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Neste manifesto para uma plateia interdisciplinar, a econo- “Escola de Chicago”, cujos professores e ex-alunos já somam

mista e historiadora Deirdre McCloskey coloca em xeque o mais de 29 Prêmios Nobel de Economia. Sem negar a im-
modo como a economia vem produzindo dados e gerando portância da ciência econômica clássica ou do pensamento
conhecimento nas últimas décadas. Com seu tom provoca- liberal dos economistas britânicos, como Adam Smith,
dor, perpassado por ironias e alfinetadas, McCloskey parte Deirdre McCloskey tenta levar a discussão a um outro pa-
do princípio de que as pesquisas econômicas recentes fo- tamar, para além de posições políticas enrijecidas – afinal,
ram incapazes de produzir uma “investigação inteligente” como ela diz, há muito trabalho a ser refeito.
porque esquecem de olhar ou esquecem de pensar o mundo.
Na confusão entre teoremas qualitativos e significância es-
tatística, em meio a um binarismo superficial, o que a eco- tradução Sergio Flaksman
nomia teria perdido é justamente o vínculo com a realidade
– isto é, o fato de que o mundo dos números, dos conceitos
e dos planos econômicos, da taxa de juros, da inflação, do
Bolsa Família ou da reforma da Previdência, impacta a vida
de cada um de nós.
Essa discussão sobre os limites da ciência econômica,
no entanto, não se dirige apenas a especialistas ou a escla-
recidos. A linguagem de McCloskey é clara, e os exemplos
são tomados do cotidiano, de modo que o leitor – qualquer
que seja seu universo – poderá se divertir, se irritar e certa-
mente refletir com as colocações dessa grande intelectual
que se define como “uma mulher do meio-oeste que já foi
um homem, pós-moderna, amante da literatura e da esta-
tística, defensora do livre mercado, uma progressista epis-
copal de Boston”.
Com notas do economista Luciano Sobral, que situam
o leitor na constelação de economistas e suas teorias, o li-
vro condensa alguns argumentos fundamentais para com-
preender os limites de um modelo de pensamento que vem
sendo difundido há mais de meio século, notadamente pela
TRADUÇÃO SERGIO FLAKSMAN
NOTAS LUCIANO SOBRAL
Introdução  7
VIRTUDES IDENTIFICADAS COMO PECADOS  11
PECADOS NÃO EXCLUSIVOS DA ECONOMIA  39
DOIS PECADOS QUASE EXCLUSIVOS DA ECONOMIA  51
Índice onomástico  75
Sobre a autora  77
O
s pecados da economia não são os que costumam ser
apontados pela média dos antropólogos, historiadores
e jornalistas. Vista de fora, essa triste ciência parece
obviamente poluída pelo pecado, apesar da irritante in-
fluência que conserva. Mas seus pecados mais óbvios
nem são tão terríveis assim; ou, quando terríveis, são de qual-
quer forma os que todo mundo comete. Na verdade, são dois os
pecados peculiares, nada óbvios nem habituais, os dois pecados
secretos, que prejudicam hoje a atividade científica – na econo-
mia e em alguns outros campos (como a psicologia, a ciência po-
lítica, a medicina e a biologia das populações).
Ainda assim, uma crítica benevolente que diga essas coisas,
mas deseje que a economia que tanto ama finalmente cresça e
comece a concentrar as energias na produção de uma ciência
digna do nome (da maneira como a física, a geologia, a antro-
pologia, a história ou certas áreas da crítica literária produzem
ciência), acaba por se ver deploravelmente incompreendida. Os
pecados veniais, mais corriqueiros, impedem o escrutínio dos
pecados mais bizarros e mortais. Ai da pobre crítica benevolen-
1  A chamada Es- te, normalmente incompreendida como auto-
cola de Chicago
representa a vertente
ra de alguma Crítica do Idiota: “Ah, entendi.
mais “pró-mercado” Você é de humanas, essa gente avoada que não
do debate acadê-
mico americano,
suporta números ou matemática”. Ou “Ah, en-
defendendo a supe- tendi. Quando você diz que a economia é ‘re-
rioridade de resulta-
dos de alocação de
tórica’, quer dizer que os economistas deviam
recursos definidos escrever num tom mais animado”.
por livres merca-
dos, com mínima
E isso, podem acreditar, é enlouquecedor.
interferência do A crítica benevolente, ela própria economis-
governo. A Escola
de Chicago também
ta, inclusive da Escola de Chicago,1 con-
é frequentemente seguiu a duras penas – ao cabo de vinte 7
anos de procura lenta e exaustiva – reconhecer a ubiquidade dos
Dois Pecados Secretos da Economia (que no fim das contas são
um só, derivado do orgulho, como todos os pecados). E formu-
lou sugestões construtivas no sentido de redimir a economia do
pecado. Ainda assim, ninguém – nem um antropólogo, profes-
sor de inglês ou militante em qualquer outra área científica, o
que seria de esperar, mas menos ainda algum economista ou
praticante das ciências médicas – entende o que ela quer dizer,
ou age de acordo com suas ideias.

associada, por influ-


ência sobretudo de
Gary Becker, com o
“imperialismo econô-
mico” – o uso de ferra-
mentas econômicas para
o estudo de tópicos que
geralmente são do domí-
nio de outras ciências
sociais. Seus principais
intelectuais eram profes-
sores do departamento
de economia na Uni-
versidade de Chicago,
como Milton Friedman,
Robert Lucas, Richard
Posner entre outros
ganhadores do Prêmio
Nobel de Economia
(nenhum outro departa-
mento acumulou tantos
prêmios, o que atesta sua
8 enorme influência).
A QUANTIFICAÇÃO
A quantificação, porém, não é um pecado. Desde o berço, a ciên-
cia social vem acompanhada pelos números. Os aritméticos polí-
ticos ingleses William Petty e Gregory King, e os demais do final
do século xvii (prenunciados no início do mesmo século, como
em tantas outras coisas que consideramos inglesas, por alguns
holandeses), queriam, acima de tudo, saber Quanto, Que total,
Qual parte. Era uma obsessão totalmente inédita. Que se pode
chamar de burguesa. Quanto custaria drenar os charcos de So-
merset? Qual parte do que a Inglaterra auferia com o comércio
exterior dependia da existência das suas colônias? Que total disso,
e Qual parte daquilo? Cem anos mais tarde, o bem-aventurado
Adam Smith ainda se perguntava Quanto os salários pagos em
Edimburgo eram diferentes dos de Londres (demais), e Quanto
as colônias adquiridas na época graças às guerras incessantes
contra a França ao longo do século xviii valiam para a Coroa
(não muito). É surpreendente notar que, ao final do século xviii,
os diagramas estatísticos já tinham sido inventados; o que não
surpreende é que não tenham sido inventados antes – mais um
sinal de que o pensamento quantitativo era uma novidade, pelo
menos no Ocidente (havia séculos que os chineses já vinham

VIRTUDES
reunindo estatísticas sobre população e preços). Os Estados eu-
ropeus, da Suécia a Nápoles, começaram no século xviii a cole-

ERRONEAMENTE
tar estatísticas que pudessem lhes render preocupações: preços,
população, balanças comerciais, circulação do ouro. A palavra

IDENTIFICADAS
“estatística” (derivada de “estado”) foi cunhada por alemães e ita-
lianos entusiastas da ação estatal no início do século xviii, apon-

COMO PECADOS
tando para uma história do uso dos números pelos Estados.
Surgiu então a era da estatística, e tudo, das detenções pelo 11
uso de drogas e das mortes devidas ao fumo, ao valor da vida e à considere a questão, como foi acostumada a considerar qualquer
classificação de crédito da vizinha ao lado, passou a ser objeto de outra, simplesmente como uma questão de Fatos tangíveis. Os
expressão numérica. ignorantes e os tontos podem dificultar tais assuntos com fantasias
O que se transformou numa espécie de loucura, é claro. irrelevantes, e outros absurdos inexistentes, quando são vistos de
Guias de turismo observam que os homens norte-americanos maneira adequada – inteiramente inexistentes; porém, não é elo-
sempre querem saber a altura de cada torre, o número de tijolos gio dizer-lhe que você tem compreensão superior a isso. Ora, quais
que compõem cada muralha notável, quantas mortes ocorreram são os Fatos neste caso? Você tem, digamos, em números redondos,
aqui, quantas pessoas viviam ali. Em 1775, Samuel Johnson re- vinte anos de idade; o sr. Bounderby tem, digamos, em números
velou-se típico do seu tempo e do seu gênero ao registrar o tama- redondos, cinquenta […]. Então, surge a pergunta: essa única dis-
nho de tudo que encontrava numa viagem pelo oeste da Escócia paridade é suficiente para constituir obstáculo ao casamento? Ao
(usava sua bengala como instrumento de medida). Na década considerarmos essa pergunta, não é desimportante levarmos em
de 1850, os críticos conservadores do capitalismo, como Charles conta as estatísticas sobre o casamento, tal como foram obtidas,
Dickens, já demonstravam grande irritação com a estatística: até o momento, em Gales e na Inglaterra. Observo, em referên-
cia aos números, que na maioria das vezes esses casamentos são
Sr. Thomas Gradgrind – peremptoriamente, Thomas – Thomas contratados entre partes de idades muito desiguais, e que a mais
Gradgrind. Com uma régua e uma balança, e a tabuada sempre velha dessas partes contratantes é, em mais de três quartos desses
no bolso, senhor, pronto para pesar e medir qualquer parcela da exemplos, o noivo. É notável, por demonstrar a ampla prevalência
natureza humana, e dizer o resultado exato. É uma mera questão dessa lei, que, entre os nativos das colônias britânicas na Índia, e
de números, um caso de simples aritmética. também em parte considerável da China, e entre os calmuques
[…] da Tartária, os melhores meios de cômputo, a nós oferecidos por
“Pai”, insistiu ela, “o sr. Bounderby pede que eu o ame?” viajantes, rendam resultados semelhantes.”1
“[…] A resposta depende tão materialmente do sentido que atri-
buímos a essa expressão. Ora, o sr. Bounderby não lhe faz a injus- É certo que a contagem, o cômputo, pode ser uma ferramenta
tiça, e não faz a si mesmo a injustiça, de pretender que haja algo dos idiotas, ou do Demônio. Entre os vestígios mais perturbado-
fantástico, fantasioso ou (uso termos sinônimos) sentimental. res do campo de extermínio de Auschwitz estão os livros em que
[…] Portanto, talvez a expressão em si – somente sugiro, minha os carrascos voluntários de Hitler mantinham registros sobre
querida – pode ser um pouco inadequada.” 1  Charles Dickens,
cada indivíduo que exterminavam.
“O que o senhor aconselha-me a usar no lugar dela, pai?” Tempos difíceis, trad. A teoria formal e matemática da estatís-
José Baltazar Pereira
“Ora, minha querida Louisa”, disse o sr. Gradgrind, já completa- Júnior. São Paulo:
tica foi inventada em grande parte na dé-
12 mente recuperado àquela altura, “aconselho (já que me pede) que Boitempo, 2014. cada de 1880 por eugenistas (esses racistas 13
ilustrados que se encontram na origem de tanta coisa nas ciên- PREÇOS PAGOS EM MÉDIA E VALORES DOS PRESENTES
cias sociais) e aperfeiçoada no século xx por agrônomos (isso
mesmo, agrônomos – em lugares como a estação experimental VARIÁVEL PESQUISA 1 PESQUISA 2
agrícola de Rothamsted, na Inglaterra, ou a Universidade do Preço pago ($) 438,2 508,9
Estado de Iowa). A estatística, recém-matematizada, transfor- Valor ($) 313,4 462,1
mou-se num verdadeiro fetiche entre todas as novas candidatas Percentual do valor médio 71,5 90,8
a ciência. Ao longo da década de 1920, nos primórdios da socio- sobre a média do preço pago
logia, a quantificação era um meio de reivindicar uma posição Número de presenteados 86 58
mais destacada, como também ocorreu com a economia, que
acabara de se livrar do nome antigo de economia política, e a psi- É uma mera questão de números, um caso de simples aritmética.
cologia, pouco antes separada da filosofia. Nas décadas de 1920 e Refutação: Mas, no fim das contas, basta pensar. Quando
1930, até os antropólogos sociais, esses homens e mulheres dados vocês querem contar os seus cocos, ou computar o valor em di-
aos caprichos, à fantasia ou (e emprego aqui termos sinônimos) nheiro dos seus presentes de Natal, faz sentido dedicar-se à tarefa
ao sentimentalismo, eram dados à contagem de cocos. da melhor maneira possível. Muitas das coisas que queremos sa-
E os economistas – ah, os economistas –, como computavam, ber se apresentam numa forma quantitativa. Importa saber – não
e ainda computam. Basta pegar qualquer número da renomada em termos absolutos, aos olhos de Deus, mas para determinadas
American Economic Review à mão (vocês hão de ser assinantes) finalidades humanas – quanto irá chover amanhã, ou quanto
e abri-lo ao acaso. Vão se deparar, talvez, com Joel Waldfogel, choveu ontem. Por sólidas razões de ordem prática e espiritual,
“O peso morto2 no Natal” (sem brincadeira: dezembro de 1993; desejamos às vezes saber Quanto. Quantos escravos foram reti-
Waldfogel afirma que, como os presentes não são escolhidos rados da África? Talvez 29 milhões (a Grã-Bretanha, no auge do
por seus destinatários, nunca valem o que gasta o presentea- tráfico negreiro, tinha cerca de 8 milhões de habitantes), mais da
dor, o que resulta numa perda se compararmos a compra a uma metade dos quais destinada ao Oriente, e não ao Ocidente – tendo
simples remessa de dinheiro. Quem não se apaixonaria por tal atravessado o Saara ou o oceano Índico, e não o Atlântico. Como
abordagem científica do Princípio da Prudência?). À página 1331, era a vida em Cuba, submetida ao comunismo e ao bloqueio ame-
encontramos no artigo a seguinte tabela: ricano? A renda per capita em Cuba caiu um terço de 1959 para
cá, enquanto na República Dominicana, no Chile, no México, no
2  “Peso morto”
se refere à perda
Brasil, na verdade na América Latina e no Caribe como um todo,
gerada pela alo- mais que duplicou. A quanto monta hoje a imigração para os Es-
cação imperfeita
de recursos em
tados Unidos? É menor, em relação à população total, do
14 um mercado. que era em 1910. E assim por diante. E mais. E ainda mais. 15
(Pode-se ver pelos exemplos que, aqui, não estamos afir- sessenta anos no dia 11 de setembro de 2002 (parabéns pelo ani-
mando que os números, por sua simples natureza, são especial- versário). A temperatura não é a única medida de um dia bom.
mente “objetivos”, seja qual for o significado exato desse termo O vento, a intensidade do brilho do sol, os acontecimentos hu-
da filosofia popular, ou “não políticos”, ou “científicos”. Os nú- manos e o significado atribuído a eles pelos seres humanos tam-
meros são da ordem da retórica, isto é, voltados para a persua- bém fazem diferença. Que este seja o mês e esta a gloriosa ma-
são humana. Numa cultura da persuasão, concordamos em atri- nhã da natividade de Cristo significam mais que a temperatura
buir um significado a este ou àquele número, que em seguida de -1 oC. Mas vale a pena saber que a temperatura naquele dia
irá nos persuadir desta ou daquela visão sobre a matéria. Seixos abençoado não foi de 273,15 graus negativos nem de 100 graus
são abundantes, como disse Richard Rorty; a verdade dos fatos, acima de zero.
nem tanto. Depende da nossa decisão humana contar, pesar ou De maneira que contar não é um pecado da economia. É
misturar os seixos ao compilar os fatos sólidos.) uma virtude.
Os economistas costumam escolher seu ofício graças a um
amor pronunciado pelos números. Como diz a piada, “Sou eco- A MATEMÁTICA
nomista; se tivesse mais personalidade, seria contador”. Um ar-
gumento estatístico sempre impõe respeito nos Departamentos Nem a matemática é um pecado. A matemática não é idêntica
de Economia. Muitos não economistas, ao contrário, têm medo à mera contagem ou à estatística. Os jornais dão risada quando
dos números, não gostam deles, atribuem-lhes um caráter de- encontram um matemático que não consegue manter em dia
sonroso e ficam confusos e irritados em sua presença. Mas há o canhoto de seu talão de cheques, mas isso não passa de um
questões importantes que só podem ser respondidas em forma mal-entendido quanto ao que seja a atividade dos matemáticos.
numérica. E pode-se ajudar a esclarecer muitas outras questões Houve entre estes alguns calculistas famosos, como o suíço Leo-
com a ajuda dos números. A idade de vocês, um número, não é nhard Euler, do século xviii (que também sabia de cor toda a
o único fato que importa a seu respeito, e certamente está lon- Eneida – em latim, naturalmente). Mas, por mais estranho que
ge de ser tudo que vocês Significam (“Você tem, digamos, em possa parecer, a maior parte da matemática não tem nada a ver
números redondos, vinte anos de idade; o sr. Bounderby tem, com os números propriamente ditos. Euler usava o cálculo da
digamos, em números redondos, cinquenta”). Mas é um núme- mesma forma que os matemáticos de hoje usam computadores,
ro útil para muitas finalidades – em conversas do dia a dia, por para vez ou outra pôr à prova suas ideias quanto ao desenvolvi-
exemplo; em consultas médicas, também; e, sim, mesmo no mento do que os matemáticos adoram definir como uma prova
que diz respeito ao casamento. É humanamente útil saber que real de fatos incríveis, como eπi + 1 = 0 (e portanto Deus existe).
vocês cresceram nos anos 1950 e chegaram à maioridade Vocês podem obter uma prova “real”, o estilo de demons-
16 em meio à liberação da década de 1960, ou se completaram tração desenvolvido pelos gregos (que você conheceu quan- 17
do estudou geometria na escola secundária, amando ou odiando canais por onde opera o esquecimento de um aniversário; nova-
a matéria), sem tomar conhecimento de um número sequer, ou mente, por analogia, F = ma), o Quanto irá depender exatamente,
nem mesmo de um exemplo concreto. Assim: o teorema de Pi- numericamente, quantitativamente, do quão sensível é, na ver-
tágoras é verdadeiro para qualquer triângulo retângulo, quais- dade, este ou aquele componente do Por quê na alma do seu par:
quer que sejam suas dimensões, e é provado não por indução a do valor que, nesse caso, têm o m e o a. E, num mundo real, essa
partir de muitos ou mesmo zilhões de exemplos numéricos de sensibilidade, como sempre dizem os cientistas, é uma questão
triângulos retângulos, mas de maneira universal e para todo o empírica, e não teórica. “Está certo, seu babaca, foi a gota d’água:
sempre, Deus seja louvado e Seu nome glorificado, por uma de- vou sair de casa” ou “Nem se preocupe, amor: eu sei que você me
dução a partir de premissas. Caso aceitem as premissas, vocês ama” diferem na sensibilidade, no Quanto, no efeito quantitativo,
terão aceitado o teorema. Quod erat demonstrandum. na magnitude, na massa, no impacto.
A estatística ou outros métodos quantitativos usados na Desde seus primórdios, a economia tem sido quase sempre
ciência (como a contagem, a experimentação ou a simulação) “matemática”, na medida em que se interessa por discussões do
respondem, indutivamente, Quanto. A matemática, por con- tipo Por quê / Se sem levar em conta Quanto. Por exemplo: quan-
traste, responde dedutivamente Por quê e, numa versão mais do vocês compram pão de forma no supermercado, tanto vocês
refinada e filosófica muito popular entre os matemáticos desde quanto o supermercado (e seus acionistas, seus empregados, seus
o início do século xix, Se. “Por que uma pedra jogada do alto de fornecedores de pão) saem ganhando em alguma medida. Como
uma torre cai cada vez mais depressa?” Bem, é que F = ma, en- eu sei disso? Porque o supermercado oferece voluntariamente o
tende? “Eu me pergunto Se a massa m da pedra tem algum efeito pão, e vocês aceitam a oferta também voluntariamente. E isso
no caso.” E a verdade é que sim: perceba que existe ali uma letri- deve ter melhorado alguma coisa para os dois, seja pouco ou mui-
nha m na resposta à pergunta Por quê. to – pois de outro modo vocês não teriam concluído a transação.
Mas perguntar Por quê / Se não é a mesma coisa que perguntar Faz muito tempo que os economistas se apaixonaram por
Quanto. Vocês podem saber que deixar de se lembrar do aniversá- esse argumento tão simples. Mas, do século xviii para cá, leva-
rio de seu par amoroso vai ter algum efeito em sua relação (Se), e ram-no um passo à frente, um passo dramático e crucial: isto é,
até entender que esse ou aquele efeito do esquecimento se deve a deduziram alguma coisa a partir dele, a saber: O livre comércio é
certo mecanismo psicológico – “Você não me ama a ponto de sa- bacana. Se cada transação entre vocês e o supermercado, entre
ber que eu dou importância ao meu aniversário?” (Por quê). Mas o supermercado e Smith, entre Smith e Jones e assim por dian-
para saber Quanto esse esquecimento irá prejudicar sua relação, te produz algum benefício para ambos (menor ou maior: não
vocês precisam de números, dos ms e dos as, por assim dizer, e estamos falando aqui de quantidades), então (e atenção para o
de alguma noção da grandeza que representam. Mesmo “então”: isto aqui é uma dedução, afinal de contas) o livre
18 que saibam Por quê (conhecendo a teoria adequada sobre os comércio entre a totalidade do povo francês e a totalidade 19
do povo inglês também produz benefícios. E, portanto (aten- ser e já foram explicitados, em toda a sua variedade infinita) e
ção para o “portanto”), o livre comércio entre dois grupos quais- chega a uma conclusão qualitativa “rigorosa” (em sua variedade
quer também é bacana. E o economista assinala que, se todas infinita). Basta lembrar as palavras “então”, “portanto” e “assim”.
as transações são voluntárias, todas representam algum ganho.3 A partir desse ou daquele conjunto de alegações ou axiomas, A,
Assim, o livre comércio é bacana em todas as suas formas. Por a conclusão, C, só pode ser que as pessoas ganham alguma coisa.
exemplo, uma lei que estabeleça restrições quanto à permissão A implica C, e assim o livre comércio é benéfico em qualquer
para ingressar no negócio farmacêutico é má ideia, porque o lugar. (Por favor, prestem atenção, e parem de perguntar “Quan-
livre comércio é bom, e então um comércio não livre é ruim. to?”: quantas vezes preciso lembrar que esse raciocínio é qualita-
A proteção aos trabalhadores franceses é ruim, porque o livre tivo, e não quantitativo?)
comércio é bom. E assim por diante, levando a literalmente Os filósofos dizem que esse tipo de coisa é um raciocínio
milhares de conclusões cruciais para a definição de diretrizes “válido”, o que não quer dizer que seja propriamente “verdadeiro”,
de governo. mas que “decorre dos axiomas – se vocês acreditam nos axiomas,
Embora esse argumento figure entre os três ou quatro tais como A, então C também deve ser verdade”. Se vocês acre-
mais importantes da economia, ele não é empírico. Não contém ditam que qualquer transação individual concluída voluntaria-
qualquer afirmação em relação a Quanto. Afirma que existe um mente é boa, então, com mais algumas premissas extras (por
ganho no comércio – lembrem-se das expres- exemplo, quanto a qual seja o sentido de “voluntariamente”; ou,
sões algum benefício, menor ou maior ou não 3 deriva
Essa afirmação
do primeiro
por exemplo, sobre como o bem de uma pessoa depende do de
estamos falando aqui de quantidades. “Eu me teorema de bem-es- outra), podem chegar à conclusão de que o livre comércio inter-
pergunto Se o livre comércio tem um efeito tar que afirma que
o mercado tende
nacional entre as nações é bom.
positivo [na quantidade que for].” Sim, esse a se equilibrar de O raciocínio do tipo Por quê / Se, que também é característi-
efeito existe: examinem esta página de mate- maneira eficiente (a
famosa mão invisível
co dos Departamentos de Matemática, pode ser chamado de filo-
mática; vejam este diagrama; escutem minha de Adam Smith), sófico. O Departamento de Matemática e o Departamento de Fi-
parábola irresistível sobre vocês e o super- portanto as transa-
ções sempre são, de
losofia demonstram um fascínio semelhante pela dedução, e um
mercado. Não perguntem Quanto. O raciocí- alguma maneira, tédio equivalente diante da indução. Estão pouco ligando para
nio é do tipo Por quê / Se. Da maneira como vantajosas para as
partes envolvidas. Ou
Quanto. Nada de fatos, por favor: somos filósofos. Nada de nú-
é formulado, não há como estar errado, tal seja, o padeiro não faz meros, por favor: somos matemáticos. No Departamento de Fi-
qual o teorema de Pitágoras. Não é uma ques- pão por benevolência
nem o consumidor
losofia, o relativismo pode estar ou não aberto a uma refutação
tão de aproximação, não é uma questão de compra por generosi- vinda de uma contradição interna. Nunca é um pouco refutado.
Quanto. É um encadeamento lógico que dade, mas a transação
ocorre porque é van-
Ou é derrubado ou não é. No Departamento de Matemáti-
20 parte de axiomas implícitos (que podem tajosa para todos. ca, a conjectura de Goldbach, de que todo número par é a 21
K R SOBRE A AUTORA  Deirdre Nansen McCloskey nasceu em 1942
Keynes, John Maynard  34, 41 Rorty, Richard  16 em Ann Arbor, Michigan. Com ph.d. em economia pela Uni-
King, Gregory  11 versidade Harvard, sua dissertação recebeu o prêmio David
Klamer, Arjo  40 S A. Wells em 1973. Junto com Milton Friedman, foi professo-
Klein, Lawrence Robert  71 Sahlins, Marshall  35 ra na Escola de Chicago entre 1968 e 1980, nos departamentos
Koopmans, Tjalling  61 Samuelson, Paul Anthony  22–24, de economia e história. Em 1980, passou a lecionar economia,
Krugman, Paul  46 32, 59, 60, 69, 71 história, inglês e comunicação na Universidade de Illinois, em
Schultz, Theodore  35 Chicago, até sua aposentadoria, em 2015. Paralelamente, foi
L Smith, Adam  11, 19–20, 28, 33–34, professora convidada de economia, filosofia, história, inglês e
Lawrence, D. H.  45 41, 43, 47 artes e cultura na Universidade Erasmus de Rotterdam, de 2001
Lewis, Sinclair  53 Soto, Hernando de  30 a 2006, bem como de história da economia na Universidade de
Lucas, Robert  8, 46 Stigler, George  45 Gothenburg, de 2009 a 2013, recebendo mais de seis títulos de
Summers, Lawrence  23 doutora honoris causa.
M Em 1995, Deirdre, aos 53 anos, abandonando definitivamen-
Mandeville, Bernard  31–32 W te seu nome de batismo, Donald, completou sua transição de gê-
Maquiavel, Nicolau  31, 34 Waldfogel, Joel  14 nero. Desde então tornou-se feminista e defensora dos direitos
Marx, Karl  41, 48 Whinston, Michael  54 lgbttt. É autora de mais de dezessete livros, além de numero-
Mas-Colell, Andreu  54 Whitman, Walt  45 sos artigos e ensaios, sobre temas que vão de aspectos técnicos
Mill, John Stuart  34 Wooldridge, Jeffrey M.  54 da economia ou da teoria da estatística até a luta pela igualdade
Mills, Charles Wright  70 Wylie, Lawrence  30 e a crítica da ética burguesa. Entre seus livros mais famosos está
Milton, John  55, 72 The Rhetoric of economics (1985), a trilogia sobre a era burguesa e
Z o enriquecimento pós-1800, The Bourgeois Virtues (2006), Bour-
P Zola, Émile  53 geois Dignity (2010) e Bourgeois Equality (2016), e o livro Crossing:
Palmer, Robert  46 a Memoir (1999), em que relata seu processo de transição.
Petty, William  11
Poe, Edgar Allan  45
Posner, Richard  8

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COLEÇÃO EXIT Como pensar as questões do século xxi? © Ubu Editora, 2017
A coleção Exit é um espaço editorial que bus- © Prickly Paradigm Press lcc
ca identificar e analisar criticamente vários
  temas do mundo contemporâneo. Novas fer- Coordenação editorial  florencia ferrari e gisela gasparian
ramentas das ciências humanas, da arte e da Assistente editorial  isabela sanches
tecnologia são convocadas para reflexões de Preparação  cacilda guerra
COORDENAÇÃO ponta sobre fenômenos ainda pouco nomea- Revisão  daniela uemura
Projeto gráfico da coleção  elaine ramos e flávia castanheira
FLORENCIA FERRARI dos, com o objetivo de pensar saídas para a
Projeto gráfico deste título  livia takemura
MILTON OHATA complexidade da vida hoje.
Produção gráfica  aline valli

Nesta edição, respeitou-se o novo


Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
LEIA TAMBÉM 24/7 – capitalismo tardio e os fins do sono
Jonathan Crary Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)

Reinvenção da intimidade – McCloskey, Deirdre [1942–]


políticas do sofrimento cotidiano Os pecados secretos da economia / Deirdre McCloskey;
tradução Sergio Flaksman. São Paulo: Ubu Editora, 2017
Christian Dunker
80 pp.
Título original: The Secret Sins of Economics
isbn 978 85 92886 54 7

1. Economia. 2. Filosofia. i. Flaksman, Sergio. ii. Título.


cdu 33.1

Índice para catálogo sistemático:


1. Economia 33  2. Filosofia 1

ubu editora
Largo do Arouche 161 sobreloja 2
01219 011 São Paulo sp
(11) 3331 2275
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FONTE  Edita e Dharma
PAPEL  Alta alvura 90 g / m2
IMPRESSÃO Geográfica

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