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22 Le Monde Diplomatique Brasil MAIO 2019

DOSSIÊ ESTADO DE CHOQUE

Fazer sumir: o desaparecimento


como tecnologia de poder
A combinação de uma série de variáveis e marcadores sociais – raça, sexualidade, local de moradia, status social,
algum tipo de proximidade com práticas ilícitas e ilegais – tem representado uma fatalidade para certos corpos e populações.
Veja o quarto artigo do dossiê “Estado de choque”, série de seis análises que publicaremos até julho de 2019
POR FÁBIO ARAÚJO*

Pessoas executadas pela Polícia Militar que portam réplicas de armamentos, os chama- aceitável, como também há vidas que valem menos do que outras. Em tempos sombrios
dos simulacros. Espaços escondidos no interior das prisões, atrás de placas de aço ou – de dissolução de direitos adquiridos, de propostas autoritárias para a resolução de con-
paredes duplicadas, evidenciando que o segredo é uma das formas estratégicas do poder flitos sociais, de utilização das Forças Armadas para os mais diversos fins –, o presente
político. Corpos desaparecidos, que envolvem ações das forças policiais, as quais mobili- dossiê visa lançar um pouco de luz acerca do horror, do segredo e do abominável que
zam técnicas de fazer sumir, parte integrante de uma ampla maquinaria de produção de marcam as dinâmicas de funcionamento de distintos aparelhos estatais.
morte. Sujeitos que, ao mobilizarem a greve de fome como estratégia política na luta por
direitos, evidenciam que, nos tempos atuais, a defesa da morte não só é publicamente Organização: Fábio Mallart e Luís Brasilino.

Bajo las matas passou a ocupar grande espaço nos se depararam com uma viatura da po- vítimas foram confundidos com “car-
En los pajonales jornais”. Em seguida, defendeu que, lícia. Os policiais dispararam 111 tiros ros de bandidos”. Afinal, é assim que
Sobre los puentes “enquanto o Estado não tiver coragem e mataram os cinco jovens dentro do se lida com “bandidos”, com oitenta ou
En los canales de adotar a pena de morte, o crime de carro. Coincidentemente, 111 é o nú- 111 tiros. Ou mirando e atirando na
Hay Cadáveres extermínio, no meu entender, será mero de presos mortos no massacre cabecinha, como propôs o governador
Néstor Perlongher muito bem-vindo. Se não houver es- do Carandiru. do Rio de Janeiro, Wilson Witzel. E, se
paço para ele na Bahia, pode ir para o No dia 7 de abril de 2019, outra do- não eram bandidos, poderiam ser, afi-
Rio de Janeiro. Se depender de mim, se de terror de Estado veio com a notí- nal são pretos, pobres, moradores de
o Brasil atual, dos tempos de terão todo o meu apoio”. cia de que o carro de uma família ne- favelas. Estariam, portanto, segundo

N Jair Bolsonaro como presiden-


te, viver vem significando ter de
lidar com doses diárias de hor-
ror. Não que o horror não fizesse parte
da história social e política desde o iní-
Como tem sido amplamente docu-
mentado e noticiado, de fato, apreço e
apoio a milícias por parte da família
Bolsonaro não têm faltado. Admirador
do torturador Carlos Brilhante Ustra,
gra que passava por Guadalupe, região
próxima de Costa Barros, e se dirigia a
um chá de bebê foi fuzilado com oi-
tenta tiros. Não foi um ou dois tiros,
mas oitenta. Na ação, o músico Evaldo
essa lógica de sentidos que os transfor-
ma em potenciais inimigos, dentro do
enquadramento daqueles que são
considerados matáveis. São mortes
que se inscrevem numa economia po-
cio da formação da nação brasileira. Jair Bolsonaro coleciona declarações Rosa dos Santos, de 46 anos, foi morto. lítica do terror que se faz por meio do
Afinal, a escravidão e a tortura foram infames defendendo a tortura, a morte e No dia 18 de abril veio a falecer Lucia- excesso. Excesso que torna a vida de-
pilares sobre os quais o poder colonial a ditadura. Entre outras infâmias, disse no Macedo, de 27 anos, catador de feituosa pela capacidade da morte de
se assentou aqui nos tristes trópicos. que “o erro da ditadura foi torturar e materiais recicláveis que foi baleado fazer da vida sua refém, como propõe
As tecnologias de terror colonial per- não matar”; “sou a favor da tortura, ao tentar ajudar a família que teve o Achille Mbembe,3 recuperando o pen-
duram e se reatualizam historicamen- através do voto você não muda nada no carro fuzilado pelo Exército. Após lon- samento de Georges Bataille.
te nos desejos das elites brasileiras e país, tem que matar 30 mil”; e declarou go silêncio sobre o caso, o presidente Uma dimensão que chama atenção
nas combinações contemporâneas que seus adversários seriam metralha- Bolsonaro finalmente se manifestou nessas formas de operacionalização
que articulam capitalismo neoliberal dos e enviados para a “Ponta da Praia”, dizendo que “o Exército não matou da violência é a relação entre corpo e
com técnicas e práticas coloniais. É local conhecido como lugar de desova ninguém”. O comandante do Exército crueldade, em que o excesso do poder
com esse espírito que o governo Bolso- de corpos durante a ditadura. Marcelo afirmou que o fuzilamento que dei- se exerce e se realiza por meio de uma
naro corporifica, simboliza e repre- Semer1 definiu o governo Bolsonaro co- xou dois mortos não foi assassinato, política punitiva do corpo. Há todo um
senta o que há de mais anticivilizató- mo tendo a morte como método e, pelas foi uma fatalidade. De fato, a combi- exercício de poder e uma economia do
rio na sociedade brasileira. Com o políticas que tem defendido, parece ter nação de uma série de variáveis e castigo que se inscrevem diretamente
governo Bolsonaro, o horror é alçado a o propósito de elevar ainda mais as ta- marcadores sociais – raça, sexualida- no corpo, ao mesmo tempo que se pro-
uma forma de governo que opera por xas de letalidade policial contra civis, as de, local de moradia, status social, al- jetam como um recado a todos os mo-
meio da liberação das forças destruti- quais já são as maiores do mundo. gum tipo de proximidade com práti- radores de um território. Torturar, mu-
vas que devastam o país e atacam os Como escreveu Adriana Vianna2 cas ilícitas e ilegais – tem representado tilar e destruir corpos, ora exibidos de
direitos, o corpo e a vida de centenas em artigo publicado neste dossiê, as uma fatalidade para certos corpos e maneira espetacularizada, ora desa-
de milhares de pessoas. tecnologias de governo centradas em populações, em determinadas condi- parecidos, são formas que compõem o
O terror, o macabro, a crueldade, a políticas da morte que atravessam o ções de vulnerabilidade. vasto repertório de técnicas que ali-
humilhação, o obsceno e a falta de de- mundo contemporâneo, e de modo es- Evitar o encontro com a polícia ou mentam a maquinaria de produção de
coro são alguns dos termos pelos pecial o contexto brasileiro, se inscre- com as Forças Armadas é um cuidado cadáveres em curso no Brasil. Uma
quais a realidade brasileira pode ser vem sobre corpos e territórios e têm no fundamental na administração coti- dessas técnicas é o desaparecimento
apreendida e pensada. Em discurso excesso “o sucesso das tecnologias de diana da vida para certos grupos que forçado de pessoas, amplamente utili-
pronunciado na Câmara em 12 de terror colonial”. Em 28 de novembro de habitam esses espaços da cidade onde zado na ditadura e que segue produ-
agosto de 2003, o então deputado Jair 2015, Roberto, Carlos Eduardo, Cleiton, a regra é a exceção e o terror. Caso con- zindo desaparecidos.
Bolsonaro, exaltando a ação de um Wilton e Wesley, moradores da Lagarti- trário, esses corpos podem ser atingi- As comissões da verdade que in-
grupo de extermínio na Bahia, posi- xa, no Complexo da Pedreira, em Costa dos por oitenta ou 111 tiros. A justifica- vestigaram os crimes de Estado du-
cionou-se afirmando que, “desde que Barros, foram ao Parque de Madureira tiva da polícia e do Exército, nos dois rante a ditadura conseguiram entre-
a política de direitos humanos chegou comemorar o primeiro salário de Ro- casos, foi a de que uma ação policial vistar alguns dos agentes envolvidos.
ao país, a violência só aumentou e berto. Quando retornavam para casa estava sendo realizada e os carros das Os testemunhos coletados são revela-
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dores de como o trabalho de “fazer de- núncia seja levada adiante, mas isso não Roque de Melo, Ewerton Marinho e Ri- portão e levou um susto ao se deparar
saparecer” funcionava. A certeza da significa que essa tecnologia de poder ta de Cássia desapareceram após uma com uma ossada espalhada diante de
impunidade, garantida pela Lei de não esteja em vigor. “Fazer sumir” se- abordagem policial quando voltavam sua casa. Deu um grito, fechou o por-
Anistia, permitiu que agentes da re- gue sendo uma realidade nas quebra- de um pagode no bairro Grande Vitó- tão e ligou para os vizinhos para pedir
pressão se sentissem à vontade para das e periferias da cidade e do campo, ria, zona leste de Manaus. No estado que alguém olhasse de suas janelas pa-
relatar com uma sinceridade obscena bem como no interior de instituições de Goiás, uma CPI chegou a ser insta- ra o portão de sua casa. Os vizinhos
os horrores que cometeram. Um des- estatais como os presídios. Alguns pou- lada para investigar o desaparecimen- olharam e disseram a ela que havia
ses agentes é Cláudio Guerra, ex-dele- cos casos de desaparecimento forçado to de 41 pessoas após abordagens poli- uma ossada ali, mas nenhuma pessoa
gado da Polícia Civil e agora pastor. No pós-ditadura se tornaram emblemáti- ciais, e um relatório do Mecanismo por perto. Maria interrompeu a con-
filme Pastor Cláudio, ele dá detalhes de cos, outras centenas permanecem invi- Nacional de Prevenção e Combate à versa comigo para pegar uma foto e
sua atuação. Com uma Bíblia na mão, síveis e desconhecidas. Um dos casos Tortura ressalta a possibilidade de 79 me mostrar a ossada, sobre um saco
ele conta que foi convidado a compor a que teve grande repercussão, inclusive pessoas terem sido vítimas de desapa- preto, que havia sido colocada em sua
Operação Radar, que executou deze- internacional, foi o Caso Acari, quando recimento forçado após as rebeliões porta. Junto com a ossada havia um
nove militantes do Partido Comunista onze jovens moradores da favela de que ocorreram em 2017 nos presídios bilhete de milicianos informando que
Brasileiro. Inicialmente sua missão era Acari foram sequestrados por um grupo de Roraima e Rio Grande do Norte. já haviam matado algumas pessoas
matar pessoas envolvidas na militân- de extermínio denominado Cavalos Segundo revelou o Anuário Brasi- na região e que agora eram eles que
cia contra o regime militar. Depois, sua Corredores, formado por policiais mili- leiro de Segurança Pública de 2018, o mandavam ali. A motivação que Ma-
função passou a ser a de queimar cor- tares integrantes do 9º Batalhão de Ro- Brasil encerrou 2017 tendo 82.684 bo- ria encontra para explicar a morte do
pos de pessoas torturadas e mortas. cha Miranda. Os jovens viajaram para letins de ocorrência registrando o de- filho seria o interesse de milicianos
Para isso, levava os corpos a uma usina um sítio em Magé para fugir de uma ex- saparecimento de pessoas. As causas por um pedaço de terra que ele pos-
de cana-de-açúcar localizada em torsão dos policiais, mas foram captu- e circunstâncias dos desaparecimen- suía. Com uma ossada nas mãos, Ma-
Campos, onde os corpos eram incine- rados e seus corpos jamais apareceram. tos são diversas, mas há motivos sufi- ria teria agora de fazer o exame de
rados. Segundo seu próprio depoimen- As versões que circularam sobre o caso cientes, como os já assinalados ante- DNA para identificar se os restos mor-
to, ele foi responsável por incinerar os indicavam que os corpos dos jovens te- riormente, para considerar que é tais eram mesmo de seu filho. O resul-
corpos de João Batista Rita, Joaquim riam sido oferecidos a leões e porcos. O possível e provável que uma parte tado do exame deu positivo. Quando
Pires Cerveira, Ana Rosa Kucinski, Da- caso chegou ao conhecimento público considerável desses registros corres- finalmente conseguiu o atestado de
vi Capistrano, João Massena, Fernan- graças à incansável luta das Mães de ponda a casos de desaparecimento óbito para levar ao IML, foi informada
do Augusto Santa Cruz, Eduardo Col- Acari, como ficaram conhecidas as forçado, como o que relatarei a seguir. de que seu filho tinha sido enterrado
lier Filho, José Roman, Luiz Ignácio mães dos jovens desaparecidos. Tomei conhecimento deste caso pes- como indigente porque havia muitos
Maranhão, Armando Teixeira Frutuo- Em 2008, a engenheira Patrícia quisando os registros de ocorrência cadáveres e pouco espaço no IML. So-
so e Thomaz Antônio Meirelles. Em sua Amieiro desapareceu após seu carro de pessoas desaparecidas no Rio de mente após um ano do exame de DNA,
fala, ele não expõe nenhum sentimen- ser baleado por policiais e jogado no Janeiro e tive a oportunidade de en- Maria conseguiu identificar o túmulo
to de culpa, porque estava apenas Canal de Marapendi. Seu corpo jamais trevistar a mãe do jovem em questão. onde seu filho fora enterrado como in-
cumprindo ordens. Conta também foi encontrado. No dia 14 de julho de Maria, nome fictício, mora em digente. A identificação aconteceu no
que ganhou muito dinheiro dos em- 2013, o pedreiro Amarildo, morador da Campo Grande, zona oeste do Rio de dia em que ele faria aniversário.
presários que patrocinaram as ações e Rocinha, desapareceu após uma abor- Janeiro, área com forte atuação de mi- Como no poema de Néstor Per-
que, mesmo após o fim do regime, os dagem de policiais lotados na Unidade lícias. Seu filho tinha 28 anos quando, longher, citado na epígrafe e que se re-
agentes envolvidos na repressão conti- de Polícia Pacificadora da Rocinha. Em num dia de abril de 2010, saiu para tra- fere aos cadáveres desaparecidos du-
nuaram a fazer o que faziam – torturar Queimados, Baixada Fluminense, Fá- balhar e não mais retornou. Na delega- rante a ditadura argentina, por aqui
e fazer desaparecer pessoas –, agora bio, filho de Izildete, e seu amigo Ro- cia, ela foi orientada a ir primeiro ao lo- também há cadáveres por toda parte.
prestando serviço para bicheiros e em- drigo desapareceram após uma “dura” cal de trabalho do filho para averiguar As cidades têm se tornado um imenso
presários. Por que há tantos desapare- da polícia e jamais foram encontrados. se conseguia alguma informação. Não necrotério.
cidos hoje? Ele se pergunta e ele mes- Essa, porém, não é uma realidade obtendo êxito, fez o registro de ocor-
mo responde: porque a técnica do apenas do Rio de Janeiro. Na Bahia, rência de desaparecimento e as buscas *Fábio Araújo é sociólogo e professor do
desaparecimento inventada para su- Rute Fiuza vem denunciando o desa- continuaram em lixeiras, lugares de Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ).
mir com os corpos dos presos políticos parecimento do filho, Davi Fiuza, que desova, valões de esgoto, rios. A cada
continua a ser empregada contra os saiu para comprar pão, foi abordado indício ou vestígio que pudesse indicar 1 Marcelo Semer, “A morte como política”, Revista
novos inimigos, produzidos agora pela numa operação da Polícia Militar e a localização de seu filho, lá estava Ma- Cult, 18 mar. 2019.
ideologia da segurança pública. nunca mais apareceu. Dezessete poli- ria. Certo dia, de madrugada, alguém 2 Adriana Vianna, “Políticas da morte e seus fantas-
mas”, Le Monde Diplomatique Brasil, mar. 2019.
O medo de morrer é um obstáculo ciais foram indiciados no inquérito da bateu com força em seu portão e ela 3 Achille Mbembe, Políticas da inimizade, Antígona
difícil de ser superado para que a de- Polícia Civil. Em Manaus, Alex Júlio acordou assustada. Ela correu, abriu o Editores Refractários, Lisboa, 2017.

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