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TEMA 6 – A PESQUISA NA ÁREA DA SURDEZ:

REFLETINDO CONCEITOS

INTRODUÇÃO

Neste capítulo realizaremos uma viagem pelo universo da surdez, um lugar ainda
pouco conhecido, ainda que esteja cada vez mais comum encontrarmos referência a
língua de sinais nas mídias e ambientes virtuais, pouco ou quase nada sabemos do sujeito
surdo.
Ao contrário das demais deficiências a surdez é mais sucinta, no que tange
questões identificatórias, pois ao visualizar uma pessoa na rua nem sempre é possível
afirmar se é surdo ou não. Entretanto, a surdez institui uma cultura própria, um olhar
diferenciado do mundo, mundo este captado apenas pelo visual, sem som, sem palavra.
Adotando uma perspectiva sócio antropológica, olharemos para o Surdo e sua
trajetória, suas vivências rumo a constituição de uma identidade própria.
A defesa da cultura surda passa pelo sentimento de pertencimento a comunidade
que não se dá pela geografia, mas pelo compartilhamento de uma língua de
características próprias, diferente do universo ouvinte.
Embarque nesta viagem e descubra um universo novo repleto de lutas e
conquistas.
Bons estudos!
A PESQUISA NA ÁREA DA SURDEZ: REFLETINDO CONCEITOS

Quando D. Pedro II convidou o professor surdo Hernest Huet em 1855 para deixar
a França e vir ao Brasil encarregar-se da educação de dois jovens meninos surdos, talvez
não tivesse em mente que além da educação formal estaria também instituindo uma nova
área do conhecimento que ao longo da história reuniria inúmeros pesquisadores
renomados e que por meio de suas investigações e inquietações promoveriam não
somente a produção do conhecimento como também a mudança de concepções acerca
da surdez e do sujeito surdo.

Os relatórios e documentos produzidos pelo Instituto sobre os processos e


metodologias de ensino, constituíram a base da educação de surdos no Brasil. Seus
documentos primários trazem contém relatos importantes da criação de metodologias
específicas para o desenvolvimento educacional da criança surda.

Se na ocasião da fundação do Instituto a produção de conhecimento acerca da


temática era inexistente no Brasil, o mesmo não se pode dizer no século XXI.

Em um levantamento realizado no Banco de Teses da Capes, tomando como base


o período de 1987 a 2009, utilizando os descritores surdo e surdez, foram encontrados
340 registros de dissertações e 105 de teses dos Programas de Pós-Graduação do Brasil,
das Instituições de Ensino Superior - públicas e privadas, que tem como objeto de
pesquisa a surdez.

Os resumos foram analisados e classificados de acordo com as principais áreas do


conhecimento (seguindo o padrão do CNPq).

O que possibilitou-nos constatar que há uma grande concentração na área das


Ciências da Saúde, deixando a Ciências Humanas em segundo lugar, no que tange
pesquisas voltadas para a temática da surdez, tanto no nível de mestrado quanto de
doutorado, o que pode explicar a grande influência do discurso clínico patológico com
relação aos sujeitos surdos na história.

Ao transpor os dados das tabelas para um gráfico comparativo é possível visualizar


de uma forma mais clara a produção de cada área. Tendo sempre presente que o número
de mestres titulados é sempre significativamente maior ao de doutores, o que explica a
maior concentração de produção no nível de mestrado:
Gráfico 01 – Comparação das pesquisas entre o nível e a área do conhecimento
Fonte – pesquisa direta: Banco de teses e dissertações da CAPES.

O levantamento permitiu ainda verificar que a presença das mulheres no universo


da pesquisa é superior aos homens em praticamente em todas as áreas, com exceção
das engenharias que por tradição concentra uma maior participação masculina, no entanto
não tão expressiva sobre a temática da surdez.
Tabela 02 – Levantamento da produção por gênero e área do conhecimento
Fonte – pesquisa direta: Banco de teses e dissertações da CAPES.

A leitura dos resumos permitiu ainda classificar as temáticas mais pesquisadas em


cada área, bem como nos níveis de mestrado e doutorado:
Tabela 03 – Levantamento das temáticas mais pesquisadas em nível de mestrado
Fonte – pesquisa direta: Banco de teses e dissertações da CAPES.

Cabe lembrar que as temáticas foram elencadas nas grandes áreas, o que pode
ocasionar algumas surpresas como pesquisas sobre produção de sentido da surdez, ou
mesmo aquisição de linguagem e escrita, realizadas pela área da saúde. Todavia a área
é composta por subáreas como psicologia e educação física, o que ajuda-nos a entender
o interesse por temas mais próximos com a área das Ciências Humanas, pois na grande
maioria a área da Saúde concentra seus esforços em identificar as razões genéticas da
surdez, a cura da patologia ou mesmo sua normalização através do uso de próteses
auditivas ou mesmo o implante coclear.

Nas Ciências Humanas, a Educação de surdos, os processos de aquisição da


linguagem, a Libras, as Políticas de Inclusão entre outros, são as temáticas
preferencialmente eleitas pelos pesquisadores, que na sua grande maioria são na
realidade pesquisadoras.
Tabela 04 – Levantamento das temáticas mais pesquisadas em nível de doutorado
Fonte – pesquisa direta: Banco de teses e dissertações da CAPES.

Cabe ainda ressaltar que foram levantadas as temáticas e não necessariamente a


postura teórica metodológica utilizada pelos pesquisadores, nem mesmo a concepção de
sujeito surdo defendida nas pesquisas.

No entanto, cabe realizar um reflexão sobre alguns conceitos que estão presentes
em pesquisas realizadas na área, relacioná-los e entre cruzá-los a fim de proporcionarmos
uma reflexão mais profunda sobre a surdez, o sujeito surdo, seu processo de constituição
de identidade, sua subjetividade.
“EU SOU SURDO, CRESCI SURDO”: CONSTRUINDO AS IDENTIDADES

É possível afirmar que os sujeitos (homens, mulheres, surdos, ouvintes, etc.) não
são naturais, no sentido de que haja uma essência que os defina, pelo contrário são
constituídos a partir dos discursos de determinadas áreas ou grupos detentores da
verdade. Desta forma, é possível afirmar que as identidades também são fabricadas a
partir de sistemas simbólicos de representação. Ela nasce de um oposto a ela, ou seja, a
identidade é afirmada a partir do que é diferente ao modelo definido. O que torna a
diferença algo essencial na compreensão da identidade. No processo de construção da
identidade outro fator passa a ser muito importante que é a cultura, uma vez que é a
cultura ou as culturas que estabelecem os critérios de classificação excluindo o que não
lhe pertence.

A cultura pode assumir uma dimensão essencialista ao determinar as identidades.


A dimensão essencialista utiliza afirmações tanto históricas como biológicas para
fundamentar suas postulações como verdadeiras. “O corpo é um dos locais envolvidos
no estabelecimento das fronteiras que definem quem nós somos, servindo de fundamento
para a identidade” (WOODWARD, 2007, p. 15). Mulheres, surdos, crianças, negros e
tantos outros, tiveram suas identidades definidas e fundamentadas historicamente a partir
da biologia de seus corpos.

Muitas vezes é através da observação do corpo que as surdas percebem a sua


diferença:

“(...) descobri que eu era diferente das demais crianças, isso aconteceu durante
uma brincadeira de pau-a-pique (se é que existe essa brincadeira). Todas as
crianças ficavam de um lado da outra e uma determinada pessoa gritava: “já”,
todos corriam e batiam em um local escolhido e voltavam correndo e para minha
surpresa eu fiquei parada no mesmo lugar, levei um susto e pensei: _ O que
aconteceu? Por que eles correram e por que eu fiquei? (...) senti em meu corpo
algo estranho e comecei a procurar a diferença. Onde ela estava? Olhei para
meu corpo dos pés a cabeça, procurava olhar as pessoas também dos pés a
cabeça (...) de repente numa cena, onde um professor estava conversando com
um aluno, eu parei, observei algo que comigo não acontecia, quando uma pessoa
fala, ela abre e fecha a boca e a outra fica de boca fechada e quando essa acabar
de falar a outra abre a boca”. (VILHALVA, 2004, p. 17).

Com a diferença entra em cena outro conceito, o da representação:

“A representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por


meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-os como sujeitos. É
por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à
nossa experiência e àquilo que somos e aquilo no qual podemos nos tornar.”
(WOODWARD, 2007, p. 15).

Através das representações e seus discursos são estabelecidas as identidades


individuais e coletivas bem como os lugares de onde os indivíduos podem falar e se
posicionar. A mídia é um bom exemplo de como se pode criar tais representações e
conseqüentemente definir identidades. Novelas, filmes, propagandas, criam conceitos de
homem, de mulher, de homossexual, de mãe, de adolescente e de tantas outras
identidades que passam a ser definidas, muitas vezes, como únicas. Significados
produzidos que envolvem relações de poder, pois pode definir que é o incluído e quem é
o excluído. A ciência com o seu discurso de verdade incontestável determina as
identidades dos indivíduos classificando-os por raça, peso, capacidades, gênero e etc.
Neste jogo de classificação a identidade surda raramente é atribuída a uma criança,
principalmente quando esta nasce em uma família de ouvintes:

“Na verdade eu nasci surda, minha mãe pesquisou, mas não sabe a resposta
certa. Já fizemos muitos exames, mas não temos resposta, um médico falou que
pode ser alguma questão genética que aparece de gerações em gerações na
família, mas não temos como saber. Vai demorar para saber exatamente. Eu sou
a única surda na família”.(Clara, surda).

Pertencer a uma minoria, para o surdo, é um sentimento que inicia no núcleo


familiar. Na grande maioria, os surdos pertencem a famílias de ouvintes, pode se dizer
que surdos filhos de pais surdos, são uma raridade, e quando acontece é comum que
avós ou outros parentes interfiram na educação destas crianças por entenderem que seus
pais não têm plena capacidade de educar um novo ser.
Aniversários, almoços, batizados, e tantas outras celebrações familiares que em
geral são tidas como unificadoras para muitos surdos são tão excludentes quanto à escola
dita inclusiva.

É comum mães e pais, influenciados pelo discurso clínico patológico, evitarem o


uso da língua de sinais, na tentativa de normalização de seus filhos, optando assim pela
leitura labial, no entanto, ao entrarem em contato com o mundo surdo e com a língua de
sinais, muitos surdos acabam se distanciando de suas famílias, pois descobrem um
mundo onde a surdez deixa de ser a marca de diferenciação para ser a marca de
identificação, de unificação entre os iguais. Fato este relatado por Maria Valentina que
com quinze anos sai de casa, não como um ato de rebeldia, mas para mostrar sua
capacidade:

“A vida é um pouco difícil, por que desde pequena, a minha família é grande, e eu
percebia que ficava um pouco sozinha, um pouco excluída, fora das discussões,
mas minha mãe sempre me incentivou e sempre me dizia: vai participa, aprende.
Com quinze anos eu fui buscar coisas, revolvi morar sozinha, meu irmão sempre
me ajudou, sempre se comunicou, ele não usa libras, é muito mais comunicação
oral, mas a gente sempre se comunica, eu percebo que sou um pouco afastada
da família, eu lembro que quando encontrei os surdos, eu percebi a diferença,
minha família tentou que eu usasse aparelho, e eu tentei usar um pouco, mas não
consegui me adaptar. Quando aceitei minha identidade surda, comecei a lutar e
mostrar para minha família que eu era capaz, que embora sozinha, eu podia entrar
na faculdade”. (Maria Valentina - Surda).

Mesmo nas famílias em que há uma maior compreensão da dimensão do ser surdo,
onde pai e/ou mãe entendem que a língua de sinais é importante para o desenvolvimento
cognitivo e social do filho, permitindo-lhe acesso a educação, trabalho, cultura, etc... O
uso da língua de sinais pela família em discussões, encontros, ou em um simples almoço,
não é uma realidade. Ao surdo cabe compreender o mundo de forma resumida. Enquanto
uma criança ouvinte aprende muitos conceitos abstratos através do simples convívio entre
adultos, para um surdo que convive entre ouvintes que usam a libras apenas em
momentos esporádicos, para dar instruções simples, ou para dar um acesso limitado a
informação, é difícil entender coisas simples como não colocar o dedo na tomada, ou
coisas mais complexas como evitar uma gravidez na adolescência:

Geralmente quando se fala em preconceito se utiliza exemplos de grande exclusão


ou situações de exposição dramáticas e de grande expressão. No entanto, o preconceito
pode se manifestar de maneira tão sutil que é praticamente impossível perceber sua força.

Inúmeras são as situações de preconceito relatadas por surdos e surdas do Brasil


e tantos outros países, independentemente de gênero, classe, sexo ou etnia.

Não existe um lugar determinado ou um grupo específico para a manifestação do


preconceito. O primeiro lugar de enfrentamento desta situação, muitas vezes é a própria
família que por desconhecer a totalidade daquele que se apresenta estranho, diante dos
ditos normais, reproduz o discurso da incapacidade do diferente:

“(...) eu gosto de estudar, mas a minha família não esperava, não acreditava em
mim, no meu desenvolvimento, hoje eles ficam admirados, até agora, meus primos
não têm faculdade, na minha família, todos casaram tiveram seus filhos, eu
também casei tive minha filha, mas também faço faculdade, eles ficam admirados
agora, demorou para aceitarem. O preconceito acabou, mas, existiu sim”. (Maria
Valentina - Surda).

Diante de tantas situações impostas pela sociedade ouvinte surgem os movimentos


surdos, que são responsáveis por grande parte das conquistas da comunidade surda. As
associações e clubes de surdos do país são espaços de socialização, constituição e
discussão da cultura surda e de seus artefatos.

As associações inicialmente pensadas para dar assistência e informações aos


surdos constituem hoje em um espaço político, onde articulam-se as lutas de uma
comunidade local.

É notória a presença e participação das mulheres nos movimentos surdos.


Presentes, não somente como associadas, se fizeram atuantes como líderes e
presidentes de clubes, associações e federações pelo Brasil.
A CULTURA E O PERTENCIMENTO

O sentimento de pertencimento ao grupo está para além das fronteiras, o que une
a comunidade surda vai além da rua, do bairro, do município ou do estado. O que une os
surdos é a sua cultura.

Falar em cultura não é nada simples, já que não há um consenso entre os


pesquisadores e muitos são os significados e as teorias existentes para o termo. Na
perspectiva pós-moderna a cultura é concebida de uma maneira pluralizada, sendo
possível pensar múltiplas culturas dentro de uma mesma nação (EAGLETON, 2005).
Para os pós-modernos a pluralidade entrecruza-se com a auto-identidade.

A pluralidade amplia o conceito de cultura admitindo a manifestação de grupos


culturais de diversas natureza. Segundo Hall (1997) a cultura determina a forma como
vemos, compreendemos e explicamos o mundo.

“As identidades surdas são construídas dentro das representações possíveis da


cultura surda, elas moldam-se de acordo com o maior ou menos receptividade
cultural assumida pelo sujeito. E dentro dessa receptividade cultural, também
surge aquela luta política ou consciência oposicional pela qual o individuo
representa a si mesmo, de defende da homogeneização, dos aspectos que o
tornam corpo menos habitável, da sensação de invalidez, de inclusão entre os
deficientes, de menos valia social”. (PERLIN apud STROBEL, 2009. p. 27).

É válido dizer que mesmo participando da experiência visual do mundo, nem todo
surdo é igual, haverá diferenças dentro da comunidade surda. Visto que a subjetividade
é um fator a ser considerado, pois está relacionado aos pensamentos que temos de nós
mesmos sobre quem somos. No entanto, cabe lembrar que o fato dos surdos e surdas
terem uma inserção tardia na comunidade sua subjetividade é determinada inicialmente
no mundo ouvinte o que pode gerar marcas profundas.
ESCOLA: NORMALIZANDO OU CONSTITUINDO IDENTIDADES?

Toda a reflexão a respeito da surdez que tem uma dimensão sócio cultural traz
presente a dimensão da escola na vida dos sujeitos surdos, já que é neste espaço que o
(a) surdo (a), muitas vezes, entra em contato com outros(as) surdos(as) constituindo sua
identidade ou mesmo, na pior das situações, reforçam a ideia de deficiente, por não
encontrar no outro traços de semelhança não desenvolvendo o sentimento de
pertencimento do grupo.

O fato é que a escola, mais precisamente a vida escolar e suas experiências


marcam o sujeito surdo positiva ou negativamente, na construção de sua subjetividade.

“Da escola o que mais me marcou foi a convivência com outros surdos, já que não
tinha nenhum surdo na família ou na vizinhança. Gostava mais das conversas
com os colegas do que das aulas, é verdade, mas tenho boas lembranças da
escola. (...) minha escola tinha ouvintes e uma sala para surdos, nós estudávamos
separados dos demais por que éramos considerados deficientes. A professora
não usava sinais e nós copiávamos tudo do quadro”. (Anastácia - Surda).

Por algum tempo muitas escolas regulares mantiveram classes especiais


destinadas a surdos, mas nestas escolas é possível perceber um movimento de
constituição da identidade surda, já que por estarem em contato com iguais, sentiam um
certo prazer em freqüentar a escola, e utilizavam a língua de sinais ou sinais combinados
nos momentos de convívio entre eles. No entanto, para a transmissão dos conteúdos
curriculares a língua oficial era o português, o que impossibilitava a compreensão e não
despertava o interesse na aula. Como estratégia, muitos surdos apenas copiavam os
conteúdos do quadro não tendo preocupação em aprender.

Mesmo a escola especial que por muito tempo ficou responsável pela educação
dos surdos carregava em sua concepção de sujeito a marca da deficiência. Conforme
Skliar (2005), “a educação especial, cujos componentes ideológicos, políticos, teóricos,
etc. são, no geral de natureza discriminatória, descontínua, conduzindo a uma prática de
exclusão permanente”.
É comum encontrarmos relato de surdos e surdas que desistiram de estudar em
função do isolamento que sofreram:

“Na escola não tinha intérprete, eu não entendia direito as coisas. Era a única
surda na escola, na cidade, não tinha com quem conversar, na verdade nem sabia
direito o que era ser surda. Na escola não tinha comunicação. Depois me casei
e fui só até a 6ª série. Agora voltei a estudar no EJA, tem intérprete e consigo
compreender melhor a matéria”. (Joana - Surda).

A simples presença de intérprete em uma sala de aula não garante o aprendizado,


muito menos a tão sonhada inclusão para uma aluna surda que não conhece a língua de
sinais e sequer tem consciência do que é ser surda.

No passado era comum médicos e profissionais da educação orientarem familiares


de surdos a evitarem contato com outros surdos a fim de garantir o aprendizado da língua
portuguesa, escrita e falada, já que concebiam o surdo como um ouvinte privado da
capacidade de ouvir.

Por possuir uma “voz boa”, no sentido de ser capaz de oralizar, muitos médicos
sugerem que as crianças surdas estudem em escolas regulares de ouvintes.

A falta de compreensão do que realmente é a surdez faz com que muitos


professores não reflitam suas práticas em sala de aula e muitas vezes promovem
situações em que é impossível a participação do aluno surdo:

“A professora sempre conversava comigo me olhando direto, sempre dizia que eu


era inteligente, mas também achava que eu era coitadinha por que era surda. Mas
era meio confusa às vezes. Na hora do ditado, por exemplo, a professora ditava
as palavras e esquecia que eu não escutava, achava que só por que eu usava o
aparelho ia conseguir ouvir certo, então eu errava algumas palavras, trocava
algumas letras como X e Z, por que tem palavras que se usa estas letras e eu não
percebia a diferença do som então errava, aí ela dizia para eu prestar mais
atenção”. (Catarina).

Uma prática simples e supostamente inofensiva como o ditado, muito usada por
diversos professores nos anos iniciais para treinar a ortografia, torna-se um momento de
tortura para um surdo, que não tem como diferenciar alguns fonemas, por mais exímio
leitor de lábios que possa ser.

O movimento provocado pelos questionamentos dos Estudos Surdos em Educação


resultou não apenas em uma reviravolta em termos conceituais do sujeito como também
uma ruptura com a educação especial e o discurso hegemônico de sujeitos deficientes
(SKLIAR, 2005. p. 12). Não podemos afirmar que todos os problemas foram resolvidos e
que a mudança de concepção (educação especial para educação de surdos) muitas vezes
não passou de uma simples substituição de termos, mas através das pesquisas e debates
promovidos pelos Estudos Surdos permitiu uma problematização com relação aos
currículos das escolas de educação de surdos, considerando a cultura e as relações de
poder na constituição das identidades.

O reflexo das mudanças provocadas é perceptível também no número de surdos


que têm alcançado o ensino superior: Graduação e Pós-Graduação.
REFERÊNCIAS

LABORIT, Emmanuelle. O vôo da gaivota. São Paulo: Best Seller, 1994.

LANE, Harlan. A Máscara da Benevolência: a comunidade surda amordaçada. Lisboa:


Instituto Peaget, 1992.

MASUTTI, Maria Lúcia; SANTOS, Silvana Aguiar. Intérpretes de Sinais: Uma política
em construção. IN: QUADROS, Ronice Müller. Estudos Surdos III. Petrópolis: Ed. Arara
Azul, 2008.

PERLIN, Gladis & QUADROS, Ronice Muller de. O ouvinte o outro do outro surdo. In:
Anais do II Seminário Internacional Educação Intercultural, Gênero e Movimentos Sociais.
Florianópolis: Fapeu-002, 2003. CD Room.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Teoria cultural e educação: um vocabulário crítico. Belo
Horizonte: Autêntica, 2000.

SKLIAR, Carlos Bernardo. Pedagogia (improvável) da diferença: e se o outro não


estivesse a? Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

SACKS, Oliver. Vendo vozes: uma jornada no mundo dos surdos. Rio de Janeiro: Imago,
1997.

STROBEL, Karin. As imagens do outro sobre a cultura surda. 2. ed. Florianópolis:


Editora da UFSC, 2009.

THOMA, Adriana da Silva; LOPES, Maura Corcini (Org.). A invenção da surdez: cultura,
alteridade, identidade e diferença no campo da educação. Santa Cruz do Sul, RS: Ed. da
UNISC, 2004.

VILHALVA, Shirley. Despertar do Silêncio. Petrópolis: Ed. Arara Azul, 2004.

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