Você está na página 1de 12

1

TEXTO PUBLICADO NOS ANAIS DO 1


CONGRESSO NINFA - 2016

Perguntar-se pelas memórias: a presença como paradigma investigativo

Walderez Simões Costa Ramalho

Valdeci da Silva Cunha

Esta apresentação tem como objetivo central traçar alguns apontamentos iniciais sobre
um novo paradigma que tem ganhado força em diversas áreas ligadas ao campo das
Humanidades. Reflexo de uma insatisfação crescente com as chamadas teorias “pós-
modernas” – entre as quais o construtivismo e o “giro linguístico” –, muitos teóricos
contemporâneos veem buscando uma nova forma de se relacionar com o mundo, bem como
de se pensar e praticar as ciências humanas. É nesse quadro que emergiu o paradigma da
presença.

Nosso objetivo é apresentar o que se entende por “presença” e demonstrar como esse
paradigma possibilita novas formas de analisar os fenômenos humanos, com destaque para a
nossa relação com o passado. Para tanto, a referência privilegiada para esta discussão será a
obra de Hans Ulrich Gumbrecht, um dos mais importantes teóricos da presença. Mas antes de
mais nada, será necessário traçar uma breve história da epistemologia moderna ocidental, de
modo a situar o paradigma da presença temporal e semanticamente. Depois, vamos refletir
sobre o que significar ver e pensar o mundo a partir da presença, relacionando esse conceito
com o de “sentido”. Em seguida, discutiremos como o fenômeno da memória pode ser
analisado à luz desse novo paradigma.

Pré-história da presença: a dissolução da metafísica ocidental

A história da epistemologia moderna do Ocidente é descrita por Gumbrecht em


diversas obras, com destaque para o livro Modernização dos sentidos, publicado em 1998.
Não nos interessa aqui recapitular as quatro fases da modernidade destacadas pelo autor, mas
tão somente apontar para alguns aspectos que possam ajudar a compreender melhor a
emergência do paradigma da presença nas últimas três décadas. (GUMBRECHT, 1998).
2

Noção central para Gumbrecht é o surgimento do que ele chama de “campo


hermenêutico”. Este conceito indica a visão de mundo e de conhecimento fundada no limiar
da modernidade e se estrutura a partir da interseção entre dois eixos (horizontal e vertical) que
aparece com a cisão entre sujeito (entendido como pura espiritualidade que observa o mundo
desde um ponto de vista excêntrico) e objeto (a pura materialidade, incluindo o próprio corpo
do sujeito observador). Essa cisão sujeito/objeto, fundadora da epistemologia moderna (e aqui
a principal referência é Descartes) tem como corolário central que o conhecimento se produz
pela interpretação que o sujeito faz do objeto, indo além do meramente material à busca da
profundidade espiritual (o sentido) que está subjacente. É nesse sentido literal do ir além
(meta) do que é material (física) que Gumbrecht caracteriza como a “metafísica ocidental”.

Segundo o pensador alemão, toda a história da epistemologia moderna está fundada


nessa compreensão metafísica do conhecimento. A interpretação – enquanto busca pelo
sentido profundo das coisas – passou a ser vista desde então como o único procedimento
válido para as Humanidades. Mesmo as sucessivas crises desse modelo – por exemplo, a
“crise da representação” estudada por Foucault (1999) a partir da segunda metade do século
XVIII – não resultaram na ruptura com o paradigma sujeito/objeto. A institucionalização das
“ciências do espírito” realizada por Dilthey no final do século XIX – opostas às ciências da
natureza justamente pelo método hermenêutico que as caracterizariam – é apenas uma dentre
as diversas evidências apontadas por Gumbrecht.

No entanto, ainda no contexto do pensamento iluminista, começam a surgir problemas


que, de forma lenta e imprevista, vão culminar na erosão do campo hermenêutico. A
emergência do “observador de segunda ordem” (noção proposta pelo filósofo Niklas
Luhman), que não deixa de se observar no próprio ato da observação, trouxe muitas
consequências importantes, tais como: a percepção de que toda observação está sujeita à
posição do sujeito que observa (o que implica a dissolução de qualquer noção de verdade
como única e definitiva); e a revalorização do aspecto material, inclusive o próprio corpo,
embora ainda num plano secundário em relação ao âmbito espiritual e do sentido.

As famosas filosofias da história (de tipo hegeliano) apareceram como tentativas de


solucionar esses primeiros deslocamentos do campo hermenêutico. Com isso, procurava-se na
história a resposta para os problemas que surgiam com a crise da representação – ao integra-
las numa narrativa homogênea sob a égide da Razão. “A resposta aparece na ideia de que os
discursos narrativos abrem um espaço no qual a multiplicidade de representações pode ser
integrada e ganhar a forma de uma sequência” (GUMBRECHT, 2010, p. 63). Não demorou
3

muito para que essa tentativa de solução se mostrasse uma verdadeira ilusão, como demonstra
a rápida dissolução dessas filosofias da história em função da impossibilidade de se integrar
as experiências de toda a humanidade numa narrativa unívoca e homogênea.

Gumbrecht assinala que a primeira grande ruptura do paradigma sujeito/objeto se deu


com a fenomenologia de Edmund Husserl, que alcançou enorme repercussão no campo
filosófico durante o século XX. Ao se virar contra a crença “ingênua” de muitos cientistas
naturais da sua época (e que ainda se faz presente em nossos dias), Husserl sugeriu, de acordo
com Gumbrecht, que “os objetos exteriores ao pensamento humano eram pura e simplesmente
inacessíveis. Era um dos finais do paradigma sujeito/objeto, do campo hermenêutico e da
metafísica ocidental” (GUMBRECHT, 2010, p. 65). Husserl contrapôs essa pretensão
“ingênua” com o método fenomenológico, segundo o qual apenas os fenômenos da
consciência eram passíveis de uma apreensão filosófica.

Entretanto, essa premissa fenomenológica foi apropriada de muitas formas, entre elas
o que Gumbrecht chama, de maneira geral, de construtivismo. Segundo os construtivistas, a
impossibilidade de se apreender as coisas exteriores ao pensamento implicaria que todas as
realidades que compartilhamos com outros seres humanos são “construções sociais”. Assim,
de maneira contraditória com suas origens filosóficas, o construtivismo teria se transformado
na crença trivial de que tudo estaria facilmente ao dispor da vontade humana de mudar,
porque tudo não passa de “construções sociais”. Assim, a realidade seria algo inerte, uma
superfície sobre a qual nós atribuímos sentidos que, por sua vez, nunca são definitivos,
cabendo sempre “mais um pouco de sentido”.

O construtivismo seria, portanto, uma radicalização da cultura do sentido e da


universalidade da interpretação. Essa postura intelectual alcançou, nos últimos anos, um
imenso prestígio no interior das Humanidades, a ponto de se tornar quase “inquestionável”.
De forma deliberadamente polêmica, Gumbrecht afirma que somos atacados pela “vertigem
do construtivismo”, segundo a qual todos os fenômenos não passam de “construções sociais”
fundadas na produção incessante de sentidos sobre o mundo – e isso teria levado, ainda
segundo o autor, a uma progressiva “perda do mundo” (GUMBRECHT, 2010).

Presença e sentido – uma relação de tensão, não de exclusão

É contra essa postura totalmente centrada na produção de sentidos que Gumbrecht e


outros teóricos propõem pensar os fenômenos humanos a partir do paradigma da presença.
4

Muitos desses autores acusam que a “vertigem do construtivismo”, a despeito de suas


conquistas importantes, levou progressivamente a uma “perda do mundo” (DOMANSKA,
2006; GUMBRECHT, 2010; RUNIA, 2006). Em outras palavras, a busca incessante pelo
sentido levou a um distanciamento crescente com as coisas do mundo.

Para ilustrar essa “perda do mundo”, façamos uma breve menção a um fenômeno que
tem acometido a historiografia brasileira nos últimos anos. Até meados do século XX,
constituiu-se uma rica tradição intelectual que ficou conhecida como as interpretações do
Brasil, que inclui as obras de Silvio Romero, Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Sérgio
Buarque de Holanda e muitos outros. Esses autores elaboravam as suas interpretações pela
análise das relações políticas e sociais que consideravam as mais fundamentais do espaço
brasileiro, por meio da análise das fontes ou pela observação in loco. A partir da segunda
metade do século XX, e sobretudo a partir da década de 1970, ocorreu um deslocamento de
perspectiva: passa-se agora a analisar criticamente as próprias interpretações do Brasil – ou,
para usar uma figura de redundância, passou-se a fazer “interpretações das interpretações do
Brasil”. Se, por um lado, esse deslocamento possibilitou conquistas intelectuais importantes
(sobretudo denunciar o caráter ideológico presente nas análises anteriores) e contribui à sua
maneira para a elucidação da realidade nacional, por outro lado essa mesma realidade ficou
cada vez mais opaca ou “sobremetiaziada”, uma vez que ela só poderia ser pensada a partir
das narrativas de interpretação tradicionais, tornando inviável qualquer afirmação mais direta
sobre o que caracterizaria o espaço social, político e cultural brasileiro.1

Os problemas da tese de que o passado só pode ser apreendido enquanto uma


“construção social” que, no limite, estariam ao dispor da vontade dos sujeitos, podem ser
ilustrados com uma passagem do romance 1984, de George Orwell, quando o inquiridor O
´Brien, membro do Partido, tenta abalar a fé de Winston Smith num passado remoto:

- Tolice. A Terra é tão velha quanto nós, e nada mais. Como poderia ser mais
velha? Nada existe exceto pela via da consciência humana.
- Mas as rochas estão repletas de ossos de animais extintos – mamutes,
mastodontes e enormes répteis que viveram aqui muito antes do homem aparecer.
- Já viste esses ossos alguma vez, Winston? Naturalmente não. Os biólogos do
século dezenove os inventaram. Antes do homem, não havia nada. Depois do
homem, se por acaso acabasse, nada haveria (ORWELL, 1984, p. 246).

1
Não se trata, aqui, de defender qualquer retorno a uma visão ingênua ou “positivista” da realidade. Nossa
intenção é apenas assinalar um problema que, como acreditamos, essa postura historiográfica trouxe para se
pensar o espaço brasileiro. Se o paradigma da presença é capaz de, por si só, reverter esse quadro, é um
problema ainda a ser enfrentado.
5

O que esse diálogo parece nos dizer é que a materialidade do mundo é inelidível, a
despeito de uma certa concepção construtivista mais radical. E a teorização desse aspecto
material das coisas – incluindo o passado – vem sendo feita pela noção de presença. E a
premissa básica desses teóricos é que, enquanto inelidível, a materialidade do mundo não é,
por isso, inefável.

Em termos sucintos, a presença pode ser entendida como a dimensão material das
coisas do mundo, o fato de que os objetos ocupam um espaço e são tangíveis por mãos
humanas ou sentidas pelo corpo – as emoções, as sensações e os afetos. Para Gumbrecht,
“presença não se refere (pelo menos, não principalmente) a uma relação temporal. Antes,
refere-se a uma relação espacial com o mundo e seus objetos – o que implica, inversamente,
que pode ter impacto imediato em corpos humanos”. Nesse sentido, para o historiador todos
os objetos disponíveis “em presença” são considerados, em suas análises, “as coisas do
mundo” (GUMBRECHT, 2010, p. 13). De acordo com Eelco Runia, a presença significa
“‘estar em contato’ – literalmente ou figurativamente – com pessoas, coisas, eventos e
sentimentos que faz de você a pessoa que você é”. (RUNIA, 2006, p. 5). A presença faz
referência a tudo aquilo que escapa ao domínio da linguagem – embora a linguagem seja
também capaz de produzir efeitos de presença (GUMBRECHT, 2009) –, mas que são também
elementos constitutivos da vida cotidiana e da forma como as pessoas se relacionam consigo
mesmas, com os outros e com o mundo. Em seu livro Produção de presença: o que o sentido
não consegue transmitir, Gumbrecht explicita que o seu compromisso não seria a de “uma
simples substituição do sentido pela presença”. Ao contrário, em última análise, “defende uma
relação com as coisas do mundo possa oscilar entre efeitos de presença e efeitos de sentido”
(GUMBRECHT, 2010, p. 15).

Como afirmamos, o paradigma da presença emergiu em contraposição à exclusividade


do sentido e da interpretação nas ciências humanas. Podemos sistematizar algumas diferenças
entre essas visões e modos de relação com o mundo destacando quatro pontos:

a) Em primeiro lugar, a questão da autorreferência humana é posta pelas culturas de


sentido em termos de um “sujeito” e uma “subjetividade” que se coloca como uma
existência incorpórea, que observa o mundo das coisas desde uma posição de
excentricidade, e atribui significado a essas coisas; as culturas de presença, ao
6

contrário, integram ao mesmo tempo as dimensões espiritual e física da existência


humana – o homem se vê como parte integrante do cosmos.

b) Segue-se daí que, nas culturas de presença, o aspecto físico não está submetido ao
espiritual, ou seja, a dimensão material não é considerada como superficial ou
contingente em relação ao significado das coisas, como estabelece as culturas
centradas na produção de sentidos. “Em culturas de presença os seres humanos se
consideram como parte do mundo de objetos ao invés de serem ontologicamente
separados dele” (GUMBRECHT, 2009, p. 13).

c) Em terceiro lugar, nas culturas de sentido predomina uma visão segundo a qual a
existência humana se revela e se realiza em tentativas contínuas de se transformar o
mundo pelas ações (baseadas nas interpretações das coisas e visando a um futuro
almejado); enquanto nas culturas em que a presença predomina, esse impulso pela
mudança é substituída pelo desejo de estabilidade e inscrever seus comportamentos
dentro de uma cosmovisão mais ou menos fixa.

d) Finalmente, nas culturas de sentido a dimensão temporal prevalece sobre a dimensão


espacial; ao contrário, nas culturas de presença o espaço predomina sobre o tempo.
Paralelamente, nas culturas de sentido a descontinuidade é a marca central da
experiência do tempo, enquanto nas culturas de presença a continuidade tende a se
sobrepor.

Essa exposição esquemática é útil para apreendermos melhor o que se entende pela
categoria da “presença”, mas com a ressalva de que ela não visa invalidar a interpretação e a
produção de sentidos como um modo de relação com o mundo. Em outros termos, a presença
não é uma postura “anti-interpretação”. Apenas procura ressaltar que nossa relação com o
mundo não se esgota na interpretação, enfatizando a dimensão da materialidade que escapa à
construção de sentidos. Gumbrecht faz questão de ressaltar em vários momentos que a sua
proposta teórica centrada na presença não significa, de modo algum abandonar o sentido e a
interpretação como prática elementar das Humanidades:

Mais do que produzir um novo conhecimento positivo ou rever conhecimentos


tradicionais, o livro [Produção de presença] se compromete com um repensar e, em
última análise, com uma reconfiguração de algumas das condições de produção de
conhecimento nas Humanidades. No entanto, ao desafiar o estatuto de
exclusividade de que a interpretação goza nas Humanidades, este livro não
7

constitui uma obra “contra a interpretação”. Ele está interessado no que sugere que
pensemos e, na medida do possível, possamos descrever como “presença”, mas de
nenhum modo pretende ser anti-hermenêutico. (GUMBRECHT, 2010, p. 22).

Mais correto seria pensar a presença como uma tentativa de se voltar contra a
exclusividade/universalidade da interpretação. Isso porque ver o mundo a partir da categoria
da presença não significa eliminar o sentido, pois este também é parte constitutiva da nossa
relação com o mundo. Mas como seria possível lidar com algum fenômeno humano oscilando
entre presença e sentido?

A memória entre presença e sentido

Propomos nesta seção visualizar formas de compreender e se relacionar com o passado


que concilie produção de sentido e produção de presença. A princípio, pode parecer que essa
proposta não se sustenta: é possível pensar numa relação com o passado fora da exclusividade
da interpretação e do sentido? Não, se considerarmos o passado como algo que já não é mais,
apenas uma construção mental sem nenhuma referência à realidade presente; sim, se
mudarmos essa concepção de tempo (Heidegger diria se tratar de uma concepção “vulgar de
tempo”) e perceber que as três dimensões do tempo se interpõem mutuamente: o passado
contém em si presentes e futuros; o presente contém futuros e passados; e o futuro contém
passados e presentes. Nesse nova concepção de temporalidade humana (uma concepção mais
“autêntica”, ainda segundo Heidegger), não há nada de extraordinário pensar que o passado
também possui a sua presença – não apenas na dimensão ôntica (os vestígios que chegam até
nós), mas também no nível ontológico (o modo como o ser do homem se relaciona com o
mundo na temporalidade). (HEIDEGGER, 2006).

David Lowenthal faz considerações semelhantes que apontam para essa presença do
passado no presente:

A consciência do passado é, por inúmeras razões, essencial para o nosso bem-estar.


[..] O passado nos cerca e nos preenche; cada cenário, cada declaração, cada ação
conserva um conteúdo residual de tempos pretéritos. Toda consciência atual se
funda em percepções e atitudes do passado; reconhecemos uma pessoa, uma
árvore, um café da manhã, uma tarefa, porque já os vimos ou já os
experimentamos. E o acontecido também é parte integral da nossa própria
existência: “Somos a qualquer momento a soma de todos os nossos momentos, o
produto de todas as nossas experiências”, como coloca A. A. Mendilow. Séculos de
tradição subjazem a cada momento de percepção e criação, permeando não apenas
artefatos e culturas mas as próprias células de nossos corpos. (LOWENTHAL,
1998, p. 64).
8

A citação acima destaca, sem utilizar o termo, essa presença do passado nas nossas
vidas. A memória aparece, então, como um modo de acesso ao passado que evidencia de
maneira mais clara essa dimensão de presença. Afinal, não há razão para analisar e
compreender o fenômeno da memória apenas pelo prisma do sentido. Há uma dimensão
corporal, material e afetiva da memória que não se deixa aprisionar pela interpretação. Como
afirmou Pierre Nora, “a memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse
sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento
[...]. A memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto”. (NORA,
1993, p. 9).

Embora seja possível discordar da tese de Nora de que há uma incompatibilidade total
entre memória e história2, é ponto pacífico entre os especialistas que elas guardam suas
diferenças específicas na forma de acessar o passado. Sobretudo porque, enquanto a história
pretende ser um discurso crítico – o que pressupõe um certo distanciamento por parte do
historiador –, a memória se limita ao que é verossímil, uma vez que não põe entre parênteses
“as paixões, emoções e afetos do sujeito-evocador” (CATROGA, 2001, p. 39). Assim,
enquanto na narrativa histórica são utilizados uma série de critérios de prova para a validação
de suas afirmativas (argumentos racionais, apresentação de fontes, comentários de outros
historiadores, notas de rodapé, etc.), na narrativa memorialista o único critério é o apelo à
fidelidade e boa-fé do narrador. Essa diferença é decisiva na forma como ambas as formas de
narrativa se referem ao passado: a primeira pretende explicar e compreender o passado;
diferentemente, a memória “será sempre axiológica, fundacional, sacralizadora e
reatualizadora de um passado que tende a fundir, no presente, a subjetividade com a
objetividade” (CATROGA, 2001, p. 40).

Analisar o fenômeno memorial fora da exclusividade da interpretação significa,


portanto, não considerar esse aspecto afetivo e corporal como algo secundário ou um
problema a ser enfrentado no trabalho de interpretação, mas sim de entendê-lo como um
elemento constitutivo e fundamental. Conforme ressaltamos, a presença se refere ao que
escapa da linguagem; mas ela também pode ser produzida pela linguagem, através de
estratégias narrativas que lançam mão, por exemplo, de elementos dêiticos ou ressaltando as
sensações e afetos do narrador e dos personagens (GUMBRECHT, 2009). Nesse ponto, o
paradigma da presença permite abrir novas perspectivas de análise.

2
Para uma visão crítica dessa presumida dissociação entre história e memória, ver CATROGA, 2001; DOSSE,
2012.
9

Um exemplo dessa possível contribuição do paradigma da presença (em sua relação


com o passado) pode ser tomado do maior memorialista brasileiro: Pedro Nava (1903-1984).
Sua obra monumental, composta por sete volumes – sendo o último deles incompleto devido
ao falecimento do autor – abre diferentes possibilidades de leitura, e inclusive permite captar
dimensões próprias da presença do passado na tessitura da narrativa. No primeiro volume,
Baú de Ossos, lançado em 1972, Nava nos apresenta em diversos momentos as suas sensações
vivenciadas durante suas viagens ao Ceará, terra de sua família paterna, ainda na infância. Em
certa passagem, o narrador explicita como uma simples batida (um certo tipo de rapadura
típica do Ceará) lhe permite se transportar pelo tempo:

Se a batida do Ceará é uma rapadura diferente, a batida de minha avó Nanoca é


para mim coisa à parte e funciona no meu sistema de paladar e evocação,
talqualmente a madeleine da tante Léonie. Cheiro de mato, ar de chuva, ranger de
porta, farfalhar de galhos ao vento noturno, chiar de resina na lenha dos fogões,
gosto d´água de moringa nova – todos tem a sua madeleine. Só que ninguém a
tinha explicado como Proust – desarmando implacavelmente, peça por peça, a
mecânica lancinante desse processo mental. Posso comer qualquer doce, na
simplicidade do ato e de espírito imóvel. A batida, não. A batida é viagem no
tempo. (...) Docemente mastigo, enquanto uma longa fila de sombras vem dos
cemitérios para tomar o lugar ao sol das ruas e à sombra das salas amigas (NAVA,
2012, p. 57-58).

É interessante notar como o autor aproxima o sistema do paladar e da evocação, como


se o gosto da batida fosse muito mais que um prazer momentâneo, mas uma verdadeira
“viagem no tempo”. Por meio das sensações, o passado se faz presente através da memória,
tal qual a famosa madeleine de Marcel Proust – um objeto qualquer que, por meio das
sensações, ativa uma memória de forma involuntária, que nos apossa de forma quase
inevitável, e faz com que o passado se “presentifica” a nós mesmos, como se estivesse
materialmente presente. Assim, abre-se uma dimensão do passado que vai além (aquém) da
interpretação, algo que toca os nossos corpos, afetos e sensações.

Aqui, podemos lembrar de um estudo do próprio Gumbrecht, em artigo intitulado


“‘Perdido numa intensidade focada”: esportes e estratégias de reencantamento”, que toma o
potencial do esporte como reencantamento secular de um mundo, seguindo os diagnósticos de
Max Weber, onde os estádios esportivos se transformam em espaços (quase) sagrados. Para
Gumbrecht, ao discutir a questão dos lugares do esporte na vida das pessoas, uma forma de
perceber as experiências poderia ser focá-las enquanto expectativas de “epifanias
acompanhadas de halos de intensidade”, de rompantes de intensidade nos espaços da
experiência e do vivencial. Em suas reflexões, haveriam algumas características “do mundo
10

anteriormente encantado” que seriam recuperados quando “praticamos ou assistimos a


atividades esportivas”. Seriam elas os efeitos de “epifania vivenciados pelo espectador”, o
“estádio como um lugar sagrado”, a ocorrência de um tipo “específico de gratidão que vincula
espectadores à presença e à memória de seus atletas favoritos” e, por fim, a “performance do
atleta” (GUMBRECHT, 2007, p. 12).

Outra forma de pensar a memória a partir do paradigma da presença é ressaltar o que


Gumbrecht chama de “fascinação” com o passado. Em outras palavras, oferecer às pessoas
não uma narrativa linear que visa construir sentidos sobre um determinado processo histórico,
mas antes propiciar experiências mais concretas e materiais para dar a sensação de que o
passado se faz presente de forma material. Esse é o caso dos monumentos históricos
contemporâneos, que buscam presentificar o passado mais do que representá-lo, isto é, não
visam apenas transferir sentidos do passado para o presente, mas se concentram na
transferência da presença do passado aos visitantes (como é o caso do Memorial do
Holocausto em Berlim, projetado pelo arquiteto Peter Eisenman). (RUNIA, 2006, p. 16).

As novas tecnologias permitem vislumbrar novas possibilidades de relacionamento


com o passado a partir da presença. Exemplo disso é a franquia de games Assassin´s Creed,
cujo mote principal é propiciar aos jogadores uma viagem (virtual) no tempo. A série já conta
com vários episódios, e em cada um deles os personagens voltam a determinados cenários e
tempos históricos e realizam suas missões – Renascimento, Revolução Francesa, Era
Vitoriana, Independência dos EUA, etc. Os desenvolvedores desse aclamado game utilizaram
inclusive as plantas das cidades no tempo em que se passa os respectivos enredos no intuito
de ambientar o jogador ao cenário histórico; mas esses enredos não visam repetir ou ser fiel
ao que de fato ocorreu – como declara o famoso adágio rankeano. Muito pelo contrário. O
jogador deve fazer missões que, muitas vezes, visam alterar os rumos da história efetiva, pois
o que importa é menos reforçar o sentido dessa história do que propiciar aos jogadores a
sensação de presença do passado.3

Considerações finais

A proposta fundamental defendida pelos teóricos da presença é buscar uma relação


com as coisas fora da exclusividade da interpretação. O eixo principal desta apresentação é
refletir sobre o que esse novo paradigma permite pensar em nossa relação com o passado.

3
Sobre a franquia Assassin´s Creed, cf. https://pt.wikipedia.org/wiki/Assassin's_Creed. Acesso em: 10/04/2016.
11

Nesse sentido, o fenômeno da memória apareceu como um campo privilegiado, já que ela
possui traços que não se deixam reduzir à pura interpretação.

É preciso reafirmar, no entanto, que a presença não visa substituir a interpretação por
completo, pois isso significaria cair num novo tipo de exclusivismo. A interpretação não deixa
de ser um procedimento essencial – diríamos até inevitável – das Humanidades. Mas o que os
teóricos da presença sublinham é que a nossa relação com as coisas não deve se pautar na
busca por sentidos, pois essa postura acabou nos levando para o que Gumbrecht chamou
polemicamente de “vertigem do construtivismo”.

O paradigma da presença ainda está numa fase bastante inicial de desenvolvimento.


Isso explica a ausência de conceitos capazes de dar conta da nossa relação com o mundo fora
da interpretação. Este é um trabalho ainda a ser desenvolvidos pelos estudiosos da área. Além
disso, como ficou indicado acima, ver o mundo sob o prisma da presença significa, entre
outras coisas, conceber esse mundo a partir da continuidade e da estabilidade – o que pode ser
traduzido, em termos políticos, a uma visão potencialmente conservadora. Também por isso
faz-se necessário combinar essa proposta com a cultura de sentido, que vê o mundo a partir da
mudança e da descontinuidade.

Referências bibliográficas

ASSASSIN´S CREED. In: Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em:


https://pt.wikipedia.org/wiki/Assassin's_Creed. Acesso em: 10/04/2016.

CATROGA, F. Memória, História e Historiografia. Coimbra: Quarteto Editora, 2001.

DOMANSKA, E. The material presence of the past. History and Theory, v. 45, n. October,
p. 337-348, 2006.

DOSSE, F. A História. São Paulo: Editora Unesp, 2012.

FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1999.

GUMBRECHT, H. U. Modernização dos sentidos. São Paulo: Editora 34, 1998.

______. A presença realizada na linguagem: com atenção especial para a presença do


passado. História da Historiografia, Ouro Preto, v. 3, n. 2, p. 10-22, 2009.
12

______. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro:
Contraponto; PUC-Rio, 2010.

HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. 7ª ed. Petrópolis (RJ), Bragança Paulista (SP): Editora
Vozes, Editora Universitária São Francisco, 2006.

LOWENTHAL, D. Como conhecemos o passado. Projeto História, São Paulo, v. 17, p. 63-
201, 1998.

NAVA, P. Baú de ossos. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

NORA, P. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo,
n.1, p. 7-28, 1993.

ORWELL, G. 1984. 17ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1984.

RUNIA, E. Presence. History and Theory, v. 45, n. Febuary, p. 1-29, 2006.

Você também pode gostar