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Esta apresentação tem como objetivo central traçar alguns apontamentos iniciais sobre
um novo paradigma que tem ganhado força em diversas áreas ligadas ao campo das
Humanidades. Reflexo de uma insatisfação crescente com as chamadas teorias “pós-
modernas” – entre as quais o construtivismo e o “giro linguístico” –, muitos teóricos
contemporâneos veem buscando uma nova forma de se relacionar com o mundo, bem como
de se pensar e praticar as ciências humanas. É nesse quadro que emergiu o paradigma da
presença.
Nosso objetivo é apresentar o que se entende por “presença” e demonstrar como esse
paradigma possibilita novas formas de analisar os fenômenos humanos, com destaque para a
nossa relação com o passado. Para tanto, a referência privilegiada para esta discussão será a
obra de Hans Ulrich Gumbrecht, um dos mais importantes teóricos da presença. Mas antes de
mais nada, será necessário traçar uma breve história da epistemologia moderna ocidental, de
modo a situar o paradigma da presença temporal e semanticamente. Depois, vamos refletir
sobre o que significar ver e pensar o mundo a partir da presença, relacionando esse conceito
com o de “sentido”. Em seguida, discutiremos como o fenômeno da memória pode ser
analisado à luz desse novo paradigma.
muito para que essa tentativa de solução se mostrasse uma verdadeira ilusão, como demonstra
a rápida dissolução dessas filosofias da história em função da impossibilidade de se integrar
as experiências de toda a humanidade numa narrativa unívoca e homogênea.
Entretanto, essa premissa fenomenológica foi apropriada de muitas formas, entre elas
o que Gumbrecht chama, de maneira geral, de construtivismo. Segundo os construtivistas, a
impossibilidade de se apreender as coisas exteriores ao pensamento implicaria que todas as
realidades que compartilhamos com outros seres humanos são “construções sociais”. Assim,
de maneira contraditória com suas origens filosóficas, o construtivismo teria se transformado
na crença trivial de que tudo estaria facilmente ao dispor da vontade humana de mudar,
porque tudo não passa de “construções sociais”. Assim, a realidade seria algo inerte, uma
superfície sobre a qual nós atribuímos sentidos que, por sua vez, nunca são definitivos,
cabendo sempre “mais um pouco de sentido”.
Para ilustrar essa “perda do mundo”, façamos uma breve menção a um fenômeno que
tem acometido a historiografia brasileira nos últimos anos. Até meados do século XX,
constituiu-se uma rica tradição intelectual que ficou conhecida como as interpretações do
Brasil, que inclui as obras de Silvio Romero, Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Sérgio
Buarque de Holanda e muitos outros. Esses autores elaboravam as suas interpretações pela
análise das relações políticas e sociais que consideravam as mais fundamentais do espaço
brasileiro, por meio da análise das fontes ou pela observação in loco. A partir da segunda
metade do século XX, e sobretudo a partir da década de 1970, ocorreu um deslocamento de
perspectiva: passa-se agora a analisar criticamente as próprias interpretações do Brasil – ou,
para usar uma figura de redundância, passou-se a fazer “interpretações das interpretações do
Brasil”. Se, por um lado, esse deslocamento possibilitou conquistas intelectuais importantes
(sobretudo denunciar o caráter ideológico presente nas análises anteriores) e contribui à sua
maneira para a elucidação da realidade nacional, por outro lado essa mesma realidade ficou
cada vez mais opaca ou “sobremetiaziada”, uma vez que ela só poderia ser pensada a partir
das narrativas de interpretação tradicionais, tornando inviável qualquer afirmação mais direta
sobre o que caracterizaria o espaço social, político e cultural brasileiro.1
- Tolice. A Terra é tão velha quanto nós, e nada mais. Como poderia ser mais
velha? Nada existe exceto pela via da consciência humana.
- Mas as rochas estão repletas de ossos de animais extintos – mamutes,
mastodontes e enormes répteis que viveram aqui muito antes do homem aparecer.
- Já viste esses ossos alguma vez, Winston? Naturalmente não. Os biólogos do
século dezenove os inventaram. Antes do homem, não havia nada. Depois do
homem, se por acaso acabasse, nada haveria (ORWELL, 1984, p. 246).
1
Não se trata, aqui, de defender qualquer retorno a uma visão ingênua ou “positivista” da realidade. Nossa
intenção é apenas assinalar um problema que, como acreditamos, essa postura historiográfica trouxe para se
pensar o espaço brasileiro. Se o paradigma da presença é capaz de, por si só, reverter esse quadro, é um
problema ainda a ser enfrentado.
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O que esse diálogo parece nos dizer é que a materialidade do mundo é inelidível, a
despeito de uma certa concepção construtivista mais radical. E a teorização desse aspecto
material das coisas – incluindo o passado – vem sendo feita pela noção de presença. E a
premissa básica desses teóricos é que, enquanto inelidível, a materialidade do mundo não é,
por isso, inefável.
Em termos sucintos, a presença pode ser entendida como a dimensão material das
coisas do mundo, o fato de que os objetos ocupam um espaço e são tangíveis por mãos
humanas ou sentidas pelo corpo – as emoções, as sensações e os afetos. Para Gumbrecht,
“presença não se refere (pelo menos, não principalmente) a uma relação temporal. Antes,
refere-se a uma relação espacial com o mundo e seus objetos – o que implica, inversamente,
que pode ter impacto imediato em corpos humanos”. Nesse sentido, para o historiador todos
os objetos disponíveis “em presença” são considerados, em suas análises, “as coisas do
mundo” (GUMBRECHT, 2010, p. 13). De acordo com Eelco Runia, a presença significa
“‘estar em contato’ – literalmente ou figurativamente – com pessoas, coisas, eventos e
sentimentos que faz de você a pessoa que você é”. (RUNIA, 2006, p. 5). A presença faz
referência a tudo aquilo que escapa ao domínio da linguagem – embora a linguagem seja
também capaz de produzir efeitos de presença (GUMBRECHT, 2009) –, mas que são também
elementos constitutivos da vida cotidiana e da forma como as pessoas se relacionam consigo
mesmas, com os outros e com o mundo. Em seu livro Produção de presença: o que o sentido
não consegue transmitir, Gumbrecht explicita que o seu compromisso não seria a de “uma
simples substituição do sentido pela presença”. Ao contrário, em última análise, “defende uma
relação com as coisas do mundo possa oscilar entre efeitos de presença e efeitos de sentido”
(GUMBRECHT, 2010, p. 15).
b) Segue-se daí que, nas culturas de presença, o aspecto físico não está submetido ao
espiritual, ou seja, a dimensão material não é considerada como superficial ou
contingente em relação ao significado das coisas, como estabelece as culturas
centradas na produção de sentidos. “Em culturas de presença os seres humanos se
consideram como parte do mundo de objetos ao invés de serem ontologicamente
separados dele” (GUMBRECHT, 2009, p. 13).
c) Em terceiro lugar, nas culturas de sentido predomina uma visão segundo a qual a
existência humana se revela e se realiza em tentativas contínuas de se transformar o
mundo pelas ações (baseadas nas interpretações das coisas e visando a um futuro
almejado); enquanto nas culturas em que a presença predomina, esse impulso pela
mudança é substituída pelo desejo de estabilidade e inscrever seus comportamentos
dentro de uma cosmovisão mais ou menos fixa.
Essa exposição esquemática é útil para apreendermos melhor o que se entende pela
categoria da “presença”, mas com a ressalva de que ela não visa invalidar a interpretação e a
produção de sentidos como um modo de relação com o mundo. Em outros termos, a presença
não é uma postura “anti-interpretação”. Apenas procura ressaltar que nossa relação com o
mundo não se esgota na interpretação, enfatizando a dimensão da materialidade que escapa à
construção de sentidos. Gumbrecht faz questão de ressaltar em vários momentos que a sua
proposta teórica centrada na presença não significa, de modo algum abandonar o sentido e a
interpretação como prática elementar das Humanidades:
constitui uma obra “contra a interpretação”. Ele está interessado no que sugere que
pensemos e, na medida do possível, possamos descrever como “presença”, mas de
nenhum modo pretende ser anti-hermenêutico. (GUMBRECHT, 2010, p. 22).
Mais correto seria pensar a presença como uma tentativa de se voltar contra a
exclusividade/universalidade da interpretação. Isso porque ver o mundo a partir da categoria
da presença não significa eliminar o sentido, pois este também é parte constitutiva da nossa
relação com o mundo. Mas como seria possível lidar com algum fenômeno humano oscilando
entre presença e sentido?
David Lowenthal faz considerações semelhantes que apontam para essa presença do
passado no presente:
A citação acima destaca, sem utilizar o termo, essa presença do passado nas nossas
vidas. A memória aparece, então, como um modo de acesso ao passado que evidencia de
maneira mais clara essa dimensão de presença. Afinal, não há razão para analisar e
compreender o fenômeno da memória apenas pelo prisma do sentido. Há uma dimensão
corporal, material e afetiva da memória que não se deixa aprisionar pela interpretação. Como
afirmou Pierre Nora, “a memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse
sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento
[...]. A memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto”. (NORA,
1993, p. 9).
Embora seja possível discordar da tese de Nora de que há uma incompatibilidade total
entre memória e história2, é ponto pacífico entre os especialistas que elas guardam suas
diferenças específicas na forma de acessar o passado. Sobretudo porque, enquanto a história
pretende ser um discurso crítico – o que pressupõe um certo distanciamento por parte do
historiador –, a memória se limita ao que é verossímil, uma vez que não põe entre parênteses
“as paixões, emoções e afetos do sujeito-evocador” (CATROGA, 2001, p. 39). Assim,
enquanto na narrativa histórica são utilizados uma série de critérios de prova para a validação
de suas afirmativas (argumentos racionais, apresentação de fontes, comentários de outros
historiadores, notas de rodapé, etc.), na narrativa memorialista o único critério é o apelo à
fidelidade e boa-fé do narrador. Essa diferença é decisiva na forma como ambas as formas de
narrativa se referem ao passado: a primeira pretende explicar e compreender o passado;
diferentemente, a memória “será sempre axiológica, fundacional, sacralizadora e
reatualizadora de um passado que tende a fundir, no presente, a subjetividade com a
objetividade” (CATROGA, 2001, p. 40).
2
Para uma visão crítica dessa presumida dissociação entre história e memória, ver CATROGA, 2001; DOSSE,
2012.
9
Considerações finais
3
Sobre a franquia Assassin´s Creed, cf. https://pt.wikipedia.org/wiki/Assassin's_Creed. Acesso em: 10/04/2016.
11
Nesse sentido, o fenômeno da memória apareceu como um campo privilegiado, já que ela
possui traços que não se deixam reduzir à pura interpretação.
É preciso reafirmar, no entanto, que a presença não visa substituir a interpretação por
completo, pois isso significaria cair num novo tipo de exclusivismo. A interpretação não deixa
de ser um procedimento essencial – diríamos até inevitável – das Humanidades. Mas o que os
teóricos da presença sublinham é que a nossa relação com as coisas não deve se pautar na
busca por sentidos, pois essa postura acabou nos levando para o que Gumbrecht chamou
polemicamente de “vertigem do construtivismo”.
Referências bibliográficas
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FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8ª ed. São
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HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. 7ª ed. Petrópolis (RJ), Bragança Paulista (SP): Editora
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LOWENTHAL, D. Como conhecemos o passado. Projeto História, São Paulo, v. 17, p. 63-
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