Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
REFLETINDO CONCEITOS
INTRODUÇÃO
Neste capítulo realizaremos uma viagem pelo universo da surdez, um lugar ainda
pouco conhecido, ainda que esteja cada vez mais comum encontrarmos referência a
língua de sinais nas mídias e ambientes virtuais, pouco ou quase nada sabemos do sujeito
surdo.
Ao contrário das demais deficiências a surdez é mais sucinta, no que tange
questões identificatórias, pois ao visualizar uma pessoa na rua nem sempre é possível
afirmar se é surdo ou não. Entretanto, a surdez institui uma cultura própria, um olhar
diferenciado do mundo, mundo este captado apenas pelo visual, sem som, sem palavra.
Adotando uma perspectiva sócio antropológica, olharemos para o Surdo e sua
trajetória, suas vivências rumo a constituição de uma identidade própria.
A defesa da cultura surda passa pelo sentimento de pertencimento a comunidade
que não se dá pela geografia, mas pelo compartilhamento de uma língua de
características próprias, diferente do universo ouvinte.
Embarque nesta viagem e descubra um universo novo repleto de lutas e
conquistas.
Bons estudos!
A PESQUISA NA ÁREA DA SURDEZ: REFLETINDO CONCEITOS
Quando D. Pedro II convidou o professor surdo Hernest Huet em 1855 para deixar
a França e vir ao Brasil encarregar-se da educação de dois jovens meninos surdos, talvez
não tivesse em mente que além da educação formal estaria também instituindo uma nova
área do conhecimento que ao longo da história reuniria inúmeros pesquisadores
renomados e que por meio de suas investigações e inquietações promoveriam não
somente a produção do conhecimento como também a mudança de concepções acerca
da surdez e do sujeito surdo.
Cabe lembrar que as temáticas foram elencadas nas grandes áreas, o que pode
ocasionar algumas surpresas como pesquisas sobre produção de sentido da surdez, ou
mesmo aquisição de linguagem e escrita, realizadas pela área da saúde. Todavia a área
é composta por subáreas como psicologia e educação física, o que ajuda-nos a entender
o interesse por temas mais próximos com a área das Ciências Humanas, pois na grande
maioria a área da Saúde concentra seus esforços em identificar as razões genéticas da
surdez, a cura da patologia ou mesmo sua normalização através do uso de próteses
auditivas ou mesmo o implante coclear.
No entanto, cabe realizar um reflexão sobre alguns conceitos que estão presentes
em pesquisas realizadas na área, relacioná-los e entre cruzá-los a fim de proporcionarmos
uma reflexão mais profunda sobre a surdez, o sujeito surdo, seu processo de constituição
de identidade, sua subjetividade.
“EU SOU SURDO, CRESCI SURDO”: CONSTRUINDO AS IDENTIDADES
É possível afirmar que os sujeitos (homens, mulheres, surdos, ouvintes, etc.) não
são naturais, no sentido de que haja uma essência que os defina, pelo contrário são
constituídos a partir dos discursos de determinadas áreas ou grupos detentores da
verdade. Desta forma, é possível afirmar que as identidades também são fabricadas a
partir de sistemas simbólicos de representação. Ela nasce de um oposto a ela, ou seja, a
identidade é afirmada a partir do que é diferente ao modelo definido. O que torna a
diferença algo essencial na compreensão da identidade. No processo de construção da
identidade outro fator passa a ser muito importante que é a cultura, uma vez que é a
cultura ou as culturas que estabelecem os critérios de classificação excluindo o que não
lhe pertence.
“(...) descobri que eu era diferente das demais crianças, isso aconteceu durante
uma brincadeira de pau-a-pique (se é que existe essa brincadeira). Todas as
crianças ficavam de um lado da outra e uma determinada pessoa gritava: “já”,
todos corriam e batiam em um local escolhido e voltavam correndo e para minha
surpresa eu fiquei parada no mesmo lugar, levei um susto e pensei: _ O que
aconteceu? Por que eles correram e por que eu fiquei? (...) senti em meu corpo
algo estranho e comecei a procurar a diferença. Onde ela estava? Olhei para
meu corpo dos pés a cabeça, procurava olhar as pessoas também dos pés a
cabeça (...) de repente numa cena, onde um professor estava conversando com
um aluno, eu parei, observei algo que comigo não acontecia, quando uma pessoa
fala, ela abre e fecha a boca e a outra fica de boca fechada e quando essa acabar
de falar a outra abre a boca”. (VILHALVA, 2004, p. 17).
“Na verdade eu nasci surda, minha mãe pesquisou, mas não sabe a resposta
certa. Já fizemos muitos exames, mas não temos resposta, um médico falou que
pode ser alguma questão genética que aparece de gerações em gerações na
família, mas não temos como saber. Vai demorar para saber exatamente. Eu sou
a única surda na família”.(Clara, surda).
“A vida é um pouco difícil, por que desde pequena, a minha família é grande, e eu
percebia que ficava um pouco sozinha, um pouco excluída, fora das discussões,
mas minha mãe sempre me incentivou e sempre me dizia: vai participa, aprende.
Com quinze anos eu fui buscar coisas, revolvi morar sozinha, meu irmão sempre
me ajudou, sempre se comunicou, ele não usa libras, é muito mais comunicação
oral, mas a gente sempre se comunica, eu percebo que sou um pouco afastada
da família, eu lembro que quando encontrei os surdos, eu percebi a diferença,
minha família tentou que eu usasse aparelho, e eu tentei usar um pouco, mas não
consegui me adaptar. Quando aceitei minha identidade surda, comecei a lutar e
mostrar para minha família que eu era capaz, que embora sozinha, eu podia entrar
na faculdade”. (Maria Valentina - Surda).
Mesmo nas famílias em que há uma maior compreensão da dimensão do ser surdo,
onde pai e/ou mãe entendem que a língua de sinais é importante para o desenvolvimento
cognitivo e social do filho, permitindo-lhe acesso a educação, trabalho, cultura, etc... O
uso da língua de sinais pela família em discussões, encontros, ou em um simples almoço,
não é uma realidade. Ao surdo cabe compreender o mundo de forma resumida. Enquanto
uma criança ouvinte aprende muitos conceitos abstratos através do simples convívio entre
adultos, para um surdo que convive entre ouvintes que usam a libras apenas em
momentos esporádicos, para dar instruções simples, ou para dar um acesso limitado a
informação, é difícil entender coisas simples como não colocar o dedo na tomada, ou
coisas mais complexas como evitar uma gravidez na adolescência:
“(...) eu gosto de estudar, mas a minha família não esperava, não acreditava em
mim, no meu desenvolvimento, hoje eles ficam admirados, até agora, meus primos
não têm faculdade, na minha família, todos casaram tiveram seus filhos, eu
também casei tive minha filha, mas também faço faculdade, eles ficam admirados
agora, demorou para aceitarem. O preconceito acabou, mas, existiu sim”. (Maria
Valentina - Surda).
O sentimento de pertencimento ao grupo está para além das fronteiras, o que une
a comunidade surda vai além da rua, do bairro, do município ou do estado. O que une os
surdos é a sua cultura.
É válido dizer que mesmo participando da experiência visual do mundo, nem todo
surdo é igual, haverá diferenças dentro da comunidade surda. Visto que a subjetividade
é um fator a ser considerado, pois está relacionado aos pensamentos que temos de nós
mesmos sobre quem somos. No entanto, cabe lembrar que o fato dos surdos e surdas
terem uma inserção tardia na comunidade sua subjetividade é determinada inicialmente
no mundo ouvinte o que pode gerar marcas profundas.
ESCOLA: NORMALIZANDO OU CONSTITUINDO IDENTIDADES?
Toda a reflexão a respeito da surdez que tem uma dimensão sócio cultural traz
presente a dimensão da escola na vida dos sujeitos surdos, já que é neste espaço que o
(a) surdo (a), muitas vezes, entra em contato com outros(as) surdos(as) constituindo sua
identidade ou mesmo, na pior das situações, reforçam a ideia de deficiente, por não
encontrar no outro traços de semelhança não desenvolvendo o sentimento de
pertencimento do grupo.
“Da escola o que mais me marcou foi a convivência com outros surdos, já que não
tinha nenhum surdo na família ou na vizinhança. Gostava mais das conversas
com os colegas do que das aulas, é verdade, mas tenho boas lembranças da
escola. (...) minha escola tinha ouvintes e uma sala para surdos, nós estudávamos
separados dos demais por que éramos considerados deficientes. A professora
não usava sinais e nós copiávamos tudo do quadro”. (Anastácia - Surda).
Mesmo a escola especial que por muito tempo ficou responsável pela educação
dos surdos carregava em sua concepção de sujeito a marca da deficiência. Conforme
Skliar (2005), “a educação especial, cujos componentes ideológicos, políticos, teóricos,
etc. são, no geral de natureza discriminatória, descontínua, conduzindo a uma prática de
exclusão permanente”.
É comum encontrarmos relato de surdos e surdas que desistiram de estudar em
função do isolamento que sofreram:
“Na escola não tinha intérprete, eu não entendia direito as coisas. Era a única
surda na escola, na cidade, não tinha com quem conversar, na verdade nem sabia
direito o que era ser surda. Na escola não tinha comunicação. Depois me casei
e fui só até a 6ª série. Agora voltei a estudar no EJA, tem intérprete e consigo
compreender melhor a matéria”. (Joana - Surda).
Por possuir uma “voz boa”, no sentido de ser capaz de oralizar, muitos médicos
sugerem que as crianças surdas estudem em escolas regulares de ouvintes.
Uma prática simples e supostamente inofensiva como o ditado, muito usada por
diversos professores nos anos iniciais para treinar a ortografia, torna-se um momento de
tortura para um surdo, que não tem como diferenciar alguns fonemas, por mais exímio
leitor de lábios que possa ser.
MASUTTI, Maria Lúcia; SANTOS, Silvana Aguiar. Intérpretes de Sinais: Uma política
em construção. IN: QUADROS, Ronice Müller. Estudos Surdos III. Petrópolis: Ed. Arara
Azul, 2008.
PERLIN, Gladis & QUADROS, Ronice Muller de. O ouvinte o outro do outro surdo. In:
Anais do II Seminário Internacional Educação Intercultural, Gênero e Movimentos Sociais.
Florianópolis: Fapeu-002, 2003. CD Room.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Teoria cultural e educação: um vocabulário crítico. Belo
Horizonte: Autêntica, 2000.
SACKS, Oliver. Vendo vozes: uma jornada no mundo dos surdos. Rio de Janeiro: Imago,
1997.
THOMA, Adriana da Silva; LOPES, Maura Corcini (Org.). A invenção da surdez: cultura,
alteridade, identidade e diferença no campo da educação. Santa Cruz do Sul, RS: Ed. da
UNISC, 2004.