;
cremos que esta Palavra é Nosso Senhor Jesus Cristo, que pregou a nova aliança e a
nova promessa do reino dos céus. Cremos que Jesus Cristo realizou numerosos
milagres, foi crucificado, ressuscitou dos mortos e subiu ao céu

Assim, segundo a tradição, nos começos da nossa era, a Virgem Maria deu à luz Jesus,
Filho de Deus, o Messias cuja vinda tinha sido anunciada desde há muito tempo pelos
profetas. Realizando milagres, êle demonstrou que era o enviado do céu para salvar o
gênero humano, mergulhado na impiedade e corrõído pelos vícios. Crucificado em
Jerusalém, por ter combatido o judaísmo oficial, Jesus resgatava com sua morte os
pecados dos homens. Os primeiros cristãos estavam coüvencidos de que jesus Cristo
não tardaria a retornar para instalar o reina de Deus sôbre a Terra.

Segundo a mesma tradição, os apóstolos, discípulos de jësus, consolidados em sua fé


graças ao milagre da ressurreição, começaram a preconizar a palavra de Deus,
primeiramente entre os judeus palestinianos, depois, entre os pagãos, particular. mente
por iniciativà do apóstolo Paulo, convertido ao cristianismo um pouco mais tarde. A
crer-se no Nôvo Testamento, trinta anos após a crucificação, já existiam comunidades
cristãs, tanto na Judéia e regiões vizinhas, como também em todos os países do leste do
Mediterrâneo. Esta tradição diz que nova religião não deixou de progredir também
durante a segunda metade do século 1. Ela teria alcançado, no decorrer dêsse século dito
apostólico, vitórias incríveis. Por essa época j ëxistiriam todos os escritos do Nôvo
Testamento. A fé cristã teria conseguido um êxito ininterrupto durante o século II
mbém, no fim do qual Tertuliano pôde declarar, cheio de êtguraiiça, aos seus
adversários: «Somos de ontem, e já enchemos a Terra e tudo que era vosso: as cidãdes,
as ilhas, os stos fortificados, os municípios, as vilas, as cidades fortificadas, os próprios
campos, as tribos, as decúrias, os palácios,

105
106 A ORIGEM DO CRISTIANISMO

o Senado, o foro; nós vos deixamos apenas os templos! » (Apologética, 37).

Parece que tudo foi calculado nesse esquema, adotado tanto pela Igreja Católica como
pela Igreja Ortodoxa, para o tornar o mais verossímil possível. Milhares de teólogos o
examinaram a fundo, atentos a cada uma de suas afirmações, para delas eliminar
qualquer contradição. Durante tôda a Idade Média, quando as letras estavam quase que
monopolizadas pela Igreja, e todos os manuscritos históricos encontravam-se nos
monastérios, qualquer escrito que se afastasse por

• pouco que fôsse dêsse esquema era impiedosamente destruído. Quanto às fontes que,
por esta ou por aquela razão, não podiam ser destruídas, não exitavam em corrigi-las no
sentido desejado. Não intercalaram no manuscrito do judeu ortodoxo Flávio Josefo a
afirmação de que Jesus era... o Messias?
O esquema exposto proclamava, sobretudo, êstes três pontos: 1) a existência histórica
de Jesus, Homem-Deus, cuja passagem pela Terra está descrita nos evangelhos; 2) a
pureza e a continuidade da doutrina cristã anunciada pessoalmente pelos discípulos do
suposto fundador da nova religião, expressas nas palavras que se lhe são atribuídas; 3) a
existência da Igreja desde o círculo de apóstolos, no momento do nascimento do
cristianismo, até os nossos dias. Êste último ponto desempenha um papel
particularmente importante na doutrina católica, segundo a qual os papas romanos
seriam os sucessores diretos dos apóstolos Pedro e Paulo.

Há 50 anos que a crítica das fontes do cristianismo original vem alcançando êxitos
notáveis, graças ao progresso geral da ciência histórica; essa crítica desferiu um golpe
fulminante na tradição ortodoxa. Qual é atualmente a concepção científica a respeito da
aparição •do cristianismo e das primeiras comunidades cristãs?

Que o esquema da Igreja, mesmo sem falar de. milagres, seja inaceitável, demonstra-se
claramente à luz dos quatro argumentos seguintes:

1. A ordem cronológica dos escritos canônicos é a inversa daquela em que estão


dispostos no Nôvo Testamento; mostramos, no capítulo consagrado a esta questão,
como se chegou a estabelecer as várias datas em causa.

2. Até o comêço do século II não se encontra qualquer informação sôbre os cristãos na


literatura judia e greco-romana anterior a êsse período.

3. Nos escritos cristãos, há uma manifesta solução de continuidade entre a descrição


detalhada do nascimento do cristianismo, e a atividade dos apóstolos, de um lado, e o
silêncio total sôbre o desenvolvimento ulterior da nova religião
o APARECIMENTO DO CRISTIANISMO 107

até os meados do século III, de outro, o que não pode ser explicado senão pelo fato de a
literatura evangélica sômente ter aparecido no século II.

4. Não se encontra na literatura cristã, nem mesmo nos antigos escritos, qualquer
informação sôbre uma igreja sàlidamente constituída na Judéia desde a segunda metade
do século 1.

Diante dêsses fatos, pode-se perguntar: seria possível, em / geral, reconstituir


objetivamente a história do nascimento do cristianismo? Uma vez que se rejeita o
dogma da Igreja e se recusa a reconhecer a autenticidade dos escritos evangélicos, muito
posteriores aos acontecimentos visados, o pesquisador parece ficar encurralado num
bêco sem saída, por causa da ausência de fontes não cristãs relativas ao período em
questão. E o problêma encarado neste plano é verdadeiramente espinhoso. Em face das
dificuldades que êle apresenta, o acadêmico R. Viper, por exemplo, tomou o partido de
proclamar que o cristianismo só apareceu por volta do meado do século II, não tendo o
período precedente relação senão com a pré-história dessa religião. Ë preciso dizer,
contudo, que o problema, apesar de sua grande complexidade, não é insolúvel, pelo
menos quanto ao essencial.

Não dispomos de qualquer informação digna de confiança sôbre o cristianismo, durante


a primeira metade do século 1. Os evangelhos foram compostos muito mais tarde, e, o
que é mais importante ainda, o relato que êles apresentam da vida do pretenso fundador
do cristianismo não prova que Jesus tenha existido; mostra, ao contrário, que êsse
personagem nada tem de histórico, questão sôbre a qual retornaremos. (Ver. Capítulo
VI, 2.)

O mais antigo monumento da literatura cristã primitiva é o Apocalipse de João, que


deve datar dos começos da segunda metade do século 1. Algumas de suas passagens
denunciam interpolação e correções que remontam aos fins dêsse século, mas não há
dúvida de que o seu conteúdo essencial se relaciona com o período da Guerra dos
Judeus. Quatro aspectos do Apocalipse autorizam a situá-lo entre os escritos cristãos
mais antigos, e a tomá-lo, além disso, como prova de que na época em que êle foi
composto o cristianismo começava apenas a se destacar da religião judaica, a saber: 1) a
fraca difusão da nova fé, que testemunha; 2) seu estreito parentesco com o judaísmo; 3)
sua ignorância quase completa da dogmática cristã; 4) seu silêncio sôbre a vida terrestre
de Jesus. O Apocalipse contém passagens que contradizem manifestamente os dogmas
da Igreja, e, no. seio desta, feriram-se encarniçados debates quando se tratou de sua
introdução no cânone. Isto . confirma, se bem que indiretamente, sua antigüidade.
108 A ORIGEM DO CRISTIANISMO

D’outra parte, o fato de que, apesar de tudo, o induíram no Nôvo Testamento mostra
que suas concepções se aproximavam das do cristianismo original.

Nenhum escrito do Nôvo Testamento suscitou tantas controvérsias entre os teólogos,


como o Apocalipse de João. O balanço dêsses desacordos, muito incompleto, ainda que
bastante circunstanciado, foi elaborado por Eusébio, primeiro historiador do
cristianismo. (História Eclesiástica, III, 24, V, 8 e, sobretudo, VII, 25.) Êle notava, ainda
no século IV: «A opiníiío sôbre o Apocalipse não cessa, mesmo nos nossos dias, de
pender de um u de outro lado.» Irineu, que escreveu a partir do ano 175
aproximadamente, achava que o Apocalipse datava «do final do reino de Domiciano»,
isto é, de 95, aproximadamente. (Comparar o que diz Eusébio na obra citada, V, 8.)

S. Dionisio, Bispo de Alexandria no século III, ao assinalar que alguns dos seus
predecessores «rejeitavam completamente e refutavam de todos os modos possíveis» o
Apocalipse, cita uma versão em curso entre o clero, segundo a qual êle teria sido
composto pelo heresiarca Cerinto, que pregava «o reino terrestre do Cristo.» Quanto ao
próprio S. Dionísio, êle confessa que «não ousa refutar êste livro, respeitado por muitos
dos nossos irmãos.» Acrescenta que o estilo e a língua do Apocalipse, diferentemente
dos dos evangelhos, «não sãO puramente gregos, mas misturados com dialetos
estrangeiros e incorretos em certos aspectos.» A última observação é absolutamente
justa, e milita igualmente em favos da antigüidade dêste escrito.

claro que a dificuldade para a Igreja não residia nas particularidades do estilo do
Apocalipse: o que a irritava era seu conteúdo, incompatível com o espírito dos outros
escritos do Nôvo Testamento. O reino terrestre do Cristo que êle anuncia contradiz
nitidamente o reino celeste no outro mundo, proclamado pelos evangelhos, O ódio ao
poderio romano, e a sede de vingança de que as páginas do Apocalipse estão cheias não
se enquadram de modo algum na linha política adotada pela Igreja. E se esta o incluiu,
apesar de tudo, no cânone, foi sàmente por causa do prestígio que êsse documento
extremamente antigo da literatura cristã tinha aos olhos de «muitos dos irmãos. *

A primeira questão que o historiador se propõe refere-se ao lugar em que o cristianismo


apareceu. Segundo a tradição evangélica, êle nasceu na Judéia, e está ligado
naturalmente a Jerusalém. Provindo do judaísmo, a nova religião devia, aliás,
reconhecer como sua pátria «a terra de nossos pais.» Não é o Antigo Testamento a
história dos hebreus da Palestina? As profecias bíblicas constantemente evocadas pelos
primeiros
O APARECIMENTO DO CRISTIANISMO 109

escritores cristãos, lembram sem cessar que o lugar de ação do Messias seria justamente
a Judéia, Jerusalém, a «cidade santa». Os evangelhos, inspirando-se nas professias do
Antigo Testamento, fazem remontar a genealogia de Jesus ao Rei David, o que tornava
obrigatório situar os primeiros passos do cristianismo na Judéia.

Depois das descobertas arqueológicas em Coumrã, lança-se de nôvo a idéia na literatura


marxista de que o cristianismo teria aparecido de fato na Palestina. Como argumento
maior invoca-se a insistência da tradição cristã primitiva sôbre êste ponto. Aqui, é
preciso notar que esta tradição liga o nascimento do cristianismo e o lugar de sua
aparição às atividades de Jesus Cristo. Desde que se reconhece a Jesus a qualidade de
personagem histórico, deve-se aceitar, como conseqüência, que a religião da qual êle
teria sido fundador deu seus primeiros passos na Palestina. Porém, semelhante
concepção cai automàticamente, segundo nossa opinião, desde que se lhe negue a
premissa. Que restará dessa idéia se nos colocarmos no ponto de vista da evolução da
imagem de Jesus-Deus, para a de Homem-Deus? No que concerne aos documentos da
seita de Coumrã, mostramos no capítulo precedente que o cristianismo não saiu desta
seita; então, tudo quanto a ela se refere não pode ser maís utilizado para definir o local
do aparecimento do cristianismo.

Muitas razões militam contra a versão tradicional. Notamos já a ausência de


informações sôbre os cristãos nos autores hebreus do século 1. Não se dispõe de
qualquer relatório a respeito da participação dos adeptos da nova fé nos acontecimentos
ligados à Guerra dos Judeus, descrita com grande luxo de detalhes por Flávio Josefo, e
da qual se encontram ecos nas obras dos escritores greco-romanos. Josefo teria
inegàvelmente falado da posição de uma comunidade cristã, ainda que pouco numerosa,
durante a Guerra dos Judeus. Seu silêncio sôbre isso não pode ser de modo algum
atribuído ao acaso. Fato ainda mais sintomático: a literatura cristã também emudece a
respeito do destino dos cristãos de Jerusalém depois da destruição da cidade, e o pouco
que ela diz sôbre o período anterior encontra-se sobretudo nos escritos canônicos menos
antigos, tais como os Atos dos Apóstolos, e os evangelhos. Isto significa que as alusões
dos autores cristãos aos adeptos da nova fé na Judéia só aparecem quando é impossível
evitá-las. Os escritos mais antigos do cristianismo não fornecem o menor dado concreto
sôbre uma comunidade cristã de Jerusalém, salvo uma passagem da Epístola aos Galatas
(1, 17-TI, 9), destinada a sustentar, com a autoridade dos apóstolos, a predicação do
cristianismo entre os pagãos, mas que não prova que esta religião fôsse difundida na
Judéia.
110

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

Para encontrar uma saída para esta contradição, foi, muito mais tarde, entre os séculos II
e IV, inventada uma lenda, segundo a qual os cristãos de Jerusalém, «obedecendo a uma
ordem do céu» (Eusébio: História Eclesiástica, III, 3), teriam deixado a cidade antes de
sua destruição pelos romanos, para se fixarem num país vizinho. Porém, êste piedoso
subterfúgio não pode salvar os zelosos defensores da versão tradicional, porque não
existe qualquer relato sôbre o destino ulterior dessa comunidade.

Isto pôsto, quando os monumentos arqueológicos descobertos em Coumrã foram


publicados, êles deviam interessar no mais alto grau aos meios eclesiásticos. As
escavações posteriores iriam revelar• que a comunidade de Coumrã existia naquele
local, do século 1, até a Guerra dos Judeus. Isto bastou aos teólogos das diversas igrejas
para proclamar que êsses rolos eram precisamente os mais antigos documentos do
cristianismo, escritos em língua hebraica por testemunhas oculares da ativividades de
Jesus Cristo. Quando essas afirmações revelaram-se destituídas de qualquer
fundamento, avançou-se a conjectura, não menos inconsistente, de que os manuscritos
de Coumrã pertenciam a uma seita judaico-cristã, a dos ebionitas. Como única prova
para apoiar tal hipótese referiam-se à utilização reiterada, no texto da Regra, da palavra
ebionim, «pobres», em hebreu.

Tôdas essas razões nos obrigam a nos restringirmos a conclusões bem limitadas: a
versão tradicional sôbre o nascimento do cristianismo na Palestina não é digna de fé; as
informações mais verossímeis sôbre as comunidades cristãs mais antigas nos levam à
Ásia Menor sem, todavia, nos dar a certeza de que foi por lá que elas apareceram em
primeiro lugar; o problema do lugar de nascimento do cristianismo deve, visivelmente,
ficar em suspenso até a descoberta de novas fontes.1
Um argumento de pêso a favor do nascimento do cristianismo entre os judeus da
diáspora, e não na Palestina, reside no regime teocrático estritamente centralizado da
Judéia, onde tudo estava submetido ao poder da aristocracia sacerdotal do templo de
Jerusalém, e onde a população se encontrava sob a férula das múltiplas prescrições do
judaísmo. Nessas condições, é difícil conceber o aparecimento, na Palestina, de uma
seita que ousava elevar-se, desde o comêço, contra os dogmas oficiais do judaísmo,
diante dos quais se inclinavam tôdas seitas que conhecemos, dos essênios, aos saduceus.

1 Ver 1. P,. FRANTSEV: Das Fontes da Religião e do Ateísmo, Moscou, págs. 425-
487. (Edição russa)

o APA1ECIMEI DO CRISTIANISMO

111

Na diáspora, ao contrário, beneficiavam-se os judeus de uma liberdade de consciência


mais ampla, e sofriam, além disso, a influência das religiões locais; as condições eram,
portanto, mais favoráveis ao aparecimento de um nôvo culto. Não foi por acaso que o
sistema filosófico e religioso de Filon de Alexandria, um• dos mais destacados
predecessores da ideologia cristã, apareceu no Egito, não na Judéia. Isto vale, com
muito maior razão, para o cristianismo, pleno de concepções judaicas e filonianas, ao
qual ainda se misturaram numerosos elementos emprestados das diversas religiões da
Ásia Menor. A população judia da diáspora era, sem dúvida, um terreno ideal para a
eclosão da nova religião.

O autor do Apocalipse de João, o documento mais antigo da literatura cristã, conhecia


apenas sete comunidades cristãs na Ásia Menor, que êle enumera várias vêzes: as de
Efeso, de Smirna, de Pérgamo, de Tiátire, de Sardes, de Filadélfia, e de Laodicéia. (1,
11 e em outros lugares.) Essas cidades eram próximas umas das outras. Segundo o
testemunho de Plínio, o jovem, existiam comunidades cristãs bastante populosas nos
começos do século II a nordeste da Ásia Menor, na Bitínia. A Epístola aos Gálatas fala
igualmente da Ásia Menor como um dos centros mais antigos do cristianismo.

Possuímos, doutra parte, informações sôbre o aparecimento do cristianismo no Egito,


em época bastante recuada (no comêço do século II). Como na Ásia Menor, existiam ali
comunidades judias bastante numerosas. Os livros do Nôvo Testamento não fazem
qualquer menção a comunidades cristãs no Egito, e são, em geral, muito avaros de
informações sôbre êsse país, mas os mais antigos monumentos da arqueologia cristã
foram descobertos justamente no Egito, como o vimos anteriormente. O silêncio da
literatura eclesiástica sôbre as comunidades cristãs primitivas nesse país é devido talvez
ao fato de encontrarem-se essas comunidades, desde a primeira metade do• século II,
sob a influência do gnosticismo, corrente declarada herética depois da constituição da
Igreja. Outros indícios atestam ainda o aparecimento de comunidades cristãs no Egito
em época mais recuada do que aquela.

Apesar das obscuridades do estilo, o Apocalipse de João apresenta um quadro bem claro
do estado de espírito, das esperanças e, mesmo, da ideologia dos antigos cristãos ou,
melhor, das primeiras comunidades judaico-cristãs. Êste escrito foi magistralmente
analisado há mais de meio século por Friedrich Engels.2 Bastar-nos-á, aqui, recordar
suas principais conclusões, que conservam todo o seu valor científico.

2 K. MARX e F. ENGELS: Ser la Religion, d. Sociales, Paris,

1960, págs. 310-338.


112 A ORIGEM DO CRISTIANISMO

O autor do Apocalipse se dirige sàmente às sete comunidades da Ásia Menor,


comunidades cujo nome, em grego eclesia, significava, na época clássica, «assembléia
popular», e que o Nôvo Tesçamento utiliza tanto para designar as comunidades cristãs
locais, como também a Igreja em seu conjunto.3 O autor do Apocalipse serve-se dêsse
têrmo apenas no primeiro sentido. Fala de sete «Igrejas» cristãs «que estão na Ásia», em
Éfeso, em Smirna etc., e é evidente que êle não reconhece qualquer forma de união
entre essas comunidades, e não tem qualquer noção de Igreja universal.

As sete comunidades enumeradas no Apocalipse de João situavam-se todos em cidades


do oeste da Ásia Menor, na encruzilhada das vias comerciais, e tinham uma população
multinacional, em que o elemento judaico não era o menos numeroso. O número 7 não
era fortuito aqui; êle tinha um sentido cabalístico, tanto entre os antigos hebreus, como
entre os outros povos da Antigüidade; no Apocalipse êle reaparece muitas vêzes, não
sàmente no plano terrestre, mas também no celeste. Tem-se a impressão de que o autor
dêste escrito, que conhecia apenas sete comunidades cristãs, atribuía a tal fato uma alta
importância.

O traço mais característico das comunidades cristãs citadas no Apocalipse era a luta
verdadeiramente darwiniana pela existência, que elas mantinham entre si, segundo a
justa expressão de Friedrich Engels. Os capítulos segundo e terceiro do Apocalipse
descrevem em poucas palavras o estado de coisas que vigora no seio de cada uma delas.
Descobrem-se, assim, na comunidade de feso, criaturas «que se dizem apóstolos, e que
não o são; mentirosos, apenas» (II, 2), e ainda certos nico. laítas dos quais se constata
também a presença na comunidade de Pérgamo. O autor do Apocalipse censura a vários
cristãos por abandonarem a fé, e os exorta a se arrependerem. (Cap. II, versículo 5 e
outros.) Ële verifica que os membros das comunidades de Smirna e de Filadélfia são
caluniados por «aquêles que se dizem judeus, e que não o são.» (II, v. 9 e III, v. 9.)
Condena os fiéis de Tiátire por deixarem «a mulher Jezabel, que se diz profetiza,
ensinar e seduzir os servidores de Deus [os cristãosj, para que êles se abandonem à
impudicícia e comam carnes sacrificadas aos ídolos.» (II, 20.) O relato das querelas sem
fim entre os diversos grupelhos religiosos é acompanhado, no Apocalipse, pela
descrição dos castigos do céu que esperam os renegados da verdadeira fé.
3 Donde a palavra Igreja, em francês. Os teólogos, tirando partido do seu duplo sentido
em grego, procuram provar, dessa maneira, que a Igreja nasceu com o cristianismo. Na
versão russa do Nôvo Ter tarnenso o têrmo grego é sempre traduzido por “igreja”.

O APARECIMENTO DO CRISTIANISMO 113

É bastante significativo que o autor do Apocalipse qualifique de renegados até mesmo


os representantes da corrente que, em seguida, assumiu a chefia do cristianismo. Tal é o
caso quando fulmina aquêles «que se dizem judeus, e não o são», palavras
perfeitamente aplicáveis aos redatores de várias epístolas paulinianas que, em nome do
apóstolo, nelas se declaram melhores judeus, do que os fiéis do judaísmo oficial.

O conteúdo do Apocalipse difere muito do conteúdo dos outros escritos do Nôvo


Testamento. Enuncia opiniões que a Igreja iria condenar posteriormente, e não foi
fortuitamente que sua introdução no cânone suscitou uma resistência tão encarniçada. O
Apocalipse concebe o cristianismo apenas como parte integrante do judaísmo. Mais
ainda, seu autor considera-se no dever de acentuar que só os cristãos é que são judeus

autênticos. Antes de descrever os castigos reservados aos incrédulos, êle previne que
essas desgraças serão poupadas a «cento e quarenta e quatro mil (homens) de tôdas as
tribos dos filhos de Israel.» (Apocalipse, VII, 4 e XXI, 12.) E não se pode duvidar que
êle tem em vista não aos cristãos em geral, mas, explicitamente, aos judeus-cristãos,
porquanto êle precisa que êsses justos pertencem às doze tribos israelitas atribuindo êsse
título «àqueles que não se macularam com mulheres, pois êles são virgens; êles seguem
o cordeiro por onde êle vá; foram resgatados entre os homens. » (Apocalipse,

XIV, 4.) Tudo leva a crer que, nessa época, a predicação

cristã não se realizava senão entre os judeus; portanto apenas uma parte dêles podia
esperar, segundo o autor do Apocalipse, a salvação e o reino de Deus. Êste escrito é,
portanto, também judaico, até certo ponto.

Convém notar, contudo, que êste documento cristão, dos mais antigos entre todos, já
difere muito dos outros escritos judaicos dêsse gênero e, primeiramente, por sua fé em
Jesus, o enviado de Deus; fé que é proclamada desde as primeiras linhas: «Revelação de
Jesus Cristo, que Deus lhe deu para mostrar aos seus servidores as coisas que devem
acontecer brevemente. » O texto seguinte retorna várias vêzes a Jesus, mas aqui êle de
modo algum se assemelha ao personagem evang lico. O Apocalipse não diz uma única
palavra sôbre a sua vida terrestre.4 Trata-se de uma figura cósmica, o «alfa e

4 Sômente duas passagens do Apocalipse (1, 5 e XI, 8) apresentam certa coincidência


com a versão evangélica, falando, a primeira, “daquele que nos livrou dos nossos
pecados com o seu sangue”, e, a segunda, da “região de uma grande cidade chamada,
em um sentido espiritual, Sodoma e Egito, lá mesmo onde o Senhor foi crucificado.”
Mas, essas passagens contradizem inumeráveis outros testemunhos do Apocalipse sôbre
Jesus, e são, incontestàvelmente, interpolações posteriores. Ver A. L0IsY, ob. cit., pág.
37.)
114

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

o ômega», o primeiro e o último (1,8). O autor do Apocalipse dá dêle a seguinte


imagem: «Êle tinha em sua mão direita sete estrêlas. Da sua bôca saia uma espada
aguda, de dois gumes; e sua face era como o Sol quando êle brilha no seu esplendor.
Seus olhos eram como chamas, seus pés eram semelhantes aõ bronze ardente, como se
êie tivesse sido abrasado numa forna1ha. (Apocalipse, 1-14-16.)

Além de Jesus, o Apocalipse descreve minuciosamente, e põe igualmente no primeiro


piano, outro ser cósmico, o Cordeiro, «que lá estava como imolado» e «tinha sete
cornos e sete olhos, que são os sete espíritos de Deus» (V-6), único ser digno de abrir o
livro selado com sete selos. Em seguida, um menino faz sua aparição no Apocalipse, e
êle deve «apascentar tôdas as nações com uma vara de ferro» (XII, 5). Foi concebido
não pela Virgem Maria, mas por «uma mulher envolvida pelo Sol, tendo a Lua sob os
seus pés, e uma coroa de doze estrêlas sôbre a fronte» (XII, 11). Entre os personagens
dêsse escrito, há um cujo nome é a Palavra de Deus que «é seguido pelos exércitos que
se encontram nos céus sôbre cavalos brancos» (XIX), e outro que estava «assentado
sôbre uma nuvem» e que «assemelhava-se a um filho de homem» (XIV, 14). A
profusão de figuras cósmicas no Apocalipse explica-se pelos abundantes empréstimos
feitos de outros apocalipses judaicos.

Êste escrito ignora ainda o dogma fundamental do cristianismo, relativo à Santíssima


Trindade: O Pai, o Filho e o Espírito Santo. Êle chega mesmo a contradizê-io em várias
ocasiões, tal como no capítulo XV, versículo 3, em que afirma que sete anjos «cantam o
cântico de Moisés, o servidor de Deus, e o cântico do Cordeiro.» Aqui, Jesus não é o
Filho de Deus do texto canônico, é apenas um servidor, da mesma hierarquia que
Moisés. O Apocalipse não menciona em parte alguma um Espírito Santo único, mas
refere-se muitas vêzes aos « sete espíritos de Deus. »

Os outros dogmas maiores do cristianismo brilham igualmente pela ausência no


Apocalipse. Nada é dito aí sôbre o batismo, por exemplo. «Não faças o mal à terra, lê-se
no capítulo VII, vçrsículos 3-4, nem ao mar, nem às árvores, até que tenhamos marcado
com o sêio a fronte dos servidores do nosso Deus. E ouvi o número daqueles que tinham
sido marcados com o sêlo, cento e quarenta e quatro mii, de tôdas as tribos dos filhos de
Israel.» Ao enumerar essas doze tribos, o autor acrescenta para cada uma delas: doze
mil «marcados com o sêloi Êle teria dito «batizados», incontestàvelmente, se o
sacramento do bastismo já existisse no seu tempo. Há no Apocalipse uma dezena de
passagens em que se poderia esperar encontrar alusões ao batismo, mas nada há sôbre
êle.
O APARECIMENTO DO CRISTIANISMO

115

Também não se encontra nêle qualquer palavra sôbre a eucaristia, ou sôbre a


justificação pela fé, que já ocupa um lugar primordial nas mais antigas epístolas, nada
sôbre o pecado original resgatado pelo sangue do Cristo. Êsse silêncio quanto aos
aspectos mais importantes da religião cristã não é devido ao acaso, resulta do fato de ter
êste escrito vindo à luz muito antes da constituição dêsses dogmas.

Sabemos que no centro das divergências no seio das comunidades cristãs encontrava-se
a questão dos sacrifícios aos ídolos (como se vê no capítulo II do Apocalipse), questão
que não deixou de ter um grande papel na história do cristianismo primitivo, até a sua
transformação em religião oficial do Império Romano. Os sacrifícios eram parte
integrante e essencial de tôdas as religiões da Antigüidade. Aquêle que participava
dessas cerimônias, notadamente comendo as carnes sacrificadas aos ídolos, dava, com
isso, de qualquer modo, uma prova de lealdade política. O caráter político dêsse ritual
acêntuou-se mais ainda na época em que um nôvo culto começou a se difundir: o dos
imperadores. Sendo os sacrifícios usuais entre os adeptos de quase tôdas as religiões da
Antigüidade, aquêles que se exigiam em honra do Imperador não suscitavam qualquer
oposição.

Contudo, no que concerne aos judeus, a situação se complicava. Ao evoluir para o


monoteísmo, sua religião impusera um ritual minucioso de sacrifícios a Jeová, e foi por
isso que aquelas cerimônias não levantaram qualquer objeção entre êles. Mas, era
necessário ainda reconhecer o caráter divino do Imperador, e aí se apresentava a
dificuldade para os fiéis do judaísmo. Recusando-se, por essa razão, a oferecer
sacrifícios aos soberanos romanos, representavam êles aos olhos da polícia de Roma um
elemento latente de perturbações. Mas, a reconhecida antigüidade do judaísmo obrigava
o Govêrno a tolerar êsse comportamento da parte dos judeus.

O cristianismo, porém, era uma religião nova. Vinda do judaísmo, recusava-se, como
êle, a reconhecer a natureza divina dos imperadores romanos, e, por conseguinte, a lhes
oferecer sacrifícios, o que apontou imediatamente os cristãos à desconfiança das
autoridades romanas. Os ideólogos do cristianismo compreenderam, por outro lado, e
bem depressa, que para o difundir entre os pagãos era necessário primeiramente rejeitar
o ritual judaico tradicional e, com êle, os sacrifícios em geral. Ora, como o sublinhou
Engeis, «desembaraçar-se dos sacrifícios era a condição primeira de urna religião
universal.»5

5 K. MARX e F. ENGELS: Sur la Religio7i, fld. Sociales, Paris,

1960, pág. 322.

116
A ORIGEM DO CRISTIANISMO

Mas, a ruptura do cristianismo, com o judaísmo, não foi súbita, naturalmente. Os


escritos canônicos conservam vestígios da luta prolongada e penosa da nova religião
visando a ultrapassar as sobrevivências judaicas que impediam suá propagação. O
primeiro passo, o passo decisivo nesse sentido, foi a renúncia aos sacrifícios, e êsse
passo foi dado desde o comêço, já no Apocalipse, como o leitor acaba de ver.

Nas religiões anteriores, o ritual servia, sobretudo, para unir estreitament os fiéis,
separando-os dos incrédulos. Essas religiões não se propunham a objetivo de conquistar
todos os homens, acima das barreiras étnicas, sociais e outras; seus ritos
desempenhavam sua função, que consistia em manter a união dos fiéis, e apenas dos
fiéis. Mas, êles, dêsse modo, impediam a conquista de novos prosélitos. O cristianismo,
ao contrário, ao abolir os sacrifícios e o ritual, facilitou consideràvelmente sua própria
tarefa de propaganda.

Nos primeiros escritos cristãos, o Apocalipse em primeiro lugar, a questão dos


sacrifícios está ligada à da «impudicícia», têrmo que tinha duas significações,
subentendendo, de um lado, a liberdade do amor fora do casamento, e, do outro, o
casamento entre adeptos de religiões diversas. O Apocalipse parece empregar o têrmo
no primeiro sentido. Seu autor levanta-se muitas vêzes contra o que êle qualifica de
impudicícia (II, 14, 20 etc.); vê o traço distintivo e a virtude dos 144 000 justos na sua
virgindade, e assim por diante. Diferentemente das outras religiões, o cristianismo não
cessou, mesmo subseqüentemente, de considerar o amor carnal, e até a vida familiar,
como qualquer coisa de inconveniente para um verdadeiro cristão. Foi a contragosto que
se resignaram à necessidade de dar continuidade ao gênero humano.. . O furor contra a
«impudicícia» foi particularmente acentuado durante a primeira fase da nova religião,
quando ela se encontrava inteiramente sob a influência das crenças ëscatológicas.6

O Apocalipse fala com insistência do Juízo Final e do triunfo total da verdadeira fé em


data muito próxima, e tem o cuidado de prevenir, desde as primeiras linhas, que «as
coisas que êle vai revelar devem acontecer logo.» (Apocalipse, 1, 1.) Diz, várias vêzes,
em nome de Jesus: «Eis que virei muito breve!», «o tempo está próximo!» etc. (XXII,
12 e noutros lugares.) Depois de cada uma dessas advertências, acrescenta que se dará a
cada um «segundo o que é sua obra.»

O Apocalipse de João, como os apocalipses devidos a outros autores, dedica-se a


descrever, e com o maior número possível de detalhes concretos, as punições que o céu
reserva aos incrédulos, a luta contra os demônios, as cenas do Juízo Final, e,

6 Escatologia, doutrina sôbre o fim do mundo.


O APARECIMENTO DO CRISTIANISMO 117

finalmente, a beatitude dos fiéis na nova Jerusalém, «descida do céu.»

Ësse era um meio extremamente atuante de propaganda religiosa, tanto para estimular a
fé dos cristãos, como para converter os pagãos. Quanto mais próximo parecia o dia do
Juízo Final, mais adeptos conquistava a predicação do cristianismo...

Os primeiros cristãos nutriam a esperança de ser reçompensados ainda durante sua vida,
por sua fidelidade aos ensinamentos do Cristo. Esta esperança da recompensa para os
justos, e de castigo para os pecadores, representados por Roma e suas classes
exploradoras, num futuro próximo, tornava o cristianismo primitivo radicalmente
diferente das religiões precedentes.

O primado dos temas escatológicos no Apocalipse de João e sua descrição


circunstanciada do fim do mundo distingüem-no de todos os outros escritos do Nôvo
Testamento, e lhe asse guraram uma voga extraordinária no seio das diversas correntes

sectárias surgidas no decorrer da história posterior do cristia nismo. Durante a Idade


Média, e até mesmo na moderna, as seitas que, por causa do seu radicalismo, eram
objeto de cruéis perseguições, não sómente da parte da Igreja, mas, também,

do poder temporal, compreendiam muito bem os sentimentos do autor do Apocalipse a


respeito da «grande prostituída, Babilônia», e transpunham para o seu tempo as visões
apocalípticas.

O quiliasma, crença no advento do reino milenar do Cristo antes do último combate


entre os exércitos do céu e os do inferno, constituía um aspecto particular da doutrina
escatológica do autor do Apocalipse. Segundo êle, a êsse reinado de mil anos seriam
associados aquêles que «tinham sido decapitados pela causa do testemunho de Jesus e
pela causa da palavra de Deus» e «aquêles que não tinham adorado a besta, nem sua
imagem, e que não tinham recebido a marca sôbre a fronte e sôbre a mão.» (Apocalipse,
XX, 4.)

O quiliasma foi muito popular durante a fase inicial do cristianismo. Os apologistas


Papis e Justino eram quiliastas. Esta doutrina era professada largamente pelas seitas
heréticas, notadamente pela dos montanhistas, o que constitui uma prova da sua
antigüidade. Esta doutrina traçava uma nítida linha demarcatória entre os cristãos ricos,
inclinados às acomodações com os detentores do poder, e os adversários intransigentes
dsse baixo mundo.» O quiliasma era um excelente meio de propaganda entre os cristãos
expostos à repressão e às perseguições, mas situava os mártires do cristianismo abaixo
do clero que tendia para um compromisso com o poder imperial. Foi por isso que a
Igreja o condenou.

118 A ORIGEM DO CRISTIANISMO

As crenças messiânicas e escatológicas não eram próprias apenas do cristianismo


primitivo: elas se encontram, sob um ou outro aspecto, no judaísmo e na literatura
latina, na quarta égloga das Bucólicas de Virgffio, por exemplo, em que o poeta anuncia
o nascimento de um menino de natureza divina, cuja vinda seria o sinal do retôrno à
idade do ouro. 7 Porém, se os versos virgilianos deviam glorificar o poder imperial, a
escatologia cristã agia no sentido inverso. O Apocalipse de João anuncia o advento do
Cristo em data muito próxima. E não é por acaso que o número mágico 666, o da besta,
dá, decifrado, o nome de Nero, e a alusão a êle é clara quando o autor se ocupa dos
cinco reis, no versículo 10 do capítulo XVII.

A doutrina escatológica assume no Apocalipse um caráter nitidamente anti-romano.


Nêle se prediz em várias passagens:

«Ai, ai daquela grande cidade, que estava vestida de linho fino, de púrpura escarlata; e
adornada com ouro, pedras preciosas e pérolas! Em uma hora apenas tantas riquezas
foram destruí- das!» (XVII, 16 e também os versículos 10 e 19.) O autor dêsse escrito se
rejubila com as lágrimas e as lamentações, não apenas dos romanos, mas, também, de
todos aquêles cuja sorte estava ligada à da Capital do Império: reis submetidos a Roma,
ricos mercadores, donos de naves. Foi preciso todo um século de adaptaçãà do
cristianismo aos interêsses dos altos meios para substituir o grito cheio de ódio contra os
opressores:

«Ela caiu, ela caiu, Babilônia, a grande prostituída! » (XVIII, 2), pela máxima
açucarada dos evangelhos: «Dai, pois; a César o que é de César, e a Deus o que é de
Deus.» (Mateus, XXII, 21.)

O autor do Apocalipse ergue-se àsperamente não só contra as autoridades, mas também


contra todos os representantes das classes superiores. Êle condena «os reis da Terra»,
que se dedicaram com Roma à impudicícia, e os negociantes, que «se enriqueceram
pelo poçier do seu luxo.» (Apocalipse, XVII, 3.) Sem condenar diretamente a riqueza,
dá a entender que ela é nociva para a salvação da alma. Nas mensagens à comunidade
cristã de Ismirna e, sobretudo, à de Laodicéia, o autor do Apocalipse estigmatiza, ainda
que indiretamente, a sêde de riquezas que era própria, é preciso admiti-lo, de muitos dos
cristãos também.

Não possuímos dados sôbre a composição social das comunidades cristãs da Ásia
Menor. Mas, a ardente espera do fim do mundo, o ódio às autoridades romanas e seus
cúmplices, o apêlo ao martírio em nome da fé, demonstram de modo

7 Estas questões são abordadas por N. MACFIQUINE em sua ‘Escatologia e


Messianismo Durante o Ultinio Período da República Romana’, in Anais da Academia
de Ciências da U R S. S., Moscou, 1946, no 5
O APARECIMENTO DO CRISTIANISMO 119

incontestável que os membros dêsses agrupamentos pertenciam às massas laboriosas.

O Apocalipse dá algumas informações, multo incompletas, é certo, a respeito das


formas de organização dos primeiros grupos de cristãos. Já assinalamos anteriormente
que não se encontra neste escrito o menor vestígio da existência de uma Igreja única,
nem mesmo de um organismo diretor das comunidades que tenha servido de ponto de
partida para a constituição da Igreja no sentido atual dessa palavra. O Apocalipse não
conhece bispos nem diáconos. Certas comunidades eram dirigidas, segundo parece, por
presbíteros, anciãos. O autor do Apocalipse fala várias vêzes de 24 velhos assentados
diante do trono de Deus, que lhe cantam louvores. Segundo as primeiras epístolas, as
comunidades têm anciãos por chefes, e muito

possível que tais fôssem as funções dos 24 velhos do Apocalipse. Sômente duas
categorias de fiéis se clistinguiam da massa

dos crentes: os apóstolos e os profetas. Quanto aos primeiros, já reproduzimos linhas


atrás a passagem em que êles são qualificados de mentirosos. Notemos que no
Apocalipse, como, aliás, em outros escritos cristãos, aplica-se o têrmo «apóstolos» não
aos doze discípulos legendários de Jesus, mas aos mensageiros, conforme a significação
dessa palavra grega, e êles o eram, de fato, pois iam de comunidade a comunidade
pregando a nova fé. Estigmatizando os falsos apóstolos, o Apocalipse fala ao mesmo
tempo, com grande respeito, dos «santos apóstolos» (XVIII, 20). Fazem-se nêle
freqüentes referências a profetas e profecias. Ëste escrito é uma verdadeira tecitura de
predicações, e o seu autor considera-se a si mesmo como profeta (X, 11). As primeiras
epístolas revelam que as profecias desempenharam efetivamente um papel muito
importante nas comunidade cristãs primitivas. «Eu fui arrebatado em espírito no dia do
Senhor», declara o autor do Apocalipse para apoiar suas profecias, e isso bastava,
segundo parece, ao seu crédulo auditório. As mulheres também podiam ser profe. tizas.
Havia uma na comunidade cristã de Tiatíra, e se o autor do Apocalipse a condena, o faz
imicamente porque considera que ela sedüz os crentes.

Não é inutil notar aqui que a linha nitidamente anti- romana do Apocalipse coincide
com a estrutura democrática das comunidades cristãs mais antigas que conhecemos. Isto
uão era efeito de mero acaso. Veremos, subseqüentemente, que a tendência cada vez
mais acentuada a compor-se com o poder imperial, os apelos de submissão às
autoridades romanas são paralelos e são determinados em grande parte pela aparição, e,
depois, pelo fortalecimento gradual do episcôpado monárquico, até o momento em que
os cristãos, «uma vez seu culto tornado religião do Estado», já se tinham «esquecido»
das «ingenui

120

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

dades» do cristianismo primitivo e do seu espírito democrático revolucionário.8 Vemos


no Apocalipse o ponto de partida dêsse processo, o aparelho clerical ainda não existe, e
todo o relato revela o ódio contra as classes dominantes do Império Romano.

Pode-se dizer que o autor do Apocalipse não chegou a se opor ao judaísmo e a êle
permaneceu fiel, de fato, sob muitos aspectos. Êle dirige-se aos judeus apenas, e
promete a felicidade na Jerusalém celeste, sômente aos eleitos entre êles. As imagens
apocalípticas dêste escrito são em grande parte empres- tadas da anterior literatura
judaica do mesmo gênero. Engeis acentua que o Apocalipse «nos traz em sua
integridade o que o. judaísmo, fortemente influenciado por Alexandria, legou ao
cristianismo. Tudo aquilo que lhe é posterior é acréscimo ocidental, greco-romano.»9
Portanto, o Apocalipse não é um escrito puramente judaico, más judaico-cristão: êle já
fala de um Jesus-Cordeiro, que foi imolado e resgatou com seu sangue os crentes (V, 9).
O Cordeiro aí aparece na qualidade de principal mèdiador entre Deus e os homens. A
descrição do advento de Jesus Cristo ocupa o lugar central. Tudo isso distingue êste
antigo monumento do cristianismo, da literatura judia de idêntica natureza. Precisemos,
contudo, que «o cristianismo de então, que ainda não tinha consciência de si, estava
ainda muito distante da religião universal, dogmàticamente fixada pelo Concílio de
Nicéia». 10 O Cordeiro do Apocalipse não se assemelha ao Homem- Deus dos
evangelhos. O Apocalipse ignora a Santíssima Trindade, o batismo e o pecado original.
A ideologia judaico- cristã era, assim, apenas o embrião de uma nova religião que ainda
não tinha rompido suas ligações com o judaísmo. Isto quer dizer que, se os argumentos
já apresentados não bastassem para estabelecer a data exata da composição do
Apocalipse, seu conteúdo nos levaria, pelo menos, à conclusão de que êle constitui o
documento mais antigo do cristianismo.

R. Viper em Nascimento da Literatura Cristã chama a atenção para a alternância, no


Apocalipse, do nome de Jesus e do Cordeiro. O nome de Jesus nêle figura nos três
primeiros capítulos e nos últimos; o Cordeiro só aparece no V e desempenha o principal
papel na parte central, não sendo identificado em nenhuma parte dêsse escrito a Jesus,
enquanto que nos outros textos cristãos êste último recebe continuamente a alcunha de
«Cordeiro de Deus». Isto parece indicar que

8 V. LENINE: L’Ëtai ei la Révolzaion, Ëd. em Línguas Estrangeiras, Moscou, 1958,


pág. 48.

9 MARX e ENGELS: Sur la Religion, d. Sociales, Paris, 1960, pág.

338.

10 MARX e ENGELS, ob. cit., pág. 322


O APARECIMENTO DO CRISTIANISMO

121

se tentou, no Apocalipse precisamente, pela primeira vez e muito desajeitadarnente,


atribuir os traços do Cordeiro ao Cristo pré-evangélico. Êsses dois personagens só são
apresentados simultêneamente no capítulo XII, versículos 10-11:

«Agora a salvação chegou, e o poderio, e o reinado do nosso Deus, e a autoridade do


seu Cristo. -. Eles venceram [o diabo], graças ao sangue do Cordeiro.» Vemos, por
conseguinte, que, na única passagem do Apocalipse em que essas duas figuras aparecem
juntas, suas funções são nitidamente distintas: um é declarado filho de Deus e o outro é
imolado, e não no comêço de nossa era, mas «desde a fundação do mundo.»
(Apocalipse, XII, 8.)

Uma só conclusão é possível depois disso: o Apocalipse comporta duas partes. A


principal, consagrada ao Cordeiro, ferve de ódio contra «a grande prostituída,
Babilônia»; ela remonta, com efeito, à época da Guerra dos Judeus, enquanto que o
comêço e o fim dêsse escrito foram compostos mais tarde. O texto inteiro cio
Apocalipse, tal como o conhecemos, data aparentemente do tempo de Domiciano, tal
como o indica Irineu. (Ver pág. 108.)

É útil comparar, para têrmos uma idéia mais exata do cristianismo nascente, a ideologia
e os costumes das comunidades cristãs primitivas segundo o Apocalipse, com os dados
dos documentos descobertos em Coumrã. As informações fornecidas por essas duas
fontes têm muito de comum. Mostram, ambas, que as primeiras comunidades eram
formadas de judeus, que se desligavam do judaísmo, que elas professavam crenças
messiânicas e o desprêzo pelas coisas terrenas, que seus adeptos pertenciam
visivelmente às camadas deserdadas da população. É de se crer, além disso, que tanto os
essênios, como os cristãos do tempo do Apocalipse, eram hostis à escravidão.

Apesar dessas semelhanças, os essênios distinguiam-se dos adeptos do cristianismo


primitivo em vários aspectos essenciais. Pondo de parte a prática dos sacrifícios, os
primeiros permaneciam inteiramente fiéis ao judaísmo ortodoxo, com suas múltiplas
prescrições religiosas; as sete comunidades da Ásia Menor, apesar de se consideraram
ligadas ao judaísmo, colocavam acima de tudo a fé no Messias Jesus. Entre os essênios,
o Mestre de Justiça era um homem santo que iria ressuscitar depois de sua execução; no
Apocalipse, Jesus e o Cordeiro são sêres cósmicos. Os essênios fugiram do mundo; o
autor do Apocalipse aspira a queda da Babilônia. A Regra da comunidade de Coumrã
ajuntava uma porção de prescrições ao ritual judaico; o Apocalipse de João, surgido
entre os judeus da diáspora, limita-se a condenar a «impudicícia e o sacrifício aos
ídolos.» Os essênios da seita das margens do Mar Morto observavam, finalmente, uma
estrita disciplina, obedecendo incondicional-
122 A ORIGEM DO CRISTIANISMO

mente aos seus sacerdotes, enquanto que, a julgar pelo que se lê no Apocalipse, as
comunidades cristãs primitivas da Ásia Menor não conheciam qualquer espécie de
clero, de tal modo que, nelas, o papel principal pertencia aos «inspirados tocados pela
graça», apóstolos e profetas.

Por todos êsses motivos, a comunidade de Coumrã permaneceu uma seita do judaísmo,
e foi condenada a desaparecer depois da queda de Jerusalém, enquanto que a ideologia
expressa no Apocalipse, renegando o caráter limitado do judaísmo, pôde transformar-se,
em seguida, numa religião mundial.
CAI4TULO V

AS COMUNIDADES CRISTÃS DURANTE A PRIMEIRA METADE DO SÉCULO


II

Segundo o Apocalipse, a evolução da nova religião reflete-se tanto nas fontes cristãs,
como nas não cristãs que datam dos primeiros decênios do século II. Ao primeiro grupo
pertencem as epístolas mais antigas, atribuídas a S. Paulo, algumas outras epístolas do
Nôvo Testamento e a Didaquê. No outro grupo, figuram diversas passagens dos escritos
de Plínio, o jovem, de Suetônio e, provàvelmente, de Tácito.

O leitor sabe que, por tôda uma série de razões, não se poderia considerar como
autênticas tôdas as informações sôbre o cristianismo que figuram nos manuscritos
dêsses historiadores romanos. A correspondência entre Plínio, o jovem, e o Imperador
Trajano revela notadamente os vestígios de uma «correção» da parte de um piedoso
copista cristão (X, 96 e 97). Segundo a passagem de uma carta de Plínio, em que êle
comunica que obriga as pessoas suspeitas de professar a religião cristã, a adotar a
imagem do Imperador e a renegar a Jesus Cristo, lê-se, por exemplo: «Impossível levar
os verdadeiros cristãos a fazer tanto uma, como a outra dessas coisas.» A interpolação é
manifesta. Outra intercalação posterior é, megàvelmente, aquela em que os cristãos são
caracterizados como pessoas «que se comprometiam por juramento ( . . . ) a não
cometer roubo, extorsão e adultério, a nunca faltar à sua promessa, a jamais negar um
depósito.» Uma opinião tão favorável aos adeptos do cristianisplo é bastante estranha
em uma mensagem oficial endereçada ao Imperador, pelo Governador de uma província
romana. É claro que Plínio não colocaria o problema do comportamento das autoridades
romanas em relação os cristãos, se tivesse sôbre êles tão boa opinião.

Isto não quer dizer que a correspondência entre Plínio e Trajano seja inteiramente
falsificada como o atesta, por exemplo, R. Viper em sua obra Roma e o Cristianismo
Primitivo. Êsse documento continha certamente passagens em que se fala dos cristãos,
uma vez que Tertuliano a êle se refere no limiar do século III, portanto, muito antes do
acesso da Igreja ao poder. Não se ‘poderia presumir, doutra parte, que, já no século II,
um escrito não cristão tenha podido ser objeto de interpolações tão consideráveis. Não
há dúvida, por conseguinte, de que algumas das informações sôbre os cristãos,
existentes na correspondência em questão, são autênticas. Isto

123

124 A ORIGEM DO CRISTIANISMO

se aplica, sobretudo, às passagens das quais se encontra a confirmação em Tertuliano.


Aliás, elas não são numerosas.

Partindo da análise da correspondência entre Plínio e Trajano, a crítica racionalista


admite habitualmente a existência de comunidades cristãs na Bitínia. Isso não é de
surpreender; geogràficamente, essa província está próxima das comunidades cristãs da
Ásia Menor, citadas no Apocalipse. Notemos, contudo, que as comunicações sôbre o
grau de propagação da nova religião na Bitínia, naquela época, são manifestações
exageradas. As informações sôbre a flutuação dos contingentes de fiéis, sôbre as formas
rituais, sôbre as assembléias noturnas dos cristãos, parecem corresponder à verdade. As
duas diaconisas submetidas à tortura por Plínio eram, certamente, escravas, pois,
segundo a lei, as pessoas livres não podiam ser torturadas. isto prova, doutra parte, que,
na aurora do cristianismo, as mulheres exerciam nas comunidades cristãs funções que se
lhes tornaram impossíveis depois da constituição da Igreja.

O aspecto mais importante da mensagem de Plínio, e da resposta de Trajano, encontrase


no fato de que elas caracterizam a atitude das autoridades romanas em relação aos
adeptos da nova religião. E significativo que Plínio já nada diga sôbre os laços entre o
cristianismo e o judaísmo. Diferentemente de Trajano, êle não vê no primeiro senão
uma superstição absurda.

O Imperador mostra a Plínio que não vale a pena andar atrás especialmente dos fiéis do
Cristo, que não se deve levar em conta as delações anônimas contra êles, que é preciso
punir iinicamente os crentes que, obstinadamente, se recusam a renegar sua fé. Tudo
prova que o cristianismo não era então considerado como perigoso pelos homens do
poder.

A atitude dé outros escritores contemporâneos de Plínio era aproximadamente a mesma.


Isto se aplica igualmente a Tácito, que fala dos cristãos num tom muito mais
desdenhoso do que o de Plínio. Como êste, êle vê no cristianismo uma simples
superstição, opinião corrente entre os romanos cultos da época, e da qual se encontra um
reflexo nas obras um pouco posteriores, de Celso.

Os escritos não cristãos dêste período não fornecem senão informações muito pobres
sôbre a nova religião. Porém, atestam o fato importante de certa difusão do cristianismo
sôbre o território da Ásia Menor, durante os primeiros decênios do século II, e relatam
como os funcionários romanos se portaram em relação aos cristãos. As fontes cristãs
oferecem muito mais dados para o estudo da ideologia do cristianismo primitivo, e, o
que é principal, para o conhecimento da composição e da estrutura das primeiras
comunidades cristãs.

Ao examinar êste grupo de documentos, é preciso levar em conta que, por essa época, e
mesmo um pouco mais tarde,
AS COMUNIDADES CRISTÃS... 125

o cristianismo não era ainda uma doutrina acabada com o seu credo, seu sistema de
dogmas, sua organização clerical tal como nos séculos seguintes. Tôdas as espécies de
seitas e grupelhos chamavam-se, então, cristãos, e mantinham entre si uma luta das mais
encarniçadas. As relações com o judaísmo, o problema de saber se se devia pregar a fé
entre os pagãos, se era preciso observar as prescrições do culto judaico, a data do
advento do reino de Deus, e a maneira pela qual os crentes, para êle, deveriam-se
preparar, problemas tais como o da comunidade dos bens entre os cristãos, a abolição da
escravatura, a admissão de um segundo casamento, a permissão ou não de comer carnes
sacrificadas aos ídolos etc., tudo isso era motivo para ásperas discussões. O único traço
de união entre os cristãos era, nesse tempo, a fé na divindade de Jesus, ou, para
empregar a terminologia antiga, a crença de que Jesus era o Cristo, isto é, o Messias.
Contudo, mesmo êste ponto essencial provocava graves divergências entre êles.
Enquanto alguns cristãos admitiam que Jesus era um ser celeste, outros insistiam na sua
origem terrestre, e grupos intermediários bastante numerosos, procurando conciliar os
extremos, falavam da dupla natureza, divina e humana, de Jesus. Havia mesmo seitas,
como os docetos (do grego doquein, aparecer), que, em geral, negavam a existência
terrestre de Jesus, afirmando que êle tinha sido apenas uma visão.

As epístolas paulinianas, que datam da primeira metade do século II, refletem a


evolução da ideologia de uma das numerosas correntes cristãs, aquela que,
posteriormente, triunfou sôbre as outras, e lançou os fundamentos da Igreja. Quanto às
opiniões religiosas, políticas e sociais das correntes cristãs, cujo papel foi nesta época
tão importante quanto o paulinísmo, são elas bastante menos conhecidas. Encontram-se
alguns dados sôbre elas na Dida quê e em várias epístolas não paulinianas do Nôvo
Testamento. Sôbre as múltiplas e muito interessantes tendências do cristianismo
primitivo não dispomos senão de raras informações colhidas particularmente nos
escritos de Irineu (ano 180, aproximadamente) e de Tertuliano (fim do século II e
comêço do III), e isso nos obriga a lhes dedicar muito menos espaço do que à análise do
paulinismo.

A crítica racionalista dos escritos do Nô-vo Testamento demonstrou, já no fim do século


XIX, que as 14 epístolas atribuídas ao apóstolo Paulo não são devidas a um só autor, e
não podem absolutamente remontar aos meados do século 1, época em que se situa,
segundo a tradição cristã, a atividade dêsse apóstolo. É significativo que, mesmo
durante a Antigüidade, hesitava-se em atribuir êsse grupo de epístolas a um só autor. A
comunidade cristã de Roma, por exemplo, recusava-se a reconhecer em Paulo o autor da
Epístola aos Hebreus.

126

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

E, aproximadamente no final da primeira metade do século II, o herético Márcio


afirmava que êsse apóstolo tinha composto apenas as dez primeiras epístolas que lhe são
atribuídas.

As longas e pacientes pesquisas realizadas sôbre êste assunto permitiram estabelecer


que as epístolas ditas de Paulo podem ser subdivididas em três grupos principais; o
primeiro dêles compreende as mais antigas, que são endereçadas aos romanos, aos
coríntios e aos gálatas, e que datam, visivelmente, do final do século 1, ou dos começos
do II; o segundo, as epístolas um pouco posteriores endereçadas aos efesianos, aos
fiipinos, aos colossianos, aos tessalônicos; o terceiro, as epístolas pastorais endereçadas
a Timóteu, a Tito e a Filemon, que datam dos meados do século II. Quanto à Epístola
aos Hebreus, difere ela radicalmente das outras, tanto no que concerne ao estilo, como
ao conteúdo, pois ela foi composta diretamente sob a influência das idéias filosóficas de
Fion, de Alexandria.
É inútil dizer que tôdas essas epístolas, notadamente as mais antigas, sofreram muitas
vêzes retoques que objetivam eliminar tudo o que era inaceitável segundo o ponto de
vista da teologia cristã ulterior. Em certos casos, essas correções são fàcilmente
discerníveis; em outros, são apenas perceptíveis. Porém, mesmo o texto canônico
conservado das epístolas nos permite acompanhar a evolução do cristianismo e, em
particular, apreender a gênese dos dogmas, bem como as mudanças, da composição
social e da estrutura internas das comunidades cristãs, no decorrer da primeira metade
do século II.

1. A SEPARAÇÃO DO JUDAÍSMO

O principal problema que se apresentava ao cristianismo nos fins do século 1 e começos


do II consistia em saber se êle era um ramo do judaísmo, ou uma nova religião
independente. A resposta a esta questão devia decidir se êle permaneceria como uma
das múltiplas seitas do judaísmo, ou se romperia com êste, recusando-se a ver nos
judeus o «povo eleito», para endereçar amplamente sua predicação aos pagãos. Sàmente
esta segunda solução abria o caminho para a transformação do cristianismo em religião
universal.

O problema de escolher o caminho a seguir apresentava-se ao cristianismo


objetivamente, histôricamente. A tendência que preconizava a ruptura com o judaísmo
só triunfou depois de um largo e áspero combate entre diversos agrupamentos no seio
da cristandade. Ëste divórcio liga-se, na literatura eclesiástica, ao nome de S. Paulo, que
o Nóvo Testamento chama freqüentemente de «apóstolo dos pagãos.» (Epístola aos
Romanos, XI, 13; XV, 16; Epístola aos Gálatas, II, 2 etc.) Contudo, mesmo nas
epístolas paulinianas, verificam-se muito
AS COMUNIDADES CRISTÀS...

127

fàcilmente mudanças de atitude, flutuações em relação ao judaísmo.

A ruptura definitiva entre as duas religiões teve lugar visivelmente em meados ou na


segunda metade do século II, período com o qual se relaciona a composição dos Atos
dos Apóstolos, que é o mais recente dos escritos do Nôvo Testamento. É de então que
data a legenda da metamorfose miraculosa de Saul, cruel perseguidor dos cristãos, em
Paulo, zeloso predicador da nova religião. Os relatos de seus conflitos com os
representantes da comunidade de Jerusalém e de sua atividade de missionário a leste do
Mediterrâneo não passam de mito, tal como a história do Jesus, mas isto de modo algum
impede que êsses relatos reflitam fielmente êste problema crucial para a nova religião: a
necessidade de se separar do judaísmo.

Consumar-se-ia a separação, de um lado, pela crítica da religião judaica e, do outro, pela


criação de uma nova dogmática, a cristã. As fontes diversas e bastante numerosas de
que se dispõe sôbre êste período permitem discernir não apenas a tendência geral do
desenvolvimento do cristianismo original, mas, também, a evolução das idéias, as
flutuações e as caracrísticas da polêmica, nas diferentes categorias dos seus fiéis.

Neste plano, o mais importante aspecto das primeiras epístolas se relaciona com a
evolução da imagem do Jesus. No Apocalipse, Jesus, ou o Cordeiro, é apenas o Fiho de
Deus, um chefe do «exército celeste», isento de traços humanos. As epístolas mais
antigas já o apresentam na qualidade de Homem- Deus, sublinhando fortemente,
todavia, o lado divino de sua natureza. Já adquire nelas traços humanos, mas ainda
estamos longe do relato evangélico sôbre o fundador do cristianismo. Não se encontra,
nas primeiras epístolas, a menor alusão ao nascimento de Jesus na Palestina, ao
conteúdo de sua pregação, às suas parábolas. Apesar de repetirem com freqüência o
nome de Jesus, as quatro primeiras epístolas não fornecem senão as seguintes
informações, de extrema pobreza, sôbre sua existência terrestre: «nasceu de uma
mulher, nasceu sob a lei» (Epístola aos Gálatas, IV, 4), «morreu por nossos pecados»
(...), «ressuscitou no terceiro dia» e apareceu aos apóstolos e a muitos crentes (1,
Coríntios XV, 3-7). Não se encontra nessas epístolas nenhuma das numerosas sentenças
atribuídas a Jesus nos evangelhos.1

Êste silêncio sôbre a vida terrestre de Jesus não pode ser fortuito, pois tôdas as epístolas
começam e acabam dese-

1 Só a Epstola aos Coríntios é que reproduz palavras de Jesus que


coincidem inteiramente com o texto correspondente dos sinóticos, quando diz que o
vinho e o pão que se come são seu sangue e seu cõrpo. (Co. ríntios, XI, 24, 25.)
provável que tenha havido aqui uma interpolação.

128 A ORIGEM DO CRISTIANISMO

jando a graça e a paz em seu nome, e são consagradas aos seus ensinamentos. Tudo leva
a crer, portanto, que elas foram compostas antes da biografia evangélica do Cristo.

Jesus, Deus feito homem, apesar de ser considerado como o Messias, o Salvador
anunciado pelos profetas hebreus, aparece nas epístolas sob uma forma nitidamente
distinta da do Messias dos dogmas judaicos. No Antigo Testamento, êle é habitualmente
apresentado como o enviado de Deus encarregado de estabelecer seu reino sôbre a
Terra. A nova doutrina cristã contradizia esta versão, ao afirmar que o advento do
Messias já tinha ocorrido sem ter sido notado. Por outro lado, a situação do povo hebreu
cuja sorte, segundo os profetas, deveria melhorar depois da vinda do Messias, ia de mal
a pior, durante e após a Guerra dos Judeus.

Nascido no seio da nação judia, o cristianismo se chocou desde o comêço com a


resistência obstinada do judaísmo. E esta oposição devia inevitàvelmente aumentar, à
medida que o cristianismo assimilava certos elementos de outras religiões.

Uma forte tendência para a separação aparecia simultâneamente nas comunidades


cristãs, e isso por uma série de outras razões, dentre as quais a onda de repressões dos
romanos contra os judeus depois do fracasso da segunda e última revolta judaica sob a
direção de Bar-Cocheba, entre os anos 132 e 136.

No lugar do santuário de Jeová, os romanos elevaram em Jerusalém um templo a Júpiter


Capitolino, impondo aos judeus impostos especiais em proveito dêsse templo. E as
comunidades cristãs procuraram naturalmente separar-se dos perseguidos. O judaísmo,
por outro lado, traçava uma nítida linha de demarcação entre os judeus de origem, e os
recenconversos, relegados a categoria inferior, o que tornava muito improvável o êxito
da predicação da lei judaica entre os pagãos.

Para vencer, o cristianismo devia primeiramente rejeitar os traços do judaísmo que eram
objeto das caçoadaá dos pagãos e que provocavam, mesmo entre êles, um sentimento de
repugnância. Tratava-se, no caso, de um conjunto de prescrições meticulosamente
elaboradas, designadas no Nôvo Testamento pela palavra «lei», e, em primeiro lugar, do
rito da circuncisão. Segundo o dogma judaico, a observação da «lei» era a condição
essencial da salvação. Os pregadores da nova religião achavam, ao contrário, que era
preciso renegar a «lei» para se salvar a alma.

As reticências e as contradições sôbre êste assunto são perceptíveis já nas quatro


primeiras epístolas mais antigas. O autor da Epístola aos Romanos declara no comêço:
«Não são os que ouvem a lei que são justos diante de Deus, mas são os que a põem em
prática que serão justificados.» (Epístola aos Romanos, II, 13.) E um pouco mais
adiante é dito que

AS COMUNWADES CRISTÃS.. 129

a circunsição só se aplica aos judeus de origem: « Se, portanto, o incircunciso observa


os mandamentos da lei, não será sua incircuncisão reconhecida como circuncisão?»
(Idem, II, 26.) É claro que o autor dessas palavras não pede ainda aos judeus que
renunciem à lei e à circuncisão, Mas, a epístola seguinte já declara: «A circuncisão nada
é, e a incircuncjsão nada é, mas a observância dos mandamentos de Deus é tudo.» (1
Coríntios, VII, 19.) A «lei», têrmo preciso, é substituída aqui pela noção mais vaga de
«mandamento». A Epístola aos Gálatas usa finalmente uma linguagem muito diferente,
qualificando a «lei» de «jugo da servidão» (V, 1), e renegando categôricamente o rito da
circuncisão: «Eis que, eu Paulo, vos digo que, se vos fazeis circuncisar, Cristo não vos
servirá para nada. » (Epístola aos Gálatas, V, 2.)

Esta epístola anuncia uma tese nova em relação ao pen

samento religioso da época: «... não é pelas obras da lei que

o homem é justificado, mas pela fé em Jesus Cristo. » (Idem,

lI, 16.) As exigências de tôdas as religiões anteriores ao

cristianismo concentravamse principalmente na prática de nu

merosos ritos, cuja estrita observação era órdenada aos

crentes. O ritual constituía o principal meio de unir os fiéis,

separando-os dos adeptos de outros cultos. Mas, êie tornava

ao mesmo tempo extremamente difícil a pregação entre os

adoradores de deuses diferentes. A renúncia a todo ritual,

notadamente às mil prescrições da «lei». única condição proposta

aos adeptos do nôvo culto, e a fé em que Jesus era o Cristo,

o Messias, iriam facilitar grandemente a transformação do

cristianismo em religião universal.

A refutação da «lei» nas primeiras epístolas revestia-se

ainda de um outro aspecto. O autor do Apocalipse anunciava

que a «Jerusalém celeste» aguardava apenas cento e quarenta

e quatro mil filhos das tribos de Israel; contràriamente, porém,

a Epístola aos Romanos já declarava: «... todos aquêles que

descendem de Israel, não são Israel» (IX, 6), e acrescentava

mais adiante: «Não há qualquer diferença, com efeito, entre


o judeu e o grego, porquanto todos êles têm um mesmo

Senhor.» (Epístola aos Romanos, X, 12.) Tal idéia era abso

lutamente nova, e, em seguida, a propaganda cristã não cessou

de a acentuar, coisa particularmente importante, não só no

plano étnico, como também no social: «Fomos todos, com

efeito, batizados num único Espírito, por um só corpo, quer

judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres.» (1 Coríntios,

XII, 13.) «Não há mais escravo nem livre.» (Gálatas III, 28.)

São precisamente aquelas duas particularidades do cristiaismo

primitivo — o abandono do ritual e o apêlo a todos os homens

sem distinção e, sobretudo, às camadas inferiores da sociedade

130

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

— que permitem caracterizá-lo como «uma fase absolutamente nova da evolução


religiosa, destinada a tornar-se um dos elementos mais revolucionários na história do
espírito humano».2

Lembremos uma vez mais, contudo, que o cristianismo, mesmo em sua fase inicial,
nunca reivindicou a libertação dos escravos: as declarações sôbre a igualdade de todos
os homens, livres ou não, assumiam um caráter abstrato, não tinham em vista senão a
igualdade em relação a fé e diante de Deus. A religião cristã não exigia mesmo dos
senhores que libertassem seus escravos, cristãos como êles. As palavras mais radicais
do cristianismo sôbre a escravidão foram as seguintes: «Fôste chamado? Não te
inquietes; mas se podes tornar-te livre, aproveita-te disso antes: Porque o escravo que
foi chamado pelo Senhor é um liberto do Senhor; e, da mesma maneira, o homem livre
que foi chamado é um escravo de Cristo. Fôstes comprados por um grande preço; não
vos tomeis escravos dos homens. » (1 Corz’ntios, VII, 21, 23.)

Em vez de redamar categôricamente a libertação dos escravos, o autor desta epístola se


limita, portanto, a aconselhar vagamente a êstes últimos que escolham de preferência a
liberdade, quando tal escolha é possível... Era isso, no fundo, resignar-se com a
escravidão. A proclamação da igualdade dos escravos e dos homens livres não passava
do plano religioso, mas, apesar disso, não deixou de favorecer a difusão da nova religiãõ
entre as camadas laboriosas, entre os deserdados, cuja grande massa se compunha de
escravos.

A evolução da atitude do cristianismo primitivo em relação ao poder imperial é, do


mesmo modo, muito significativa. A literatura da Igreja apresenta habitualmente o
cristianismo como

o defensor da liberdade dos escravos, e também como o inimigo implacável dos


imperadores romanos, mergulhados nos vícios, e rubros do sangue dos mártires cristãos.
Os escritores eclesiásticos se esforçam até mesmo para apresentar o famoso «Dai a
César o que é de César, e a Deus, o que é de Deus» (Mateus XXII, 21), não como uma
forma de compromisso com o poder temporal, mas, ao contrário, como uma negação de
tal poder. Dão a impressão de ignorar que já a primeira epístola proclama sem o menor
equívoco: «... não há autoridade que não venha de Deus, e as autoridades que existem
foram instituídas por Deus. E por isso que aquêle que se opõe à autoridade resiste à
ordem que Deus estabeleceu. Não é por uma boa ação, mas por uma má, que devemos
temer os magistrados (. .. ). O magistrado é servidor de Deus ( . . ). É, pois, necessário
sujeitar-se não sômente por temor da punição, mas,

2 MAIuc e ENGBLS: Sur la Religian, d. Sociales, Paris, 1960, pág. 322.


AS COMUNIDADES CRISTÂS...

131

também, por motivo de consciência,» (Epístola aos Romanos,

XII, 1-5.)

Não se nota aqui como certos meios religiosos se mostravam conciliantes em relação ao
poder imperial nos começos do século II? Com que espantosa rapidez o cristianismo
renunciou à santa cólera do Apocalipse contra Roma, «a grande prostituída», e se pôs a
afirmar que ela servia a Deus, e que os crentes deviam prestar-lhe obediência não por
temor, mas em sã consciência,

A ordem dada por Traj ano de não se perseguir em vão aos cristãos, e a atitude
benevolente de Plínio a respeito dêles,

em data que coincide muito aproximadamente com aquela em que as primeiras epístolas
foram compostas, mostram claramente que o conflito entre o Império e o cristianismo
foi extremamente exagerado nos escritos dos apologistas posteriores. A passagem acima
citada atesta, além disso, como a tradição clerical se distancia da verdade no que
concerne às perseguições de que teriam sido vítimas os primeiros cristãos. O convite à
obediência aos podêres constituídos não poderia ter sido formulado senão no clima de
tolerância religiosa que caracterizou o período dos Antoninos (século II).

Observa-se igualmente nas principais epístolas, atribuidas ao apóstolo Paulo, uma


mudança muito acentuada nas tendências escatológicas. No Apocalipse, essas
tendências se fazem notar por seu espírito rebelde; o advento do reino de Deus estava
nêle ligado estreítamente à queda de Roma, que se considerava iminente. As primeiras
epístolas paulinianas já oferecem outros matizes. Elas ainda não renunciam, é certo, às
visões escatológicas, proclamam que a vida sôbre a Terra não é senão sofrimento
passageiro (Romanos, VIII, 18), anunciam que o fim está próximo, que «o tempo é
curto» (1 Coríntios, VII, 29), assinahim: «O Deus da paz esmagará logo Satanás sob
vossos pés» (Epístola aos Romanos, XVI, 20). Mas, agora, elas prometem o reino de
Deus, não na Terra, mas nos céus. A pregação cristã será marcada nos séculos seguintes
pela seguinte declaração: «... se esta tenda em que moramos na Terra fôr destruída,
teremos no céu um edifício que é obra de Deus.» (II Coríntios, V, 1.)

Diferentemente do Apocalipse de João, que não apresenta quase nenhuma informação


sôbre a composição e a estrutura interna das comunidades cristãs, as primeiras epístolas
constituem a melhor fonte de que se dispõe sôbre êsse assunto, O traço principal de sua
vida continua sendo sempre as incessantes disputas entre diferentes grupos descritos no
Apocalipse. (1 Coríntios, 1, 12, cf. III, 5.) O autor da segunda Epístola aos Cormn tios
considera-se no dever de acentuar: «. . nós não falsificamos a palavra de Deus, como o
fazem muitos.» (II

132

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

Cormntios, II, 17.) No cap. XI, versículo 4, censura certos crentes por sua
complascência para com aquêles que pregam «outro Jesus», «outro Espírito», «outro
Evangelho». A Epístola aos Gálatas mantém o mesmo tom: «Espanta-me que vos
afasteis tão prontamente daquele que vos chamou pela graça do Cristo, para passar a
outro evangelho.» (Epístola aos Gálatas, 1, 6.) As epístolas falam freqüentemente de
falsos apóstolos (II Corz’ntios, XI, 13) e falsos irmãos (Gálatas, II, 4), acusando-os de
deformar a verdade dos evangelhos. Trata-se aí, em todos êsses casos, não de uma luta
entre cristãos, e adeptos de outras religiões, mas de querelas e de desacordos no seio das
comunidades cristãs. A existência de um grande número de seitas, as modificações
constantes dos escritos evangélicos, as divergências quanto ao credo atestam que os
cristãos não dispunham -nessa época de evangelhos canônicos reconhecidos por todos.

A virulência dos conflitos entre os cristãos aparece nesta advertência enérgica (1


Corz’ntios, VI, 1): «Ousa qualquer de vós, quando há alguma diferença com outro, ir a
juízo perante os injustos? » Isto leva a presumir que as querelas entre crentes diziam
respeito não sàmente aos bens materiais, mas também aos problemas religiosos, sem o
que não se poderia compreender esta interdição categórica aos cristãos de se dirigirem
aos tribunais.

A passagem seguinte da primeira Epístola aos Corz’ntios (VIII, 5), sôbre a qual os
teólogos silenciam, mostra de um modo eloqüente a confusão ideológica que reinava
nas comunidades cristãs primitivas: «. . . existem realmente vários deuses e vários
senhores, contudo para nós não há senão um Deus ( ..

e um só Senhor, Jesus Cristo.» Aqui, reconhece-se sem equívoco o politeísmo em


oposição ao credo canônico, e não apenas na Terra, mas também nos céus. A expressão
«Há sêres chamados deuses», empregada um pouco antes no mesmo texto, não passa,
com tôda a evidência, de uma interpolação posterior, e não faz mais do que acentuar
quanto essa passagem sob a sua forma inicial é contrária ao dogma ortodoxo.

Estas citações das primeiras epístolas paulinianas provam que as comunidades cristãs
dos começos do século II, bem como as que existiam meio século antes, encontravam-se
longe da concórdia e da unidade descritas na história eclesiástica. Unânimes em sua fé
no advento de Jesus, as diversas seitas cristãs interpretavam, cada uma a seu modo, os
dogmas da nova religião, pregavam evangelhos diferentes, e, o que é ainda mais
característico, passavam fàcilmente de uma doutrina a outra. No decorrer da luta, duas
tendências se constituíram entre as seitas que se consideram cristãs; uma delas, ligada
ao nome do apóstolo Paulo, assumiu a chefia de numerosos grupos cristãos, e lançou as
bases da fundação da Igreja episcopal; a outra per
133

AS COMUNSOADES CRISTÃS..

maneceu, -quanto ao essencial, nas posições do Apocalise, dando nascimento


subseqüente a numerosas heresias judaico-cristãs.

A composição social das comunidades cristãs primitivas, a julgar-se pelas primeiras


epístolas paulinianas, era ainda bastante homogênea nos começos do século II. Os
adeptos da nova religião se recrutavam então quase que inteiramente nas camadas
inferiores da sociedade. Constatando que não havia entre os «chamados» muitos «sábios
segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos nobres», o autor da primeira
Epístola aos Corz’ntios (1, 26-28) declara que Deus escolheu «as coisas vis do mundo e
as desprezíveis para reduzir a nada êsses poderosos e êsses nobres. Semelhante reflexão
teria sido impossível, naturalmente, se os ricos fôssem numerosos entre os fiéis de
Cristo.

Eis ainda outro traço a êsse respeito. A primeira Epístola aos Corín tios dedica longo
trecho à maneira de se celebrar a ceia ao Senhor, que encerrava as assembléias dos
cristãos, e, em seguida, nota com indignação (cap. XI, versículos 21 e 22):

«Quando estão à mesa, cada um começa por tomar sua própria ceia, de -sorte que um
tem fome, e outro se embriaga.» Acentua que aquêles que assim procedem
«envergonham os que nada têm». Os cristãos que não matavam sua fome eram
numerosos nessa época, segundo parece. -

A profecia era também um traço distintivo da vida das comunidades cristãs primitivas.
A Igreja e o clero não existiam ainda, de modo que os profetas desempenhavam um
papel importante na época. Caíam em êxtase nas assembléias de fiéis, e quanto mais
caóticos e ininteligíveis eram seus discursos, mais se acreditava estarem êles inspirados
pela «graça de Deus». A Igreja iria ensinar mais tarde que a «graça» era privilégio do
clero. Nas primeiras epístolas, os profetas ainda são bastante considerados, e a única
coisa que se exige é que tudo «se faça decentemente, e com ordem.» (1 Cormntios,
XIV, 40.)

No decorrer do meio século que separa as primeiras epístolas paulinianas, do


Apocalipse, a composição étnica das comunidades cristãs, diferentemente de sua
composição social, modificou-se muito. Isto é confirmado pela polêmica com o
judaísmo oficial, já assinalada anteriormente, assim como pelas reiteradas afirmações
das apístolas sôbre a igualdade entre crentes de origem, tanto judia, como pagã. Mesmo
na passagem citada sôbre os profetas, o autor da primeira Epístola aos Cori’ntios sente-
se no dever de defender aquêles que «falam em línguas» (XIV, 39), apesar de muitos
auditores não os compreenderem.

Convém ter em conta, para dar a essa passagem seu justo valor, que a população urbana,
notadamente a leste do Império, não era homogênea. Além dos gregos e dos romanos,
existia nas cidades um considerável número de grupos étnicos e lin
134

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

güísticos: judeus, egípcios, sírios, germanos etc. A massa cristã, composta sobretudo de
escravos e de pobres, era particular- mente heterogênea do ponto de vista étnico. Caindo
em êxtase, os fiéis exprimiam-se naturalmente em sua língua natal. Tudo isso revela
que, na época em que as primeiras epístolas atribuídas a Paulo foram escritas, as
comunidades cristãs primitivas se compunham já em grande escala não só de judeus,
mas também de pagãos.

Já assinalamos anteriormente que não se encontra no Apocalipse nenhuma alusão a uma


forma qualquer de união das diversas comunidades cristãs, ou a uma direção geral. Só
os profetas e os apóstolos é que se destacavam um pouco dos fiéis comuns. Na época
das primeiras epístolas, esta situação começa a mudar: elas falam muitas vêzes dos
pregadores errantes. (1 Coríntios, IV, 11, por exemplo.) Os autores dessas epístolas
consagram muita atenção às coletas, e previnem mesmo que cada cristão deve pôr de
parte o que possa «no primeiro dia da semana» para a manutenção dos «santos»
errantes. (1 Corz’ntios, XVI, 2; II Cormntios, VIII - XII. ) Alguns dêstes «santos»
andavam providos, segundo parece, de cartas de recomendação. (II Cort’ntios, IV, 1.)
As queixas de Paulo a respeito da fome, da sêde e da nudez (1 Corz’ntios, IV, 11) que
seriam o quinhão dos pregadores do cristianismo deviam despertar a piedade nos
corações dos crentes, e levá-los, assim, a desatar suas bôlsas.

Nas epístolas já se encontram índices de um clero nascente. A primeira Epístola aos


Cori’ntios apresenta êste esbôço de hierarquia clerical: «E Deus estabeleceu na Igreja
primeiramente os apóstolos, em segundo lugar, os profetas, em terceiro, os doutores, em
seguida, aquêles que têm o dom dos milagres, finalmente, os que têm os dons de curar,
de socorrer, de governar, de falar diversas línguas.» (1 Corz’ntios, XII, 28.) Reencontra-
se essa mesma escala hierárquica, um pouco modificada, na Epístola aos Romanos,
XIII, 5-11, passagem que certamente não foi corrigida posteriormente; do contrário não
se teria deixado de nela evocar o episcopado, que desempenhou um papel cada vez mais
importante no aparato da Igreja, a partir dos meados do século II. Notemos, contudo,
que a palavra «Igreja» no texto que acabamos de citar é ainda empregada no sentido de
«comunidade cristã».

O divórcio cada vez mais pronunciado entre os chefes das comunidades, e a massa dos
crentes, aparece numa declaração extremamente franca do autor da segunda Epístola aos
Coríntios (XI, 20): «Se alguém vos põe em servidão, se alguém vos devora, se alguém é
arrogante, se alguém vos bate no rosto, vós deveis suportar.» Trata-se aí, segundo o
contexto, das relações no seio das comunidades cristãs da época.

AS COMUNIDADES CRISTÃS..

135

O conteúdo das primeiras epístolas paulinianas nos permite, assim, compreeder certos
traços distintivos da evolução ideológica e das mudanças de estrutura das comunidades
cristãs, no decorrer do seu primeiro meio século de vida. A tendência geral é a ruptura
gradual com o judaísmo, a transformação de Jesus, divindade, em Homem-Deus, a
ardente espera do Juízo Final, e, finalmente, a inexistência de qualquer ritual.
A linha politica e social da pregação cristã não estava determinada ainda em grande
escala pela composição social dos adeptos da nova religião: a difusão desta, quase que
exclusivamente entre as massas laboriosas, obrigava os autores das epístolas a colocar,
êles próprios, de qualquer forma, o problema da atitude que era preciso adotar em
relação à riqueza, à escravidão, e, inicialmente, ao poder romano. Depois de um curto
período de negação do poder imperial, o cristianismo passou ao reconhecimento da
autoridade de Roma e, em seguida, à paz com o Império.

No comêço, a composição social das comunidades cristãs era ainda bastante


homogênea, uma vez que os seus adeptos eram recrutados quase que inteiramente entre
os escravos, os libertos, os artesãos e tôda espécie de elementos das camadas pobres das
cidades. É por isso que as primeiras epístolas atribuídas ao apóstolo Paulo exprimem
desprêzo pelos bens terrestres, condenam a cupidez e simpatizam com o escravo, A
espera do fim do mundo também fortalece esta tendência,

o que não levou contudo, sublinhemos, o cristianismo primitivo a reclamar de modo


categórico a abolição da propriedade privada e da escravidão.

2. FORMAÇÃO DA IDEOLOGIA CRISTA

A tendência que acabamos de definir se acentuou a partix do segundo quarto do século


II. O segundo grupo de epístolas paulinianas (aos efésios, aos filipenses, aos colossenses
e as duas epístolas aos tessalônicos) nos permite descobrir neste plano numerosos
pontos novos. A pregação cristã nelas se caracteriza, em primeiro lugar, pelo
chamamento a tôdas as camadas da população sem qualquer distinção étnica ou social.
Ela proclama: «Não há (.. .) nem grego, nem judeu, nem circunciso, nem incircunciso,
nem bárbaro, nem sita, nem escravo, nem livre; mas Cristo é tudo e em todos.»
(Colossenses, III, 11.) O capítulo precedente desta epístola (II, 16) rejeita as interdições
concernentes ao comer e ao beber e, também, as celebrações da Lua nova, do sábado
etc. Tendo rompido com o judaísmo, e não possuindo ainda seu próprio ritual, o
cristianismo original não exigia dos fiéis a renúncia às cerimônias religiosas às quais
estavam habituados há tanto tempo.
136

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

Neste ponto, precisamente, residia a diferença radical entre o cristianismo primitivo e os


cultos anteriores. Esta circunstância nos permite, por outro lado, concluir que o
cristianismo não tinha elaborado seu próprio ritual até os meados do sé

culo II. -

O fato de a pregação cristã endereçar-se a tôdas as tribos e a todos os povos provocou


uma exacerbação de sua polêmica com o judaísmo. Se as primeiras epístolas marcam, o
que não fazia o Apocalipse, o comêço da ruptura com o judaísmo, as que reunimos no
segundo grupo lhe são francamente hostis.

Sua atitude em relação ao rito da circuncisão é probante a êsse respeito. A Epístola aos
Romanos declarava a circuncisão necessária para os cristãos de origem judaica, e
obrigatória a observância da lei mosaica para todos. (Epístola aos Romanos, II, 13 e 25.)
Nas epístolas do segundo grupo, muda-se o tom sôbre êsse assunto. Expressões tais
como as seguintes:

«Cuidado com os cães, cuidado com os maus trabalhadores, cuidado com os falsos
circuncisos» (Filipenses, III, 2) não figuram em qualquer texto das primeiras mensagens
paulinianas. O tom da primeira Epístola aos Tessalônicos é mais violento ainda. Ela
formula contra os judeus, pela primeira vez, a acusação de terem causado a morte de
Jesus Cristo e dos profetas, e de serem «inimigos de todos os homens.» (1 Epístola aos
Tessalônicos, II, 15.) Foi apoiando-se nessas acusações que os representantes da Igreja
perseguiram os judeus durante tantos séculos. As palavras «inimigos de todos os
homens». nos autorizam, por outro lado, a situar, de modo bastante preciso, esta epístola
na época da insurreição de Bar-Cocheba (132-136), ou um pouco mais tarde. Daí se
pode ainda tirar a conclusão de que nessa época o cristianismo já se tinha destacado do
judaísmo, e que sua difusão era grande entre os pagãos.

No que concerne à evolução da imagem de Jesus, o segundo grupo de epístolas


paulinianas apenas nos permite acrescentar um ou dois traços importantes. As linhas
acima citadas mostram que, nessa época, já se formava um dos elementos maiores do
mito evangélico de Jesus: o relato do seu martírio e de sua morte em Jerusalém. A
referência às perseguições dos profetas atesta que o autor da primeira Epístola aos
Tessalônicos conhecia o conteúdo das mensagens paulinianas do primeiro grupo, a
Epístola aos Gálatas, por exemplo.

Algumas passagens do segundo grupo de epístolas apresentam também outros pontos de


grande importância: encontram-se nelas alguns elementos do mito de Jesus que não
foram incluídos nos evangelhos. Na Epístola aos Filipenses diz-se que Jesus «aniquilou-
se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens.»
(Filípenses, II, 7.) Trata-se, aqui, de um pormenor extremamente importante, que

AS COMUNIDADES CRISTÃS

137

revela uma das fases da formação do mito conhecido. Sabe-se que os evangelhos não
dizem em parte alguma que o Cristo apareceu sob o aspecto de um servo, de um
escravo. Conclui-se, pois, que a epístola em questão conserva os traços de uma das
variantes apócrifas da lenda sôbre o fundador do cristianismo. E é preciso dizer que
semelhante versão era muito útil à propaganda desta religião entre os escravos, para
conquistá-los para a nova fé. Esta versão não encontrou lugar nos evangelhos, porque, a
partir da segunda metade do século II, as camadas superiores da população começaram
a desempenhar um papel cada vez mais importante no cristianismo, e a imagem de um
Deus-Escravo não era de feitio agradável para elas.

Eis ainda outra passagem do segundo grupo de epístolas que traz as marcas dos escritos
cristãos dêste período e que não foram incluídos no cânone. Na Epístola aos E/e’sios lê-
se (V, 14): «Foi por isso que se disse: Desperta, tu que dormes, levanta-te de entre os
mortos, e Cristo te esclarecerá.» A fórmula: «É por isso que se disse» é aplicada no
Nôvo Testamento aos textos do Antigo Testamento e dos evangelhos. As palavras
«levanta-te, sê esclarecido» figuram no Livro do Projeta Isaías (LX, 1). Não há dúvida
de que a outra parte da frase foi tirada de um evangelho apócrifo. Tudo leva a crer que
alguns escritos que se consideravam como santos no momento em que a Epístola aos
E/ésios foi composta não foram incluídos por qualquer razão, nem no Antigo
Testamento, nem no Nôvo Testamento. Os casos dêsse gênero não são raros.

As epístolas do segundo grupo dedicam muita atenção às esperanças escatológicas. No


Apocalipse, elas estavam sobretudo marcadas por um ódio mortal contra Roma,
enquanto que nas primeiras epístolas paulinianas a predicação de que «o tempo é curto»
é simplesmente acompanhada da promessa da instauração do reino de Deus. Contudo,
as pregações sôbre a iminência do Juízo Final, a punição dos ímpios e a recompensa dos
justos continuou sendo durante muito tempo ainda um instrumento de propaganda
cristã.. Por outro lado, a protelação do fim do mundo, de geração em geração, minava a
fé na verdade das profecias anunciadas no Apocalipse de João e em outros escritos
cristãos dos primeiros tempos. O grupo de epístolas aqui examinado já procura achar
uma saída para esta contradição.

O autor da segunda Epístola aos Tessalônicos declara a êsse respeito: «Quanto à vinda
de nosso Senhor Jesus Cristo e nossa reunião com êle, nós vos rogamos, irmãos, . que
não vos deixeis fàcilmente afastar do vosso bom senso, e não vos perturbeis, seja por
qualquer inspiração, seja por qualquer palavra, seja por qualquer carta que digam escrita
por nós, como
138

A ORIGSM DO CRISTIANISMO

se o dia do Senhor estivesse já perto.» (II Tessalônicos, II, 1.) ËIe explica que o dia do
Senhor só chegará quando a iriiqüídade atingir seu apogeu. Em contrapartida, descreve
sem poupar detalhes os sinais do dia do Senhor: a voz de um arcanjo, o som da trombeta
de Deus, os crentes arrebatados sôbre nuvens e assim por diante. (1 Tessalônicos IV,
16.) O reino de Deus é definitivamente protelado, e passa-se a acentuar a beatitude que
aguarda os crentes no outro mundo.

Compreende-se que semelhante modificação não podia ser aceita de improvíso por
tôdas as comunidades cristãs. A êsse respeito, a súplica que Paulo endereça aos crentes,
exortando-os a não se deixarem perturbar por cartas que diriam vindas dêle, é bastante
interessante, assim como passagens tais como a da Epístola aos Filipenses, em que êle
se levanta contra os que «pregam o Cristo por inveja e por espírito de disputa.»
(Fuipenses, 1, 15.) O comêço desta epístola é também bastante característico. Seu autor
começa como de costume na primeira pessoa, mas passa, siibitamente, à terceira, no
texto que chegou até nós, a partir do sexto versículo do primeiro capítulo onde se diz: «.
. . aquêle que começou em vós esta boa obra a tornará perfeita até ao dia de Jesus
Cristo», o que não o impede de continuar, depois, falando em nome do apóstolo Paulo.
Pode-se crer que as palavras que acabamos de citar se referiam, no texto inicial, ao autor
da epístola, que estaria convencido de que sobreviveria até o «dia do Senhor», pelo
menos. Posteriormente esta passagem foi redigida de modo a salvar a autoridade do
apóstolo.

A esperança na vinda do Senhor se dissipava, e, inevitàvelmente, cedeu o lugar à


tendência para um acomodamento com os detentores do poder. Isso determinou, em
particular, a ulterior evolução da atitude do cristianismo em relação escravidão.

Os primeiros escritos cristãos proclamavam a igualdade de todos os sêres humanos,


abstratamente é certo, e diante de Deus apenas: «Fôstes resgatados por um alto prêço;
não vos tomeis escravos dos homens.» (1 Corz’ntios, VII, 23.) Agora, a pregação cristã
punha no primeiro plano a resignação como um dever dos escravos: «Servos, obedecei
aos vossos senhores com temor e tremor, na simplicidade do vosso coração, como a
Cristo.» (Efésios, VI, 5.) O autor desta epístola aconselha a servir os senhores não
apenas «sob os seus olhos», mas ainda de «bom coração», e identifica inteiramente a
obediência aos senhores, com a que se deve a Deus. A Epístola aos Colossenses (III, 22
etc.) prega a mesma coisa.

Dos senhores, o cristianismo não reclama, em contrapartida, senão isto: « . . concedei


aos vossos servos o que é justo e equitativo.» (Colossenses, IV, 1.) Verificamos,
portanto, que,
139 AS COMUNIDADES CRISTÃS...

antes mesmo da constituição da Igreja, o cristianismo já se tinha decidido pelo


reconhecimento da escravidão e que a sua pregação não visava a obter a libertação dos
escravos, ou, ao menos, uma sensível melhoria da sorte dêles, mas, sim, a convencê-los
da necessidade de obedecer cegamente aos seus senhores.

Contudo, seria errado crer que, já durante a primeira metade do século II, o cristianismo
era a religião das classes possuidoras de Roma. O reconhecimento da escravidão e o
apêlo

submissão endereçado aos escravos testemunham, de preferência, uma manifestação de


lealdade para com o Império, e não o aparecimento nas comunidades cristãs de um
influente contingente de senhores de escravos.

A composição social das comunidades era ainda bastante homogênea, e comportava,


além dos escravos, artesãos e trabalhadores urbanos. Não é por acaso que no segundo
grupo de epístolas paulínianas se encontram freqüentemente apelos a «trabalhar com
suas próprias mãos» (1 Tessalônicos, IV, 11)

respeitar os trabalhadores, a fazer «com suas próprias mãos

que é direito.» (E/e’sios, IV, 28.) O célebre preceito: «Se alguém não quiser trabalhar,
que não coma também» (II Tessalônicos, III, 10) só poderia ter surgido evidentemente
num meio laborioso. A maioria das exortações são dirigidas contra os «falsos profetas»,
que erravam de comunidade em comunidade, e que abusavam da boa fé dos crentes. A
freqüente repetição dêsses apélos prova suficientemente que a massa dos cristãos
pertencia à população laboriosa. O autor de uma dessas epístolas declara, em
conseqüência, a propósito da atitude que

pregadores devem observar: «Não temos comido gratuita- mente o pão de ninguém;
mas com trabalho e fadiga, trabalhando noite e dia, para não sermos pesados a nenhum
de vóz. » (II Tessalônicos, III, 8.

Neste grupo de epístolas encontra-se, pela primeira vez,

palavra grega eclesia, «assembléia», tomada no sentido de «Igreja»: Jesus é proclamado


«a cabeça da Igreja» (Colossenses,

18), que é «seu corpo». (Colossenses 1, 24 e Efésios, V, 23.) No caso de essas


passagens não serem interpolações posteriores, isto significa que, ja durante o segundo
quarto do seculo II, a idéia da unidade começava a se impor às comunidades cristãs, até
então isoladas. É preciso crer, contudo, que o aparato da Igreja só foi constituído muito
mais tarde. Notemos, ainda, que, na Epístola aos Ef e’sios, a palavra «evangelista»
aparece pela primeira vez, não no sentido ordinário de pregador da vinda do Cristo, mas
no de autor ou pregador dos evangelhos. (Efésios, IV, 11.) Lembremos a êsse respeito
que os papiros mais antigos que contêm fragmentos dos evangelhos remontam
predsamente ao segundo quarto do século II, isto e’, à época

140

A ORIGEM DO CRISTIANISMO
em que a Epístola aos Efésios foi composta. É claro que a palavra «evangelistas» aqui
não designa os autores dos evangelhos incluídos no Nôvo Testamento. A Epístola aos
Fuipenses (1, 1) fala, é certo, de «bispos e diáconos», uma única vez, aliás, mas,
segundo a opinião geral, trata-se, aqui, de uma interpolação posterior, pois, tanto as
primeiras epístolas paulinianas como as do segundo grupo, ignoram completamente o
episcopado.

Assim, o segundo grupo de epístolas atribuídas ao apóstolo Paulo nos permite constatar
vários aspectos novos no cristianismo. Durante o segundo quarto do século II, a religião
cristã derruba tôdas as barreiras étnicas e sociais, e rompe definitivamente com o
judaísmo. Ela evita a anunciação do fim iminente do mundo; procura um meio de
entendimento com o poder. Tendo proclamado a igualdade de todos os sêres humanos
diante de Deus, trata de pregar aos escravos a submissão aos seus senhores. Quanto à
composição social, as comunidades cristãs permanecem mais ou menos homogêneas;
suas fileiras continuam sendo constituídas por elementos pertencentes às camadas
pobres e laboriosas da população. A idéia da Igreja convocada para unir sob o seu signo
as comunidades cristãs parece surgir igualmente durante êste período.

3. O PAPEL DO CLERO SEGUNDO AS EPISTOLAS PASTORAIS

Classificam-se no último grupo de mensagens paulinianas as duas epístolas a Timóteo e


a epístola a Tito, bastante dif e- rentes de tôdas as precedentes. Estas epístolas são
endereçadas aos chefes de comunidades, enquanto que as mensagens dos dois primeiros
grupos o eram às comunidades em seu conjunto. Elas têm por tema, sobretudo, definir
as regras de conduta dos bispos; só esta circunstância já nos permite situá-la depois das
outras: no comêço da segunda metade do século II, data que coincide mais ou menos
com a dos evangelhos canônicos. Ainda que êste grupo de epístolas seja posterior ao
período tratado no presente capítulo, é útil assinalar aqui os traços mais característicos,
pois êles refletem nitidamente o ponto atingido pelo cristianism? ao cabo de um século
de evolução.

O aparecimento, nas epístolas pastorais, do clero separado da massa dos fiéis é o seu
traço mais característico. Encontramos nelas, pela primeira vez, êste personagem: o
bispo, considerado não sômente como chefe de tal ou qual comunidade cristã, mas,
ainda, de uniões de comunidades. Assim, Tito, Bispo de Creta, é encarregado de
«estabelecer anciões em tôdas as cidades.» (Tito, 1, 5.)

A primeira Epístola a Timóteo enumera de modo detalhado as funções dos bispos, dos
diáconos, dos anciãos e de
AS COMUNIDADES CRISTÃS...

141

outros membros do clero. Em particular, nela se informa que não se deve «receber
acusação contra um ancião, se ela não se firmar no depoimento de duas ou de três
testemunhas.» (1 Timóteo, V, 19.) Segundo o contexto, compreende-se que essas
acusações emanavam dos cristãos, e pode-se delas concluir que os conflitos entre os
fiéis agrupados, e o clero, eram então bastante freqüentes. As constantes exortações do
autor das epístolas aos bispos e aos diáconos a serem desinteressados, a não buscarem
proveitos sórdidos (1 Timóteo, III, 3 e 8, Tito, 1, 7) levam também a crer que êsses
conflitos eram devidos, muitas vêzes, à apropriação, pelo clero, dos bens das
comunidades.

A se julgar pelas epístolas pastorais, o aparato clerical estava destinado, em primeiro


lugar, a lutar contra as falsas doutrinas. Encontram-se nelas, a cada passo, advertências
até mesmo contra a tentação de discutir com os cristãos não ortodoxos. O autor da
segunda Epístola a Timóteo suplica-lhe em nome de Jesus «a evitar as disputas de
palavras» que apenas servem para prejudicar aquêles que as escutam. (II Timóteo, II,
14.)

As epístolas pastorais dão mais um passo no caminho da evolução ulterior do


cristianismo em relação ao poder temporal, proclamando que os cristãos não são
inimigos dêsse poder, e ordenando, mesmo, aos crentes rezar «. .. pelos reis, e por todos
aquêles que são elevados em dignidade. » (1 Timóteo, II, 2.) A submissão às
autoridades, aos grandes dêste mundo, torna-se assim um dos principais deveres dos,
fiéis. Um único século bastou para fazer com que o cristianismo passasse, do

• ódio contra a «grande prostituída de Babilônia», à santificação do mesmo poder


imperial.
No que concerne à escravidão, essas epístolas continuam, no essencial, nas posições das
do segundo grupo: os escravos devem obedecer aos seus senhores, não por temor, mas
«de bom coração». E acrescentam isto, ponto importante: os escravos cujos senhores
são cristãos, em vez de os desprezarem, são obrigados, ao contrário, a servi-los «melhor,
porquanto são fiéis e bem-amados que se dedicam a fazer-lhes o bem. » (1 Timóteo, IV,
2.) Nas epístolas anteriores enumeravam-se os deveres recíprocos dos escravos e dos
senhores. Aqui, não se limita o autor a silenciar sôbre as obrigações dos senhores para
com seus escravos, mas condena, além disso, os que «ensinam falsas doutrinas», os que
pensam diferentemente, como pessoas infladas de orgulho, que nada sabem, e são tolas
etc. Vê-se, aqui, como se passou, do convite «não vos tomeis escravos dos homens», à
consagração da escravidão, que é acrescida ainda mais pelo dever que se impõe aos
escravos cristãos de amar seus senhores cristãos, proclamados «seus benfeitores». É vi-

142

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

sível que, a partir da segunda metade do século II, as camadas possuidoras da população
começam a desempenhar um papel decisivo no seio das comunidades cristãs, e,
primeiro que tudo, na Igreja.

A curta Epístola a Filemon permite, igualmente, caracterizar a atitude do cristianismo


primitivo em relação à escravidão. Trata-se, nela, de certo Onésimo, escravo de
Filemon, que viveu durante muito tempo na casa do autor da epístola, e que retorna ao
seu senhor depois de se ter convertido ao cristianismo como êle. Paulo não propõe
diretamente a Filemon que liberte êsse escravo. Pede-lhe, apenas, que o receba como se
êle fôsse o próprio Paulo. O problema das relações entre senhores e escravos cristãos
coloca-se, nesta epístola, apenas no plano da fraternidade religiosa. A simpatia pelos
oprimidos não impedia ao cristianismo primitivo de tolerar a escravidão, até mesmo nas
fileiras dos seus adeptos. Esta posição continuou a ser a da Igreja, posteriormente.

Não há a menor dúvida de que as epístolas atribuídas ao apóstolo Paulo não são tôdas
devidas a um só homem. Elas se contradizem continuamente, e podemos observar,
nelas, diferenças muito sensíveis de estilo e de linguagem. A melhor maneira de se
explicar tudo isso consiste em atribuir as epístolas a diferentes autores, classificando-os
em grupos que representam, cada qual, uma fase determinada na evolução da ideologia
cristã. Semelhante método permite elaborar um quadro bastante completo das
modificações sofridas pela nova religião, no decorrer do primeiro século da sua
existência.

Que as contradições abundam nas epístolas paulinianas, até mesmo os escritores


eclesiásticos não podem deixar de o reconhecer. Procurando justificá-las, êsses
escritores dizem que o apóstolo compôs umas, quando jovem, e outras, durante sua
velhice.3 Esquecem, contudo, que, segundo a tradição da Igreja, o período cristão da
vida de Paulo não durou mais do que trinta anos. É impossível admitir-se que o
cristianismo tivesse podido passar durante tão curto lapso de tempo, da estigmatização
do poder temporal, à injunção aos fiéis de rezar pelos reis e dignatários, da negação da
escravidão, à exortação aos escravos cristãos, para que obedecessem aos senhores
igualmente cristãos. Até mesmo num período de um século, semelhante metamorfose
parecia extremamente rápida, sobretudo se

3 A. Lojsy, obra citada, pág 9, nota, irônicamente, que, pala explicar “a incoerência
doutrinal” das diversas epístolas paulinianas e, muitas vêzes, no texto de uma mesma
epístola, ter-se-ia podido imaginar “uma explicação melhor do que a mobilidade de
espírito da qual era superabundantemente dotado o apóstolo Paulo, segundo se é
ordinàriamente obrigado a admitir.”
AS COMUNIDADES CRISTÃS.

143

se leva em conta a lentidão do desenvolvimento histórico sob o signo da escravidão.

No seu conjunto, as epístolas atribuídas ao apóstolo Paulo constituem um dos


documentos mais importantes da evolução inicial do cristianismo. Elas refletem de
modo mais ou menos fiel a tendência histórica do desenvolvimento do cristianismo
original, a partir do Apocalipse de João, até os evangelhos, isto é, a partir de uma das
seitas judaicas, até uma religião independente, se bem que não ainda definitivamente
cristalizada.

Seguimos a evolução da ideologia cristã num único grupo de fontes: as epístolas


paulinianas. O conteúdo das outras epístolas do Nôvo Testamento mostra igualmente
que diversas tendências se degladiavam encarniçadamente no seio das comunidades
cristãs, no decorrer do primeiro século do cristianismo. Esta luta aparece antes de tudo
nos Atos dos Apóstolos, cujos temas giram em tôrno das atividades nitidamente opostas
de Pedro e de Paulo. O leitor verá em seguida que se tratava aí não de uma luta entre
pessoas, mas de duas linhas de desenvolvimento do cristianismo. O choque entre essas
duas correntes cristãs opostas, do qual os Atos dão uma idéia bastante clara, apresenta-
se com certo realce nas mensagens não paulinianas do Nôvo Testamento, que
analisaremos nas páginas que seguem.

4. A TENDÊNCIA .TLJDAICO-CRISTÃ

NAS EPíSTOLAS DO NÔVO TESTAMENTO

Além das epístolas atribuídas a Paulo, o cânone do Nôvo Testamento comporta sete
epístolas apostólicas, das quais uma é atribuída a Tiago, duas a Pedro, três a João e uma
a Judas. Diferentemente das mensagens paulinianas, êstes escritos são bem curtos e,
considerados em conjunto, ocupam menor espaço do que, por exemplo, as duas
epístolas aos coríntios, de Paulo. Seu conteúdo é, por outro lado, bastante homogêneo.
Compostas por um grupo de correligionários, não apresentam contradições
surpreendentes comà as que assinalamos nas epístolas de Paulo. Em conjunto,
representam uma tendência bem definida e distinta daquela das mensagens paulinianas.
Tal fato é reconhecido até mesmo por seus autores numa passagem do Nôvo
Testamento, em que se condenam abertamente outros escritos canônicos. Na segunda
Epístola de Pedro diz-se que «tôdas as cartas» do «irmão Paulo» contêm «pontos
difíceis de compreender, que as pessoas ignorantes e inconstantes torcem, como os das
escrituras, para sua própria perdição.» (Pedro, III, 15-17.) O autor desta epístola põe os
crentes em guarda contra o perigo de serem arrastados ao êrro pelos ímpios, e os exorta
a permanecerem firmes em sua fé. Êsse tom polêmico, brutal, contra uma parte tão
importante dos escritos do Novo

144

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

Testamento revela quão ásperas eram as contradições entre os cristãos.

Os debates que a questão da justificação pela fé suscitavam na cristandade são outro


exemplo do conflito entre as duas tendências. Segundo a Epístola aos Gálatas, «não é
pelas obras da lei que o homem é justificado, mas pela fé em Jesus Cristo», e «nenhuma
carne será justificada pelas obras da lei.» (Gálatas, II, 16.) Em contrapartida, mais da
metade da Epístola de Tiago é consagrada a afirmar o contrário: «Assim também a fé;
se ela não tiver as obras, está morta em si mesma.» (Tiago, II, 17 e 26.) O fundo desta
polêmica não residia, naturalmente, na oposição abstrata entre a «fé» e as «obras», mas
decorria do fato de êste último têrmo subentender a observância de ritos judaicos como
a circunscisão, a celebração do sábado, e outros preceitos aos quais a Epístola aos
Gálatas se referia francamente, enquanto que a Epístola de Tiago prefere sôbre êles
silenciar.

Necessário é dizer aqui que a Epístola aos Gálatas traça uma linha de demarcação
bastante nítida entre Paulo, a quem «o evangelho para os incircuncisos foi confiado» (II,
7), e Pedro, a quem a mesma missão foi destinada em relação aos circuncisos. Um
pouco mais abaixo, nos versículos 12-14, Pedro é acusado de «judaizar». Os evangelhos
sinóticos não se esquecem de descrever minuciosamente como Pedro, por três vêzes,
renegou Jesus. Isto não impede a Mateus de dizer a respeito dêsse apóstolo que êle é a
pedra sôbre a qual a Igreja será construída, e que o Cristo lhe dará as chaves do reino
dos céus. (Mateus, XVI, 18.)

Todos êsses fatos atestam a presença no No’vo Testamento de pelo menos duas
tendências claramente opostas. O principal ponto de divergência entre elas diz respeito à
sua respectiva atitude em face do judaísmo e dos judeus. A linha pró-judeu ou, melhor,
judaico-cristã das epístolas não paulinianas aparece em várias questões. Assim, o autor
da Epístola de Tiago se endereça sàmente «às doze tribos que andam dispersas» (1, 1),
portanto, micamente aos judeus estabelecidos fora da Palestina, e não a todos os
cristãos. A primeira Epístola de Pedro, do mesmo modo, é dirigida «àqueles que são
estrangeiros e dispersos no Ponto, na Galácia, na Capadócia, na Asia e na Bitínia, e que
são os eleitos segundo a pré-ciência de Deus, o Pai» (1, 1) isto é, apenas aos judeus da
Ásia Menor. As epístolas não paulinianas nunca se endereçam aos cristãos de origem
pagã. Há, portanto, motivos para se crer que seus autores, à semelhança do autor do
Apocalipse de João, não concebiam o cristianismo senão como um ramo do judaísmo.
Diferentemente das epístolas paulinianas, estas nunca atacam os judeus e o judaísmo.
145

AS COMUNIDADES CRISTÂ,s...

Apesar das divergências entre as epístolas do No’vo Testamento no que concerne ao


judaísmo, seu acôrdo é quase completo quanto aos outros artigos da fé cristã. Os autores
das mensagens não paulinianas acham que Jesus é o Messias. (1 Epístola de João, II, 1 e
22.) Essas mensagens chegam a declarar que aquêles que negam Jesus como Filho de
Deus, negam por isso o Pai, e tornam-se descrentes. (Ibidem.) Segundo essas epístolas,
Jesus teria nascido em Jerusalém, e ressuscitado dos mortos. (1 Pedro, 1, 21.) No
versículo 20 do mesmo capítulo diz-se que Jesus «é o cordeiro predestinado antes da
fundação do mundo, e manifestado no fim dos tempos.»

Ëste grupo de epístolas nos permite acompanhar a elaboração da dogmática e do ritual


cristãos. Na primeira Epístola de João encontra.se já o dogma da Santíssima Trindade,
se bem que formulado de um modo não muito ortodoxo: «Porque três são os que dão
testemunho: o Espírito, a água e o sangue, e os três estão de acôrdo.» Esta fórmula já
não é mais judaica. O mesmo grupo de mensagens já faz alusão ao batismo. (1 Pedro,
III, 21.)

A espera da vinda do Cristo é expressa aqui com mais vigor do que nas epístolas
paulinianas, e de modo quase tão claro como no Apocalipse. A Epístola de Tiago diz:
«... a vinda do Senhor está próxima, ( . . . ) eis que o juiz está à porta.» (Tiago, V, 8.) E
as de João (1 João, II, 18) e de Judas (Judas, 1, 18) proclamam: «É já a última hora»,
«os últimos tempos». Tal é o motivo central que retorna sem cessar neste grupo de
epístolas. À semelhança das mensagens paulinianas, elas se interrogam sôbre o
retardamento da segunda vinda do Senhor, que deveria trazer aos fiéis a compensação
por seus sofrimentos. Àqueles que dizem: «Onde está a promessa de sua vinda? Porque
desde que os pais morreram tôdas as coisas permanecem como desde o princípio da
criação. . . » (II Pedro, III, 4), o autor não encontra outra coisa para responder, fraca
consolação, senão que «diante do Senhor, um dia é como mil anos», e que, se êle tarda,
é por que usa de paciência para dar ao gênero humano tempo para que chegue ao
arrependimento.

Protelava-se, dêsse modo, para uma data indeterminada, o cumprimento das promessas
escatológicas, às quais a massa cristã, composta de trabalhadores, ligava a esperança de
se livrar da miséria, e de ver os opressores punidos.

Diferentemente do Apocalipse de João, mas, em plena conformidade com as epístolas


paulinianas, as mensagens dêste grupo pregam a integral submissão ao poder. A
segunda Epístola de Pedro (II, 10) condena enèrgicamente, sobretudo aquêles que,
«audaciosos e arrogantes, desprezam a autoridade, e não temem injuriar as dignidades.»
A Epístola de Judas os
146

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

compara aos pecadores de Sodoma e de Gomorra. (Judas, 1, 8.) Assim, o ódio contra
Roma e contra os opressores é substituído pela pregação da submissão aos governantes
e da renúncia à luta, em nome da esperança ilusória da segunda vinda em uma data que
se perde no indeterminado. Êstes apelos de obediência e submissão às autoridades nos
dois grupos de epístolas do Nôvo Testamento revelam não apenas a acentuação da
tendência à conciliação com o poder imperial, mas, também, a persistência no seio do
cristianismo das tradições anti-romanas do Apocalipse.

O reconhecimento das autoridades determinava a aceitação da escravidão, fundamento


do regime social do Império. O siogan «Teriiei a Deus; honrai o Rei» (1 Pedro, II, 17) é
seguido, sem transição, dêste conselho: «servos, sujeitai-vos com todo o temor aos
vossos senhores, não sàmente aos que são bons e humanos, mas também àqueles que
são rigorosos.» A tartuf ice do autor desta epístola é posta inteiramente a nu por sua
argumentação: «com efeito, que glória existe em suportar maus tratamentos, por ter
cometido faltas? Mas, se suportais o sofrimento, quando fizestes o bem, isso é agradável
a Deus. » (Versículo 20.) Vemos, aqui, claramente, a natureza dos princípios sociais do
cristianismo primitivo que lhe asseguram a tolerância dos podêres romanos, e,
finalmente, sua vitória sob Constantino.

É necessário dizer, contudo, que os autores dêste grupo de epístolas estabelecem ainda
certa diferença entre o reconhecimento do poder dos ricos e da escravidão, de um lado,
e sua atitude moral em relação à riqueza, do outro. A Epístola de Tiago consagra largo
trecho à condenação dos ricaços, nestes têrmos: «Agora é a vossa vez, oh, ricos! Chorai
e pranteal por causa das desgraças que vos hão de vir (...) Vosso ouro e vossa prata se
enferrujaram; e a sua ferrugem dará testemunho contra vós, e comerá vossa carne como
um fogo (...) Eis o salário dos trabalhadores que ceifaram vossos campos, que não foi
pago por vás; e os clamores dos que ceifaram entraram nos ouvidos do Senhor dos
exércitos.» (Tiago, V, 1-4.) Estas palavras atestam inequlvocamente que as
comunidades cristãs primitivas se compunham principalmente de pobres e de pessoas
que ganhavam o pão com o suor do seu rosto. Tiago considera-se no dever de prevenir
que não é necessário aceitar personalidades nas assembléias cristãs e distinguir um
homem «com anel de ouro e vestes magníficas», de um «pobre miseràvelmente
vestido», e lembra: «Não são os ricos que vos oprimem e vos arrastam diante dos
tribunais?» (Tiago, II, 2-6.) Não há dúvida de que a composição social das comunidades
cristãs primitivas, nas quais a Epístola de Tiago gozava de

As COMUNIDADES CRISTÃS..

147

grande audiência, era absolutamente idêntica à composição das comunidades de


Tessalônica e de Éfeso.

A estrutura e a forma de organização das primeiras comunidades judaico-cristãs não se


distinguiam em nada da estrutura e forma das comunidades descritas nas epístolas
paulinianas; nestas, como naquelas, um grande número de grupos professavam as
crenças mais diversas, e se opounham uns aos outros. As mensagens que se lhes enviam
são cheias de advertências contra os falsos profetas, os falsos pregadores e tôdas as
espécies de falsas doutrinas funestas para a salvação dos crentes. A terceira Epístola de
João (1, 9) acusa certo Diotrefes de querer ser o primeiro entre os irmãos, e, também, de
não ter querido receber João e outros pregadores ambulantes.

As comunidades judaico-cristãs não possuíam ainda um clero. Seus dirigentes recebiam


o nome de «anciãos» (Tiago, V, 14; Pedro, V, 1), mas suas funções não são claramente
definidas, a não ser que lhes compete a tarefa de rezar pelos doentes, e de «pastorear o
rebanho de Deus.» (1 Pedro, V, 2.)

Notam-se, assim, no segundo grupo de escritos do Nôvo Testamento, afinidades com as


epístolas paulinianas e, ao mesmo tempo, um protesto aberto contra a pregação cristã
entre os pagãos, e contra a tendência de conservar os liames entre o cristianismo e o
judísmo. Esta linha condenava a nova religião ao reduzido papel de seita judaica, mas
seria a corrente pauliniana que iria vencer nesta luta.

Não se imagine, contudo, que, já durante a primeira metade do século II, a corrente pró-
judaísmo e a corrente pauliniana se apresentassem como absolutamente inconciliáveis.
Até mesmo os evangelhos canônicos, compostos mais tarde, procuravam de diversas
maneiras estabelecer um compromisso entre as duas tendências que, aliás, coincidiam
em muitos pontos. Ambas

coexistiam no seio das ornunidades cristãs, como é atestado

pela Dida que’.

5. A DOUTRINA DOS DOZE APÓSTOLOS

A Dida quê, «doutrina dos doze apóstolos», monumento da literatura cristã primitiva,
que, durante muito tempo, se acreditou perdido, só foi descoberta em 1873, e não tardou
a ser publicada. Éste escrito foi composto muito antes da aparição dos evangelhos
canônicos. Êle remonta aproximadamente ao comêço do século II e tinha por fim
comunicar os dogmas da nova religião ãôs seus adeptos.

A Didaquê compõe-se de três partes, a primeira das quais (capítulos 1-VI) compara
«dois caminhos, o da vida com o da morte»; a segunda, (capítulos VII-X) descreve o
ritual e reproduz as orações; a terceira (capítulos XI-XVI) expõe os
148

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

princípios de organização das comunidades cristãs, e os deveres dos seus dirigentes.

Para não se afastar do «caminho da vida», o crente deve observar os mandamentos,


resistir às tentações, à cólera, à concupiscência, não deve mentir etc. Ao lado dêsses
preceitos, que também são encontrados em outras religiões, a Didaquê dedica especial
atenção aos ensinamentos especificamente cristãos, tais como: «Abstém-te de qualquer
manifestação de descontentamento, porque o descontentamento leva à cólera, ( .

sê dócil, paciente, benévolo, pacífico, caridoso. » (Dida quê, III, 6-8.) Ela roga aos
cristãos que «não virem as costas aos pobres», que ponham tudo em comum com seus
irmãos, sem nunca dizer «isto me pertence», que, estando encolerizados, não dêem
ordens aos seus escravos, os quais põem suas esperanças no mesmo Deus, «para que
êles não deixem de temer a Deus.» (Didaquê, IV, 8-9.) O Capítulo V da Didaquê, em
que se trata do «caminho da morte», adverte os crentes contra os ímpios, entre os quais
figuram aquêles que «dão as costas aos pobres, que procuram supliciar com o trabalho
aquêle que já foi supliciado, os que adulam os ricos e são juízes injustos para os
miseráveis. » (Dida quê, V, 2.)

Êstes ensinamentos mostram que a Dida quê se endereçava a representantes das classes
laboriosas no seio das quais a condenação dos ricos e predicação da virtude e do amor
do próximo não podiam deixar de ter uma grande ressonância. O que mais atraía as
pessoas dessas classes era a esperança de salvação e o reino de Deus em caso de
observância dos preceitos cristãos. Concebe-se que o ódio aos opressores e a idéia,
ainda que vaga, da comunidade de bens só poderia manifestar-se no seio das camadas
deserdadas da população. Porém, a comunidade de bens não era concebida como uma
abolição da propriedade privada: o autor da Dida quê se abstém de exigir, mas, também,
de aconselhar a libertação dos escravos cristãos, quando mais não fôsse, pelos senhores
que professavam a mesma fé. A libertação dos escravos era, contudo, a primeira
condição para se chegar à comunidade de bens. A Didaque se limita a convidar os
senhores de escravos a serem brandos com êles, e isso r’inicamente em atenção à
religião.
A segunda parte da Dida quê trata do sacramento do batismo, reproduz diversas
orações, notadamente aquelas que se pronunciam durante a eucaristia. No que concerne
ao batismo, encontra-se nela a mais antiga fórmula da literatura cristã, forma essa que
contém duas referências à Santíssima Trindade. Êste escrito dá muita atenção ao jejum
que deve ser seguido antes do batismo e, além disso, duas vêzes por semana, porém,
obrigatôriamente nos dias em que os «hipócritas», isto é, os judeus ortodoxos, não o
observam. Quanto às orações, os cristãos não

AS COMUNIDADES CRISTÃS...

149

devem mais rezar corno os «hipócritas» (Didaquê, VIII, 1.) A Dida quê apresenta uma
antiga variante da oração dominical, um pouco diferente da evangélica. Outras preces
reproduzidas neste escrito, e que devem ser pronunciadas antes e depois das refeições,
chamam Jesus de «Filho de Deus». (Didaquê, IX-13.)

Esta parte da Dida quê distingue-se por seus elementos relativamente elaborados, que
ela apresenta do ritual da nova religião, e dos quais não se descobre qualquer vestígio
nos escritos canônicos. E êsse ritual, coisa característica, se bem que constituído por
oposição ao do judaísmo, revela, contudo, numerosas coincidências com êle. O vinho,
por exemplo, chama- se na Didaquê «vinha sagrada de David». (Didaquê, IX, 2.) Este é
chamado de filho de Deus, como Jesus, e nenhuma diferença nela se estabelece entre
ambos. As orações reproduzidas neste escrito rogam a Deus que reúna os «eleitos»
dispersados nos quatro cantos do mundo, prece legítima na bôca de judeus da diáspora,
ansiosos de retornar à Palestina, mas inconcebível, por exemplo, nas mensagens de
Paulo, nas quais o caráter universal do cristianismo é sublinhado a cada passo. O que
caracteriza, antes de tudo, a Didaquê, é, pois, o fato de ser uma curiosa amálgama de
temas judaicos e de temas cristãos.

Sua terceira parte é menos específica, e tem, sobretudo, como tarefa prevenir os crentes
contra os «falsos profetas» e os «falsos apóstolos». Notemos, entre parênteses, que,
neste escrito, os apóstolos também não são os discípulos de Cristo dos evangelhos, mas
simples mensageiros das comunidades cristãs. Segundo a Didaquê, reconhecem-se os
«falsos pregadores» pelo fato de importunarem os crentes pedindo-lhes dinheiro, e por
procurarem ficar o maior tempo possível na mesma comunidade vivendo à custa dos
seus membros. Ela recomenda aos crentes que lhes dêem na hora da partida apenas pão,
e isso êinícamente «até à noite», isto é, o que seria necessário para subsistir até a
comunídade vizinha. Tudo parece indicar que entre êsses pregadores ambulantes
encontravam-se personagens semelhantes àqueles que Luciano descreveu em seus
cantos satíricos. No que concerne à permanência nas comunidades cristãs, a Didaquê
excetua apenas os artesãos itinerantes:

«se se tratar de um artesão, e se êle quiser viver em vossa casa, deixai-o trabalhar e
comer ( . . . ). Se êle não concordar, será um traidor de Cristo.» (Didaquê, XII, 3-5.)

O papel de dirigente nas comunidades cristãs descritas na Didaquê pertence aos profetas
inspirados, sujeitos ao carisma. O clero não existia. A ligação entre os agrupamentos
cristãos era efetuado pelos pregadores itinerantes, e é por isso que se tratava
cuidadosamente de os identificar. Os conselhos do autor
150

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

da Didaquê, a êsse respeito, lembram muito as recomendações contidas no segundo


grupo de epístolas paulinianas. O único traço original é a característica dos bispos e
diáconos que, neste escrito, não são objeto de muito grande consideração. O autor da
Didaquê acha que êles devem ser escolhidos entre «os irmãos afáveis, não agarrados ao
dinheiro, honestos, experimentados»: êles eram designados pelos cristãos de maior
hierarquia, e não pelas autoridades eclesiásticas, como se o fêz mais tarde. A Diria quê
não deixa de lembrar aos crentes que êles não devem desprezar os bispos, que têm
direito às mesmas deferências que os «profetas e os doutores», aos quais são, assim,
igualados. Conclui-se, daí, portanto, que era necessário exercer certa pressão sôbre a
massa dos cristãos, para os obrigar a respeitar os bispos. Esta circunstância por si só
autoriza a considerar a Dida quê como um dos mais antigos documentos cristãos.

O capítulo final dêste escrito é consagrado ao problema de se saber quando chegará o


reino de Deus, e a resposta que êle dá é idêntica àquela da epístola do Nôvo Testamento.
Seu autor limita-se a dar tôdas as espécies de sinais fantásticos, como a ressurreição dos
mortos, a trombeta do arcanjo etc.

Tal é o conteúdo de um dos mais importantes documentos cristãos dos primeiros


tempos. Aquilo que nêle não figura não é menos importante do que o que êle diz,
convém assi. nalá-lo. Não se encontra em qualquer das partes da Didaquê o ensino
destinado aos novos fiéis convertidos ao cristianismo, a menor alusão à vida de Jesus
Cristo, isto é, à sua primeira vinda. Tal ocorrência é o maior dogma da religião cristã, e
é claro que o silêncio da Dida quê a seu respeito não pode ser fortuito. A Didaquê
ignora também a crucificação de Jesus. Ainda se espera, nela, a primeira vinda de
Cristo, o que indica, de um lado, sua antigüidade, e, do outro, que, no comêço do século
II, os cristãos viam em Jesus não um personagem real que tivesse existido, mas o
Messias esperado. A imagem de Jesus na Dida quê está mais próxima do Apocalipse de
João, do que das epístolas paulinianas, mesmo as mais antigas. Jesus é citado neste
escrito não como o Filho único de Deus, mas como um dêles, à semelhança de David e,
até mesmo, de Moisés.

A Didaquê não condena nitidamente o judaísmo. Seu autor procura desligar-se dos
dogmas oficiais dessa religião, mas, ao fazer isso, não deixa de se considerar como um
representante da «verdadeira Israel». Nem mesmo supãe que o cristianismo venha a ser
uma religião universal. Segundo seu parecer, êle não é senão a «boa nova», destinada
sômente aos eleitos, O «caminho da vida» traçado na Didaquê lhe parece tão árduo, que
o autor se apressa em precisar que não é
AS COMUNIDADES CRISTÃS...

151

preciso segui-lo estritamente, mas, que se deve segui-lo apenas na medida do possível.

A descrição do «caminho da vida» na Dida quê revela certas afinidades entre êste
escrito e os manuscritos descobertos em Coumrã, com a seguinte diferença radical: os
essênios de Coumrã exigiam a observância rigorosa de suas Regras, enquanto que os
primeiros cristãos não viam em seus preceitos senão um ideal mais ou menos abstrato, o
que facilitava grandemente a conquista de novos prosélitos. A seita dos essênios nunca
esteve em condições de se tornar um movimento de massa.

A Dida quê nada diz sôbre a atitude dos cristãos em relação a Roma. Seu autor se limita
a proibir categàricamente qualquer manifestação de descontentamento contra as
autoridades. Sem nenhum sentimento de ódio contra o poder romano em particular,
condena em geral a menor oposição à política das classes dominantes. Neste escrito, os
apelos do cristianismo à luta foram substituídos pela pregação da resignação, da
submissão incondicional aos governantes. O conselho evangélico de apresentar a face
esquerda àquele que nos bate na direita já é enunciado na Diria quê, sem que, então, se
faça menção ao nome de Jesus.

Tudo isso nos autoriza a concluir que, apesar dos numerosos temas comuns à Diria quê
e aos dois grupos de epístolas do Nôvo Testamento, êste documento parece representar
uma terceira tendência do cristianismo primitivo. Veremos mais adiante que muitas das
coisas da Didaquê foram incluídas no cânone, na segunda metade do século II.
6. AS PRIMEIRAS HERESIAS

Até aqui, examinamos apenas as tendências do cristianismo primitivo que precederam e


determinaram diretamente a constituição da dogmática ortodoxa. O estabelecimento de
suas particularidades não foi muito espinhoso, porque as fontes correspondentes vieram
até nós, se bem que tenham sofrido, de vez em quando, correções. Elas remontam, além
disso, à primeira metade do século II e se relacionam, portanto, com o período que
acabamos de considerar.

Pior é a situação no que concerne às fontes relativas aos movimentos heréticos da


Antigüidade. A própria noção de heresia, como doutrina condenada pela Igreja, é
posterior, por certo, à aparição das heresias, porque ela foi formulada por ocasião da
elaboração do cânone, e depois da constituição da Igreja. Além disso, as fontes mais
antigas sôbre êste assunto remontam à segunda metade do século II. Trata-se dos
escritos de Justino, de Taciano e, notadamente, de Iririeu, Examinaremos mais adiante o
papel social das heresias, e o seu

152

A ORIGEM DO CRISTIANGMO
conteúdo ideológico. Por ora, vamos nos limitar a breves indicações sôbre aquelas das
quais se conhece a existência durante a primeira metade do século II.

Apesar do elevadíssimo número de heresias no decorrer dêste período, podem elas ser
divididas em três grupos principais: heresias judaico-cristãs, montanistas e gnósticas.
Não há dados sôbre o primeiro grupo, até os meados do século II. Mas, acabamos de ver
que já no comêço dêste último, a luta no seio do cristianismo desenrolava-se sobretudo
em tôrno da atitude a tomar em relação ao judaísmo, questão que constitui,
prôpriamente falando, o fundo do paulinismo. Quando êste passou a ser a ideologia
oficial da Igreja, seus adversários, que permaneceram nas posições do Apocalipse de
João e, mesmo, na da Dida quê, viram-se enquadrados automàticamente entre as seitas
judaico-cristãs, das quais a principal era a dos ebionitas.

A julgar-se pelas declarações de Irineu (1, 23, 2), a doutrina desta seita renegava o
apóstolo Paulo, exigia a prática da circuncisão e a observância dos preceitos da lei
mosaica. Os ebionitas achavam que Jesus era um dos mais antigos profetas hebreus,
mas não o Messias. Tudo leva a crer que esta seita já existia nos começos do século II. Ë
até mesmo possível que, durante o período em que o cristianismo se desligava do
judaísmo, a massa fundamental das comunidades cristãs professasse crenças ebionitas
ou, pelo menos, judaico-cristãs.

O montanismo (nome tirado do de um dos seus fundadores: Montanus) foi, em meados


do século II, um sério adversário da Igreja episcopal. Entrou na liça aproximadamente
no décimo nôno ano do reinado de Antonino, o piedoso (136 a 161), mas esta data
talvez se relacione não com a aparição desta heresia, mas com o comêço da separação
entre os montanistas e a Igreja Romana. Os adeptos do montanismo atacavam o
episcopado e tinham em alta estima os profetas cheios de Espírito Santo. O essencial em
suas doutrinas era a espera do próximo retôrno de Jesus, que, segundo êles, devia se dar
em Pepuza (Ásia Menor), centro de suas atividades. Os montanistas exortavam os fiéis a
abandonar seus bens, a renunciar às coisas terrenas, a observar os jejuns rituais, o
celibato etc. Dando um acentuado destaque aos temas escatológicos e, também, aos
quiliáticos, exigiam a mortificação da carne como o único meio de se instaurar o reino
de Deus na Terra.- A tendência ascética do «caminho da vida» da Didaquê reaparetecia
mais vigorosa ainda com o montanismo.

A ideologia montanista não fazia outra coisa que não fôsse desenvolver o programa
social e político do Apocalipse de João. Em oposição ao dogma da Igreja, que protelava
sine die o esta-
As COMUNIDADES CRISTÃS..

153

belecimento do reino de Deus e situava êSte último no além, os montanistas esperavam


êsse reino num futuro próximo, não no céu, mas na Terra. Isto revela estreitos liames
entre os montanistas e as vastas massas oprimidas e deserdadas. Sua pregação era
acolhida com maior boa vontade nas diversas pro víncias romanas da Ásia Menor.

Segundo os documentos de que se dispõe, o gnosticismo apareceu na religião cristã


durante o segundo quarto do século II. Seu centro foi o Egito. Os gnósticos se
levantavam contra o dogma da Igreja relativo à natureza ao mesmo tempo divina e
humana de Jesus; não aceitavam senão seu lado divino, negando, assim, sua origem
terrestre. Esta seita se dividia em um número imenso de grupos, a maioria dos quais era
resolutamente hostil ao judaísmo, e considerava Jeová como o Príncipe do Mal. Os
gnósticos procuram conciliar as crenças cristãs com as doutrinas filosóficas do mundo
greco-romano, mas seus discursos confusos e muito sutis não tinham influência sôbre as
massas. Algumas das seitas gnósticas revelavam uma grande tendência para o
ascetismo. Constatam-se muitas contribuições do gnosticismo ao No’vo Testamento e,
sobretudo, ao Evangelho Segundo João. Notemos que os primeiros gnósticos, entre os
quais Márcio, exerceram, em dado momento, uma grande influência sôbre a
comunidade cristã de Roma.

Acabamos de examinar ràpidamente as principais tendências existentes no seio do


cristianismo durante a primeira metade do século II. Essas correntes subdividiam-se ao
infinito, as mais encarniçadas querelas não cessavam nunca entre elas e, segundo as
condições locais e a composição social e étnica das comunidades, ora uma, ora outra
dominava. Enquanto os cristãos discutiam e se acusavam interminàvelmente, os
evangelhos e as epístolas eram retocadas várias vêzes, tal como Celso, antigo crítico do
cristianismo, o notou com razão. Amputavam-se dêsses textos as passagens que se
julgavam vulneráveis, acrescentavam-se nêles detalhes tirados muitas vêzes de escritos
não cristãos.
Esta luta pela existência determinava, pouco a pouco, o triunfo das doutrinas que
melhor se adaptavam às condições históricas da época. O grupo cristão que se lançou
neste caminho com maior senso do futuro foi aquêle cuja ideologia encontrou sua
expressão nas epístolas paulinianas. O cristianismo separava-se nelas, resolutamente, do
judaísmô, desenvolvia o mito de Jesus, Homem-Deus. Ao mesmo tempo, não
economizou esforços para manter a idéia, extremamente atuante, sôbre as massas, do
reino de Deus, que significava a recompensa reservada para os justos e para os crentes,
mas tirando-lhe o caráter político e social muito acentuado que ela revestia no

154 A OaIGSM DO CEISTIANISMO

Apocalipse. Foi assim que, nos meados do século II, a dogmática da Igreja começou a
se formar por via da «seleção natural»

e de alguns compromissos entre as tendências mais influentes / do cristianismo.

7. OS ESCRITOS DO APOLOGISTA JUSTINO

O processo que acabamos de descrever se faz sentir claramente, antes mesmo do


estabelecimento do cânone no Nôvo Testamento, nas diversas obras dos primeiros
apologistas cristãos e, em particular, nas de Justino, de quem grande número de escritos
chegou até nós. Seus textos mostram de modo palpável como o mito evangélico do
Cristo foi constituído no decorrer das lutas intestinas do cristianismo, e de que
elementos se compõe o personagem central desta lenda.

Justino é o primeiro dos escritores cristãos do qual se possuem informações biográficas


dignas de fé. Nasceu na Síria Palestiniana. Seu pai chamava-se Priscus, seu avô Baquios
(Apologia, 1, 1); isso indica que não era de origem judia. Em seu Diálogo com o Judeu
Tri/ônio, Justino conta para começar como concebeu o plano de se dedicar à Filosofia, e
como se pôs a estudar sob os auspícios dos filósofos das mais diversas escolas. Os
sistemas dos seus mestres não o puderam satisfazer, porque os considerava presos às
coisas dêste mundo: alguns dentre êles pediam-lhe que pagasse duas lições
adiantadamente. A única doutrina filosófica pela qual Justino experimentou algum
respeito foi a de Platão. Um dia, estabeleceu conversação com um velho cristão e êste o
conquistou para a fé cristã. Justino renunciou à filosofia, explicando êsse
comportamento da seguinte maneira: «Os profetas se encontram acima dos filósofos,
porque são inspirados pelo Espírito Santo. Abstêm-se de propor provas, porque se
encontram acima de qualquer demonstração. Os milagres realizados por êles, tomam-
nos dignos de fé.» (Ob. cit., Cap. VII.) As referências aos ditos dos profetas servem a
Justino como o único argumento de apoio para a divindade de Jesus.

É claro que o caminho pelo qual Justino chegou ao cristianismo não foi o da grande
massa dos adeptos da nova religião. Éstes eram atraídos não pelas profecias sôbre o
Messias, enunciadas no Velho Testamento, mas pela esperança da punição dos ricos e
da felicidade que aguardava os humildes no reino de Deus. Os pobres e os escravos
buscavam no cristianismo o reconhecimento de seus direitos humanos, uma igualdade
ainda que ilusória. Os sermões sôbre a redenção dos pecados dos homens, pelo martírio
do filho de Deus, tocava, por outro lado, a imaginação das massas. No que concerne a
Justino, foi a decepção pela filosofia antiga que o impeliu para o cris-
AS COMUNIDADES CRISTÃS... 155

tianismo, tal como aconteceu com outros representantes das classes possuidoras.

Os argumentos que Justino avança em favor da religião cristã são de uma incrível
pobreza. Não acha nada a censurar aos pitagóricos, por exemplo, a não ser a exigência
que faziam de se estudar Matemática, antes de se passar às meditações sôbre Deus. A
preferência de Justino pelos profetas traduzia apenas sua renúncia ao raciocínio lógico.
Êle não admitia a menor dúvida a respeito da realidade dos milagres realizados pelos
profetas do Antigo Testamento. Essas perorações de Justino dão a medida da profunda
degradação do pensamento filosófico no século II.

Nas suas Apologias, Justino diz que não se deve levar um cristão à barra dos tribunais
umicamente por êle ser cristão, que é preciso, para isso, que êle tenha violado as leis, e
êle explica, minuciosamente, em seguida, os dogmas da nova religião. Seu Diálogo
Com o Judeu Trilônio, outra obra dêste escritor que chegou até nós, descreve sua
conversão, fala da atitude dos cristãos em relação ao Nôvo Testamento, que é
apresentado como uma aliança provisória, referente a um ónico povo, enquanto que o
cristianismo é proclamado como uma nova aliança eterna, trazida para tôda a
humanidade. Esta obra de Justino tem por tema principal a interpretação das profecias
do Antigo Testamento, visando a demonstrar que Jesus Cristo foi efetivamente o
Messias anunciado. Na parte final do Diálogo, tenta provar que os cristãos são a «nova
Israel.»

O que os escritos de Justino têm de mais característico, notadamente seu Diálogo, é a


possibilidade que êles nos dão de aprender um dos últimos elos da gênese do mito
evangélico do Cristo. Justino conhecia a compilação das Sentenças de Jesus (Apologia,
1, 14), documento que não foi conservado, e que parece corresponder aos papiros
encontrados em Oxirincos. É muito significativo que a maioria das máximas citadas por
Justino figure igualmente nos evangelhos. Porém, o que é mais importante ainda, é que
êle cita outras sentenças de Jesus, das quais não se encontra o menor vestígio nos
evangelhos. No Diálogo, por exemplo, Justino reproduz a sentença seguinte (Cap. 47):
«Eu vos julgarei por aquilo que hei de ver em vós.» Êle diz que, sendo carpinteiro, Jesus
fabricava cangas e arados (Cap. 88), e que êle foi atacado no alto do Monte

das Oliveiras (Cap. 103), informações que não figuram nos textos canônicos.

Isto impõe duas importantes conclusões: 1) os escritos de Justino são anteriores à


canonização dos evangelhos, sem o que êles não se afastariam um til do seu texto, o que
snostra que os evangelhos não foram compostos antes dos
156

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

meados do sécuio II; 2) os evangelistas não foram testemunhas das supostas atividades
de Jesus, mas o que escreveram está sômente baseado nas máximas que se lhe
atribuíam, e nas profecias correspondentes do Antigo Testamento. No que concerne às
primeiras, preferiam ignorar algumas delas por diversas razões: nos escritos de Justino e
nos manuscritos de Oxirincos encontram-se algumas das sentenças que não são citadas
em nenhuma parte dos evangélicos canônicos. As conclusões que acabamos de formular
são ainda reforçadas pelo fato de Justino ser o único dos escritores cristãos da
Antigüidade que empregou a expressão «recordação dos apóstolos» em lugar de
«evangelhos». Basta lembrar que uma das heresias mais importantes, o arianismo,
apareceu como conseqüência de uma disputa por causa de uma única letra do texto da
escritura, para se compreender que Justino não teria podido utilizar a palavra
«recordação», em lugar de «evangelho», por mera negligência.
Encontram-se nos escritos de Justino numerosos detalhes reproduzidos no relato
evangélico. Êle fala da fuga para o Egito (Diálogo, cap. 78), da matança dos inocentes
(Ibidem), dos magos (Ibidem, cap. 77), de Pôncio Pilatos (Apologia, 1, 13). Porém, sua
obra contém igualmente contradições com os evangelhos. Segundo êle, por exemplo,
Jesus nasceu numa caverna (Diálogo, cap. 78), e não numa mangedoura (Lucas, II, 7).
Nos sessenta capítulos do Diálogo consagrados a Jesus, justino não se refere jamais à
genealogia que remonta ao Rei David. Dissemos já que Taciano, discípulo dêste autor,
no seu Diatessarão, evangelho que êle compôs no final do século II, não quis introduzir
no seu texto a genealogia de Jesus que figurava nos Evangelhos Segundo Mateus e no
Evangelho Segundo Lacas. Temos aqui outro elo, e êste posterior a Justino, da criação
do mito de Jesus.

O conteúdo do Diálogo Com o Judeu Trifânio nos permite compreender melhor não
sàmente aquilo que se atribuía a Jesus durante o período de elaboração dos evangelhos,
mas, também, como o faziam. Desejoso de convencer seu interlocutor, de que Jesus era
o Messias anunciado pelos profetas, Justino cita numerosas passagens do Antigo
Testamento, interpretando-as de um modo que não poderia ser mais extravagante. Vê,
por exemplo, o símbolo da cruz na passagem em que está escrito que Moisés assistiu a
uma batalha com os braços estendidos horizontalmente, e foi precisamente esta
circunstência que, segundo êle, decidiu a vitória. Segundo Justino, o próprio nome de
Jesus seria simbólico (significa em hebréico «Deus Salvador»), e teria pertencido a um
judeu apenas, antes dêle:

Josué, filho de Num, chefe do povo de Israel depois da morte de Moisés. Considera êste
argumento tão decisivo, que não hesita em pôr as seguintes palavras na bôca de
Trifônio,
As COMUNIDADES CRISTÃS

157

que o ouve: «O nome de Josué dado ao filho de Num me dispõe a aceitar isso», isto é,
que Jesus era o Cristo, o Messias.

Assim, todos os detalhes pseudo-históricos do mito evangélico de Jesus, seu nome


inclusive, não fariam mais que confirmar o que os profetas do Antigo Testamento
tinham anunciado. Se se tëm em conta que as mais antigas fontes nada dizem, em geral,
sôbre a vida terrestre de Jesus, a única con

clusão possível é que a «biografia» evangélica do Cristo não

foi constituída por lembranças relativas a personagem que real

mente tivesse existido; ela apenas corresponde, em última análise,

a uma escolha de profecias do Antigo Testamento sôbre o

Messias esperado, donde resultou sua imagem nos evangelhos.

É igualmente característico que, apesar do grande número

detalhes que coincidem em Justino, e nos evangelhos, êste

autor veja em Jesus um ser antes celeste do que terrestre.

Uma das teses essenciais da Apologia é a seguinte: «O

Verbo tornou-se carne, tomou o aspecto de um homem, e o nome de Jesus Cristo.»


(Apologia, 1, 5.) No Diálogo, Justino

declara: «Deus engendrou a partir de si mesmo uma fôrça racional nomeada de diversas
maneiras: ora Filho, ora Anjo, ora Senhor, ora Verbo.» (Diálogo, cap. 61.) Afirma,
dêsse modo, a pré-existência de Jesus, vivendo antes da criação do mundo.

Justino conhece apenas um escrito do Nôvo Testamento:

O Apocalipse de João. Desenvolvendo suas teses, chama a Jesus: «Cordeiro pascal


imolado», «Cordeiro que simboliza os sofrimentos ( . . . ) que aguardavam o Cristo.»
(Diálogo, cap. 40.) Encontramos aqui, dêsse modo, um dos elos da evolução gradual do
Jesus-Deus, para o Homem-Deus dos evangelhos, permanecendo, ainda em Justino, os
traço humanos do Cristo muito mais apagados dos que os traços divinos.

A atitude de Justino em relação ao judaísmo é dúplice. De um lado, reconhece sem


reservas o Velho Testamento, considera Jeová como Deus-Pai, e acentua que os profetas
hebreus eram incomparàvelmente superiores a qualquer. dos filósofos gregos.
De outro lado, êste apologista não oculta sua hostiidade contra os judeus enquanto
nação, acusa-os de difundir calúnias absurdas contra os cristãos, de maldizer êstes
últimos em suas sinagogas etc. Segundo Justino, a lei judaica perdeu sua autoridade
depois do advento de Jesus, idéia essa que coincide inteiramente com o espírito das
primeiras epístolas paulinianas. Ele emitiu esta importante opinião: « Sabemos que os
cristãos de origem pagã são muito mais numerosos e mais zelosos do que os de origem
judia.» (Apologia, 1, 83.)

Justino parece, contudo, levado a um beco sem saída por esta pergunta repetida por
Trifônio: «Mas, se alguém quer

158

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

viver segundo a lei mosaica e, ao mesmo tempo, crer nesse

Jesus crucificado e reconhecer que êle é o Cristo enviado por Deus, será que tal
indivíduo também poderá ser salvo ?» Depois de muitas hesitações, Justino acaba por
dizer que essas pessoas podem ser salvas, com a condição de não exigirem a circuncisão
para os cristãos de origem pagã. Aqui, chegamos ao ponto mais vulnerável da
argumentação do apologista. Ao fazer essa pergunta, Trifônio tinha em vista os
ebionitas, uma das mais importantes seitas judaico-cristãs do período inicial do
cristianismo. Justino não se decide a condenar os ebionitas, porque, para sei
conseqüente, deveria negar também o Apocalipse. Porém, êle também não os podia
defender porque isso teria dado certa vantagem à corrente judaico-cristã, e teria trazido
um grande prejuízo para a propagação do cristianismo entre os pagãos. É precisamente
por isso que o compromisso por êle proposto foi estigmatizado ulteriormente pela
Igreja, como sendo uma heresia.
As declarações dos apologistas contra o judaísmo deviam levar inevitàvelmente à
elaboração e à consagração da dogmática cristã, dogmática cujos elementos já
apresentam contornos bem nítidos nas obras de Justino. Assinalamos já a importância
que êle atribuía ao sinal da cruz. Acrescentemos que êle. dava muita importância ao
sacramento da eucaristia, e via nêle o «sangue e o corpo» de Jesus. (Apologia, 1. 67.)
Faz alusão, também, ao batismo, que ainda chama de «ablução». (Apologia, 1, 61,
Diálogo, cap. 13.) Dando-se conta das afinidades entre certos ritos cristãos e os
mistérios da religião Mitra que êles imitam, Justino declara que aí se trata de «um ardil
do Malígno. . .» (Apologia, 1, 66.) Éle já nos dá um esbôço do credo cristão: «Éle
nasceu da Virgem, recebeu o nome de Jesus, foi crucificado e, ressuscitando depois de
sua morte, subiu ao céu.» (Apologia, 1, 52.) Menciona a Santíssima Trindade. (Ibidem,
13.) Da ressurreição da carne, fala com certa dúvida: «Nutrimos a esperança de ver
reaparecer nossos corpos transformados em pó, julgando que não há nada impossível
para Deus.» Éste homem, que se julgava filósofo, permitia-se admitir semelhante coisa,
contrária ao bom senso e à evidência, invocando a onipotência de Deus. Um dos antigos
críticos da nova religião notou, com muito espírito, a êsse respeito: «O Altíssimo não
pode fazer com que dois mais dois sejam cinco, ao invés de quatro! »

Os escritos de Justino foram um grande passo no caminho do desenvolvimento da


dogmática e do ritual cristãos. Se bem que inacabada, a nova doutrina nêle aparece já
quase formada.

- O estabelecimento dos dogmas do cristianismo implicava inevitàvelmente na sua


ruptura não apenas com o judaísmo, mas, também, com as seitas judaico-cristãs. É por
isso que
AS COMUNIDADES CRISTÃS..

159

não nos devemos espantar com o nascimento das heresias no decorrer dêsse processo. E
Justino não se limita apenas a enumerar as heresias em suas obras. Mostra-se
francamente hostil em relação a elas. Além dos ebionitas, dos quais não refere o nome
aliás, Justino faz constantes alusões aos marciofitas, aos valentinianos, aos saturnilianos
etc. (Diálogos, 35, Apologia, 1, 25, 38.) Confessa que muitos cristãos seguem o
heresiarca Márcio.

Os temas escatológicos ocupam grande espaço nos escritos de Justino. Fala muitas
vêzes do «último dia», crê na Jerusalém celeste, à semelhança do autor do Apocalipse, e
convida os cristãos, de conformidade com as esperas quiliásticas, a se prepararem para o
reino milenar de Deus, escrevendo no Diálogo: «Com outros cristãos lúcidos, sei que os
cadáveres ressuscitarão, e que o milênio terá lugar na Jerusalém que se edificará
gloriosa e bela.» Ële nota, contudo, que o quiliasma não é professado por todos os
cristãos. Contendo muitas das idéias próprias do cristianismo original, esta crença foi
condenada posteriormente pela Igreja.

Justino foi o primeiro a falar dos dois adventos do Senhor, um já ocorrido, em que o
Cristo desempenha o papel de um. mártir impotente, conspurcado, crucificado, e o
outro, que é esperado, quando Jesus descerá do céu, fulgurante de glória. (Diálogo,
110.) O apologista foi levado a expressar-se dêsse modo pelo desejo de conciliar as
afirmações contraditórias dos profetas do Antigo Testamento, que descreviam o futuro
Messias, ora como vencedor, ora como vítima.

Os escritos de Justino fornecem informações importantes sôbre a estrutura e a


composição das comunidades cristãs. Na parte final de sua primeira Apologia,
comunica que em tôdas as cidades os cristãos se reúnem aos domingos para celebrar
êsse dia (e não mais o dia de sábado). E sàmente em Roma que os fiéis do Cristo se
ajuntam por quarteirões, sendo a comunidade desta cidade, segundo parece, a única
bastante numerosa. Nas outras cidades importantes, as comunidades cristãs se agrupam
no mesmo lugar. As informações de Justino deixam entrever igualmente que os cristãos
se encontravam então em uma situação semilegal. Durante suas assembléias,
pronunciavam orações, comungavam com pão e vinho, ouviam a leitura das santas
escrituras etc. Justino fala por essa ocasião dos diáconos encarregados dos negócios
administrativos das comunidades e dos anciãos cuja missão consistia em dirigir os
diáconos e presidir as reuniões dos crentes. Éste escritor ignora ainda, fato significativo,
o episcopado. Quanto aos anciãos a que se refere, tudo indica que se tratava de
personagens que eram eleitos.
160

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

Notemos, para terminar, que, diferentemente das epístolas paulinianas, os escritos de


Justino guardam um silêncio quase que completo sôbre os escravos. Sàmente ao
terminar o Diálogo, é que êle declara, de passagem, que «os homens de todos os países,
livres ou escravos, se fôrem adeptos do Cristo

), saberão que com êle estarão no reino do céu, e beneficiar-se-ão de uma herança eterna
e imperecível. » (Diálogo, cap. 139.) Assim, no que concerne à escravidão, êste
apologista, que desempenhou um papel tão importante durante o período de constitução
do cristianismo, professa, desde o comêço, o ponto de vista que vai triunfar em seguida
no seio da Igreja. Em lugar da liberdade e da igualdade na Terra, promete aos escravos a
beatitude no outro mundo...

A obra de Justino marca uma nova fase no desenvolvimento da ideologia cristã. Nos
meados do século II, o cristianismo já aparece como uma religião completamente
separada do judaísmo, possuindo seus dogmas, seu próprio ritual e sua organização, se
bem que esta última ainda esteja longe do grau de centralização que ela irá adquirir
posteriormente. Os escritos de Justino são de grande importância, e esclarecem as fontes
do mito evangélico de Jesus. Sob êste aspecto, eles precedem imediatamente os
evangelhos canônicos.

O primeiro século do cristianismo foi um período excepcionalmente importante da sua


história. De seita judaica, transformou-se no decorrer de uma centena de anos em uma
religião independente, quase definitivamente constituída, e contando com numerosos
prosélitos. Foi durante êsse lapso de tempo que o mito do Deus tornado homem
começou a se formar e a evoluir. De Ser celeste (Apocalipse de João e Didaquê), e
passando por uma série de fases intermediárias (epístolas de Paulo), Jesus toma os
traços do divino carpinteiro de Nazaré, que resgatou sôbre a cruz os pecados dos
homens. (Justino.) N0E começos da segunda metade do século II, a «biografia»

•terrestre do Cristo, fundada nas profecias do Antigo Testamento, foi, enfim, teminada
nos evangelhos. Nesse momento, começam a se formar os dogmas e o ritual cristãos
(Dida quê), a escatologia cristã se elabora, transferindo para o outro mundo e para um
futuro indeterminado a punição dos ímpios e a recompensa dos justos. Tal evolução de
um dos temas principais do cristianismo primitivo embotava sua acuidade política, e foi
a premissa ideológica que facilitou em seguida a acomo. dação da Igreja, com o poder
imperial.

A composição e a estrutura das comunidades cristãs sofreram nessa época importantes


modificações. Puramente judaicas

As COMUNIDADES CRISTÃS...

161

no comêço, quanto ao seu elemento étnico (Apocalipse de João, Didaquê), essas


comunidades são cada vez mais completadas por fiéis de origem pagã (epístolas de
Paulo), até o momento em que Justino pôde, enfim, constatar que os pagãos eram muito
mais numerosos. No decorrer dêste período, o cristianismo mantém-se como religião
dos oprimidos e dos deserdados, fato êste que é confirmado por tôdas as fontes da
época. Os cristãos pertencentes às classes superiores eram então muito raros. Quanto às
pessoas simplesmente livres, parece que seu número nas comunidades cristãs começou a
aumentar apenas no fim do período que examinamos.

Êste lapso de tempo se caracteriza pela ausência da igreja, competindo o papel dirigente
nas comunidades cristãs aos profetas iluminados. (Dzaa quê e primeiras epístolas de
Paulo.) O aparecimento dos bispos e a constituição da futura hierarquia clerical
começam sõmente nos meados do século II. Não se constatam ainda, então, ligações
sistemáticas e organizadas entre as diversas comunidades, cujos contatos são
assegurados apenas pelas viagens ocasionais dos pregadores errantes. Era isso muito
natural, por causa da luta encarniçada que existia entre as várias seitas da nova religião.
As bases do futuro cânone só puderam ser lançadas, e a Igreja só pôde se constituir ao
cabo de um longo período de conflitos e disputas exacerbadas.

O cristianismo renuncia ràpidamente à sua oposição às autoridades, e se resigna com a


escravidão. Em lugat de reclamar a libertação real dos escravos, o que teria estado de
acôrdo com sua proclamação da igualdade de todos os homens, independentemente de
sua origem e de sua situação social, êle se limita a acentuar que, se -os homens são
iguais, isso acontece por êles serem, todos, pecadores, e promete o fim da opressão e da
escravidão não neste inundo, mas no outro. A atitude da religião cristã em relação à
riqueza evolui no mesmo sentido. O desprêzo dos bens terrenos cede lugar, pouco a
pouco, aos apelos à caridade, isto é, à esmola.

Que foi que favoreceu a difusão do cristianismo durante êste período? As causas disso
diferem muito das que asseguram o triunfo do nôvo culto nos começos do século IV. O
cristianismo do tempo de Constantino, com sua organização clerical e seus dogmas
fixados no Nôvo Testamento, distinguia-se muito daquele que aparece nas fontes
citadas anteriormente. As causas do compromisso entre a Igreja e o Império Romano no
século IV nada têm a ver com as causas que permitiram aõ cristianismo conquistar os
espíritos durante os primeiros séculos da nossa era.

A principal razão do êxito do cristianismo durante sua fase tnicial foi a seguinte: as
idéias por êle proclamadas correspondiam ao máximo ao estado de espírito das massas
na época da desa
162

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

gregação do sistema escravagista. Apesar das tendências conciliadoras do cristianismo,


êle era, então, entre tôda as religiões, a que protestava da maneira mais violenta contra a
ordem escravagista, e contra a cultura antiga. A luta ativa contra o poderoso aparato do
Império Romano, baseado na escravidão, não apresentava qualquer perspectiva real;
assistia-se à difusão do misticismo, da indiferença pela coisa pública, do desejo de
refugiar-se na vida privada, tendências que correspondiam aos cultos orientais. Na
competição com as religiões rivais, era o cristianismo que tinha as maiores
probabilidades de vencer, e isso porque, pelo menos nos seus começos, se distinguia de
tôdas as outras por sua oposição à ordem antiga. Produto da desagregação do sistema
escravagista, a religião cristã não podia utilizar em seu proveito a agravação da crise
dêste último.

Diferentemente das outras religiões, o cristianismo se eudereçava em primeiro lugar aos


deserdados. Por causa disso, foi êle freqüentemente tratado com escárneo pelos
escritores da Antigüidade, porém longe de ser uma fraqueza, isso constituiu seu lado
forte. Foi justamente o apoio de que gozava o cristianismo junto às massas oprimidas
que obrigou, no fim das contas, os imperadores romanos a reconhecerem a nova
religião, com o fim de utilizar sua influência para revigorar seu poder.

O êxito obtido pelo cristianismo entre as massas foi determinado pela solução, se bem
que ilusória, que êle indicava às massas submetidas a sofrimentos sem nome. Nas
condições concretas dos séculos 1 e II, enquanto não existia solução real para a situação
calamitosa da população, a exaltante promessa do reino de Deus não podia deixar de
encontrar um eco profundo. Quanto mais piorava o estado das camadas laboriosas, mais
os apelos escatológicos do cristianismo se impunham às multidões.

As afirmações dos apóstolos cristãos sôbre a igualdade de «todos em Cristo», tanto os


judeus, como os gregos, tanto os escravos, como os homens livres, não contribuiram
menos para a difusão do cristianismo entre os escravos e os pobres.

A nova religião não reivindicava a libertação dos escravos, mas êstes sentiam-se iguais
aos homens livres nas comunidades cristãs. Apesar do caráter legendário das listas de
bispos romanos, não é por acaso que os primeiros tinham nomes de escravos. Isto quer
dizer que os fiéis desta condição podiam ascender nas comunidades cristãs a postos
inacessíveis para êles em outro meio. Não se pode duvidar de que esta igualdade entre
crentes exercia também uma grande atração sôbre as massas laboriosas.

Outra razão do êxito da nova religião consistia no fato de que ela não se endereçava a
tal ou qual grupo étnico, mas a

AS COMUNIDADES CRISTÃS...

163

todos os homens sem exceção, coisa particularmente importante no Império Romano,


que era multinacional. Isto levou, por outro lado, o cristianismo a renunciar às
cerimônias rituais e aos sacrifícios. Os elementos do ritual descritos na Didaquê foram
estabelecidos 1nicamente para marcar a diferença entre a nova religião e o judaísmo, o
que favorecia também a propagação do cristianismo entre os pagãos.

O cristianismo soube, finalmente, utilizar ao máximo as tendências da época para o


sincretismo. Religião nova, independente dos cultos já formados, ela tomou emprestado
dêstes seus elementos mais atuantes sôbre as multidões, donde a preeminência que
acabou adquirindo sôbre tôdas as religiões rivais.
É o conjunto dêsses fatôres que explica a popularidade do cristianismo durante o
primeiro século da sua existência.
CAPÍTULO VI

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II

1. O IMPËRIO ROMANO SOB MARCO AURLIO E CÔMODO

A partir dos meados do século II e durante alguns decênios sàmente, a Igreja episcopal
se fortaleceu, os evangelhos foram compostos, o cânone do Nôvo Testamento estava a
ponto de ser constituído. E isso no decorrer de uma das mais ásperas lutas, não apenas
contra outras religiões, mas, também, contra diversas tendências cristãs. Nesta época, o
mito de Jesus de Nazaré, o Homem-Deus, assumiu sua forma definitiva. Exposta nos
evangelhos, canonizada pela Igreja, esta lenda não iria mais sofrer qualquer
modificação. A coincidência de tôdas essas circunstâncias autoriza a dizer que foi
durante êste período, relativamente breve, que o cristianismo se cristalizou, tanto do
ponto de vista ideológico, como quanto às suas formas de organização.

O rápido desenvolvimento da religião cristã nesta época foi determinado por uma série
de razões, das quais uma das principais foi o agravamento das contradições inerentes ao
Império Romano, um sensível enfraquecimento do poder imperial. No comêço de nossa
era, Roma não tinha sofrido, durante século e meio, qualquer invasão estrangeira que
oferecesse algum perigo. As campanhas levadas a cabo pelo Império não foram tão
exaustivas quanto as operações militares sob a República. Alguns movimentos de
libertação nacional, tais como a Guerra dos judeus, por exemplo, desenrolaram-se nas
regiões fronteiriças, mas foram fàcilmente dominadas pelas legiões romanas. Os
conflitos entre pretendentes ao título de Imperador eram raros; o único verdadeiramente
importante foi a guerra civil do ano 68 a 69. Ésses choques, sem o concurso das massas,
terminavam depois de uma ou duas batalhas. A Pax Romana, proclamada pelo poder
imperial, assegurou, assim, uma longa trégua às classes possuidoras do Império.

Mas as contradições políticas e sociais que tinham levado à instauração do regime


imperial não foram realmente resolvidas, foram recalcadas apenas. O acesso de ricos
senhores de escravos à categoria da nobreza senatorial romana ampliou a base social do
Império sem, todavia, abrandar sensivelmente a exploração das províncias. O
fortalecimento do aparêlho administrativo determinava o aumento dos impostos que
sangravam as cidades

165
166

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

e os campos. A política de nivelamento praticada pelo poder

imperial, o crescimento das concentrações urbanas de tipo antigo,

a introdução do direito romano nas províncias, e, em seguida,

a ampliação da prática da usura foram outros tantos fatôres

que contribuíram para a rápida desaparição das sobrevivências

patriarcais, cujo papel era ainda grande em muitas regiões do

Império. Ao mesmo tempo que as relações escravagistas,

assistia-se à difusão da opressão e da arbitrariedade, e crescia

a ruma das massas laboriosas, O desenvolvimento da produção

mercantil conduzia à intensificação da exploração do trabalho. Mas, se os romanos se


beneficiavam de uma trégua, uma

vez que os combates cessaram quase que totalmente nas fronteiras do Império,
exceptuadas as campanhas de Trajano contra os dácios no comêço do século II, os
povos vizinhos tiravam igualmente partido dessa situação, desenvolviam suas fôrças
produtivas, formavam federações. Durante um século, a relação das fôrças entre o
Império Romano e os países vizinhos se modificou inegàvelmente em detrimento do
primeiro.

As contradições, tanto internas como externas, assumiram um caráter particularmente


grave sob Marco Aurélio, êsse « sábio entronizado», que reinou do ano 161 ao ano 180.
Dêsses 19 anos, 17 foram marcados por guerras contínuas. Inicial- mente, foram os
partas que irromperam nas províncias orientais do Império, e, quebrando a resistência
das guarnições romanas, prosseguiram em sua marcha até a Síria. Para conter, e, depois,
esmagar o adversário, foi necessário enviar ao Oriente quase tôdas as legiões
estacionadas no Reno e no Denúbio. A guerra com os partas durou cinco anos e se
transformou em um conflito ainda mais longo e mais perigoso com os marcomanos e
outras tribos germânicas, e também com as tribos trácias e sarmatas do Danúbio,
conflito êsse que durou até a morte de Marco Aurélio. Esta guerra devastou, não as
longínqüas províncias orientais, como se deu anteriormente, mas os centros vitais do
Império, inclusive a península itálica que, durante dois séculos e meio, não tinha sido
arena de qualquer invasão. Os historiadores da Roma antiga comparam a guerra contra
os marcomanos à invasão da Itália por Anibal que pôs em perigo a própria existência do
Estado Romano. Esta guerra exigiu tal tensão de tôdas as fôrças, que as autoridades se
viram mesmo obrigadas a recrutar gladiadores e escravos. Por outro lado, uma epidemia
de peste, trazida do Oriente, vitimou o próprio Marco Aurélio, e causou perdas imensas.

Foi sob o reinado dêste imperador que as guerras contra outros povos coincidem, pela
primeira vez, com o aparecimento dos movimentos de libertação. No ano de 172,
explodiu no Egito a revolta dos bucoles. Destruindo total e râpidamente tôda uma legião
romana, êles puseram em perigo Alexandria,

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SéCULO 11 167

capital egípcia. Avidius Cassius, um dos maiores generais romanos da época, só os pôde
conter com duros esforços. Quase na mesma época desta insurreição, outra estalou no
norte da África, na Mauritânia. Os rebeldes conseguiram ocupar quase todo o território
de sua província e, atravessando o estreito de Gibraltar, devastaram várias regiões da
Espanha. No ano de 175, teve lugar a rebelião dirigida por aquêle mesmo Cassius que,
nesse meio tempo, concebera o plano de se fazer proclamar imperador. O Govêrno
Romano só conseguiu esmagar esta revolta depois de uma luta encarniçada.

Todos êsses acontecimentos comprometeram terrivelmente

o prestígio do poder imperial. Durante o reinado do filho de Marco Aurélio, Cômodo


(180-192), as relações entre o Senado, que representava os interêsses da nobreza
escravagista, e o Imperador, se envenenaram consideràvelmente. Até então, os
Antoninos tinham procurado governar o Império apoiando-se no Senado, para dar, pelo
menos, a impressão de que a antiga ordem constitucional era observada, mas Cômodo,
ao contrário, deu preponderância às tendências absolutistas, e o poder imperial se foi
transformando em ditadura militar aberta. Cômodo se apoiava principalmente em sua
guarda pretoriana. No ano de 192, os conspiradores conseguiram matá-lo, e, com êle,
extinguiu-se a dinastia dos Antoninos, que foi substituída pela dos Severos, depois de
uma curta guerra civil.
As pesadas conseqüências de tôdas essas guerras, as revoltas populares e a agravação
das contradições no seio das classes dominantes provocaram o enfraquecimento do
poder imperial e exigiram, com urgência, a ampliação e o fortalecimento de sua base
política. Por essa ocasião, alguns meios já viam no cristianismo um sustentáculo
potencial para o Império, é o que Celso deixa transparecer claramente em seu Discurso
Verdadeiro. Quanto ao cristianismo, o crescimento ininterrupto do número de seus
adeptos no decorrer do século II, assim como a lógica de sua evolução, o impeliam
inevitàvelmente para a reconciliação com o poder imperial.

Os elementos das camadas possuidoras, das quais uma parte, abalada pela crise, aderira
à nova fé, começam então a desempenhar um papel cada vez mais importante nas
comunidades cristãs

que não cessam de aumentar. É das suas fileiras precisamente que saíam os bispos e
outras personagens do clero em via de formação. A constituição do episcopado acelerou
a aproximação entre a Igreja e o poder. De sorte que tôda uma série de circunstâncias
agiam, tanto de um lado como do outro, em favor da aliança entre o cristianismo, e o
Império.

Notemos, contudo, que muitos obstáculos se opunham ainda ao reconhecimento do


Império pela Igreja e à santificação do poder imperial por sua autoridade. E preciso não
esquecer que

168

A ORIGEM DO CRISTIANISMO
nos meados do século II, menos de cem anos tinham decorrido désde o aparecimento do
cristianismo primitivo anunciandø a queda próxima da «grande prostituída, Babilônia».
A popularidade da nova religião, sobretudo entre os oprimidos e os deserdados,
tornavam-na também muito suspeita aos olhos dos nobres. Durante seu período inicial,
o cristianismo tinha dado maior relêvo às promessas messiânicas e escatológicas, e seu
programa social era nitidamente oposto ao regime.

Além disso, apesar do rápido crescimento do seu número, seus fiéis eram ainda
numèricamente inferiores aos adoradores de outros cultos, do mitraísmo por exemplo.

Na situação histórica concreta da segunda metade do s&ulo II, poderia dar-se, no


melhor dos casos, apenas uma conciliação entre a Igreja, cada vez mais poderosa, e o
Império Romano, cada vez mais fraco, e não a transformação do cristianismo em
religião do Estado. Ambas as partes buscavam um ponto de compreensão. As
declarações dos teólogos sôbre a impossibilidade, em princípio, de conciliar o
cristianismo com

o Império «pagão», suas descrições das brutais perseguições de que teriam sido vítimas
os cristãos durante o século II são muito exageradas, e as fontes de que se dispõe não as
confirmam. E certo que em algumas cidades deram-se choques entre as autoridades
romanas e os comunidades cristãs. Um conflito dêsse gênero ocorreu sob Marco
Aurélio, em 177, em Lugdunum (nome latino de Lyon) e foi descrito por Eusébio. (Ob.
cit., V-1.) Porém, o clima geral era antes de tolerância diante tanto do cristianismo,
como de tôdas as outras religiões. Não foi por acaso que, às vésperas do século III, o
apologista Tertuliano qualificou Marco Aurélio de «defensor dos cristãos».
(Apologétka, V.)

Apresentaremos mais adiante uma série de outros testemunhos sôbre o fato de que as
comunidades cristãs eram legais em muitas das cidades do Império Romano.

2. O JESUS EVAGLICO

Durante a primeira metade do século II, verifica-se uma excessiva pobreza de fontes
cristãs e um silêncio quase total dos escritores greco-romanos sôbre a nova religião,
porém esta situação se modifica nos começos da segunda metade dêsse século. Os
principais documentos relativos à história do cristianismo, que datam dêsses períodos,
são: 1) os livros menos antigõs dc Nôvo Testamento (os evangelhos e os Atos dos
Apóstolos); 2) as obras de Irineu e de Hermas; 3) os escritos de autores não cristãos
(Celso e Luciano). Com tal abundância de fontes, podemos apreender não sômente a
tendência fundamental da evolução do cristianismo, mas ainda a luta, em seu seio, das
O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO a

169

diversas correntes, freqüentemente contraditórias e hostis umas às outras. Entre êsses


documentos, os evangelhos são os que devem ocupar, em primeiro lugar, nossa atenção,
uma vez que o mito de Jesus, Homem-Deus, encontra nêles sua mais completa
expressão, o que explica, doutra parte, o considerável papel que êles desempenharam no
desenvolvimento ulterior da ideologia cristã.

No capítulo consagrado às fontes, já assinalamos que os evangelhos canônicos


constituem uma ínfima parte apenas das numerosas narrações sôbre a vida de Jesus, que
estava em voga nas comunidades cristãs primitivas. Êsses evangelhos não canônicos
contavam, cada um a seu modo, a doutrina e as peripécias da vida terrestre do pretenso
fundador do cristianismo. Não são êles relatos de testemunhas oculares. Foram todos
compostos pelo menos um século após os acontecimentos que pretendem descrever.
Aliás, não se propunham êles a finalidade de transmitir à posteridade o relato
conseqüente de acontecimentos reais: escritos religiosos eram destinados a ser ouvidos
durante as assembléias dos crentes. Centralizam a atenção não sôbre os diferentes
aspectos da «biografia» terrestre do Cristo, mas sôbre os «milagres» realizados por êle,
e sôbre seus ensinamentos.

O pesquisador objetivo, desejoso de extrair dos evangelhos canônicos o máximo de


dados para a reconstituição da história do cristianismo primitivo, deve, antes de tudo,
estabelecer a data do seu aparecimento. A tradição da Igreja faz remontar os evangelhos
aos meados do século 1, mas tôda uma série de considerações torna esta tese inaceitável.
Já mostramos anteriormente que os documentos mais antigos da literatura cristã nada
dizem sôbre a vida terrestre de Jesus, e que só se encontram referências aos evangelhos,
nessa literatura, no segundo quarto do século II. Se os evangelhos canônicos
remontassem realmente aos meados do século 1 e fôssem, portanto, anteriores às
epístolas do Nôvo Testamento, a imagem de Jesus, nestas últimas, não se encontraria
em contradição com a versão evangélica. As epístolas atribuídas ao apóstolo Paulo não
citam, por exemplo, os provérbios e as parábolas dos evangelhos, o que teria sido
impossível, se êstes últimos já existissem na época da• composição das epístolas.
Endereçando-se a seus adversários, o autor das mensagens paulinianas não teria
deixado, se conhecesse de fatos os evangelhos, de reproduzir as «palavras do Senhor»,
como argumentos em apoio às suas afirmações. A ausência nas epístolas paulinianas de
referências às palavras pronunciadas por Jesus nos evangelhos é uma das mais
inatacáveis provas de que êstes foram compostos depois daquelas.

Os evangélicos canônicos abundam em incoerências, tanto do ponto de vista histórico,


como do geográfico; êles estão

170

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

cheios de contradições. Os autores dêsses escritos, oriundos da Palestina, segundo a


tradição da Igreja, não conheciam, com tôda a evidência, os lugares que descrevem.
Mateus, por exemplo, fala do «Mar da Galiléia» (XV, 29) e Marcos diz que «grandes
ondas» nêle se levantavam (IV, 37), porém, na realidade, tal mar é apenas o pequeno
Lago de Genesareth. Segundo os evangelistas, levava-se a pastar, na Palestina, enormes
rebanhos de porcos, de, aproximadamente, duas mil cabeças (Marcos, V, 13; Mateus,
VIII, 30 etc.), mas todo mundo sabe que os judeus consideravam êsses animais impuros,
e que não õs comiam. Em Mateus, a mostarda, essa pequena planta anual, é «n1aior que
os legumes e torna-se uma árvore, de sorte que as aves do céu vêm se aninhar nos seus
ramos.» (Mateus, XIII, 32.) Grande número de incoerências e de contradições dêsse
gênero já tinham sido apontadas na Antigüidade por Porfiro, crítico do cristianismo.

Os poucos conhecimentos sôbre a Palestina, que os autores dos evangelhos revelam,


não lhes vieram de observações pessoais, mas da leitura do Antigo Testamento no qual
êles se mostram, aliás, muito versados. Vê-se, por isso, que eram judeus da diáspora.
Familiarizados com a literatura religiosa judia e possuindo noções sôbre a Palestina,
absorvidas nos livros sagrados, êles a tomaram como o teatro das atividades do
fundador lendário do cristianismo: segundo o dogma, o Cristo devia nascer e agir na
Palestina, devendo sua biografia confirmar ao pé da letra as predições dos antigos
profetas hebreus sôbre a vinda do Messias.

Diferentemente dos teólogos católicos que se prendem à letra dos evangelhos, os


protestantes rejeitam as contradições flagrantes e as inexatidões dêsses escritos, e
procuram salvar o que lhes parece possível: a versão da existência de Jesus enquanto
personagem histórica cuja predicação serviu de base à religião crístã. Afirmam, e com
êles muitos dos historiadores burgueses do cristianismo, que, se não se admitisse a tese
sôbre a existência de Jesus, não seria possível explicar a coincidência das informações a
seu respeito nos primeiros documentos cristãos, nem o aparecimento da religião cristã.
Lembram, em apoio de sua tese, o exemplo de Maomé, fundador do islamismo e
personagem histórico bastante real. Se se admite isto quanto a êste, por que não se há de
admitir também, dizem êles, a existência do fundador do cristianismo, que pregou e foi
crucificado na Palestina? Alguns pesquisa- dores progressistas, como A. Robertson,
professam aproximadamente êsse mesmo ponto de vista, apresentando Jesus como um
chefe revolucionário, que tombou na luta contra o poder dos ricos.
o CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II

171

Notemos, neste ponto, que a resposta à pergunta para se saber se o predicaclor


executado em Jerusalém no comêço de nossa era existiu ou não, não deve ser
considerada como o principal critério da análise marxista ou não marxista do
cristianismo primitivo, tal como se faz freqüentemente nas obras de vulgarização sôbre
êste assunto. Basta dizer que alguns partidários ativos da teoria mitológica (Arthur
Drews, Bem jamin Smith) negam a existência real de Jesus, com o único objetivo de
purificar o cristianismo, à semelhança dos representantes da Escola Teológica de
Tubingue, de suas incoerências mais evidentes, e de, assim, torná-lo menos vulnerável à
crítica racionalista. Substituem os velhos preconceitos por «preconceitos muito novos e
também mais repugnantes e mais infames.» Foi por isso que Lenine condenou tão
categ&icamente A. Drews, a respeito do qual afirmou: «É um reacionário declarado,
consciente. . . »1 Ao mesmo tempo, Lenine mostrava aos comunistas a necessidadá da
aliança com a parte progressista dos historiadores burgueses do cristianismo.

Assinalemos, por outro lado, que Friedrich Engeis, em tôdas as suas obras sôbre o
cristianismo primitivo, nunca propôs a questão da existência histórica de Jesus. A.
Robertson, citado acima, admite, por seu lado, o caráter histórico do fundador do
cristianismo, o que não o impede de procurar resolver o problema da origem desta
religião, partindo de posições marxistas.

A tarefa primordial da análise marxista do problema da origem do cristianismo consiste


em estudar as causas concretas, reais, históricas do nascimento da religião cristã, em
estudar as modificações sofridas pela ideologia cristã, fundando-se na evolução social e
política do Império Romano, em determinar as raízes de classe dos diversos
agrupamentos no seio do cristianismo, em apresentar, enfim, a crítica dos princípios
sociais desta religião que «justificaram a escravidão antiga, enaltecendo a servidão
medieval, e que se julgam também na necessidade de defender a opressão do
proletariado, ainda mesmo que o façam com certo ar de aflição.»2 Isto não significa que
o pesquisador marxista seja indiferente ao problema de se saber se Jesus existiu
realmente: sua solução à luz da ciência histórica dá um golpe fulminante nos dogmas da
Igreja.

Depois destas observações preliminares, tratemos de avaliar os principais argumentos a


favor e contra a tese da historicidade de Jesus. Seus partidários acham que, sem o
reconhecimento de um núcleo real no relato da vida de Jesus, não
1 V. LENINE: Du Rôle da Mate’rialisrne Mi1tant (1922). Ver Karl Marx ei sa Doctrine,
Ëd. Sociales, Paris, 1953, pág. 88.

2 K. MARX e F. ENGELS: Sue la Religion, d. Sociales, Paris,

1960, pág. 22.

172

A ORIGEM DO CEISTIANISMO

se poderia compreender a gênese da tradição evangélica, e adiantam o fato de que os


adversários do cristianismo, na Antigüidade, tanto do lado greco-romano, como do
judaico, não emitiram a menor dúvida a êsse respeito.

Antes de tudo, esta argumentação peca pelo seu método de pesquisa, radicalmente falso.
Os partidários da historicidade de Jesus esforçaram-se para depurar os escritos cristãos
de que dispomos de suas contradições mais evidentes e, tendo executado essa tarefa
mais ou menos bem, pretendem, depois disso, que aquilo que sobrou é uma fonte digna
de confiança. Procedendo dêsse modo pode-se «demonstrar», e até mesmo com mais
êxito, que personagens da mitologia grega tais como Hércules e Teseu, ou Rômulo,
fundador lendário de Roma, e outras figuras também «históricas», existiram realmente.
Aliás, no mundo antigo, acreditava-se nessas personagens tão firmemente quanto os
meios cristãos dos nossos dias acreditam na realidade de Jesus Cristo.

Os teólogos protestantes, como o nota com justeza S. Lublinski, «admitem


simplesmente a existência terrestre de Jesus como uma premissa, e esperam restaurar
sua biografia excluindo dos evangelhos os traços mitológicos e outros acessórios.
Porém, ninguém pode assegurar que tais traços não fôssem, desde o comêço, próprios
da imagem de Jesus, uma vez que, nos evangelhos, não é de uma criatura humana que
se trata, mas de um Homem-Deus. Diante de semelhante ousadia (Verwegenheii), a
hipótese do adversário, qualquer que ela seja, empalidece. »3

No centro dos evangelhos se encontra o relato da paixão e da ressurreição do Cristo. O


resto não passa de acréscimo. A pregação cristã se dedicava essencialmente a comunicar
a «boa nova», anunciando que Jesus resgatou os pecados dos homens com sua morte, e
subiu ao céu, para se assentar à «direita de Deus. » A «biografia» do Cristo nos
evangelhos é apenas uma urdidura de profecias do Velho Testamento e narrações de
«milagres» por êle realizados; se se faz abstração das profecias e dessas narrações
destrói-se aquela urdidura. Visto que, nos escritos cristãos mais antigos, Jesus figura
não na qualidade de homem, mas na de divindade, não é claro que o relato dêsses
milagres representa nos evangelhos o primeiro núcleo, enquanto que os detalhes
biográficos foram acrescentados posteriormente?

As alusões a Jesus nas mais antigas fontes do cristianismo e os detalhes que foram
acrescentando no decorrer dos anos à sua «biografia» não podem ser explicados pela
sua existência

3 S. LUBLINSKI: Die Entsiehung des Chyistentums aus dee Antiken Kultur, Jena,
191O pág. 3.

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II 173


real, se assim não fôsse êsses detalhes teriam sido expostos desde o comêço naqueles
escritos, Porém, foi o contrário que aconteceu; o cristianismo sofreu uma longa
evolução no decorrer do primeiro século de sua existência, notadamente, a imagem de
Jesu que, do Cordeiro do Apocalipse de João, foi se transformando no Homem-Deus
dos evangelhos. E preciso não esquecer também que a questão da existência de Jesus
nunca foi puramente teórica. Ela sempre interessou à Igreja, que monopolizou, durante
séculos, os documentos antigos e o estudo dêles, não recuando diante de qualquer
falsificação ad majorem Dei gloriam, pois, para a Igreja, a demonstração da
historicidade de Jesus sempre foi uma questão de vida, ou de morte. Um décimo apenas
dos evangelhos mencionados pelos antigos autores chegou até nós; a maior parte dos
outros foi destruída pela Igreja triunfante, no século IV. Basta constatar isto, para se
compreender que só foram conservados os textos conformes com a versão eclesiástica
da vida de Jesus.

A relativa abundância de informações sôbre Jesus em uma só e mesma fonte não pode
também servir de prova de sua existência histórica, pois esta fonte mesma torna-se
pouco segura, porquanto o saeculi silentium, o mutismo dos contemporâneos, dos
autores judeus e greco-romanos do século 1 sôbre Jesus, constitui uma argumento muito
forte contra a tese da sua historicidade.

Sob êste aspecto, o paralelo entre Jesus e o fundador do islamismo é perfeitamente


legítimo. Se não tivéssemos outras informações sôbre as atividades de Maomé além das
do Corflo e dos relatos dos seus milagres, se o fato da sua existência não fôsse
confirmado por fontes bizantinas da época, encontrar-se-iam muitos historiadores
dispostos a considerá-lo como personagem real? Ë ainda muito importante não esquecer
que, segundo a tradição muçulmana, Maomé é apenas um grande profeta, portanto, um
ser humano, enquanto que, para o cristianismo, o Cristo é Deus. A realidade de Jesus é
tão pouco demonstrada, como a de Buda.

A fé dos antigos cristãos na divindade do Cristo é também um argumento irrefutável


contra a suposição de que êle existiu. Os primeiros escritos do cristianismo, tais como o
Apocalipse de João, as mais antigas epístolas paulinianas etc., ignoram a vida terrestre
de Jesus.

Ele aparece nêles na qualidade de um ser sobrenatural. Ora, é precisamente nesses


escritos que deveriam ter sido conservadas as mais vivas recordações sôbre a vida do
fundador do cristianismo.

Tôdas essas razões autorizam a negar aos evangelhos canônicos a qualidade de fontes
válidas para a «biografia» de Jesus. Isto não significa que neguemos seu valor para o
estudo da
174

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

ideologia cristã a partir da segunda metade do século II, e, notadamente, para o estudo
da história da constituição definitiva do mito de Jesus. Dito de outro modo: os
evangelhos não fornecem qualquer argumento válido em apoio da tese sôbre a
divinização do Jesus-Homem; fornecem, ao contrário, grande número de argumentos a
favor da transformação do Jesus-Deus, em homem. Comparando-se os sinóticos, com as
passagens correspondentes dos mais antigos escritos cristãos, evidencia-se a última fase
da gênese do mito em questão, que é um extravagante emaranhado de elementos
messiânicos judaicos, e de empréstimos de diversos cultos orientais de deuses mortos e
ressuscitados. Diferentemente dos primeiros escritos cristãos, os evangelhos nos
permitem seguir o processo de elaboração do ritual cristão.

Os dados sôbre a «vida» de Jesus, comunicados pelos evangelhos, podem ser divididos
em três grupos. Ao primeiro, pertencem as citações das palavras dos profetas do Antigo
Testamento, que são apresentadas à guisa de «argumentos». Ao segundo, as descrições
dos milagres e, particularmente, das curas efetuadas pelo Cristo, «dados» êstes que têm
lugar de destaque nos evangelhos. Ao terceiro, enfim, os episódios de sua morte, e da
sua ressurreição. Para penetrar no laboratório dos mitos cristãos, procuremos, antes de
tudo, analisár o primeiro e o terceiro grupo dessas «informações», tais como as
encontramos, por exemplo, no Evangelho Segundo Mateus, que é o de maior autoridade
para a Igreja.

No primeiro capítulo, Mateus descreve o nascimento de jesus, apresentando, em


primeiro lugar, a genealogia do fundador lendário da religião cristã. Segundo os
cálculos do evangelista, quatorze gerações sucederam-se, desde Abraão, até David,
outras tantas, desde David, até o cativeiro babilônico, e mais outras tantas, dêste
cativeiro, até Cristo. O primeiro capítulo trata no final da Imaculada Conceição, e
Mateus não esquece, naturalmente, de se referir a êsse respeito ao profeta Isaías: «Eis
que a virgem ficará grávida, dará à luz um filho, e dar-lhe-ão o nome de Emanuel.»
(Mateus, 1, 23.)

Os cálculos genealógicos de Mateus visam a um objetivo bem determinado, o de


demonstrar, de acôrdo com o messianismo judaico ortodoxo, que Jesus era um
descendente direto do Rei David. A divisão da história dos hebreus em três períodos
iguais: até o Rei David, até a destruição do primeiro templo de Jeová, até Cristo, deveria
servir de prova suplementar do papel messiânico de Jesus. As quatorze gerações
compreendidas em cada período não se encontram aí por acaso, pois quatorze é o dôbro
de sete, e 7 era um número sagrado entre os antigos hebreus.

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SéCULO II 175

A inconsistência total dessa genealogia é evidente. Mesmo omitindo-se o fato de que ela
contradiz aquela, não menos gratuita, dada por Lucas, ela não se mantém de pé, do
ponto de vista da lógica mais elementar. Não se poderia dizer, por outro lado, que ela
atesta a descendência de Jesus em linha reta de David, uma vez que é José, espôso de
Maria, que tinha por ancestral o Rei David, enquanto que, segundo Mateus, Jesus
nasceu não de José, mas graças à intervenção do Espírito Santo. O autor dêste
evangelho não foi capaz, simplesmente, de fazer remontar a genealogia do Cristo por
linha masculina até David e, ao mesmo tempo, atribuir-lhe uma origem divina,
«imaculada». O primeiro capítulo de Mateus representa, portanto, uma tentativa de
conciliar duas versões inconciliáveis da origem de Cristo: a do Antigo Testamento,
segundo à qual seria êle uma descendente do Rei David, e a versão pagã, que afirmava a
natureza divina do deus morto e ressuscitado.

A referência à profecia de Isaías é também estropiada. A passagem citada encontra-se


efetivamente no livro dêsse profeta (VII, 14), mas, no contexto, ela não anuncia a vinda
do Messias. A palavra hebraica alma nessa passagem significa «mulher jovem», e não
«virgem». E Isaías nada diz aí sôbre

o Messias: «Mas, antes que o menino saiba rejeitar o mal, e escolher o bem, o país do
qual tu temes os dois reis será abandonado.» (Isaias, VII, 16.) Isaías não atribui nada de
sobrenatural ao seu nascimento, êle prediz que a criança verá a luz em uma época que
precede de sete séculos a data dos evangelhos e diz, aliás, que o hão de chamar de
Emanuel. Para eliminar esta contradição, Mateus pretende que um anjo visto em sonho
por José lhe ordenou que desse ao menino o nome de Jesus, que quer dizer em hebreu
«Deus Salvador».,

Portanto, nada neste capítulo pode servir para confirmar a historicidade de Jesus. Ao
contrário, sua genealogia, a concepção imaculada, a citação de Isafas, o anjo que
apareceu a José, demonstram que Mateus procurou, bastante desajeitadamente aliás,
juntar as profecias sôbre o Messias, e os elementos dos cultos orientais, o que nos
permite discernir fàcilmente as partes constitutivas do mito de Jesus.

Procurando reconstituir os diversos elos originários dêsse mito, devemos notar, de


início, que o Evangelho Segundo Marcos, o mais antigo dos sinóticos, nada diz sôbre a
genealogia do Cristo, nem sôbre o seu nascimento, nem sôbre a sua infância. Tudo leva
a crer que, no momento da composição dêste evangelho canônico, a lenda sôbre a vida
terrestre de Jesus ainda estava longe de ser terminada. Ela só foi completada nos outros
sinóticos.

O segundo capítulo do Evangelho Segundo Mateus dá-nos as informações seguintes:


Jesus nasceu em Belém, no tempo do
176

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

Rei Herodes; seu nascimento foi anunciado pelo aparecimento de uma estrêla, e magos
do Oriente vieram adorá-la; tendo sabido disto, o Rei Herodes ordenou a matança de
tôdas as crianças de menos de dois anos, em Belém; José, avisado por um anjo, fugiu
secretamente com sua família para o Egito, onde ficou até a morte de Herodes, depois
retornou a Israel e se fixou em Nazaré.

Todos êsses pormenores, ausentes em Marcos, são contraditórios, e em nada concordam


com os fatos históricos conhecidos. O Rei Herodes morreu quatro anos antes da nossa
era. Mateus afirma que Jesus nasceu em Belém, baseando-se na profecia de Miquéas, no
Antigo Testamento, segundo a qual o Messias deveria nascer justamente lá. (Mique’as,
V, 2 -

O estabelecimento de José em Nazaré corresponde igualmente a outra profecia do Velho


Testamento. (Juízes, XIII, 5.) A mesma coisa se dá quanto à fuga para o Egito: no Livro
de Oséas (XI, 1) está dito que Deus chamou seu Filho do Egito. O episódio da fuga para
o Egito foi introduzido no evangelho nicamente para adaptar a vida de Jesus às
predições de Oséas. No Evangelho Segundo Lucas não se fala de magos, mas de
pastores (II, 8), aos quais um anjo anunciou o nascimento do Messias; e está dito aí que
êles o encontraram numa mangedoura, pormenor ausente no Evangelho Segundo
Mateus.

Vemos, pois, que as informações sôbre a vida terrestre de Jesus foram inventadas pelos
autores dos sinóticos, com o objetivo de confirmar as profecias do Antigo Testamento.
É característico que cada um dêsses «acontecimentos» é seguido da frase: «Tudo isso
acontece a fim de que se cumpra o que

o Senhor tinha anunciado pelo profeta.» Êste «a fim de», que é omitido na tradução
sinodal russa, mostra claramente que a biografia de Jesus nos evangelhos foi construída
a golpes de profecias a fim de evitar possíveis objeções da parte dos adeptos do
judaísmo.

As contínuas referências dos evangelhistas aos profetas do Velho Testamento atestam


que êles eram bastante versados nesse domínio. Isto não os impede, coisa significativa,
de modificar tal ou qual passagem do Antigo Testamento, para apoiar o que êles
avançam, como no caso da referência de Mateus, a Isaías. Dá-se o mesmo com as
palavras de Oséas, reproduzidas acima. Em Oséas, trata-se do êxodo dos hebreus do
Egito, pelo menos segundo o contexto. Isto pôsto, as palavras «meu Filho»
subentendiam não o futuro Messias, mas o povo de Israel, era uma alusão do passado, e
não uma profecia. Mas, o autor do evangelho tinha necessidade de conciliar as
predições sôbre Belém e Nazaré; a estada de Jesus no Egito devia, além disso, se
associar no pensamento dos

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II 177

hebreus, à atividade do seu lendário legislador para, dêsse modo, acentuar o papel
messiânico de Jesus.

O modo pelo qual os autores dos evangelhos falam de Nazaré não é menos
característico. Seu nome não figura no Antigo Testamento. Os autores judeus do século
1 também nada dizem sôbre ela, se bem que êles se façam notar (particularmente Flávio
Josefo) pela amplitude de suas informações sôbre o pequeno país que era a Judéia.
Ouve-se falar de Nazaré, pela primeira vez, nas fontes que datam do século III. Ora, nos
evangelhos, Nazaré é chamada de «cidade». (Mateus, II, 33; Lucas, 1, 26; II, 39, etc.)
Não parece, portanto, que Nazaré tenha sido uma cidadezinha perdida que pudesse ser
ignorada por todos os historiadores da Judéia.

Porém, por que se encontra êsse nome tantas vêzes nos evangelhos? Para explicar isso,
convém lembrar que no Livro dos Juízes, no Antigo Testamento, fala-se, por duas
vêzes, que Sansão será o «nazareno de Deus». A raiz dessa palavra em hebráico, nazir,
significa um justo cuidadoso na observância estrita de certos ritos. Os autores dos
evangelhos não conheciam a Judéia senão pelos textos do Antigo Testamento e
achando, visivelmente, que «nazareno» significava originário de Nazaré, deram êsse
nome ao lugar do nascimento do Cristo, sem sequer suspeitar que semelhante localidade
ou vila não existia na Judéia.
As observações relativas aos dois primeiros capítulos do Evangelho Segundo Mateus
permitem enunciar já várias conclusões bastante importantes. Se bem que o Evangelho
Segundo Mateus contenha quase todos os elementos essenciais do mito de Jesus
Homem-Deus, êste mito ainda não encontrou nêle sua última expressão. Êle continuou a
evoluir, enriquecendo-se com pormenores ausentes neste evangelho, que é mais curto
do que os outros.

Os sinóticos descrevem, no início, Jesus como sendo um homem que tem o dom da
profecia e da cura, e atribuem-lhe, assim, sômente as qualidades que, segundo as
crenças dos judeus, eram comuns a todos os profetas. A única diferença é que em Jesus
êsse dom era muito mais poderoso que nos profetas precedentes, João Batista inclusive.

Só algum tempo depois, tal como Mateus apresenta a coisa (XVI, 16), é que os
discípulos de Jesus, impressionados pelos milagres do seu mestre, decidiram que êle
não era um simples profeta, mas o «Cristo, o Filho de Deus vivo», conclusão emitida
nesse evangelho pelo apóstolo Pedro. Nos capítulos seguintes, Jesus é quase sempre
chamado de Filho de Deus, e Mateus dá menos relêvo aos milagres operados por êle, do
que aos elementos da religião cristã que a separam do judaísmo, tais como as predições
de Jesus sôbre o martírio

178 A ORIGEM DO CRISTIANISMO


que o aguardava, a descrição do seu julgamento, a crucificação

e a ressurreição. Tudo isto era estranho ao judaísmo ortodoxo,

segundo o qual’ a vinda do Messias significaria, antes de tudo,

o triunfo definitivo da «fé verdadeira».

Os evangelhos sinóticos revelam assim o traço distintivo da mitologia cristã: a


tendência para criar uma divindade sincrética, ünindo os traços do Messias anunciado
pelos profetas do Antigo Testamento, aos dos deuses mortos e ressuscitados dos cultos
orientais. O adicionamento de diversos elementos à imagem de Jesus mostra que a
evolução do cristianismo tendia para a transformação de Deus em um ser humano, e não
para a divinização de um profeta judeu que tivesse existido realmente.

A harmonização de traços tão heterogêneos estava eriçada de dificuldades cujos


vestígios se discernem nos diversos evangelhos. Em Mateus, por exemplo, Jesus declara
que não foi «enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel» (XV, 24), enquanto
que no final dêsse mesmo evangelho êle encarrega seus discípulos de batizar «tôdas as
nações» (XXVIII, 19), ainda que no capítulo X, versículo 3, êle tenha proibido aos
apóstolos de «irem aos pagãos». As freqüentes referências de Mateus aos profetas
hebreus do Antigo Testamento não o impedem de se rebelar enèrgicamente contra o
judaísmo. Sua atitude profundamente hostil em relação aos «publicanos», recebedores
de impostos (V, 46), não quadra com a afirmação de que êles «precederão a muitos
outros no reino de Deus.» (Mateus, XXI, 31.) As palavras de Jesus: «Não vim trazer a
paz, mas a espada» (X, 34), contradizem, com tôda evidência, estas outras palavras
muito conhecidas: «Todos os que lançarem mão da espada, pela espada morrerão.»
(Mateus, XXVI, 52.)

As contradições que acabamos de assinalar em Mateus, e aquelas, muito mais


numerosas, entre êle e os outrãs evangelhos, não podem ser explicadas pela imperícia
dos seus autores. A coisa não é assim tão simples. Os evangelhos foram o complicado
produto de um compromisso entre diversas tendências no seio do cristianismo. Eis por
que êles conservam os traços dessas lutas.

O quarto evangelho canônico, o de João, descreve a vida terrestre de Jesus de uma


maneira muito diferente da dos três sinóticos. Nêle, procura-se provar a natureza divina
de Jesus, não invocando a imaculada conceição, mas afirmando que João Batista viu «o
Espírito descer do céu como uma pomba e parar sôbre êle.» (João, 1, 32.) Em João,
Jesus é quase inteiramente isento de traços humanos; só muito raramente o chama de
Filho do homem, e apenas nos primeiros capítulos.

Como no Apocalipse, Jesus é chamado muitas vêzes, neste evangelho, de «Cordeiro de


Deus». Mesmo à Maria, sua mãe,
O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SECULO II 179

êle dirigia estas palavras: «Mulher, que tenho eu contigo?» (II, 4), e diz de si mesmo
que êle é «o pão que desceu do céu (VI, 41), e que êle não é «dêste mundo». (João, VIII,
23.) Aos judeus que não crêem nêle, êle lança: «Tendes o diabo por pai» (VIII, 44), e
acentua: «Eu e o Pai somos um.» (João X, 30.)

No Evangelho Segundo João, o que o autor faz Jesus dizer é menos significativo, talvez,
do que aquilo que êle omite. Os autores dos outros evangelhos, ao descreverem sua
crucificação, atribuem-lhe a conhecida exclamação: «Meu Deus, meu Deus, por que me
abandonaste?» (Mateus, XXVII, 46; Marcos, XV, 34.) Porém, João achou impossível
ou inoportuno citar essas palavras. Lucas também. 1 claro que essas palavras atribuídas
a Jesus nos dois primeiros evangelhos canônicos, assim como sua omissão nos dois
últimos não provam absolutamente a hístoricidade de Jesus. Essas diferenças entre os
evangelhos mostram sômente que seus autores, ao criarem o mito do Cristo, obedeciam,
cada um por si, aos imperativos da propaganda.

Assim, o quarto evangelho distingue-se dos três anteriores, em primeiro lugar, pelo fato
de acentuar de tôdas as maneiras possíveis o caráter divino de Jesus. Sob êste aspecto,
êle está muito mais próximo do autor do Apocalipse, do que dos três outros
evangelistas.

Significará isto que o Evangelho Segundo João foi composto muito antes dos sinóticos?
Não. Porque muitas coisas neste texto contradizem semelhante suposição. O Evangelho
Segundo João proclama, logo nas primeiras linhas: «No comêço era o Verbo, e o Verbo
estava com Deus, e o Verbo era Deus. » Esta frase só se torna compreensível se se
subentende que o Verbo era filho de Deus, isto é, Jesus. Êste é justamente o pensamento
de João. Segundo sua opinião, Jesus não é uma criatura humana, e êle acentua por tôda
parte seus traços divinos. Segundo a doutrina dos gnósticos, que muito influiu na
formação da ideologia cristã, o intermediário entre os homens e Deus, e defensor dêles
diante de Deus é precisamente o Logos, isto é, o Verbo. Tudo leva a crer que a imagem
de Jesus no quarto evangelho não foi tirada do Apocalipse, onde o Cordeiro é sobretudo
o chefe dos exércitos celestes, mas, antes, que sofreu a influência do gnosticismo. Além
disso, o conteúdo dêsse escrito lembra melhor os sermões dos teólogos, do que as
parábolas edificantes dos sinóticos e as visões fantásticas do Apocalipse.

Devemos acrescentar que vários testemunhos militam também contra a atribuição ao


Evangelho Segundo João de uma data próxima da do Apocalipse, composto em meados
do século 1. Os evangelhos canônicos são mencionados pela pri

180 A ORIGEM DO CRISTIANISMO

meira vez nos escritos de Papias, apologista cristão da primeira metade do século II.
Eusébio assinala na obra citada (III, 39) que Papías criticava os escritos de Marcos e,
em parte, os de Mateus. Trata-se, evidentemente, dos seus evangelhos. Porém, êsse
mesmo Papias não diz qualquer palavra a respeito do Evangelho Segundo João: sem
dúvida, porque êle ainda não existia no seu tempo.
Os escritos não canônico também são muito importantes para a restauração da gênese
do mito de Jesus. O protoevangelho de Tiago, que chegou até nós integralmente, e em
diversas redações, descreve a infância e a juventude de Maria, até o nascimento de
Jesus. Muitos elementos do culto da Virgem baseam-se neste escrito, se bem que êle
não tenha sido incluído no cânone. O Evangelho de Pedro afirma, contràriarnente aos
sinóticos, que Jesus, na cruz, não sentia qualquer dor. Outros evangelhos, os dos judeus,
os dos ebionitas etc., vêem em Jesus não um Homem-Deus, mas o maior dos profetas.

Disso se conclui, portanto, que o mito evangélico assumia as mais diversas formas,
segundo as circunstâncias. O Jesus do quarto evangelho canônico difere do Jesus dos
sinóticos, e nestes últimos percebe-se muito bem, tanto os traços judaicos, corno os não
judaicos do Cristo. E mesmo no aspecto judaico do mito pode-se distinguir, de um lado,
a tendência a considerá-lo como um profeta, e, de outro, como o Messias.

Por conseguinte, o relato evangélico da vida de Jesus não pode ser considerado como
um relato histórico. Sua ausência nos primeiros documentos cristãos se explica
iinicamente pelo fato de que êle só foi composto nos meados do século II. Adotando os
quatro evangelhos e rejeitando, ao mesmo tempo, grande número de outros escritos
cristãos análogos, a Igreja canonizou a imagem de Jesus e tôdas as contradições dos
evangelhos. Pràticarnente, isso fêz parar a evolução ulterior dos mitos do cristianismo,
pelo menos no que concerne ao seu lendário fundador.

Pode-se elucidar, assim mesmo, a maneira pela qual se constituiu o mito evangélico? Se
o Cristo era um Deus que se transformou em homem, qual seria a origem dos
pormenores pseudo-reais atribuídos à sua pessoa, e por que foi necessário inventá-los?
Êste problema é muito importante, mas a ciência histórica não está ainda em condição
de dar a êsse tema uma resposta categórica e tão exata corno aquela referente à data dos
primeiros monumentos cristãos. É preciso dizer, contudo, que o enigma da gênese do
mito de Jesus torna-se cada vez mais claro.

Devemos sublinhar, antes de tudo, que a lenda de um deus crucificado e ressuscitado


não pertence rnicamente ao cristianismo. Além dos cultos que já mencionamos, convém
notar
O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO StCULO II 181

que alguns missionários descobriram, no século XVII, a existência de um mito de deus


crucificado no Tibet e, no século seguinte, no Nepal. Êsses mitos nada têm a ver, por
certo, com a lenda cristã, e nenhum historiador procurará demonstrar que êles refletem
acontecimentos históricos. Outro exemplo típico a êsse respeito relaciona-se com o mito
grego de Dionísios, Deus da vinha. Acreditava-se outrora que êle tinha existido
realmente, mas ninguém ousará afirmar isso nos nossos dias.

Passando ao exame das fontes do mito evangélico, recordemos que já falamos daqueles
antecedentes possíveis, entre os quais o do «Mestre de Justiça» citado nos manuscritos
descobertos em Coumrã e que se pretendia igualmente ter ressuscitado. Contudo, os
acontecimentos descritos nesses documentos remontam, segundo a opinião geral, à
primeira metade do século 1 antes da nossa era, isto é, todo um século antes do período
durante o qual Jesus Cristo teria vivido, segundo os evangelhos. A êsse respeito, é útil
lembrar que segundo o testemunho, muito posterior, é verdade, do Talmud, Jesus
BenStada ou Ben-Pandira, com o qual se identifica habitualmente

o Cristo evangélico, viveu na Judéia, sob o reinado de Alexandre Janeu, portanto, em


época próxima dos acontecimentos relatados nos rolos de Coumrã. Não se exclui a
possibilidade de que certos elementos de seus relatos tenham servido à composição do
mito evangélico.

J. Robertson, historiador inglês dos começos dêste século, chamou a atenção para as
palavras seguintes dirigidas, segundo o Evangelho de Marcos, pelo apóstolo João, a
Jesus: «Mestre, vimos um homem que em teu nome expulsava demônios; e nós lh’o
proibimos porque não nos segue.» (Marcos, IX, 38.) Esta passagem atesta
evidentemente que houve um culto não cristão de Jesus.

Deve-se ainda a Robertson outra observação dêsse gênero. O relato nos sinóticos de
certos episódios que . precedem a prisão de Jesus só se torna lógico se os considerarmos
como cenas de um drama ritual. Assim, no Evangelho Segundo Marcos (XIV, versículo
32 e seguinte), apresenta-se Jesus aproximando-se três vêzes, para despertar três
discípulos adormecidos:
Pedro, Tiago e João. Tudo se passa. sem testemunhas, mas Marcos descreve êsse
episódio de maneira pormenorizada. Como cena de um mistério, isso é aceitável, mas,
na qualidade de fato real, não tem sentido. Outro pormenor: o traidor Judas Iscariote
recebe trinta dinheiros para entregar Jesus, mas Jesus não andava escondido, êle pregava
abertamente em Jerusalém. Aceitável como processo dramático, mas absurdo, como
fato. O relato evangélico nos transporta em seguida para a assembléia noturna do
Sanhedrin judaico, onde Jesus é interrogado, interrogatório êsse que, sàmente no
Evangelho Segundo Lucas,

182 A ORIGEM DO CRISTIANISMO

tem lugar durante o dia, portanto, de modo mais verossímil. A representação ritual
exigia a continuidade da ação. Mas, tal relato de acontecimentos, desde que se queria
fazer passar por um relatório exato, parece muito forçado.

E Robertson conclui que esta parte do relato evangélico é apenas a descrição de um


mistério que tinha por tema a «Paixão» do Filho de Deus, oferecido em holocausto, O
Deus-jesus só se transformaria no Filho do Homem, dos sinóticos, posteriormente.

A consagração dos quatro evangelhos canônicos pela Igreja desempenhou um papel


considerável no desenvolvimento ulterior do cristianismo. Em primeiro lugar, esta
medida colocou fora do grêmio da Igreja numerosas correntes da cristandade: a
canonização traçou uma nítida linha de demarcação, não sàmente entre o cristianismo, e
o judaísmo, mas também entre as diversas seitas judaico-cristãs (ebionitas, nazarenos
etc.), e a Igreja. Por outro lado, a canonização da imagem evangélica do Cristo permitiu
ao cristianismo separar-se adequadamente do gnosti. cismo. Além disso, a fixação dos
artigos de fé nos evangelhos canônicos proclamados escrituras sagradas iria impedir a
aparição de novas seitas, uma vez que o menor desvio dos dogmas determinava a
acusação de heresia. É verdade que mesmo a canonização dos evangelhos não pôde
barrar inteiramente o caminho às doutrinas heréticas, contra as quais a Igreja foi ainda
obrigada a empregar muitos esforços.

A imagem evangélica de Jesus, que desempenhou tão importante papel na constituição


da nova religião, assegurando sua unidade, favoreceu igualmente sua difusão ulterior, O
caráter sincrético desta imagem facilitava a tarefa da propaganda do cristianismo entre
os adeptos dos diferentes cultos do deus morto e ressuscitado em voga no oriente do
Império Romano, predicação cujo êxito era favorável, por outro lado, pela ausência de
um ritual cristão que, nessa época, ainda se encontrava em elaboração. Apesar dos
variados matizes dos evangelhos, seu programa político e social, que vamos expor mais
adiante, era incomparàvelmente mais moderado do que a posição do autor do
Apocalipse, e até mesmo das primeiras epístolas, o que permitiu ganhar as simpatias das
camadas ricas do Império.

Posteriormente, quando a Igreja foi-se tornando o sustentáculo ideológico número um


do poder da classe agonizante dos escravagistas, depois da feudalidade, e do regime
burguês, a imagem do Filho de Deus, canonizada nos evangelhos, desempenhou um
duplo papel na evolução histórica dos povos europeus.

De um lado, os sermões dirigidos às massas laboriosas, exultando a Paixão e o


sofrimento em geral, pregavam a resignação. À sêde de liberdade manifestada pelo
povo, a Igreja
O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II 183

sempre contrapôs as palavras de Jesus: «Meu reino não é déste mundo» (João, XVIII,
36), e a promessa da felicidade eterna nos céus, para ‘que os deserdados suportassem
pacienternente as terríveis condições de sua vida neste mundo.

Doutra parte, a santificação do poder dos exploradores pelo cristianismo, a cupidez do


clero e a linha política da Igreja despertaram nas massas o desejo de um retôrno ao
cristianismo dos primeiros tempos. A reclamação da liberdade, da igualdade, da
abolição da exploração revestiu primeiramente formas religiosas. Os adeptos de Lutero,
de Calvino e os velhos crentes na Rússia, quando se levantaram contra a Igreja oficial,
católica ou ortodoxa, exigiram todos o retôrno ao cristianismo original. Isso decorria do
duplo caráter da imagem evangélica de Jesus, do fato de os evangelhos terem
conservado traços contraditórios, alguns dos quais remontavam à época em que o
cristianismo era ainda a religião dos oprimidos e dos pobres, enquanto outros e
relacionavam com o período de sua conciliação com as camadas dominantes do Império
Romano, fundado sôbre a escravidão. É ainda por causa dêsse duplo caráter da doutrina
evangélica que as correntes religiosas oposicionistas se transformavam, por seu turno,
em sustentáculos do poder dos exploradores, não menos eficazes do que a Igreja
Católica, ou a Igreja Ortodoxa.

3. O PROGRAMA SOCIAL DOS EVANGELHOS

A predicação evangélica foi durante muito tempo considerada •por milhões de fiéis
como o ápice da moral humana. Em palavras tais como «Venham a mim, todos os que
estão cansados e oprimidos, e eu- lhes darei repouso» (Mateus, XI, 28) e «Muitos dos
primeiros serão os últimos, e muitos dos últimos serão os primeiros» (Idem, XIX, 30),
as massas popu‘lares buscavam a consolação para a sua miséria e seus sofrimentos,
esperando que o advento do reino de Deus não tardaria a pôr um fim à injustiça, à
exploração e às dôres da humanidade. Aos olhos do povo trabalhador, que tinha sofrido
tantos revezes na luta contra os opressores, o cristianismo original se apresentava como
um ideal distante, uma época em que todos os cristãos eram justos, amavam-se como
irmãos, abandonavam seus bens, e até mesmo suas famílias, atraídos pelos discursos do
carpinteiro de Nazaré.

Quanto mais a exploração das massas se intensificava por parte dos feudais e do clero,
quanto mais os costumes dos representantes da Igreja suscitavam a indignação geral,
mais os crentes sonhavam com a restauração da ordem evangélica sôbre a Terra. Na
Europa, durante todo um milênio, e até mais — e isso não é um curto período na
História — os
184 A ORIGEM DO CRISTIANISMO

movimentos de massa se desenrolaram sob a palavra de ordem dé retôrno à


simplicidade evangélica dos primeiros cristãos. E isso era natural porque, outrora, a
religião era o único alimento espiritual da gente simples.

Atualmente, os evangelhos perderam muito de sua influência sôbre os trabalhadores,


mas existe ainda contingentes bastante importantes de crentes que ligam sua luta pela
paz, pela liberdade e pela democracia às aspirações evangélicas.

Como explicar a atração exercida pelos evangelhos sôbre as massas de crentes durante
tantos séculos? Ela tem múltiplas causas. Uma delas reside no fato de os evangelhos
representarem uma seleção longa e paciente de textos sagrados, por parte de centenas de
pregadores. Atribuíram a Jesus as pará- bolas e as máximas que encontravam maior
ressonancla nos ouvintes O estilo lacônico, colorido, freqüentemente rico de imagens
dos aforismos evangélicos aumentava seu poder sôbre os crentes.

Em segundo lugar, os pregadores da nova religião, durante sua fase inicial, dirigiam-se
quase que exclusivamente aos deserdados e aos oprimidos, «aos humildes dêste
mundo», Os ataques dos evangelhos contra os ricos e os aristocratas continuaram,
mesmo posteriormente, a exercer uma poderosa influência sôbre os trabalhadores. O
cristianismo soube explorar esta circunstância no decorrer dos séculos seguintes.
Em terceiro lugar, a Igreja, tanto antes, como depois do seu acesso ao poder, não
pretendia mesmo aplicar seus próprios ensinamentos, vendo nêles apenas regras de
conduta puramente teóricas, abstratas. Os costumes do clero, sobretudo do alto clero,
não se distinguiam muito dos costumes dos fariseus estigmatizados nos evangelhos.
Ëste afastamento cada vez maior, entre a prática, e o ideal evangélico, suscitava a
indignação da massa dos fiéis, e fazia com que êstes almejassem cada vez mais
apaixonadamente o retôrno à pureza dos tempos evangélicos.

Em quarto lugar, os evangelhos, diferentemente dos outros escritos cristãos, dão maior
relêvo à felicidade no céu. A negação da ordem antiga era o traço característico do
cristianismõ primitivo, produto da desagregação do regime escravagista. Esta tendência
é desenvolvida nos evangelhos até a condenação ao apêgo aos bens terrestres em geral.
Encontra-se aí a raiz do seu desprêzo pelas riquezas, do saber e, até mesmo, da família.
A estática espera do reino de Deus implicava Rgicamente a renúncia às coisas dêste
mundo. Êste estado de espírito e estas aspirações se impuseram durante séculos a todos
aquêles que não podiam se resignar com a injustiça na Terra.

A popularidade dos evangelhos foi ainda devida, e em grande escala, ao fato de êles
constituírem um compromisso entre as diversas tendências existentes no seio do
cristianismo.

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II


185

Se os posteriores movimentos de massa exigiam o retôrno aos costumes dos primeiros


cristãos, invocando as palavras dos evangelhos, a Igreja Católica, a Ortodoxa e a
Protestante justificavam seu próprio comportamento, citando êsses mesmos escritos.
Êsse duplo caráter dos evangelhos permitiu-lhe conservar durante tão longo tempo sua
auréola.

Tenda explicado os motivos da atração exercida pelos evangelhos sôbre os crentes,


devemos lembrar, uma vez mais, que êles sempre serviram para justificar as classes
exploradoras. Os apelos dos evangelhos à resignação, à não resistência ao mal
desviavam e desviam ainda freqüentemente as massas da luta revolucionária por uma
vida melhor na Terra.

Se procurarmos analisar os evángelhos na qualidade de documentos históricos, como o


fizemos com os outros escritos da literatura cristã primitiva, até mesmo o leitor menos
avisado não pode deixar de perceber que êles são o fruto de um compromisso. O caráter
contraditório dos textos evangélicos permite-nos discernir fàcilmente as raízes históricas
e ideológicas de tais parábolas e máximas, melhor do que de outras. Aliás, o exame dos
evangelhos não se deve limitar micamente à constatação de suas contradições: deve-se
encará-los do ponto de vista histórico, situá-los na evolução da ideologia cristã, e da luta
entre as diversas tendências existentes no seio do cristianismo. Êste é o único método
que nos possibilitará definir com a maior precisão o espírito dos evangelhos e as
opiniões sociais e políticas que êles proclamam.

O que distingue essencialmente os evangelhos dos escritos cristãos anteriores é a versão


acabada que êles dão do mito do Cristo, a imagem definitiva de Jesus. Examinamos até
aqui apenas as fontes históricas dessa imagem, sem falar do seu conteúdo social.
Passemos, agora, à análise dêste aspecto da pregação evangélica.

No centro da doutrina de Jesus nos sinóticos encontra-se a idéia do «reino de Deus», ou


do «reino dos céus». Notemos, inicialmente, que o sentido dêsses têrmos não é
exatamente o mesmo. Os teólogos se limitam geralmente a indicar que o primeiro é
empregado por Marcos, e o segundo por Mateus, não sendo isto devido senão às
particularidades de estilo de um e de outro. Porém, a coisa é mais complicada do que se
crê. As palavras «reino de Deus» significavam, no comêço, o reino de Deus sôbre a
Terra, enquanto que por «reino dos céus» se subetendia o outro mundo, sem qualquer
equívoco possível. A passagem de uma expressão à outra refletiu as modificações da
ideologia cristã, a caminho da conciliação com as classes dominantes.

Não é por acaso que a predicação de Jesus no Evangelho Segundo Marcos começa
assim: «O tempo está cumprido, e o
186

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no Evangelho.» (Marcos, 1, 15.)


Tudo, no mais antigo dos sinóticos, gira, de um modo ou de outro, em tôrno da noção
do «reino de Deus». A iminência da hora decisiva, a definição daqueles que seriam
dignos de entrar nesse reino, a linha de conduta a seguir pelos que quisessem dêle fazer
parte, tais eram as questões que preocupavam então os ouvintes dos evangelhos. E se a
pregação cristã era tão atraente, se centenas e milhares de fiéis tornavam-se
propagadores da «boa nova», é precisamente porque nela se tratavam de acontecimentos
prestes a se dar, da segunda vinda do Cristo, do Juízo Final, da ressurreição dos mortos,
e todo o resto. Quanto mais dura e desesperada era a realidade, mais se acreditava
iminente o dia da punição dos ímpíos.

A pregação do «reino de Deus» visava a um auditório determinado. No «sermão da


montanha», o reino dos céus é prometido, em primeiro lugar, aos pobres (as palavras
«de espírito» foram acrescentadas posteriormente), aos aflitos, aos indulgentes, aos
ultrajados e aos perseguidos pela justiça. (Mateus, V, 3-11.) A passagem paralela em
Lacas anuncia desgraças para os ricos (VI, 24), pensamento ilustrado no capítulo XVI
dêsse mesmo evangelho em que se diz que Lázaro, êsse miserável, é levado pelos anjos
ao seio de Abraão, enquanto que o rico sofre nas chamas do inferno.

É absolutamente indispensável, contudo, acentuar que os evangelhos, apesar de se


endereçarem aos deserdados, não pretendiam de fato condenar os ricos na qualidade de
exploradores do trabalho dos pobres. Em várias parábolas, os senhores opulentos são
descritas como justos, dos quais os escravos não devem se queixar. A julgar por essas
mesmas parábolas, êsses senhores não trabalham, não se ocupam de negócios e viajam
freqüentemente, mas os autores não se preocupam sequer em justificar moralmente a
fonte dos seus ganhos, achando-os perfeitamente legítimos. Os escravos, ao contrário,
aparecem freqüentemente nessas parábolas como preguiçosos que seus senhores punem
com razão.
Assim, a riqueza só é condenada nos evangelhos enquanto obstáculo para o acesso dos
ricos ao reino dos céus, posição que encontrou sua mais nítida expressão no famoso
lema de Mateus: «Ninguém pode servir a dois senhores ( . . . ) Não podeis servir a Deus,
e a Mamon.» (Mateus, VI, 24.) A sêde de enriquecimento é considerada má, sàmente
porque ela afasta da fé.

É exatamente o mesmo que se dá quanto à conhecida declaração: «. . . dificilmente um


rico entrará no reino dos céus.» (Mateus, XIX, 23.) Tendo um jovem rico perguntado a
Jesus conio ganhar a vida eterna, êste respondeu que era

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II 187

preciso observar os mandamentos de Moisés. E só em vista da insistência do outro é que


êle acrescenta: «Se tu queres ser perfeito, vai, vende tudo quanto possues, dá-o aos
pobres.» A riqueza não é aqui considerada como um obstáculo para a fé e para o acesso
ao reino dos céus; a renúncia aos bens terrestres só é necessária para os que querem
atingir a perfeição. O célebre aforisma segundo o qual «é mais fácil um camelo passar
pelo furo de uma agulha, do que um rico entrar no reino de Deus» de modo algum
significa uma condenação da riqueza, enquanto tal. A evolução pela qual passou o
cristianismo, no decorrer de alguns decênios apenas, manifesta-se claramente, quando
se compara êste aforisma com a divisa nítida e clara da segunda Epístola aos
Tessalonicenses: «se alguém não quiser trabalhar, que não coma também.» (II
Tessalonicenses, III, 10.)

A doutrina cristã do «reino de Deus» adquire nos evangelhos sua forma definitiva. Em
relação ao messianismo do Antigo Testamento, êles apresentam a seguinte novidade: o
advento dêsse reino está ligado à destruição de Jerusalém e

aparição de falsos profetas e, o que é mais importante ainda, de impostores, que se


apresentam sob o nome do Cristo. (Mateus, XXIV, 5, 23 e outros.) E provável que não
se faça aqui alusão à Guerra dos Judeus de 66 a 73, mas à revolta de Bar-Cocheba, que
os judeus consideraram como sendo o Messias, e que se desenrolou sob Adriano.

O segundo traço distintivo da escatologia evangélica foi o estabelecimento de uma data


para a nova vinda do Senhor. Esta questão revestia-se de grande importância para o
cristianismo, uma vez que a pregação da nova religião se fazia sob a forma de uma
anunciação da «boa nova»: «o reino de Deus está próximo! » Não sômente os primeiros
escritos cristãos, mas também os evangelhos canônicos estão cheios de advertências
dêsse gênero: «Eu voltarei logo», «o tempo está próximo» etc.

Duas tendências absolutamente inconciliáveis aparecem nos evangelhos. A primeira se


traduz por esta declaração reiterada de Jesus, nos sinóticos: «Em verdade vos digo, que
alguns dos que aqui estão não morrerão até que vejam vir o Filho do Homem no seu
reino.» (Mateus, XVI, 28, XXIV, 34; Marcos, IX, 1, e em outros lugares.) Que
semelhante afirmação não se tenha cumprido, os autores dos evangelhos, compostos em
meados do século II, eram obrigados a admitir: por essa época, segundo a tradição
cristã, já não vivia qualquer dos apóstolos. Os partidários da historicidade de Jesus
acham que essas passagens no texto dos evangelhos que chegou até nós fornecem uma
das mais irrefutáveis provas em favor do seu ponto de vista. Na opinião dêles, esta
predição não poderia ter sido
188

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

acrescentada pelos autores dos evangelhos por causa mesmo do seu não cumprimento, e
é por isso que êles proclamam que ela é devida sem dúvida à Jesus, personagem
histórica.

À primeira vista, o argumento parece convincente. Não sendo os autores dos evangelhos
muito escrupulosos, como já o demonstramos, é claro que não teriam hesitado em
suprimir de seus escritos uma profecia que não se tinha realizado, se razões mais
poderosas não lhes tivessem paralisado a mão. Alguns historiadores contemporâneos, A.
Robertson inclusive, acham que a única explicação para a conservação desta profecia
nos evangelhos é a piedosa fidelidade dos autores dêstes às próprias palavras de Jesus.
Assim fazendo, os historiadores em questão tomam suas próprias conclusões por
premissas, esquecendo que é preciso ainda demonstrá-las.

Em realidade, os autores dos evangelhos, repetindo essa profecia várias vêzes, poderiam
ter tido outros motivos, não menos importantes para êles. Lembremos que a insistência
sôbre o próximo advento do Cristo caracterizava a predicação cristã nos seus começos.
A atribuição de uma profecia dêsse gênero a Jesus devia, além disso, acentuar-lhe a
santidade, estimulando assim a fé dos fiéis. A predicação ficou no ar, mas isso de modo
algum inquietou os autores dos evangelhos, para os quais esta circunstância era, ao
contrário, a garantia de que se cumpriria um dia que não tardaria muito. Vemos, pois,
que as tendências escatológicas dos evangelhos canônicos não podem ser ligadas à
questão da existência real do Cristo.

Paralelamente à promessa do reino de Deus, discerne-se nos evangelhos outra linha,


diametralmente oposta. Aqui, os evangelistas não poupam esforços para serem breves
ante as perguntas dos fiéis sôbre a data de cumprimento das profecias, sem, contudo,
deixarem de alimentar as esperanças escatàlógicas dos primeiros cristãos. Quando os
apóstolos perguntam a Jesus quando ocorrerá o fim do mundo, recebem esta resposta:

«Acautelai-vos, para que ninguém vos engane. Porque muitos virão em meu nome. . . »
(Mateus, XXIV, 4.) Nos Atos dos Apóstolos, sua resposta a êsse respeito é formal:
«Não vos é dado conhecer os tempos ou os momentos que o Pai fixou por sua própria
autoridade.» Assim, se as epístolas paulinianas limitam-se já a descrever sômente os
sinais do advento do Senhor, os evangelhos transformam a questão da sua data, tão
apaixonante para os crentes, num verdadeiro tabu. Interessada em manter os temas
escatológicos da pregação cristã, a Igreja tratou, ao mesmo tempo, de dissimular a
contradição entre as profecias, e a realidade.

O conteúdo da doutrina escatológica dos evangelhos difere sensvelmente não sàmente


do messianismo do Antigo Testamento, como também da escatologia do Apocalipse.
Nos evan

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II 189

gelhos, o advento do reino dos céus em parte alguma está associado à punição dos
exploradores e dos opressores; apenas os ímpios é que devem ser punidos. Não se
encontra nos sinóticos a mínima alusão a castigos reservados aos detentores do poder. O
ódio contra a «grande prostituída, Babilônia» cede o lugar à pacífica divisa: «dai a
César o que é de César.» Enquanto o Apocalipse está marcado, do comêço ao fim, pelo
desejo de vingança, os evangelhos, ao contrário, preconizam: «Se alguém te bate na face
direita, oferece-lhe também a outra.» (Mateus, V, 39.) Os apelos à luta contra o mal,
endereçados aos primeiros cristãos, são substituídos nos evangelhos pela propaganda da
não resistência, e do perdão. Fazem tábula rasa da oposição ativa aos opressores, que se
manifestava no messianismo cristão dos primeiros tempos. A doutrina do advento do
reino dos céus absolutamente não era perigosa para as classes dominantes do Império
Romano. A pregação escatológica na época do estabelecimento do cânone evangélico,
ao contrário, revigorava o regime escravagista, porque ela entorpecia as massas
populares, desviava-as dos combates, disseminando a esperança da felicidade no
paraíso.
A atitude dos evangelhos em relação ao judaísmo é dupla; apresenta os vestígios de um
compromisso, e reveste-se, às vêzes, de um caráter bem contraditório. Esta questão, que
embaraçava muito os ideólogos do cristianismo original, era ainda complicada para os
autores dos evangelhos. A inclusão nos seus textos de tôda sorte de pormenores
«biográficos» sôbre o suposto fundador do cristianismo, que eram emprestados dos
profetas do Velho Testamento, obrigava os evangelistas a inventar outros episódios
mais sôbre a infância de Jesus na Palestina, transformada em teatro do mito. Mas, na
época em que os evangelhos foram compostos, o cristianismo já havia passado por uma
longa evolução, e é claro que a nova religião não poderia continuar a progredir, se não
rompesse definitivamente com o judaísmo: nenhuma religião universal poder-se-ia
fundar sôbre o dogma do Antigo Testamento, segundo o qual os antigos hebreus seriam
o povo eleito. Justino, o leitor o sabe, já declarava que o número de cristãos de origem
pagã ultrapassava de muito os fiéis de origem judia. Não há dúvida de que, depois de
Justino, essa relação se modificou ainda mais a favor dos primeiros.

Como na questão do momento do advento do reino dos céus, os autores dos evangelhos
professam pontos de vista diferentes sôbre o judaísmo. A mais conciliadora atitude a
seu respeito é a de Mateus, enquanto que Lucas e João mostram-se muito hostis contra
êle; não se pode, contudo, deixar de notar que êles têm hesitações, e se contradizem
nesse assunto.
190

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

Nos evangelhos, certas declarações contra os fariseus e os escribas (exegetas do Antigo


Testamento) podem ser interpretadas não como ataques contra o judaísmo em geral,
mas como tentativas de o reformar, como um protesto contra o sistema de prescrições
rituais impostas aos judeus. É nesse sentido, segundo parece, que se deve compreender
as palavras: «Não creiam que vim destruir a lei ou os profetas; vim não para a derrogar,
mas para a cumprir.» (Mateus, V, 17.) O «sermão da montanha» revela o mesmo
espírito reformador. Do episódio com a mulher de origem sírio-fenícia descrito por
Marcos (VII, 27) conclui-se que Jesus só faz milagres com os filhos de Israel. Mas, já
Mateus (VIII, 10) apresenta um centurião romano, cuja fé é maior do que a dos hebreus.
Não se pode também conciliar as tentativas de reformar o judaísmo com a predicação do
Evangelho Segundo João (IV, 21) anunciando que não será em Jerusalém que o Deus
pai será adorado.

As contradições neste terreno são numerosas nos Evangelhos. No Evangelho Segundo


Mateus (X, 5 e seguintes), Jesus diz aos apóstolos: «Não ireis aos pagãos, ( . . . ) mas
ide antes às ovelhas perdidas da casa de Israel», enquanto que na parte final dêsse
mesmo evangelho êle exorta os apóstolos a irem fazer discípulos em «tôdas as nações».

A questão da pregação do cristianismo entre os pagãos é o tema central dos Atos dos
Apóstolos. Os capítulos X e XIII não falam senão nisso; o décimo descreve com grande
luxo de pormenores como Pedro se decidiu a converter ao cristianismo o centurião
Cornélio, depois de ter tido uma visão, e o décimo terceiro mostra Paulo dedicando-se
ao apostolado entre os pagãos em conseqüência ünicamente da oposição dos judeus de
Pamfilia.

Lembremos ainda uma circunstância que, até hoje, recebeu pouca atenção, da parte dos
historiadores. Nos evangelhos, a responsabilidade pela crucificação de Jesus é atribuída
muito mais aos hebreus, do que a Pôncio Pilatos, Governador Romano, que, segundo a
lenda, sancionou a execução do Cristo. Esta fora de dúvida, contudo, que a introdução
de Pilatos no relato devia refletir o ódio das massas populares contra a dominação de
Roma. Porém, mesmo no Evangelho Segundo Mateus, o acontecimento é apresentado
de modo a limpar Pilatos, na medida do possível. Êle se impressiona com o silêncio de
Jesus (XVII, 14), chama-o de «justo», opõe-se, a princípio, à sua execução, e, cedendo
finalmente à insistência do povo, lava as mãos. A mulher de Pilatos roga-lhe que poupe
Jesus. Esta maneira de expor o mito revela o desejo de torná-lo aceitável aos olhos das
autoridades romanas. E muito significativo, contudo, que Marcos (XV, 1-13), o mais
antigo dos evangelistas, seja muito menos favorável a Pilatos: êste não aplica a Jesus o
epiteto de «justo», nem lava as mãos sim-
O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADÉ DO SÉCULO II 191

bolicamente etc. No Evangelho Segundo Lucas, ao contrário, êle exprime por três vêzes
o desejo de libertar Jesus e, no Evangelho Segundo João, sua resposabilidade é atenuada
ainda mais. Estas diferenças caracterizam bem o caminho seguido pelos autores dêsses
escritos: quanto mais a tendência para a conciliação com o poder romano se acentuava
no seio do cristianismo, mais os evangelistas, ao descrever os romanos, apagavam os
aspectos sombrios.

A atitude do cristianismo evangélico em relação ao poder encontrou sua expressão mais


acabada na máximo: «Dai a César o que é de César, e a Deus, o que é de Deus.»
(Marcos, XII, 17; Mateus, XXII, 21; Lucas, XX, 5.) Reproduzida nos três sinóticos, não
figura no Evangelho Segundo João, encontrando-se nêle, todavia, seu equivalente nestas
palavras atribuídas a Jesus: «Meu reino não é dêste mundo.» (João, XVIII, 36.) Vemos,
portanto, que, apesar das numerosas divergências entre os autores dos evangelhos,
permanecem êles, em muitas questões diversas, inteiramente solidários no que concerne

sua atitude diante do poder romano. Nada de hesitações sôbre êste ponto, em nenhum
dêles. Lucas defende Jesus contra a acusação de incitar o povo a não pagar o tributo a
César (XXII, 2 e 14). Os evangelhos não se queixam em parte alguma das autoridades
romanas. Mesmo no quadro que hosquejam sôbre as perseguições que esperam os
crentes, êles se esquivam de dizer que elas emanarão do poder secular. Ao declarar que
«aquêles que se servirem da espada, perecerão pela espada», os evangelhos condenam
qualquer recurso às armas, mesmo para a defesa do cristianismo, posição
dilametralmente oposta às opiniões do autor do Apocalipse, e que era, visivelmente, o
apoio máximo que a religião cristã podia oferecer aos imperadores romanos naquela
época.

Já falamos da atitude dos evangelhos em relação à riqueza. E útil acrescentar a isso que,
paralelamente à simpatia pelos deserdados e oprimidos, os evangelistas limitam-se
apenas a estigmatizar as atividades mais repugnantes dos negociantes e dos usurários,
contra as quais numerosos escritores antigos não deixaram de protestar, atacando de
preferência os recebedores de impostos.

Êstes últimos, os publicanos detestados pelas massas, são tratados muito


moderadamente nos evangelhos que chegam mesmo, em vários casos, a prometer-lhes a
salvação. Quanto ao comércio, os evangelhos vêem nêle uma atividade legítima, e até a
louvam, como meio de enriquecimento. (Mateus, XXV, 27.) É justamente tendo em
vista os mercadores e os usurários que Mateus proclama: «Porque a qualquer que tiver
será dado, e terá em abundância; mas, ao que não tiver até o que tem será tirado.»
(Mateus, XXV, 27; comparar com Marcos, IV,

192

A ORIGEM DO CRISTIANISMO /

25.) A expulsão dos vendilhões do templo (Mateus, XXI, 12) simboliza o protesto
contra a intrusão no seu recinto nos negócios terrestres, e não contra a pilhagem
praticada pelos vendilhões. Não é por acaso que, nesse episódio, os compradores são
estigmatizados da mesma maneira que os vendedores e cambistas.

A única coisa que os evangelhos pedem constantemente aos ricos é que dêem
generosamente esmolas ao pobres, o que correspondia aos interêsses da Igreja; a
beneficência, notadamente quando praticada por intermédio do clero, fortalecia o poder
do episcopado. Notemos que êsses reiterados apelos dos evangelhos nesse sentido
mostram por êles só que, durante a segunda metade do séculõ II, o cristianismo já tinha
adeptos entre os ricos. O episódio com Ananias e Safira nos Atos dos Apóstolos (V, 1-
10) é significativo. Tendo vendido um campo, Ananias depositou aos pés dos apóstolos
parte da soma recebida. Por ter retido a outra, êle e sua mulher foram punidos. com a
morte. Segundo os Atos, Ananias foi punido por ter ocultado aos apóstolos o preço do
campo vendido. Ora, segundo a opinião de alguns historiadores do cristianismo, êste
episódio provaria que não havia propriedade privada nas comunidades cristãs
primitivas, cujo modo de vida teria sido socialista ou comunista. Afirmam que Jesus foi
o primeiro socialista e que as comunidades cristãs primitivas exigiam dos seus fiéis a
renúncia à propriedade privada. Porém, nós já mostramos que o «socialismo»
evangélico significava apenas, no melhor dos casos, o desprêzo das riquezas, e a
condenação da cupidez. E, mesmo a êste respeito, as informações são vagas. Portanto,
só resta como certo os apelos dos evangelhos à caridade.

As conjecturas relativas «ao comunismo cristão» se fundam na sêguinte passagem dos


Atos dos Apóstolos (IV, 32):

«E ninguém dizia que coisa alguma do que possuia era sua própria; mas tôdas as coisas
lhes eram comuns», afirmação que é desenvolvida assim no capítulo II, versículo 44 dos
Atos: «E todos os que criam estavam juntos, e tinham tudo em comum. Vendiam suas
propriedades e fazendas, e repartiam com todos, segundo as necessidades de cada um.»

Notemos a propósito destas passagens, primeiro, que a situação que elas descrevem não
é confirmada pelas outras fontes cristãs; segundo, que a comunidade de Jerusalém a que
elas se referem não existiu, como já o mostramos; terceiro, que os Atos falam da
comunidade dos bens em ligação com a punição de Ananias e de Safira, visando
evidentemente a justificá-la do ponto de vista moral. Se as comunidades cristãs
primitivas tivessem verdadeiramente renunciado à propriedade privada, as fontes
antigas o assinalariam obrigatàriamente, e, com maior razão, os críticos antigos do
cristianismo.
O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SICULO II 193

Assim, o programa político e social dos evangelhos se faz notar antes de tudo por sua
dualidade. Na época em que êles apareceram, o cristianismo ainda era a religião dos
«abatidos e oprimidos», aos quais ela dirigia, em primeiro lugar, a sua predicação,
prometendo a essas camadas sociais a única coisa possível, a guisa de consolação: uma
lugar no reino dos céus. Mas, ao mesmo tempo, o cristianismo renunciava já à luta
contra o poder de Roma, ao espírito de vingança contra os opressores, proclamava que a
não resistência era o único meio capaz de aniquilar o mal. Sua maneira de considerar a
riqueza muda também: em lugar de a condenar categàricamente, pede aos fiéis que
façam esmolas para assegurarem, a preço módico, a própria entrada no paraíso.

Foi êsse o resultado das modificações na estrutura social das comunidades cristãs em
que, ao lado dos pobres, elementos das classes possuidoras começaram a aderir.
Lembremos que os evangelhos ainda ignoram os bispos, os diáconos etc. Isso dava um
tom democrático às primeiras comunidades cristãs.

4. A IGREJA EPISCOPAL

Segundo o dogma, a Igreja teria nascido diretamente do pequeno grupo de apóstolos,


discípulos diretos de Jesus. À medida que o cristianismo se propagava, que o número de
fiéis aumentava, a Igreja se desenvolvia também como associação dos adeptos do
Cristo. Em teologia, a Igreja é chamada o «Corpo do Cristo», donde as afirmações dos
teólogos sôbre a sua infalibilidade na pessoa do papa, seu chefe, sôbre a sua
universalidade, e a sua eternidade.

Essas pretensões dos teólogos tornaram-se possíveis, em particular, pela dupla


significação da palavra grega eclésia que tanto pode designar «Igreja», como a
«comunidade» cristã. Já assinalamos que, na literatura do cristianismo original, essa
palavra significa comunidade. Assim é que o Apocalipse de João se endereça às sete
Igrejas da Ásia Menor. Trata-se, aqui, com tôda. a evidência, das comunidades cristãs, e
não da Igreja universal. Trata-se da mesma coisa nos outros escritos cristãos dos
primeiros tempos. No que concerne à outra significação dessa palavra, nós a
encontramos, pela primeira vez, sômente no segundo grupo de epístolas paulinianas,
que remontam ao segundo quarto do século II, significação essa confirmada pela
passagem do Evangelho Segundo Mateus em que se diz que o apóstolo Pedro será a
pedra sôbre a qual será edificada a Igreja do Cristo.

A Igreja é um fato histórico tal como o Estado, a ordem feudal e o próprio cristianismo.
A premissa primordial de sua constituição foi a união das comunidades cristãs
dispersas.
194

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

Enquanto estas seguiam cada uma seu próprio caminho, enquanto não havia um clero
destacando-se da massa dos fiéis, e a luta interna das seitas se desenrolava livremente,
não se sentia a necessidade de existir um órgão autoritário, centralizado, capaz de impor
por decreto os princípios da fé, e de empregar contra os dissidentes todo um aparato
hierárquico. O processo que levou ao aparecimento da Igreja foi paralelo ao
estabelecimento da dogmática cristã e à constituição do clero.

A santificação da imagem evangélica de Jesus, a criação de uma auréola de santidade


em tôrno dos evangelhos e dos outros livros do Nôvo Testamento foram um passo
decisivo na canonização dos dogmas. A constituição do episcopado foi, por seu turno,
um elo importante no processo de formação do clero.

A partir da segunda metade do século II, os bispos e seus auxiliares, os diáconos,


tornam-se os principais chefes das comunidades cristãs. Aos primeiros incumbe a luta
contra as heresias. Suas assembléias, a princípio locais, depois elevadas à categoria de
concílios ecumênicos, são reconhecidas como a autoridade suprema dos cristãos, cuja
primeira obrigação era, daí em diante, prestar-lhes obediência. Durante dois séculos, até
o triunfo do cristianismo, a autoridade dos bispos não deixou de aumentar. Os Padres da
Igreja sublinham sem cessar nos seus escritos que os bispos receberam sua dignidade
diretamente dos apóstolos.

Esta tendência a exaltar o episcopado, no mais alto grau possível, aparece notadamente
na História Eclesiástica de Eusébio, que considera como bispos os chefes das
comunidades cristãs de Roma, de Corinto e de Alexandria, ünicamente por causa de
suas funções nessas comunidades. Lendo-se esta obra tem-se a impressão que Eusébio a
escreveu, sobretudo, para demonstrar a santidade dos livros canônicos, e para
estabelecer a sucessão cronológica dos bispos nas grandes cidades do Império Romano.
Ële dá muita atenção à data do govêrno de cada bispo, descreve a sucessão dêles em
tôda uma série de capítulos (III, 2, 4, 11, 13, 15 etc.), começando sempre pelos
apóstolos da Lenda. Tudo isso se deve naturalmente às «pesquisas» ulteriores dos
apologistas cristãos, que não dispunham de outras fontes além das epístolas, onde tais
ou quais persosonagens são niencionados. Assim Irineu, e depois Eusébio, põem em
suas listas, na qualidade de primeiro bispo de Roma depois de Pedro, certo Lin, cujo
nome figura na segunda Epístola a Timóteo (IV, 21). É significativo que até mesmo
Eusébio evita chamar de bispos aos primeiros dentre êles, entre os quais Apiano de
Alexandria, por exemplo, fato êsse digno de nota porquanto os antigos documentos
cristãos, em parte alguma, falam de bispos: no comêço, a julgar-se por uma
O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II

195

série de escritos um pouco posteriores, a autoridade déles, nas comunidades, era inferior
à de outras personagens.

O episcopado apareceu numa conjuntura histórica determinada. Parece que nos


encontramos aqui diante de um fenômeno análogo ao da evolução da própria Igreja, o
fortalecimento da autoridade dos bispos estaria ‘intimamente ligado ao processo de sua
constituição. A expressão «Igreja episcopal» no tempo do cristianismo primitivo
designava um todo indivisível que traduzia dois aspectos do mesmo processo, cuja
importância na história posterior da religião cristã exige aqui um exame mais
circunstancjado

A palavra «bispo», assim como muitas outras que figuram no Nôvo Testamento, não
era, nessa época, espec’ifican-iente cristã. Ela se compõe, em grego, da preposição epi
(sôbre) e e da raiz do verbo scopeo (olhar), significando em latim inspector, vigilante
(surveillant). Os escritores da Antigüidade empregavam freqüentemente êste têrmo em
sentido não religioso, e êle se encontra igualmente na tradução grega do Velho
Testamento, que foi terminada muito antes da nossa era.

No que concerne ao Nôvo Testamento, encontra-se a palavra «bispos» nas epístolas


pastorais, onde êles aparecem na qualidade de chefes reconhecidos, não sômente de tais
ou quais comunidades, mas, também, de uniões destas, como em Creta, tendo então,
entre outras coisas, o direito de nomear anciãos nos agrupamentos submetidos à sua
autoridade. Segundo essas epístolas, o próprio apóstolo Paulo ordenou Tito e Timóteo.
O Apocalipse de João, antçrior às epístolas, ignora completamente os bispds, e fala
apenas de anciãos, apóstolos e profetas.

As primeiras epístolas paulinianas citam as categorias lembradas no Apocalipse e


acrescentam os doutores, os que têm o dom de curar, os que têm o dom dos milagres, os
que interpretam e falam línguas. O autor da primeira Epístola aos Coríntios,
enumerando os diferentes membros do «corpo de Cristo», fala de todos êsses
personagens, sem nomear os bispos e os diáconos. O segundo grupo das epístolas
paulinia.. nas cita ainda os evangelhistas e os pastores, mas persiste em silenciar sôbre
bispos e diáconos. Êstes aparecem apenas uma vez no preâmbulo da Epístola aos
Filipenses, mas essa passagem parece ter sido intercalada posterjormente.

Êsse silêncio em relação aos dirigentes religiosos que

iriam desempenhar, em seguida, um papel decisivo no seio da

Igreja não é fortuito, Só pode ser explicado se se aceita que

a influência dos bispos começou a se fazer sentir precisamente

a partir dos meados do século II, isto é, depois da composição dos primeiros
documentos da literatura cristã primitiva.
196

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

Acabamos de ver que os livros do Nôvo Testamento nada dizem a respeito dos bispos,
ou quase nada, com exceção das epístolas pastorais. Ë significativo que a palavra grega
episcopoí seja traduzida corretamente nas edições sinodais russas da Bíblia: vigilantes e
não bispos. (Atos dos Apóstolos, XX, 28.) O Nôvo Testamento parece ignorar quase
que totalmente os bispos, mas os escritos não-canônicos, que remontam certamente ao
século II, falam muito dêles, notadamente. as epístolas de S. Clemente Romano, aos
Coríntios. A primeira delas, que a Igreja pretende tenha sido composta no final do
século 1, é de data muito posterior; foi escrita, sem dúvida alguma, depois das epístolas
paulinianas já analisadas anteriormente. O motivo que impeliu Clemente enviar essa
epístola é muito interessante. Segundo êle, na comunidade de Corinto, «pessoas
desonestas levantaram-se contra pessoas honradas, homens ignóbeis, contra homens
gloriosos, tolos, contra inteligentes.» (Cap. III.) Ëles privaram o bispo de seu título, e
Clemente vê aí um grave pecado, incompatível com a moral cristã. Êle chama a atenção,
sobretudo, para o papel primordial do bispo na comunidade e, para provar que êste não
pode ser deposto por rebeldes, declara que, tanto os bispos, corno os diáconos, são
ordenados pelos apóstolos em pessoa.

A primeira epístola de Clemente remonta visivelffiente à época da composição do


segundo grupo de epístolas paulinianas; é por isso que, coisa característica, suas
afirmações sôbre a santidade do título de bispo são acompanhadas de reservas que,
depois do estabelecimento do episcopado monárquico, teriam sido taxadas de heréticas.
No capítulo XLIV, por exemplo, êle reconhece que é necessário «o consentimento de
tôda a comunidade» para que alguém possa tornar-s bispo. Clemente recorda além
disso, traço sintomático, que os apóstolos «sabiam que o estabelecimento do episcopado
suscitaria discórdias.» Terminando sua epístola, aconselha aos rebeldes que se
submetam, não ao bispo, como se poderia esperar, mas aos anciãos (cap. LXII),
reconhecendo assim, tàcitamente, que êles são superiores aos bispos. Tudo leva a crer
que, então, a autoridade dêstes últimos estava longe de ser tão decisiva como o pretende
Eusébio.

A julgar por esta epístola não canônica, no comêço do século II, a comunidade cristã de
Corinto foi o palco de um processo muito importante para o desenvolvimento ulterior
do cristianismo. As epístolas canônicas aos Coríntios mostram que a direção desta
comunidade achava-se nas mãos dos fiéis «tocados pela graça» (apóstolos, profetas,
doutores), estando os negócios práticos e administrativos confiados aos anciãos.

Porém, pouco a pouco, a direção passou às mãos dos bispos e dos seus auxiliares, os
diáconos, encarregados a princípio,

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II 197

muito modestamente, de gerir os bens. È útil recordar a êsse respito a passagem


seguinte do décimo sexto capítulo da Dida quê: «Escolhei bispos e diáconos dignos do
Senhor, homens bondosos, não agarrados ao dinheiro, verídicos e experimentados, que
exerçam para vós o ofício de padres e de doutores.» A autoridade dos bispos não era
muito grande, segundo parece, uma vez que o autor dêste escrito acha necessário
lembrar aos fiéis que era preciso respeitá-los também.

Uma das causas da influência crescente dos bispos e dos diáconos consistia em que
pertenciam às camadas ricas da população; êles deviam, em primeiro lugar, ser
responsáveis pelos valores materiais que lhes eram confiados, e, em segundo lugar,
dispor de tempo necessário para o exercício de suas funções. As condições de vida dos
escravos e dos cristãos pobres não lhes permitiam pretender semelhantes postos nas
comunidades.

O poder dos bispos aumentou gradualmente na comunidade de Corinto e nas outras


também, e isso dependeu do grau de diferenciação social entre os cristãos, e da vigência
de diversas heresias. Em meados do século II, o poder dos bispos tinha progredido,
sobretudo nas comunidades cristãs da Asia Menor e da Síria, fato do qual se tem
confirmação nas epístolas não canônicas de Inácio de Antioquia, aos efésios,
magnesianos, tralianos, filadelfianos e smirniotas.

A glorificação do clero e notadamente dos bispos é o tema

maior das epístolas de Inácio, que sublinha que a nomeação

dêles e a dos anciãos e dos diáconos está conforme com a

«vontade de Deus» (Epístola aos Filadelfianos, 1), donde a

obrigação para os crentes de obedecer ao bispo «como ao

próprio Deus». (Tralianos, 2; Magnesianos, 2; Efésios, 6.)

Comparando sem cessar os bispos a Jesus, Inácio acaba chegando à conclusão um


pouco extravagante de que o Cristo é

«o bispo do gênero humano». (Magnesianos, 3.)

Postas essas premissas, prescreve-se aos fiéis que nada empreendam sem o
consentimento do bispo ou dos anciãos. (Magnesianos, 7.) Inácio ataca violentamente
«os que reconhecem a autoridade do bispo em palavras, mas fazem tudo sem êle.»
(Ibidem, 4.) E êle considera-se no dever de repetir várias vêzes que os crentes que
desobedecem ao bispo colocam-se fora da Igreja. (Tralianos, 3 e 7.) Sua afirmação:

«Aquêle que não se encontra no interior do altar se priva do pão de Deus» (Efésio, 5),
tese diametralmente oposta ao espírito das primeiras epístolas paulinianas por exemplo,
torna-se, no final do século II, a pedra angular da dogmática cristã e do comportamento
da Igreja.

As epístolas de Inácio correspondem, pois, a uma nova fase na trajetória da constituição


da Igreja. O cristianis
198

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

mo original não ëonhecia o episcopado enquanto tal, e as primeiras comunidades cristãs


achavam-se sob a direção dos crentes «iluminados pela graça do Espírito Santo», porém
a evolução posterior da religião cristã se distinguiu, sobretudo, pelo fortalecimento do
poder dos bispos. Na primeira epístola não canônica de S. Clemente vemos que o bispo
está, no fundo, submetido à autoridade dos anciãos, e que o seu poder dependia do
consentimento da massa dos fiéis. As epístolas de Inácio exigem já a subordinação dos
anciãos ao bispo. Insistindo sôbre a necessidade da concórdia entre o bispo, os anciãos e
os diáconos, o autor dessas mensagens acentua que o poder supremo na comunidade
cristã deve pertencer ao bispo, e sàmente a êle. Era o passo seguinte para a constituição
do episcopado monárquico.

É necessário dizer que tal desvio da igualdade dos crentes dos primeiros tempos não
podia deixar de suscitar a resistência dos crentes. Encontram-se vestígios dêsse
descontentamento nas comunidades de Corinto e da Ásia Menor. Os apelos à unidade,
endereçados aos crentes, testemunham que aquela oposição era muito séria. Mas, o
triunfo na luta entre as tendências cristãs estava reservado ao clero pela fôrça das coisas.

O combate em tôrno dos direitos dos bispos e do papel do clero nascente revestia as
mais diversas formas, e não se limitava apenas à questão da competência dos bispos.
Essp luta encontrou uma expressão pouco particular num escrito cristão apócrifo: o
Pastor de Hermas, cujo conteúdo é consagrado principalmente ao problema da Igreja.
Hermas conta que teve a visão de uma mulher idosa que lhe mostrava uma alta tôrre em
vias de construção, em cuja base viam-se pedras brilhantes e quadradas. Os construtores
escolhiam outras pedras que também eram utiilzadas, e afastavam aquelas que não
queriam, seja por causa de sua forma, seja porque elas estavam fendidas. A aparição
explicou-lhe que a tôrre simbolizava a Igreja, as pedras polidas da base eram os
apóstolos, os bispos e os diáconos. O resto do material representava a massa dos
crentes, que deviam ainda vir a ser virtuosos, como o cristianismo o exige, para se
tornarem dignos de fazer parte do edifício da Igreja. A aparição acrescentou que,
quando a tôrre estivesse acabada, já seria muito tarde, e que as pessoas que se tivessem
revelado inúteis não poderiam mais esperar a salvação.

O Pastor proclama, dêsse modo, a tese das epístolas de Clemente e de Inácio, segundo a
qual só a Igreja representa o cristianismo, sendo o clero a sua base, enquanto que os
outros crentes apenas condicionalmente fazem parte dela.

A crescente influência dos bispos e a ampliação de suas funções aumentava o seu papel
nas comunidades. Os cargos que

O CRISTIANISMO DUkANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II 199

êles assumiam, em meados do século II, são descritos de um modo bastante


pormenorizado nas epístolas pastorais inclusas no cânone da Igreja. Deviam, antes de
tudo, gerir as finanças das comunidades. A difusão do cristianismo, particularmente
entre as classes possuidoras, contribuiu para aumentar os fundos monetários das
comunidades, permitindo-lhes adquirir diversos bens. Os gastos para a manutenção dos
cemitérios, das capelas, para a organização das refeições comunais, para a compra de
livros santos etc, eram feitos por intermédio dos bispos e dos diáconos. A espera do fim
do mundo, que a predicação escatológica proclamava próximo, levava alguns crentes a
renunciarem aos seus bens em proveito da Igreja, sobretudo quando faziam seus
testamentos. Mesmo quando essa prática foi substituída pela esmola, a situação
financeira das comunidades continuou próspera: a distribuição das esmolas se efetuava
sempre por via do clero. O quinto capítulo da primeira Epístola a Timóteo é quase que
inteiramente consagrada à predicação da assistência aos pobres, notadamente às viúvas.
Não se pode duvidar de que os valores bastante importantes das comunidades à dispo
sição dos bispos eram largamente utilizados por êstes para aumentar sua própria
influência sôbre a massa dos cristãos.

Tendo os bispos à sua disposição somas muito elevadas, parece que isso engendrou
abusos da parte dêles: os autores das epístolas pastorais lembram sem cessar que os
bispos e os diáconos devem se distinguir pelo seu desinterêsse pelo dinheiro. (1
Timo’teo, III, 3 e 8; Tito, 1, 7 etc.) Os apelos reiterados que se lhes dirige, exortando-os
a não se darem ao vinho, a evitarem os gestos violentos, a serem castos, bosquejam um
quadro bem eloqüente dos costumes pouco virtuosos do clero.

A principal função dos bispos era, contudo, a luta contra as heresias. Já as epístolas
pastorais, assim como as mensagens não canônicas de Inácio, deixam de recomendar a
pregação entre os adeptos de outros cultos, e insistem sôbre a necessidade de evitar «as
disputas de palavras, que só servem para arruinar a fé dos que as ouvem.» (II Timóteo,
II, 14.) Os discursos que se endereçam aos heréticos são qualificados no versículo 16 de
«vãos e profanos». Assim, o principal meio de ação dos bispos sôbre suas ovelhas não é
mais a pregação, são as medidas repressivas e a beneficência. É significativo que não se
pensava mais em exigir dos pretendentes ao título de bispo o dom da eloqüência
sagrada, a aptidão para desfazer as dúvidas dos crentes, o conhecimento das santas
escrituras etc.

Uma vez que estamos tratando da constituição do episcopado monárquico, será útil
determo-nos um pouco mais longa. mente no exame do desenvolvimento da
comunidade cristã de Roma, primeiramente porque possuímos. sôbre ela mais infor
200

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

mações do que sôbre tôdas as outras, e, depois, porque os bispos romanos


desempenharam um papel muito importante no estabelecimento do cânone do Nôvo
Testamento.

Para justificar a pretensão do Papa ao poder supremo, os chefes do catolicismo


contemporâneo citam antes de tudo a passagem do Evangelho Segundo Mateus em que
se atribui a Jesus estas palavras dirigidas a Pedro: «E também eu te digo que tu és
Pedro, e sôbre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não
prevalecerão contra ela. E eu te darei as chaves do reino dos céus; e tudo o que ligares
na Terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na Terra será desligado nos céus.»
(Mateus, XVI, 18-19.) Os teólogos consideram êste apóstolo como o fundador da
comunidade cristã de Roma e séu primeiro bispo; segundo êles, os bispos romanos, aos
quais se deu posteriormente o nome de papas, são seus sucessores e, como tais, devem
estar à testa da Igreja universal.

Porém, essas linhas do Evangelho Segundo Mateus são posteriores, sem dúvida, à
redação primitiva. Os evangelistas, em geral, evitam empregar a palavra «Igreja». Salta
aos olhos, por outro lado, que a anunciação do fim do mundo num futuro próximo
contradiz o projeto de edificação de uma Igreja universaL Além disso, a passagem
citada não figura nos outros evangelhos.

A comunidade cristã de Roma não se formou, visivelmente, senão no século II, fato êsse
que é confirmado pela própria arqueologia cristã. Os vestígios mais antigos de cristãos
em Roma remontam apenas aos meados do século 1, e isso, é atestado pelos
documentos literários da Antigüidade. A lista de bispos romanos remontando a Pedro,
apresentada, p.ela primeira vez, por Irineu, só é verídica a partir da segunda metade do
século II.

Os chefes da comunidade cristã de Roma não tinham pretendido, até essa época,
qualquer prerrogativa especial em relação aos bispos de outras cidades. Tertuliano e
Orígenes levantaram-se enèrgicamente contra a idéia de que a Igreja teria sido fundada
sàmente por Pedro, e não por todos os apóstolos. Quando, no ano de 178, o bispo
romano Eleutério considerou-se no dever de estigmatizar as seitas montanistas, as
comunidades da Gália acharam possível dirigir-se a êle para pedir que renunciasse aos
seus ataques. Vitor, seu sucessor, excomungou as comunidades da Ásia Menor por
celebrarem a páscoa na mesma época que os judeus, mas quando Irineu reclamou uma
solução conciliatória, êle vciltou atrás na sua decisão. Tertuliano perguntou-lhe
irônicamente se convinha admitir que êle estava se preparando, «julgando-se pontifex
maximus, bispo dos bispos, para dar ordens a êstes.»

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II 20i

Tudo isso prova que os bispos romanos começaram a tatear o terreno visando a
submeter ao seu poder as outras comunidades cristãs, sàmente a partir da segunda
metade do século II, isto é, depois da constituição do episcopado monárquico. Porém,
detiveram-se ante a oposição despertada nessas comunidades, e se viram, mais de uma
vez, obrigados a bater em retirada. Só conseguiram se impor às comunidades orientais
do Império ao cabo de um século, no final do século III, e, definitivamente, no comêço
do século IV. Mas, o estudo dêste problema ultrapassa os planos da presente obra, de
modo que nos devemos limitar a assinalar o papel ativo dos bispos romanos daquele
período, no que concerne ao estabelecimento do cânone da Igreja. Os mais antigos
catálogos de escritos canônicos provêm da comunidade de Roma, precisamente das que
se encontravam diretameite sob sua influência. Os bispos romanos mantiveram também
uma luta particularmente tenaz contra os montaistas e os gnósticos.

A ulterior evolução do cristianismo caminharia a par com o desenvolvimento de uma


hierarquia eclesiástica separada da massa dos crentes. A partir do século III apareceram
os «bispos do côro», que no’ século VI receberam o nome de arcebispos. Os bispos das
cidades orientais mais importantes do Império, Alexandria, Antióquia, Constantinopla,
receberam, a partir do século IV, o nome de patriarcas e de metropolistas. O aumento do
número de diáconos determinou a criação, no comêço do século IV também, do título de
arquidiácono. Por essa época, aproximadamente, surgiram os adjuntos dos bispos. E
assim se foi constituindo a poderosa corporação clerical, senhora das grandes riquezas
acumuladas pela Igreja, e que utilizava sua influência sôbre os crentes para os conciliar
com seus exploradores. Uma das funções primordiais do aparato eclesiástico consistia
em lutar contra as correntes heréticas que ainda conservavam os elementos próprios do
cristianismo original.

A constituição do episcopado progredia paralelamente ao estabelecimento do cânone.


Na época do cárisma nas comunidades cristãs, a pregação na nova religião era oral; o
principal papel nas assembléias competia aos profetas, dos quais se fala com freqüência
nas primeiras epístolas de Paulo. Êles proferiam seus sermões em estado de êxtase e não
se sentiam tolhidos pelos’ livros sagrados. Quanto mais incoerente era a sua linguagem,
mais profunda era a impressão que causavam, pois acreditava-se que era ‘justamente
então que o Espírito Santo os inspirava. A recordação das profecias proferidas em
êxtase foi conservada nos primeiros capítulos dos Atos dos Apóstolos, o menos antigo
dos escritos’ do Nôvo Testamento, onde se encontra, todavia, muitos dos traços da
ideologia e dos costumes dos primeiros cristãos. É significativo que apesar

202
A ORIGEM DO CRISTIANISMO

da luta do clero contra o prestígio dos profetas «inspirados», alguns traços da vida das
comunidades cristãs primitivas, ligados pela tradição ao nome dos apóstolos, não
deixaram de ser honrados mesmo durante a segunda metade do século II.

Pouco a pouco, as necessidades da pregação, o aparecimento do clero e a propagação


cada vez mais vasta do cristianismo, puseram na ordem do dia o problema da fixação
por escrito do credo da nova religião. Os escritos cristãos importantes sob tal ou qual
aspecto eram copiados e lidos nas assembléias dos fiéis. As epístolas às diferentes
comunidades cristãs, que tinham por tema a situação no seio de cada uma delas, foram
um dos gêneros mais antigos e mais difundidos da literatura do cristianismo primitivo.
Para dar maior autoridade a essas mensagens, elas eram atribuídas aos guias conhecidos
da nova religião, notadamente aos apóstolos.

Lembremos, aqui, que, tal como a palavra «bispo», a palavra «apóstolo» não era, no
comêço, especificamente cristã, nem mesmo religiosa, pois apenas significava
«mensageiro» em grego, nada mais. Os judeus chamavam dêsse modo aos emissários
religiosos palestinos encarregados, por exemplo, de recolher as contribuições dos
crentes nas comunidades da diáspora. Os primeiros cristãos empregaram êsse têrmo
aproximadamente no mesmo sentido. Foi só depois da aparição do mito de Jesus que se
deu o nome de apóstolos aôs discípulos do Cristo. Que os apóstolos não passam de
figuras simbólicas, o pormenor seguinte o confirma: nos Atos está dito (1, 15-28) que,
quando Jesus foi crucificado, seus discípulos decidiram que, tendo Judas traído, faltava
ainda um apóstolo para continuar sendo doze; ora, doze era visivelmente um número
mágico tal como o das «doze tribos de Israel».

Outro gênero literário próprio do cristianismo primitivo eram os apocalipses que


descreviam visões ligadas ao advento do Messias Salvador. Ëles eram muito populares
entre os hebreus, e alguns dêles foram incluídos no Antigo Testamento.

Os evangelhos, escritos especificamente cristãos, transmitiam «a boa nova» do advento


do Cristo, descreviam os episódios de sua vida terrena e, como os apocalipses, eram
habitualmente atribuídos a apóstolos. Conhecemos mais de vinte evangelhos, se bem
que apenas pelas referências ou por fragmentos que foram conservados. A Igreja
reconheceu apenas quatro sem, com isso, os tornar mais verídicos.

A partir da segunda metade do século II, o cristianismo já possuia uma vasta literatura,
nascida nas diversas comunidades, e cujo grau de autoridade aos olhos dos crentes
dependia das circunstâncias. Êsses escritos expunham os dogmas cristãos, cada um a
seu modo. Já vimos que mesmo uma questão tão fundamental como a da existência
terrestre de Jesus é inter-
o CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO StCULO II 203

pretada nos evangelhos canônicos de maneiras muito diferentes. As contradições a êsse


respeito eram ainda maiores nos escritos cristãos rejeitados pela Igreja. A luta entre as
correntes cristãs giravam em tôrno das mais diversas questões, as disputas que levavam
até à ruptura tinham por objeto a atitude a adotar em relação ao judaísmo, à data da
celebração da páscoa, à natureza divina ou humana de Jesus etc. Nessas condições,
pode-se dizer sem nenhum exagêro que a existência da nova religião dependia antes de
tudo da canonização dos dogmas.

Os representantes do clero nascente foram os primeiros a perceber a necessidade de


cercar certo número de escritos cristãos com uma auréola de santidade, e de rejeitar
todos os outros. A canonização de determinado grupo de livros sagrados certamente
oporia uma barreira à difusão das doutrinas heréticas, permitiria estigmatizar os escritos
que expusessem idéias contrárias aos interêsses dos dirigentes das comunidades cristãs
(precisamente as idéias próprias do cristianismo original). De outra parte, o
estabelecimento do cânone abria a possibilidade de se corrigir, de passagem, as obras
cristãs dos primeiros tempos, muito espalhadas entre os crentes para serem repelidas
simplesmente como apócrifas.

A fixação do cânone cristão assumia tal— importância aos olhos da Igreja, que Eusébio,
autor da primeira história eclesiástica, considerou-se no dever de a consagrar
principalmente ao exame daquela questão. Não se limitou a enumerar os livros
reconhecidos como canônicos, assinalou também a existência de divergências quanto à
inclusão no cânone das epís tolas de Tiago, de judas e das últimas epístolas de Pedro e
de João, divergências do mesmo caráter que as suscitadas pelo Apocalipse. No que
concerne aos evangelhos não canônicos, Eusébio nota que «suas idéias e as teses que
êles expõem afastam-se muito da verdadeira fé, não passando, sem dúvida alguma, de
invenções dos heréticos.»

Dispomos de dois pontos cronológicos de referência bastante seguros para o estudo do


estabelecimento do cânone cristão, dos quais o primeiro é a obra de Irineu que
reconhecia como santos, por volta do ano de 180, «quatro evangelhos, e sômente
quatro», e o segundo, o cânone de Muratori, que remonta aproximadamente ao ano 200
e que enumera quase todos os livros incluídos no Nôvo Testamento.

Assim, o processo da fixação do cânone estava estreita- mente ligado ao da constituição


do episcopado monárquico. Na verdade, tratava-se aí de dois aspectos do mesmo
fenômeno, que encerrou, quanto ao essencial, o período inicial da história do
cristianismo. Posteriormente, o cristianismo já se apresentará como uma religião
definitivamente cristalizada.

A ORIGEM DO CRISTIANISMO 204

5. OS CRíTICOS ANTIGOS DO CRISTIANISMJO

Ao abordarmos as fontes históricas do cristianismo até a segunda metade do século II,


nós nos limitamos, quase que exclusivamente, ao exame dos documentos cristãos. A
literatura judia, grega e latina do século 1 e começos do II, mantém um silêncio quase
completo sôbre a nova religião: ela não interessa aos escritores leigos da época, os quais
não viam nela senãj uma seita entre as muitas do oriente do império Romano.

Esta situação só muda a partir da segunda metade do século II, pois dispomos então de
testemunhos sôbre o cristianismo primitivo tão preciosos como as obras de Luciano, e,
sobretudo, a de Celso. Nem o primeiro, nem o segundo tinham razões para serem mais
hostis a esta religião do que a qualquer outro culto oriental, o que nos garante, de certo
modo, o caráter mais ou menos objetivo de suas informações.

As convicções de Luciano e de Celso se aparentam. Pertencem ambos ao mesmo grupo


de intelectuais greco-romanos nutridos pela cultura antiga. O cristianismo lhes parecia
inaceitável antes de tudo porque o consideravam como um amontoado de
inverossimilhanças e de superstições. Êles sublinham a ingênua credulidade dos
primeiros cristãos, sua paixão pelo maravilhoso e a ignorância crassa dos seus profetas e
pregadores. Ësses dois escritores distinguem-se um do outro sobretudo pela maneira de
encarar o cristianismo. Celso expõe e critica a doutrina cristã com o objetivo de
reconhecer-lhe, no final das contas, o direito de existir ao lado dos outros cultos do
Império, sob a seguinte condição: lealdade dos seus adeptos no plano político. Luciano
dedica-se apenas a descrever os costumes dos pregadores itinerantes da nova religião e
dos «fazedores de milagres» de tôdas as espécies.

No seu relato, A Morte de Peregrinus, Luciano apresenta um quadro bastante exato,


ainda que satírico, da vida das comunidades cristãs em meados do século II.

Êle conta as aventuras de Peregrinus que, convertido ao cristianismo, passa por cima
dos padres e dos doutores cristãos, assume a direção dêles, torna-se profeta, chefe da
comunidade, e «faz tudo sôzinho, interpretando os escritos cristãos, explicando-os e
compondo outros por conta própria.» Encarcerado por ser cristão, viu-se,
repentinamente, objeto dos cuidados de todos os adeptos de Cristo. «Desde o
amanhecer, via-se em roda da prisão uma multidão de velhas, de viúvas, de órfãos. Os
chefes da seita depois de terem subornado o carcereiro passavam a noite junto dêle. Não
se poderia imaginar maior dedicação em semelhante ocorrência; para dizer tudo em
poucas palavras, nada era difícil para êles.» Emissários das cidades
O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II 205

da Ásia Menor vieram à Síria para intervir junto às autoridades, em favor do pobre
Peregrinus! Luciano nota mais adiante que os cristãos nutriam a esperança de serem
recompensados no reino dos céus, «desprezam também todos os bens, e os põem em
comum. De sorte que, se surgir entre êles um impostor, um velhaco sagaz, não terá êle
de dispender grandes esforços para se enriquecer muito depressa, rindo-se a socapa da
simplicidade dêles.»

Êste escritor zomba de tôdas as religiões da Antigüidade. Nada o impelia, portanto, a


difamar particularmente a doutrina cristã, a ironizar precisamente os costumes dos
cristãos. No conto citado, êle os lamenta mesmo por terem sido ludibriados pelo velhaco
Peregrinus. Tudo isso dá maior valor ainda às suas informações sôbre a vida das
comunidades cristãs primitivas.

Peregrinus não interpreta apenas as escrituras, êle também compõe por «conta própria».
Quem sabe se algumas das suas obras não deslizaram para o cânone! Luciano ainda
ignora os bispos e os diáconos. As comunidades cristãs que êle descreve são dirigidas
por profetas e anciãos, tal como aquelas a que se referem as primeiras epístolas
paulinianas, mas, segundo êle, elas já mantêm relações bastante estreitas, umas com as
outras.

A se julgar por êsse relato, assim como por outras fontes, s perseguições contra os
cristãos muito raramente tinham um caráter maciço. Encarcerado por ter aderido ao
cristianismo, Peregrinus é assistido, dia e noite, pelos chefes cristãos que trazem sempre
fartas refeições. Finalmente, o Governador da Síria o deixa «partir em paz, achando que
êle não é digno nem mesmo de ser punido. »

Assinalemos ainda que Luciano insiste sôbre o desprêzo dos adeptos do Cristo pelos
bens dêste mundo, constatação tomada ao vivo sem dúvida alguma, e essa atitude cristã
se explica pela espera extática do advento do reino de Deus.

As informações fornecidas pelo canto satírico de Luciano coincidem, quanto ao


essencial, com os dados das fontes cristãs. Segundo a opinião geral, Luciano o escreveu
aproximadamente no ano de 165, quando ainda não se tinha estabelecido o cânone, nem
triunfara ainda o episcopado monárquico.

As superstições cristãs não foram submetidas, nas obras de Luciano e de Celso, a uma
crítica sistemática. Orígenes acusou este último de seguir a doutrina epicurista, mas sem
qualquer fundamento: Celso, que gosta muito de citar os filósofos gregos, nunca se
refere, contudo, a Epicuro, e ataca o cristianismo apenas do ponto de vista do idealismo
antigo. Apesar disso, soube apreender os mais vulneráveis aspectos da ideologia cristã,
e suas observações foram utilizadas pelos críticos ulteriores do cristianismo, os
enciclopedistas franceses inclusive.

206

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

No seu Discurso Verdadeiro, mostra-se bastante indignado pelo fato de que certos
cristãos «se recusam a explicar ou a deixar que se lhes explique sua fé, repetindo frases
tais como «não pergunta, crê», «a fé te salvará» (1, 9). Segundo êle, os cristãos buscam
difundir sua religião sômente entre os ignorantes e os tolos absolutamente estranhos à
filosofia, entre os escravos, -as mulheres, as crianças. Vê o autor na inclinação do povo
por tôda espécie de fábulas, a causa principal do êxito do cristianismo.

Tudo isso correspondia à situação nos meios cristãos do século II. Convém lembrar,
contudo, que Celso não podia compreender que a oposição dci cristianismo aos outros
cultos e sua pregação aos humildes não era a fraqueza, mas o ponto forte do
cristianismo. Êle também se engana ao compará-lo com os outros cultos, com o
judaísmo, por exemplo, que êle considerava igualmente como sendo uma superstição,
mas cujos adeptos eram a seus olhos mais dignos de estima: «observando os ritos ( . . . )
dos seus ancestrais, êles se comportam como todos os homens.» (Discurso Verdadeiro,
V. 25.) Outra coisa que não lhe agradava nos cristãos era o apêlo que faziam aos
homens de tôdas as nações.

Religioso êle próprio e acreditando nos mitos gregos, Celso admitia a existência de
Jesus. Achava, apenas, que êle não era Filho de Deus como o afirmavam os cristãos,
mas um simples mistificador. Espantava-se da puerilidade daqueles que consideravam o
Cristo como uma divindade sem razões suficientemente válidas. A admissão por Celso
da fé religiosa como tal nada tem de estranho uma vez que êle venerava os

deuses gregos e romanos, acreditava na existência de Hércules e de outros heróis


mitológicos; o que o espanta nos cristãos é o fato de êles atribuírem uma natureza divína
à Jesus, fundando-se nas antigas profecias: «Os profetas, escreve êle, anunciaram

a vinda de um poderoso senhor de tôda a Terra, de todos os povos e de todos os


exércitos, e não de tal impostor.»

A crítica de Celso fornece informações muito importantes. Fala de Jesus apenas


segundo as fontes cristãs, o que prova que, no seu tempo, ainda não se tinham
introduzido passagens sôbre o Cristo nos escritos de Flávio Josefo e nos de outros
escritores greco-romanos, sem o que êle não teria deixado de citar as comunicações
dêles relativas ao tema de sua própria obra. Ële expõe, em seguida, uma versão. sôbre a
origem de Jesus, diferente da dos evangelhos, apresentando-o como sendo filho de uma
findadeira campestre e de um soldado cujo nome era -Pantera. Dissemos já que o
Talmud chama Jesus de Iochoua Ben-Pandira. Dêsse modo, o livro de Celso vem provar
que, no século II, existiam várias versões a respeito da biografia de Jesus.
O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SgCULO II 201

Suas múltiplas notas sôbre os elementos sincretistas do cristianismo são extremamente


importantes, elas ajudam a definir a ideologia cristã nos meados do século II. Celso fala
do judaísmo como a fonte principal da religião cristã. Não é por acaso que êle consagra
a primeira parte da sua obra à crítica do cristianismo, sob o ângulo da ortodoxia judaica,
sublinhando, em tôda parte, que as profecias do Antigo Testamento constituem o único
argumento em favor da nova religião. Assinala, contudo, desde o princípio, que o
cristianismo tomou muitas outras coisas também de outras religiões, notadamente as
profecias sôbre a ressurreição e anunciação do segundo advento do Cristo. Segundo
Celso, a doutrina cristã dos sete céus deve sua origem à religião dos persas ou ao culto
das Cabiras.4 Considera que o duelo entre Deus e o Diabo, que desempenha tão grande
papel na doutrina cristã, foi tirado da filosofia grega e dos mitos egípcios. Acha que os
mistérios de Mitra e de Sabazios foram incluídos pelos cristãos no seu culto, sem sofrer
modificações substanciais. À guisa de conclusão, o autor do Discurso Verdadeiro afirma
que os. cristãos, «copiando desajeitadamente os outros, deformaram por causa de sua
igno- - rância» o que os gregos haviam dito «sem ênfase e sem o atribuir a Deus.»

Celso revela-se bastante versado tanto na literatura judia como na cristã; conhecia não
sômente os livros sagrados dessas religiões, mas também os escritos de diversas seitas
cristãs. Era tão erudito nesse domínio que até o próprio Orígenes, um dos mais
importantes Padres da Igreja do século III, se vê enrodilhado em dificuldades por êle.
Celso estudou, em particular, as atividades dos profetas, não sàmente nos livros, mas
também observando-os êle mesmo. Nota, indignado, que «muitos indivíduos obscuros,
nos templos e nas ruas,- e até mendigos errando de cidade em cidade, de campo em
campo, tomam fàcilmente, na época, a pôse de profetas.» Grande número dêles,
desmascarados pelo autor, confessaram que inventavam por conta própria seus
discursos incoerentes.

Êsses personagens são, com efeito, figuras bem típicas do cristianismo original, assim
como de outras religiões da época. Êles são freqüentemente mencionados nas epístolas
paulinianas em que se expõem as regras de conduta dos profetas, em que se formulam
os deveres das comunidades para com êles, e a maneira de distinguir, entre êles, os
«falsos», dos «verdadeiros». Luciano também se refere a êles com muitos pormenores, e
não há dúvida de que os traços que lhes atribui foram colhidos o vivo.

4 Divindades plotetoras dos navegantes segundo a mitologia grega.


208 A ORIGEM DO CRISTIANISMO

Quando se comparam os testemunhos de Celso e de Luciano, com os dados das


epístolas paulinianas, vê-se como os mitos cristãos foram fabricados, e por quem. Não é
por acaso que Celso se mostra tão admírado com a credulidade dos adeptos da nova
religião.

Os escritos cristãos dos primeiros tempos não eram muito mais verídicos do que as
profecias- orais. Celso nota, indignado, que «alguns fiéis (...) num estado semelhante à
embriaguez retocavam por três, quatro vêzes e ainda mais o texto original dos
evangelhos para terem a possibilidade de subtraí-los às acusações.» Isso se aplica
também aos evangelhos canônicos que estão repletos de contradições, apesar dos
numerosos retoques. Celso diz também que os cristãos introduziam «blasfêmias» nos
livros sibilinos (coletânea de profecias).

Dá, por outro lado, muita atenção à luta entre as diversas tendências cristãs e diz de seus
adeptos: «No comêço eram pouco numerosós e professavam a mesma crença, mas, ao
se multiplicarem, dividiram-se, querendo cada um ter sua fração.» E mais adiante: «Éles
[os cristãos] só têm de comum o nome. É a única coisa que não gostam de rejeitar;
quanto ao resto, diferem em tudo.» Segundo a opinião de Celso, a nova religião
distinguia-se não sômente pelo grande número de suas seitas, mas também pelo
combate sem tréguas que elas mantinham umas contra as outras. Enumerando as seitas
cristãs, êle cita os sibiinos, os simonianos, os marcelinos, os carpocratiaflos, os adeptos
de Salomé, de Mariana, de Marta, de Márcio, e muitos çIutros. Descrevendo as relações
entre as seitas, Celso escreve:

«Elas se cobrem de injúrias abertamente ou sorrateiramente, não - chegam a ficar de


acôrdo sôbre qualquer ponto e detestam-se miituamente. »

Neste ponto, o escritor aponta um traço essencial do cristianismo primitivo, que é


confirmado por tôdas as fontes,

o Apocalipse de João, várias epístolas paulinianas, os evangelhos canônicos. Irineu e


Eusébio, escritores cristãos, assinalam, por sua vez, numerosas heresias no cristianismo,
o que contribuiu para acelerar a constituição do cânone depois da vitória do episcopado
monárquico, como o leitor o viu páginas atrás.

Celso constata a existência entre os cristãos de uma «igreja principal», outro testemunho
importante. Dá essa denominação ao grupo de fiéis que veneram o Deus Pai dos judeus
e reconhecem a cosmogonia do Velho Testamento; tal informação pode servir de
critério seguro para estabelecer - a data da fundação da igreja episcopal. Celso nos
informa ainda que no final do terceiro quarto do século II, a Igreja já existia, e se tinha
separado nltidamente das outras correntes do cristianismo, e êsse fato não escapou ao
perspicaz adversário dos cristãos.

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II 209


Deve-se, portanto, situar o aparecimento do episcopado em meados do s&uio II.

Porém, no tempo de Celso, êsse processo ainda estava longe do seu término. Em seu
livro, êle dirige sua crítica das crenças cristãs não contra o dogma oficial da Igreja, mas
contra os gnósticos, o que indica que considerava o gnosticismo como a tendência mais
difundida entre os cristãos. O combate contra essa corrente, que via em Jesus um ser
divino, mas não

o Filho de Deus, desenvolveu-se, com efeito, no seio do cristianismo, do comêço, ao


fim do século II. Pode-se admitir que, no tempo de Celso, o gnosticismo não era menos
popular entre os cristãos, do que a doutrina que iria vencer e impor-se aos crentes. Celso
fala também de Márcio que sustentava que as profecias do Antigo Testamento não
podiam ser relacionadas com Jesus. O -marcionismo foi, no século II, um sério
adversário da Igreja nascente.

Celso sublinha que a composição social das comunidades cristãs não tornava a nova
religião digna de respeito aos olhos dos romanos instruídos. Apesar de admitir que se
podia encontrar entre os cristãos «homens de experiência e de juízo», declara que sua
doutrina era professada, em geral, pelas pessoas humildes, achando isso natural aliás,
pois, segundo êle, êles evitam abrir a bôca nos lugares públicos diante de pessoas de
qualidade, enquanto que, ao depararem jovens, grupos de escravos ou de exaltados, êles
se fatigavam contando-lhes maravilhas. Sempre segundo Celso, nos meios privados, os
predicadores do cristianismo eram «tecelões, sapateiros, calceteiros, em suma, a gente
mais grosseira» que se esforçava por espalhar sua fé entre as crianças, as mulheres e os
escravos. Ële repete, por várias vêes, isso, e confessa seu aborrecimento por ver os
cristãos empenhados em «expor a sabedoria divina a escravos ou a criaturas desprovidas
de qualquer educação. . . »

O quadro da composição social das comunidades cristãs por êle descrito coincide
inteiramente com os dados dos primeiros documentos cristãos. Ao examinarmos as
epístolas paulinianas mais antigas e os evangelhos, verificamos a mesma coisa quanto à
base social do cristianismo primitivo. A influência desta religião sôbre as camadas
abastadas da população sé começou a se tornar patente a partir da segunda metade do
século II. Quando Celso compôs seu Discurso Verdadeiro «os trabalhadores e os
oprimidos» formavam ainda a grande massa dos adeptos do Cristo. Porém, aquilo que o
escritor considerava como sendo a fraqueza do cristianismo, isto é, suas ligações com as
camadas profundas do povo, revelou-se, por fim, um dos principais fatôres do seu
reconhecimento pelos imperadores romanos, os quais avaliam a fôrça do cristianismo
justamente por sua influência sôbre as vastas massas da população.
210

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

Celso não faz qualquer alusão à hostilidade dos cristãos contra as autoridades romanas,
o que é um importante índice do grau de evolução do crístianismo no momento em que
êle escrevia e, ao mesmo tempo, uma prova da sua lucidez de observador. Na única
passagem em que fala do «espírito rebelde» dos cristãos (Discurso Verdadeiro, III, 14),
êle está se referindo não ao ódio contra o Estado Romano, mas aos sentimentos que os
cristãos manifestam contra as outras religiões.

Celso consagra largo espaço do seu livro à refutação de um dos dogmas fundamentais
do cristianismo: a ressurreição de Jesus depois da crucificação. Os evangelhos vêem
nisso a prova suprema da divindade de Jesus, e João acentua• que foi uma ressurreição
da carne. Não é por acaso que tanto se fala da incredulidade de Tomé, um dos doze, que
não queria acreditar na ressurreição antes de pôr seu dedo «no lugar dos cravos» e a
«mão no lado» de Jesus. (Evangelho Segundo Jogo, XX, 25-27.) A crença dos cristãos
na ressurreição do Senhor é tratada com ácida ironia por Celso. «Os mortos, escreve êle,
são a esperança dos vermes. Que alma humana pode ter saudades de um corpo
decomposto?» Esta frase prova até que ponto a religião cristã era incompatível com o
nível dos conhecimentos de então. Celso ridiculariza com muito talento as
representações antropocêntricas dos cristãos, que êle compara a vermes que se põem a
dizer: «Deus existe, e depois dêle fomos nós que viemos, nascidos de Deus e feitos à
sua imagem. Tudo nos está submetido: a Terra, as águas, o ar e os astros, tudo existe
para nós, e para nos servir. Mas, alguns entre nós pecaram, e é por isso que Deus deve
vir, ou enviar seu Filho, para castigar os ímpios e ajudar-nos a atingir a vida eterna com
êle.» Apesar de venerar os velhos deuses greco-romanos, Celso sabia mostrar quão
irrisórias eram as idéias religiosas dos cristãos.

Devemos assinalar, agora, um aspecto do problema que escapou a êsse crítico da


Antigüidade. A crença dos cristãos na ressurreição da carne e suas idéias
antropocêntricas não se deviam ao acaso, eram inerentes à sua ideologia e ajudavam
poderosamente a predicação do cristianismo tornando quase palpável o quadro da
felicidade no além, o que aumentava grandemente seu domínio sôbre os escravos e
sôbre os pobres. As esperanças dêstes, de renascer em carne no reino dos céus, criava
um terreno propício à rápida difusão da nova religião. Quanto mais ingênuas eram essas
esperanças, mais a ela se agarravam, e maior êxito tinha a religião que as semeava.

Na última parte da sua obra, Celso expõe as razões que o levaram a escrever. Apesar de
sua atitude claramente negativa em relação aos cristãos, êle não lhes pede senão que
dêem prova de lealdade política para com o Imperador. Uma vez

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II

211

que os adeptos do Cristo vivem no território romano, diz Celso, êles «estão na
obrigação de prestar as homenagens habituais àqueles que o governam, a executar seus
deveres nesta vida antes de se libertarem das suas cadéias.» Segundo êle, os cristãos são
obrigados «a defender o Imperador com tôdas as suas fôrças, partilhar suas penas, bater-
se em seu nome, participar de Suas campanhas quando fôr necessário.» Com esta
condição,, devem êles gozar, segundo Celso, do díreito de professar abertamente sua fé,
tal como todos os outros habitantes do Império.
Esta posição de Celso, que tinha relações com os círculos governamentais de Roma,
prova que a Igreja já se tinha transformado então em uma fôrça que os funcionários
romanos não podiam inais negligenciar. Esta posição mostra, de outro lado, que não
havia perseguições sistemáticas contra os cristãos, sob os Antoninos. As lendas da
Igreja, a respeito dos numerosos mártires cristãos que suportaram galhardamente os
suplícios a que foram submetidos, não são confirmadas pelos documentos de que
dispomos.

A atitude conciliadora dêste escritor em relação ao cristianismo mostra, finalmente, que


os apologistas cristãos se enganam quando sustentam que a religião cristã, nos seus
começos, condenava categàricamente «êsse mundo vil que chafurda nos vícios e nos
pecados.» No final do século II, constata-se a tendência para uma aproximação
recíproca entre a Igreja e o poder romano. E era natural, porque a evolução do
cristianismo, sobretudo depois do aparecimento do episcopado monárquico, o tinha
levado a renunciar, já há muito tempo, ao «extremismo» do Apocalipse, para tornar-se
um culto perfeitamente inofensivo.

6. AS HERESIAS DO SËCULO II

A história do cristianismo primitivo se distingue, em primeiro lugar, pela presença, no


‘seu seio, de um grande número de seitas diferentes, que mantêm entre si, segundo a
expressão de Engels, uma luta darwiniana pela existência. Os Padres da Igreja explicam
essa situação como resultante de um «ardil do Maligno», que queria comprometer a
nova religião, deformá-la e impedir a qualquer preço a difusão da verdadeira fé, cujos
fundamentos, a dar-se-lhes crédito, já existiam. Esta interpretação difere pouco, no
fundo, da dos teólogos contemporâneos que apresentam o cristianismo como uma
religião que nasceu tal como é hoje, com uma dogmática concluído, e que se difundiu
em seguida gradualmente. Colocando-se nesse ponto de vista, dever-se-ia também
considerar como deformações deliberadas as teses contrárias a certos dogmas cristãos
expostas
212

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

cá e lá em todos os escritos canônicos e nas obras dos primeiros apologistas cristãos.

Na realidade, as coisas se passaram de outro modo. As advertências dos autores das


epístolas, dos apocalipses e dos evangelhos contra tôdas as espécies de falsas doutrinas,
falsos profetas e até mesmo de falsos Jesus atestam que, durante muito tempo, não se
dispôs de uma digmática definitivamente constituída e reconhecida por todos. O
aparecimento, no final do século II, do importante Tratado Contra as Heresias, de
Irineu, a constante atenção que Tertuliano presta à luta contra as correntes heréticas
mostra que, mesmo por essa época, o credo cristão ainda não tinha tomado sua forma
definitiva. A aspereza da luta nesse terreno, as alusões dos escritores ortodoxos ao fato
de que certos evangelhos e epístolas, notadamente as paulinianas, eram, às vêzes,
consideradas como falsificações, são outros tantos fatos que testemunham que as
tendências condenadas pela Igreja tinham o direito de se crerem depositárias dos
ensinamentos do cristianismo primitivo, no mesmo pé de igualdade que o dogma
oficial.

O aparecimento do episcopado, nós já o vimos, foi, em larga escala, o resultado da


necessidade imperiosa em que se encontrou o cristianismo de criar para si uma
dogmática. Porém, convocado para a fixar e a sancionar, o episcopado não conseguiu,
no comêço, pôr fim às divergências, não fêz mais do que estimulá-las: às antigas
divergências ajuntou-se aquela concernente à sua própria autoridade. Durante muito
tempo, a Igreja teve de lutar, antes de poder expulsar as correntes heréticas do
cristianismo oficial, e o estabelecimento do cânone do Nôvo Testamento não
desempenhou o papel final nesse assunto. As heresias que iriam ter tão grande
importância na história posterior do cristianismo não surgiram, portanto, senão durante
o período da constituição do episcopado e do estabelecimento do cânone.

Não dispomos de um número suficiente de informações para poder definir a composição


social e o programa social das seitas heréticas do século II. E ainda mais difícil discernir
o que distinguia essas seitas, sob êste aspecto, das comunidades cristãs submetidas aos
bispos. Nos escritos dos primeiros apologistas cristãos e dos Padres da Igreja as
discussões com os heréticos não ultrapassava o plano estritamente religioso. Ë por isso
que nos é impossível indicar a natureza social dos grupos que se ligavam a estas ou
àquelas correntes heréticas do cristianismo primitivo. Os dados disponíveis permitem
afirmar com certeza que o clero representava os interêsses das camadas abastadas das
comunidades cristãs, enquanto que as heresias recrutavam seus adeptos sôbretudo entre
os escravos, os libertos, os pobres das cidades, justamente aquêles que esperavam
O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II 213

ardentemente o advento do reino de Deus e que se levantavam categôricamente contra a


tendência à conciliação com o poder imperial. O ascetismo pregado por um grande
número de seitas heréticas encontrava também profunda ressonância, sobretudo entre os
pobres.

No século II, a Igreja lutou principalmente em três frentes:

contra a tendência judaico-cristã, contra õ montanismo, e contra o gnosticismo,


correntes que se compunham de um número mais ou menos elevado de seitas diferentes,
com exceção apenas, talvez, da seita de Montanus. Como a Igreja não poupou esforços
para aniquilar os escritos heréticos, não dispomos atualmente senão de uma parte ínfima
da abundante literatura discidente, mas graças às obras polêmicas de Irineu, de
Tertuliano e de Eusébio podemos ter uma idéia bastante clara das correntes
oposicionistas no seio da cristandade.

Estamos relativamente bem informados sôbre a luta da Igreja contra a tendência


judaico-cristã. A impossibilidade para o cristianismo de romper ràpida e radicalmente
com o judaísmo, a necessidade de uma lenta evolução nesse sentido prolongaram êsse
combate, tornando-o extremamente encarniçado. Não possuindo ainda o cristianismo
um órgão diretor reconhecido por todos, a renúncia aos princípios essenciais do
Apocalípse não poderia deixar de determinar o aparecimento de seitas que se erguiam
contra as inovações e defendiam as posições do cristianismo original. Eram os
ebionitas, os nazarenos, os elcesaítas etc., que manifestavam, todos, o desejo de unir o
judaísmo, e o cristianismo.

As informações relativamente abundantes de que dispomos se referem aos ebionitas.


Irineu e Tertuliano falam desta seita em suas obras e Eusébio lhes consagra um capítulo
especial do seu tratado. Segundo Irineu, os ebionitas, contràriamente aos gnósticos,
admitiam que Deus tinha criado o mundo sem a ajuda de uma fôrça intermediária, mas,
acrescenta êle, «o único evangelho que êles reconhecem é o de Mateus, e se recusam a
aceitar a autoridade do apóstolo Paulo, afirmando que êle renegou a lei. No que
concerne às profecias das escrituras, êles as interpretam um pouco a seu modo.
Observam o rito da circuncisão, os preceitos da lei e permanecem fiéis aos costumes dos
judeus, inclinando-se na direção de Jerusalém que, a seus olhos, é a casa de Deus.»

Esta definição lacônica, mas bastante clara, das opiniões religiosas dos ebionitas, parece
que nos transporta para a época do Apoclipse e da Epístola aos Romanos, dois dos mais
antigos documentos cristãos. No Apocalipse de João, o reino de Deus assume o aspecto
de uma Jerusalém celeste, e a Epístola aos Romanos reconhece a circuncisão, a lei
mosaica e os costumes

214
A ORIGEM DO CRISTIANISMO

dos judeus. Aquilo que Irineu acusa nos ebionitas, considerando-os desviados do
cristianismo, corresponde, na realidade, às prescrições dos primeiros escritos cristãos.

Tertuliano nos oferece uma importante informação s6bre os ebionitas quando assinala
que êles vêem em Jesus não o Filho de Deus, mas sàmente um dos profetas. Ëste ponto
parecia ser um protesto contra o Evangelho Segundo João, já canonizado na época de
Tertuliano, no qual se acentua particularmente a natureza divina do lendário fundador
do cristianismo. Eusébio detém-se ainda mais longamente no exame dêste aspecto da
doutrina dos ebionitas, esclarecendo, em sua História Eclesiástica (III, 27), que êles
consideravam Jesus como «um pobre semelhante a todos os outros, que tinha recebido o
título de justo sômente por causa de sua virtude, e que tinha nascido da união de Maria
com seu espôso.» Eusébio acrescenta que outro grupo de ebionitas admitia que

o Cristo tinha nascido de Maria e do Espírito Santo, mas «recusavam-se a ver nêle o
Verbo e a Sabedoria Divina.» Ainda segundo êste escritor, os ebionitas celebravam o
sábado e, apesar de observarem também a festa dominical, seguiam, quanto ao resto, os
usos e os costumes dos judeus. De todos êsses dados, pode-se concluir que os ebionitas
eram uma seita tipicamente judaico-cristã, o que explica, aliás, sua oposição às epístolas
paulinianas, em que a tendência antijudaica aparece com maior relêvo.

Infelizmente, não dispomos de qualquer informação sôbre a composição social da seita


dos ebionitas. O único indício a êsse respeito é, talvez, o seu nome, ebion, que significa
em hebreu «pobre», «mendigo» mesmo, donde se pode deduzir que esta seita recrutava
seus adeptos entre os judeus mais pobres. Porém, a literatura clerical não é unênime
neste ponto: Tertuliano pretende que Ebion é apenas o nome do fundador da seita,
enquanto que Eusébio, com desprêzo, diz que os ebionitas eram assim denominados
porque pensavam pobremente, invectiva inspirada sem dúvida por seu ódio aos
heréticos. Os autores mais antigos acham que os ebionitas davam-se a si mesmos êsse
nome, e não era êle, portanto, uma alcunha inventada por seus adversários. Esta seita
possuia seu próprio evangelho que, a dar-se crédito a Irineu, assemelhava-se ao
Evangelho Segundo Mateus, mas êsse texto não chegou até nós.

As seitas dos nazarenos e dos elcesaítas assemelhavam-se, segundo parece, à dos


ebionitas. Referindo-se aos elcesaítas, Eusébio diz na obra já citada (VI, 38) que, tal
como os ebionitas, êles não aceitavam as epístolas paulinianas, mas reconheciam todos
os livros do Antigo Testamento, e alguns evangelhos. Segundo as comunicações de
outros escritores cristãos, Elcesaí, fundador desta seita, viveu sob Trajano, isto é, nos
O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II 215

começos do século II, e compôs escritos que apresentavam uma mistura de idéias
judaicas e de idéias cristãs.

A própria marcha da evolução do cristianismo destinava as seitas judaico-cristãs ao


desaparecimento. Suas fileiras só se poderiam engrossar graças ao elemento judeu
exclusivamente, enquanto que a difusão da nova religião entre a população
multinacional da bacia mediterrânea diminuia irresistivelmente a influência das
correntes judaico-cristãs.

A Igreja teve de lutar mais longamente contra o montanismo que, tal como as heresias
judaico-cristãs, conservava muitos dos traços do cristianismo original, mas tratava-se
justamente dos seus traços não judaicos. A luta da Igreja contra os montanistas foi
longa, encarniçada, e ela só conseguiu a vitória à custa de grandes esforços, tão
considerável foi a influência desta heresia no século II.

Os escritos dos montanistas não foram conservados, mas outras fontes contêm
referências aos seus evangeffios, epístolas etc. Eusébio, em particular, fala dos escritos
de certo montanista: Astérius Urbanus. Também não dispomos das obras dos
adversários do montanismo: Apolinário, Apolônio, Milcíades etc. Mas, Irineu, Eusébio
e Tertuliano consagraram muita atenção a esta heresia, que êste último escritor abraçou
no fim da sua vida. O quinto livro da História Eclesiástica de Eusébio contém seis
capítulos bastante longos sôbre o montanismo. Essas fontes e ainda outras nos permitem
fazer uma idéia bem nítida das doutrinas de Montanus.

O montanismo deve seu nome ao seu fundador, que foi, a princípio, sacerdote de Cibele
na Frígia (Ásia Menor), e que se mutilou durante a celebração de um mistério.
Convertido em seguida ao cristianismo, não tardou a impor-se às comunidades cristãs
locais. Sua doutrina também é conhecida sob o nome de heresia catafrigiana. Eusébio,
baseando-se em escritos anteriores, diz que «muito dominado pelo desejo de ser o
primeiro, certo Montanus, recentemente convertido, submeteu-se ao Inimigo [isto é, ao
Diabo. 3-I.L] e sibitamente possuído, prêsa do delírio, pôs-se a divulgar as coisas mais
estranhas, enunciando profecias contrárias à tradição fielmente conservada pela Igreja.»
Eusébio reproduz também esta informação de Apolônio, sôbre Montanus: «Êle pregou o
divórcio, estabeleceu jejuns rituais, deu a Pepuza e Tinion, pequenas cidades da Frígia,
o nome de Jerusalém, com o fim de ali reunir gente de todos os países do mundo.
Nomeou recebedores de donativos e, sob a cobertura de oferendas, deu margem às
concussões.»

Além de Montanus e Teodoro, as fontes citam como personagens de primeiro plano da


heresia montanista duas pro

216

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

fetisas: Priscila e Maximilia, cujas atividades remontam à segunda metade do século II.

As declarações dos apologistas cristãos testemunham que os montanistas atribuíam o


dom da profecia e da graça não sómente aos representantes do dero, notadamente aos
bispos, mas também aos fiéis das suas fileiras, causa principal da discórdia entre a Igreja
e êsses heréticos. Os representantes da Igreja nunca perdiam a oportunidade de lembrar
que as profecias de Montanus, de Priscila e de Maximilia não se tinham cumprido e,
sôbretudo, que «elas eram contrárias à tradição fielmente conservada pela Igreja», o que
não era verdade,, aliás, porque o que sabemos dos montanistas em nada contradiz as
primeiras epístolas paulinianas. Por causa de sua oposição ao episcopado é que os
montanistas eram atacados pelo clero, e tal fato é atestado por S. Jerônimo, um dos
Padres da Igreja que diz: «Entre nós, o primeiro lugar é ocupado pelos bispos, enquanto
que êles lhes reservam o terceiro, atribuindo o primeiro aos patriarcas da cidade de
Pepuza, na Frígia, e o segundo àqueles que chamam de «companheiros», relegando
assim os bispos ao último lugar. Na ocasião em que o pontificado monárquico se
constituía, o montanismo representava para êle o mais grave perigo.

Mas, as divergências entre o montanismo e a Igreja oficial não paravam aí:


diferentemente desta, os montanistas aguar davam sempre a volta do Cristo num futuro
próximo, de acôrdo com a predicação do Apocalipse. Foi justamente por essa razão que
Montanus dera a Pepuza o nome de Jerusalém, pois estava convencido de que a segunda
vinda do Cristo teria lugar nessa cidade. Os montanistas não hesitavam em abandonar
suas casas e seus bens para se reunirem em Pepuza, na esperança de nela ver a
«Jerusalém descida dos céus», o que lhes valeu a alcunha de «pepuzianos».

Uma forte tendência escatológica distinguia o montanismo, da Igreja oficial. Em lugar


de uma quaresma anual de quarenta dias prescrita por ela, êles observavam três. Os
adeptos de Montanus condenavam categôricamente o segundo casamento pela Igreja.
Continuavam a prática das refeições comunais, que a Igreja tinha abandonado em
meados do século II, e é a isso, parece, que se refere a informação de Eusébio sôbre as
coletas entre os adeptos da seita. O ascetismo dos montanistas decorria Iàgicamente da
sua crença no fim iminente do mundo, e essa particularidade era própria também de
numerosas outras heresias posteriores. A certeza de que tudo iria acabar inspirava o
desprêzo pelos bens terrestres, e estimulava o desejo de garantir um lugar no reino de
Deus por meio de mortificações da carne e de outros sofrimentos.
O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II 217

Examinando os primeiros escritos cristãos, já encontramos tudo isso: a fôrça do


montanismo estava justamente no fato de que êle continuava a tradição do cristianismo
original que a Igreja abandonou desde a sua aparição, em favor da tendência à
conciliação com a ordem antiga. Tendo aparecido na Frígia e na Mísia, o montanismo
difundiu-se ràpidamente não sômente no oriente, mas também no ocidente do Império.
Predestinat relata que os catafrigianos foram «criticados por S. Sóter, Papa de Roma, e
Apolônio, chefe da Igreja de Éfeso. Tertuliano, ancião de Cartago, opôs-se a êles; êle
defende Montanus, contra Sóter, afirmando que se acusa falsamente seus partidários de
utilizar o sangue dos inocentes e que êles reconhecem a trindade na unidade divina, o
arrependimento dos decaídos e celebram páscoas como nós.»

A alusão ao «sangue de inocentes», isto é, ao assassínio ritual de que a Igreja acusava os


montanistas, corresponde às insinuações dos críticos antigos do cristianismo, Celso
particularmente, contra os primeiros cristãos; o clero as repetia continuamente contra
seus adversários, mas Tertuliano demonstrou suficientemente seu caráter calunioso.

Dispomos de informações provenientes de diversas fontes sôbre a difusão do


montanismo na África, em Roma, na Gália e na Grécia, bem como na Ásia Menor, onde
êle era particularmente popular. O segrêdo do seu êxito se explica pelo fato de que,
diferentemente da Igreja, anunciando o fim do mundo e pregando costumes ascéticos, os
montanistas se opunham, por isso, ao regime político e social da época. As esperanças
escatológicas da doutrina dos montanistas exprimiam um protesto contra o jugo sob o
qual gemiam vastas massas da população, e é por isso que êles conquistavam o apoio
«dos pobres, dos órfãos e das viúvas.» (Euse’bio, oh. cit., V. 18.)

A Igreja manteve contra esta seita um combate particular- mente encarniçado. É


significativo que os montanistas taxassem seus adversários de «assassinos de profetas».
(Eusébio, ob. cit., V. 16.) A profetiza Maximilia lamentava-se por ter sido expulsa do
meio dos crentes «como o lôbo, de entre as ovelhas.» Os primeiros concílios de bispos
foram convocados justamente para estigmatizar a heresia catafrigiana. A Igreja
procurava, por outro lado, utilizar contra os montanistas a autoridade dos mártires
tombados por ocasião das perseguições desencadeadas contra os cristãos em Lugdunum,
sob Marco Aurélio. E, logo que triunfou, ela mobilizou contra êles a máquina de Estado
do Império Romano, primeiramente, e, depois, a de Bizâncio: os duros decretos
imperiais contra os montanistas não cessaram de aparecer até o século VIII.
O esmagamento do montanismo significava a ruptura definitiva com a ideologia do
Apocalipse e das primeiras epístolas,

218

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

substituída pela dos evangelhos canônicos, nos quais se tinham apagado, na medida do
possível, os vestígios do cristianismo original.

O gnosticismo foi a terceira corrente herética com que a Igreja se chocou no sécúlo II.
Seu nome é derivado da palavra grega gnosis, que significa «conhecimento», mas um
conhecimento despojado, entre os gnósticos, convém lembrar, de qualquer sentido
racional: referiam-se ao conhecimento de Deus, não ao da natureza. A questão que mais
os preocupava era a das relações entre a matéria e o Altíssimo. A matéria não era senão
pecado para os gnósticos, e - êles achavam que Deus nunca teria se rebaixado para criar
êste mundo impuro, e é por isso que concebiam, entre êle e a natureza, tôda uma série
de entidades mediadoras, os eons, mais ou menos divinos, cuja definição seria o objeto
de uma disciplina especial: a gnose, o conhecimento.
Eis uma passagem de Irineu, em que é apresentada uma amostra típica do pensamento
gnóstico: «O primeiro lugar [na doutrina do grióstico Valentino] é ocupado pela parelha
em que um é o Inexprimido, e o outro, o Silêncio. Essa parelha engendra outra,
formada, segundo êle, pelo Pai e pela Verdade, a qual dá nascimento, por seu turno, à
Palavra e à Vida, ao Homem e à Igreja; tudo isso compõe o primeiro oitavário. A
Palavra e a Vida fizeram surgir, diz êle, dez Potências ( . . . ),

o Homem e a Igreja, doze. Êle estabelece dois limites: um, entre o Abismo e o Pieroma,
separa os eons criados, do Pai increado; o outro, separa a Mãe, dos eons do Pleroma. O
Cristo proveiu não dos eons do Pleroma, mas da Mãe, independente dêle. Na qualidade
de ser masculino, o Cristo se desembaraça da sombra para ir ao Pleroma. Quanto à sua
Mãe, que permanece com sua sombra, privada da substância espiritual, dá à luz a outro
filho. Ë o Demiurgo, que Valentino chama de Senhor do Universo.»

Êsse delírio não foi inventado pelos gnósticos cristãos: o gnosticismo apareceu antes do
cristianismo. Sua influência se faz sentir notadamente em certas obras de Filon, de
Alexandria. Incoerente, ultramístico, o gnosticismo representa nos seus começos uma
das correntes da filosofia greco-romana na época de sua decadência. Os gnósticos
cristãos procuravam adaptar de qualquer maneira os dogmas da nova religião à filosofia
idealista da época, da qual sua filosofia, para êles, não era no fundo senão um ramo.

Diferentemente das heresias montanistas e das judaico- cristãs, das quais nenhum
escrito nos chegou, possuímos numerosas obras gnósticas, greco-romanas e cristãs.
Descobriu-se,

5 Pleroma, plenitude divina no sistema gnóstico.


O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II 219

em particular, depois da última guerra, um rico depósito de escritos gnósticos em


Chenobosquion, no Egito. Os escritos anti-heréticos de Irineu, de Tertuliano e de muitos
outros escritores eclesiásticos fornecem também informações a propósito dessa corrente,
sôbre que concentram o fogo dos seus ataques, por considerarem que ela era, tal como o
montanismo, o principal perigo para os dogmas ortodoxos. Notemos, de passagem, que
alguns dos escritos introduzidos no cânone são fortemente marcados pelo gnosticismo.

A luta entre o gnosticismo e o dogma ortodoxo girava principalmente em tôrno de duas


questões. Em primeiro lugar, os gnósticos queriam eliminar do cristianismo os
elementos judaicos. Em segundo lugar, não chegavam a se pôr de acôrdo acêrca da
divindade de Jesus. Partindo daí, as discussões se estendiam a outras questões
específicas, mesmo no seio das diferentes correntes gnósticas.

Em regra geral, os gnósticos renegavam o Antigo Testamento, consideravam Jeová, o


Deus dos hebreus, como uma das Fôrças do Mal, e estabeleciam uma nítida distinção
entre êsse Deus, que êles chamavam Ialdabaoth, e o Deus Pai dos cristãos. Alguns
gnósticos chegavam até a glorificar tudo aquilo que o Gênese amaldiçoava: a serpente,
Caim etc. Os adeptos de uma seita gnóstica influente chamavam-se a si mesmos
nahassênios ou ofitas, palavras que derivam respectivamente de serpente, em hebreu, e
em grego. Os ideólogos do gnosticismo, por conseguinte, não reconheciam a autoridade
de certas epístolas e dos evangelhos em que os elementos judaícos apareciam com um
relêvo acentuado.

Por outro lado, os gnósticos levantavam-se contra o dogma dos sinóticos referentes ao
Jesus Homem-Deus, procurando ultrapassar, de diversas maneiras, as contradições dos
evangelhos. Alguns entre êles afirmavam que Jesus não tinha mesmo nascido de Maria,
outros proclamavam, ao contrário; que êle nada tinha de divino, que êle era um homem
cheio de Espírito Santo ünicamente graças à sua virtude. Os gnósticos distinguiam
Jesus, do Cristo, o homem, do Messias, argüindo que só o primeiro, enquanto criatura
humana, poderia ter sido crucificado.

Os primeiros representantes do gnosticismo cristão foram Carpocrato, Cerinto e Cerdon.


Eusébio fala de Carpocrato como sendo o fundador da heresia gnóstica. Irineu assinala,
por sua vez, que êles já agiam durante a primeira metade do século II. E que Cerinto,
oriundo do Egito, «ensinava que o mundo tinha sido criado não pelo Deus supremo,
mas por uma potência muito abaixo dêsse Deus, o Príncipe Supremo. (...) Afirmava que
Jesus não tinha sido concebido por uma virgem (isso lhe parecia inimaginável), que êle
era verdadeiramente filho de Maria e de José, e que êle tinha excedido
220

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

todos os homens por sua eqüidade, seu bom senso e sua sabedoria. Durante o batismo
do Cristo, o enviado do Príncipe inicial desceu sôbre êle, sob o aspecto de uma pomba;
depois disso, êle anunciou o Pai desconhecido e realizou milagres. Separado em seguida
do Cristo, Jesus sofreu o suplício, morreu e ressuscitou, O Cristo, ser espiritual, nada
sofreu.» Quanto a Cerdon, Irineu diz que êle pregava em Roma, no tempo do Bispo
Higino, no ano 140, «que o Deus proclamado pela Lei dos profetas não é o Pai de Nosso
Senhor Jesus Cristo, porque tinha-se conhecido o primeiro, mas não se tinha conhecido
o Pai de Cristo.»

Assim, os gnósticos cristãos proclamaram desde o comêço os dogmas doutrinários que


seus adeptos apenas procuraram desenvolver depois. Êles opõem Jeová ao Deus Pai,
chamado Príncipe Supremo, distinguem Jesus, ser mortal, do Cristo, Messias divino,
esboçam a doutrina dos eons, mediadores entre Deus, e êste mundo pecador.

O mais importante dos representantes do gnosticismo cristão foi Márcio, sôbre o qual
possuímos muitas informações provenientes de fontes anti-heréticas. Tertuliano compôs
uma obra em cinco livros Contra Márcio, e Irineu, assim como Justino, seu precursor,
consagrou também grande atenção à heresia marcionita.
Rico armador, nascido no Ponto, província romana da Ásia Menor, Márcio foi chamado
irônicamente, por Tertuliano, de «navegante do Ponto Euxino.» (Nome antigo do Mar
Negro.) Fixou-se em Roma, na mesma época que Cerdon. Aderindo à comunidade
cristã local, doou-lhe a bela soma de 200 mil sestércios, e ocupou logo em seguida uma
posição de destaque. A luta contra êste heresiarca foi longa. Foi excomungado por duas
vêzes mas, tendo se arrependido no final dos seus dias, como o atesta Tertuliano,
morreu no regaço da Igreja. Sua influência era tão grande, que a Igreja já tinha decidido
deixá-lo em paz se êle consentisse em fazer retornar a eia aquêles que êle havia
«afastado dela.»

Condenando as «vergonhosas blasfêmias» de Márcio, Irineu expõe assim a doutrina


marcionita: «O Deus proclamado pela Lei e os profetas é (segundo Márcio) a origem do
Mal; ama a guerra, e, inconstante, se contradiz muitas vêzes. jesus foi engendrado pelo
Pai, superior ou Criador do Mundo e

.) apareceu ao povo de Israel sob o aspecto de um homem que destruía a autoridade dos
profetas, da Lei, a obra de Deus, que criou o mundo.» E êle acrescenta: «Márcio procura
convencer seus discípulos de que êle é mais digno de confiança do que os apóstolos que
transmitiram os evangelhos, dos quais êle apenas lhes comunica uma parte ínfima. Êle
risca também,

o CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO a 221


das epístolas paulinianas, tudo o que o apóstolo disse clara mente sôbre o Deus criador
do mundo. »

Márcio negava a natureza humana de Jesus, interpretando, conseqüentemente, de um


modo puramente simbólico o relato da crucificação e da ressurreição, que êle não
considerava com.o acontecimentos reais. Esta concepção marcionita, desenvolvida
ulteriormente por outros gnósticos, era evidentemente atacada por seus adversários, que
conheciam já o poder desta lenda sôbre os crentes, O dogma do resgaste dos pecados
humanos pelo sangue do Cristo era absolutamente incompatível com aquela concepção
simbólica da Paixão. É admissível que as genealogias de Jesus no Evangelho Segundo
Mateus e no Evangelho Segundo Lucas foram inventadas precisamente no decorrer da
Juta contra o marcionismo.

O ascetismo era também um traço característico da doutrina de Márcio, como, aliás, de


muitas outras correntes gnósticas. Não se limitava a condenar o segundo casamento,
pregava a castidade, proclamando-a preferível ao casamento. Neste plano, professava as
idéias do estoicismo romano, e não é por acaso que Tertuliano o qualifica de «estóico
rigoroso.»

Os gnósticos continuaram a desenvolver a doutrina de Márcio, dedicando-se sobretudo


a inventar sistemas de eons ainda mais obscuros no gênero das elocubrações de
Valentino, anteriormente citadas.

As idéias do gnosticismo cristão estão expressas de modo mais ordenado num dos
escritos de Chenobosquion, o Apócrifo de João, que expõe a Revelação transmitida por
Jesus a êste apóstolo no Monte das Oliveiras. No preâmbulo, o autor previne que esta
Revelação não deve ser comunicada senão às pessoas dignas e capazes de compreender
o seu sentido. Diz-se nela que Deus é o Ser supremo do «mundo da luz»,
completamente diferente do nosso, que é material. Ligados apenas a êste, somos
incapazes de conceber a natureza de Deus.

Segundo êste apócrifo, os eons, entidades divinas, apareceram da seguinte maneira: o


reflexo da face de Deus sôbre a água deu nascimento a uma deusa, o eon Barbelo, que
engendrou vários eons, dos quais o Cristo, «centelha divina», que, aliás, o manuscrito
chama de Crest, o «Util». Outro eon, Sofia («sabedoria», em grego) deu à luz um ser
cruel e monstruoso, Ialdabaoth, que ela ocultou dos deuses, e que ignorou, dêsse modo,
o «mundo da luz»: é o Jeová bíblico, criador do mundo material e do homem. Mas, o
Deus supremo acendeu a centelha divina em cada alma humana, que se transforma
assim em arena de um duelo perpétuo entre o princípio material, e o princípio divino. O
Éden, paraíso terrestre, bem como a primeira mulher foram criados por Ialdabaoth com
o fim de matar na alma de Adão a nostalgia do «mundo da luz».
222

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

Màs, Deus plantou no Éden a árvore da ciência, e o Cristo compeliu Adão a comer seus
frutos, O dilúvio foi obra de Ialdabaoth. Noé foi guiado por Deus. Sua mulher, Nona6,
inspirada por Ialdabaoth, põe fogo na arca, por três vêzes. Para se destruir o poder da
Ialdabaoth, é preciso possuir a gnose, o conhecimento de Deus. E todos podem vencer o
princípio do Mal, porque todos trazem em si a centelha divina. Porém, se o Mal triunfa
no homem, sua alma, quando êle morre, tranSmigra para outro ser vivo, até o dia em
que o Mal seja vencido. A perdição eterna é o quinhão apenas daqueles que renunciam a
verdade, depois de a ter conhecido.

Nesta variante do gnosticismo cristão, percebe-se nitidamente a influência da doutrina


iraniana do combate entre o Bem e o Mal. O esquema da cosmogonia bíblica é retocado
pelos gnósticos de tal maneira que todos os elementos judaicos são nêle engendrados
pelo princípio do Mal, Ialdabaoth. O Cristo também figura na cosmogonia gnóstica, não
sob o seu aspecto evangélico, mas na qualidade de príncipe eterno do Bem, submisso ao
Deus Pai. Assim, apesar de evoluir numa direção antijudaica, à semelhança da doutrina
oficial da Igreja, o gnosticismo cristão era, ao mesmo tempo, muito diferente desta.

Assinalamos já que a influência dos gnósticos era grande desde a época de Celso. Não é
por acaso que em sua obra sôbre o cristianismo êle dedica sua atenção não ao dogma
que triunfou em seguida, mas à corrente gnóstica da nova religião.

Na luta contra o gnosticismo, os representantes da Igreja retocavam sem cessar o «texto


original dos evangelhos», como Celso o assinala, e isso não para restabelecer a «fé
verdadeira», mas, ao contrário, para introduzir nos escritos canônicos tal ou qual tese
dos gnósticos a fim de os subtrair à sua crítica, e conquistar parte dos seus adeptos. Tal
é a razão do perdão concedido duas vêzes ao heresiarca Márcio pela comunidade cristã
de Roma e, também, da diferença que as epístolas paulinianas julgam necessário
estabelecer entre o homem animal, e o homem espiritual, o que está perfeitamente de
acôrdo com a doutrina gnóstica. (1 Coríntios, II, 14.) Tal é também a razão do tom
brutal em relação ao judaísmo em numerosas passagens dos evangelhos.

Porém, nessa luta contra a Igreja, o gnosticismo estava destinado à derrota. As


construções filosóficas abstratas dos gnósticos, sobretudo depois de Márcio,
permaneciam incompreensíveis para as massas. O gnosticismo nunca teve influência

6 Entre os rolos de Chenobosquion, um manuscrito lhe é dedicado, o Livro de Nona.

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II 223

sôbre elas, tanto sob o aspecto greco-romano, cõrno sob o cristão.

As batalhas da Igreja contra as heresias citadas desempenharam um grande papel na


evolução do cristianismo no século II. No curso desta luta, o episcopado se fortaleceu, a
Igreja lançou os fundamentos da sua dogmática, as comunidades cristãs apertaram seus
liames, os primeiros concílios locais de bispos começaram a se reunir. Essas ásperas
discussões levaram também a Igreja a selecionar certo número de escritos cristãos para
os canonizar, rejeitando, ao mesmo tempo, todos os outros. O cênone do Nôvo
Testamento deve, pois, seu estabelecimento, antes de tudo, aos imperativos da luta
contra as heresias.
CONCLUSÃO

Examinamos nas paginas precedentes as principais fontes de que dispomos sôbre o


aparecimeíito do cristianismo e sôbre a historia de sua fase micial Partindo dessas
informações, esforçamo nos por rndtcar as principais etapas da evolução do
cristianismo, desde os seus primeiros passos, ate a sua cristah zaço num culto
definitivamente constituido No seculo III, o cristianismo ja aparece sob o aspecto de
uma doutrina aca bada, com uma literatura que se compõe de todos os escritos do Novo
Testamento, e um aparato eclesiastico relativamente centralizado. A análise da evolução
posterior desta religião ultrapassa o plano da presente obra, que foi consagrada
especialmente às suas origens. Contudo, estudando-se o cristianismo, tal como ele era
no seculo II, não abordamos duas questões que só os documentos posteriores à época
estudada• podem esclarecer
O seculo II foi marcado pela rapida difusão da nova relig’ão Apologistas como Justino e
Tertuliano exageraram a influência do cristianismo nos seus começos por motivos
obvios, mas e certo, contudo, que, durante êsse período, o número de comunidades
cristãs aumentou sensivelmente E coloca se então a questão de se saber se e possivel
estabelecer, ainda que apro zimadamente, o numero de cristãos existentes nessa epoca
Quanto ao seculo II, não possuimos sôbre êsse assunto qualquer dado digno de fe,
porque nenhum historiador que se respeita pode levar em consideração comunicações
como as dos Atos do Apostolos que fala de milhares e milhares de crentes na
comunidade de Jerusalem e faz outras afirmações igualmente fantasticas Sôbre o seculo
III, ja se dispõe de algumas infor inações validas Assim e que Eusebio reproduz na sua
obra ja Litada uma carta do Bispo Cornelio, que data do ano de 251, na qual se d17 que
a comunidade cristã de Roma contava então 46 anclãos, 7 diaconos, outros tantos
subdiaconos 42 servidores, 52 exorcistas, um porteiro, um relator e mais de 1 500
viuvas e invalidos Segundo êsses dados, havia em Roma, no seculo III de 30 a 50 mil
cristãos, para uma população de um milhão e meio de habitantes Sabe se que em
Cartago havia, na mesma epoca, apenas 8 anciãos e em Alexandria 6, donde se conclui
que o numero de cristãos nessas duas cidades de primeira importância era
aproximadamente 6 vêzes inferior ao de Roma

Segundo os calculos do teologo protestante A Harnack,

no ano de 325, isto e, depois do acesso do cristianismo a cate

225
226

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

goria de religião oficial do Império Romano, êle era dominante apenas na Ásia Menor,
na Armênia e na Trácia. Sua influência era grande na Síria, no Egito, no noroeste da
África, no sul da Espanha e em outras regiões costeiras da bacia mediterrênea. Nas
regiões centrais da Península Balcânica, e da Península Ibérica, assim como na Itália e
na Sicília, o cristianismo era ainda pouco difundido. No que concerne ao território das
outras províncias do Império, não se possui nenhuma informação sôbre a existência de
comunidades cristãs durante êsse período. Os cálculos de A. Harnack mostram que, nos
começos do século IV, os cristãos totalizavam apenas 10 ou 1.5% da população do
Império, o que permite afirmar que êles eram muito menos numerosos ainda no limiar
do século anterior.

A segunda questão da qual não tratamos aqui é a que se refere às perseguições contra os
cristãos. Os escritores eclesiásticos falam de centenas, até mesmo de milhares de
mártires, procurando, assim, dar a impressão de que a religião cristã era terrivelmente
perseguida desde os seus começos, mas êles exageram, porque o poder romano não
combatia nenhum culto em particular, pela simples razão de isso não ser possível num
Estado de tal modo multínacional. Roma queria ganhar o apoio das camadas abastadas
das nações conquistadas, e, por essa razão, devia dar provas de tolerância. O Estado
Romano só se considerava na obrigação de reprimir uma religião, quando seus adeptos
se insurgiam contra êle, como foi o caso por ocasião das revoltas judias do século 1, e
começos do II.

O cristianismo, como religião, não se levantava contra o poder de Roma, tendo


renunciado muito cedo ao espírito rebelde do Apocalipse. Os escritores cristãos
posteriores já exortam os crentes à obediência aos superiores, e estigmatízam não
sàmente as revoltas, mas também a insubmissão. Não é necessário dizer, contudo, que
nem sempre êsses apelos eram acatados. Apenas o fato de que se tornava necessário
reiterá-los, a cada passo, indica que a massa dos crentes nem sempre estava disposta a
curvar a espinha. Depois da constituição da Igreja, a pregação cristã passou a dar maior
destaque à promessa do reino dos céis, e a tendência para a paz com o poder dos
abastados assumiu a predominância definitivamente no seio do cristianismo.

No decorrer do 1 e do II século ocorreram, de fato, perseguições contra os cristãos, o


que é confirmado por várias passagens do Apocalipse, pela correspondência entre Plínio
e Trajano, e por outras fontes. Mas, essas repressões eram esporádicas, e se davam com
grandes intervalos. A atitude do poder romano em relação aos cristãos permaneceu, em
geral, tal qual ela é formulada na resposta de Trajano a Plínio, que já é conhecicia do
leitor. A literatura cristã confirma por
CONCLUSÃO

227

sua vez: nas apologias de Justino e, sobretudo, nas de Tertuliano, os imperadores


romanos são freqüentemente caracterizados como homens justos e tolerantes para com o
cristianismo.

Sàmente no III século é que esta situação muda bruscamente. Os meados dêsse século, e
depois o período do reinado de Diocleciano e de seus sucessores (a partir do ano de 284)
foram marcados, de fato, por perseguições maciças e simuitâneas contra os cristãos em
todo o Império. As informações de que se dispõe a êsse respeito são assaz abundantes.
Mas, segundo tôdas as fontes, o Estado Romano lançou-se, então, contra a Igreja por
motivos puramente políticos, e não religiosos. As perseguições eram aliás de curta
duração e, nos intervalos, o cristianismo existia legalmente. Êsse fato é ilustrado pelo
seguinte pormenor: Quando, sob Aureliano (270-275), a heresia de Paulo, bispo de
Antióquia, suscitou dissidências, o Imperador ordenou-lhe que transmitisse a igreja
local «àqueles que correspondem em sua religião aos bispos itálicos e romanos.»
(Eusébio, História Eclesiástica, VII, 80.) Isto prova, de um lado, a legalidade do
cristianismo, e, de outro, que os soberanos de Roma consideravam os bispos romanos
como chefes da Igreja cristã em todo o Império. Segue-se ainda que os imperadores
pagãos desempenhavam o papel de árbitros nos conflitos entre cristãos. E uma vez que
as coisas se passavam dêsse modo, não resta dúvida alguma de que as perseguições
contra os cristãos não eram permanente.
• A situação política do Império no século III, tanto no interior, como no exterior,
favorecia a difusão do cristianismo. O período de progresso econômico terminou com
os Antoninos. Sob a dinastia dos Severos (de 193 a 233), a tendência para a agravação
das contradições políticas no Império se acentuou cada vez mais. Nenhum imperador
consegue subir ao trono sem antes ter mantido um combate encarniçado contra os seus
rivais. As relações entre os imperadores e o Senado, que representava a aristocracia
escravagista, se envenenavam progressivamente. O exército torna-se sob os Severos não
sàmente o único apoio militar, mas também o sustentáculo social do poder, fato êsse
que encontrou sua expressão no consêlho atribuído a Sétimo Severo, fundador da
dinastia, e que êle deu aos seus filhos antes de morrer: «Sêde amigos, enriquecei vossos
soldados e zombai do resto.» Êste conselho lhes foi fatal, todavia: durante os 42 anos da
dinastia dos Severos oito imperadores se sucederam, e apenas um morreu de morte
natural.

A áspera luta entre os pretendentes ao poder era apenas o reflexo, evidentemente, de


contradições muito mais profundas

228

A ORIGEM DO CRISTIANISMO
de ordem política e social. A crise do modo de produção escravagista frenava o
desenvolvimento das fôrças produtivas, tornando cada vez mais agudas as contradições
entre as classes. Sob os Severos, as massas se agitaram cada vez mais. Os escritores
desta época queixam-se continuamente da freqüência de pretensos «atos de pilhagem»
que nada mais eram do que uma forma de protesto contra o jugo dos opressores. Apuleu
refere-se muito a êsss «salteadores» em. suas obras. Em pleno coração da Itália, certo
Bula permaneceu, por muito tempo, burlando os que o queriam prender, e êle
aconselhava aos senhores «que alimentassem seus escravos, para evitar que êles se
tornassem salteadores. » Na mesma época, aproximadamente, falava-se na Gália das
aventuras de outro salteador: Maternus. Em meados do século III, o movimento das
massas .tornou-se tão grande que várias revoltas se desencadearam.

Depois da trágica morte de Alexandre Severo, o último da dinastia, a crise dita do


século III .se desenvolveu durante quase cinqüenta anos, e levou o Império à beira da
ruína. Trinta imperadores. reconhecidos pelo Senado sucederam-se durante êsse
período, sem falar dos usurpadores, que foram também muito numerosos. O território
do Estado tinha se tornado, de uma extremidade à outra, teatro de uma batalha constante
entre pretendentes ao poder. Os povos vizinhos do Oriente, do Norte e do Sul invadiam
as fronteiras do Império e, muitas vêzes, as províncias distantes, pilhando e devastando
tudo à sua passagem. Esta crise atingiu seu apogeu sob Valério (253-260). Quase
simultâneamente, os francos e os alemanos, povos germânicos, atravessaram o Reno, e
os gôdos, o Danúbio, marchando sôbre Atenas. Outras tribos godas devastaram o litoral
da Ásia Menor. Os mouros irromperam nas províncias africanas do Império, pelo Sul,
enquanto que os blemies (povo que vivia no território do Sudão atual) devastavam o
Egito. Porém, o mais perigoso dos inimigos era, sem dúvida, a Pérsia:

Sapor 1, Rei Sassanida, invadiu, no ano 260, várias províncias riéntais do Império, e,
pela primeira vez na história de Roma, um imperador — Valério — foi feito prisioneiro.

Não podendo o poder central garantir mais a segurança da aristocracia das províncias,
Estados independentes começaram a se constituir, tanto no Oriente, como no Ocidente.
Tendo conseguido sustar a ofensiva dos persas, o Governador da pequena Palmira
recebeu o título de Imperador, e submeteu, em segttida, várias províncias orientais, entre
as quais o Egito. Um império gaulês subsistiu durante mais de um decênio; êle
englobava a Gália, a Espanha e a Bretanha. Em Roma e na Sicília expiodiam revoltas de
escravos e de pobres.

As classes dominantes do Império Romano só conseguiram, então, escapar à ruína


desenvolvendo ao máximo tôdas as suas
CONCLUSÃO

229

fôrças. O fortalecimento do Império teve lugar sob Diocleciano (284-303) com o qual
começou o período da monarquia absoluta, caracterizada pela liquidação da antiga
ordem «constitucional», a decadência definitiva do Senado, a concentração do poder nas
mãos dos imperadores, aos quais se rendiam honras divinas. A grande propriedade
territorial tornou-se, ainda em mais alto grau, o apoio social do regime. O exército e a
administração foram separados, a máquina do Estado totalmente reorganizada.

Tôdas essas medidas fortaleceram temporàriamente o poder imperial, mas elas foram
incapazes de liquidar as contradições inerentes ao sistema escravagista. Depois de
Diocleciano, a luta se acendeu de nôvo. Constantino, pretendente ao trono, filho de um
dos tetrarcas de Diocleciano, buscou o apoio da Igreja, prometendo-lhe o
reconhecimento do cristianismo. A Igreja o obteve pelo Edito de Milão (em 313), e não
tardou a conquistar uma posição dominante no Império.

Tais foram as condições econômicas e sociais em que a Igreja cristã lutou, e acabou por
triunfar. O desmoronamento da ordem antiga, as invasões dos bárbaros e tôdas as
espécies de cataclismos sociais foram um terreno dos mais propícios para o êxito da
predicação do cristianismo. No momento em qúe o Estado Romano milenar estremecia
em suas bases, tanto os pobres, como também um grande número de elementos das
classes médias acrèditavam que o fim do mundo se aproximava, e o clero soube
explorar êsse estado de espírito. Apesar das múltiplas tentativas feitas pela Igreja
visando a uma conciliação com o Estado imperial, na situação concreta de então, a
Igreja continuava sendo o mais resoluto adversário da ordem antiga, e é por isso que a
crise política e social do regime lhe era proveitosa. O poderio crescente da Igreja a
opunha objetivamente às tendências retrógradas, apesar da inclinação do clero para a
acomodação com o poder. Tal foi a razão das perse. guições desencadeadas contra ela
pelos imperadores Décio e Diocleciano.

No século III e nos com; eços do IV, a Igreja continuou a seguir pelo mesmo caminho
que ela vinha percorrendo durante o século anterior buscando: 1) obter o
reconhecimento do cristianismo nas mesmas condições que as outras religiões; 2)
apagar o «extremismo» do cristianismo original; 3) estabelecer definitivamente seus’
dogmas e seu ritual; 4) centralizar ainda mais o aparato eclesiástico (concílios locais), e
aumentar a influência do clero; 5) vencer as velhas e as novas heresias.

Essas tarefas se entrelaçavam, e decorriam tôdas da modificação da estrutura social das


comunidades cristãs. Examinamos a primeira fase dêsse processo à luz dos monumentos
cristãos da segunda metade do século II. No século III, êle assume

230 A ORIGEM DO CRISTIANISMO

maior amplitude ainda. As comunidades cristãs dispunham de bens cada vçz mais
consideráveis. Às capelas do período anterior vieram-se ajuntar casas que serviam de
igrejas e, nos começos do século IV, templos, com tôda sorte de objetos rituais e
coleções de livros sagrados. Na literatura cristã encontram-e longas listas de bens
materiais confiscados à Igreja durante o período das perseguições. As catacumbas
romanas, com duas e até três galerias superpostas, e estendendo-se por vários
quilômetros sob a cidade e seus subúrbios, testemunham a importância dos cemitérios
cristãos da época. As instituições de beneficência ofereciam também aos bispos um
vasto campo de ação, e tôda a economia era gerada por cristãos ricos e influentes, que
acabaram assenhoreando-se da direção dos negócios das comunidades. Cipriano, Bispo
de Cartago, nos meados do século III, queixa-se em uma carta que outros bispos
«andam de província em província em busca de mercados, em que esperam ganhar mais
dinheiro; acumulam riquezas, enquanto a fome reina nas comunidades; fazem-se
herdeiros por meio das mais baixas bajulações, e multiplicam seus bens praticando a
usura. » (Dos Renegados, 6.) Outro documento significativo sôbre êsse tema é o escrito
de Clemente de Alexandria (entre o II e o III século) cujo título é por si só bastante
eloqüente:

Que Rico Será Salvo ? Durante as perseguições contra os cristãos, no decorrer da


década dos 50, do século III, grande número de cristãos da comunidade de Cartago, tal
como Cipriano o menciona em suas cartas, submeteram-se às ordens das autoridades,
adoraram pbblicamente os deuses do Império, donde a alcunha de «falidos» que se lhes
aplicava. Êles pertenciam, em. sua maioria, às camadas abastadas, e foi diante da
ameaça de confisco de seus bens que se fizeram apóstatas.

Essas modificações da estrutura social das comunidades cristãs iriam desempenhar um


papel considerável na evolução ulterior da nova religião. Elas fortaleceram no seio da
Igreja a tendência para a conciliação com o poder para tornarem as comunidades cristãs
toleráveis pelos representantes da alta sociedade romana. Porém, essas modificações
agravaram, por sua vez, as lutas entre as diversas correntes cristãs.

A renúncia à doutrina escatológica do cristianismo primitivo se chocou com sérias


dificuldades. Quanto mais a Igreja refletia os interêsses dos círculos dirigentes das
comunidades cristãs e buscava reconciliar-se com o p.der dos abastados, maior se
tornava o abismo entre o clero e os crentes que, por causa de sua situação social e de
outros fatôres, permaneciam fiéis à ideologia expressa no Apocalipse de João e nas
primeiras epístolas paulinianas. Antes da constituição do episcopado, as divergências e
as contradições entre as diferentes correntes cristãs não impediam sua coexistência no
quadro das comuni-
CONCLUSÃO 231

dades cristãs, apesar da aspereza das polêmicas travadas. A partir do século III, qualquer
divergência levava já ao divórcio, e colocava os dissidentes fora da Igreja.

Durante êste século, outras heresias apareceram ao lado das artigas correntes heréticas
judaico-cristãs, do montanismo e do gnosticismo. Algumas entre elas, tal como a dos
nepotianos, continuavam a tendência escatológica e por vêzes quiliástica do
cristianismo original; outras, como os novacianos e, a partir do século IV, os donatistas,
consideravam-se no dever de protestar contra o fortalecimento do poder dos bispos
enquanto que os sabelianos negavam o dogma da Santíssima Trindade. A maioria destas
heresias surgiram durante as perseguições; expremiam a oposição dos crentes à
indulgência do clero em relação aos cristãos das camadas mais ricas que tinham
apostatado. Quanto à Igreja, ela era implacável com os dissidentes, e os punia por tôda
parte do mesmo modo: os concílios, que reuniam muitas vêzes centenas de chefes das
diversas comunidades, estigmatizavam e excomungavam os ,.heréticos.

Tais foram as premissas da aliança da Igreja com o poder imperial, que fêz dela o apoio
das classes exploradoras do Império Romano. Quanto mais o poder imperial se
enfraquecia em conseqüência da agravação da crise da ordem antiga e das guerras
intestinas, mais a Igreja se distanciava das aspirações do cristianismo original e mais
essas duas fôrças, outrora hostis, se aproximavam. O reconhecimento da Igreja sob
Constantino, seguida da passagem do culto cristão categoria de religião dominante, foi,
portanto, o resultado lógico da evolução do cristianismo primitivo.
ACABOU-SE DE IMPRIMIR STE LIVRO NO DIA 21 DE MAIO DE 1963, NAS
OFICINAS DA EDITÔRÀ OBELISCO LTDA. - R. ANHANGUERA, 66 - 5. PAULO
– BRASIL

PARA PEDIDOS TELEGRÁEICO5 — CÓDIGO — J.A.L. 014-A

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