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Resumo
O presente artigo procura trazer à luz questões que permitam a discussão das condições psi-
cológicas de pessoas que cumprem pena em casas de detenção. O sistema prisional sempre é
objeto de discussão. A proposta das autoras é oferecer elementos à luz da Psicanálise de forma
a possibilitar que a discussão possa ser mais efetiva e aprofundada quando o foco for a preo-
cupação com as condições psicológicas dos detentos.
Eu, você, Nós, a Lei e o sofrer... regras e leis. À medida que o mundo e a cul-
Iniciemos pela compreensão da constituição tura mudam, procura-se adequar na medida
da subjetividade de um ser humano na rela- do possível as leis a este novo modus vivendi.
ção com seu meio ambiente. Quando nasce- Michel Foucault, filósofo e epistemólogo
mos o fazemos inseridos numa família que francês, fez um histórico do sistema de puni-
já possui suas regras, todas as crianças ne- ção e castigos desde tempos remotos em sua
cessitam de um mínimo de regras para sua obra Vigiar e Punir (FOUCAULT, 1977). Va-
sobrevivência: usar o troninho; falar para mos sintetizar muitas análises e momentos
poder solicitar e se comunicar, horários para históricos para podermos chegar ao nosso
dormir e comer. Estas e muitas outras que foco de hoje. Mas é importante termos uma
mudam de acordo com o meio familiar: o visão histórica da questão que analisamos.
que é certo e errado; o que pode e não pode; No nosso caso particular, optamos por pin-
como funciona o sistema de castigos e pre- çar alguns temas neste assunto tão amplo e
miações; quais são as exigências inquestio- complexo: corpo, castigo, isolamento, suplí-
náveis e quais podem chegar a ser discutidas. cios e educação. Reconhecemos que existem
Como afirmamos anteriormente, vai variar outros tão importantes quanto estes, mas nos
de grupo familiar para grupo familiar. estenderíamos em demasia.
Depois de alguns anos de vida, todos nós Podemos iniciar com um histórico rápi-
já possuímos alguma independência e am- do da punição feita aos transgressores. Uma
pliamos nossos horizontes: escolinha, clubes, das primeiras formas de punição conhecida
casa de coleguinhas; dando pulos de décadas: em nossa história é o suplício. Punição que
faculdade, barzinhos, viagens, clubes, hotéis; mais parecia um teatro, fazendo com que o
a questão tão preocupante dos dias atuais que acusado ficasse exposto em praça pública e
é a direção no transito e tantas outras que sofresse torturas equivalentes ao crime co-
afetam as famílias em sua preocupação com metido. Quanto maior o crime, maior a dor
os adolescentes. Podemos deduzir que aqui- que o acusado devia sentir. O povo assistia
lo que se aprendeu em casa será estendido ao em clima de euforia, gritando ao carrasco
coletivo. As regras da casa são menores que que infligisse mais dor (FOUCAULT, 1977).
as do coletivo, é óbvio. Porém, na medida em Aos poucos a cena muda. Passaram a cobrir
que se aprendeu que existem regras que de- o rosto do acusado como se isto fosse menos
vem ser obedecidas para a convivência gru- humilhante. O espetáculo de teatro ganha
pal, este sentido de regras para melhor viver menos peso, o detento passa numa carro-
é ampliado para um todo maior. ça por toda a cidade para que todos vissem
Naturalmente, vocês podem estar se per- como era penoso ir contra as regras. Os re-
guntando como encontramos tantas pessoas formadores, revoltados com estas cenas que
que burlam, transgridem, enfim, cometem nada contribuíam para a diminuição dos
atos considerados hediondos pelo restante crimes, lutavam por uma forma diferente
das pessoas, sendo necessária a entrada em de punição, algo que não expusesse tanto o
cena do Código Jurídico, das Leis de um país, condenado e contribuísse para o processo de
da comunidade. Isto ocorre porque não bas- re-educação.
ta ter sido educado, existe também o livre ar- Começaram a surgir as casas de deten-
bítrio e as patologias psíquicas de determina- ção, que tinham como objetivo re-educar,
das pessoas que assim se constituem. Por esta isto é, moldar o sujeito que melhor convies-
razão, podemos afirmar que o sujeito delin- se à sociedade. A prisão surge para proteger
quente existe e atua nos espaços democráticos. a comunidade de perigos intencionais, o
Toda cultura, todo momento sócio-histó- bem-estar das pessoas internadas não esta-
rico-cultural possuiu e possui seu sistema de va em questão. A prisão foi desde o início
uma forma de modificação dos indivíduos, balhada sob vários paradigmas: religioso,
de condicionamento que funciona através moral, psíquico, amoroso, psicanalítico etc.
da privação da liberdade. É uma forma de Em decorrência do objetivo do tema, opta-
se obter um saber clínico sobre os conde- mos pela leitura foucaultiana de disciplinas
nados, estudá-los, avaliá-los, entrar em seu e normatização com a articulação ao social.
íntimo para saber como funciona sua men- Foucault (1975) vai citar o Panóptico, um
te, de que são feitos estes sujeitos (FOU- mecanismo arquiquetônico penitencial –
CAULT, 1977). considerado ideal – desenhado pelo filosofo
Foucault em Vigiar e Punir (1977) anali- e jurista Jeremy Bentham em 1785, cujo ob-
sa que durante a época clássica o corpo foi jetivo era controlar sem ser visto e também
descoberto como objeto e alvo de poder, ser menos dispendioso em termos financei-
corpo que se manipula, se modela, se treina, ros já que podia utilizar um número bem
que obedece, responde, se torna hábil e cujas menor de funcionários. Servia para domínio
forças se multiplicam. O autor cita o livro O da distribuição dos corpos: criança apren-
homem-máquina, de La Mettrie, que usa em dendo a escrever; prisioneiro a ser corrigido;
uma parte de sua obra o que Descartes des- um louco e sua loucura. O panoptismo é a
creveu e filósofos e médicos continuaram. observação integral por parte do poder dis-
Em outra parte o livro é técnico-político, ciplinador da vida do sujeito. Vigiar o tempo
constituído por um conjunto de regulamen- inteiro sem que se veja o observador. O mais
tos militares, escolares, hospitalares e por importante do que vigiar o tempo inteiro,
processos empíricos para controlar ou cor- era que o mesmo se soubesse vigiado. O ob-
rigir as operações do corpo. Este livro é uma jetivo não era a punição, mas que todos se
redução materialista da alma e um adestra- sentissem mergulhados num campo de visi-
mento do corpo. Estes métodos é que per- bilidade. Assim cada um toma por sua conta
mitem o controle minucioso das operações as limitações. Foucault acrescenta que o Pa-
do corpo, que realizam a sujeição constante nóptico era uma grande ficção, porque se fa-
de suas forças e lhes impõem uma relação zia a ronda em horários variados, se punham
de docilidade-utilidade. São estes métodos algumas pessoas para gritar de forma a que
que Foucault vai chamar de “disciplinas”. Os todos tivessem a certeza que alguém burlou e
processos disciplinares já existiam há muito estava sendo punido severamente no mesmo
tempo: nos conventos, exércitos, nas ofici- corpo dantes vigiado. O efeito dessa Grande
nas. As “disciplinas” se tornaram, no decor- Ficção é que é importante.
rer do século XVII e XVIII, formulas gerais O poder é visível e inverificável. É visível
de dominação. Ao encarcerar, ao retirar do porque o detento vê a torre que o vigia, é in-
convívio social, ao tornar dócil, vemos a re- verificável porque ele nunca deve saber se
produção de uma sociedade maior: quartel está sendo observado, mas tem a certeza de
restrito, escola sem indulgência, uma oficina que sempre pode sê-lo. A arquitetura é feita
sombria (GOFFMAN, 1974). de tal forma que se possa controlar o inte-
Foucault (1977) vai analisar que a socie- rior, olhar, vigiar e dominar. Quem sabe que
dade disciplinar possui uma singularidade está submetido a um campo de visibilidade
que reside na existência do desvio diante da retoma por sua conta as limitações do po-
norma. Para “normalizar” e “normatizar” o der, as faz funcionar espontaneamente sobre
sujeito moderno foram desenvolvidos meca- si mesmo. Inscreve em si a relação de poder
nismos e dispositivos de vigilância, capazes na qual ele desempenha simultaneamente
de interiorizar a culpa e causar no indivíduo os dois papéis, torna-se o princípio de sua
remorsos pelos seus atos. Frisamos que esta sujeição. Este é o modelo Panóptico (FOU-
culpa interiorizada no sujeito pode ser tra- CAULT, 1977).
Nasce, assim, uma política das coerções, social e falamos rapidamente de leis, trans-
uma anatomia política e mecânica do po- gressões e pinçamos o corpo no nosso racio-
der: domínio sobre o corpo do outro para cínio.
que opere como se quer. Fabricam-se corpos Ampliemos um pouco o nosso leque de
exercitados e dóceis. As disciplinas organi- raciocínio. Houve um tempo mítico – que
zam as celas, lugares, fileiras, criam espaços não temos como precisar e cada corpo teóri-
arquitetônicos, funcionais e hierárquicos. co tem sua explicação e constructo – enfim,
Realizam fixação e permitem circulação. houve este tempo, quando o número de pes-
Marcam lugares, indicam valores, garantem soas aumentou, seja uma horda, vila, família,
obediência e melhor economia de tempo e clã, comunidade... não importa. O número
gestos. Regem disposição de móveis; pré- aumentou e não era mais possível que tudo
dios; salas; colégios; quartéis; disciplina dos funcionasse livremente. A primeira delas foi
espaços; fila; controle de horários. a proibição do Incesto. Com esta proibição se
“Arte do bom adestramento” se relaciona criam as regras de relação de parentesco, pro-
com a correta disciplina, já o dizia Kalhau- priedades e a exogamia. Para que as pessoas
sen no início do século XVII (FOUCAULT, possam sobreviver juntas é necessário leis
1977). Assim, temos as punições por desvios e códigos. E aliado, um sistema de punição
de qualquer ordem, tempo, sexualidade, cor- para quem não obedecesse. Aqui o sagrado,
po, maneira de ser. As punições foram co- e/ou divino, sempre teve um peso muito im-
piadas do modelo judiciário: multas, açoites, portante no sentido de fazer os seres huma-
masmorra. E várias outras formas. nos terem medo e obedecer. O importante é
Vamos fazer um parêntese, e falemos um frisar o sistema de castigo, aqui entra a DOR.
pouco do CORPO. Aparentemente o corpo é Existe um ditado popular que diz: sem dor,
de domínio pessoal, é um bem que nos per- sacrifício e/ou sofrimento não tem efeito e/
tence. Ora, mas o corpo produz dor. Aqui ou valor... O sofrimento enaltece, purifica,
temos duas questões muito sérias: corpo e valoriza algo, enobrece. Quando o divino/
dor. E se acrescentarmos mais uma: consi- sagrado tinha uma primazia nesta ordem
derarmos o corpo como um envelope? Mas social, a Fé das pessoas provocava o castigo
do quê? Da alma, do espírito, da inteligên- porque elas não duvidavam. Conhecendo as
cia... Enfim, qualquer coisa que não seja tão sanções, elas aconteciam. Por exemplo: não
material e que ao mesmo tempo faça parte pode andar onde o pajé (representante e con-
do ser humano e esteja ligado irremediavel- tato íntimo do sagrado) acabou de pisar, se
mente a este envelope-pele-corpo (ANZIEU, o fizer vai morrer, ou perder as pernas, ou
1989). A dor desde tempos remotos tem sido nunca mais andar (FREUD, 1979). Bastava
considerada um bom mote pra educar, fazer alguém dizer que o sujeito estava pisando em
ceder, alcançar uma pureza de alma, uma terreno proibido e o castigo acontecia sem
elevação do espírito, um domínio sobre si intervenção das pessoas.
mesmo, uma calmaria das paixões corpóre- Com o crescimento das sociedades, e
as, e podemos continuar ao infinito. Assim, quando os vencedores dos conflitos de guer-
agindo sobre o corpo alcançamos este bem ra perceberam que era melhor manter vivos
mais precioso que está dentro... O corpo é os vencidos para fazê-los de escravos, fez-se
uma arma de controle de populações. Bas- necessário sofisticar o sistema de controle de
ta que olhemos o mundo à nossa volta para prisioneiros e domesticá-los. Porque a vin-
percebermos como este corpo é assediado, gança poderia ocorrer a qualquer momento.
seduzido, manipulado, mutilado... Não basta que o corpo ceda, é necessário que
Retomando os pontos que levantamos até o espírito também fique domesticado. Os su-
agora, fomos da educação das crianças até o plícios e castigos com as várias formas que
o ser humano inventou ao longo da huma- medo de perder os pais, depois de perder seu
nidade até chegar às penas de prisão, é uma amor e depois “percebem” que os pais ficam
mutação técnica! É a passagem de uma arte chateados, mas permanecem ali. Não estou
de punir a outra (FOUCAULT, 1977). incluindo aqui os pais que ultrapassam os
Encontramos as disciplinas de Foucault. limites seja lá em que direção... Quando os
Adestramento das massas, dos corpos, das progenitores veem esta percepção de seus
mentes. Surge todo um processo de avaliação: filhos, os castigos começam a ficar mais so-
sagrado/não sagrado; normal/anormal; saú- fisticados: sem mesada, sem shopping, sem
de/doença; certo/errado. E sempre presente presentes, sem saída e em alguns casos ficar
a questão: qual a melhor forma de melhorar preso no quarto por um bom tempo, e em
esta “anomalia”, seja ela de que ordem for? outros a surra...
Neste ponto vamos voltar nosso olhar O desprazer, a frustração, a dor psíquica e
para a infância do ser humano. Todos nós em muitos casos a dor física.
nascemos dependentes e frágeis. Precisamos Não é só uma questão de provocar dor e
que o outro cuide de nós para podermos depois a subjugação do outro... Há também
continuar vivos, literalmente. E antes que se o dado de que o corpo realiza aquilo que se
levante a dúvida se estou me referindo às fa- processa dentro. É o corpo que atua os de-
mílias razoavelmente organizadas, deixe-me sejos errados construídos dentro, faz-se ne-
esclarecer que me refiro a qualquer ambiente cessário moldar o espírito, o caráter, a alma,
onde um ser vai ser minimamente cuidado a vontade, os desejos, para que o dentro co-
para sobreviver. A nossa dependência física mande o corpo de forma correta, de acordo
e emocional nos faz demandar a atenção da- com o paradigma de controle que se esteja
queles que percebemos serem fundamentais usando.
às nossas necessidades. Seja sendo inteligen- Como já dissemos, aqui entram as guer-
te, educado, esperto, servil, obediente, deso- ras, as torturas, inquisições e muitas outras
bediente, bom, mal, saudável, doente. Todos coisas que se pode acrescentar enquanto
conhecem aqueles alunos que têm dificulda- “mazelas e sofrimentos corporais” para se al-
de de estudar – por vários motivos – e não cançar e domesticar o dentro. Ações de todos
podendo ser o primeiro da sala, será o mais os tipos e com inúmeras finalidades são efe-
bagunceiro, o “puxa-saco” da professora. Po- tivadas sobre o corpo do outro. Articulemos
de-se chamar a atenção de várias formas: o tudo que analisamos até o momento com o
mais violento; o que mais mata; o que mais que consideramos ser uma contribuição para
se droga; o mais esperto... a diminuição de violência nos presídios, uma
Trazemos da infância a marca da necessi- menor vulnerabilidade psíquica dos detentos
dade de cuidado, proteção de alguém supe- e, talvez, uma diminuição de reincidência.
rior a nós: pai, mãe, professora, líder, chefe.
A cadeia de pessoas às quais devemos certa Considerações finais
obediência e ansiamos pela admiração/amor No fim do século XVII, quando a punição
é enorme. E também trazemos a marca de se tornou parte velada do processo penal, o
saber o quanto é doído termos um desejo, corpo começou a ser utilizado como instru-
uma necessidade, uma vontade que alguém mento de privação, de obrigações e de inter-
impede de satisfazer. E acatamos por nossa dições. É sempre do corpo que se tratava, de
dependência. suas forças, de suas utilidades, docilidades,
As crianças sentem quando os pais sem- submissões. A alma era também utilizada
pre tão carinhosos proíbem uma brincadei- para a correção, o castigo deveria atuar sobre
ra, comportamento ou fala. E elas sentem o coração, o intelecto e a vontade (MEDEI-
muito. No início todas as crianças ficam com ROS, 1996). Tudo se torna julgado: as pai-
SOBRE AS AU TOR AS