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Vulnerabilidade das pessoas em cumprimento da pena à luz da psicologia

Vulnerabilidade das pessoas


em cumprimento da pena à luz da psicologia
Vulnerability of persons serving a sentence into the light of psychology
Stetina Trani de Meneses Dacorso
Lilian Meneses Dacorso

Resumo
O presente artigo procura trazer à luz questões que permitam a discussão das condições psi-
cológicas de pessoas que cumprem pena em casas de detenção. O sistema prisional sempre é
objeto de discussão. A proposta das autoras é oferecer elementos à luz da Psicanálise de forma
a possibilitar que a discussão possa ser mais efetiva e aprofundada quando o foco for a preo-
cupação com as condições psicológicas dos detentos.

Palavras-chave: Sistema prisional, Vulnerabilidade psíquica, Castigo, Educação, Trabalho.

A sociedade é sempre o produto de conflitos,


de paradoxos, ela é cheia de contradições,
fruto da invenção social, da negociação e da elucidação.
eugene henriquez

Esclarecimentos cada crime hediondo e/ou fuga e/ou violên-


Este artigo, em sua maior parte, é a repro- cia nestes espaços presidiários.
dução de uma palestra realizada em agosto Sigmund Freud, no texto “Análise Termi-
de 2011. Fomos convidadas para apresen- nável e Interminável” (FREUD, 1979), define
tar o tema: Vulnerabilidade das pessoas em que existem três profissões impossíveis: polí-
cumprimento de pena à luz da Psicologia, tica, educação e análise. As leis são realizadas
convite este feito a duas psicanalistas. O para um coletivo, a educação deve atender a
tema se incluía num conjunto de apre- necessidades de mercado sendo também para
sentações do 1º Seminário de Capacitação um todo e a análise lida com o sofrimento
para Conselheiros da Comunidade de Juiz provocado em cada um por sua exigência pul-
de Fora e Região. sional em conflito com as exigências de amor
O assunto é delicado para nós psicana- e da cultura. Os seres humanos reagem mal e
listas. Envolve discussões sobre Lei, trans- de forma violenta a qualquer movimento que
gressão e cultura, interiorização da Lei, implique em limitação, impedimento ou pu-
punição, culpa e muitas outras questões. nição à satisfação de seus desejos particulares.
Decidimos publicá-lo pelo debate que pro- Esta palestra foi realizada para um públi-
vocou quando apresentado e acreditamos co de 250 pessoas de todos os níveis sociais,
que, assim, deixamos em aberto o espaço incluindo advogados, diretores de casa de
para debates. detenção, agentes presidiários e pessoas da
A mídia vincula notícias sobre mudanças comunidade que fornecem alguma assistên-
no Código Penal, mudanças na estrutura das cia aos presídios, estagiários de psicologia,
casas de detenção e outras tantas decisões a direito, assistência social.

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Eu, você, Nós, a Lei e o sofrer... regras e leis. À medida que o mundo e a cul-
Iniciemos pela compreensão da constituição tura mudam, procura-se adequar na medida
da subjetividade de um ser humano na rela- do possível as leis a este novo modus vivendi.
ção com seu meio ambiente. Quando nasce- Michel Foucault, filósofo e epistemólogo
mos o fazemos inseridos numa família que francês, fez um histórico do sistema de puni-
já possui suas regras, todas as crianças ne- ção e castigos desde tempos remotos em sua
cessitam de um mínimo de regras para sua obra Vigiar e Punir (FOUCAULT, 1977). Va-
sobrevivência: usar o troninho; falar para mos sintetizar muitas análises e momentos
poder solicitar e se comunicar, horários para históricos para podermos chegar ao nosso
dormir e comer. Estas e muitas outras que foco de hoje. Mas é importante termos uma
mudam de acordo com o meio familiar: o visão histórica da questão que analisamos.
que é certo e errado; o que pode e não pode; No nosso caso particular, optamos por pin-
como funciona o sistema de castigos e pre- çar alguns temas neste assunto tão amplo e
miações; quais são as exigências inquestio- complexo: corpo, castigo, isolamento, suplí-
náveis e quais podem chegar a ser discutidas. cios e educação. Reconhecemos que existem
Como afirmamos anteriormente, vai variar outros tão importantes quanto estes, mas nos
de grupo familiar para grupo familiar. estenderíamos em demasia.
Depois de alguns anos de vida, todos nós Podemos iniciar com um histórico rápi-
já possuímos alguma independência e am- do da punição feita aos transgressores. Uma
pliamos nossos horizontes: escolinha, clubes, das primeiras formas de punição conhecida
casa de coleguinhas; dando pulos de décadas: em nossa história é o suplício. Punição que
faculdade, barzinhos, viagens, clubes, hotéis; mais parecia um teatro, fazendo com que o
a questão tão preocupante dos dias atuais que acusado ficasse exposto em praça pública e
é a direção no transito e tantas outras que sofresse torturas equivalentes ao crime co-
afetam as famílias em sua preocupação com metido. Quanto maior o crime, maior a dor
os adolescentes. Podemos deduzir que aqui- que o acusado devia sentir. O povo assistia
lo que se aprendeu em casa será estendido ao em clima de euforia, gritando ao carrasco
coletivo. As regras da casa são menores que que infligisse mais dor (FOUCAULT, 1977).
as do coletivo, é óbvio. Porém, na medida em Aos poucos a cena muda. Passaram a cobrir
que se aprendeu que existem regras que de- o rosto do acusado como se isto fosse menos
vem ser obedecidas para a convivência gru- humilhante. O espetáculo de teatro ganha
pal, este sentido de regras para melhor viver menos peso, o detento passa numa carro-
é ampliado para um todo maior. ça por toda a cidade para que todos vissem
Naturalmente, vocês podem estar se per- como era penoso ir contra as regras. Os re-
guntando como encontramos tantas pessoas formadores, revoltados com estas cenas que
que burlam, transgridem, enfim, cometem nada contribuíam para a diminuição dos
atos considerados hediondos pelo restante crimes, lutavam por uma forma diferente
das pessoas, sendo necessária a entrada em de punição, algo que não expusesse tanto o
cena do Código Jurídico, das Leis de um país, condenado e contribuísse para o processo de
da comunidade. Isto ocorre porque não bas- re-educação.
ta ter sido educado, existe também o livre ar- Começaram a surgir as casas de deten-
bítrio e as patologias psíquicas de determina- ção, que tinham como objetivo re-educar,
das pessoas que assim se constituem. Por esta isto é, moldar o sujeito que melhor convies-
razão, podemos afirmar que o sujeito delin- se à sociedade. A prisão surge para proteger
quente existe e atua nos espaços democráticos. a comunidade de perigos intencionais, o
Toda cultura, todo momento sócio-histó- bem-estar das pessoas internadas não esta-
rico-cultural possuiu e possui seu sistema de va em questão. A prisão foi desde o início

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uma forma de modificação dos indivíduos, balhada sob vários paradigmas: religioso,
de condicionamento que funciona através moral, psíquico, amoroso, psicanalítico etc.
da privação da liberdade. É uma forma de Em decorrência do objetivo do tema, opta-
se obter um saber clínico sobre os conde- mos pela leitura foucaultiana de disciplinas
nados, estudá-los, avaliá-los, entrar em seu e normatização com a articulação ao social.
íntimo para saber como funciona sua men- Foucault (1975) vai citar o Panóptico, um
te, de que são feitos estes sujeitos (FOU- mecanismo arquiquetônico penitencial –
CAULT, 1977). considerado ideal – desenhado pelo filosofo
Foucault em Vigiar e Punir (1977) anali- e jurista Jeremy Bentham em 1785, cujo ob-
sa que durante a época clássica o corpo foi jetivo era controlar sem ser visto e também
descoberto como objeto e alvo de poder, ser menos dispendioso em termos financei-
corpo que se manipula, se modela, se treina, ros já que podia utilizar um número bem
que obedece, responde, se torna hábil e cujas menor de funcionários. Servia para domínio
forças se multiplicam. O autor cita o livro O da distribuição dos corpos: criança apren-
homem-máquina, de La Mettrie, que usa em dendo a escrever; prisioneiro a ser corrigido;
uma parte de sua obra o que Descartes des- um louco e sua loucura. O panoptismo é a
creveu e filósofos e médicos continuaram. observação integral por parte do poder dis-
Em outra parte o livro é técnico-político, ciplinador da vida do sujeito. Vigiar o tempo
constituído por um conjunto de regulamen- inteiro sem que se veja o observador. O mais
tos militares, escolares, hospitalares e por importante do que vigiar o tempo inteiro,
processos empíricos para controlar ou cor- era que o mesmo se soubesse vigiado. O ob-
rigir as operações do corpo. Este livro é uma jetivo não era a punição, mas que todos se
redução materialista da alma e um adestra- sentissem mergulhados num campo de visi-
mento do corpo. Estes métodos é que per- bilidade. Assim cada um toma por sua conta
mitem o controle minucioso das operações as limitações. Foucault acrescenta que o Pa-
do corpo, que realizam a sujeição constante nóptico era uma grande ficção, porque se fa-
de suas forças e lhes impõem uma relação zia a ronda em horários variados, se punham
de docilidade-utilidade. São estes métodos algumas pessoas para gritar de forma a que
que Foucault vai chamar de “disciplinas”. Os todos tivessem a certeza que alguém burlou e
processos disciplinares já existiam há muito estava sendo punido severamente no mesmo
tempo: nos conventos, exércitos, nas ofici- corpo dantes vigiado. O efeito dessa Grande
nas. As “disciplinas” se tornaram, no decor- Ficção é que é importante.
rer do século XVII e XVIII, formulas gerais O poder é visível e inverificável. É visível
de dominação. Ao encarcerar, ao retirar do porque o detento vê a torre que o vigia, é in-
convívio social, ao tornar dócil, vemos a re- verificável porque ele nunca deve saber se
produção de uma sociedade maior: quartel está sendo observado, mas tem a certeza de
restrito, escola sem indulgência, uma oficina que sempre pode sê-lo. A arquitetura é feita
sombria (GOFFMAN, 1974). de tal forma que se possa controlar o inte-
Foucault (1977) vai analisar que a socie- rior, olhar, vigiar e dominar. Quem sabe que
dade disciplinar possui uma singularidade está submetido a um campo de visibilidade
que reside na existência do desvio diante da retoma por sua conta as limitações do po-
norma. Para “normalizar” e “normatizar” o der, as faz funcionar espontaneamente sobre
sujeito moderno foram desenvolvidos meca- si mesmo. Inscreve em si a relação de poder
nismos e dispositivos de vigilância, capazes na qual ele desempenha simultaneamente
de interiorizar a culpa e causar no indivíduo os dois papéis, torna-se o princípio de sua
remorsos pelos seus atos. Frisamos que esta sujeição. Este é o modelo Panóptico (FOU-
culpa interiorizada no sujeito pode ser tra- CAULT, 1977).

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Nasce, assim, uma política das coerções, social e falamos rapidamente de leis, trans-
uma anatomia política e mecânica do po- gressões e pinçamos o corpo no nosso racio-
der: domínio sobre o corpo do outro para cínio.
que opere como se quer. Fabricam-se corpos Ampliemos um pouco o nosso leque de
exercitados e dóceis. As disciplinas organi- raciocínio. Houve um tempo mítico – que
zam as celas, lugares, fileiras, criam espaços não temos como precisar e cada corpo teóri-
arquitetônicos, funcionais e hierárquicos. co tem sua explicação e constructo – enfim,
Realizam fixação e permitem circulação. houve este tempo, quando o número de pes-
Marcam lugares, indicam valores, garantem soas aumentou, seja uma horda, vila, família,
obediência e melhor economia de tempo e clã, comunidade... não importa. O número
gestos. Regem disposição de móveis; pré- aumentou e não era mais possível que tudo
dios; salas; colégios; quartéis; disciplina dos funcionasse livremente. A primeira delas foi
espaços; fila; controle de horários. a proibição do Incesto. Com esta proibição se
“Arte do bom adestramento” se relaciona criam as regras de relação de parentesco, pro-
com a correta disciplina, já o dizia Kalhau- priedades e a exogamia. Para que as pessoas
sen no início do século XVII (FOUCAULT, possam sobreviver juntas é necessário leis
1977). Assim, temos as punições por desvios e códigos. E aliado, um sistema de punição
de qualquer ordem, tempo, sexualidade, cor- para quem não obedecesse. Aqui o sagrado,
po, maneira de ser. As punições foram co- e/ou divino, sempre teve um peso muito im-
piadas do modelo judiciário: multas, açoites, portante no sentido de fazer os seres huma-
masmorra. E várias outras formas. nos terem medo e obedecer. O importante é
Vamos fazer um parêntese, e falemos um frisar o sistema de castigo, aqui entra a DOR.
pouco do CORPO. Aparentemente o corpo é Existe um ditado popular que diz: sem dor,
de domínio pessoal, é um bem que nos per- sacrifício e/ou sofrimento não tem efeito e/
tence. Ora, mas o corpo produz dor. Aqui ou valor... O sofrimento enaltece, purifica,
temos duas questões muito sérias: corpo e valoriza algo, enobrece. Quando o divino/
dor. E se acrescentarmos mais uma: consi- sagrado tinha uma primazia nesta ordem
derarmos o corpo como um envelope? Mas social, a Fé das pessoas provocava o castigo
do quê? Da alma, do espírito, da inteligên- porque elas não duvidavam. Conhecendo as
cia... Enfim, qualquer coisa que não seja tão sanções, elas aconteciam. Por exemplo: não
material e que ao mesmo tempo faça parte pode andar onde o pajé (representante e con-
do ser humano e esteja ligado irremediavel- tato íntimo do sagrado) acabou de pisar, se
mente a este envelope-pele-corpo (ANZIEU, o fizer vai morrer, ou perder as pernas, ou
1989). A dor desde tempos remotos tem sido nunca mais andar (FREUD, 1979). Bastava
considerada um bom mote pra educar, fazer alguém dizer que o sujeito estava pisando em
ceder, alcançar uma pureza de alma, uma terreno proibido e o castigo acontecia sem
elevação do espírito, um domínio sobre si intervenção das pessoas.
mesmo, uma calmaria das paixões corpóre- Com o crescimento das sociedades, e
as, e podemos continuar ao infinito. Assim, quando os vencedores dos conflitos de guer-
agindo sobre o corpo alcançamos este bem ra perceberam que era melhor manter vivos
mais precioso que está dentro... O corpo é os vencidos para fazê-los de escravos, fez-se
uma arma de controle de populações. Bas- necessário sofisticar o sistema de controle de
ta que olhemos o mundo à nossa volta para prisioneiros e domesticá-los. Porque a vin-
percebermos como este corpo é assediado, gança poderia ocorrer a qualquer momento.
seduzido, manipulado, mutilado... Não basta que o corpo ceda, é necessário que
Retomando os pontos que levantamos até o espírito também fique domesticado. Os su-
agora, fomos da educação das crianças até o plícios e castigos com as várias formas que

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o ser humano inventou ao longo da huma- medo de perder os pais, depois de perder seu
nidade até chegar às penas de prisão, é uma amor e depois “percebem” que os pais ficam
mutação técnica! É a passagem de uma arte chateados, mas permanecem ali. Não estou
de punir a outra (FOUCAULT, 1977). incluindo aqui os pais que ultrapassam os
Encontramos as disciplinas de Foucault. limites seja lá em que direção... Quando os
Adestramento das massas, dos corpos, das progenitores veem esta percepção de seus
mentes. Surge todo um processo de avaliação: filhos, os castigos começam a ficar mais so-
sagrado/não sagrado; normal/anormal; saú- fisticados: sem mesada, sem shopping, sem
de/doença; certo/errado. E sempre presente presentes, sem saída e em alguns casos ficar
a questão: qual a melhor forma de melhorar preso no quarto por um bom tempo, e em
esta “anomalia”, seja ela de que ordem for? outros a surra...
Neste ponto vamos voltar nosso olhar O desprazer, a frustração, a dor psíquica e
para a infância do ser humano. Todos nós em muitos casos a dor física.
nascemos dependentes e frágeis. Precisamos Não é só uma questão de provocar dor e
que o outro cuide de nós para podermos depois a subjugação do outro... Há também
continuar vivos, literalmente. E antes que se o dado de que o corpo realiza aquilo que se
levante a dúvida se estou me referindo às fa- processa dentro. É o corpo que atua os de-
mílias razoavelmente organizadas, deixe-me sejos errados construídos dentro, faz-se ne-
esclarecer que me refiro a qualquer ambiente cessário moldar o espírito, o caráter, a alma,
onde um ser vai ser minimamente cuidado a vontade, os desejos, para que o dentro co-
para sobreviver. A nossa dependência física mande o corpo de forma correta, de acordo
e emocional nos faz demandar a atenção da- com o paradigma de controle que se esteja
queles que percebemos serem fundamentais usando.
às nossas necessidades. Seja sendo inteligen- Como já dissemos, aqui entram as guer-
te, educado, esperto, servil, obediente, deso- ras, as torturas, inquisições e muitas outras
bediente, bom, mal, saudável, doente. Todos coisas que se pode acrescentar enquanto
conhecem aqueles alunos que têm dificulda- “mazelas e sofrimentos corporais” para se al-
de de estudar – por vários motivos – e não cançar e domesticar o dentro. Ações de todos
podendo ser o primeiro da sala, será o mais os tipos e com inúmeras finalidades são efe-
bagunceiro, o “puxa-saco” da professora. Po- tivadas sobre o corpo do outro. Articulemos
de-se chamar a atenção de várias formas: o tudo que analisamos até o momento com o
mais violento; o que mais mata; o que mais que consideramos ser uma contribuição para
se droga; o mais esperto... a diminuição de violência nos presídios, uma
Trazemos da infância a marca da necessi- menor vulnerabilidade psíquica dos detentos
dade de cuidado, proteção de alguém supe- e, talvez, uma diminuição de reincidência.
rior a nós: pai, mãe, professora, líder, chefe.
A cadeia de pessoas às quais devemos certa Considerações finais
obediência e ansiamos pela admiração/amor No fim do século XVII, quando a punição
é enorme. E também trazemos a marca de se tornou parte velada do processo penal, o
saber o quanto é doído termos um desejo, corpo começou a ser utilizado como instru-
uma necessidade, uma vontade que alguém mento de privação, de obrigações e de inter-
impede de satisfazer. E acatamos por nossa dições. É sempre do corpo que se tratava, de
dependência. suas forças, de suas utilidades, docilidades,
As crianças sentem quando os pais sem- submissões. A alma era também utilizada
pre tão carinhosos proíbem uma brincadei- para a correção, o castigo deveria atuar sobre
ra, comportamento ou fala. E elas sentem o coração, o intelecto e a vontade (MEDEI-
muito. No início todas as crianças ficam com ROS, 1996). Tudo se torna julgado: as pai-

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xões, os instintos, as anomalias, os efeitos do nudez provém do esvaziamento do sujeito de


meio ambiente, a hereditariedade. Julga-se suas identidades (SYKES, 1969). Ao entrar
o que fizeram, mas também o que são. Um para a Instituição carcerária perde os supor-
crime é cometido porque traz vantagens; tes de sua identidade pessoal e social (ME-
para o castigo ter efeito basta que o mal que DEIROS, 1996).
cause ultrapasse o bem que o culpado retirou O isolamento, a ociosidade, a ausência de
do crime. A lembrança da dor pode evitar a objetivos tornam a mente mais comprome-
reincidência, é a certeza de ser punido que tida. Menos capaz de pensar e evoluir. Não
desvia o homem do crime (SYKES, 1969). é nosso objetivo discutir sobre a punição do
O suplicio se inseriu na pratica judicial encarceramento. É o que temos em nossa so-
porque é revelador da verdade e agente de po- ciedade! Mas a questão é como o ser huma-
der. O castigo vem em consequência de uma no pode tirar algum proveito deste, digamos,
desobediência de regras. A solidão que tam- “castigo”. COMO? Aqui entramos num ter-
bém é usada como forma de punição é vista reno delicado, porque não são todos que são
como instrumento positivo de uma reforma beneficiados pela possibilidade de estudo, ou
pela reflexão que suscita e pelo remorso que um tipo qualquer de ocupação, enfim, algu-
não pode deixar de vir (MEDEIROS, 1996). ma atividade onde o tempo não fique ocioso.
Não está em discussão se as leis são justas Toda produção implica no uso de um po-
ou injustas. Se as pessoas merecem ou não o tencial humano que se expressa através: das
tipo de julgamento. Se os motivos são aceitá- artes de todos os tipos; produção de um artefa-
veis ou não. Se houve avaliação de um perito to qualquer e de qualquer ordem; do ensino...
sobre o psiquismo do condenado, no que se O sujeito encarcerado não utiliza o potencial,
refere às patologias. Todos estes pontos são que por acaso possua, o seu tempo ocioso o
importantes e merecem outra pesquisa. O fará aprender aquilo que circula no ambien-
foco em análise é a vulnerabilidade de pes- te: transgressores e formas de transgressão.
soas no sistema de punição, que é o encarce- Se não existe, aliado ao processo de re-
ramento. clusão, algo que leve o sujeito punido a um
O encarceramento retira o ser humano do processo de construção, as chances de resso-
convívio com outros do coletivo e o coloca cialização ficam praticamente impossíveis e
isolado e na maioria das vezes com pessoas árduas, porque é um processo solitário.
que cometeram transgressões piores que a A ociosidade constante torna atraente
dele. Os pensadores de várias áreas, desde QUALQUER motivação e/ou solicitação do
tempos memoráveis, consideram o presí- meio. Na nossa perspectiva a ociosidade de-
dio uma escola de transgressões. Ali estão veria deixar de existir.
os transgressores, os que vão tentar impor Novamente repito que não é possível focar
naquele restrito espaço as suas leis, os mais a questão da detenção com um único olhar.
fortes dominam os mais fracos e os “bons Temos a constituição psíquica do punido; o
alunos” aprendem rápido, até para poderem crime/transgressão cometido; o preconceito
sobreviver. E o sistema de controle e cuida- da sociedade em relação ao ex-presidiário; a
dos daquele espaço nem sempre é eficiente dinâmica do espaço onde ele cumpre pena;
no sentido de organização e cuidados locais. companheiros de cela e prisão; a idade; possi-
O processo de admissão do detento é uma bilidades de aprendizagem de um oficio que
despedida e o começo de um processo que permita a sobrevivência pós-cárcere. Senão
pode ser marcado pela nudez. Despedida de ficamos considerando uma questão tão de-
um mundo de liberdade de escolha e deci- licada como esta de forma muito superficial.
sões. Começo de um mundo que não é per- A PUNIÇÃO, em todos os tempos, traz em-
mitido falar, apenas quando perguntado. A butida em si a possibilidade de REEDUCAR!

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Se no ambiente de detenção não há espa- Abstract


ço para reeducar com outros valores, se a re- This paper seeks to throw light on the issue of
educação é feita com outros transgressores- Psychological conditions meet by people at the
punidos, e o ambiente é de ociosidade com house of detetion. The prison system is always
o exercício dos mesmos atos que levaram object to discusssion. The authors’ objective is
ao encarceramento, acreditamos em grande to offer elements from a psychoanalytical point
porcentagem de reincidência. of view, in order to enable a discussion that
Freud, em “O Mal-Estar na Civilização” may be more detailed and effective, specially
(1979), se refere ao trabalho como uma téc- when the focus is a concern with the psycholo-
nica única na vida que prende o indivíduo gical conditions of prisoner.
firmemente à realidade. Fornece um lugar
seguro na realidade e comunidade humana. Keywords: Prison system, Psychic vulnerabi-
Desloca grandes quantidades de componen- lity, Punishment, Education, Work.
tes libidinais, narcísicos, agressivos e eróti-
cos, inclusive para os relacionamentos hu- Referências
manos a ele vinculados (FREUD, 1979).
Naturalmente o trabalho escolhido livre-
ANZIEU, D. Eu-pele. São Paulo: Casa do Psicólogo,
mente vai constituir fonte de prazer e satisfa- 1989.
ção especial. O que não é o caso no contexto
que estamos a pensar, mas podemos utilizar CORBIN, A, COURTINE, J-J, VEGARELL, G. A his-
a representação psíquica de um obrar nestas tória do corpo, 3. As mutações do olhar. O século XX.
condições. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2006.
Sabemos que citamos vários pontos que FOUCAULT, M. Vigiar e punir. A história da violência
necessitam investigação. A intenção é possi- nas prisões. 15. ed. Petrópolis: Vozes, 1977.
bilitar que possamos pensar com cuidado e
profundidade. O assunto é delicado e difícil. FREUD, S. Totem e tabu. In FREUD, S. Edição Stan-
E tornamos a repetir, com vários fatores em dard Brasileira das obras psicológicas completas. Trad.
Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1979, v.XIII.
jogo. Não basta dizermos o que seria ideal.
Porém insistimos na leitura de um sujeito FREUD, S. O mal-estar na civilização. In FREUD, S.
produtivo, já que o objetivo é punir para re- Edição Standard Brasileira das obras psicológicas com-
educar. pletas. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago,
Se deixarmos ver aos homens que o cri- 1979, v.XXI.
me pode ser perdoado e que o castigo não é FREUD, S. Análise terminável e interminável. In
sua continuação necessária, nutrimos nele a Freud, S. Edição Standard Brasileira das obras psicoló-
esperança de impunidade. Nada torna mais gicas completas. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro:
frágil o instrumento das leis que a esperança Imago, 1979, v.XXIII.
de impunidade, a eficácia das penas deve ser
GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. São
apoiada sobre a vaidade que estava na raiz do Paulo: Perspectiva, 1974.
crime (SYKES, 1969, p.56).
MEDEIROS, N. Corpo e prisão. Sexualidade matada
ou negada? Belo Horizonte, 1996. Obra mimeografa-
da e cedida.

SYKES, G.M. Crime e sociedade. Rio de Janeiro: Blo-


ch, 1969.

RECEBIDO EM: 22/03/2012


APROVADO EM: 29/03/2012

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SOBRE AS AU TOR AS

Stetina Trani de Meneses e Dacorso


Psicóloga. Psicanalista. Mestre em Letras-Literatura
Brasileira CES-JF. Mestre em Psicologia AWU-USA.
Membro Efetivo e Psicanalista do Círculo Brasileiro
de Psicanálise-Seção RJ. Presidente do Círculo
Brasileiro de Psicanálise 2010-12. Professora titular
do Curso de Psicologia-Centro de Ensino Superior
de Juiz de Fora. Membro Efetivo do Espaço Brasileiro
de Estudos Psicanalíticos (EBP-RJ).

Lilian Meneses Dacorso


Psicóloga. Psicanalista da SOBRAP-JF.
Psicologia Jurídica Ciclo-Ceap-BH.

Endereço para correspondência:


Stetina Trani de Meneses e Dacorso
Rua Padre Nobrega 35/201 – Paineiras
36016-140 – Juiz de Fora/MG
Tel.: (32)32158830
E-mail: stetina-dacorso@ig.com.br

Lilian Meneses Dacorso


Rua Padre Nóbrega 35/201 – Paineiras
36016-140 – Juiz de Fora/MG
Tel.: (32)9197-8134
E-mail: ldacorso@ig.com.br

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