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N.Cham. 150.1955 L129.Yso-!

Pa 201 2
Pa Autor: Soler, Co!ette, 1937-
Título: Lacan 1 o inconsciente reinventad

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29832 1208 . Ac 547 114
C0LETTE SOLER

LACAN,
o inconsciente
reinventado

TRADUÇÃO
Procópio Abreu

EDITOR
José Nazar

facebook.com/lacanempdf

9Freud
Copyright © Presses Universitaires de France. 2009

TÍTULO ÜRJGINAL
Lacan, L 'inconscie11t réhwe11té

Direitos de edição em língua portuguesa adquiridos pela


EDITOR.-\. C"''>IPO ;\1.nb!ICO
Proibida a reprodução coral ou parcial

EDITOR-\.Ç.\O ELETRÔNICA
FA - Editomçdo Eletrónica

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EDITOR REsroi-.:sAvEL
josé i\ízzar

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José J\ízzar
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Pedro Pa/,1zz,1 1\ízz.zr
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Ruth Ferrefra Bastos

Rio de Janeiro, 2012

CIP-BRASIL CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
J27f
SOLER, Colette

Lacan. o inconscienre reirn·enrado i Colene


Soler; tradução Procópio Abreu. - Rio de Janóro :
Cia. de Freud, 2012.

Tradução de: Lacan. L'inconscient réinwnté

ISBY r8-85-7-:"24-086-9

1. Inconsciente. 2. Lacan, Jacques, 1901-1981.


!. Tírulo.

08-2202. CDD: 150.195


CDC: 159.964.2

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,
I~DICE

Prefácio ...................................................... 9

Introdução .................................................. 11

O I~CO~SCIENTE, REAL

Tra.ietória .................................................... 17

Estrucuralista? ............................................. 19
O momento estruturalista .................................... 21
Reavaliações ............................................... 23
Sujeitos "reais" ............................................. 26

Rumo ao Real ................................................ 30

O que faz função de real ............... ' ....................... 31


O umbigo ................................................ 34
Os dois inconscientes ........................................ 36

Alíngua, traumática ............................................ 38

Alíngua a-estrutural ......................................... 39


Alíngua cemitério .......................................... .41
Os efetos de alíngua .......................................... 42
A prova pelo afeto .......................................... 43
A prova pelo tratamento do sintoma ............................ 44
O inconsciente holofrástico ................................... 46
Que trauma? .............................................. 48
O sintoma analfabeto ........................................ 50

Da transferência rumo ao inconsciente outro ......................... 53

A transferência, um nome do inconsciente ........................ 53


Modelo reduzido do passe pelo ICSR . . . . . . . • . . . • . . . . . . . • . . . . . . . . . 57
A falha do sujeito_ suposto saber ................................ 62

Via real do rcsR ............................................... 64

Materialidade do inconsciente ................................. 64


Malogros que não se equivalem ................................ 67

O aleph borromeano ........................................... 70

Do falasser . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 5

A fala inventariada .......................................... 76


Disortografia calculada ....................................... 77
O mistério do corpo falante ................................... 79

A A0.'ALISE 0RIE\'TAD,\ PARA 0 REAL

O passe de fim ................................................ 85

O tempo, não lógico ........................................... 91

A variável não epistêmica ..................................... 92


Afetos didáticos ............................................ 94
Uma sessão ajustada ao inconsciente real ......................... 95
A satisfação de fim .......................................... 97

A análise finita ............................................... 1O1

A identidade de separação ................................... 1O1


Os nomes da identidade ................................... 1O1
A identidade de fim ...................................... 109
A identificação com o sintoma ou ... pior .... : ................... 115
A identidade de fim, suas aporias .............................. 123
Primeira aporia ......................................... 124
Segunda aporia ......................................... 128

CLÍi\lCA RE{';O\'ADA

Estatuto dos gozos ............................................ 133


O dizer de Freud .......................................... 133
A relação sintoma .......................................... 136
O que você não consegue escolher ............................. 141

Sintoma do inconsciente real .................................... 147

Autistas ou socializantes ..................................... 148


Um inconsciente psicótico? .................................. 149
Joyce, um Pai da diologia .................................... 150
Sua sintomatologia ....................................... 151
Sua "esquisita relação" .................................... 152

O pai e o Real ............................................... 160


A castração sem o pai ....................................... 161
Da causa ao pai ........................................... 164
O pai sintoma ............................................ 167

Rumo ao pai do nome ......................................... 169


No(ue)mination ........................................... 170
Sem a família ...................................... ~ ...... 174

O amor e o Real ............................................. 180

O amor em julgamento ..................................... 181


Um amor que sabe ......................................... 183
A promessa analítica ........................................ 186
"O amor mais digno" ....................................... 188

PERSPECTIVAS POLÍTICAS

Dissidência do sintoma? ....................................... 193


O corpo ci"vilizado ......................................... 193
Corpo fora de discurso ...................................... 197
O sintoma objetor ......................................... 198
Um discurso de urgência .................................... 201

A psicanálise e o capitalismo .................................... 206

Abrindo os olhos .......................................... 206


Derrisão da fala ........................................... 21 O
Freud mascarado .......................................... 213

Mal-estar na psicanálise ........................................ 215

Precariedade das instituições .................................. 21 7


A instituição reinventada .................................... 219
Um ato sem retribuição ..................................... 224

O que quer o psicanalista? ...................................... 227

O avesso do cognitivismo .................................... 230


Uma terapêutica, não prescritiva ............................... 231
PREFACIO

E ste volume retoma, ordena e problematiza vários desenvolvimentos por


mim produzidos em anos passados. Todos estão ligados aos seminários
que há dez anos são ~rganizados na Escola de Psicanálise dos Fóruns do
Campo Lacaniano. Quando me pareceu necessário, remeti em nota aos
artigos em questão, com suas datas e locais de publicação.
I nterrogo aqui o que fundamenta a trajetória do ensino de Lacan. Passada
a emoção causada por sua entrada ruidosa, em Roma, em 1953, com
"Função e campo da fala e da linguagem", que pela primeira vez na França
renovava o vocabulário freudiano, seus progressos constantes sempre em-
baraçaram alunos e leitores. Com efeito, nesse ensino que se estende por
uns vinte anos, nem uma única parada, mas acréscimos, remanejamentos,
inversões até.
Algumas sentenças ainda pairam e atravessam o tempo, é verdade - "o
inconsciente fala", "o inconsciente é estruturado como uma linguagem" -,
mas há um "mas", pois de uma ponta à outra elas não dizem mais a mesma
coisa. Da fala de intersubjetividade dos anos 1950 ao "eu falo com meu
corpo'' dos anos 1970 há um mundo, que enceta uma nova definição do
próprio inconsciente.
Daí o lado colorido do mundinho dos que ~e dizem lacanianos. Como
nele se encontrar entre os detentores apenas da fab. aliás ameaçados pela
concorrência das psicoterapias que há muito tempo lhe tomaram emprestado
essa fala, entre aqueles que só juram pelo objeto ,,, os do gozo, os da clínica
- nada senão a clínica -, os da topologia, os do nó borromeano, etc.?
É um estranho efeito. No fundo, o próprio Freud não avançou por
etapas sucessivas, recusando em 1916 sua primeira teoria da angústia na
relação com o sintoma, renovando sua definição do inconsciente com o
acento coloc:.do na repetição e na pulsão de morte em 1920, remanejando
sua doutrina elo aparelho psíquico? Isso não produziu a ideia de um Freud
12 La e a 11, o ineo 11 sei e n te r e i 11 l' 2 11 fa Jo

primeiro, segundo, talvez até terceiro, e não se duvida da unidade de sua


enunciação como é o caso para Lacan. Será porque as dificuldades de leitu-
ra de Freud são não menores, mas mais mascaradas por um estilo sempre
sistematicamente didático? Em Lacan, ao contrário, elas estão na superfície,
ao passo que a lógica de seus sucessivos passos permanece implícita.
É um fato, Lacan procedeu por asserções mais que por explicitação,
multiplicando ao longo dos anos as fórmulas surpreendentes e os ostensivos
paradoxos. Outros viram nisso o sinal de um caráter brincalhão que busca
impressionar. Vejo mais nisso outra forma de didatismo: Lacan buscava
despertar seu mundo. Algumas razões o levavam a achá-lo adormecido,
ele que havia experimentado, às próprias custas, a entropia do pensamento
analítico pós-freudiano. Aliás, o sucesso permanece bem indeciso, pois,
passado o primeiro sobressalto de incredulidade, as fórmulas mais impres-
sionantes tornam-se ainda mais facilmente sujeitas à repetição, propícias a
se transformarem naquilo que ele chamou "belos fósseis".
Essas surpresas da transmissão não mereceriam tanta atenção em
outros campos. Quem censuraria o poeta, o pintor, o artista em geral, por
produzir coisas novas, como o mágico tira o coelho da cartola? A psicaná-
lise, porém, não é a arte, mas um laço social regrado, pelo qual o analista
é responsável e cujos efeitos sobre o analisando não são independentes da
maneira como é pensada a experiência. Não há lugar aqui para o capricho,
ou a invenção gratuita.
Freud inventou o dispositivo que permite interrogar o que ele cha-
mou ... o inconsciente. Coisa bem estranha, que só responde àquele que a
invoca. Há por certo os sonhos, lapsos, atos falhas e sobretudo sintomas,
todas essas formações que o manifestam desde Freud, mas sob formas tão
enigmáticas que não fazem mais que colocar a questão do que ele diz, do
que ele quer. Aliás, é possível não levar em consideração essas "formações
do inconsciente". Foi o que fizeram os séculos passados, que já interpreta-
vam os sonhos, mas de outro modo, como vozes dos deuses ou do destino.
Desde Freud, aqueles que receberam sua mensagem podem pensar que se as
ignorarmos vamos aguentar as consequências, que sintomas e repetição vão
se desencadear, mas é porque eles já tinham concluído sobre o inconsciente
como causa. Vemos aqui a que ponto o inconsciente não é uma coisa entre
outras: sua ex-sistência só se verifica, de maneira relativamente convincente,
f,l tr,..1Ju çllL1 13

na prática que o estabelece - não sem o ato do analista, portanto. "Ontica-


mente, portanto, o inconsciente é o evasivo"l; ele não conclui, como que à
espera da interpretação. Daí, Lacan estava bem justificado em dizer que o
estatuto do inconsciente era menos ontológico que ético.
A postura que Lacan escolheu na psicanálise é perceptível em seu
"retorno a Freud": tratava-se de repensar a experiência nova inventada por
Freud. De modo mais ajustado ao espírito científico, mais completo tam-
bém, estando entendido que a direção prática dessa experiência é função
do modo como ela é concebida. A oposição teoria/prática, clínica/conceito
não vale aqui, e, apesar das fanfarronadas daqueles que se reivindicam puros
clínicos, em psicanálise uma teoria não pode se considerar quite com os
fatos que se afiguram na prática - aliás, não é seguro que seja tão diferente
na ciência. É por isso que o desejo do psicanalista, em ação em cada cura,
não o é menos no nível da "práxis de sua teoria" 2 •
Logo, interrogo a trajetória de Lacan analisante da psicanálise sobre
a lógica de suas contribuições e sobre as consequências destas na direção
da cura. Não interrogo as eventuais afinidades, fontes, diferenças com seus
contemporâneos que fazem as delícias da história do pensamento. Não é
tampouco uma questão sobre seu desejo, não viso interpretar Lacan: questio-
no a força que move seus sucessivos avanços. Com efeito, acabei percebendo
que os constantes remanejamentos de suas elaborações, por mais inventivas
que fossem, nada têm de caprichosos e são, a cada passo, fundamentados em
razão - razão analítica, pois são os problemas não resolvidos no passo anterior
que animam sua marcha. Exceto que só raramente ele explicita os impasses
a serem resolvidos e cabe ao leitor colocar de si para apreendê-los.
Dessa trajetória não retenho tudo, no entanto. Só os passos que
conduziram Lacan a colocar uma fórmula inaudita, que diz, contra toda
expectativa, que o inconsciente, sempre até então situado como simbólico,
é... real. A tese, uma vez estabelecida, tem consequências práticas e clínicas
imensas, que estão longe de ser sempre percebidas e que, por isso, penam
para passar ao ato ... analítico.

J. Lacan, Le. quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse, Paris, Le Seuil,


0 1973, p. 33.
J. Lacan, "Acc de fondarion", Autres écrits, Paris, Le Seuil, 2001, p. 232.
O INCONSCIE:NTE, REAL
TRAJETÓRIA

O próprio Lacan não deixou de interrogar sua própria trajetória e de


reavaliar cada um de seus passos. fü novas fórmulas bem como as
teses trazidas por essa reavaliação são outras tantas retificações teóricas
impressionantes 1• Afinal, temos um Simbólico que não é mais linguagem
mas língua, a ser escrito alíngua, a isso voltarei; um Imaginário que não é
significação subordinada ao Simbólico, mas essencialmente forma e repre-
sentação; enfim, um Real fora do Simbólico, embora sua definição anterior
o situasse pelos obstáculos da formalização linguageira.
Por quê? A questão não é marcar uma periodização para expor um
primeiro, segundo e terceiro Lacan. A cronologia sozinha é inerte e apre-
senta um inconveniente, não totalmente inocente: com efeito, ela elide o
Um que conjuga todas as variantes textuais. Esse Um não está no nível das
teses e sim no nível daquilo que chamo a opção que fundamenta um dizer
único para além das variantes dos ditos. Com a cronologia sequenciada,
sub-repticiamente, sabendo-o ou não, fracionamos o Um-dizer em sucessivas
textualidades, e, em nome de uma leitura metódica, eis que ele se torna tão
múltiplo quanto finalmente absorvido.
No fundo, é esse Um que Michel Foucault teve o mérito de res-
saltar, em 1969, em sua conferência "O que é um autor?", à qual Lacan

I C. Soler, "Lacan réévalué par Lacan", L'anthropologíe structurale de Léví-Strauss et la psycha-


nalyse, Paris, La Découverte, 2008.
18 Lacan, o i11co11scicnte reinvcntu)o

estava presente, sublinhando o quanto essa dimensão do Um do autor


era ineliminável. Digo que era um mérito, pois o momento estava para
um certo estruturalismo que anunciava o fim do autor e sua absorção nas
leis supostas da textualidade. Hoje, evidentemente, essa noção não tem
mais valor, e estaríamos mais numa época em que há mais autores que
verdadeiros textos.
O problema com a cronologia é que a enunciação expulsa pela porta
volta pela janela, como se diz. E em nada menos que no argumento de au-
toridade. O "Lacan disse que", invocado por toda parte, a golpes de citações
esparsas, embaralha então os tempos primeiramente distinguidos e traz de
volta a indistinção mais confusional. Assim se opera a clivagem do nome
e do dizer que o trazia. Em consequência, esse ensino se transforma numa
vasta despensa onde cada um pega como bem entende. O resultado é que
quanto mais se multiplicam os leitores mais se evapora a coerência daquilo
que animava a marcha.
Lacan, de resto, não era nem um pouco adepto da cronologia,
mas tampouco o contrário. Para caracterizar o que fazia, ele gostava
de utilizar a noção de trilhamento. Trilhamento que abre uma via ao
forçar obstáculos num domínio resistente ao pensamento ou à marcha.
O trilhamento pode avançar na descontinuidade, ter seus momentos
fecundos e seus tempos de estase, de assimilação, mas a noção conota a
continuidade de um esforço que constitui um todo orientado, criando
sulcos no campo em questão.
Logo, tenho que manter juntas a lógica dos remanejamentos e a
enunciação uma que os produz. Elas não têm o mesmo estatuto, pois a
enunciação é contingente e, portanto, incalculável. Nesse sentido, apesar
da lógica das passagens, um tempo dois não se deduz pura e simplesmente
de um tempo um, mas, mesmo assim, não deixa de ser dele proveniente e
tampouco, mas isso é mais conhecido, de esclarecê-lo retroativamente.
Assim, teremos que entender o que da experiência analítica excedia
cada tese, e que, portanto, fundamentava os avanços. Vale dizer que a mola
propulsara desse work in progress, no qual só a morte pôs a palavra "fim",
nada deve nem à linguística, ainda que revisitada pela poesia como faz
Jakobson, nem à antropologia estrutural.
(_J i11C011SCÍ.:nf.:!, rLLll 70

E 3 T R r_- T r_- R _\ L : 3 TA?

Entretanto, de fato, o nome de Lacan permanece associado à corrente


estruturalista dos anos 1970. É verdade que ele explorou metodicamente
a via esrruturalista, buscando estabelecer que o inconsciente é algo racio-
nal que tem suas leis. Mas basta reconhecer que uma ordem simbólica
regra a um só tempo os grupos sociais estudados pela antropologia, as
composições linguageiras da linguística e o discurso do inconsciente para
que o -isn10 do estruturalismo esteja assegurado na psicanálise? Não acre-
dito que Lacan tenha sido estruturalista, mesmo no tempo de metáfora e
metonímia. O sujeito da psicanálise não é o homem estrutural, se posso
utilizar essa expressão, e nunca foi realmente, em nenhum momento das
elaborações de Lacan.
A coisa se julga no nível do postulado, quanto ao objeto de cada
disciplina - postulado não necessariamente explicitado.
Por hipótese, a linguística e a antropologia estrutural, que tomam por
objeto as leis de composição das estruturas que as ocupam, só implicam o
sujeito como sujeito reduzido ao puro objeto da combinatória. A hipótese
analítica é outra. O fato de Lacan ter sublinhado fortemente que a psicanálise
não conhece outro sujeito que o da ciência e de fazer desse "modo especial do
sujeito" o que ele chama "a marca a não ser perdida do estruturalismo" 2 não
deve nos enganar quanto a esse ponto. A psicanálise por certo não conhece
outro sujeito que esse sujeito sem encarnação, que é apenas "umbigo" na
pura combinatória da matemática do significante, umbigo que a própria
lógica não consegue eliminar, mas esse sujeito não é o objeto da psicanálise.
Aquele que ela acolhe e que ela trata é aquele que sofre, e não de qualquer
coisa, de um sofrimento ligado à verdade, a verdade que introduz o objeto
de sua fantasia, e até um pouco mais: o vivente marcado pela linguagem.
Lacan encontrou uma palavra para designá-lo: "psicanalisando". Sem ele,
não há psicanálise, embora o estudo dos mitos dispense sem problemas o
"mirando" [mythant], como Lacan o chama por analogia com "analisando",

'. J. ~.acrn, ··:...;. -:ci<:ne<: er la ,·érité'', Écrits, Paris. Le Seuil, 1966, p. 861.
20 Lacan, o inconsci~nte reÍnL·cntodc

da mesma forma que o desdobramento da máscara nada é senão simbólico


e elide o portador, ou que o ritual pensado como homólogo à economia
dos mitemas lança para "fora do campo da estrutura o actante do ritual"\
A diferença é imediatamente sensível.
É verdade que poderíamos falar de um momento estruturalista em
Lacan para designar a época em que suas elaborações tomam emprestado
à linguística de Saussure e Jakobson ou à antropologia estrutural de Lévi-
Strauss e em que ele acentua aquilo que a psicanálise pode ter em comum
com essas disciplinas - a saber, as leis de composição do inconsciente, que
Freud nos ensinou a decifrar, que têm por correlato o sujeito da ciência e
que, assim como as estruturas elementares do parentesco, operam à revelia
do sujeito psicológico.
Entretanto, olhando melhor, verifica-se facilmente, já nesse momen-
to, a constância daquilo que chamo a objeção à redução estruturalista,
objeção que é inerente à psicanálise tal como Lacan a conceitualiza. Que
se reconheça essa objeção, já no primeiro passo: leis da fala, demos muita
importância a elas, diz ele, sim, mas a fala é ato, tese contemporânea,
e o ato é impensável apenas com o sujeito da ciência. E ainda "A carta
roubada", que ele quis colocar na abertura de seus Escritos, a despeito da
cronologia e justamente para acentuar o elemento estrutural de nossa expe-
riência. Cito: "O programa que se traça para nós, portanto, é saber como
uma linguagem formal determina o sujeito"4. O que mais aparentemente
estruturalista que essa expressão? Mas a objeção prossegue: o programa
só pode ser preenchido, diz ele, por um sujeito "que ali põe de seu", e
isso implica "uma conversão subjetivà' 5 com frequência ligada a uma
dimensão de drama. Aí, adeus estruturalismo. Não multiplicarei mais os
exemplos: vamos encontrá-los o tempo todo, solidários a um sujeito que,
contrariamente ao puro sujeito da ciência, tem o crédito de uma posição
e de uma responsabilidade quanto a essa posição - em outras palavras,
um sujeito, mais que "patemático", ético.

3 lbid., p. 862.
" J. Lacan, "Le séminaire sur "La leme volée''", Écrits, Paris, le Seuil, 1966, pp. 42-43.
lbid.
(_l i 11 e o 11 sei t! 11 te, r e a f 21

Do momento estrutural podemos extrair uma definição muito precisa do


Simbólico.
Passo por cima do tempo que Lacan precisou para sanear o uso do
termo "símbolo" que lhe vinha de antes e para colocar em seu lugar o termo
"significante", precisando bem no início que o significante no uso psicana-
lítico não é necessariamente verbal e que ele se define, de modo somente
homólogo ao significante linguístico, por seu caráter diferencial e suas leis
de composição.
O Simbólico não se reduz então ao significante, mesmo que o su-
ponha. É por isso que, no início, há todo um vocabulário do acesso ao
Simbólico, realizado ou não, cumprido ou não, mais ou menos, e vemos
Lacan evocar, por exemplo, o acesso a uma verdadeira relação simbólica,
como se o Simbólico tivesse seus eleitos e fosse preciso dizer: todos os seres
falantes têm em comum a linguagem, mas não o Simbólico. É evidente
que esse \'ocabulário do acesso é suspeito. Era a porta aberta às ressonâncias
iniciáticas, nas quais muitos se engolfaram, mas que são insatisfatórias do
ponto de vista da exigência de racionalidade e do ideal de transmissão. Por
toda uma década, Lacan trabalhou para reduzir esse traço e para dar uma
definição conceitualmente compreensível do Simbólico.
Essa definição faz do Simbólico um modo específico de organização
do significante que passa pela metáfora, a qual é cadeia significante na sin-
cronia. A tese é bem conhecida, mas pede ser precisada. Na verdade, Lacan
define o Simbólico pela conjunção das três metáforas, que ele introduz no
seminário As psicoses: metáfora do sujeito e metáfora do sintoma escritas em
"A instância da letra no inconsciente", depois metáfora do Pai, escrita em
''A questão preliminar a todo tratamento possível da psicose". A primeira
questão é saber se há entre elas uma solidariedade, talvez até uma ordem
de determinação.
A metáfora do sintoma é metáfora do traumatismo do encontro
primeiro com o gozo. É um dos modos do inconsciente como cadeia signi-
ficante, do inconsciente linguagem, portanto, e Lacan aí reformula, graças
à ferramenta linguística, o que Freud nomeou recalque e retorno do recai-
22 La e a n, o i n e o n se; ente r e; n t: e 11 ta e./ l~

cado. É um atalho dizer isso, pois seria preciso distinguir, como Lacan aliás
faz, o uso da metáfora no recalque e seu uso poético ou retórico, mas a tese
permanece. Com suas duas expressões, "recalque" e "retorno do recalcado",
Freud deixava em suspenso a questão que é saber onde subsiste o elemento
recalcado, como ele se mantém ativo, a despeito de seu desaparecimento,
ao ponto de poder retornar. E Freud, que não publicou seu Ensaio de psi-
cologia científica, sabia que havia ali um problema. A metáfora do sintoma
responde a essa questão: o significante se mantém latente no significado do
discurso atual, metonímico, e permanece acessível, decifrável a partir do
mais de significação que ele produz.
Entendemos que uma metáfora do sintoma, idêntica ao recalque-
retorno do recalcado, não seja para todos, e em particular não para os
sujeitos para quem o significante retorna no real, fora de cadeia, precisa
Lacan (inconsciente a céu aberto, dizia Freud), aqueles mesmos para quem,
por hipótese, a metáfora do pai falta. Logo, a metáfora do sintoma deve ser
pensada como subordinada àquela do pai e excluída na psicose.
Essa metáfora do pai também escreve a sincronia de uma cadeia de
significantes, mas, uma vez que são aqueles do Édipo, pai, mãe, indisso-
ciáveis das significações da relação, do amor e da procriação, para além da
relação exclusiva com o gozo, ela introduz e ordena o laço social entre os
sexos (homem/mulher) e as gerações (pais/filhos).
Mas o que dizer do sujeito suposto à cadeia do inconsciente, que de
certo modo é seu significado real, se posso dizer, irredutível tanto aos sig-
nificantes da cadeia quanto às significações que ela engendra, inapreensível,
portanto? Inapreensível a não ser com uma metáfora específica, a única que
permite pegá-lo e que Lacan chama precisamente a metáfora do sujeito, gra-
ças à qual "sua inefável e estúpida existência'' e o x de seu ser encontram-se
inscritos, não sem um preço a ser pago. Lacan propôs uma ilustração disso
em seu comentário de um poema de Victor Hugo, "Booz adormecido", no
qual a fecundidade de seu "feixe" não funciona sem a foice.
Três metáforas solidárias, portanto, que permitem capitonar a deriva
metonímica do discurso e reconhecer assim todo o imaginário da significação
por "indução" do significante. Assim, do Simbólico ao Imaginário, uma ordem
de determinação é colocada, de onde, aliás, saiu outra grande ladainha a se
O i11conscie11te, real 23

acrescentar àquela do acesso ao Simbólico. A ladainha da superação possível,


talvez até exigida, das paixões imaginárias no analisado, ladainha que se man-
tém, a despeito de toda a experiência, da mesma forma que objeções explícitas
a Lacan numa total indiferença a suas elaborações mais tardias.
Passo por cima dos passos seguintes para me reportar ao fim da traje-
tória, ao momento em que Lacan utiliza o formalismo do nó borromeano,
esse nó no qual três rodelas de barbante, que representam as três dimensões
do Simbólico, do Imaginário e do Real, estão enlaçadas a três de tal maneira
que se cortarmos uma qualquer o nó se desfaz.

REA \'ALIAÇÔES

Marco a oposição das novas fórmulas para com as antigas, sem justificá-las
por enquanto. O enodamento toma o lugar da função metafórica. O que
Lacan primeiro repartiu com os binários metáfora do pai em função ou
foraclusão, com seus correspondentes, significante em cadeia do sintoma
/ ou significante no real, fora de cadeia, é doravante recolocado no nó
borromeano através da oposição enodada borromeanamente ou não. É tão
verdade que ele diz em 1975: o Nome-do-Pai é o nó borromeano. Com
efeito, mediante a adição da operação de enodamemo, o sintoma que, de
memória freudiana, enquanto "substituto sexual", enoda a dois Simbólico
e Real, significante e gozo, esse próprio sintoma se prende ao sentido da
fantasia, produzido entre Imaginário e Simbólico.

Nó borromeano
24 Lacan, o inconsciente reini·ent-ai:/L,

Assim, o fato de podermos situar novamente as primeiras formula-


ções de Lacan no vocabulário do nó borromeano indica que, com o nó,
Lacan estava na via de um esquematismo mais englobante que permitisse
pensar a um só tempo os fatos da neurose e aqueles da psicose. Já é um
benefício, mas uma teoria generalizada só tem interesse pelos pedaços
novos do Real que ela permite abordar. E, na verdade, é bem isso o que
está em questão.
O enodamento como função suplementar que Lacan vai mais tarde
nomear sinthoma, e que ele acrescenta às três consistências, do Imaginário,
do Simbólico e do Real, impõe primeiramente repensar estas últimas em
sua autonomia, sua equivalência repetitivamente afirmada por Lacan, talvez
até seu enodamento a duas.
O Simbólico que está escrito no nó não é mais então cadeia
linguageira. O próprio Lacan explicita isso. Só escolho duas fórmulas
choques, entre muitas outras: "Ao contrário do que eu disse", precisa
ele, "os significantes S, e S2 não fazem cadeia''. É categórico. E ainda:
"O inconsciente não tem gramática''. Em outras palavras, o inconsciente
não tem sintaxe produtora de significação gramatical. O inconsciente
por certo é condicionado pela linguagem, pelo fato de ser falante, mas
ele não é linguagem, fazendo frases, "proposições"; ele é antes língua, ou
seja, multiplicidade inconsistente de elementos diferenciais que não fixam
o sentido. Acaba-se, portanto, num Simbólico sem metáforas, que Lacan
introduziu paralelamente às suas considerações sobre alíngua escrita numa
só palavra, que não é linguagem. E vemos, com efeito, Lacan recusar uma
por uma, metodicamente, as metáforas precedentemente elaboradas com
tanto cuidado.
A definição do sintoma desce um nível: ele não é mais função da
metáfora (cadeia, portanto), mas função da letra-uma que ele escreve fix).
Seu comentário não deixa ambiguidade alguma:/é função de gozo, gozo de
um elemento qualquer do inconsciente (x) que ele chama, em consequência,
letra. Retorno a uma variante do significante no Real, fora de cadeia, pelo
qual ele primeiramente definiu o fenômeno maior da psicose.
Aqui, um parêntese. Essas novas formulações não abolem o simbóli-
co-linguagem, certo, mas obrigam a pensá-lo como uma estrutura sobreim-
e! inconscit!nfe, real 25

posta, que exige urna condição suplementar, acrescentada pelo discurso. O


da própria ciência linguística, mas mais essencialmente para nós aquele da
psicanálise tal como opera em cada cura para extrair da fala analisante a
linguagem inconsciente que lhe é própria. Em outras palavras, o simbólico-
linguagem já é um efeito de discurso. A isso voltarei.
A função Nome-do-Pai, por sua vez, não é mais nem função de signi-
ficante, nem mesmo função da letra, ela é função de enodamento, oriunda
de um dizer de nomeação, que pode ter efeitos simbólicos, por certo, mas
que é em si própria uma função existencial e não uma função simbólica
- consequências clínicas subsequentes.
Enfim, fora com a metáfora do sujeito em proveito do nome próprio
como assinatura infalsificável de um vivente ... que fala.
O que acontece, então, com a categoria do Imaginário, que não está
por essência enodada ao Simbólico? O Imaginário goyernado, induzido
pela metáfora definia-se como significação. Essas significações iam do
narcisismo e das relações com o semelhante até a significação fálica. Daí a
ideia, formulada na época, de que, sem o Outro, o sujeito não podia sequer
sustentar-se na posição de Narciso.
Afinal, o Imaginário é o corpo, diz Lacan. Para entender isso é preciso
acrescentar: o corpo sem a significação fálica, imagem, pois, que tem uma
consistência própria, a de forma, a imagem adorada mas também, se for o
caso ... abominada. Assim, ele volta a um estádio do espelho primário. Ima-
gem, mas, além disso, colonizada pelas representações que a língua veicula
e que Lacan qualifica de imbecis para dizer o fora de sentido delas.
Quanto ao Real, resta a ele a ex-sistência. Ex-sistência fora. É coisa
bem diferente de tropeçar com a combinatória simbólica num limite da
formalização, num impossível de escrever, portanto. Esse limite que, segun-
do a expressão de Lacan, fazia, cito, "função de real" no Simbólico não é
o Real fora do Simbólico, que, este, está antes do lado do vivente. Vivente
do qual não se tem ideia, que não é imaginável e do qual o Simbólico nada
sabe - apesar das ciências da vida.
Logo, a reavaliação é bem geral. Mas o que a necessita? Ou, ao menos,
já que não se trata de uma necessidade, o que a fundamenta na contingência
de seu dizer? Em que a teoria do Simbólico metáfora era insuficiente?
26 Lacan, o inconsciente re,"ni:eni·aJJ

SUJEITOS "REAIS"

Nunca duvidei das insuficiências da tese do sujeito suposto, refendido e


falto em ser. Perfeitamente convincente do ponto de vista da lógica da
cadeia significante inconsciente, ela é, no entanto, perfeitamente incapaz
de sozinha explicar a experiência em sua completude, pois o falante dotado
de inconsciente não se reduz a ser, sujeito barrado, inconsciente. Daí meu
interesse pelos diversos complementos que Lacan trouxe a isso ao longo
do tempo para chegar ao que ele chama, em 1975, o "sujeito real", que é
definido por não ser somente suposto.
Parto de uma fórmula conhecida: "Um sujeito não supõe nada, ele é
suposto". Ela é de 1967, para introduzir o materna da transferência. Com
efeito, é possível dizer que tão logo há significante um sujeito é suposto.
Hieróglifos na pedra, e um sujeito é suposto. S/sujeito. Nada a dizer. O
que ele é? Na cadeia, ele só pode ser determinado como um significado.
Mas, restando distinto do significado, o sujeito suposto - eu deveria dizer:
o subposto - faz antes furo no significado. Daí por que é possível escrevê-lo
(- 1) no materna do significante e do significado

S1 S,
--~-~ -
sll(-1)

ou enunciar, como Lacan faz novamente em Mais, ainda, que "seu ser
sempre está em outro lugar". Desse sujeito já é possível certamente dizer
que ele é real, mas no sentido em que é impossível reduzir essa estrutura de
suposição na linguagem.
Lacan aí procedeu a um extraordinário esvaziamento das evidências
da experiência. Primeiro, a da experiência do semelhante, a saber, que os
humanos, bem longe de serem evanescentes, de fato estão ali, fazendo baru-
lho e ocupando lugar, para não dizer mais. Toda uma geração de lacanianos
instruídos pelo estádio do espelho se acostumara a enviar isso com um revés
de mão ao Imaginário, como se isso bastasse para volatilizar os fatos.
Não é verdade apenas na experiência do semelhante, mas também
no próprio nível da interpretação: o sujeito do texto não supõe nada, mas
c1 i ll C L7 11 5, C j~ }1 t t!, T.;} J ! 27

mesmo assim é preciso alguém para fazer a suposição. Champollion diante


dos hieróglifos não é sujeito suposto, é ele quem supõe. Mas o quê? Não o
sujeito, mas primeiro o significante, pois ele supõe que o desenho de linhas
na pedra é escrita.
Evoco Champollion, mas poderia tomar a decifração freudiana: por
provocar um curto-circuito no sujeito da intencionalidade, ele implica outro
sujeito, aquele que é suposto à cadeia decifrada e que desde Lacan chamamos
"sujeito do inconsciente". Freud, por sua vez, falava de desejo inconsciente
para esse suposto. Só que ele é suposto apenas por um Freud que supõe,
que trata a fala analisante como um material justamente - a saber, como
um texto, conforme à sua tradição da escrita. Tratar o inconsciente, tratar
a fala como um texto é supor que o inconsciente~ um saber. É este o passo
de Freud. Nesse sentido, Jean-Claude Milner(, pode dizer que Freud está no
campo daquilo que ele chama o "saber moderno". Antinômico da fala, esse
saber não fala, não diz nada a ninguém, exclui toda mensagem. Constrói-se
com pequenos pedaços, com "mais de saber" acrescidos a "mais de saber",
conforme a expressão que ele emprega. A diferença de Freud, porém, o que
faz que não se possa simplesmente recrutá-lo para a tropa daquilo que Milner
chama os "judeus de saber", a não ser que se aceite a definição dada por
ele, é que esse texto inconsciente não se reduz a "mais de saber" absolutos,
já que ele está preso a coisa bem diferente - a saber, para Freud, as pulsões,
grandes ausentes do texto de Milner. O suponente do significante, seja ele
Champollion ou Freud, como chamá-lo se não o chamarmos sujeito? Sem
falar, aliás, daquilo que "padece" do significante, de acordo com o termo
de A étictt dtt psicanálise.
Aquele que fala está dividido entre o que ele é como sujeito suposto,
sujeito feito de ausência, cujo ser sempre está em outro lugar, e o que ele é
como presença - eu poderia dizer: presença de indivíduo falante. A questão
é a seguinte: o que determina esse sujeito o bastante para converter esse
furão em hic et nunc, aqui e agora? Eu disse presença de indivíduo, o termo
é de Lacan. Ele o utiliza em Alais, ainda e, em seguida, a respeito de Joyce,
que ele chama the individual. Com efeito, foi preciso esperar Mais, ainda

" J.-C. 1v1ilner, L: juif de sauoir, Paris, Grasset, 2006.


28 La e a n, o i n eu 11 sei e 11 te rei H t' en t r..1 j ,.,

para que Lacan colocasse sua hipótese: esse sujeito e esse indivíduo são o
mesmo. Ele alguma vez duvidou disso? Não acredito, mas a questão não
era uma questão filosófica sobre a essência do homem, era uma questão de
prática analírica: como, com um procedimento reduzido à fala, reconhecer
esse sujeito suposto que desliza na cadeia? Em outras palavras, como chegar
ao referente, à Coisa mesma? E não é justamente o que é visado por toda
interpretação? Parar o deslizamento, colocar um stop na decifração, dizer
qual é o lastro, visar no coração? O encaminhamento de Lacan nesse ponto
é instrutivo.
Foi desde o início que ele buscou um princípio de fixação do ser que a
interpretação poderia tomar por alvo, mas ele primeiro explorou os recursos
da linguagem. Todos os seus desenvolvimentos sobre os pontos-de-estofo
que param o deslizamento da cadeia, sobre o significante primordial, sobre
a fantasia como significação absoluta são outras tantas tentativas de resposta.
As fórmulas possíveis da interpretação continuam, já que é ela que está em
questão: interpretação como significação aproximada, ou interpretação que
inclui o significante primordial de um sujeito fixado pelas três metáforas
que lembrei.
Podia ele ater-se a isso? É seguro que não, se quisermos bem considerar
que o significante com seus arranjos não é só causal, mas igualmente causa-
do. Eu poderia reutilizar a metáfora freudiana, diferenciando a respeito do
trabalho do inconsciente o empresário que maneja as regras de fabricação,
mas que não serve para nada sem aquele que traz o dinheiro, o investidor;
portanto, sem o qual não haveria nada, nem sequer o menor sonho, sem
falar dos sintomas. É o que Lacan busca encontrar e que ele nomeia com
diversos termos ao longo do tempo, ali designando a cada vez o alvo da
interpretação.
O primeiro desses termos e que marca uma escansão forte é a Coisa.
A Coisa, como núcleo inamovível do ser, que nenhum significante repre-
senta mas que pode ter um nome próprio; depois o objeto, como causa
central, que ele aliás escreverá a acoisa [fachose] com um apóstrofo; depois,
finalmente, o falasser. São outros tantos nomes de um sujeito real, que
responde hic et nunc, em sua presença digamos, libidinal ou gozosa, e que
l l i 11 e o 11 sei ..J 11 te, r ~ t1 / 29

o seminário Os quatro conceitosfondamentais da psicanálise situava por sua


separação da cadeia.
Entretanto, essa presença não é disjunta da fala, pois essa coisa fala,
ela fala verdade, não pode sequer fazer de outro jeito ainda que minta, mas
não pode dizer verdade sobre o real, sobre o que ela é de real, embora a
verdade \,ise o Real. Daí a fórmula de "O aturdito" que escande ao inverter
a tese primeira da regência do Simbólico, cito: "O dizer vem de onde o Real
governa a verdade". É uma inversão que substitui a hipótese do Simbólico
mestre pela de um Real mestre que governa o sujeito. Daí o título que utilizei
em 1997, "Os mandamentos do gozo":-.
Essa reavaliação desloca a concepção do próprio Real ao sancionar a
impotência da linguagem em fazer outra coisa que fixão [fi(x)ion] de Real, se
posso dizer utilizando um jogo de escrita de Lacan. Assim, o Real se desdobra,
eu disse, entre o Real próprio ao Simbólico e o Real fora do Simbólico que
só o nó borromeano permite inscrever. O primeiro se reduz aos impossíveis
aos quais o Simbólico preside. Primeiramente, o umbigo impossível de ser
eliminado do sujeito da ciência (- 1) que acabo de evocar. Recomendo, sobre
esse ponto, a obra de Gabriel Lombardi, A aventura matemática. Liberdade
e rigor psicótico8 , dedicada a Cantor, Godel e Turing, que estuda de muito
perto essa questão da cicatriz real do sujeito, ineliminável de toda ordem
linguageira. Em seguida, o impossível de escrever do sexo, digamos sem
jogo de palavras, o menos dois do parceiro que faria relação sexual. Enfim,
com o nó, Lacan busca um esquematismo que permita abordar a clínica do
"sujeito real". Ele diz isso de modo explícito, tive a oportunidade de nisso
insistir várias vezes. Esse sujeito que não faz somente furo na cadeia, que
não é tampouco apenas mentalidade, pois que tem substância de corpo - a
saber, o falasser, seja qual for sua estrutura clínica, digamos o homem no
sentido genérico, the individual, precisamente de acordo com a expressão
aplicada a Joyce 9.

C. Soler, "Les commandements de la jouissance", julho de 1998, inédito.


G. Lombardi, L'auenture mathématique. Liberté et rigueur psychotique (Cantor, Gode!, Turing),
Paris, Le Ch,tmp lacanien, 2005.
J. Lacan, "Joyce le symptôme I", Joyce avec Lacan, Paris, Navarin, 1985, p. 28.
RL'MO AO REAL

D ei um salto da estrutura de linguagem ao nó borromeano para marcar


os suportes da trajetória lacaniana, mas ela só é inteligível e funda-
mentada se a entendermos passo a passo.
É na medida em que a psicanálise, como prática de fala, mobiliza o
Imaginário e o Simbólico, ou seja, o campo dos semblantes, que o Real nela
levanta um problema, e que podemos nos perguntar, como Lacan afinal
formulou, se não é um delírio a dois. A questão evidentemente é capital.
Do Real que poderia surgir na fala e pôr um termo na deriva infinita
tanto da decifração quanto do sentido Lacan formulou três sucessivas ela-
borações que, aliás, encetam três definições do passe final da análise e não
uma única. O que anima a busca?
Não podemos nos contentar, nessa questão, com a tese, que está
hoje mais ou menos em curso, segundo a qual todas essas formulações são
outros tantos esforços para pensar os arranjos entre o significante e o gozo.
Esses arranjos são com certeza remanejados conforme vêm, mas a questão é
antes esta: por que não se ater à primeira construção consistente sobre esse
tema, a do objeto a, amplamente aceita na década de 1960? Ela já permitia
repensar toda a experiência a partir da economia do gozo pelo fato de que
esse objeto, para dizer de modo condensado, é a um só tempo o efeito de
linguagem maior que mortifica o gozo e o resto que condiciona todos os
nossos mais-de-gozar. Com esse objeto, Lacan escreve a um só tempo o gozo
que falta - digamos: o objeto perdido de Freud - e aquele que há mesmo
(___) i 11 e o 11 s e i 2 n te, r e a / 31

assim, que condensam os objetos mais-de-gozar. A "destituição" de fim de


análise ficava esclarecida, e o dispositivo do passe fundado, como mostra
''A proposição sobre o psicanalista da Escola" em 1967.

O Ql'E FAZ Fl':\'Ç),0 DE REAL

Armo-me aqui de uma frase de "Radiofonia" que me parece especialmente


instrutiva uma vez que evoca a relação da verdade com o Real. A verdade
que fala e que se articula em cada análise, o que Yisa ela? Ela se situa por
"supor o que faz função de real no saber, que a ele se acrescenta (ao Real)" 1º.
Vemos o desdobramento da noção de Real: um Real interno ao Simbólico
e um Real ao qual o saber se acrescenta. Nos dois casos, é claro que não é
o saber inconsciente que é dito real.
No início, o saber inconsciente é mesmo tão pouco pensado como Real
que é simplesmente "suposto". É a definição da transferência: o distúrbio
- digamos: o sintoma, seja qual for - que leva à análise e que podemos es-
crever por um significante que Lacan nomeia significante da transferência, S,
uma vez que é dirigido à análise, faz supor que existem outros significantes,
inconscientes, que podem lhe dar sentido. E, de fato, a decifração com seus
efeitos permite dar como certa a suposição, pelo menos parcialmente, mas
não permite concluir sobre o inconsciente que ele é real.
Por outro lado, o que faz função de real no saber são, digamos, as
"negatividades" da estrutura. Esse termo é uma maneira de designar aquilo
que a estrutura de linguagem torna impossível. Essas barreiras são, em con-
sequência, trans-estruturais e programam limites inevitáveis da elaboração
analítica que equivalem a Real no Simbólico.
O primeiro impossível que Lacan situou deve-se à incompatibilidade
da fala e do desejo, que faz do desejo um significado articulado, por certo,
mas inarticulável. O objeto que o causa, embora esteja encarnado em quatro
"substâncias episódicas" 11 - oral, anal, escópica e invocante-, nem por isso

tu J. Lacan, "Radiophonie", SciLicet 213, Paris, Le Seuil, 1970, p. 95.


ll J. Lacan, "No,es ,tux Icaliens", Autres écrits, Paris, Le Seuil, 2001, p. 309.
32 Lacan, o i11ct.'>11scienle rcinventa)o

é menos ... impossível de dizer. É nesse sentido que o objeto podia ser posto
na conta do Real, como Lacan durante um tempo fez. Em outras palavras,
a verdade articulada é impotente em dizer o real que a comanda: ela nunca
conclui, mas se obstina. É recalcada, volta, é amordaçada, fala em outro
lugar, pedem-lhe a palavra final, a última palavra como eu me exprimia
há pouco, ela semidiz. Entretanto, sua insistência reiterada abre uma vista
para o real da causa inominável que a anima. Assim, Lacan primeiro fez da
fantasia aquilo que faz função de real pelo impossível de dizer desse "objeto
que falta", que "não temos mais" embora engendre os mais-de-gozar por
onde o desejo se articula ao gozo. Recorrendo à lógica, ele o homologou a
um axioma cuja constância indedutível faz o núcleo de tudo o que se pode
articular do inconsciente e que a análise permitiria perceber... num clarão.
Isso ainda não fazia um saber do impossível, mas, ao contrário, um
"saber vão de um ser que se furtà' era o veredicto em 1967. "Saber vão de
um ser que se furtà' é bem um limite que pode fazer má surpresa numa
prática em que a transferência, para além das esperanças terapêuticas, nos
seduziu com a perspectiva do saber. Não há saber do objeto a, no entanto
o induzimos a partir do que é constatado do desejo, imaginamo-lo corpo-
ralmente, oralmente, excremencialmente* ... , mas a psicanálise não pode ser
uma ciência do objeto 12 •
No passo seguinte, Lacan busca o que faz função de real no saber,
tomando por modelo a lógica e os impasses da formalização. Recorre, então,
não à indução como para o objeto a, mas à escrita, mais precisamente ao
impossível de escrever. O que anuncia um passe e uma conclusão de fim
por demonstração lógica do impossível, cujo postulado é que, através do
dizer analítico, algo se escreve. Com a questão de saber, com certeza, o que
quer dizer "escrever-se" numa prática que não tem outro instrumento a
não ser a fala.
Uma junção da fala com o Real, e não somente com a verdade, é
ali suposta. Pela conversa mole algo real é alcançado, dirá Lacan. O dizer
da análise deixa rastros de escrito que são relativos ao discurso analítico. E
Lacan reformula a definição clássica das modalidades lógicas - o possível, o

* Em francês, chialement, de chier, cagar. (N.T.)


12 Cf. sobre esse ponto "La science et la vériré", Écrits, Paris, Le Seuil, 1966, p. 863.
33

contingente, o necessário e o impossível-, nelas incluindo o tempo: tempo


daquilo que cessa para o contingente e o possível, ou tempo daquilo que
não cessa para o necessário e o impossível. O que "cessa de não se escrever"
é a definição da contingência. A expressão marca que a análise não explora
apenas, como às vezes se imagina, o "já-ali"*, pois produz o inédito, que
enfim se escreve. O ''que não cessa de não se escrever" numa psicanálise é
o impossível que faz as vezes de real.
O que é, pois, que cessa de não se escrever pela corrida à verdade
sempre semidita, pela miragem inacessível, se não os rastros de sua impo-
tência? É que por estrutura a linguagem só escreve um, e até um sozinho.
É o Um sob todas as suas formas: os Uns que o inconsciente cifra, Um do
gozo fálico, isto é, que caiu sob o golpe de uma castração e "que faz função
de sujeito" 15 , o um do dizer do Um sozinho. Daí o famoso "há Um", Um
e nada mais, escandido por Lacan durante um ano inteiro. A análise não
tem outro produto.
Essa contingência insistente do um que não cessa de se escrever de-
monstra indiretamente o real "próprio" à cifração do inconsciente, ou seja,
o impossível de escreYer o dois que seria do sexo, o dois que não há, que
"não cessa de não se escrever", tão "inacessível" quanto o dois da série dos
números inteiros, aquele na falta do qual "não há relação sexual", não há
relação entre o gozo Um e o Outro. Com isso, a fantasia com seu objeto
surge como um suplemento imaginário ao Real, à foradusão da relação.
Sua demonstração não se faz no papel, mas na cura, no caso por caso
pelo questionamento precisamente da vida amorosa. Demonstração especial,
não melhor fundamentada, diz Lacan 14 , por insistência, e que dura até que
esse Um reiterado valha pela demonstração do dois impossível. Eu poderia
dizer que é uma passagem** ao Um e nada mais, ou também uma passagem
ao não há dois, com o equívoco da expressão***.

Du déjà-là, jogo com a expressão déjà-vu. (N.T.)


]. Lacan, " ... ou pire", Scilicet 5, Paris, Le Seuil, 1975, p. 9.
]. Lacan, "lmroduction à l'édition allemande des Écrits", Scilicet 5, Paris, Le Seuil, 1975, p. 17.
' · Em francês, passe au Un, literalmente "passagem ao Um". Sempre que houver essa tradução
da palavra passe por "passagem" anotaremos no texto. (N .R.)
'· · Duplo sentido cm francês: Une passe "au pas de deux": "uma passagem ao não há dois", mas,
:§:ualmente, passagem ao pas de deux do balé, uma vez que pas, advérbio de negação, e pas
, ..1bstantivo penricem o equívoco. (N .T.).
34 Lacan, o i11cvnscieJJte reincentc.1,:/0

Vemos que, até ali, não há inconsciente real, apenas o que faz função
de real.
Durante muito tempo me perguntei o que fundamentava o passo,
dado no Seminário Mais, ainda, que fez Lacan passar do acento colocado
durante anos na estrutura de linguagem, sua lógica e sua topologia ao acento
colocado nos efeitos de alíngua escrita numa só palavra, com a tese, inaudita
em relação ao que precede, do inconsciente "lucubração de saber" 1". Trata-se,
ele precisa, do inconsciente "situado por sua decifração", aquele, portanto,
que tentamos apreender a partir do trabalho de associação sob transferência
e que ele colocou que é "estruturado como uma linguagem".
Noto que esse novo capítulo é estritamente contemporâneo de seus
primeiros recursos ao nó borromeano e que se segue imediatamente também
ao acento colocado já em 1970, com "Lituraterre", na função da escrita
como modo outro do falante. Essa conjunção não é casual.

O C,\lBIGO

Minha hipótese é que Lacan é conduzido mais além em sua concepção do


inconsciente por suas elaborações da estrutura de linguagem. Uma fórmula
decisiva nesse encaminhamento, datada do "Resumo sobre 'O ato analíti-
co"' de 1969, diz: o inconsciente é "saber sem sujeito" 16 • Ela é simétrica à
noção do "sujeito suposto saber" que define a crença transferencial. Eu a
considero uma espécie de umbigo que fundamenta tudo o que se reelabora
mais além.
O inconsciente é um saber, por certo, uma vez que se decifra. Mas
por que sem sujeito? Por causa da estrutura linguageira: o significante, que
escrevemos S 1 , nunca pode representar o sujeito senão para outros, a escrever
S2 , saber justamente. Ali onde Lacan havia escrito, já há muito tempo, o
enodamento em cadeia dos significantes, S 1 ~ \ , enodamento que parecia
apropriado para dar razão ao que se engendra de sentido entre interpretação

1' J. Lacan, Encore, Paris, Le SeuiL 19~5. p. 127.


16 J. Lacan, "Compre rendu sur Tacte analytique"', Omicar?, 29, Paris. :'.'(a,·arin. 1984, p. 19.
L) inccns.:i,211f.z, teaf 35

e associação livre, ele traz à luz um impossível: a impossível copulação do


ou dos representames do sujeito com o saber. Esse impossível é imputável à
estrutura basicamente diferencial do significante, que só é isolado como um
por sua diferença com outros. Jakobson abriu o caminho com sua fonologia
nesse nível do significante que é assemântico. Em consequência, a estrutura
de representação do sujeito é recorrente: seja qual for o significante que o
representa, ele o deixa irremediavelmente separado dos significantes outros.
Logo, é preciso dizer, a despeito de Freud: "Ali onde era o saber sem sujeito,
não posso advir". Os significantes do inconsciente não fazem cadeia com
os do sujeito, o que Lacan formula finalmente, recusando suas primeiras
formulações.
Um inconsciente "saber sem sujeito", como seria o do sujeito se não
pela mediação daquilo que, na estrutura, não é linguagem - a saber, a subs-
tância gozosa do corpo, do corpo que ele tem, o sujeito, e que é necessário
para gozar? Esse inconsciente pode ser dito do sujeito, pois seus significantes
são aqueles que são extraídos de seu sintoma por decifração. Se, antes de
serem decifrados, eles não o representam, pelo menos afetam seu gozo como
acontecimento de corpo.
É esta a hipótese lacaniana, acentuada em 1973 no fim de Mais, ain-
da-'-, mas que me parece ser solidária à própria noção do "saber sem sujeito"
que Lacan formulou bem antes. Ela coloca que o próprio significante está no
nível do gozo, que ele é "o aparelho do gozo" 18 , que o vivente é seu "ponto
de inserção", como ele diz já no início do seminário O avesso da psicanálise.
Em outras palavras, mais que o objeto, o "saber sem sujeito" é o aparelho do
gozo, que preside tanto aquele que existe quanto aquele que não existe.
Em consequência, questão. De onde vêm esses significantes intrusos
que não são os 5 1 que representam o sujeito, esse sujeito cujo "ser está sempre
em outro lugar" 10 ? A referência à allngua dá a resposta: de nenhum outro
lugar a não ser da língua, onde a bateria do significante em sua estrutura
diferencial é dada, sem criar linguagem. O "saber sem sujeito" impõe o acento

- J. Lacan, Encare. Paris, Le SeuiL 1975, pp. 129-130.


!bid., p. 52.
lbid., p. 130.
3Ó L <.1 e <1 11, (.1 i 11 <..<.'ln s <." i n f (._~ r (._~ i n l' (._~ 11
l.~ , <7 / . 1

colocado em alíngua, a ser escrita numa só palavra, que é o lugar de onde


os significantes diferenciais podem passar à linguagem. Para isso é preciso,
é claro, que o significante Um, não qualquer, seja extraído e se diferencie
dos uns entre outros de alíngua.

OS DOIS INCONSClE:--:TES

Em consequência, a noção do saber inconsciente se divide. Lacan emprega


o termo "lucubração", que é pejorativo, para dizer que o inconsciente deci-
frado em termos de saber permanece sempre, em primeiro lugar, limitado
- dele só se sabe um pedaço - e, em segundo lugar, hipotético do ponto de
vista do saber depositado em alíngtta, que, este, é inconquistável. Cito: de
saber alíngua "articula coisas que vão muito mais longe que aquilo que o
ser falante suporta de saber enunciado" 20 • E Lacan conclui de modo mais
geral que a linguagem não existe, que é o que se tenta saber sobre a língua,
até na linguística, que ele acabará, bem no final, também colocando na
conta da lucubração - em outras palavras, na conta do "delírio" de visada
científica.
É preciso entender que essa disparidade afirmada dos dois saberes,
saber de alíngua e saber decifrado em linguagem, não seria concebível sem
a estrutura diferencial do significante - caso contrário, a tese pareceria ela
mesma lucubrada. O ato de decifrar consiste em extrair um significante ou
uma série de significantes do material analisante sobre o sintoma. Lacan
formulou isso de modo explícito: pela decifração, um significante insabi-
do do saber que não representava o sujeito, mas que regrava seu gozo no
sintoma, um S2 , portanto, quer o chamemos signo ou letra - em outras
palavras, um significante causa e objeto de gozo-, torna-se S 1 , significante
reconhecido como mestre de seu gozo. Registramos aí uma mudança de
estatuto do significante mestre. Esse significante "encarnado", S 1, se distin-
gue dos S 1 tomados ao Outro do discurso, que vão dos Ideais do Outro ao
falo, mas também se distingue dos outros significantes de alíngua, pois a

20 Jbid., p. 127.
37

estrutura da representação desse S, novo junto ao saber não é reduzida pela


decifração, ela é recorrente.
É o que inscre\·e o seguinte esquema: (5 1 (5 1 (5 1 ~ (52)))) 21 • Ele
é o homólogo do lado inconsciente daquele da divisão do sujeito com o
saber.
O sujeito Seu inconsciente

s S. o saber inconsciente
s
(5. (S. (S. -j (5))))
~
l 1 '- l.L:ifr.11..i<J o~ . Jl· ,dl11g11,1

Em consequência, alíngua aparece como a grande reserva de onde a


decifração extrai apenas uns pedacinhos. Vai ser preciso lembrar-se disso a
?ropósito da identificação com o sintoma, o inconscienre-alíngua permanece
saber inconquistável, cujos efeitos nos superam .

. d., p. 130.
ÀLÍNGUA, TRAVJ\lATICA

P or que escrevê-la numa só palavra? As referências são numerosas 22, e


Lacan se justificou: é em razão da homofonia com "lalação". "Lalação"
vem do lallare latino que designa o fato de cantar "la, là', dizem os dicio-
nários, para adormecer as crianças. O termo também designa o arrulho
da criança que ainda não fala, mas que já produz sons. A lalação é o som
disjunto do sentido; no entanto, como se sabe, não disjunto do estado de
contentamento da criança.
Aqui, um pequeno parêntese. Uma observação da conferência "Joyce,
o sintoma", aparentemente enigmática, e até pouco séria, se esclarece25 • Fa-
lando do sintoma como acontecimento de corpo, ele o diz "ligado a que: a
gente tem, a gente tem ares de, a gente areja a partir do a gente o tem. Isso
pode até ser cantado"* O implícito dessa observação é o laço de alíngua, se
posso dizer, e do corpo sintomático.
A alíngua evoca a língua emitida de antes da linguagem estruturada
sintaxicamente. Lacan diz, aliás: alíngua, numa só palavra, isto é, a língua
materna - em outras palavras, a primeira ouvida, paralelamente aos primeiros
cuidados do corpo.

22 As referências são numerosas: Afaís, ,1i11da, Te!euisiio, ".-\ terceira" (fim de outubro de 1974),
RSI (1974-1975), A conferência de Genebra (outubro de 1975), in O bloco de notas da psi-
canálise, nº 5, O sintoma (1975-1976). :dais algumas obsen·ações ulteriores em 'Tinsu que
sait d'l'une bévue s'aile à mourre" e "O momento de concluir".
23 J. Lacan, Joyce avec Lacmz, Paris, :'-Janrin, 1985. p. 35.

* No original, há homofonia: ''!'011 !'a, !'011 !'a l'air. !'on l'aire, de !'on !'a". (:'-J.T.)
(l inL-L..,1l5L-i.::nt2, r2a/ 3Q

Segunda razão: uma única palavra no singular designa uma função


que não deve ser confundida com a multiplicidade das diversas línguas no
sentido dos idiomas. ~ão se pode separá-las por completo, e é possível falar
das afínguas numa só palavra, pois em cada língua, enquanto distinta das ou-
tras, é encontrada uma função de alíngua como função translinguística.

O que distingue alíngua das línguas é que o sentido não está ali. Televisão
formula isso: a língua só dá a cifra do sentido, pois cada um de seus elemen-
tos pode tomar qualquer sentido. Eis por que Lacan pode dizer em outra
parte que alíngua nada tem a ver com o dicionário 24 • Ora, justamente, toda
língua se garante pelo dicionário. O dicionário recenseia os elementos um
por um - digamos: os significantes - e indica os sentidos que o uso fixou,
citações para confirmar. O fato de o sentido vir do uso prova bem que toda
língua vem do discurso - a saber, daquilo que se disse, dicção, num dado
laço social, sempre historizado. As citações 1o dicionário são o recurso ao
uso, e até ao uso autorizado. Passo por cima dos outros usos, que se definem
por não serem autorizados, das diferentes slangs, gírias, e do que é chamado
os níveis de língua, que correspondem ao fato de que os laços sociais nunca
são homogêneos e o uso varia em função das classes, dos meios, da instru-
:ão, etc. O que chamamos uma língua viva é uma língua em evolução. O
dicionário, ao introduzir palavras e novas locuções, ao abandonar as palavras
,)bsoletas, etc., tenta fixar a configuração do atrelamento entre as palavras
~ o sentido delas num dado momento. Dizer que alíngua nada tem a ver
:om o dicionário é justamente dizer que falta em alíngua esse atrelamento
Jas palavras e do sentido convencionado delas.
Logo, diferentemente do Simbólico, alíngua não é um corpo, mas
-1ma multiplicidade de diferenças que não tomou corpo. Não há (- 1) de
.z/íngua que faça dela um conjunto. Não há ordem em alíngua. Ela não

]. Lacrn, Sémimire ·· ... ou pire", inédito, aula de 1° de abril de 1971, § 16.


40 Lacan, o inconsciente reinrentGJo

é uma estrutura, nem de linguagem, nem de discurso. Para a primeira, a


linguagem, é o par ordenado do sujeito que a inscreve S 1 ~ S2 • Ela está
no fundamento da transferência como laço com o sujeito suposto saber
e estrutura igualmente a associação livre e todos os seus efeitos de senti-
do. Para o segundo, o discurso, é o semblante escrito no alto à esquerda
nos maternas que Lacan produziu que ordena o laço social. Logo, todo
discurso é uma ordem. Não é o caso de alíngua, que é o nível a-estrutural
do aparelho verbal. Seria possível dizer que alíngua é uma proliferação
pulverulenta? Não, pois isso não designaria a própria alíngua, mas um
uso fora de discurso de alíngua. Alíngua é antes, cito, a "integral dos
equívocos" possíveis, que no entanto não faz um todo.
Daí o problema que Lacan levanta de saber como passamos desses uns
de pura diferença ao significante Um, com uma maiúscula, S 1, talvez até ao
enxame que ele pode formar, e que acabo de evocar, como novo significante
mestre inscrito no campo do gozo. Onde encontrar o elemento unidade?
Jakobson havia sublinhado que o fonema é uma unidade diferencial que
não tem sentido. Mas a palavra tampouco, observa Lacan. Qualquer palavra
ouvida, já que alíngua vem do falar-ouvido, pode tomar qualquer sentido.
Exemplo famoso: "Nom-du-Pere" [Nome-do-Pai] e "non dupe e1Te [Não-tolo
erra]", que só a escrita [em francês] distingue. Alíngua é feita de uns que
são significantes, mas no nível básico, da pura diferença. Em consequên-
cia, o Um encarnado em alíngua, sublinho encarnado, aquele que está em
coalescência com o gozo e não só um entre outros, esse Um, cito, "é algo
que permanece indeciso entre o fonema, a palavra, a frase, talvez até todo
o pensamento" 25 • É todo o problema das incertezas da decifração. É certo
que Lacan vai falar da letra uma do sintoma, a isso voltarei, mas "indeciso"
quer dizer que não é possível identificar esse Um com certeza. Em outras
palavras, não se sabe. O inconsciente-alíngua tem efeitos no nível do gozo,
mas permanece, no essencial, insabido.

25 J. Lacan, Encore, Paris, Le Seuil, 1975, p. 131.


(1 ; 11 e L, 12 sei e ,1 t 12. r i2 1..1 / 41

Entretanto, alíngua está ligada aos discursos. Cito "A terceira" 26 : alíngua
"é o depósito, o aluYiáo, a petrificação que se marca pelo manejo, por um
grupo, de sua experiência inconsciente". A experiência inconsciente implica
o efeito da fala e do discurso sobre o corpo substância. É o que o discurso
ordenou e Yeiculou de gozo num dado laço social, sempre histórico, que faz
depósito numa língua. E quando digo que o discurso inclui as produções
mais banalizadas, as mais comuns de um discurso, tanto quanto as inven-
ções mais sublimadas e as mais originais da poesia e da literatura, aqui se
enxertaria a questão, à qual virei em seguida, do discurso privado por onde
o sujeito se constituiu.
logo, poderíamos pensar que uma língua é permanentemente en-
gravidada pelo gozo que agencia a fala e seus significantes gozados . .\las
um termo como "engravidada", que evoca a vida, seria impróprio. Cma
língua é antes um cemitério. Traduzo, assim, o que Lacan nota: até dita
viva, até quando está em uso, uma língua é sempre uma língua morta,
pois é, cito, "a morte do signo que ela veicula" 27 • O que ela recolhe é o
gozo que passou ao signo, ou à letra, o gozo mortificado, portanto, que "se
apresenta como árYore morta". Cemitério, mas em reatualização constan-
te, aliás como os verdadeiros cemitérios. Novos signos ali são admitidos,
signos que eu preferiria dizer excorporados a partir das experiências vitais.
Estas, passando ao verbo, secretam novas palavras, locuções, equívocos,
os quais não esperam nenhum dicionário para estar em uso, a despeito
dos acadêmicos, e "em uso" quer dizer "uso de gozo". Outros signos, ao
contrário, caem em desuso, são eliminados, pois impróprios à atualidade
dos gozos; logo, fora de uso. A língua morreu, mas ela vem da vida, e todo
o problema é, portanto, saber como uma língua morta pode operar sobre
o vivente, traumaticamente.

u, J. Lacan, '' La miisieme'', Lettre de !'Écofe freudienne, nº 16, novembro de 1975.


27 Ih/d.
42 Lacun, o inconsciente r2in1:cnta),_1

OS EFETOS DE ALÍ0'.GC.\

Alíngua é saber inconquistável, mas não sem efeitos, caso contrario não
haveria razão para se interessar por isso. Esses efeitos são afetos: alíngua
afeta o gozo.
Essa tese se distingue da questão do gozo de alíngua. O fato de po-
dermos gozar de alíngua é garantido pela existência do poeta, dos letrados
em geral e também do esquizofrênico, que se desobriga do simbólico mas
não de alíngua. A prova pelo último Joyce.
O que nos garante do fato de que alíngua afeta o gozo vivo do ser que
fala? Como sabemos isso? É preciso colocar bem essa questão, já que a tese
está longe de ser unanimidade. O século xx, chamado século da linguagem,
não é o século dos efeitos da língua; pelo contrário, paradoxalmente, já que é
crença de que a própria linguagem seria produto do cérebro. Vejam Chomsky
e tantos outros partidários do homem neuronal. Assim, peço aos textos de
Lacan que respondam à questão: o que prova que alíngua, em sua diferença
em relação à linguagem, afeta o vivente. Ponho em série os argumentos.
Que a experiência, com seus gozos vividos, convenha à alíngua, é
seguro, já que uma língua evolui em função das comunidades de vida.
Interessante, a esse respeito, o problema atual do inglês e as dificuldades
maiores de tradução entre o inglês da Inglaterra, dos Estados Unidos e da
Austrália. Sem esquecer o quarto, desastroso se quiserem, mas significativo
para nós, esse inglês internacional, reduzido a seu uso de comunicação, para
o que ele é feito, mas ao preço de um empobrecimento que salta aos olhos
em relação aos ingleses que acabo de evocar. Esse próprio empobrecimento
mostra que a função de comunicação não é nem primeira nem fundamen-
tal, e que uma língua na verdade evolui ao recolher as palavras surgidas
do existencial. O afeto no sentido do indizível vivido cria palavra. Tese já
presente em "Questão preliminar a todo tratamento possível da psicose".
Também seria preciso estudar o fracasso do esperanto. Era um esforço para
desprender a língua diplomática dos poderes nacionais e criar uma língua
politicamente neutra. Seu fracasso deve ser visto em comparação com a
escalada desse inglês internacional que, por mais empobrecido que seja, não
é, ele, politicamente neutro.
ll i n e L1 n ~ e ; .: 11 t ,2 • r ~ 1..1 / 43

.-\ PRC'\.A PELO AFETO

Outro argumento vindo de }vfais, ainda, mais ligado à experiência analítica.


Eu poderia intitulá-lo "a prova pelo afeto".
É sabido que os efeitos da língua ultrapassam tudo o que se pode
saber deles, exceto que o ser falante apresenta todas as espécies de afetos que
permanecem enigmáticos, diz Lacan. Aviso para aqueles que imaginam que,
no fim de uma análise, o sujeito não conheceria mais afetos discordantes,
mas apenas afetos simônicos à situação do momento. O que nunca foi a tese
de Lacan: no final, o sujeito permanece "sujeito a afetos imprevisíveis'' 2~.
Um desses detos ("efeto" condensa "efeito" kffet] e "afeto" [ajfect]) é
outra satisfação, ligada ao blablablá. O que satisfaz, ou se satisfaz estranha-
mente, uma vez que algo se diz e não se diz, e sem que se saiba por quê.
Nada a ver com a satisfação da comunicação, do pseudodiálogo. Disso temos
o testemunho, por exemplo, no fato, amplamente atestado na análise, mas
igualmente na experiência de cada um, de que um sonho pode mudar por
completo o humor de uma pessoa, o estado de ânimo, pelo dia inteiro, num
sentido ou no outro, aliás. Um lapso pode nos deixar felizes ou nos abater
por completo, independentemente de suas consequências, etc. A satisfação
evidentemente não é o gozo. É um fenômeno do sujeito afetado pela fala,
não um fenômeno do corpo. Ela "responde", porém, é o termo de Lacan,
ao gozo, mais precisamente ao saber gozado de alíngua acolhido pela fala. A
imprevisibilidade enigmática do afeto - eu poderia dizer: sua discordância
- é aí um signo, a se crer em Lacan, de que sua causa está no saber gozado
de alíngua, saber que supera tudo o que disso se sabe.
Há aí um acréscimo capital à tese clássica da psicanálise sobre o afeto.
O afeto não é nem um instrumento da decifração, nem uma bússola para
a interpretação, digo isso com frequência. A tese é freudiana, ligada à sua
concepção do recalque: o afeto não é confiável porque deslocado. E "não
confiável" quer dizer: ele não garante saber inconsciente. Paradoxo, já que,
para o sujeito afetado, nada mais pregnante que o que ele experimenta e
facilmente confunde com sua verdade. Lacan levou adiante a tese; para o
afeto a metonímia é de regra, mas aqui é um aspecto bem diferente que é

:, ]. Lacrn, "Discou,s à l'EFr", Scilicet 2-3, Paris, Le Seuil, 1970, p. 26.


44 Lacan, o ,"nconscii::-nte rei11rcnt . .1d,-1

trazido à luz: o afeto enquanto enigmático justamente adquire uma força de


testemunha epistêmica. Ele por certo não garante um saber, mas faz signo,
signo de que um saber insabido está ali, e o causa. Estamos no registro da
prova pelo afeto.
Lacan estende aí aos afetos do blablablá, nomeados "outra satisfação",
o que afirmou a respeito do afeto de angústia no seminário que lhe dedicou.
Ali reconhecia, desenvolvi isso amplamente, um afeto de exceção, o único
que tinha um valor epistêmico justamente, assinalando na experiência a
presença do objeto a do desejo enquanto objeto a-fenomenológico. Com
essa apercepção, aliás, ele prestava homenagem a Kierkegaard, contra a toda
confiança de Hegel no saber absoluto. Com efeito, a experiência de angús-
tia surge nas conjunturas em que, confrontado com o enigma do Outro,
o sujeito se vê em via de se reduzir a esse objeto, ameaçado, portanto, pela
iminência daquilo que chamei uma "destituição subjetiva selvagem". Anos
mais tarde, Lacan, levando em conta o Real fora do Simbólico, amplia ainda
sua função e a redefine como "o afeto-tipo de todo advento de Real" 29 •

A PRO\',\ PELO TI~,\ T,\ :'sl E NT('I D O ST NT0 ê>L\

O argumento principal, a meu Yer o mais elaborado, para estabelecer os


efeitos de alíngua encontra-se, no entanto. em sua conferência de Genebra,
de 1975, e ali é antes a prou pelo tratamento do sintoma.
O fato de se poder mo\'er o gozo do sintoma pelo \'erbo, primeiro
passo da experiência analítica, permite supor que é no ·'encontro das palavras
com [o] corpo que algo se desenha''. Com efeito, deve-se bem supor uma
coerência entre o método que opera sobre o sintoma e o momento em que
este se constitui. Trata-se de ligar o fato de que, de um lado, é numa época
precoce da infância que se cristalizam os sintomas e de que, do outro lado,
não analisamos sem as associações do sujeito'º.
O método em questão é aquele que Freud inventou e expôs na série
dos textos em torno de A interpretação dos sonhos, Psicopatologia da vida co-

29 J. Lacan, "La troisíeme'', Lettre de l'École Jreudiemze, nº J 6. novembro de 1975.


30 J. Lacan, "Conférence de Geneve sur !e symprôme", Le B!oc-notes de la psychmza{rse, nº 5,
1985, pp. 1O e segs.
LI i n ,: l .... 11 ~ L- i.: 11 i ._... 1· .... 1.1 /

tidiana, O chiste e sua interpretação. Passa não pelos símbolos ou arquétipos


do discurso, como acreditava Jung, mas pelas associações próprias do sujeito,
sempre singulares. É sobre o falar do sujeito que a interpretação se apoia.
Ora, pelo que lembramos de Freud, se lermos os parágrafos dedicados
ao sentido dos sintomas na Introdução à psicanálise, este só se interpreta cor-
retamente - "corretamente" quer dizer: com efeitos de redução do sintoma
- em função dos primeiros encontros com a realidade sexual. O fato de o
verbo e o sexo serem as duas forças conjuntas de uma interpretação eficaz
permite concluir com wrossimilhança que há "coalescência" entre esses dois
dados fundamentais.
Eles representam duas heteridades distintas. Daí por que Lacan
acrescenta alz'ngua, traumática, ao trauma do sexo que, este, é de origem
freudiana' 1 •
Ames de mais nada, a realidade sexual. Freud a chama autoerótica e
Lacan a isso se opõe. Trata-se do encontro com a ereção, o pequeno pau.
"Encontro" quer dizer que ele não é autoerótico, mas heter(o)-, estranho.
Primeira experiência de um gozo anômalo em relação ao corpo e que, diz
Lacan, estoura nas telas (referência a Mishima, que ficou tão espantado
com isso). Ele estoura nas telas porque isso não vem do interior funcional
da tela, ela antes silenciosa. Ele é, na oportunidade, objeto de uma rejei-
ção, quando o sujeito se borra de medo, como o pequeno Hans, e faz, por
exemplo, uma fobia.
Lacan dá muita importância ao fato de, antes desse mesmo período
precoce, a criança receber o discurso. Mas atenção, não é aprendizado. É
impregnação. "O inconsciente foi a maneira que teve o sujeito de ser im-
pregnado pela linguagem, de trazer-lhe a marca". O termo exclui o domínio,
a apropriação ativa, a discriminação. Ele designa essa coisa estranha, mas
que constatamos sem dúvida alguma possível: antes de poder fazer suas
frases o sujeito reage corretamente a expressões complexas, que no sentido
próprio ele não compreende e não sabe manejar, há como que uma bizarra
sensibilidade. Dessa receptividade à outridade de alíngua, daquilo que ele

" C. Soler. ''La!angue, rraumacique", Reuue des Colleges cliniques du champ lacaníen, nº 7, março
J~ 2'.JOS.
46 La e a 11, o ; n e o n sei ente rei 11 l.' e 11 ta d L~

chama a "água" da linguagem, permanecem, cito: "alguns detritos". A água


da linguagem conota a fluidez, o continuum sonoro do ouvido a-estrutural.
Detrito, destroço, em outro lugar ele disse depósito, todos esses termos
designam elementos esparsos, discretos, tomam por referente um aquém
do manejo dos pontos-de-estofo. O destroço é Real, fora de sentido, sob a
forma do Um sonoro, recebido do que foi ouvido. Pois não esqueçamos que
a linguagem se adquire pelo ouvido. E são, cito, "destroços aos quais bem
mais tarde vão se acrescentar os problemas daquilo que vai assustá-lo".
A lalação, a melodia, o barulho dos sons desprovidos de sentido, mas
não de presença, operam antes do capitonamento [capitonnage] da lingua-
gem. O que, evidentemente, coloca a questão daquilo que os sujeitos que
não têm acesso ao som, os surdos, encontram como substituto, e é preciso
bem que o encontrem, já que eles têm acesso à linguagem.
Coalescência entre a impregnação pelo discurso e o momento de
encontro do sexual, aqui o fálico. "É na maneira como alíngua foi falada e
também ouvida para tal ou tal em sua particularidade que algo em seguida
sairá novamente em sonhos, em todas as espécies de tropeços, em todas as
espécies de maneiras de dizer". É esta a "moterialidade* do inconsciente",
que dá razão ao sintoma.

O INCONSCIENTE IIOLOfR.\.:C:TIC0

Quero marcar bem o passo que é dado, nesta passagem, da incidência causal
da linguagem a alíngua.
O inconsciente estruturado como uma linguagem era pensado como
composto de significantes, mas os significantes não eram forçosamente as
palavras. Lacan durante muito tempo insistiu na ideia, forjada no modelo da
estrutura linguística, de que todo elemento discreto e combinável funcionava
como um significante. Deu o exemplo do tapa [gifle], tornado significante
que atravessa o discurso ao longo das gerações. Alíngua, esta, pode por certo

* Amálgama criado por Lacan a partir de mot [palana] e matérialité [materialidade]. (N.T.)
L) inc<-"112-st.-iJnte, ret.1/ 47

recolher as imagens oriundas do discurso, mas seu saber se reduz aos uns
de sua moterialidade, e o inconsciente é pensado como o efeito direto dos
elementos, um por um, palavra por palavra, precedendo as frases da própria
criança. É o primeiro ponto.
Segundo ponto, essa passagem não exclui a função do Outro, de que
Lacan falou até ali e que é mais conhecida. Lacan a retoma, nessa mesma
conferência e em outros lugares. Cito: "Os pais modelam a criança nessa
função que chamo simbólico. [... ] A maneira como lhe foi instilado um
modo de falar (instilam-lhe o que a impregna) só pode trazer a marca do
modo sob o qual os pais a aceitaram". Isso parece muito com a tese clássica
que dizia que o desejo (incluído o dos pais) circula na fala. Mas, com a
materialidade, estamos aquém da distinção significante/significado, pois
os sons que se distinguem uns dos outros precedem o sentido no ouvido,
la, la, la, como o um precede o alguns dois da cadeia. Por isso, os uns
enigmáticos que subsistem da canção do ouvido têm um efeito direto ao
se conjugarem com o enigma do sexo. Não há pré-verbal no falante, Lacan
martelou muito isso, e sim pré-linguagem no sentido da sintaxe. A canção
- ou melhor, a "melodia" - dos pais não é a mensagem do Outro e o excede
como o inconsciente-alíngua excede o inconsciente-linguagem. Aliás, é por
isso que à maneira de falar do Outro é preciso acrescentar, como faz Lacan,
a maneira de ouvir da criança. O que a determina? Com frequência o ana-
lisando pergunta, a respeito daquilo de que ele não consegue se livrar: mas
por quê? Não há "por quê" a não ser a contingência irredutível. Há também
uma tiqué da maneira de ouvir, que aliás limita muito a responsabilidade
dos pais para com os filhos.
Aqui, poderíamos entre parênteses introduzir considerações sobre a
transmissão de que tanto se fala, e que a psicanálise tanto contribuiu para
exaltar. A objeção a todo domínio da transmissão, domínio que faz o ideal
do educador tanto quanto o drama e a impotência dos pais, objeção que
Lacan primeiro abordou pelo desejo inconsciente, deve ser relacionada mais
fundamentalmente à antecedência mais primária de alíngua.
Paro um instante nas fórmulas de Lacan: um modo de falar ali onde
ele dizia anteriormente discurso do Outro. Discurso do Outro: nada de vago
nessa noção. O significante se ouve, ele está nas linhas. O que se diz entre as
linhas, no intervalo significante, se interpreta e se nomeia desejo e fantasia.
Um modo de falar é, por outro lado, uma expressão vaga, mais geral, e mais
48 L a e t.1 n , o i n e o n s e i e n t J r e i n t: e n l t1 ..t o

ampla também, e que seria bem difícil de reduzir a termos de estrutura.


Talvez se deva levar em conta o fato de que é uma conferência que se dirige a
um público indeterminado. Mas não creio que seja a razão profunda. Modo
de falar inclui a estrutura de linguagem mas acrescenta algo. Na estrutura
de linguagem, a singularidade se marca pelos significantes particulares e
pela fantasia específica, uns e outra relativamente apreensíveis. "Maneira de
falar" acrescenta, penso, algo como o estilo do falar com o que isso inclui de
um fraseado, de um ritmo, de uma respiração que também passa no nível
do ouvido, que ele próprio implica o corpo e eleva, parcialmente às vezes,
a fala à dimensão de espetáculo. Na abordagem dos semelhantes, nos juízos
de simpatia-antipatia à primeira vista, essa di-mensão [dit-mension] sempre
está muito presente, mas bem difícil de definir. Foi por isso que empreguei a
palavra "canção" do Outro para designar o que há de lalado, se posso forjar
esse particípio passado servindo-me do lallare latino, o que há de lalado na
emissão da fala articulada pelo Outro.
Ainda é preciso aqui lembrar o que evoquei: o Um é indeciso em
alíngua. Ele vem do sonoro, mas nem por isso se reduz ao fonema, pode
até chegar à unidade da frase funcionando como Um. Em outras palavras,
atenção: a holófrase precede a frase. A holófrase se define como uma solda
entre os 5 1 e 5 2 da frase que suprime o intervalo e a faz com isso funcionar
como Um; essa holófrase de que lacan dizia no Seminário XI que ela era
própria de toda uma série de casos indo do Mbil à psicose, pois bem, po-
demos deduzir que ela recebe desses desem·oh-imentos dos anos 1975 sobre
alíngua uma função mais básica e mais ampla. :-.fais razões para r~ervá-la à
psicose. A fala primeira funciona na oportunidade como holófrase gozada,
distinta de sua mensagem. Receber a mensagem e receber alíngua são duas
coisas ligadas mas diferentes, tanto quanto os respectivos efeitos.

QUE TRAl':-lA?

Onde está o traumatismo em tudo isso? Bastam marcas deixadas pela co-
alescência entre os destroços da linguagem e o trauma do fálico para dizer
alíngua traumática, embora até bem raros sejam aqueles que podem ter o
sentimento de ser traumatizados por ela? Ao contrário, muitos sujeitos em
mau estado podem dizer que encontraram a salvação pelas palavras. Sem
l} i 11 e o 11 sei e 11 te, r e a/

sequer passar por Joyce, uma recente entrevista de Elfriede Jelinek, prêmio
Nobel de lireratura, publicada pelo jornal Le Monde des livres, mostrava isso.
Não é um caso único. Existem sujeitos que encontram no nível de alíngua
algo como uma salYação.
Do discurso do Outro parental o analisando se queixa, quanto a isso
não há exceção, ele se queixa daquilo que ele articulou, do que não articulou,
do que dele recebeu como do que não recebeu, ou pelo menos do que crê
que recebeu ou não. Daí o acento colocado na transmissão dos efeitos ditos
simbólicos da fala a partir das figuras do Outro nas gerações. Ao inverso, só
raramente ele se queixa da língua.
Ao colocar o acento em alíngua, Lacan não recusa a incidência do
Outro, sob a forma notadamente dos pais, eu disse, mas desloca o ponto
de impacto: do peso do discurso do Outro (articulado em linguagem) ele
passa ao peso de alíngua do Outro, a língua ouvida do Outro. Pois bem,
é uma passagem do Simbólico ao Real. Alíngua não é Simbólico, é Real.
Real porque é feita de uns, fora de cadeia e, portanto, fora de sentido (o
significante passa a ser real quando está fora de cadeia), mas de uns que,
além disso, estão em coalescência enigmática com gozo. De um lado, alín-
gua opera sobre o Real pelo qual corpo se goza, ele o "civiliza'', dirá Lacan,
sintoma; do outro lado, recolhendo os signos deixados pelas experiências
de gozo, ela própria passa a ser objeto de gozo. É uma das grandes teses do
seminário Mais, ainda: falar é em si um gozo. Subversão do cogito: o eu pen-
so, logo se goza. Alíngua singular que vem ao sujeito pelo Outro não deixa
de trazer o rastro dos gozos desse Outro, daí a afirmação da obscenidade
de alíngua, da qual poderíamos dizer que ela marca o sujeito com signos
de gozo* a um só tempo enigmáticos e improgramfreis. Já na origem, a
linguagem implica para cada falante um laço com o Ouuo, mas um laço
que não é intersubjetividade, que até hesitaríamos em qualificar de social
propriamente falando, um laço que mergulha suas raízes num banho de
obscenidade singular, a qual sai em seguida como sintoma, sonho e lapso,
etc. Talvez seja o que motiva Lacan a evocar uma relação sexual entre as
gerações, a qual, vemos, é bem outra coisa que o ato incestuoso.

* Amálgama: j01,.'s-szz;nes, formado a partir de jouissance [gozo] e signe [signo]. (N.T.)


50 La e a n, o i 11 e o n sei 2 n t- e rei n v e 11 { <.11.(,

O SINTOMA ANALFABETO

Ali onde Lacan marca a passagem de alíngua da infância primeiramente


ouvida ao sintoma por coalescência com o gozo, façamos o caminho in-
verso para medir o que a tese implica quanto à abordagem do inconsciente
na análise.
Logo, parto novamente do sintoma. Ele próprio se apresenta como
furo do sentido, na entrada. O trabalho analítico tem sua motivação no
insensato - termo que Lacan utilizava quando se referia a Jaspers. O in-
sensato sob as espécies geralmente de uma formação que desafia a um só
tempo a compreensão e a vontade. Mas não há somente o sintoma. Há
lapso, ato falho, sonho. Outros tantos fenômenos que consrituem unidades
fora de sentido. O trabalho analítico de associação consiste em conectar essa
unidade fora de sentido com outros significantes associados que lhe deem
sentido. Passamos, então, do Um errático emergido de surpresa à cadeia
da linguagem. Uma análise, dizia Lacan em 19-3, reYela ao analisando o
sentido de seus sintomas, sentido sempre particular, hostil ao bom senso
comum. O grande problema é que o sentido não resolYe o sintoma, talvez
até faça com que prospere._..\_ resistência do sintoma à elaboração de sen-
tido, e especificamente sob as espécies do sentido edipiano, foi registrada
bem cedo no movimento analítico, que ficou como que traumatizado pelo
amortecimento de seus resultados. Freud ironizou quanto a esse ponto:
álgo resistia, o inconsciente se fechara novamente. O movimento analítico
registrou, virando então para a análise das resistências, que não arrumou
nada. Só Lacan acabou concluindo, e ainda tardiamente, que a via analítica
não era o sentido. Quando digo a via, designo tanto aquela que conduz à
fixação do sintoma quanto aquela que vai rumo a sua redução, a ideia é a
mesma. Se o núcleo do sintoma vem do Real fora de sentido de alíngua
obscena, ele só pode se resolver por esse mesmo Real.
Com efeito, o sintoma vem do Real, e duplamente: do real da subs-
tância gozo e do real de alíngua. Entende-se, aí, como Lacan pode chegar
a uma redefinição do inconsciente como real, fora de sentido. Trata-se do
inconsciente "saber falado" de alíngua, saber que está no nível do gozo. Como
notei, há o inconsciente lucubração, isto é, decifrado, que permite que o
51

sujeito se aproprie de algumas das letras de seu sintoma- em outras palavras,


"que saiba um pouquinho dele", mas um pouquinho apenas. Além disso,
o inconscieme-alíngua, que não é simbólico, que é real, fora de domínio.
Lacan evoca, em Alais, ainda, "o mistério do corpo falante"·n. Entendam:
o mistério do corpo atêrado em seu gozo pelo saber de alíngua, de maneira
sempre singular, e acrescento: incalculável. Nesse sentido, se o sujeito na
medida em que fala inscreve-se na genealogia do discurso, o sintoma que o
divide como "acontecimento de corpo" não tem genealogia, ainda que traga a
marca de alíngua materna. Com o acontecimento de corpo, não estamos no
nível da lógica, nem daquela da linguagem, nem sequer daquela da fantasia,
mas no nível de um encontro acidental entre verbo e gozo produzido ao
sabor das contingências dos primeiros anos, que, rendo por acaso cessado
de não se escrever, daqui por diante não cessará mais de se escrever, e que o
sujeito assumirá ou não. Pensemos, por exemplo, no caso de Freud no qual,
por equívoco linguageiro, o olhar para o nariz e o brilho no nariz fazendo
apenas um, esse brilho se tornou para sempre condição da escolha erótica.
Posso aqui responder a uma questão que eu havia colocado há anos
e que havia deixado em suspenso, a da análise desses analfabetos que são as
crianças bem pequenas, ainda na pré-linguagem.
Digo hoje: existem outros analisandos além de analfabetos? O que
é preciso dizer é que o sintoma, por ser escrito em letras de inconsciente-
alíngua, é sempre ele próprio analfabeto, ignorante da escrita ortográfica. É
escrito sem ortografia e sem sintaxe. É letra que precede essa desmaternaliza-
ção da língua que é o aprendizado da ortografia. Logo, sempre disortográfico
o sintoma, por definição.
Aliás, é por isso que a disortografia é um sintoma em suma especial.
Hoje, seria proveitoso dali retomar sua generalização crescente em nossa
cultura. E, em vez de incriminar a impotência nova da escola, talvez
víssemos, então, que seus poderes na bela época da Terceira República
lhe vinham de outro lugar. Disortográfico - ou, se preferirem, sinngrá-
fico com os dois n do sinn que significa "pecado" em inglês e a partir do
qual Lacan retoma o termo sinthoma. Como se sabe, não existem outros

· J. Lacan, Encor,', Paris, Le Seuil, 1975, p. 118.


52 La e a 11, o i 11 e o n sei ente r e i n e 2 ;1 t (; ~/ l..,

pecados a não ser de gozo, não há tampouco ortopecado. Concluo:


analisar é buscar o analfabeto. Não é a mesma coisa que dizer buscar o
infantil, pois a tese não implica que a criança seja infantil; ao contrário,
mais perto do real. É o adulto quem sonha acordado. Logo: conduzir o
sujeito até seu ponto de analfabetismo. E escrevam analfabestismo com
o s, para não esquecer que o significante é besta, o que quer dizer fora
de sentido e contingente.
Podemos aplicar ao sintoma o esquema que Lacan utilizou para o
lapso. Eu havia comentado em 2006 as palavras que abrem o "Prefácio à
edição inglesa do Seminário X!'. No que se refere à definição do inconsciente,
essas palavras estão em ruptura com o primeiro capítulo do seminário sobre
o inconsciente. Aplicadas ao sintoma, elas dizem, se eu o formular resumido
e por antecipação, pois vou voltar a isso: quando o significante, o Um de
um sintoma, não tem mais nenhum impacto de sentido, então, somente,
estamos seguros de que estamos no inconsciente, no inconsciente real, que
é inconsciente gozado.
Vemos a que responde essa convocação do inconsciente real em sua
distinção com o sentido inconsciente: conceitualmente, o inconsciente
real se opõe ao inconsciente suposto pela transferência e, praticamente, na
diacronia da análise, ele ali está em lugar de ... termo da transferência.
Eu disse, Lacan não cessou de procurar conceitualizar o que podia
pôr um termo no fluxo do blablablá analítico sob transferência, bem como
à infinitude da decifração que em sua recorrência sempre pode tolerar uma
cifra a mais, um termo que não reproduza a barreira freudiana.
Foi o que o levou a formular, para além do esquema do passe pelo
objeto, tal como apresentado na Proposição de 1967, o que chamei "a
passagem ao Real" [passe au Rée~, da qual ele dá, segundo eu, um modelo
reduzido em 1976, na primeira frase desse texto. Ainda é preciso avaliar o
impasse ao qual ele responde: é o da transferência.
O A T R A :\" :3 F E R Ê ~ C I A R C .\1 O AC
r N e o :\" : : e r E ~ T E e lT 1 R o

''O inconsciente é um fato uma vez que é suportado


pelo discurso que o estabelece".

Dizer "impasse", convocar a necessária "quedà' da transferência, quando não


é sua "liquidação", não deveria induzir os analistas a entoar a canção bem
conhecida dos malefícios da transferência. Ainda mais que esse acento crítico
é dominante no discurso contemporâneo em que só se fala dela como um
poder capaz de obscurecer a razão e paralisar a vontade. Um perigo público
de certo modo, que muitos estão prestes a confundir com aquele das seitas.
O que já deveria nos alertar e, sobretudo, nos prevenir.
Com efeito, não se deveria esquecer que a análise deve tudo à transfe-
rência: não há psicanálise sem o postulado do sujeito suposto saber. Todos
admitem isso. O que se entende menos, evidentemente, é que sem esse
postulado não há inconsciente tampouco, pois o inconsciente, eu disse, não
é uma coisa entre outras. F, a transferência que o faz supor. Lacan produziu
um materna dela'' escrito conforme o algoritmo significante/significado.
O sujeito suposto ao saber, saber ele mesmo suposto dos significantes do
inconsciente, ali é escrito no lugar do significado do endereçamento analítico.
Nesse sentido, a transferência é um nome do inconsciente, mas suposto. Daí
o faro de ele ser essencialmente ligado à crença. É até o que lhe censuram

55 J. Lacan, "Pro;:,osition sur le psychanalysce de l'École", Autres écrits, Paris, Le Seuil, 2001, p.
2"±8.
54 Lacan, o i11conscie11te reini-entado

fora de análise, sua credulidade. Esse termo "suposição" era uma maneira
de dar à transferência uma dignidade epistêmica ao elevá-la ao estatuto da-
quilo que uma hipótese científica é. O termo, introduzido no seminário Os
quatro conceitos fundamentais da psicanálise, deve ser colocado em binômio
com um outro, da mesma época, o de "posição do inconsciente", o que
já indica que não basta supor o inconsciente para posicioná-lo*. Cabe ao
analisando a suposição; ao analista, a posição. O ato analítico, sejam quais
forem suas manifestações, é isso: posicionar um inconsciente, que em si
mesmo não se posiciona, e que, por isso, o analisando poderá supor, pois a
suposição é retroação da posição. Daí a ideia - que nada tem de paradoxal
se soubermos do laço do inconsciente com a fala - de que os psicanalistas
são responsáveis pelo inconsciente.
Mas, vão me dizer, o sonho, o lapso, o ato falho, sem falar do sintoma,
não são manifestações patentes do inconsciente? Com certeza, mas somente
na retroação do ato de Freud que primeiramente os colocou como tais ao
afirmar que uma verdade ali estava em ação. A especificidade de Freud é
que, nele, a suposição e o ato de posição acabaram conjugados. Entre as
manifestações que acabo de nomear, ditas de "engano" por Lacan, e a afir-
mação do inconsciente, há o dizer de Freud. E é por isso que a psicanálise
permanece apensa a esse dizer. Tendo por resultado que, diante daqueles
que desprezam essas manifestações, que portanto desprezam o engano*"',
não há argumentação que se sustente, assim como não há demonstração
dita clínica suscetível de convencê-los ou de criar acordo.
A série dos enganos, lapsos, ato falho, sintoma deve ser completada
pela associação livre. A associação, segundo Freud, é um modo da fala
disjunto do domínio intencional, visando tornar possível a intrusão de
significantes inesperados, uma fala na qual o sujeito aceita não saber o que
diz. E é sabido que um sujeito que não aceita esse registro do "eu falo, mas
não sei o que eu digo" torna toda interpretação inoperante. É por isso que
digo com tanta frequência que o apelo à confidência, ao testemunho ou à

* Há jogo homofônico: "il ne sujfit pas de "!e supposerpour !e poser", l'inconscient. (:::-J.T.)
** Jogo: "Qui méprisent la méprise". La méprise [o engano] Yem do particípio passado do Yerbo
(se) méprendre [enganar-se], enquanto que o desprezar é mépriser. (:::-J.T.)
(_/ inc.J1?sc;.2nt2, r.2uf 55

opinião, hoje tão valorizado e fazendo parte das estatísticas, é em si uma


denegação do inconsciente, já que o testemunho é uma fala que se limita
apenas a dizer o que sabemos, ou acreditamos saber.
A associação livre é o saber suposto ao sujeito analisando, não ao
analista, Lacan insiste nisso após Freud. Do inconsciente de seu paciente o
analista de entrada nada sabe. Ele ouve apenas o fazer produzir pela fala e
só no fim é que ele vai saber um pouquinho disso.
O analisando, por sua vez, se apresenta sob um significante que Lacan
chama significante da transferência. O que é, se não simplesmente o que o
sujeito apresenta ao analista? O que para ele é impensável, ou impossível de
ser dominado e, portanto, faz furo na base daquilo que ele acredita saber de
si mesmo, igualmente na base daquilo que ele pensa poder "gerir", como hoje
se diz, pois o sintoma faz fracassar a gestão, para sua dor e sua impotência.
A transferência, começando por um significante fora de sentido, instala a
suposição de saber. É por isso que ela se manifesta no analisando afetado pelo
não-senso do sintoma numa temporalidade de espera: espera do saber que
resolverá o furo que produzem os enganos do sujeito, e especificamente do
sintoma. É esse saber esperado que de certo modo é transferido para o lado
analista e esperado obscuramente de sua interpretação. Logo, a significação
transferencial oscila de um a outro dos parceiros: o saber suposto à associação
livre pelo dispositivo é aquele que o analisando espera do analista através da
interpretação. Desde a fenomenologia do dispositivo, vemos o que é constante:
a suposição de saber; e o que varia: o sujeito a quem ele é imputado.
O efeito da associação livre sobre a suposição de saber é bem ambíguo.
Digo espera do saber, mas sob que forma se apresenta essa espera? Ne-
nhum analisando, digamos ingênuo, se refere diretamente ao saber. O que ele
espera, independentemente do terapêutico, é dar sentido ao insensato - em
outras palavras, encontrar a verdade que ele guarda. Com efeito, a espera do
saber se apresenta como espera do sentido. É preciso ter a dimensão desse
fato para ajustar as fórmulas de Lacan à própria experiência. Esse sentido
está latente na série dos significantes associados surgidos na fala analisante
e vale como resposta do próprio inconsciente.
A análise, de fato, revela ao analisando o sentido de seus sintomas,
diz Lacan na "Introdução à edição alemã dos Escritos". Com efeito, mas o
,5(1 Lacan, o 1·nco11scien{e rcinucnltldt1

sentido é singular, próprio a cada um. Ele não cria saber transmissível. Não
há sentido comum do sintoma, apenas verdades particulares. A verdade e o
sentido são noções conjuntas. Têm primeiramente em comum o fato de que
ambos são fenômenos do sujeito (só há sentido e verdade para um sujeito) e
de que, em segundo lugar, nenhum atinge o saber: uma, a verdade, por ser
apenas semidizer; o outro, o sentido, por fugir, irredurivelmente.
O discurso analítico, tal como Lacan o escre\·e, põe o saber no lugar
da verdade. É dizer primeiramente que não há na fala analisante solução
ao semidizer. É verdade que às vezes acontece de um sujeito se fixar em tal
produção de verdade e lhe dar consistência ao ponto de fazer dela sua última
palavra, mas, no essencial, quanto mais o dizer de verdade de desdobra, mais
seus ditos se acumulam, mais o analista os recolhe como outras tantas ficções
de verdade e menos a verdade significada se iguala ao saber. Impotência da
verdade, portanto. Em segundo lugar, porém, o semidizer da verdade não
seria sem os significantes do inconsciente, sem sua materialidade. Daí a
estranha fórmula que tanto desorientou, no "Prefácio ao Seminário X!', que
diz que a função inconsciente - e ele fala aí do inconsciente real - "fuxica
a verdade" 34 • O termo fuxicar [tripoter] é sexualmente bem evocador para
dizer que a coisa não chega à consumação das núpcias.
A associação livre é uma estrutura tantalizante. De um lado, ela
mantém a suposição rransferencial pela recorrência de suas emergências
de verdade; do outro, ela a faz fracassar, por sua impotência, não menos
recorrente, em encontrar o que valeria para a outra metade da verdade. Mi-
ragem da verdade, diz Lacan, para sublinhar que ela nunca atinge o oásis da
completude, da verdade toda, mas que antes se perde no que ele justamente
nomeou o "deserto da análise".
O que se afigura na fala analisante é que não há casamento da verda-
de articulada do sujeito com o saber e que o próprio saber não tem limite.
Cantor, socorro! Mas o analisando não é Cantor e a série associativa não
é tampouco a série dos números transfinitos. Quanto mais a verdade se
articula fazendo surgir o sentido do sintoma, e é isso o produto da elabora-

34 J. Lacan, "Préface à !' édition anglaise du Sémimzire X!', Autres écrits, Paris, Le SeuiL 2001,
p. 572.
Ll ;111...-onsci.znt.2, rt!a/ 57

çáo de transferência, mais o inconsciente saber se afigura ser... real, fora de


domínio. Lacan o formula como tal e, aliás, bem antes de 1976. Em 1970,
em "Radiofonia", ele já dizia que quanto mais o discurso é interpretado,
mais ele mostra ser inconsciente. E também, mais tarde, que elaborar o
inconsciente é torná-lo inconsciente mais endurecido.
Daí já é possível concluir que a transferência, que supõe um sujeito
de saber esperado, também é uma espécie de denegação do inconsciente, na
medida em que o inconsciente é justamente "saber sem sujeito". Divergência
de suposição entre a transferência e o inconsciente, dizia "O engano do su-
jeito suposto saber" em 1967. Lembro que a ciência nos preparou para essa
ideia de um saber no real, mas a diferença é que, justamente na psicanálise,
o saber sem sujeito fuxica a verdade, isto é, o sujeito. Ele até "sonhà' com
a verdade, diz Lacan. Todo o problema é passar ao inconsciente real pelo
trabalho da transferência.

M0DEL0 REDl ZID0 DO PA:3SE PELO !(SR

Lacan procurou dar um esquema daquilo que chamo a passagem ao real*


no "Prefácio ao Seminário X!', que acabo de evocar.
Paro na primeira frase: "Quando o esp de um laps, ou seja, já que só
escrevo em francês: o espaço de um lapso não tem mais nenhum impacto de
sentido (ou interpretação), só então temos certeza de estar no inconsciente.
Sabemos" 35 • Já comentei essa frase várias vezes desde 2006, insisto nela. Lacan
aí dá, segundo eu, um modelo reduzido daquilo que chamamos a queda
[ou destituição} do sujeito suposto saber, ou seja, uma "passagem" [passe]
ao inconsciente real que vou daqui por diante escrever ICSR para elidir os
significados do termo "inconsciente".
Deixo de lado a alusão implícita e irônica ao tempo e ao espaço da
estética transcendental de Kant e também o jogo de escrita com suas resso-

* Em francês, passe au réel, literalmente "passagem ao real". A palavra passe também se refere ao
momento do final de análise, da passagem de analisando a analista, e ao nome do dispositivo
de Escola de averiguação dessa passagem. (N.R.)
,; Ibid.. p. 571.
58 La ea n , o ineo n s eien te 1· e i n L' e n ! a j u

nâncias no que foi ouvido. Um lapso, um equívoco é o instante da intrusão


de um significante no discurso vigília do sujeito, um significante que, de
repente, laps, usurpa o lugar, esp, da palavra que o sujeito previa dizer. É
bem simples. Mas seu estatuto é de início ambíguo, entre simples erro ou
lapso, pois pode ser considerado nada não fosse a transferência.
O espaço do lapso, o que é? Nada senão o que lhe agregam: a exten-
são das associações pelas quais o sujeito tenta dar sentido a esse significante
incongruente. Aliás, a topologia de Lacan sempre ligou o espaço, tomado
como extensão, ao desdobramento da cadeia significante, daí sua abordagem
do sujeito em termos de superfície, ainda que mcebiana. Associar para dar
sentido é tentar reapropriar-se do significante "intruso", tentar, portanto,
fazer dele um significante de sua verdade, ao conectá-lo com outros signi-
ficantes de sua "travessa [traverse] ". Dito de outra maneira, é tentar reduzir
o engano. Aliás, a associação livre costuma ter essa dupla função: fazer com
que significantes surjam de surpresa, depois se apropriar deles ao lhes dar
sentido pelo acréscimo de outros significantes.
O espaço do lapso, no fundo, é o espaço do trabalho transferencial que
supõe um sujeito ao lapso e tenta alcançar sua verdade. Espaço da "hystori-
zação"* do sujeito. É nesse espaço do dar sentido que o inconsciente fuxica a
verdade, a qual é sempre do sujeito. Isso poderia ser escrito sincronicamente
com o materna da transferência:

Laps
s(S 1, 52, ... Sn)

Exceto que, no texto que comento, Lacan o formula em termos de se-


quência temporal, de acordo com o que acontece na elaboração analítica, e a
isso acrescentando um tempo que não é escrito no materna da transferência.
Três tempos, portanto:
1. laps, 2. espaço do laps, 3. o inconsciente real
O terceiro tempo para dizer que, quando esse espaço da hystorização
não tem mais nenhum impacto de sentido, saímos dessa transferência e

* Palavra que reúne histeria U~vstérie) e história (histoire). (N.R.I


59

entramos no inconsciente, real. Digo essa transferência, pois é a transferên-


cia enxertada nesse lapso. O que resta, então, do laps? Apenas sua palavra,
um elemento de saber que não só emergiu a despeito do sujeito, sem seu
consentimento, mas que, ao termo, permanece, em sua facticidade, como
um significante sozinho, disjunto da verdade articulada do sujeito, fora de
cadeia, real, portanto, mostrando que o inconsciente trabalhou sozinho,
fora de sentido, mas não fora de gozo, quase neológico. O inconsciente real
é neológico, se o neologismo consiste bem em dar às palavras um peso de
gozo inefável e pessoal. Feito de significantes fora de cadeia, implantados no
campo do gozo, que o lapso manifesta sem decifração, é o núcleo psicótico
de todo falasser, a isso voltarei.
Vale dizer que o inconsciente real não é construído, como se diz,
do inconsciente-fantasia, ele é encontrado por se impor em emergências
surpresas.
No materna da transferência, o inconsciente só figura como suposto,
lembrei. Afinal, a palavra lapso pode ser dita real, primeiramente como
significante que não chama mais nenhum S2 , sozinho portanto, desconec-
tado. Foi a primeira definição que Lacan deu do significante no Real, e a
respeito da psicose. Mas há mais: ele é real também na medida em que o
significante se situa no nh·el do gozo - tese do seminário Mais, ainda. E
duplamente, porque ele o afeta, negativando-o de um lado, veiculando-o
metonimicameme. O Outro lugar do significante também tem seu lugar:
o corpo vivo onde ele produz seus efeitos. Mas, com isso, outro lado da
moeda, o significante é ele mesmo gozado. Foi o que Lacan colocou já em
1973, eu disse: '·o inconsciente é que o ser, falando, goze" 36 • Essa palavra
laps fora de sentido, real e no Real se quisermos, não fuxica a verdade, eu
diria antes que ela transa com o gozo. E aí é preciso valorizar a expressão
"impacto de sentido" que Lacan utiliza, que não é idêntica a "efeito de
sentido" e que conota, além da produção de sentido, o que há de satisfação
ligada ao sentido e à verdade.
Onde situar nessa sequência o que, em 1964, Lacan chamava o in-
consciente freudiano, esse inconsciente Eurídice, de estatuto pré-ontológico,

·"' J. Lacan, Enco;-e, Paris, Le Seuil, 1975, p. 95.


ôO

emergindo de surpresa na subjetividade? É preciso, penso, situá-lo no que


ele chama o espaço do lapso, digamos que é o inconsciente-verdade, que
evidentemente não funciona sem a estrutura da linguagem. Mas o incons-
ciente de 1976 não é simplesmente o inconsciente-verdade. Como ele, com
certeza ele fala, mas, elevando a fala ao estatuto de operador que regra o
gozo, ele faz o "falasser", o qual fala "com [seu] corpo". Como não medir
o radicalismo e também a novidade dessa tese em relação às fórmulas dos
primórdios que se tornaram canônicas? Desde seus primórdios, é verdade,
Lacan invocava o real, mas não no mesmo sentido. O que ele situava como
real naquele momento era o traço do corte, um inconsciente-verdade que
surgia pelo corte repetido, na hiância do sujeito.
Volto ao texto de 1976. No tempo 3, está-se, pois, no inconsciente,
ou seja, ali onde não está o sujeito. O "se"* é, pois, bem justificado. Não
seria possível dizer "eu estou no inconsciente", já que o inconsciente real é
saber sem sujeito.
Reescrevo esta sequência que vai da transferência ao inconsciente real:

l. _Lap~ . 2 . Espaço dos significames associados .


s ' (sentido, hystorização, rcs-verdade) '

3 . ?ig_n!ficante do ~-ªf'S
ICSR (fora de sentido)

Logo, antes de mais nada, o laps com seu sujeito suposto; depois o
espaço da hystorização transferencial com seu impacto de sentido; enfim,
a redução do laps a um significante desligado de toda suposição de sujeito
e fora de sentido. Daí por que digo que é um modelo reduzido da queda
do sujeito suposto ao saber, queda essa que faz o significante do laps surgir
como real.
Mas, atenção, não é um lugar onde as pessoas se instalam. Cito:
"Basta que nele prestemos atenção para dele sairmos". Com efeito, a aten-

* Em francês, o pronome on; em português, o "se", gramaticalmente índice de indeterminação


do sujeito, em expressões do tipo "sabe-se", "'diz-se". (N.T.)
,
l} ; J7 L- ._1 ;] '5 ~." i i! /1 t ._, , r L, t7 /

çáo - pelo menos é assim que a entendo - é um fenômeno do sujeito - eu


poderia dizer: uma manifestaçáo de sua abertura para o mundo, que, em
si mesma, interroga. Trazendo de volta a questáo do furo no sentido, ela
reabre o espaço das associações cransferenciais. Resta, então, recomeçar esse
passe "como o mar, sempre a recomeçar''. Logo, estar no inconsciente não
promete ao sujeito nenhum saber do inconsciente, o lugar não é turístico.
Não há amizade que aguente.
Quando ali estamos, "sabe-se si"* diz Lacan, verbo "saber'', mas isso
não faz um saber (substantivo, aqui) que possa ser elevado ao uniwrsal. É
a objeção maior e radical nesses anos 1976 ao ideal de transmissão integral
ilustrado pela ciência e do qual Lacan por tanto tempo quis fazer um modelo
para a psicanálise. O inconsciente-alíngua preside ames à não transmissão
integral: ''O truque analítico não será matemático .. ,-. d.iz l 1 se:ninário JJ,?is,
ainda. Vale dizer que o inconsciente real náo se emina e só se assegura para
cada um na experiência singular Ja elaboraçáo que~ sua análise. além disso,
com duas condições: que o inconsciente seja antes de mais nada suposto
(transferência) e que o ato analítico forneça "o parceiro que tem a chance
de responder" 58 •
Antes de uma análise, é possível estar na transferência, no inconsciente
suposto, mas não no inconsciente real. Esse inconsciente é experimentado
numa análise e em nenhum outro lugar, mas sem poder ali estacionar, sem
poder ali se reconhecer, sem poder comunicá-lo e sem que disso resulte
a menor "amizade''. Ou era maneira de dizer que náo há desejo de saber.
Estamos aí no limite daquilo que os analistas podem trocar com aqueles
que não têm essa experiência. O discurso sobre o inconsciente é náo só
um discurso condenado de antemão, mas também um discurso que exclui
o inconsciente. É todo o problema dos ensinos sobre a psicanálise, e seria
melhor não esquecê-lo quando se quer conversar com os outros discursos
e especialmente com o das neurociências!

* Em francês, "on !e sait soi" (N.T.)


'º Jbid., p. 105.
38 J. Lacan, "Inuoduction à l'édition allemande des Écrits", Sci!icet 5, Paris, Le Seuil, 1975, p. 16.
62 L c.1 e a n , D i n e o n s e i e n te ,. L, i 11 z: e 11 f L1 ) 1)

À FALHA DO :3CJEITO ::TPOSTC' SABER

Na experiência, o inconsciente saber sem sujeito começa ali onde para a


suposição de sujeito. Falha, diz Lacan. A falácia da suposição de um sujeito
ao saber se revela. Lembro os diferentes termos que ele utilizou ao longo
do tempo para dizer essa falácia: a transferência é só uma significação; logo,
imaginária; um irreal; um postulado; enfim, um engodo. Mas nem o sujeito
nem o saber são imaginários; o que o é é a suposição da união deles.
A falha não é aqui uma vaga metáfora, é muito precisamente a falha
entre o sujeito e o inconsciente. De um lado, portanto, um sujeito que
corre atrás da verdade, mas que a perde pois ela jamais é toda, e de cuja
atenção ela, ainda, revela a mentira. Do outro, esse saber que se manifesta
por sua intrusão que afeta o ser, mas que não é sujeito. A falha designa aí
uma impossível conjunção dos impasses que marcam as duas bordas: de
um lado, dizendo a verdade, eu fracasso; do outro, o inconsciente real é
insubjetivável e inesgotável.
Entretanto, essa falha não anuncia o fim da transferência. Ela é apenas
uma condição necessária desse fim. Aliás, por acaso existe Um fim maiúsculo
da transferência (embora haja fenômenos fora de transferência)?
Vê-se primeiramente no nível da sequência, já que a atenção dada ao
inconsciente traz necessariamente de volta a transferência. Mal é denun-
ciado, o engodo do sujeito suposto ao saber se reconstitui. E como não dar
atenção a esse "sem sujeito", uma vez que ele diz respeito ao sujeito e não o
deixa indiferente, atormentando seu pensamento, sua vontade e seu corpo.
Essa balança sequencial entre elaboração de verdade e inconsciente real se
reproduz, portanto, na análise. O inconsciente abordado destitui o sujeito
suposto, mas o convoca igualmente.
E, aliás, não só na experiência de uma análise, uma vez que todo
saber real faz surgir a questão do lugar onde ele estava como "nada senão
saber". Estamos aqui de volta a Descartes, convocando Deus como fiador
de sua aritmética, mas também a Cantor. É a tese de "O engano do sujeito
suposto saber": o sujeito suposto saber está latente em roda teoria. Com
efeito, já que teorizar é buscar alcançar um saber que dê conta de um real,
um saber do qual ainda não se dispõe, mas que supomos propício ao do-
(1 i11C1..'l/1SCi-2nt1;;,... r.: ..11 {13

mínio. A transferência é assim. Isso permite entender como se pode falar de


transferência para o analista analisado, contanto que se distinga analista que
opera, o do ato, do analista que pensa ou tenta pensar a experiência analítica.
A certeza do ato está com certeza fora de transferência. Sob transferência,
em mai:éria de ato, só existem passagens ao ato. Mas o analista que tenta
pensar a psicanálise, fazer a teoria da experiência, está necessariamente sob
transferência - em outras palavras, analisando.
VIA REAL DO ICSR

S eguindo a trajetória, percebi que as referências de Lacan às ditas forma-


ções do inconsciente evoluíam ao longo do tempo.
É possível dizer que ele as terá todas comentado, metodicamente. O
que nos valeu os grandes desenvolvimentos sobre o sonho, o Witz, o lapso,
o ato falho, o esquecimento de palavra, etc. Depois vem um tempo, quando
ele mais ou menos acabou com seu retorno a Freud, em que ele evoca a
tríade sonho, lapso e chiste. Há numerosas ocorrências, é o caso nos textos
dos anos 1970: "O aturdito" (1972), "A introdução à edição alemã dos
Escritos" (de outubro de 1973) e outros em seguida.
Depois, temos o famoso texto que acabo de evocar, a "Introdução à
edição inglesa do Seminário Xf', no qual me demorei e em que o lapso perma-
nece só. Estamos em maio de 1976, logo antes do início do seminário 'Tinsu
que sait d'l'une bévue s' aile à mo urre", que acentua fortemente o inconsciente
lapso. Lacan nota que uma mancada é difícil de definir, mas a definição que
ele dá é de qualquer modo finalmente "uma palavra por outrà'.
Perguntei-me: qual pode ser o privilégio do lapso como porta de
entrada no inconsciente, já que as formações do inconsciente não são o
inconsciente, mas somente a via que a ele conduz? Pareceu-me útil a isso
responder para medir o que muda com o ICSR.

MüTERIALIOADE DO I~C0:\':3(IE:\'TE

"Quando o esp de um laps, ou seja, o espaço de um lapso, etc". Esse manejo


da "moterialidade" a que Lacan se dedica nos últimos anos, essa fragmenta-
1
L1 incL,nscient~, r 12 a!

ção, trituração, esse jogo entre sonoridade e grafia como no título 'Tinsu que
sair d'l'une bévue ..." em geral tem por referente o modelo Joyce. Mas é que o
próprio Joyce está na moda dos procedimentos do inconsciente como Lacan
busca ressaltá-los nesses anos particularmente. Ele não os usa nunca, pelo que
percebi, sem uma intenção suplementar precisa, no que, aliás, ele se distingue
de Joyce, em quem os jogos de língua estão diretamente conectados ao gozo
sem passar pelo sentido, o que evidentemente os leva ao cúmulo do enigma.
Vejo aqui duas dessas intenções, muito diferentes.
A primeira, pouco visível, em surdina, introduzida graças ao esp do laps,
é epistemo-política. Das duas palavras, "espaço" e "lapso", Lacan extrai por
fragmentação uma única sílaba. Não posso dizer um único fonema, já que
acontece de, em francês, "laps" ser ela própria uma palavra que tem sentido.
O laps"' convoca o tempo, e até uma medida do tempo, ao lado do espaço.
Logo, esse início de frase convoca, na latência de suas significações,
as duas categorias espaço e tempo da estética transcendental de Emmanuel
Kant, pela qual, em sua Crítica da razão pura, Kant tenta explicar a univer-
salidade da física newtoniana.
Em segundo plano, são os múltiplos desenvolvimentos de Lacan a
contestar reiteradamente a estética transcendental de Kant. Em nome de
que, de quem? Einstein e a física quântica com certeza, mas sobretudo
Freud. Para o primeiro, o argumento é desenvolvido na resposta à questão
dois de "Radiofonia"; para o segundo, quantas vezes terá ele repetido que
a topologia do inconsciente impunha refazer a estética transcendental de
Kant, com a qual ele é mais que severo, chegando até a qualificá-la, em "O
aturdi to", de inepta e imbecil.
Ora, para Lacan, os debates epistêmicos sempre têm um impacto
político. ~o que se refere a Kant, esse impacto é explicitado na "Introdução
à edição alemã dos Escritos", em que, falando do bom senso que é lei na
política, ele diz: "Não preciso lembrá-lo ao falar ao público alemão que a
isso acrescenta tradicionalmente o sentido da crítica" - eis Kant de novo
- "sem que seja inútil lembrar aonde isso o conduziu por volta de 1933".
Não creio que seja para acender novamente uma velha querela, mas para
que não se esqueça que pensar procede por via ética, sempre engaja uma

* O francês distingue lapsus, emprego involuntário de uma palavra por outra, de laps, intervalo,
dernrso de tem?º· (K.T.)
66 Laea n, e i n e o n s e ; t2 n t e r e i 11 i: en t t.1 j D

política, fora ou na psicanálise, e que portanto pensar ou não o inconsciente


tem consequências.
A segunda visada é mais analítica.
Rompendo as palavras "espaço" e "lapso", Lacan lembra, em ato, o
que ele já formulou há muito tempo, e até sem esperar Mais, ainda: isto
é, que o fonema é a unidade sonora mínima de alíngua e, portanto, do
inconsciente. Quando lemos isso num texto de 1976, não deveríamos ficar
espantados, pois isso não é descoberto ali.
Isso data do seminário Asformações do inconsciente, e ele retoma o ponto
em 1968, De um Outro ao outmi 9, na aula de 27 de novembro, em que procede
a uma retomada de seu grafo do desejo 40 • Insiste para lembrar o que formulou
em 1958, cujo resumo ele cita, a saber, que seu grafo, com suas duas linhas
horizontais dos significantes do Outro e dos significantes do inconsciente e
a linha curva retrógrada que os corta, é feito de três cadeias significantes, ao
contrário do que se costuma dizer quando fazemos da linha curva retrógrada
a linha do significado cruzando aquela do significante como é o caso na es-
trutura da fala. Lacan corrige essa leitura como que por antecipação: trata-se
de três cadeias significantes, mas com dois estados do significante.

Cadeic do ::xonsciente

~:.r,------,t:j~Ã~-~ ~ Cadeia dos fonemas


Cadeia dos enunciados
(semanrcrnas)

Grafo do \Vitz

39 Aula de 27 de novembro, pp. 51 e segs.


40 Éaits, Paris, Le Seuil, 1966, p. s1-.
(l inconsciente, r2a/ 67

Sobre a cadeia horizontal inferior, o significante enquanto semante-


mas, isto é, definido por um emprego regrado, mesmo que nunca unívoco.
Logo, as palavras que têm um sentido. Digamos que é a linha do dicionário,
da língua tal como a usamos. Sobre a linha curva, o significante, diz ele,
está no nível dos fonemas, eles próprios desprovidos de sentido e suscetíveis
de se recombinarem sem considerar os empregos regrados do dicionário.
Precisei de muito tempo para entender o fundamento dessa afirmação. Na
verdade, a tese é chamada, por uma razão precisa que Lacan diz, mas sem
mais explicações. Ela é necessária para dar conta da possibilidade dessa
mancada específica e como que calculada que é o chiste: graças aos fonemas,
uma segunda cadeia pode estar latente na cadeia dos semantemas, isto é,
dos enunciados. O que vai abrir à questão de uma avaliação diferencial das
mancadas, pois todos os malogros por onde nos vem o inconsciente talvez
não se equivalham.

O sonho e o lapso só têm valor se frustrarem a consciência de um particular.


Têm a ver com a singularidade irredutível, e a interpretação dos dois sempre
vale só para um, a despeito de Jung. Ao contrário, o chiste tem essa parti-
cularidade, entre as formações do inconsciente, se não de ser coletivizante,
pelo menos de funcionar para além do particular, no mínimo para todos
aqueles que partilham uma língua e uma cultura. Logo, ele dá o modelo
geral da latência possível do inconsciente, para retomar o termo freudiano.
Funcionando no nível da fala comum, na verdade sobre a cadeia inferior do
grafo, ele mostra a possível presença de um discurso outro na fala, a latência
de um dizer outro na fala vigília. O riso, arrancado de surpresa, indica que a
combinatória dos uns de a!íngua- digamos: a cifração do humorista - abriu
a porta do inconsciente.
Só que, cito uma observação de 1967, é a porta "para além da qual
não há mais nada a ser encontrado" e o riso sanciona o "caminho poupado".
Eu sempre me havia interrogado sobre essa frase, eu a entendo melhor com
o texto de 1976 que comentei mais acima. O caminho é aquele do espaço
transferencial.
óS L u e 1.1 11 , u i 11 e o 11 sei e 11 te r 2 i 11 L' e 11 t <.1 d L)

Não é uma particularidade do lapso abrir o espaço transferencial. É o


caso de cada "formação sintomática do inconsciente" "demonstrar [a] relação
com o sujeito suposto saber" 41 • Com efeito, cada mancada pode ser tratada
como Um, um em falta de sentido, já que surgiu sem ser convocado pela
consciência e, em consequência, abre o espaço do apelo ao sentido. .
A particularidade do Witz é que ele não abre o espaço transferencial,
pois o contrai num efeito de sentido pontual, que se fecha ao mesmo tempo
que se abre. E sabemos que roda glosa o mata. Passado o riso, não há sentido
a ser encontrado - em outras palavras: estamos de imediato no termo do
impacto de sentido.
O lapso, diferentemente do Wí'tz, não poupa o caminho da elaboração
transferencial da busca do sentido, pelo menos quando o analista ali está
para sustentar a busca transferencial. Mancada em relação à intenção do
locutor, ele abre a porta do espaço a ser percorrido, o espaço, digamos, de
sua leitura, que para quando não há mais nenhum impacto de sentido, no
limiar da porta para além da qual não há mais nada a ser encontrado, porta
à qual o Wí'tz ia diretamente e que dá para o inconsciente real.
O que resta, então? Nada a não ser uma emergência desse saber sem
sujeito, que tem seu abrigo em alíngua, aquele que trabalha sozinho, sem
sujeito mas não sem efeitos. Impossível de dominar, "sem mestre". Xeque em
Descartes: o sujeito da psicanálise talvez seja: o sujeito cartesiano da ciência,
mas o saber do inconsciente não é o saber da ciência.
Então, em que o lapso seria superior ao sonho como manifestação
do inconsciente?
É que o lapso, que é como o sonho e diferentemente do Wí'tz próprio a
um dado sujeito, é um fenômeno puramente linguageiro, que se situa inteiro
no nível da "materialidade". Não é o caso do sonho, ele não é puramente
linguageiro. Lacan, após Freud, esmerou-se durante anos em mostrar que,
a despeito de seus roteiros imaginários, o sonho era uma cifração e que,
contanto que fosse decifrado, podia ser lido de outro modo. Nesse sentido,
Freud renovou totalmente a abordagem tradicional do sonho.
Mas, antes de mais nada, observo que isso não parou Jung na via da
chave dos sonhos, que aliás precedera de muito a psicanálise. Os analistas

41 J. Lacan, Ielévision, Paris, Le Seuil. 19-:'3. p. 6:7.


podem bem fechar a cara, mas, se isso existe e resiste ao tempo, é que é
possível e, se é possível, é que o sonho a isso se presta. Por outro lado,
numa chave dos lapsos com seu vocabulário e suas interpretações ninguém
consegue pensar.
Segunda obserYação: a decifração, de onde concluímos pela natureza
linguageira do sonho, sempre é incerta. Decifrar é decidir o léxico primeira-
mente, ames de extrair a mensagem em seguida. A operação sempre é "pro-
blemática'', suspeita de acabar apenas numa elucubração, como eu disse.
O lapso, este, não é lucubrado, é epifânico por ser ele próprio cifra-
ção, fazendo surgir na fala um signo inesperado, não programado pela fala
vigília. Uma mancada sempre é possível: uma palavra escolhida cessa de se
escrever em proveito de outra que se impõe. Ela não é decifrada; na verdade,
damos a ela sentido ao recombiná-la por associação a outras cifras vindas
da consciência, e até o esgotamento do impacto de sentido.
Vale dizer que o espaço do sonho não tem termo? Poderia bem ser
isso. Não saímos da interpretação de um sonho porque sempre podemos
decifrar de outro modo, e às vezes por toda uma vida.
Parei numa obserYação de Lacan que marca a diferença com o lapso,
no início de 'Tinsu que sait d'l'une bévue s'aile à mourre". Ele nota que
o sonho é uma mancada, exceto que - sou eu quem sublinho - ali nos re-
conhecemos. Idem para o Witz. Eis, pois, outro princípio de tri entre os
ditos malogros.
Se, como manifestação do inconsciente, a vantagem cabe ao lapso,
é precisamente porque não nos reconhecemos no lapso que não tem mais
impacto de sentido. Ele nos coloca na heceridade do inconsciente real, fora
de sentido e sem sujeito, que faz o falasser.
Logo, concluo. O sonho é a via real do inconsciente freudiano.
Acrescento que essa via não vai mais longe, eu disse, que a verdade signifi-
cada pelos significantes que dali extraímos. Mais que o sonho, o lapso é a
manifestação maior do inconsciente lacaniano, real. Se Freud distinguiu o
sonho como via real entre todas as mancadas foi porque, acontecendo no
sono da consciência, era testemunha de uma atividade psíquica outra. Mas
com o lapso de língua, se posso dizer, o saber falado de alíngua se revela
numa mancada que testemunha de maneira pura o inconsciente real.
Ü ALEPH BORR0;\1EANO

A pós o tempo passado colocando o inconsciente, cujo significado bus-


camos, na conta da linguagem, a revelação do inconsciente real, feito
de uns, "encarnados" fora de cadeia e fora de sentido, é um salto maior que
maltrata o inconsciente pensado como simbólico. O rcsR é a-estrutural:
longe de se construir e até de se interpretar, ele se encontra em emergências
sempre pontuais, que desafiam a atenção tanto quanto a comunicação.
Lembro os sucessivos passos fundadores da tese: eles levam da estrutura
de representação significante, oriunda da conceitualização linguística da prá-
tica freudiana de decifração, ao inconsciente "saber sem sujeito" implicado
por essa mesma estrutura: saber que, se não determina o sujeito, determina
seu gozo. Este pensado primeiro em função do objeto a, como objeto falta
ou objeto mais-de-gozar, depois de alíngua como lugar desse "saber falado"
que civiliza o gozo ao lhe dar sua forma linguageira.
Essa formulação não podia deixar de repercutir sobre o conjunto do
corpus lacaniano numa série de remanejamentos em cascata que atinge todas
as noções anteriormente utilizadas: oposição do real e do sentido, minoração
da verdade mentirosa, promoção da noção de falasser como outro nome
do inconsciente real, nova luz lançada sobre a interpretação, as visadas, os
meios e os fins da análise, reavaliação das categorias clínicas, da função do
afeto, da natureza do amor, da transmissão, etc.
Para medir essas repercussões, é preciso levar em consideração as novas
questões analíticas introduzidas pela referência à alingua e a seus efeitos.
() inc1.....,11scienfe, r<:?af 71

O ponto crucial a meu ver é que alíngua é o que posso bem chamar... um
princípio de incerteza. Uma vez que, como acentuei, o Um de gozo que
não seria apenas um entre outros ali é incerto, hipotético, pois o "saber
falado" do inconsciente desafia a tomada do saber. Dito de outra maneira:
a parte do saber que é assegurada pelo trabalho analítico aparece em déficit
do ponto de vista do saber de alíngua real e, além disso, suspeita de ser
apenas imaginária.
Numa época, Lacan podia prescrever interrogar o inconsciente até
que ele desse uma resposta que não fosse inefável, seja a da fantasia ou a
dos significantes soletrados a partir do sintoma. Belo programa, mas duro
para o inconscieme-alíngua, nunca todo decifráYel e cuja parte decifrada
permanece hipotética.
Como esse inconsciente pode responder? Se os efeitos de alíngua nos
superam, e é possível concordar com Lacan que de fato é assim, então a
psicanálise não está reduzida ao duplo escolho do inefável e da incerteza?
Fracasso na ambição do materna. Lacan, aliás, constata isso em Mais, ainda.
Ele que dera tanta importância à "matemática do significante", formula, eu
disse: "O truque analítico não será matemático". Poético, talvez? Exceto que
o poema já está feito, cada analisando sendo poema mais que poeta, mas
poema impossível de ler em sua integralidade. É que, com alíngua, não há
matemática ou lógica que se sustente, mas significante no real, e do qual
não há exaustão possível.
Passados os pedaços de respostas que dali deciframos - digamos: suas
letras, já que a letra se define por uma coalescência do gozo e de um elemento
linguageiro fora de sentido -, como apreender esse inconsciente real?
A preocupação com o real em Lacan é bem anterior ao conceito de
ICSR, eu disse. Como a fluidez da fala e a infinitude da decifração não têm
em si mesmas princípio de parada, para pensar a finitude do processo ana-
lítico ele primeiramente convocou as barreiras que faziam "função de real"
na fala analisante. Como eu disse, é possível seguir as sucessivas fórmulas
pelas quais ele o define. As duas primeiras convocam a categoria lógica do
impossível: impossível de dizer, depois impossível de escrever.
O inconsciente real é outra coisa. Ele não se demonstra, não se alcança
pela lógica, ele se manifesta. É por isso que empreguei o termo joyciano
72 La e a 11 1 o ; 12 e o 11 se; e 11 te i- e in i: e 11 t c1 d o

"epifanià'. Ele tem seu abrigo em alíngua e não resulta da abordagem estru-
tural que o precede no ensino de Lacan. Efeito de alíngua, ele é duplamente
real: seus Uns são fora de cadeia, logo, fora de sentido, e passaram para o
campo do Real fora do Simbólico, o da substância viva. O que complica
é que esse inconsciente saber falado faz o saber fracassar - princípio de
incerteza, eu disse.
O recurso ao novo esquematismo do nó borromeano, aliás introduzido
de maneira contemporânea ao acento colocado na função de alíngua, eu
disse, responde em parte a essa dificuldade e encontra ali, segundo eu, uma
de suas mais fortes justificações.
O materna linguístico, S/s, pelo qual o inconsciente-fantasia podia
ser pensado, não permitia situar o Real do vivo, fora do Simbólico e fora
do Imaginário, que não é um significado e que nada deve ao sujeito. "O
Simbólico só faz as coisas fantasisticamente", dirá Lacan. Ora, os sintomas
não são fantasísticos e sim, de fato, inscritos no Real "do qual o corpo se
gozà' 42 • A materialidade gozada deles, reconhecida verdadeira pela análise,
induz a colocar a um só tempo o real de alíngua e o do vivo. Ao representar
esse Real que é de fato o impensável, não fossem as tentativas das ciências
da vida, por uma das três rodelas de barbante que compõem o nó, Lacan
faz com seu sujeito uma espécie de operação Cantor, o aleph zero dele, pois,
com o nó, esse referente por assim dizer absoluto, sem ser sabido, passa a ser
teoricamente manejável. O nó borromeano é um verdadeiro instrumento
de reconhecer o Real, que nem se imagina nem se pensa, para revelar-lhe o
lugar e a função eventual.
O nó acrescenta ao atrelamento das duas dimensões do Imaginário
e do Simbólico, que Lacan primeiro pensou no esquematismo linguístico,
o atrelamento delas a três com o Real. Eu disse, ele pressupõe a autonomia
e a equivalência dessas três dimensões e por isso abre o capítulo de uma
renovação das definições das três di-mensões [dit-mensions]. Entre Imaginá-
rio e Simbólico, o sentido, o inconsciente-fantasia, o que Lacan vai chamar
a mentalidade. Logo, a mentalidade é um misto, que não é mais aquele,
hierarquizado, do significante e do significado da época de ''A instância

42 J. Lacan, "La rroisieme", Lettre de !'École fir:udienne, nº 16, novembro de 1975.


LI ;11conscii2ntef rt?a/ 73

da letra", pois ela supõe um enodamento entre essas duas dimensões. Esse
misto desdobrado pela conversa mole, analisante ou não, que é feito de
representações que não funcionam sem significantes, Lacan o qualifica de
débil; "o homem pensa débil", diz ele, para indicar que, nele mesmo, ele
está sem domínio sobre o Real fora do Simbólico.
Ele abre igualmente o capítulo de uma nova combinatória, a dos
enodamemos possíveis e de seus efeitos. De fato, Lacan passou anos es-
tudando os enodamentos possíveis na esperança de encontrar a tradução
clínica deles.
É que o gozo real disjunto do sujeito deve bem estar enodado ao
verbo, emre Simbólico e Real, para ser decifrável na psicanálise, marcado
por alíngua, que o fragmenta, o parcializa e o absorve - ele se esquiza de
maneira pura na esquizofrenia, deixando o sujeito no autismo fora de laço
de seu gozo.
Contanto que esteja enodado ao Imaginário, esse inconsciente real
está como que fixado, enquanto que, por sua vez, ele "limità' o Imaginá-
rio, o arrima o bastante para que o sujeito não fique todo no delírio da
mentalidade. Não é um acaso se é a partir de 1975 que Lacan desenvolve a
noção de mentalidade, de onde ele até tira um novo diagnóstico, "doença
da mentalidade", para designar um Imaginário não lastrado de Real, que
divaga ao sabor das circunstâncias.
A necessidade de um novo esquematismo que permita situar o Real
impensável não deixa dúvida. Entretanto, seu manejo quando se trata de
pensar a experiência analítica não deixa de apresentar uma dificuldade.
Essa dificuldade se deve ao fato de um nó apresentar uma estrutura
sincrônica, ao passo que a análise se desenrola no tempo. Em sua diacronia
que procede apenas de falas, o real do inconsciente só é abordado como
termo e barreira dos ditos de verdade, eu disse, e é o que permite afirmar que
o chiste poupa o caminho, ou que Joyce com seu tratamento de alíngua foi
direto ao que se pode esperar de melhor de uma análise, afinal. Com o nó,
Lacan tentou retraduzir o que se faz na duração de uma análise não mais
em termos de metáfora e metonímia com o ponto-de-estofo ou o ponto
de fuga, mas em termos de nó que se faz, se transforma, se desfaz, etc. Daí
expressões tais como o nó "já está feito", "lapso do nó", sutura, entrelaçado,
74 Laca11, o i11co11scie11te rei11,0 e11taJ.o

nó da paranoia, etc., que têm por referente o enodamento que muda ao


sabor da fala, em sua diversidade.
Essa mudança de paradigma se esclarece parcialmente se pensarmos
que uma metáfora é um atrelamento entre significante e sentido, esse sentido
que Lacan justamente coloca sobre o nó entre o Imaginário e o Simbólico,
um atrelamento que passa pela fala, mas ... não sem o acréscimo do elemento
gozo. Entretanto, há de qualquer modo um mas, e ninguém ainda produziu,
por exemplo, o nó da entrada na transferência, o nó da saída, o nó daquilo
que Freud chamava a perlaboração, ou seja, do tempo que é preciso, etc.
Poderia ser um programa.
Por outro lado, a fecundidade clínica desse novo esquematismo é
julgada pelas novas contribuições que ele condiciona. São numerosas as suas
performances que permitem recolocar as noções clássicas, inibição, sintoma,
angústia; distinguir o sintoma do sinthoma bem como o sintoma real e o
sentido; subsumir de outro modo as diversas estruturas clínicas classicamente
conhecidas, neurose, psicose e perversão; introduzir uma nova categoria da
psicose: a doença da mentalidade; repensar as suplências da psicose; renovar
a função Pai como sinthoma; e também recolocar os diversos gêneros de
interpretações. Nessa reavaliação generalizada, começo pela introdução do
termo inédito "falasser".
Do FALASSER

O termo repercute a colocação em evidência da função de ,tlfngt~a, de


sua junção ao real do gozo, constituürn do inconsciente real. E pre-
cedido pela introdução do novo esquematismo borromeano, no essencial
a partir de Mais, ainda. Ele não elimina a noção do sujeito falta-em-ser; a
ele se acrescenta para dizer que ele só tem de ser o que dele lhe vem pelos
efeitos encarnados de alíngua.
O termo é introduzido na segunda conferência sobre Joyce, publicada
em 1979, no volume Joyce com Lacan43 • A data de redação dessa conferência
não é precisada, mas me parece seguro, no entanto, que é contemporânea
do seminário sobre Joyce, e até provavelmente um pouco posterior. Noto,
além disso, que a introdução de alíngua e do nó borromeano no ensino de
Lacan segue imediatamente um novo acento colocado na escrita e na letra
a partir de 197044 •
Com a periodização do ensino de Lacan, depositou-se um preconceito
de leitura que coloca vários lacans sucessivos: em primeiro lugar, o da fala e
da linguagem, depois o do objeto a, enfim o do gozo e do Real. Não o Real
como limite da formalização, ou seja, "o que não cessa de não se escrever", eu
disse, mas o Real de faro ali, tal como inscrito no nó borromeano, facticidade

i.l J. Lacan, Joyce !e symptôme li, Paris, Navarin,


1987.
44 Com "Lituraterre" primeiro, depois Mais, ainda, em que ele faz da escrita "um Outro modo
do falante na linguagem", e RSI com sua redefinição do sintoma como função da letra, e
ainda o posfácio do seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
76 Lacan, o inconsc,-ente reincentado

fora do Simbólico, logo também fora de sentido, e até fora de sentido goza-
do, fora do "penso, logo se goza". O Real não todo, não universal, rebelde
à representação. Mas, com esse termo "falasser", vemos imediatamente que
a função da fala presente no início ainda está ali no fim.

A FALA INVENTARIADA

Trata-se de um retorno à fala? Não penso, pois ela nunca foi esquecida,
mas talvez não seja a mesma função da fala. A periodização, bem feita para
fazer esperar o que vai seguir no fim, por vezes tem virtudes pedagógicas,
mas não respeita o que me parece caracterizar a epistemologia de Lacan.
Esta por certo conjuga fulgurâncias e progressão, mas numa elaboração que
avança ao não cessar nunca de remanejar o conjunto das noções previamente
produzidas, que ela não anula. Delas até conserva as fórmulas às vezes, mas
as torna igualmente desconhecidas ao mudar-lhes o contexto à maneira de
uma teoria generalizada e em proveito de uma coerência que se desloca e se
renova num caminhar em espiral.
A fala convocada em "Função e campo da fala e da linguagem" era
uma fala de solução. Constituinte do inconsciente enquanto fala recalcada
e que retorna em outra parte, a "fala plena", restituída na análise, fornecia
o ponto-de-estofo que no final assegurava a identidade de cada um a seu
ser. Assim, a experiência se situava inteira no triângulo da fala amordaçada,
do isso fala em outro lugar e da fala plena, restitutiva.
Essa fala de solução rapidamente não deu certo no ensino de Lacan.
A esse respeito, o texto maior é o da "Direção da cura", que acaba na impo-
tência da fala. Você conversa, conversa ... O texto reelabora a tese freudiana
do desejo inconsciente como significado de tudo o que se enuncia pela
fala do sujeito e por todas as suas formações do inconsciente, pois coloca
"a incompatibilidade do desejo com a fala"~'. Como significado, o desejo
obseda a fala, lhe dá seu sentido, o sentido do objeto indizível, mas não há
fala plena que se sustente, o desejo, efeito de fala e que faz o ser do sujeito,
é inarticulável de seu lugar. Inconsciente indestrutível, dizia Freud.

45 J. Lacan, "La direction de la cure". Écrits, Paris, Le Seuil. 1966. p. 641.


(l ÍHcL111sci-211fe, r-2a/ 77

Com a noção do falasser, são novos poderes da fala que são revelados.
O texto da última conferência sobre Joyce o institui. Cito: "Daí minha ex-
pressão falasser que substitui o 1cs de Freud (inconsciente, é lido assim): sai
daí pc1ta eu então entrar. Para dizer que o inconsciente em Freud, quando
ele 9. descobre (o que se descobre é de uma só vez, ainda é preciso após a
invenção fazer seu inventário), o inconsciente é um saber enquanto falado,
como constitutivo d'uoM [LoM]"-i 6 • Esse saber falado é com toda certeza
aquele de alíngua, pois, no que se refere ao saber elaborado, ele antes se
assegura pelo escrito e dispensa sem maiores problemas a fala.

D I :3 0 R T 0 G R A F l .\ C .\ L C l' L\ D.\

Os primeiros parágrafos da conferência dão o contexto teórico dessa tese.


Lacan ali se entrega a um exercício de imitação de Joyce. Não pode fazer
isso sem um jogo com a letra, especificamente uma ortografia maltratada
que desconecta o que se ouve de sua grafia convencional: LO M [U O M,
O homem], eaubscene [elobsceno], Hissecroibeau [ele se acha belo]*, e paro
por aqui para demorar-me no escabelo. O escabelo faz imagem, falante se
posso dizer, para tudo o que permite elevar-se, promover-se como indivíduo
distinguido, the individual que Joyce encarna de modo bem particular. Há
aí um eco daquilo que Lacan no início de seu ensino sobre o estádio does-
pelho situava como a função da estatura, e até da estátua sobre seu pedestal,
elevando a forma erigida e imóvel do corpo próprio ao Cm do Imaginário.
O escabelo dos últimos anos é muito mais: diz respeito a esse sujeito real
de que eu falava, afirmando-se por seu desejo e seu ser de gozo.
Escabelo: Lacan escreve hessecabeau [escabeau], com oh de "homem"
e o esse do "ser" para dizer que o escabelo faz o homem. Por que esses jogos
de disortografia calculada? Existem outros possíveis, aliás, notei-o há mui-
to tempo em meus estudos passados sobre o caso Joyce. Também se pode
escrever: será caso belo [est-ce cas beau]?, ou é cabotino [est-ce cabot]?, para

"' J. Lacan, Joyce le symptôme li, Paris, Navarian, 1987, p. 33.


* Que s~ escrevcri.im, respt:ctivamente, L'homme, f'obscene, il se croit beau. (N.T.)
78 La e a 11, o i 11 e o 11 sei e n te r e i n i: e 11 ta J. o

fazer brilhar a dimensão imaginária e narcísica, ou ainda, como faz Lacan,


S. K. .. belo [S. K .. beau], utilizando as letras que eliminam o sentido, etc.
O interesse dessa trituração da materialidade pelo escrito só se com-
preende e só assume seu impacto em referência ao inconsciente real, "saber
falado".
Ela se serve da diferença entre o falar e o escrever para ilustrar algo
de um uso específico do escrito distinto do falar. Alíngua só existe como
falada, logo, também ouvida. O significante se ouve em alíngua, por certo,
mas alíngua é chiclete, uma multiplicidade na qual, lembro, os elementos-
unidades são problemáticos (do fonema ao provérbio). E os dicionários
perdem o fôlego recenseando os usos do já cumprido. O significante que
se ouve na língua só se isola pela letra, "estrutura localizada do significan-
te", "precipitação de significante" em seu laço com o gozo. E eis o clássico
ponto-de-estofo da cadeia significante suplantado, ou redefinido, como se
quiser, por enodamento direto do verbal e do gozar. Eu disse função renovada
da fala, mas é ela que de certo modo pede a referência renovada ao escrito
como instrumento para isolar seus uns problemáticos.
Mas o que valem essas letras de inconsciente decifradas com dificul-
dade se não passam de "lucubração de saber", e, eu disse, a tese se aplica até
à linguística, pois significante significado, S/s, supõe o escrito e a fortiori
o inconsciente "estruturado como uma linguagem", que resulta do esforço
para isolar e declinar os elementos-unidades?
Logo, a questão é saber o que "falasser" como nome do inconsciente
acrescenta ou muda no inconsciente freudiano definido como sentido do
desejo, que Lacan não recusa, dizendo ainda, em Televisão: "O inconsciente,
ou seja, a insistência com que o desejo se manifesta [... ]" 47 • Retomo.
"Falasser substitui o rcs freudiano (inconsciente, é lido assim)". Logo,
ele contradiz sua própria Televisão, na qual, questionado sobre o termo "in-
consciente", ele dizia que Freud não havia encontrado melhor e acrescentava:
"Não se pode voltar aí". Esse novo termo põe de novo em jogo a questão de
saber o que é o inconsciente, pois não foi só a época que mudou nas últimas
décadas do século; também a orientação dada por Lacan à psicanálise.

47 J. Lacan, Telévision, Paris, Le Seuil. 1973, p. 19.


() ;nconsciente, real 79

Vale dizer que o inconsciente lacaniano seja outro? Grande questão.


Lacan pôde dizer, na oportunidade, "O inconsciente é lacaniano", mas o texto
que escolhi explicita de outro modo: o que se descobre se descobre de uma só
vez. A invenção é freudiana, depois vem o inventário de suas condições, de suas
manifestações e daquilo que ele é. De Lacan, creditando-se de um inventário
mais completo, não se poderá dizer que ele se enfeita com penas de pavão.
Ele no entanto não minimiza sua contribuição: sai daí para eu entrar!
A fórmula não evoca mais a idealização da sublimação que o narcisismo do
escabelo. Ela marca antes uma redução à emulação e à competição, bem
em fase, aliás, com nossa época. Mas, se o "aí" do "sai daí" marca o lugar da
coisa-inconsciente, entendemos que após inventário de seus efeitos o nome
da coisa possa mudar.
O 1cs, um "saber enquanto falado como constitutivo d'uoM". Saber,
seguramente, já que é decifrado, mas saber escondido em alíngua falada.
Bem diferente nisto do saber da ciência que, este, só procede pelo escrito.
Ora, a fala, ao contrário da língua, não é fala morta, antes obscena, eu
disse. Enquanto falado, o saber está no nível do gozo. É este que o termo
"falasser" na verdade convoca, o falasser que não é o sujeito, antes o ser de
gozo desse sujeito falta-em-ser.
Deve-se, então, pensar que, no ensino de Lacan, o efeito de gozo dos
anos 1970 se substitui ao efeito de desejo dos anos 1960, numa cronologia
que anula a cada passo aquele que o precede? Não acredito: a referência ao
enodamento não resulta do trabalho da negatividade. Aliás, o objeto a não
está inscrito no cerne do nó borromeano? Este não seria de nenhum uso
analítico se não enodasse, além das três dimensões, as diversas elaborações
sucessivas de Lacan, se não condensasse, portanto, as etapas do inventário
que não se fez de uma só vez. Não é nem a ciência que só conhece seu
presente, nem a negatividade em marcha do sentido da história hegeliana.
Logo, não há que se escolher entre a falta-em-gozar primeiramente afirmada
como efeito do simbólico, o desejo, o objeto causa e o gozo.

O MISTÉRIO DO CORPO FALANTE

Entendemos a razão que lhe faz evocar UOM, o homem borromeano, se posso
dizer, constituído como Um a partir do enodamento das três consistências,
80 L '-1 e a n , v i 11 e 1.J n se i e 11 te r e i 11 e (; n f- a J L1

o que a escrita em três letras quase visualiza. Assim, a definição do falasser


é ela própria borromeana: a fala, até então situada como veículo do sentido,
ali se encontra pelo viés dos uns de saber que ela articula, conectada não só
ao sentido gozado, mas ao campo do Real, do gozo real.
Lacan havia formulado: "O inconsciente é que o ser, falando, goze".
Sim, mas como, já que desse saber falado-gozado eu, o falador, nada sei?
Lacan dá a resposta: "Eu falo com meu corpo". O homem tem um corpo, ele
fala com seu corpo, "ele falasser por natureza". Lembro esta frase, à primeira
leitura bem surpreendente, de Mais, ainda: "O Real é o mistério do corpo
falante, é o mistério do inconsciente"-;s_ Ela surpreende, para falar a verdade,
somente se reduzirmos o corpo à sua forma imaginária e esquecermos que o
Simbólico, sem o qual o inconsciente não seria, tem efeitos sobre o Real. O
primeiro passo da tese data na verdade de A ética da psicanálise e da Coisa,
definida como "o que do real padece do significante". E Lacan insiste: "Eu
falo sem saber. Eu falo com meu corpo, e isso sem saber. Assim, sempre
digo mais do que sei"49 • "A terceira" retomava textualmente: "O inconsciente
é um saber que se articula da língua, o corpo que aí fala só estando nela
enodado pelo Real do qual ele se goza" 50 • Em outras palavras, os gozos do
corpo são falantes. É evidente que estamos aí numa outra função da fala.
E, aliás, não é tudo, pois a fala que dizemos do sujeito é "fala gozosà'. Há
uma satisfação do blablablá que se deve ao que se enuncia ou não no sentido
banal do termo. Ela responde, do lado sujeito, aos gozos que alíngua civiliza
do lado corpo substancial.
Eu falo com meu corpo. A tese pediria uma retomada da função do
sintoma mensagem, mas mais ainda daquela das pulsões como efeito da fala
de demanda sobre as necessidades 51 e, portanto, como Lacan formula muito
mais tarde, "eco no corpo pelo fato de haver um dizer".
De fato, o que responde à questão do sujeito, na análise, o que per-
mite concluir sobre o que Eu Ue] quero naquilo que digo se não a pulsão,

48 ]. Lacan, Encare, Paris, Le Seuil, 1975, p. 118.


49 Ibid., p. 108.
50 J. Lacan, "La troisieme", Lettre de !Éco!e Jreudienne, nº 16, novembro de 1975.
51 J. Lacan, "La direction de la cure" e "Remarques sur !e rappon de Daniel Lagache". in Écrits,
Paris, Le Seuil, 1966.
{1 ,' J1 e L, n s e i ,2 n t e, r e 1..1 f 81

em metonímia ou em ato, e o sintoma "acontecimento de corpo"? "Falar


com seu corpo" é de fato solidário à hipótese lacaniana sobre a qual com
frequência coloquei o acento. O sujeito não é um ser pois seu ser está sempre
em outro lugar, não há Dasein que se sustente, mas há o ser do falasser que
tem um corpo a gozar. Isso no entanto não faz uma ontologia, a despeito
de Heidegger.
Resta saber se isso pode fazer uma gozologia, ou uma economia do
gozo como dava esperanças a noção de "campo lacaniano" produzida no
seminário O avesso da psicanálise. O próprio Lacan deu a resposta: não há
energética do gozo. Nem a cifra nem a letra valem como a constante nu-
mérica que define a energia no campo da ciência. ~ão há mais ciência do
gozo do que haveria ciência do objeto a. Daí concluo que a interpretação
ainda tem belos dias pela frente.
À ANÁLISE ORIENTADA
PARA O REAL
Ü P À S 5 E D E F I :-1

e hego às consequências do ICSR quanto à análise e a seu fim. Se não


há fim da possibilidade da transferência e não há fim tampouco do
inconsciente real, como há, então, um fim de análise possível? Não há fim
da transferência, eu disse, mas, em seu espaço, reiteração dessas passagens
[passes] ao real de que o lapso dá o modelo reduzido. O que será, pois, o
passe de fim? Essa questão atravessa todo o ensino de Lacan. Estava em jogo
em sua construção do objeto a, continua em jogo na consideração do ICSR,
que não podia deixar indene o passe de 1967.
Tomo as coisas do lado do sintoma, pois, de qualquer modo, se
houvesse só os lapsos, Freud não teria penado tanto. Na verdade, a palavra
lapso é o homólogo na diacronia da fala ao que é, na sincronia, a letra
do sintoma; mas, mais que o lapso, o sintoma é bem o que mostra que o
inconsciente real, fora de sentido, tem um valor de uso, uso de gozo, mas
não tem valor de troca. Com ele, o "não há diálogo" não tem sequer seu
limite na interpretação.
Entretanto, é possível aplicar-lhe o modelo reduzido construído a
respeito do lapso, eu disse. Cada vez que emerge um elemento parasitário
na intencionalidade, ele não deixa de pedir o trabalho associativo que dá
sentido ao revelar a fantasia, mas estamos no inconsciente real. Na entra-
da, falamos de sintoma analítico. Não é qualquer um, é um sintoma sob
transferência, isto é, montado como enigma a ser resolvido. Um que faz
questão, como se diz. Logo, nós o interrogamos porque nos perguntamos
86 Lacan, o inconsciente rei11i·12nta1..io

de onde ele vem, o que quer e o que quer dizer. Nós o montamos, por isso,
como significante da transferência. Logo, é o sintoma no qual acreditamos:
supomos que ele pode dizer algo. É o que mais comumente chamamos
subjetivação do sintoma.
O espaço do sintoma pode se definir exatamente como aquele do lapso.
É a extensão de sua associação a outros significantes que lhe dão sentido.
Logo, o espaço da hystorização onde ele fuxica a verdade. Quando esse
espaço não tem mais nenhum impacto de sentido, o sintoma está disjunto
de toda verdade subjetiva, ele é real, despregado do postulado transferencial.
O que resta, então? O elemento intruso (letra, diz Lacan em 1975) alojado
no nível do gozo. Daí por que pude imitar e dizer: quando o esp de um sint
não tem mais nenhum impacto de sentido, estamos no inconsciente, real,
fora de sentido. Reduzimos o sintoma a seu núcleo neológico. Clinicamente,
é, digamos, o fim da questão. Fechamento transferencial, portanto. Talvez
fosse preciso abrir aqui a questão da interpretação, conforme ela se ajustar
às escansóes da verdade, como fazia no essencial a interpretação freudiana,
ou conforme ela visar o inconsciente real, fazendo antes furo no sentido.
Deixo esse ponto em suspenso.
Mas, se não estamos mais na espera transferencial, se não acreditamos
mais que ele possa dizer algo, será por ele ter dito tudo?
Será que não poderia dizer ainda mais, ou outra coisa? Ao infinito,
portanto. E, supondo que se cale, não vai recomeçar a falar? É a perspectiva
da análise sem fim ou recomeçada. Essa questão está fundamentada. Está
fundamentada estruturalmente, é por isso que ela ressurge repetidamente.
Ela está fundamentada pelo fato de que, no fundo, o inconsciente alíngua é
inesgotável e até o que se isola como letra do sintoma sempre é hipotético.
Logo, fora de questão o inconsciente poder dizer até onde ir em sua própria
prospecção, não é ele que marcará nenhum de seus significantes, emergen-
tes na mancada, ou insistentes na repetição do sintoma, como significante
último. O inconsciente com certeza fala, mas não conclui. Entre mentira e
engano, no nível da linguagem, não há termo inerente à hystorização do lado
sujeito, e não há exaustão pensável do inconsciente-alíngua, do lado real.
Então, o que decide o termo? Nem o ICSR nem a verdade, mas o
terceiro comparsa que ali se acrescenta e que não é de ordem linguageira.
,--l a11ális2 orientada pa,·a o real 87

Nesse texto de 1976, ele se chama "satisfação". Vemos o paradoxo em re-


lação a toda definição estrutural. Essa inversão de tudo o que precede do
ensinamento de Lacan é muito tardia. No que se refere ao inconsciente
real, é possível considerar que ele o introduz em Mais, ainda, mas é preciso
esperar essa "Introdução à edição inglesa do Seminário Xf' para que o fim
por uma satisfação específica seja colocado. O termo não figura na propo-
sição de 1967 sobre o passe de fim, nem sequer em "O aturdito", em que
ele por certo evoca um luto que se acaba através de uma fase antes maníaco-
depressiva num efeito terapêutico "substancial" 1 , mas sem convocar esse
termo "satisfação". Ora, notei isso há pouco2, de fato, as frases dos sujeitos
ditos passantes que se prestam a testemunhar no dispositivo do passe não
demonstram esse momento depressivo, mas antes uma satisfação de fim.
Poderia ser um artefato do dispositivo, eu havia levantado essa hipótese,
mas o texto de Lacan lhe dá o fundamento.
A falha percebida do sujeito suposto saber assegura o inconsciente real,
mas não basta para assegurar o fim da análise. A condição complementar
para que a conclusão seja possível encontra-se do lado do afeto gerado na
sequência, que assegura a passagem [passe] ao inconsciente real. De fato: a
análise está em seu ponto de fechamento quando não há mais, digamos,
libido analisante, já que a libido analisante, causada pelo objeto que falta, é
aquela que corre atrás da verdade. Acabou o combustível, poderíamos dizer.
Se não me engano, eu havia acentuado esse ponto já há muito tempo. Foi o
que fez que eu ficasse interessada pela observação de Ferenczi que dizia que
"a análise deve morrer de esgotamento" e não por decisão. Poderia bem haver
aí ainda uma dessas geniais intuições anrecipadoras de Ferenczi. Pois, no
fundo, "esgotamento", como "satisfação", não é do registro da elaboração.
Por que esse termo "satisfação"? Tinha-se até ali o fim pelo objeto.
Ele tinha por referente o gozo, já que a é o objeto que falta ao gozo; depois,
o fim pelo sintoma, que igualmente o tinha por referente. Encontramos o
termo "satisfação" em Mais, ainda sob a forma daquilo que Lacan chama

1 J. Lacan, 'Tétourdit", Scilicet4, Paris, Le Seuil, 1973, p. 44.


C. Soler, "Une par une", novembro de 1989, in Retour à la passe, Publicação das FCL, 2000,
p. 429.
88 L a e a 11, o i n e o n sei e n te r 12 i n i· e 11 t L1 J L'

"uma outra satisfação", aquela da fala. A satisfação (tanto quanto, aliás, a


insatisfação) é o afeto que responde do lado sujeito ao gozo. Uma vez co-
locada a coalescência do significante e do gozo, sem a qual, aliás, nenhuma
literatura seria pensável, Lacan pode afirmar que há uma satisfação obtida
na fala e que essa satisfação do blablablá é aquela que responde ao gozo fá-
lico3. Satisfação e insatisfação situam a repercussão no sujeito daquilo que
passa para o lado do gozo, que, este, não é sujeito. Da mesma forma, na
expressão "identificação com o sintoma", o termo "identificação" designa a
resposta do ser. A modalidade do gozo repercute em efeitos sujeitos. A tese
se aplica à fala transferencial.
O que é, então, a satisfação de fim? Ela só pode se situar em relação à
satisfação do percurso. Ela não é "a outra satisfação" de que fala Lacan em
Mais, ainda. A transferência mantém a satisfação presa à verdade, e até à
corrida à verdade que, entre falta e espera, imita o desejo e faz brilhar o que
Lacan chama "a miragem da verdade". Essa satisfação não tem mais princípio
de parada que a verdade que fala, exceto ... a satisfação do fim, "que propor-
ciona urgência" e da qual se espera que ponha termo à miragem da verdade
e à satisfação da corrida. Em outras palavras: ela põe termo aos "amores com
a verdade" que a "Nota aos italianos" atribui a Freud. É coerente. Mas não
se deve imaginar que o fim dos amores com a verdade é o início do amor
com o inconsciente. Nem sequer amizade que se sustente!
A expressão "identificação com o sintoma" também designa um pon-
to de parada da libido analisante, do amor que se endereça ao saber. Em
proveito de um saber adquirido, se quisermos, mas somente sobre o fato do
inconsciente, sobre o fato de que há inconsciente. Não vai mais longe que
isso, não é um saber sobre o inconsciente, já que os pedacinhos que dele
pegamos não podem esgotá-lo, alíngua numa palavra a isso objetando.
Sublinho o quanto, ao convocar essa queda da satisfação obtida na
corrida à verdade, Lacan introduz um fator que objeta a todo automatismo
do fim. Em 1967, Lacan colocava que ao algoritmo de entrada em análise
respondia um algoritmo de fim. Em 1973, ele dá um modelo da passagem
[passe] ao Real por queda reiterada do sentido. Mas a tese aqui, nova, é que

J. Lacan, Encore, Paris, Le Seuil, 1975, p. 61.


8CJ

isso não basta de modo algum para assegurar o fim da análise. É preciso que
a isso se acrescente uma mudança na resposta de satisfação do sujeito. Ora,
de que depende o fator satisfação ou insatisfação? Ele define o ser, mas é
incalculável e, portanto, improgramável. É em vão que na análise alguns se
esmeram em buscar-lhe a origem no passado e, fora de análise, toda política
de previsão dos sujeitos é tentativa de foracluir o inconsciente. Esse incal-
culável do sujeito que podemos dizer ético permite que Lacan diga que a
demanda da satisfação de fim é uma urgência, cito, "que não estamos seguros
de satisfazer", e ele acrescenta: "exceto se for pesada''. Bem interessante esse
termo "pesar". Em todo caso, pesar não é calcular.
Essa pesada busca avançar para o que é esperado para além do "ponto
em que toda estratégia vacila", esse ponto bem assegurado estruturalmente,
em razão não só de hiância da verdade mas do real do inconsciente incon-
quistável. Para além desse ponto, não há suposto saber... o quantum de
satisfação. É o ponto de desafio ao cartel do passe: o sujeito é incalculável
e assim permanece. O tipo de satisfação, ou seja, o tipo de afeto que cor-
responde a essa estrutura, para um dado sujeito, não resulta de nenhum
cálculo, com essa consequência: que não se pode predizer nem a satisfação
de fim, nem o ato analítico. Daí também concluo que é o incalculável do
sujeito ético que torna o dispositivo do passe necessário, com seu paradoxo.
Espera-se de um passante que ele seja testemunha da verdade mentirosa- em
outras palavras, que ele hystorize sua análise. E para isso não bastará que ele
recenseie as produções de verdade que marcaram essa análise, pois aí seria
só o romance de uma análise. Ainda seria preciso que ele deixasse perceber
como a mentira percebida da verdade o curou da miragem e o fez perder o
gosto pela corrida, e isso embora até para dizê-lo ele só tenha como meio a
fala com sua verdade ... mentirosa.
Então, pesar a demanda, o que isso pode ser? Lacan evoca aí, penso, as
entrevistas preliminares, sobre as quais ele muito insistiu, e que manejamos
mal quando as prolongamos, mas sem distingui-las do trabalho associativo
que deveria ser reservado a sua sequência. Pesar a demanda, não penso que
isso queira dizer avaliá-la, o incalculável a isso igualmente objetaria. Daí,
aliás, a impostura ou a ilusão dos diagnósticos de analisabilidade na entrada.
90 Lacan, o inconsciente reinue11ta1..-/o

Pesá-la seria antes: assegurar-se do peso atual na entrada de uma espera de


outra coisa que ... verdade.
Último ponto, essencial: se a satisfação de fim é incalculável e impro-
gramável, qual é o peso do ato analítico e do modo de interpretação sobre
a produção dessa queda dos amores com a verdade, sem a qual não há fim,
e que a obtida percepção da falha estrutural não basta para produzir? O
analista pode lavar as mãos em nome do incalculável?
Falando do amor de transferência, Lacan o define como "amor que
se endereça ao saber". A expressão condensa os dois aspectos, epistêmico e
sentimental, da transferência, que são intimamente intricados e inseparáveis.
Fenomenologicamente, a dosagem difere enormemente de um sujeito a
outro. Ela oscila entre dois extremos: alguns se espantam por não experi-
mentar o amor de transferência e outros gostam mas se espantam por não
ver a relação com o saber.
Esse amor, Lacan afirma que é um amor subvertido. Mas nem um
pouco porque iria rumo ao saber; muito pelo contrário, ele combina muito
bem com o ódio da interpretação quando perturba os amores com a verdade.
Essa forma de amor é subvertida apenas na análise. Insisti na distinção entre
dois amores, o banal e o transferencial, o amor do Um bem percebido por
Freud, e o amor do 5 2 do saber, mas, na realidade, a diferença é menos de
essência que de lugar discursivo, e, se é subversivo na análise, é que "ele se dá
um parceiro que tem a chance de responder, o que não é o caso nas outras
formas" 4 • De fato, nas outras formas, entre pais e filhos, entre os amantes,
como o parceiro responderia com efeito de passe ao inconsciente?
Essa tese do "parceiro que tem a chance de responder", aplicada à aná-
lise orientada para o Real, joga sobre o analista toda a responsabilidade dessa
redução das miragens da verdade, embora ele até não seja mestre delas e não
possa antecipar o que no próprio sujeito vai aí responder. Assim, coloca-se a
questão dos meios específicos que pode se dar uma técnica analítica orientada
para o Real. Interpretação e manejo do tempo ali estão em jogo.

4 J. Lacan, "Inrroduction à l'édition allemande des Écrits", Scilicet 5, Paris, le SeuiL 1975. p.
16.
Ü T E ~1 P O , ~ A O L Ó G I C O

O essencial daquilo que foi elaborado por Lacan quanto ao tempo da


análise o foi no contexto de seu retorno a Freud, para uma análise tal
como Freud a iniciou, isto é, uma análise orientada para a verdade articulada,
a verdade que fala na estrutura de linguagem, pela boca do analisando mas
também pelos sintomas de seu corpo. É o tempo dialético do laiusser, com
o qual a sessão de duração variável concorda. Tempo da cadeia que assegura
o retorno do recalcado de surpresa, esticado entre antecipação e retroação,
tempo do futuro anterior do sujeito comandado pelos pontos-de-estofo de
seu discurso que no só-depois lhe farão encontrar as marcas das primeiras
contingências de sua vida.
Entretamo, o inconsciente real não é dialético e pede outros modos
de intervenção. Com efeito, coloco a questão de saber se a sessão curta la-
caniana e a duração que é preciso para a análise não teriam a ver com uma
mesma causalidade, embora até nos fatos a duração da análise, regularmente
longa, pareça independente daquela das sessões, que varia muito conforme
as correntes.
É na medida em que a psicanálise, como prática de fala, mobiliza o
Imaginário e o Simbólico, ou seja, o campo dos semblantes, que o Real ali
coloca um problema, e que podemos nos perguntar, como Lacan por fim
formulou, se não é um "delírio a dois". Marquei os passos da visada do Real
que levou Lacan a recusar uma a uma as metáforas de seus primórdios, a
passar do significante ao signo e à letra, da linguagem a alíngua e questio-
92 L 1.1 e a n, o i n e o n se; e H i e r e i 11 L' e n t :.Í
L7 _1

nar paralelamente o modelo científico da psicanálise como condição de


transmissão.
Esse real, que poderia surgir na fala e pôr termo à deriva infinita tanto
da verdade quanto da decifração, Lacan dele formulou três elaborações, eu
disse, incluindo três definições do passe final, não uma única. Nos três casos,
temos um princípio de conclusão por um real: o do impossível de dizer para
o passe pelo objeto, o do impossível de escrever para o passe pelo Real da
não-relação, "próprio" ao inconsciente, e o do fora-de-sentido para o passe
pelo ICSR simplesmente. Então, deve-se dizer que, nos três casos, o tempo
que é preciso e que achamos tão longo é o tempo de acesso à conclusão
epistêmica pelo Real? É seguro que não.

A VARL\\'EL '.\"AC' EPI:=:TÊ\IICA

Já em 1949, com a noção do "tempo para compreender", inantecipável uma


vez que jamais se reduz apenas à intelecção, Lacan havia marcado o lugar
daquilo que hoje chamo a variável não-lógica. Ela é perfeitamente evidente
quando se trata do inconsciente real: até sem falar do sintoma, quantos lapsos
trazidos de volta ao real não serão necessários numa análise para conseguir
constatar a miragem da verdade e concluir pelo inconsciente real?
É que, de qualquer modo. outra nriável não epistêmica está em
jogo. Aliás, é por isso que as vias de uma conclusão em ato nunca são só as
das necessidades da dedução lógica. Agradeçamos a Godel neste ponto, e a
Lacan, que punha os pingos nos is, bem no fim de sua Escola, ao dizer que
cada um concluiria "conforme seu desejo". E eis um dos nomes da variável
que descompleta a lógica o bastante para que a conclusão que soluciona a
queixa da impotência seja um salto. Em outras palavras, a conclusão de fim
a partir da conclusão epistêmica continua sempre possível.
Não é a ausência de um princípio de conclusão que torna a análise
longa, é que, em qualquer circunstância, o princípio de conclusão é insu-
portável, protegido pelo "horror do saber". Da olhada sobre o arcabouço
da fantasia, rápida ou não, à conclusão de impossibilidade da relação, até
o inconsciente real de alíngua, como saber insabido, o saber adquirido é o
......\.. 1..111álisi2 ,..1rie11tad1..1 para o rt2a/ 93

saber de uma barreira da aspiração ao saber, sinônimo de castração. Em con-


sequência, ele bate numa recusa, um "não quero saber nada disso" que resiste
à conclusão. "É necessário o tempo de se fazer ser", dizia "Radiofonia''. No
contexto, queria dizer: ser o objeto que está em exclusão interna ao sujeito.
O "se fazer" evoca o fazer-se aí [s),faire] e conota a paciência de suportar, de
aceitar o Real que a elaboração do inconsciente suposto fez aparecer.
Encontro um indicador dessa variável não-lógica, e daquela somente
possível do fim, também nos sujeitos dos quais tive a oportunidade de falar
e que, por terem vencido a relação com o saber que é a transferência, se
aliviam do próprio "horror de saber", convertendo-o em ódio', tanto ódio
da análise quanto de seus servidores, Freud, Lacan - e, é claro, daquele ou
daquela que os acompanhou no percurso. Existem bem outros indicadores
da variável não-lógica cujo lugar Lacan sempre marcou e que no fundo ele
inscreveu com a palavra "ética".
Vale dizer que com essa variável não-lógica não se pode prever o
tempo que será necessário à análise. A indeterminação "se" é que não é
só o analista, é igualmente o próprio sujeito. E quantas vezes não se terá
constatado com surpresa que o analisando decidido dos primórdios acaba
sendo o mais recalcitrante no fim? O inverso também é verdade, e vemos o
cético de entrada tornar-se o mais decidido na saída.
O princípio epistêmico do fim pelo Real é requerido para encerrar
uma análise, mas o fato de ser requerido não o torna suficiente: a isso se
acrescenta como condição necessária uma resposta do ser que não tem a
ver com a lógica. Poderia ser dita a justo título ética, se o termo hoje não
fosse tão depreciado. Aliás, um claro indicador dessa condição é encontrado
no tempo de luto que marca o fim da análise e cujo lugar Lacan indicou
de modo explícito, na "Proposição de 1967" bem como em "O aturdito":
ele se segue ao momento de vista do Real, rechaçando para além o termo
da análise.
Essa resposta do ser, que decide opções fundamentais de um sujeito
em relação ao Real, que o faz ou não desprezar seu horror de saber, é a
única que introduz a margem de liberdade sem a qual cada um seria ape-

C. Soler, "Le transfert, apres", Mensuel de l'EPFCL, nº 38, maio de 2008.


94 Lacan, o inconsciente rei11uentad ..1

nas a marionete de seu inconsciente. Ela não só é imprevisível, eu disse,


mas informulável como enunciado, e só se deixa abordar por signos. Lacan
acabou por situar esses signos do lado dos afetos gerados pelo passe à vista
do Real e ... ele precisou do tempo.

AFETOS DIDÁTICOS

Assim, não basta mais que uma análise tenha chegado a seu fim epistêmico
para fazer um analista. O desejo do analista não se deduz do saber adquiri-
do. É esta a tese da "Nota aos italianos" de 1974 e da "Introdução à edição
inglesa do Seminário X!' em 1976.
Segundo a "Notà', há analista quando o sujeito analisado, aquele que
delimitou seu horror de saber, o dele próprio, foi levado ao entusiasmo.
Outros podem ser levados ao contrário, evoquei isso, do horror ao ódio. A
experiência atesta isso. Mas há, ainda, outras alternativas, a mais frequente
sendo a do horror ao esquecimento. O darão do despertar, quando acontece,
em geral logo acaba, e o rebaixamento para as finalidades terapêuticas é aí
um cúmplice sempre disponível, e bem cômodo.
Em 1976, inflectindo um pouco os termos, Lacan propõe avaliar no
passe não o entusiasmo, mas "a satisfação que marca o fim da análise". O
artigo definido marca bem que ela não é eventual, que sem ela não há fim,
que ela é constitutiva do fim. Ela surge quando cai a satisfação obtida da
verdade mentirosa, eu disse. Seria uma mudança de gosto, uma satisfação
obtida do fora-de-sentido do inconsciente real que viria limitar aquela
obtida da verdade?
Vale dizer que, com esse princípio de avaliação que se refere não ao
efeito didático mas a uma resposta do ser ao efeito didático da análise, esta-
mos muito longe da ideia de que roda análise levada a seu ponto de finitude
produza um analista - entendam: um analista que se interesse pelo Real.
Nenhum automatismo nem do entusiasmo, nem da satisfação de fim. A
variável não-lógica torna o analista apenas possível, para além daquilo que
prudentemente chamamos o clínico.
É preciso medir aí a mudança de perspectiva que Lacan introdu-
ziu, com uma dupla desvalorização: da verdade em proveito do Real, da
A. ,111.:ífise ,,rientada para o real 95

estrutura lógica em proveito da posição do ser. Ela não pode deixar de ter
consequências práticas. O analisando trabalhador é um analisando que se
interessa pela verdade inconclusiva, por sua hystorização com um y, que
é um eufemismo; seria preciso dizer claramente que hystorizar-se e gozar
de sua fantasia é a mesma coisa, daí por que Lacan diz que o analisando
consome gozo fálico e que o analista se faz consumir. Assim, o amor da
verdade aparece como o que ele é, sintomático, e defensivo: a abundância
de tagarelice, o dizer besteiras à profusão mantém-se pela satisfação obtida,
que adia o momento de concluir.

Daí a questão dos meios que se dá uma análise orientada para o Real e da
responsabilidade do analista. Que pode ele que favoreça o movimento rumo
a essa destituição da verdade?
Reencontro aí o problema da sessão lacaniana e também da interpre-
tação propriamente lacaniana. Da sessão curta lacaniana - já falei disso no
texto "Uma prática sem tagarelice" 6 -, direi dela hoje justamente que ela
tem por alvo o Real visado pela análise lacaniana.
A questão não é objetar a Lacan que o inconsciente pede tempo para
se dizer, ele foi o primeiro a declinar isso sob todas as formas; a questão é
saber se o batimento abertura-fechamento do inconsciente que acontece na
transferência é isomorfo à alternância sessão/fora-de-sessão - em outras pa-
lavras, à presença do analista. Toda a experiência mostra que não é o caso.
E, primeiramente, esta, muito banal, do analisando que chega todo
animado à sessão, que, como ele diz, conversou o dia inteiro e a noite inteira
com seu analista e que, mal cruza a porta, vê desabar toda sua lucubração,
ou então permanece quieto ou então se ouve emitir frases totalmente ines-
peradas. Ao inverso, uma sessão vazia costuma desembocar, uma vez cruzada

1' C Soler, "L'ne pratique sans bavardage", novembro de 2003, Colloque de la Fondacion
européenne de pwchanalyse, in Trav,úller avec Lacan, Paris, Aubier, 2007.
06

a porta, numa evidência nova e assegurada. Tempo do inconsciente e tempo


da sessão, qualquer que seja a duração, não podem ser superpostos.
A sessão curta, e é o ponto crucial, não impede de modo algum, como
alguns dizem, a declinação parcela por parcela dos elementos do incons-
ciente. Parcela por parcela: é o efeito das escansões. Esses efeitos, sob certos
aspectos, são incalculáveis, mas os elementos que deles se depositam e que
a escansão permite extrair são, estes, limitados e objetiváveis. A diferença, e
evidentemente há uma, não é a capacidade de uma ou da outra de elaborar
o inconsciente. As duas o fazem, é o mínimo que se pode esperar... Saindo-
se disso, não se está mais na psicanálise, mas no grande campo psi, com o
qual ela não se confunde.
A diferença é que a sessão curta lacaniana faz com que o corte funcione
como uma interpretação daquilo que habita a verdade que o sujeito articula.
Mas por que não dar então essa interpretação em fala? Não é proibido, exceto
que a outra satisfação, precisamente, sempre arrisca empurrar os efeitos da
interpretação para as satisfações do blablablá. O corte da sessão que decepa
as palavras é "dedo apontado" na direção do gozo que lastreia a hystorização
do sujeito na análise. A analisanda que me dizia que a sessão curta era como
que um coito interrompido não pensava dizer tão bem. Em ''A direção da
cura", Lacan havia formulado a ideia de uma interpretação silenciosa, dedo
apontado na direção do significante da falta no Outro 7• Ao fim, é o dedo
apontado na direção do Real que vem nesse lugar.
Mas, na verdade, acho que o que conta numa sessão, seja ela de du-
ração variável ou curta, é seu fim, como para a análise, aliás. Há os fins de
sessão conclusivos que extraem um ponto-de-estofo, que em geral satisfaz;
os fins que questionam, sublinhando um termo que relança a questão trans-
ferencial; e depois os fins que chamei fins suspensivos, que nem concluem
nem questionam, mas cortam a cadeia da fala e atormentam o sentido. A
sessão curta praticada por Lacan, quase pontual, vai mais longe por fazer
entrar em ação a lâmina do corte entre o espaço dos ditos, dos semblantes,
e a presença real.
As duas primeiras, conclusivas ou questionadoras, são incentivos à
hystorização da verdade. As duas segundas, antes incentivos ao real. Elas têm

- ]. Lacan, "la direcrion de la cure'·. Écrits, Paris. le Seuil, 1966, p. 641.


. ,--\._ a11â/isc orientada pura o real 07

afinidades com a interpretação lacaniana apofântica, que, como o oráculo,


cito, "nem revela nem esconde, mas faz signo". Signo daquilo que ex-siste à
hysrorização do sujeito. A hysrorização se faz pelos tempos ditos de abertura
do inconsciente nos quais a verdade se desdobra. O tema é conhecido e fez
deplorar os tempos de fechamento. Mas o Real, seja qual for sua definição,
se manifesta em tempo de fechamento do inconsciente, talvez até de rejeição
do inconsciente tagarela, Sícut palea. O inconsciente real é um inconsciente
fechado, fechado sobre seus uns de gozo, autista e neológico, eu disse.
Entretamo, entre o inconsciente-verdade e o inconsciente real, não
há o que escolher. Não há análise sem hystorização do sujeito. Na diacro-
nia, o Real está no fim do processo, tanto o da sessão quanto o da análise,
em que ele funciona como limite e, portanto, ponto de parada da verdade
mentirosa, queda do sentido. Na sincronia, Real e verdade estão, digamos,
enodados, o que exclui que da verdade, apesar de roda a desvalorização que
a isso trazemos, saiamos por completo. "O discurso analítico põe a verdade
em seu lugar, mas não a abala. Ela é reduzida, mas indispensável" 8 • Aliás,
o inconsciente real "fuxica" a verdade, diz Lacan. É tão verdadeiro que, no
próprio momento em que ele afirma o inconsciente real, ele reitera a ideia
de que o passe consiste em mostrar a verdade mentirosa.

A S .\TI S F .\ ( .\ ..__, D 1: F 1:-.1

É isso que permite precisar a satisfação de fim. Ele não troca simplesmente
uma satisfação que seria obtida do Real fora de sentido por aquela obtida
da verdade no processo da associação livre.
Quid, pois, do afeto de fim, a famosa satisfação dessa passagem [passe]
ao real? Satisfação ou insatisfação é o que responde no sujeito a um estado
do gozo, que, este, não é do sujeito e sim do corpo.
Lacan falou positivamente do gaio saber [gay sçavoir], mas é bom não
se enganar. A satisfação de fim, se o Real ali estiver em seu lugar, recusa o
gaio saber tanto quanto a tristeza. Aliás, lendo bem, já se podia deduzir de

s ]. Lacm. E11core, Paris, Le Seuil, 1975, p. 98.


98 La e a n, o i n e o n sei e 11 te r e ; 11 i: e n tau.' l:

Televisão. Por quê? Porque o gozo da decifração, que define o gaio saber,
de qualquer modo, diz Lacan, traz de volta o pecado: em outras palavras,
a recaída na culpa e na tristeza que ela gera ao impedir se achar no incons-
ciente. Com efeito, na decifração, não nos achamos: ficamos numa deriva
sem fim no gozo fálico. Essa afirmação é coerente com a ideia de que o amor
do saber que é a transferência, amor que sustenta a decifração visando o
sentido, não sustenta o desejo de saber. Um fim de análise também é o fim
das alegrias da decifração.
A satisfação de fim se adquire com o uso, uso de um particular, diz
Lacan. Logo, está fora de questão encontrar para ela uma definição que sirva
para todos. Só é possível dizer o que a condiciona e sua função.
Tem a ver com a lógica da linguagem. É essa lógica que faz que,
como usuário do trabalho analítico, eu experimente repetidamente, após
as satisfações obtidas da miragem da verdade e dos instantes de despertar
para o Real, dois limites. De um lado, a mentira da verdade, cedo percebida
por Freud com seu próton pseudos, ou seja, sua impotência em reencontrar
o Real, entendo o real do gozo, tanto quanto em concluir; com ele não
consigo, castração assegurada. De outro lado, o inconsciente sem sujeito
se impõe e me supera, trabalhando sozinho, fora-de-sentido, em cada uma
de suas fixões de gozo.
Podemos precisar os afetos gerados tanto pela corrida à verdade quanto
pelas emergências do rcsR. De um lado. espera, esperança que evoluem no
tempo, de encantamento a decepção: a \·erdade fala mas não vai além de
um semidizer que faz da parte semi-não-dita uma miragem. Do outro lado,
os afetos da emergência do real, de lapso a sintoma, oscilam de espanto no
sentido forte à angústia. Angústia afeto-tipo de todo advento de real.
De que maneira é possível, dessas duas provas reiteradas ao longo da
associação dita livre, não sair na medida em que o sujeitado ali trabalha um
duplo desespero - ou, se preferirem, um desespero duplamente sustentado?
De resto, constatamos isso nos tormentos das fases finais da análise - pelo
menos ali onde o passe coloca a exigência de um fim de análise. Com efei-
to, por essas duas provas mantém-se, à medida que a análise as revela, uma
deterioração da espera transferencial, e conhecemos, por experiência, os
protestos que ela suscita. Entretanto, esses escolhos não levam necessaria-
mente a uma colisão com um rochedo.
_-\_ unâfis~ L... ri~ntadu para o ri2a/ Q9

A saída possíYel depende da maneira de "jogar fora esse enrolo", diz


Lacan, dos dois escolhos, da verdade e do real. Assim o entendo: à força
de passagens [passes] ao fora de sentido do Real, instantes de despertar,
sob o modelo descrito a respeito do lapso, passagens que fazem barreira
às ficções da verdade, e à força, ao inYerso, das repercussões da verdade
em sucessiYas ficções que, a cada vez, restauram a espera de uma subjeti-
vação do inconsciente, Yerdade e Real se fazem, alternadamente, objeção
ou, antes, contrapeso, a satisfação que cada um engendra - despertar ou
esperança - compensando, alternadamente, a insatisfação produzida pelo
outro. Daí, com o uso, uma terceira satisfação, que não é de\·ida à beleza
de sua simetria, é adquirida. Ela sozinha assinala que do inconsciente real,
que resiste às capturas do saber, o sujeito tomou o deYido conhecimento.
E, por tomar o devido conhecimento do Real, aliYia-se seu peso, pondo ao
mesmo tempo fim às falsas esperanças geradas pela miragem da verdade.
Então, esse passe é bem do campo lacaniano, ele não é de 1967, digamos
que ele o completa com o Real que lhe faltava. Aliás, é notável que ele lhe
mude a temporalidade. Ali onde o primeiro evocava o instantâneo da vista,
o clarão do atravessamento, o segundo convoca com o uso uma duração de
remanejamento do gozo bem diferente das descontinuidades do corte.
Entretanto, talvez seja preciso relativizar. Todas as construções de
1967 sobre o passe e o ato que ele condiciona já situavam o fim da análise
em referência ao gozo. Mas este só era conceimalizado pelo objeto a, que
Lacan, aliás, qualificava de ... real. Por que Lacan não se ateve a isso? O que
fundamenta, o que tornava necessários os passos seguintes para instituir o
campo lacaniano? A cronologia não basta, precisamos encontrar suas molas
propulsaras.
Lacan não podia ater-se às elaborações de 1967 por uma razão
fundamental, que ele mesmo percebeu e formulou de diversas maneiras
(não as recenseio aqui), é que o objeto a, a que está em posição de causa
na economia subjetiva e no laço analítico, é impotente em pôr termo no
semidizer da verdade mentirosa- em outras palavras, na fuga do sentido, do
sentido gozado. É antes ele, esse objeto, que não cessa de fugir pelo furo do
discurso, e sua instalação no lugar do semblante no discurso analítico não
faz deste um discurso do real. Não há discurso que não seja semblante. Há,
zoo L a <..~ l.? n , o ; 11 e o 11 s e i e 11 t L~
.11 t' ~· 11
r 1..', 1 l7 L?
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por certo, uma topologia do objeto a, mas o que a topologia situa de mais
real são os furos. Pelo menos é assim que me explico esta estranha frase de
Lacan que diz que os analistas que só se autorizam por seus descaminhos
- o contrário do analista orientado pelo real, portanto - vão encontrar seu
bem na topologia 9 . Aliás, acho que esse veredicto de insuficiência estava
nascendo na "Proposição" quando Lacan diz: "Saber vão de um ser que se
furtà'. Não se poderia dizer do ICSR, embora insabido, sem sujeito, que ele
se furta, uma vez que não se manifesta na fuga do sentido, mas em moda-
lidades de gozo bem tangíveis.
Ora, creio que a conceitualização desse Real é bem necessária para
situar aquele que triunfa no discurso capitalista, talvez até para pregar-lhe
uma peça. Lacan estava no momento exato, com certeza sabedor de que
o Simbólico não ganha nunca contra nenhum Real e que a alternativa é
jogada entre inconsciente real e real do capitalismo.
Resta, no entanto, a questão do sujeito produzido pela análise para
além do eventual passe final.

9 J. Lacan, "Peut-être à Vincennes", in Azttres écrits, Paris, Le Seuil, 2001, p. 314.


À A :\' ~.\ L I S E F L\' I T A

A IDE ~TIDA D E DE :3EP ARA~~\0

A questão que se coloca é o que a análise deixa ao analisando para além


dos efeitos terapêuticos. O problema da identidade ali é colocado, e não só
na saída, desde a entrada. Entretanto, a questão excede de muito o quadro
analítico e não é inútil fixar-lhe o quadro geral.

Os 1wmes e-la identidade"'

Escolhi demorar-me em suas relações com o nome e a nomeação. Não parto


de nada, uma vez que há uma tese, já ali. segundo a qual o sintoma é o
nome da identidade do sujeito, seu verdadeiro nome próprio. que destrona
o patronímico.
Sobre essa tese, que não vou desdobrar, atenho-me a duas obserYações.
É possível encontrar um indicador simples delas no fato de que certos su-
jeitos conseguem se renomear por suas obras. Mas o que é afinal uma obra
se não o produto do enodamento entre um desejo e um modo de gozo? O
mesmo acontece com os feitos e os desfeitos dos sujeitos. Por isso se diz:
um Fragonard, o teorema de Godel, Zorro o justiceiro, mas também Jack

'º C. Solcr, conterência em Rennes de 31 de março de 2007.


102 . '
Laca11, u i11co11scienle re 111 F l.' 11 l <.1 d o

o estripador, Sr. Maldito e, é claro, Joyce o sintoma. Daí a pensar que uma
análise visa encontrar o verdadeiro nome próprio é só um passo. Mas é dizer
também que todo sujeito tem pelo menos dois nomes próprios: seu patro-
nímico, do qual sabemos que sempre tem grandes ressonâncias subjetivas,
e seu nome reservado, o de seu ser de gozo.
O patronímico é um nome recebido da genealogia, transmitido. Di-
gamos que ele vem automaticamente do Outro. Aliás, patronymíkos vem de
pater e onoma, como se a língua registrasse a genealogia paterna. Entretanto,
sabemos que essa junção ao pai não é tão geral, há regras matronímicas da
nomeação. Além disso, a prática da nomeação generalizada para todos os
sujeitos é relativamente recente na história, pois durante muito tempo, e
desde a Grécia antiga, o patronímico foi reservado às grandes famílias. Há,
além disso, os casos atípicos em que é o corpo social que nomeia, por exem-
plo, as crianças achadas, ou nascidas sem nome. Como se hoje a obrigação
de declarar o nascimento, de inscrever obrigatoriamente sob um nome cada
criança nascida no cartório de registro civil, tivesse, para além de uma função
de controle social bem evidente, uma função de acolhimento de cada novo
vivente, função de certo modo homóloga sob o ponto de vista laico àquela
do batismo cristão.
Ao contrário do nome comum, cujo referente em geral é uma classe de
coisas, do patronímico se espera que ele indexe uma existência, e uma única,
independentemente de qualquer qualidade além da descendência e ... do sexo.
Com este limite como exceção: o patronímico não é um significante, pois
ele tende a designar independentemente de qualquer atribuição. Certo, um
patronímico pode ter um sentido: Sr. ou Sra. Boulanger [Padeiro J, Meunier
[Moleiro], Beauregard [Belo olhar], e por que não Soler [homofonia com
solei!: sol], que, em sua língua de origem, remete ao solo enquanto que, para
o ouvido francês, é o astro maior! Mas, de qualquer modo, em sua função
de nome próprio, o sentido é elidido.
O prenome que se acrescenta ao patronímico é coisa bem diferente:
ele não é transmitido automaticamente, pois inscreve uma escolha. Por
isso é sempre o estigma do desejo do Outro para com o recém-chegado,
um significado do Outro (s(A)) que traz o rastro de seus sonhos, de suas
expectativas. E quantas vênus, ofélias, marilyns ... a não ser que seja o rastro
_--\ ,111â/ise ,..,r;t:.... nt . .1.../,1 para o real W3

dos lutos quando for o prenome da criança morta, ou do avô lamentado,


ou o prenome misto que barra o sexo efetivo. Os sujeitos sabem disso tão
bem que alguns, recusando a marca, decidem se reprenomear a despeito
das exigências do registro civil.
A prática do prenome, e até dos prenomes plurais, também visa,
certamente, aumentar o poder identificador do patronímico. Entretanto,
este brilha pela indigência de seu poder discriminativo. Como prova, a
generalidade dos homônimos, que se alinham nos catálogos, e também a
prática que consiste em mudar o patronímico, quando o achamos ridículo
ou injurioso, talvez até perigoso. A não ser que seja simplesmente, pelo
menos em certos lugares, porque, sendo mulher, nos tornamos esposa ... Em
suma, o nome próprio no sentido banal é insuficientemente identificador e
ainda não consegue preencher o que seria o programa do verdadeiro nome
próprio: permitir identificar um indivíduo e apenas um.
Esse impotência dos patronímicos na verdade repercute as dificuldades
inerentes à definição daquilo que é um nome próprio em sua relação com
seu referente, que vou chamar o "nomeado". Nomeamos, acreditamos, algo
que "hâ'. Lembrem-se da história da Gênese: Deus, depois de ter criado
algo, lhe dá um nome. i\1as se nomeamos o que há- um referente, portanto
-, logo surgem várias questões. Este "hâ', como o distinguimos de qualquer
outro - em outras palavras, como identificá-lo em sua unicidade? É mesmo
um existente, já que é possível falar daquilo que, tal Pégaso, não existe, ou
só existe no imaginário. Daí o voto de Willard Quine de visar uma "imuni-
dade ontológica'' que não especule com a existência e que se atenha apenas
à questão da identidade: o que é este "há''? Essas questões, que simplifico,
deram lugar a elaborações lógicas consideráveis. John Stuart Mill, já em "A
system of logic", havia sublinhado que, com o nome, denotação e cono-
tação estão disjuntas. As elaborações posteriores se repartem grosso modo
em duas vias. Uma dita das teorias descritivas, que começa com Russell e
se prolonga notadamente com Frege, Searle, Strawson, é oriunda da teoria
das descrições de Russell. Ela consiste em ligar a função do nome próprio
a uma descrição que fixa uma propriedade essencial do referente, ou um
feixe de propriedades. Exemplo dado pelo próprio Russell: Sir Walter Scott,
o autor de Waue.rley. Ou ainda, exemplo de Kripke, Nixon, presidente dos
104 Lacan, o inconsci2ntc reinet.?ntLt,.ic

Estados Unidos da América em 1970, ou Hitler, o homem que matou mais


judeus. Vemos que se trata aí de completar o patronímico por um traço
identificador de singularidade que permita atingir sem confusão possível o
Um de identidade.
Ai, não esqueçamos que essas questões, por serem de lógica abstrata,
nem por isso deixam de ter um impacto muito concreto, como sempre em
casos assim. Pensem, por exemplo, na investigação policial, em que não se
pode deixar de lado traços distintivos que permitam uma identificação sem
equívoco. A carteira de identidade, por exemplo, não tem a ver, não sem saber,
com as práticas descritivas, ela que acrescenta ao patronímico uma série de
traços: data e local de nascimento e também os sinais particulares, como se
diz, para designar marcas corporais tais como as impressões digitais, que não
são do sujeito mas do corpo, igualmente suplantadas hoje graças à ciência
pelo DNA? Existem outras marcas, mais ambíguas, entre corpo e sujeito, que
foram buscadas na frenologia primeiramente, na escrita em seguida, em que a
grafia faz rastro singular infalsificável, especialmente na assinatura, e até, com
a ciência, as frequências da emissão da voz para além do acento audível; e por
que não acrescentar o estilo inimitável e insabido detectado pelo olho feminino
que Lacan evoca em seu seminário com "os sapatos do professor" 11 •
A outra via visa, ao contrário, eliminar toda conotação. Kripke é seu
representante mais eminente e mais renovador e tenta, especialmente em
Naming and Necessity, clivar o nome próprio de toda propriedade identi-
ficadora, de todo traço de singularização, para fazer dele o que ele nomeia
um puro "designador rígido", que separa a referência de todo sentido, que
identifica um referente sem dizer o que ele é. Dificil, porém, alcançar um
nome de identidade sem propriedade. O enunciado singular de pura exis-
tência cria problema, e é bem difícil se ater a isso na psicanálise.
Paro por um instante nos primeiros desenvoh-imentos de lacan sobre
o nome próprio, tais como figuram em "Subversão do sujeito e dialética do
desejo". O nome próprio aí designa o que de um ser não é identificado nem
identificável pelo significante. Se o sujeito é representado pelos significantes
que ele assume, esses significantes, porém, são apenas representantes que não

11 J. Lacan, L'éthique de la psychana~rse. Paris, Le Seuil, 1986. p. 3-'±3.


. .-\. t?nâfis.:z c1ri211tadt1 para t..'l real 105

dizem o que ele é, digamos nele mesmo, fora de representação, e que, portanto,
permanece um x. O nome próprio não é precisamente um significante que
representa o sujeito, mas o indicador daquilo que ele é de "impensável", daquilo
que dele não passa para o significante. Os dois nomes desse impensável são,
em Freud, "libido" e "pulsões", em Lacan primeiramente "desejo" e "sinto-
mà', depois o enodamento borromeano específico que define um folasser, o
que ele chama sinthoma. Assim, o nome próprio é mais o nome da coisa do
que do próprio sujeito. E, ao dizer do neurótico que ele tem horror de seu
nome próprio, que ele nada quer saber do que ele é como coisa, Lacan está
reformulando o que Freud chamava a defesa neurótica, fundamentalmente a
distância tomada graças ao significante em relação ao Real.
Em todo caso, o nome "sintomà' é um verdadeiro nome de identidade
na medida em que nomeia a partir de uma singularidade e de uma única.
É o caso nos exemplos que evoquei no início. O que me traz de volta ao
renome. É a palavra para dizer a celebridade. O fato de ser famoso (foma)
remete a uma segunda operação de nomeação, ao "se fazer um nome" embora
já tenhamos um. O nome "renome" consegue o que o primeiro nome não
consegue - a saber, indexar conjuntamente uma existência e seus traços de
unicidade ao enodar o patronímico à singularidade distinta. Difícil consi-
derá-lo um simples "designador rígido", a denotar uma existência sem nada
conotar de sua especificidade; ele é antes o único a poder fixar identidade
singular. Como chamar essa singularidade, que ela se manifeste nas obras
ou nos fatos notáveis, bons ou maus, a não ser singularidade sintoma? Sob
condição, evidentemente, de reter a última elaboração de Lacan que no-
meia sintoma não a anomalia, mas o enodamento próprio a cada um que
faz ficarem juntos corpo, gozo e inconsciente. Logo, renomear-se sempre
tem uma função borromeana, e é por ela que um sujeito assina com sua
assinatura infalsificável. Como prova, Joyce.
Para ele, há, no entanto, uma especificidade de seu nome sintoma
- genialidade deixada de lado. Lacan não disse Joyce, as línguas, ou "a
elangua"*, como ele se exprime no seminário de 18 de novembro de 1975.

* Em francês: l'éf,mgue, que conjuga Zangue e élan. (N.T.)


106 La e a 11, o ; 12 e o n se 1' e 11 te r e; n L' e 11 ta J L,

Teria sido nomeá-lo por sua relação sintomática com a linguagem, de estilo
antes maníaco, tal como ele culmina na escrita de Finnegans "Wake. Com
"Joyce o sintoma", ele nomeia não o sintoma que ele tem, mas aquele que
ele é - a saber, o fato, cito, de "cumprir-se enquanto sintomà' 12 , com o que
o infinitivo "cumprir-se" implica de tempo, de esforços persistentes assin-
toticamente na direção de seu ser sintoma, esse ser sintoma que consiste,
para ele, em se renomear e em assim assumir a função borromeana ao ponto
de suprir a carência de seu pai. Ao assim fazer, à série dos Nomes-do-Pai
ele acrescenta um, "o filho necessário" 13 , que não cessa de se escrever e que
renomeia "o espírito incriado de sua raçà'.
Quero interrogar o fundamento daquilo que leva Lacan nos anos
1975 a deslizar do Nome-do-Pai ao Pai do nome, pois não penso que seja
apenas o gosto pelo jogo de palavras que o inspira. O "fazer-se um nome",
que parece deixar toda a carga do nome ao próprio sujeito, não deve nos
impedir de ver que não há autonomeação, o que quer dizer que um nome
próprio, ainda que sintoma, sempre é solidário a um laço social. De qual-
quer modo, para isso é necessário, por certo, o que vou chamar a oferta à
nomeação, ou seja, a colocação do sujeito. Mas vejam o Homem dos ratos,
o caso de Freud: pode-se dizer que "rato" vem de seu inconsciente como
o nome de um gozo alojado em sua relação fantasmática com a dama e
o pai, mas é preciso Freud para designá-lo como o Homem dos ratos e
lhe dar, assim, seu nome de entrada na análise. Da mesma forma, Joyce
o sintoma é Lacan quem nomeia. Aliás, de fato também é o caso para o
nome que ele primeiro deu a si mesmo: o artista, que, para ser, teve de
ser homologado pelo público - digamos: o século. Na falta desse laço,
ele teria sido apenas o megalomaníaco que Yeats percebera nele quando o
encontrou em sua primeira juventude. Vale dizer que o nome está à mercê
do encontro incalculável. Logo, ele participa, em parte, da contingência
- assim como o amor.
Quem dispõe do poder - é um poder - de nomeação? Uma vez que
a contingência está em jogo, o poder de nomear é relativamente disperso.

12 J. Lacan, Joyce le symptóme II, Paris, Navarin, 1987, p. 35.


13 !bid., p. 34.
107

Pensem na injúria odienta. É uma tentativa de forçamento na direção


do nome de "gozo", mas que não faz realmente nome pois logo recusado.
Também há nomes de indignidade impostos, vindos do Outro embora não
consentidos, tais como o Sr. .l\1aldito. Depois, sobretudo, o amor que no-
meia. Esse tema atravessa o ensino de Lacan. Começa na noção de fala plena
alojada na intersubjetividade: "Se o chamo pelo nome que lhe dou, seja ele
qual for [... ]" 1\ ele me responderá ''só existe amor por um nome" 15 •
Os poetas perceberam isso há muito tempo, já citei Claudel em Par-
tilha do meio-dia: "Se me chamas por um nome que sabes e que eu ignoro
[... ] eu não poderia resistir" 16 • O amor que nomeia eleva o anonimato do
objeto causa do desejo à unicidade eletiva do laço. Vemos a que ponto o
nome é outorgado. Mas ele em nada fixa uma propriedade do nomeado.
Pensemos, além disso, em Marguerite Duras com "teu nome de Veneza em
Calcutá deserto", etc. Há, por certo, outros tipos de nomeações: as que se
fazem a partir dessas "propriedades" do nomeado que são as competências.
Assim, nomeia-se para um cargo, ou para retribuir um mérito (ordem do
mérito, diz-se). São nomeações socializadas e socializantes que inscrevem o
ser identificado no laço social. Quando é o amor que nomeia, ao contrário, as
propriedades do nomeado não são convocadas: o nome recebido não é ali o
nome de sintoma do amado, mas, ao contrário, do amante, nome do objeto
sintoma que sou para o outro. O "és minha mulher" dizia isso claramente.
Esses nomes dizem mais sobre o nomeante que sobre o nomeado.
Evidentemente se coloca a questão sobre o que especifica o Pai que
nomeia, a isso voltarei. É bem visível que seu dizer não se limita ao dizer
do amor heterossexuado. Como este último, ele nomeia o objeto-sintoma,
uma mulher, mas seu semidizer a isso acrescenta esse outro objeto que é a
descendência dessa mulher-mãe, estreitando assim entre eles os laços do
sexo e os da geração - laços estes dos quais os atuais avanços da ciência
deixam pensar que não estão tão inscritos na natureza que não possam
ser desfeitos.

1" J. Lacan, "Foncrion er champ de la parole et du langage", Écrits, Paris, Le Seuil, 1966, p.
300.
1' J. Lacan, L'angoisse, Paris, Le Seuil, 2004, p. 390.
1" P Claudel, Parrage de midi, Paris, Gallimard, "La Pléiade", 1967, p. 1005.
108 L a e a n , o i n e o 11 sei e n t ,z re i 11 e L' a Ít.? Jc.1

Os Nomes-do-Pai anunciados no plural combinavam com a função


do dizer, pois o dizer é uma função existencial, logo contingente, e portanto
pluralizável. Essa função pode se inscrever por um significante no singular,
o do Nome-do-Pai que Lacan nunca recusou, mas mesmo assim não é uma
função significante. Os Nomes-do-Pai plurais são, no fundo, os nomes de
dizeres diversos que trazem a função. Lacan deu alguns. A mulher, o homem
mascarado de Wedekind, e eu a isso acrescentava, graças a Joyce, o filho
necessário. Sabemos o interesse que Lacan teve por Wedekind, atribuindo
a ele, quanto ao sexo, uma perspicácia superior até àquela de Freud. Sua
Introdução ao despertar da primavera retoma essa questão do plural de uma
maneira que merece que nela nos demoremos. O Pai, diz ele, tem tantos
nomes que nenhum lhe convém, porque ele não tem nome próprio a não
ser o nome, de nome, de nome, ou seja, o nome como existência. Nessa
afirmação, o Pai designa aqui a função, pois no que se refere a um pai,
aquele que traz a função por sua pere-version, este tem um nome próprio
como todo sujeito.
Então, o nome de nome de nome do Pai-função? Podemos aplicar em
redução a essa tríade o jogo lógico que Deleuze aplica ao nome da canção de
Lewis Caroll em sua Lógica do sentido. "Pai" é um nome que tem um sentido
comum; "Nome-do-Pai" é um nome que designa a função; e todos os nomes
particulares desse nome de nome, "a mulher", "o homem mascarado", etc.,
constituem a série dos Nomes-do-Pai no plural, a série das presentificações
da função. Vale dizer que, se o dizer existencial pode fazer lei, e até lei de
bronze quando for o supereu, não há lei do dizer. O dizer paterno que no-
meia é, portanto, antes epifânico, como já formulei. Ele repete as injustiças
da natureza pelos acasos de sua emergência, mas sua contingência também
o desliga dos avatares da família conjugal. E, em todos os casos de dizer, o
dizer de nomeação tem função borromeana. Ele enoda as três consistências
ao prender o Real num laço social, imaginário-simbólico. Logo, ele a um
só tempo enoda e enó(s)da"', se eu puder assim escrever.

* Em francês: ... à la fois nouanc et nou(s)anc. jogo com no!!s. pronome pessoal nós. ('.\'.T.)
~---\. t.7 n â /is 1.:1 l1 ri L 11 t L7 d L7 ,_, L7 r u o r e o/

As sucessivas fórmulas de Lacan relativas ao sujeito de fim de análise são


numerosas: fim pela assunção do "ser para a morte", pela subjetivação da
castração, pela destituição subjetiva de passe, enfim pela identificação com
o sintoma. Essa variedade, que segue as elaborações da estrutura, é preciosa
pois obriga a escolher e pode assim ter virtudes antidogmáticas. Entretan-
to, ela nos deixa diante de uma questão: a do "dizer", do dizer único, a ser
induzida desses ditos múltiplos.
Se nos voltarmos para Freud quanto à análise finita, parece bem que,
segundo o que se extrai de seus ditos, o fim efetivo vem de uma simples
pragmática. Não foi o caso em Lacan, que não cessou de definir o ponto
conclusivo da análise, primeiro em termos de saber adquirido, depois, fi-
nalmente, de afeto produzido pelo efeito epistêmico.
Assim, a constante que atravessa a variedade das teses de Lacan tem
para mim importância particular. Uma afirmação nunca foi desmentida:
aquela que coloca, em primeiro lugar, que há uma conclusão definível; em
segundo lugar, que ela é inseparável da produção do analista; e, em terceiro
lugar, que ela tem um impacto político essencial.
O que se busca em suas diversas fórmulas é o que chamei uma iden-
tidade de separação'-. A expressão não é de Lacan, mas já em 1964, com o
Seminário XI, em que ele produz a noção da alienação à cadeia significante,
ele obsta com o que ele chama a separação pelo objeto. A identidade de
separação é concebida por diferença em relação às identificações de alienação.
Estas últimas se declinam numa análise e são chamadas a cair, como dize-
mos. Vêm do Outro, e dele comam emprestado os significantes: isso vai dos
ideais, I(A), I maiúsculo de A maiúsculo, até o significante fálico. Tentam,
por certo, "se cristalizar" como identidade, o termo é de Lacan, mas não
passam de tapa-miséria, se posso dizer, de um sujeito que é apenas suposto
e que não é identificável no Outro, no qual ele só faz função de falta (- 1).
No entanto, a análise acaba numa identidade de separação. Ela não pode vir
do Outro e é esperada da metamorfose analírica. É este o dizer invariante

,- C. Soler, "Les innrianrs de l'analyse finie", julho de 2004, Buenos Aires, in Hétérité, revue
de 1'1,-EPFCL, nº 5.
110 Lacan, o inconscie11le reinuentado

de L~can sobre esse ponto, no entanto trazido por fórmulas diversas, que
vão do "tu és isso" do texto de 1949 sobre o estádio do espelho à famosa
identificação com o sintoma dos anos 1975.

"Tu és isso".
1949, o que ele chama "Meus antecedentes", Lacan termina seu texto
dizendo que a análise acompanha o paciente até, cito, "o limite extático
do 'tu és isso"' 18 • Se isso não é uma fórmula de identidade, o que é? E de
identidade de separação, como indica o termo "extático".
Na década seguinte, é a famosa "assunção do ser para a morte" cujas
ressonâncias patemáticas ocultam a verdadeira estrutura. Uma vez que a análise
é então definida como a restituição da cadeia das falas constituintes do sujei-
to, poderíamos crer que a noção de intersubjetividade desenvolvida nos dois
grandes textos prínceps, "Função e campo da fala e da linguagem" e "Variantes
da cura-tipo", só deixa subsistir uma identidade alienada. Mas é precisamente
em relação a esta que a morte é convocada por Lacan: como um "centro exte-
rior à linguagem" - em outras palavras, real - e, mais precisamente, como um
paradoxal ponto-de-estofo real. E Lacan convoca o sujeito que, cito, "diz não",
não às agregações do Eros do símbolo, não à cadeia em proveito de um "desejo
de morte", do qual ele declina as três formas maiores, que não se confundem
com a pulsão de morte, mas que indicam, e Lacan diz isso de modo explícito,
que o ser para a morte é "afirmação da vida", a única verdadeira, segundo ele,
aquela que inscreve o ser próprio, único. A subjetivação do ser para a morte é
aqui concebida como uma instituição da diferença única. Ela passa ao ato no
suicídio de Empédocles, do qual Lacan fará mais tarde o paradigma da iden-
tidade de separação e que dá o modelo de um ato pelo qual o sujeito enfim se
torna idêntico a si mesmo. Não estamos longe do célebre verso de Valéry: "Tal
como nele mesmo enfim a eternidade o transforma''.

"Solução da análise infinita" 19 •


O que dizer, então, uns anos depois ainda, a partir de "A direção da
cura'', do fim por assunção - Lacan às vezes diz: subjetivação - da castração?

18 J. Lacan, "Le stade du miroir", Écrits, Paris, Le Seuil, 1966, p. 100.


19 J. Lacan, "La direcrion de la cure", Écrits, Paris, Le Seuil, 1996, p. 642.
~--\. ,.111ális12 ori1211tada para o real 111

O fim ali é anunciado como queda da identificação última com o significante


fálico, o fim do famoso "ser o falo" no desejo do Outro! Logo, um efeito de
desidentificação. Não está muito perto de um efeito de separação, uma vez
que o falo é o significante mediador da relação com o Outro, com seu desejo.
É verdade que esse efeito não identifica, ele antes deixa o S (Sujeito barrado)
por assim dizer a descoberto, e poderíamos crer aí num fim pela indetermina-
ção de um sem-identidade. Acreditamos nisso, e às vezes ainda o repetimos,
mas é que não lemos realmente a continuação e notadamente as linhas que
se seguem. É verdade que estão muito codificadas, mas não indecifráveis se
tivermos boa vontade, sobretudo para nós que dispomos da continuação.
O que dizem elas? Em primeiro lugar, que o efeito de separação que
é a desidentificação fálica é a condição da colocação em jogo da castração
imaginária na relação erótica com o Outro - dar e receber o falo. Ora, não
esqueçamos que a barreira freudiana, capítulo VII de "A análise finita e
infinità', é a recusa dessa colocação em jogo e a estase no desespero do pro-
testo para o homem ou da reivindicação para a mulher. "Fazer da castração
sujeito", conforme a expressão empregada por Lacan em seu resumo de "O
ato analítico", já é uma solução da barreira freudiana.
Ainda não cria identidade, é verdade, mas não é tudo. O texto se
encerra, em segundo lugar, no último parágrafo, naquilo que Lacan chama
a "solução da análise infinità', solução, sublinho, da barreira freudiana. So-
lução dada pelo próprio Freud, no dizer de Lacan. Pelo Freud que, em 1937,
começa a escrever, pela primeira vez, sobre o que ele chama a Spaltung. E,
para dizê-lo em substância, conforme as duas fórmulas que propus, que não
há o pênis, mas ... que há o fetiche. Nesse fetiche, pênis deslocado, segundo
os termos de Freud, Lacan reconhece a primeira introdução freudiana da
consideração do objeto, que ele mesmo ainda não escreveu objeto a, mas
cuja solução já tem.
Concluo, portanto, sobre esse texto. Temos aí não exatamente o fim
pela identidade de separação, mas um fim que não deixa de ter um efeito
de separação e já um indicador do elemento que responderá pela indetermi-
nação do sujeito - a saber, o próprio objeto. Nesse sentido, o texto é como
que uma peça incompleta que, quase na última frase, nos deixa no limite
da elaboração complementar futura.
112

Destituição.
Resta a famosa "destituição do sujeito" da época do passe, cuja ver-
dadeira natureza é difícil desconhecer, pois Lacan foi levado a precisá-la ele
próprio, notadamente em "O discurso na EFP" de dezembro de 1967. Ao
contrário do que o termo "destituição" conota, não é uma negativação e sim
uma positivação. Ela só é concebível relativamente à instituição do sujeito
suposto ao saber que é toda entrada em análise. Mas esta só institui o sujeito
como falta-em-ser, x do desejo, enigma da indeterminação, tão irredutível
pela cadeia significante quanto o recalque originário de Freud. É a esse não-
identificável que a destituição dá sua identidade por equivalência do S e do
objeto, este último sendo o único a responder ao "que sou eu?" de entrada.
É a não-identidade do sujeito suposto à cadeia que é destituída.
Entretanto, essa identidade objetal é paradoxal. Com efeito, uma vez
que o objeto, apesar de sua consistência corporal a um só tempo imaginária
e real, não é um objeto da realidade, apreensível nas coordenadas da estética
kantiana, a identidade pela causa do desejo é uma identidade irrepresentável.
Ela não tem representante. A destituição faz ser aquele que era falta-em-ser,
ela determina aquele que estava indeterminado, ela faz isso pelo objeto-causa
que decide seu desejo - é isso que quer dizer decidido e era isso também que
Freud dizia com seu desejo "indestrutível", penso-, mas esse objeto-causa
permanece não representável. E, ao termo de toda elaboração, Lacan solta
seu veredicto, que pode ser mal interpretado, de\'e-se dizer: "Saber vão de
um ser que se furta" 2º.
Logo, uma identidade de separação, mas que se furta. Não estamos
longe do limite extático de 1949. Tu és este objeto que não está significanti-
zado no Outro - separação-, tu és isso que não cessa de causar todos os teus
ditos e atos - constância - mas que nenhum dito representa, que nenhum
ato estanca e que, portanto, só se manifesta em ato. Nada espantoso que
logo depois seja o seminário sobre o Ato!

A identificação com o sintoma.


Com essa noção que tanto surpreendeu os alunos de Lacan na época,
verificamos que a inversão de perspectiva, introduzida pela consideração de

20 J. Lacan, "Proposition sur le psychanal~·ste de l'École", Scilicet 1. Paris, Le SeuiL 1968, p. 28.
113

alíngua e do inconsciente real, não recusa a constante do dizer sobre o fim


por identidade de separação. Ela o reforça. A fórmula é nova, mas o dizer
não o é, e ele nunca variou.
É que o sintoma no singular, formação do inconsciente real, não está
do lado do Outro, ele yem do Real, do gozo e de alíngua. Lacan define essa
identificação da maneira mais simples possível. Ela consiste, diz ele, em "aí
se reconhecer". O que quer dizer? A expressão deve ser comparada com
outra, da mesma época, e que diz que não é possível, nunca, se reconhecer
no inconsciente.
Evidentemente, para se reconhecer no sintoma é preciso tê-lo pelo
menos localizado, reconhecido, para além das mudanças terapêuticas, como
modalidade específica de gozo. É a condição para se virar com isso - "sa-
ber fazer com isso [savoir y faire] ", diz Lacan. Para o neurótico, que, por
definição, não se reconhece aí, disso se protege e, portanto, disso se queixa,
mesmo quando lhe acontece fazer pose de cínico, é um progresso.
Reconhecer-se aí é assumir aquilo que deve bem ser chamado uma
identidade de gozo. Nada a ver com a identificação com o Outro. É, pois,
o sintoma reduzido ao "que não cessa de se escrever", que responde ao "o
que sou?" de entrada. O precursor dessa tese estava no fim do seminário
Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, em que Lacan, evocando
uma identificação de tipo especial com o objeto a, já visava uma iden-
tidade de separação pelo gozo. Com efeito, o que o sintoma determina
não é o simples sujeito suposto ao significante, mas, ao contrário, como
indiquei, o que Lacan designa em 1975 como o "sujeito real", realmente
ali, o sujeito "patemático" - a saber, o indivíduo falasser, que tem um
corpo, e substancial, real.
Assim, a trajetória de Lacan vai da identidade inefável, afirmada desde
1949, até aquela que a letra de gozo do sintoma arranca ao inefável, a letra
sendo a única na linguagem a ser idêntica a si mesma, 1975. Vou voltar a
esse ponto, afinal mais complexo do que parece.

A ética, jamais individualista.


Identidade é o contrário do extravio; separação, o contrário da alie-
nação. Causa estupefação ver a que ponto Lacan produziu mal-entendidos
114 Ll1ca12, u inconsc;en{e reinve11taJu

e foi mal compreendido por seus primeiros alunos. Estes elevaram a páthos,
e, com isso, a ideal, sucessivamente, a falta, a castração, o des-ser, a desti-
tuição, sem esquecer, é claro, o não-saber. Daí a estupefação quando viram
aparecer a identificação com o simoma, que, no entanto, apenas colocava
o derradeiro ponto-de-estofo na tese presente desde o início. Desse mal-
entendido o próprio Lacan deu o diagnóstico ao evocar os analistas "que só
se autorizam por seu extravio".
Ora, sem essa tese fundamental do fim por identidade de separação,
como aceitar um fato clínico maciço - no qual, aliás, os inimigos da psi-
canálise não perdem a oportunidade de insistir -, falo do fato de que estes
que são ditos analisados, para quem a análise às vezes mudou tudo, pois
bem, estes, no entanto, num certo nível, permanecem os mesmos, além
disso endurecidos?
Esse tempo excessivo para compreender tem inconvenientes. Clínicos,
é claro, mas não só, na medida em que a concepção do fim da análise tem
um impacto político decisivo.
Desde o início, falando da psicanálise, Lacan colocou que "a ética
não é individualistà' 21 e que traz a contrario efeitos da civilização atual.
Relendo o conjunto desses textos, fiquei impressionada com o número de
observações virulentas feitas à época e que se aplicariam perfeitamente a
este início de século XXI. Rapidamente: tempo de galera social, barbárie
do século darwiniano, produzindo vítimas comoventes: é "A agressividade
em psicanálise" 22 ; objetivação do discurso que cassa o sentido do sujeito: é
"Função e campo da fala e da linguagem", depois as éticas do supereu e do
terror: são "as Observações sobre o relatório de Daniel Lagache". A propo-
sição de 1967 sobre o psicanalista da Escola, prognosticando um futuro de
segregação pelos campos, dispenso o resto, até ''A terceira", que nos reconhece
todos proletários, não tendo mais nada para fazer laço social.
Paralelamente a cada um desses diagnósticos, a missão da psicanálise
é redefinida: ''Abrir novamente a via de seu sentido numa fraternidade dis-
creta [... ] à vítima comovente" 23 ; porque "a satisfação do sujeito encontra

21 J. Lacan, "La chose freudienne", Écrits, Paris, Le Seuil,1966, p. 416.


22 ]. Lacan, 'Tagressiviré en psychanalyse", Écrits, Paris, Le Seuil, 1966, p. 122.
23 !bid., p. 124.
_-1. ..1n..ilis2 . .,riLntadi.1 para o real 115

meios de se realizar na satisfação de cada um" 24; saída das éticas do supereu
pelo silêncio do desejo 2"; e depois, fazer servir sua castração, "Subversão
do sujeito e dialética do desejo", subtrair-se ao "rebanho", sair do discurso
capitalista, Televisdo, e, enfim, opor-se ao real - entendo: o real do sintoma
social proletário, '~,-\ terceira''.
Vemos que, em todos os casos, e seria preciso acompanhar esse en-
caminhamento mais em detalhe, a finalidade prescrita vai no sentido de
restituir um laço social para além da resolução da alienação ao Outro que
a análise procura produzir.
Quanto a esse ponto, o que acontece com a identificação com o sintoma,
que concentra o mais íntimo do gozo autista? Ela não multiplica o individu-
alismo forçado e a derrelição do proletário moderno? .\lguns se perguntaram
como, passado o ano 2000, e uma vez que os sujeiras de hoje \-iwm às voltas
com os Yalores do capitalismo, como ainda se poderia querer "alcançar em
seu horizonte a subjetividade de sua épocà' como Lacan preconizava para o
analista no fim de "Função e campo da fala e da linguagem". É que os mesmos
devem ter pensado que a identificação com o sintoma era homogênea ao regime
daquilo que chamei o ''narcinismo" generalizado de nosso tempo. Acho que
aí está o erro. O sintoma social do "todos proletários", que globaliza a relação
conforme de cada um com os produtos do mercado, é disruptiva do laço social,
estabelecendo apenas wn único laço, muito pouco social, de cada um com os
mais-de-gozar prescritos. Não é o caso do sintoma fundamental- ou, melhor,
do sintoma que de modo algum exclui o laço social se ele for, como vou mos-
trar, sintoma borromeano, que enoda para cada um, de modo singular, jamais
global, o desejo e os gozos, o Imaginário, o Simbólico e o Real.

A IDE:\'TIFICA(AC' C0:-1 O SINTOJ\lr\ 0L ... PIOR

O sintoma é aquilo que, através do inconsciente, supre a foraclusáo da relação


sexual. Assim, está estruturalmente excluído que o sintoma fundamental

2; J. Lacan, "Fonction et champ de la parole er du langage", Écrits, Paris, Le Seuil, 1966, p.


321.
25 ]. Lacan, '·Remarques sur le rapport de Daniel Lagache", Écrits, Paris, Le Seuil, 1966, p.

684.
116 L a e a 11 , o i 11 e o 11 s e i e n t e r e i 11 i· t! 11 ta Jo

esteja ausente em fim de análise, saibamos disso ou não. O que não exclui o
efeito terapêutico. Ele consiste em modificar uma parte de sintoma, aquela à
qual é possível dar sentido através da decifração. Vejam o caso paradigmático
do Homem dos ratos: ao fim da decifração, sua obsessão desaparece, mas
o sintoma fundamental de sua relação com o parceiro sexual não está nem
resolvido nem elucidado.
Esse sintoma não é qualquer um. No início e no decurso da análise,
estamos às voltas com sintomas plurais, múltiplos e variados, que criam
empecilhos às conformidades regradas pelos discursos estabelecidos. Ao
contrário, o sintoma no singular é aquele que estabelece laço ali onde pre-
cisamente não há laço social estabelecido e, pois, no "campo fechado" da
relação com o sexo ou com os diferentes objetos que podem tomar o seu
lugar - em outras palavras, nos "assuntos de amor" - que Lacan podia di-
zer em Televisão que eles estão clivados "de rodo laço social escabelecido" 2('.
Vale dizer que, da mesma forma que o esquizofrênico enfrenta seus órgãos,
e até mais, sua vida, sem o socorro de um discurso estabelecido, da mesma
forma rodo jàlasser enfrenta sexualmente o Outro do sexo sem o socorro de
um discurso estabelecido. O sintoma supre. Nesse nível, cada um é sem-
igual. Chamei esse sintoma de sintoma fundamental por analogia com a
fantasia fundamental. Também poderia dizer: sintoma derradeiro, já que
é ele que supre no campo do gozo a derradeira palavra que falta no campo
da linguagem.
A análise vai necessariamente do sintoma de entrada ao aperfeiçoa-
mento do sintoma de saída e impõe, portanto, a questão de saber, em cada
caso, o que é, no fim, a posição do sujeito para com seu sintoma fundamental,
o que ele sabe disso e o que disso suporta. Ao dizer que aquilo que se pode
fazer de melhor é aí se identificar, Lacan evidentemente deixa entender que
existem outras possibilidades ... piores.
Assim, exploro as alternativas. E, antes de mais nada, as alternach·as
excluídas. Com o sintoma borromeano não se pode dizer: ou o sintoma ou
o desejo, tampouco: ou o sintoma ou o laço social, como às vezes se ouve.
É um sintoma que faz laço entre os seres ao estabelecer um enodamento

~6 J. Lacan, Téléz•isio11. Paris. Le SeuiL 19-3, ?· 61.


17 7

entre gozo e desejo, entre Real e semblantes. É inexato pensar, como às vezes
se ouve dizer, que as últimas elaborações de Lacan tornam caducas as teses
sobre o sujeito da falta e do desejo.
C'm sintoma que faz o laço social específico entre os corpos inclui o
desejo e a fantasia que o sustentam. A tese se deixa ler claramente quando
Lacan, em seu desem·ol-vimento sobre o que é um pai que sustenta a função
Pai, sima sua mulher parceira a um só tempo como causa de seu desejo e
sintoma de seu gozo. ;\'ão podemos mais opor o Eros do desejo. que seria
socializante. pois que assegura a relação de objeto, e o sintoma. que seria
associal, recuo para o gozo próprio. É verdade que existem sintomas autis-
tas, mas igualmente desejos sufocados, igualmente associais. que es,·aziam
a relação com o outro de sua substância e que sáo relatiYamente bem ilus-
trados, sem ir buscar muito longe, pelo fechamento obsessivo e pela busca
aniquiladora da histeria.
Tiro daí uma primeira conclusão: a questão é apenas saber, para cada
caso, que tipo de gozo está ligado a que causa do desejo. Lacan respondeu
claramente à questão no que se refere ao sintoma-Pai, à versão pai da perver-
são. Existem outras wrsões, é claro: as dos sintomas celibatários desabonados
do outro sexo; as da gama dos sintomas heterossexuais não-pai, que, até o
rnlmen das tentações donjuanescas, bem querem mulher, mas não mãe.
Segunda conclusão: a oposição da "travessia da fantasia'' e da identi-
ficação com o sintoma deve ser repensada. É verdade que, na cronologia de
seu ensino, Lacan primeiro acentuou a crawssia da fantasia que faria surgir
para o sujeito seu ser de objeto e que sua concepçáo do momento do passe
é construída a partir daí. Mas a identificação com o sintoma. solidária ao
inconsciente real, não a recusa, ela a engloba e a completa. :\"ão as oponha-
mos a pretexto de trazer novidade a qualquer preço.
Alternativas: identificar-se com seu sintoma é a alternariYa a uma
outra identificação, a identificação com o Outro, O maiúsculo, em suas
diferentes ocorrências, ainda que seja a famosa identificaçáo final com o
analista promovida pela IPA. Numa análise que o sujeito demanda por estar
sob o peso de identificações incômodas - a percepção subjetiva do sintoma
sendo relativa às identificações-, com essa identificação final lhe é dado por
objetivo retificar essas identificações em favor de outras supostamente mais
118 La e 1.111, u ; n e o n sei e 11 t t2 rei n t' 1_; n t t.1 Jo

conformes, mais aceitáveis, o próprio analista colocando-se como medida


da norma. Esse tratamento das identificações de alienação por outras é mais
que um paradoxo: um rebaixamento do discurso analítico ao discurso do
mestre, que, por restaurar de outro modo a regência do Outro, reforça a
alienação.
Da identificação final com o sintoma podemos dar uma definição
fraca e dizer que consiste simplesmente em aceitar o que não pudemos
transformar. Esse rebatimento da noção sobre a mera resignação não teria
muito interesse. A noção só tem impacto se tomada no sentido forte. A
meu ver, ela se define por dois traços: não se trata apenas de consentir, ou
até de cessar de se queixar, o que, aliás, já seria um progresso; muito mais
essencialmente, trata-se, primeiro traço, de não mais sofrer com isso. Iv1as
esse próprio resultado, quando obtido, é o sinal de outra mudança, em que a
travessia das identificações está em jogo. Não esqueçamos que o sofrimento
engendrado pelo sintoma não deixa de ser produzido em grande parte pela
divisão do sujeito entre Ideal e pulsão, para retomar os termos de Freud,
aquela mesma que impede de estar de acordo com as prescrições do discurso.
Produzir um sintoma, que eu ousaria dizer "feliz", sobre fundo da maldição
sexual não é uma impossibilidade, uma vez que o sintoma fundamental é
a solução que um inconsciente dá à castração, que, esta, por outro lado, é
uma infelicidade universal - embora mascarada pelo pré-tratamento que o
discurso lhe impõe. Logo, um sintoma feliz - sem esquecer o tom menos
exigente que aí convém.
Ainda não é o traço principal. O segundo traço não é patemático, é
epistêmico. Identificar-se com o sintoma é, se quisermos, nele se reconhecer.
Com o inconsciente freudiano, está excluído nele se reconhecer tanto quanto
nele se conhecer em razão daquilo que, segundo Freud, permanece primor-
dialmente recalcado, urverdrangt, tanto quanto indestrutível, falha impos-
sível de ser preenchida no dizer. A apreensão dos efeitos incomensuráveis
de alíngua multiplica essa impossibilidade, que só o sintoma fundamental
compensa. Só nele o sujeito pode encontrar seu princípio de consistência
e constituí-lo em resposta à questão de entrada: o que sou? Sou esse gozo,
ou, mais precisamente, essa modalidade de enodamemo entre um desejo
impossível de tudo dizer e um gozo fixado por uma letra do inconsciente,
~...\_ 1.--:11â/;;:,2 ...,ri.:i,1tada para o real l]Q

ainda que eu a desconheça. Assim, o sintoma fundamental é o único a po-


der criar identidade, nome próprio verdadeiro - no que malogram todas
as identificaçóes.
Não fosse isso, bem poderia ser o que Freud chamou a reação te-
rapêutica negativa. Reportemo-nos a sua definição: ela comporta os dois
traços que acabo de imputar à identificação com o sintoma, mas invertidos.
Freud nota isso: nessa reação, o sujeito continua a sofrer sejam quais forem
os seus avanços; e ele até precisa que quanto mais um progresso é confir-
mado, mais há retorno de sofrimento. Não é só isso. A reação terapêutica
negativa não se contenta em não ceder na dor, ela se mantém firme no
desconhecimento. Freud insiste nisso: o sujeito diz "Estou doente", o que
significa que ele acha que seus distúrbios não implicam seu inconsciente.
A fórmula "Estou doente" recusa o reconhecimento do sintoma como fato
de sujeito, traz uma recusa, eu poderia dizer - uma rejeição da "atribuição
subjetivà', para retomar um termo que se aplica à psicose-, e significa que
aquilo de que padeço me é tão estranho que não posso ali reconhecer nada
da "obscura decisão" de meu ser. A reação terapêutica negativa, tal como
Freud a descreveu, e sem confundi-la com a barreira final da análise - ele
aliás lhes dedica dois capítulos diferentes -, essa reação, portanto, está no
extremo oposto da identificação com o sintoma: ela conjuga um retorno
de infelicidade e de recusa de saber ali onde a identificação com o sintoma
articula uma satisfação e uma vista.
Deve-se ainda acrescentar que a reação terapêutica tem toda uma
série de graus que a afastam de sua forma extrema e nos quais a tristeza e o
"não quero saber nada disso" se misturam em mixagens variadas. Quando o
sujeito não cede no que ele gostaria de ser ou no que ele imagina que outros
são, quando, pois, ele não cede em seus sonhos, quando ele continua, para
além dos primeiros efeitos terapêuticos, a recusar não só o real da castração
impossível de evitar, mas também a solução necessária que seu inconsciente
a isso já deu e que não cessa de se escrever, então, temos todas as gradações
dos fins que eu de bom grado qualificaria de fins por desencantamento.
Então, é a escolha reiterada da neurose. Aliás, ressalto que esses fins são
pouco ouvidos no dispositivo do passe, talvez porque esse dispositivo sele-
120 La eu 11, o ; 11 e o 11 sei t! 11 te ,. .J i n r· t? 11 f l1 j 1..">

cione quase automaticamente os sujeitos que pensam poder testemunhar


positivamente, eu havia notado já há alguns anos 27 •
Há uma outra alternativa na qual desejo me demorar, é a do sintoma
de transferência. A expressão é justificada na medida em que no discurso
analítico o parceiro causa do desejo, o analista, também é condição do gozo
do inconsciente.
É que existem várias maneiras de gozar do inconsciente. O sintoma
fundamental é uma que engaja o ICSR A associação livre é outra que joga
com a declinação plural daquilo que eu poderia chamar o rosário dos sig-
nificantes. Ali se goza não da letra fixa, mas da série dos uns que derivam
na fala. Esse gozar do inconsciente através da associação livre está ligado a
uma temporalidade na qual domina a série e que pertence à modalidade
da infinitude, da interminável recitação do inconsciente, com os efeitos
de sentido que ela engendra. Ela é solidária à crença no sintoma, ponto
que desenvolvi há pouco. Ao contrário, o sintoma fundamental não é um
ser flutuante de cadeia, sua constância faz barreira fixa à deriva da cadeia
da linguagem. Ele tem a ver com a modalidade da finitude, do limite, e a
identificação com esse sintoma põe fim à crença a isso ligada e à expectativa
de que ele ainda diga algo via corrida à verdade.
Logo, identificar-se com o sintoma no fim da análise é mudar de
sintoma, trocar o sintoma de transferência pelo sintoma fundamental e
passar da indeterminação à consistência. do e\·asivo à asserção e também
da falta-em-ser ao ser de gozo.
Mas por que preferir os segundos desta série de termos? Comparados
a que consistência, asserção e ateísmo do sintoma seriam eles melhores? Eles
não são melhores, mas o contrário deles - a cultura da incerteza, do evasivo,
da falta-em-ser e da crença - tem por correlato uma alienação específica:
a alienação à presença real do analista como condição do gozar do incons-
ciente. Essa alienação à presença real é uma alienação que não é a alienação
ao significante do ideal, que também existe na análise, mas que a precede e
a mascara na sequência da cura. Creio que essa presença real já é aquilo que

27 C. Soler, "Leçon clinique de la passe I'', Comme11tfi11issent les analyses?, Paris, Le Seuil, 1994,
p. 181.
..---\ a n â /is~ . ., ri ,z 11 t <.1 Ja par a o r e a/ 121

Lacan evocava, em outros termos, em "A direção da cura", quando falava


das satisfações. tão difíceis de desatar, da fase final da análise. A questão
não é nova. Freud já não dizia, com seu impagável humor, que, depois de
ter feito um esforço louco para reter os pacientes, ele devia então fazer um
esforço louco para fazer com que parassem? Aliás, noto que a questão que,
com deito, primeiro se apresentou quanto à duração das análises coloca-se
de maneira mais ampla, pois não é só na cura que é possíwl usar a presença
do analista sintoma. É também na instituição, em que ele !-"ode servir, fora
de análise, de sintoma-prótese 28 •
Logo, concluo que o benefício verdadeiro da ién::1:.:i..:.'i.o com o sinto-
ma é produzir, como eu disse, o efeito de ser2ri.cá:-, :-=_r_.~ C:L: .i.1 ;: solução do
laço transferencial sem voltar à idenrincacác1 ccr.1 :, (!_1:,,:, :1~.1:mc:ik,. Lacan
primeiramente evocou esse efeito separativo no Se;;,•f;;,z;·Jc, _"IJ, Jepois em "O
aturdi to", em termos de luto do objeto a, mas ele pode ser reformulado em
termos de sintoma, como faço aqui, o que tem a vantagem de incluir nas
formulações a verdadeira mola propulsora que se opõe ao efeito de separação
- a saber, outro sintoma, que condensa outro gozo, o da transferência.
As duas alternativas que acabo de examinar - a reação terapêutica
negativa ou a perpetuação do sintoma de transferência - já me permi-
tem dizer: ou bem a identificação com o sintoma, ou pior, o fracasso da
análise finita.
?vluitas questões deveriam ser aqui desenvolvidas por abrirem, a meu
ver, um vasto programa de clínica diferencial, pois é provável que cercos sin-
tomas se prestem com mais facilidade a que com eles nos identifiquemos.
A clínica masculina, que constatamos fazer muito menos falar que a
clínica feminina, poderia ser afinada nessas questões da identificação final.
Por exemplo, não constatamos que, para um homem, identificar-se com
seu sintoma - quando é um sintoma-pai - é o que lhe permite de modo
mais seguro desprender-se dessa obsessão pelo pai que com tanta frequência
habita o homem neurótico, talvez até desprender-se da identificação com
os traços de seu boneco-pai [bonhomme-pere]? Em outros termos, não se
constata que a identificação com o boneco-pai está em razão inversa da

'' C. Soler, "Les deux amours", março de 1999, Journées des FCL.
122 Lc..1cc111, o inccinsc;ente r2inc.::ntad'-1

identificação com a função pai? Nesse caso, é preciso dizer: passar sem o
pai sob condição de se servir do sintoma... pai.
É evidente que as questões de clínica diferencial também se colocam
de acordo com os sexos. Como poderia ser de outro modo, uma vez que,
do lado mulher, não existe versão mulher da exceção? Em outras palavras,
não há exceção-uma que dê um modelo de solução para a castração. Tomo
aqui a palavra "modelo" no sentido em que Lacan a entende para o pai,
mas como modelo da função. O modelo da função, para uma mulher, está
necessariamente do outro lado, vai do homem a Deus, com a questão de
saber, para cada uma, se esse parceiro fundamental está mais no registro
da versão Pai, é aquele do amor limitado, com ou sem a greve do corpo da
histérica2 '', ou, se dele se afasta, flerca do lado do Outro ilimitado e opaco
da mística. Estranhamente, a famosa devastação ocorre mais no primeiro
caso, isto é, na mulher acasalada a um sintoma pai, e observo que os(as)
místicos(as), contanto que nos deem seu testemunho, não são devastado(a)s
- masoquistas tampouco, acho. Talvez seja precisamente porque, ao se faze-
rem sintoma de um Outro divino no qual se aniquilar, esses(as) místicos(as)
não encontram a objeção do limite fálico.
Restaria, enfim, ser retomada a questão do tornar-se analista, já que
o analista também é levado a emprestar sua presença e, portanto, também
seu corpo como sintoma. Para ele, como para a mulher, falta um modelo da
função. É verdade que tudo indica que o analista é bem tentado, na falta de
alguma versão-tipo do analista-sintoma. a se:> prender à versão pai, sobretudo
quando for homem. Freud já tiYera o mérito de perceber e formular esse
problema. Entretanto, não há versão-ripo do analista-sintoma assim como
não há versão mulher. E, como esta última, o analista se empresta ao outro,
o analisando, fazendo-se sintoma ... mas transitório, esperemos.
A tese é formulada, como sabem, no seminário sobre Joyce e relança
a questão daquilo que pode bem estimulá-lo a isso. Para a mulher, a questão
não se coloca, pois por serem sintoma seus benefícios de gozo parecem bem
evidentes; mas, para o analista que, como o santo, supostamente não deve
gozar de sua função, a questão deveria obsedá-lo. Acho que ela obsedan
Lacan. Muitos problemas éticos e clínicos aí se colocam.

2'1 C. Soler, "Les hysréries'', L'Évolutíon r)'chían-ique. nº ~2. nowmbro de 2006.


_._---\. a,1i.1i:se Drii211t1..1da para o real 123

Podemos nos perguntar se não existem sintomas fundamentais que


favorecem a escolha de rornar-se analista-sintoma. Não seria para o psicótico
a prótese de um laço social onde alojar o autismo do real? Quanto à opção
neurótica, como ela tira proveito disso? Estaria o neurótico analisado tão
impressionado com o que descobriu que lhe viria o desejo de fazer com que
outros o descobrissem? Ou, ao contrário, seria por ele não ter cedido em
seu sintoma de transferência que, identificado não com seu sintoma real,
mas com a verdade não toda, ele se satisfaz em :-er:1erer o efeito castração
ao outro, o analisando? Seja uma ou outrJ. \·ia. u:T:a :-rkis que a outra, é
evidente que mudará enormemente o estilo da rr~tic-=..

Eu disse que a questão da identidade estava na entrada de cada psicanálise.


Ainda é preciso reconhecê-la sob outros termos. Quando Lacan formula
o passo de entrada na transferência com um "Che vuoi?", quando a ele
acrescenta um "O que sou ali?", subentendido ali onde os significantes do
Outro faltam, são questões de identidade.
As próprias referências ao cogito de Descartes implicam que a iden-
tidade levante questão uma vez que o "Eu penso, logo sou" não diz o que
sou. Ele coloca - eu deveria dizer: subcoloca - uma existência, não uma
identidade. Daí, aliás, o passo seguinte de Descartes "Mas o que sou eu
então?", que é questão sobre a identidade - não de um sujeito particular,
mas do sujeito universal. Traduzido na psicanálise como prática de fala,
esse cogito passaria a ser "Eu falo, logo sou", exceto que eu não falo só por
minha boca, mas por meus sintomas. No social, a identidade é antes de
mais nada um problema de polícia, dispenso saber quem é quem. Também
é para cada sujeito um problema de inserção social. Conhecemos isso bem
demais. Na psicanálise, a questão é intrínseca e constituinte da entrada em
psicanálise na razão mesma dos sintomas.
O sujeito que se endereça ao analista conhece as indicações de sua
identidade social - profissão, sexo, renda, religião, etc. -, mas o que ele
apresenta são as repetições incoercíveis, as inibições, as angústias, a um só
124

tempo dolorosas e incompreensíveis, que a ele se impõem e objetam a suas


intenções. Tudo o que ele não consegue fazer, impotência, e tudo o que ele
não consegue impedir, forçamento. Outras tantas manifestações que podem
ser subsumidas sob o termo "sintomas", não previstos na identidade social
e que fazem obstáculo. E, de fato, quem está em harmonia consigo mesmo
e seu mundo não vem em análise.
O cogito analisando de entrada poderia assim ser dito: tenho sintomas,
logo sou ... mas o que sou?, não enquanto ser social, mas enquanto afetado,
logo representado por esses sintomas?
Convidamos esse sujeito a falar na modalidade específica da associação
livre, ou seja: dizer todos os pensamentos surgidos no laço transferencial.
Logo, ele é intimado a só se fazer representar por seus ditos.

Primeira apori,1

Surge aí o primeiro paradoxo. É que com ditos, que evidentemente supõem


a linguagem, o sujeito não pode ter acesso à sua identidade.
O significante, sem o qual não é possível falar, é impróprio para fixar
a identidade. Sua estrutura diferencial, estabelecida pela linguística, nota-
damente a fonologia de Jakobson, a isso objeta. Pelo fato de só se definir
em relação a um outro, o significante nunca é idêntico a si mesmo. Ele por
certo representa indiscutivelmente o sujeito que o enuncia, e aí é possí\·el
retorquir a esse sujeito: você disse, não pode desdizer, mas ele o representa
junto a um outro ou outros significantes. Na cadeia de seus ditos, a cadeia
da linguagem, o sujeito nunca é, pois, Um, mas sempre "algum dois", con-
forme a expressão de Lacan.
O sujeito sintomático, aquele que supomos à cadeia decifrável de seus
sintomas, esse sujeito, na medida em que fala, está em falta de identidade.
É um sem identidade, um ser cujo ser é e\·anescente, está sempre em outro
lugar, como Lacan diz e repete, até no seminário Mais, ainda. Ele não sabe
o que ele é, não sabe o que quer e espera que a análise vá lhe dizer isso. É
esse o caso, e se positivo, como? É toda a questão.
Primeiramente, noto que, falando a verdade, o que está no início da
psicanálise de um sujeito está igualmente no início de sua vida, ou antes,
125

de sua emrada na linguagem, já que ele ali recebe em primeira instância o


discurso do Outro, que, por lhe dizer o que ele é, por cobri-lo com uma série
de atributos, faz surgir de maneira latente a questão daquilo que ele é em
si mesmo, separado de todos os veredictos do Outro. Logo, ele se procura,
mas primeiro pela Yia da ... idemificação. Em outras palavras, tomando em-
prestado traços suscetÍYeis de defini-lo. Primeirameme. toma-os emprestados
ao outro. o semelhame provedor de imagens, ou ao Outro que fala e lhe
transmite seus significantes. Imaginárias ou simbólic1s . ..1s rrimeiras, aliás,
sendo comandadas pelos segundas, as identificações fome.::ern o que se pode
chamar uma identidade que aqui qualifico de iden:iéade ée .:;lienação-;ri, isto
é, uma identidade que se estabelece por empr~~tin:.0 e q-.1e .J suieito sente
como tal. Ainda mais que o outro social julga. Essa identidade de alienação
é aquilo que na verdade constitui o eu [moi], cujo núcleo é a identificação
com a imagem do corpo próprio, que em seguida se veste com sucessins
roupagens via ideais do Outro, cuja função alienante em relação ao sujeito
Lacan desde o início marcou.
'.'Jão se deve ainda esquecer que a identificação não preside necessaria-
mente à conformidade e que a divisão identitária traduz-se igualmente, com
efeito, por anticonformismo, pois muitos sujeitos, ao escolherem contramo-
delos. acreditam separar-se do Outro embora até não estejam menos cativos
de sua regência que os sujeitos mais conformes. Assim, vemos por vezes nas
fratrias irmãos antitéticos oriundos de um mesmo núcleo de injunção.
A análise enumera e questiona essas identificações pró ou contra.
Lacan diz até que ela as "denuncia" para marcar, penso, a função que têm
de prótese identitária. É o que evocamos quando falamos da queda dos
ideais na análise, esses ideais que estão sempre ligados ao desejo do Outro,
pois "as identificações se motivam do desejo" 51 • Passada a tra\·essia dessas
identificações, a análise traz, assim, o sujeito à questão daquilo que ele
é como desejo, "che vuoi?" e, portanto, ao paradoxo que eu evocava no
início, a saber, que a linguagem é imprópria para a isso responder. É que

sr, O que Lacan nomeia alienação no Semi11drio XI é outra coisa, que não se deve à precedência
do discurso do Outro. mas à estrutura da linguagem, a qual impõe uma escolha forçada
implicando, de qualquer modo. uma perda.
]. Lacan, "Du Trieb de Freud'', Écrits, Paris, Le Seuil, 1966, p. 853.
72(1 L a ea 11 , o i 11 e o n s e i t? n t '-~ 1· e i n e .;: n t t1 J . .,

"o desejo é incompatível com a fala" 32 , que ele no entanto obseda e que,
numa via mais lógica, podemos dizer que o sujeito, uma vez que é suposto
a um significante que o representa mas não o identifica, como sempre vale
menos-um na cadeia da linguagem.
Se fosse a última palavra, a psicanálise não responderia à questão de
entrada, por causa de incompatibilidade do instrumento linguageiro utili-
zado, e somente traria o analisando de volta a seu desnudamento essencial.
Só que não é a última palavra, justo a primeira.
Onde encontrar um princípio de identidade, se a linguagem for
imprópria para a identidade? Em nenhum outro lugar que naquilo que,
da experiência, não for linguagem. E, de fato, o sujeito não é o todo do
indivíduo. Ele é efeito da fala, mas o indivíduo, este, tem um corpo, um
corpo a gozar, a distinguir do sujeito. Logo, é do lado do sintoma que se
pode buscar a solução.

A solução pelo sintoma.


A hipótese de Lacan, formulada no fim do seminário Afais, ainda,
mas presente bem antes, é que a substância gozosa do corpo é afetada pela
linguagem. Esta, imprópria à identidade, nem por isso é menos um opera-
dor que tem efeitos no Real: ela subtrai gozo, o objeto a é um nome dessa
subtração, mas ela ao mesmo tempo preside às configurações daquilo que
sobra e torna-se ela mesma aparelho do gozo. Aliás, sem essa hipótese, como
conceber as conversões histéricas descobertas por Freud? É verdade que Freud
evoca apenas o efeito dos pensamentos e das representações, 1v"orstellung, para
explicá-las, mas que mais são elas além de linguagem?
O sintoma é a manifestação maior do organismo afetado pelo
discurso, e Freud, ainda ele, de entrada o situou como uma maneira de
gozar. Lacan primeiramente sublinhou que era uma maneira de falar, já
que é decifrado em mensagens. O que não impede que também seja uma
maneira de gozar e, se condensarmos as duas di-mensóes [dit-mensions],
dá: o "eu penso, se goza" que já eYoquei. É mais que uma maneira de
gozar, é a única maneira, eu disse, não há outra. O sintoma, modalidade

-" J. Lacan, "La direction de la cure", Écrits. Paris. Le SeuiL 1966. p. 6'--11.
~---l .::z n á fi ~ ~ L--i ri e n t c.i J. .1 par c..1 e) r,.: a/ 127

de gozo, suplementa a relação que está foracluída para todos. Não há re-
lação sexual mas há o sintoma, modalidade linguageira de gozo, própria
a cada um. Cm gozo fixado, determinado por um ou vários elementos
do inconsciente-linguagem, esses elementos que procuramos decifrar na
análise. A.inda é preciso não esquecer a incidência dos dois inconscientes
que distingui e diferenciar os sintomas do inconsciente verdade e os do
ICRS. O nó borromeano os enoda, e cada um traz gozo: para o primeiro,
gozo do sentido, digamos: da fantasia; para o segundo, gozo dos uns en-
carnados a acampar no campo do Real 33 •

R s

Enodamento dos dois inconscientes

Lacan investigou como podia instaurar-se o que chamei a identidade


de separação, eu disse, e até um querer de separação. Não se reduzir às rou-
pagens do Outro que usamos. O paradigma desse querer, ele o reconhece no
ato de Empédocles, que supostamente se suicidou atirando-se no vulcão à
beira do qual deixou suas sandálias. Um extremo, portanto. Evidentemente,
espera-se da análise uma separação não mortal do sujeito, que lhe dê sua
identidade própria, e notadamente sua identidade sexual.
No Outro no que se refere ao sexo e igualmente no discurso social,
há só semblantes, significantes, imagens, normas, interditos, mas nada que
diga como gozamos no um por um. E, na hora da verdade, isto é, quando
o sujeito faz os semblantes passarem ao ato, de faro há surpresas. Ao fim
da elaboração, Lacan conclui que é o sintoma real que dá ao sujeito sua

-'-' Ver mais acima. p. 23.


128 L t1 e ,1 11 , e., i n e L' 11 s eie 11 t .;: r e i n ~ n t a J L"'
1.: ...

identidade, a dele própria, o verdadeiro nome próprio que o distingue de


qualquer outro, o único a não ter homônimo.
Assim, pode-se dizer que a análise responde à questão de entrada:
eu sou meu sintoma. Daí por que Lacan fala de "identificação com o sin-
toma."

Se9u11da aporia

Então, a superação do impasse está ligada ao instrumento linguageiro? Nada


seguro, entendi isso bem recentemente, mas é, penso, capital.
Dou a fórmula dessa segunda barreira: o fato de nos identificarmos
com o sintoma não implica que tenhamos identificado o sintoma, ao con-
trário do que primeiro supus. É o inconsciente real, o inconsciente-alfngua,
que faz obstáculo a que identifiquemos o sintoma a não ser de maneira
hipotética, se é bem verdade que os efeitos de alfngua superam tudo o que
o sujeito pode disso entender, que o Cm encarnado, aquele, pois, que faria
a letra do sintoma, permanece indeciso, do fonema à palavra na frase, talvez
até a todo o pensamento. Em outras palavras, o inconsciente que deciframos
não sabe tudo, só um pedaço.
De fato, é possível avaliar as próprias inércias de gozo, pois "fixação"
quer dizer "inércia", sem que se possa dizer o um que as fixa, ou, ames,
dizendo-o apenas de modo hipotético. A análise de fato conduz a uma
identidade de fim assumida, mas assumir não é saber. Creio até que é o que
justifica a expressão "identificação com o sintoma".
A identificação de fim se esclarece com a não-identificação de entrada.
O Homem dos ratos padece de sua obsessão mas nela não se reconhece,
dela se dessolidariza, não quer ser o gozo ruim que ali se manifesta. Daí sua
demanda a Freud. Essa não-identificação foi o que Freud nomeou defesa;
ela se refere, como a identificação de fim, à posição do sujeito em relação
ao gozo em jogo, na medida em que ele ali reconhece ou não o que ele tem
de mais real.
O sintoma real, disjunto do sentido, não está disjunto da linguagem:
é um misto de moterialidade e gozo, do ,·erbo gozado, ou do gozo passado
_-\._ l7. n â /; 5 e-: i.."' r;.: 11 f tl Jl1 p LI r ,.J l, re t? / 120

ao Yerbo. Lacan escreveu sua estrutura no seminário "Rsr" como uma função
da letra uma. Ora, a letra, diferentemente do significante, se caracteriza
pela identidade consigo mesma. Assim, a identificação final com a letra do
sintoma parece resoh-er, como evoquei, o inefável do "tu és isso".
Daí um possí,·el programa a ser proposto aos analisandos: "encontra
a letra de teu sintoma''. Vimos, e ouvimos repetidamente, em certas tribu-
nas, o simpático eureca de analistas recém-formados pelo passe de antes da
cisão de 1998 a anunciar: encontrei a letra de meu sintoma. Só podemos
lounr os esforços da boa rnntade, de resto patética por ser induzida por
pressão de grupo. ,\fas como não perceber, em cada caso, a dimensão ir-
risoriamente "lucubrada", para retomar a palavra de Lacan, desse troféu,
talYez até desse fetiche, e a mentira organizada sobre a parte de opacidade
jamais reduzida?
É que esses eurecas esquecem de coordenar a tese do ICSR com a tese
da identificação com o sintoma. lv1as, se a isso nos aplicarmos, cessaremos,
então. de nos espantar por Lacan conYocar não um saber de alíngua, mas
um "saber se virar" com allngua. É justamente o correlato do não saber do
Cm encarnado no inconsciente-alíngua. Não é que não haja certeza quanto
ao Real, mas ela se refere à presença do elemento gozo, ao eu sou a minha
modalidade de gozo, não ao um que o fixa e que pode não cessar de ser
"indeciso'' para aquele que dele é o suporte. Eu sou a letra do meu sintoma,
é verdade, mas só o abordo a título hipotético. Digamos mais positivamente
que o inwmo por cruzamentos diversos para abordar os efeitos de alíngua.
O que os sujeitos têm de mais real são seus sintomas, diz Lacan; não é só
porque esses sintomas são gozo, mas também porque alíngua que "civiliza"
esse gozo é ela própria, como eu disse, real, a-estrutural, e o Real não é feito
para ser sabido.
:vledimos o quanto essa perspectiva é mais conforme à experiência
efetiva dos analisandos que conseguem terminar suas análises? Existe um
só que possa pensar ter reduzido por completo a opacidade de seu ser? Para
isso, teria que ter acenado suas contas com o inconsciente.
CLÍNICA RENOVADA
E3TATCTO D03 GOZ03

O inconsciente real que faz o falasser é a coisa mais bem partilhada do


mundo, embora só seja verificado numa análise, eu disse, e possa ou
não enodar-se ao inconsciente-fantasia.
É preciso ter noção das consequências - teóricas, clínicas e práticas.
Elas são múltiplas e nos impõem a um só tempo completar a teoria do
sintoma, reordenar nossas categorias diagnósticas com a função do pai,
questionar novamente o impacto da troca de fala, do amor também, e até
a visada da psicanálise e sua função neste início de século.
Entretanto, não é possível situar os avanços de Lacan quanto ao sin-
toma e ao estatuto dos gozos sem voltar à partida, partida freudiana.

2 DIZER DE FREl'D

Conhecemos a tese primeira: ao decifrar os sintomas, Freud descobre o que


ele nomeia o sentido sexual, mas este se cifra em termos de pulsões parciais
recalcadas - oral, anal, etc. Assim, o sintoma é um substituto sexual - em
outras palavras, uma maneira de gozar paradoxalmente desagradável em
razão do recalque. No adulto que lhe fala de seus sintomas, Freud ouve a
voz do pequeno "perverso polimorfo" que goza autoeroticamente do corpo
próprio, sem nenhum parceiro. É o primeiro modelo daquilo que chamei
sintoma autista para designar um gozo do corpo que não passa por um
parceiro outro, que joga apenas com a excitação das zonas erógenas.
134 Lacan, o inc1.,nsciente r.zint:e11ta1.-lv

De fato, embora tenham por referente o gozo, as pulsões ignoram


a diferença dos sexos. Segundo Freud, esta só se introduz no inconsciente
através da fase dita fálica, que não está tão ligada à descoberta da diferença
anatômica quanto àquela do gozo masturbatório do órgão, o qual implica
correlativamente a falta materna, mais precisamente a privação nela do órgão
que "concentra o mais íntimo do autoerotismo".
Volto, pois, à noção de perversão generalizada que já desenvolvi, e
não para dizer que se trata de um fenômeno de época, nem tampouco para
generalizar a estrutura clínica perversa, mas para interrogar o modo de gozo
do ser falante. A perversão generalizada, como o nome indica, diz respeito
a cada falasser e é solidária à célebre asserção de Lacan: "Não há relação
sexual". Ainda é preciso medir seu impacto exato, as implicações quanto
ao casal, mas também quanto à psicanálise e à sua prática. A fórmula não
se resume em dizer que as coisas vão mal entre homens e mulheres, como
tanto se costuma repetir de modo banal.
A não-relação sexual é, se acreditarmos em Lacan, "o dizer de Freud",
jamais enunciado por ele evidentemente, mas que se deixa induzir de todos os
ditos do inconsciente que ele soube recolher. A fórmula é assertiva e homofô-
nica: o "não há" [ny a pas] confunde-se com "negou" [nía], pretérito perfeito
do verbo "negar" [níer], e, no entanto, esse "não há'' não é uma negação, ele
não nega nada, ele afirma no modo negativo: há passo [y a pas]*.
Do lado Freud, o que pode fundamentar esse dizer se não o que
acabo de evocar: o inconsciente só retém do sexo estes dois componentes
que são as pulsões parciais e o gozo fálico? O sintoma é um modo de gozar
que localiza o que da perversão polimorfa originária do pequeno falante
jamais renuncia. Em outras palavras, o gozo dos sintomas, quer se trate de
fobia, histeria, obsessão, mas também de perYersão como estrutura clínica,
não é outro senão o gozo "considerado" per:erso, aquele mesmo que Freud
descobre nas fantasias que ele decifra em cada sintoma. O que não diz nada
dos assuntos genitais. Como fundar um casal sexual sem pulsão genital? Ora,

* Em francês,)' a pastem duplo sentido. Pode ser a afümaçáo [i!j _r .1 p,zs = há passo. bem como
a negação, ali suprimida, como no francês coloquial: [il n J _rapa.; = não há. (:\'. T.1
l .... / i n ; e L7 r.: n o l.' L7 JL1 135

é ela que está em questão na expressão "não-relação sexual". Esta não visa
nem o desejo nem o amor, mas o corpo-a-corpo do ato e o gozo que lhe é
próprio no orgasmo - única emergência de gozo, à exceção do sintoma, a
vir no espaço do sujeito, se acreditarmos em Lacan.
Freud viu bem que o casal sexual nada tinha de evidente e que, com
a descoberta das pulsões, sua possibilidade se tornava um problema teórico
a ser resolYido. As notas acrescentadas ao longo dos anos a seus Três ensaios
sobre a teoria da sexualidade são com toda evidência testemunhas disso. Sua
solução é o recurso ao Édipo, às figuras do casal parental indutoras de con-
dutas por identificação e aos efeitas separadores da ameaça de castração.
Lacan, aparentemente, não diz não. O texto de 1964, "Posição do
inconsciente", mostra isso. O texto coloca que a sexualidade, em sua relação
com o inconsciente, se reparte em dois lados, o lado do vivente e o lado do
Ouuo 1• Este último é o do Édipo freudiano, de seus significantes ideais e
das identificações às quais ele preside. É o espaço da "ordem e da normà'
- em outras palavras, dos semblantes do homem e da mulher, do significante
fálico e do pai. O lado do vivente é o do corpo-a-corpo do ato e do gozo
que ele implica.
Toda a questão, porém, é saber onde colocar a castração a que Freud
dá tanta importância e como concebê-la. É aí que Lacan se afasta de Freud,
para quem o complexo de castração está do lado do Édipo: castração por
causa do pai. Para Lacan, a partir pelo menos do seminário A angústia ( 1962-
1963), seja qual for a pregnância do imaginário do pai castrador, a castração
é sem o pai, uma vez que a função do pai é outra. A castração real começa
do lado do vivente marcado por alíngua e é castração de gozo. É o que diz
seu mito da lâmina que ''Posição do inconsciente" substitui tanto ao mito
bíblico quanto ao mito edipiano. É um mito não só sem o pai, mas, posso
dizer, sem o Outro da linguagem. Ele pretende mitificar os enigmas da vida
na medida em que ela se reproduz pelas vias do sexo ao preço de uma perda
de vida, que é ilustrada pela mortalidade individual e que fundamenta o
vetor da libido, libido na qual Lacan inclui até o mundo animal sexuado.
Daí sua referência à etologia que ele põe em paralelo com a histeria. Um

1 J. Lacan, "Posirion de l'inconscient", Écrits, Paris, Le Seuil, 1966, p. 849.


136 La e a n, o i n eu n sei e JI te ,. .2 i n l' e 11 ta do

passo é dado apenas em relação à dialética da falta fálica pela qual, nos anos
1958, ele explicava o casal. Trata-se, desta vez, da libido na medida em que
ela busca um complemento de gozo através das pulsões parciais. E eis a
conclusão quanto ao próprio ato sexual, cito: "Não há acesso ao Outro do
sexo oposto a não ser pela via das pulsões parciais nas quais o sujeito busca
um objeto que lhe reponha essa perda de vida que é a sua por ser sexuado" 2 •
Ela de fato coloca a homologia do gozo do sintoma e do orgasmo sexual.
Ai, já estamos bem num mais além de Freud.
Quanto à dita genitalidade, Freud se interessou por seus malogros
sintomáticos: frigidez, impotência, disjunção do amor e do gozo no rebai-
xamento, insensibilidade masculina, etc. Mas para seus "êxitos" quase nada
em toda a sua obra. Não há teoria do casal dos corpos, apenas algumas
indicações esparsas que, evidentemente, deveriam ser levadas em conta para
nuançar o que afirmo. Escolho, primeiro, aquela que evoca o gozo do ato
como o summum dos gozos. Ela indica o quanto Freud distinguia esse gozo
da "brevidade do gozo autoerótico'', embora os dois passem pelo mesmo
órgão. Além disso, há todo o seu questionamento sobre o que das pulsões
parciais pode ou não se integrar ao prazer preliminar do ato. Enfim, suas
observações sobre o obstáculo que é o respeito pela mulher. Nada sistemático,
porém, e ainda menos consistente, nem sobre o que condiciona o orgasmo,
nem sobre sua função.

A RELA(,\.0 31:\'TO,\l.'\

A tese de Lacan trata do ato sexual e vai bem mais além. Não identifica a falta
da relação sexual e os malogros sintomáticos do ato, pois, ao contrário, coloca
que é o êxito do ato que faz a relação malograr. Cito Televisão, onde ele diz:
"Esse malogro em que consiste o êxito do ato"'. Aliás, a tese já está explicita-
mente presente no seminário A angústia nas numerosas passagens dedicadas
ao orgasmo e à identidade de seu êxito com o fracasso da relação.

Jbid.
J. Lacan, Teléuisio11, Paris, Le Seuil. 19 7 3. p. 60.
c. . línjcu r.2n ...,l:t.1d(1 137

Portanto, penso o seguinte: é por ele ter questionado o casal do ato


sexual para além do que fez Freud, não só em seus fracassos mas também
em seus êxitos, que ele pode afirmar o "não há'' com o que ele implica de ...
peffersão generalizada e que, ao emprestá-lo a Freud, ele paga com sobras
sua dh·ida, dando a César mais do que lhe cabe.
O gozo do falasser é desnaturado pelo cutelo da linguagem que o li-
mita, o despedaça e o para sem passar por nenhum interdito. Essa "castração
primária", como ele diz em A angústia, reduz nossos gozos a serem apenas o
gozo considerado pefferso, que de fato é "permitido", o que não quer dizer
que é autorizado - por quem o seria?-, mas não ... impossível, não impossível
de escrever. A linguagem inscreve apenas o gozo fálico, gozo um e gozo do
um, bem como o mais-de-gozar dos objetos ligados às pulsões que a ele é
solidário, mas, eu disse, nada de um gozo outro. Vale dizer, como formulei,
que "o inconsciente não sabe nada das mulheres". O "sexo", como se dizia
na época clássica, ali não está inscrito, se com isso designarmos o que o
caracterizaria como gozo. Resta o significante mulher, evidentemente, e os
semblantes que a ele se referem ao sabor das culturas, mas nada de seu ser
de gozo a não ser a indicação da suspeita. Com efeito, como ignorar que a
dita mulher é ... difamada"'? Lacan não deixou de sublinhá-lo.
Quanto ao ato sexual, seu laço clinicamente patente com esse afeto
de exceção que é a angústia é um sinal que permite nele reconhecer o lugar
onde se conjugam numa mesma experiência o gozo orgástico e a castração,
não imaginária mas real. É esta a tese de A angústia: o orgasmo é gozo, para
os dois sexos, mas ele reitera a cada vez o efeito castração pelo ... eclipse do
órgão fálico. Anos mais tarde, em Mais, ainda, Lacan persiste e endossa
falando do casal sexuado como o impossível encontro do idiota e da louca
- em outras palavras, de um lado o gozo castrado do um fálico, do outro o
gozo outro, insituável e enigmático.
Daí, declino uma série de conclusões e observações.
Lembro, ames de mais nada, que a pulsão não é em Lacan o que ela é
em Freud, em quem ele no entanto se baseia, e que sua fünção tem duas faces:

X Jogo homofônico: La dite fémme [a <lira mulher] e on la diffame [é difamada] soam também
on la ditfemme [dizem que ela é mulher]. (N.T.)
138 La e c1 11, o ; Jl e o 11 se ; ,,; ,1 te r.;: i 11 i· t? 11 ta J Q

em sua estrutura, segundo Lacan, ela vem da linguagem, mais precisamente


do discurso da demanda e de seus efeitos sobre a necessidade. Mas, como
atividade, a pulsão a um só tempo compensa e restaura a perda. Falando
de seu circuito em torno dos objetos, ele precisa que é "para neles resgatar,
para restaurar em si sua perda original que se empenha essa atividade que
nele denominamos pulsão [ Trieb ]" 4 • O gozo "considerado perverso", o das
pulsões, é, digamos ... gozo castrado, de que o objeto a, definido como o
objeto "que faltà', é a condição.
Assim, o próprio exercício da pulsão inclui um efeito castração, aquele
que acabo de evocar como "castração primárià' e que também vale para o
orgasmo. Na verdade, não há nada igual em Freud. O que não quer dizer,
no entanto, que, para Lacan, o adulto heterossexual permaneça o pequeno
perverso polimorfo que ele foi, caracterizado pela dispersão e pela justaposi-
ção das pulsões parciais. Em indicações discretas mas determinantes, Lacan
acrescenta uma condição suplementar que me parece ter sido curiosamente
bem pouco comentada: a genitalidade, se passa pela via das pulsões parciais,
supõe, além disso, a solidariedade da copresença dessas pulsões. Logo, o
acesso ao parceiro só está assegurado se as pulsões parciais estiverem cons-
tituídas num conjunto, no sentido lógico, pela operação do Outro 5 •
Seja como for com essa condição suplementar, o fato é que o gozo
do ato não é outro senão o gozo "considerado" perverso, aquele mesmo
que Freud detectou no sintoma. Em outras palavras, o campo fechado da
relação sexual não se excetua do campo do sintoma. Com isso, é lógico que
o gozo mais normado, heterossexual, aquele de um pai, por exemplo, seja
dito pere-version, a ser escrito em duas palavras para significar a versão pai
do gozo perverso. São a, o mais-de-gozar, e O que o escrevem, o Outro do
Sexo permanecendo inatingível. Nosso modo de gozo "daqui por diante só
se situa pelo mais-de-gozar, e até não se enuncia mais de outro modo" 6 •
Em resumo, podemos situar o que faz casal. No nível do desejo, há
bem um casal: o da fantasia, S Oa solidário ao sentido; do ponto de vista

4 ]. Lacan, "Posicion de l'inconsciem", Écrits. Paris, Le Seuil, 1966, p. 849.


]. Lacan, 'Tétourdic", Scilicet4, Paris, Le Seuil, 1973, p. 49.
6 ]. Lacan, Telévision, Paris, Le Seuil, 1973, p. 54.
ej Í 17 j C L1 re n I.' ,. a d 1..1 130

do amor, se seguirmos ivfais, ainda, um casal de sujeito a sujeito, S O S;


mas, no nível do gozo, nada, nada de casal. O gozo não é ligante por si só,
ele não preside ao laço social.
Por que, no entanto, qualificar esse gozo de perverso se ele é de estru-
tura e, portanto, para todos? Aliás, ao dizer gozo "considerado" perverso,
Lacan marca uma reserva. De minha parte, vejo nesse qualificativo perverso
o que resta da marca de origem do termo "perversão", legível no início do
século passado em Kraft-Ebbing, em quem a perversão é definida em relação
a uma norma que supomos natural e designa todas as condutas de gozo do
corpo que não passam pelo ato heterossexual. Anomalia quanto à zona e ao
objeto, diz Freud, que permanece na mesma linha. Talvez seja preciso ver
também nesse termo o indicador da insatisfação que ele gera e a latência de
um sonho de um gozo mais fusional. Com isso, aliás, se é o êxito do ato que
faz a não-relação, o fracasso do ato, nos sintomas estudados por Freud ou em
sua evitação concertada naqueles que dele se abstêm, esses sexless de que eu
falava desde os anos 1990, se esclarece com nova luz: aquela, justamente, de
provocar um curto-circuito nos desagradas da não-relação com seus efeitos
subjetivos. Como diz o Bardeby de Melville: "Eu preferiria não".
Mais importante, e será minha terceira observação. O gozo em jogo
no laço social, digamos na realidade, o que é ele próprio se não casamento
do gozo fálico e do mais-de-gozar? Gozo do poder sob todas as suas formas
(política, epistêmica, artística, etc.) é a definição do gozo fálico, que se con-
juga com aquele de tê-lo dos objetos fetichizados do consumo. A perversão
generalizada inclui o ato sexual, mas se estende sobre todo o campo do dis-
curso e hoje está ali a céu aberto, uma vez que não está mais coberta pelos
semblantes da tradição. Deve ser o que produz essa banalização do ato, essa
suspensão do segredo e dos pudores que fazem com que alguns imaginem
estar às voltas com sujeitos mutantes. Assim, não há exceção à perversão
generalizada, exceto talvez, mas deixo isso em reserva, o "gozo outro" da
mulher, foracluída do discurso, que não passa pelo objeto a.
Volto, é minha quarta observação, à relação sexual. Como explicar,
no contexto desta tese, esse fato de experiência bem geral: que a satisfação
ligada ao orgasmo na relação sexual costuma ser bem distinta daquela que
acompanha a masturbação. Emprego aqui a palavra "satisfação" mais que
La e a n, o i n e o 11 sei t2 n t ~ r \; i n i· ~ n ta J L1

a palavra "gozo", precisamente porque a posição do sujeito relativamente


a esse gozo específico está implicada, uma vez que a questão, de modo
mais global, é saber como os diversos gozos se repercutem em efeitos
subjetivos distintos.
Com sua noção de psiconeurose de defesa, Freud pensou poder es-
tabelecer uma correlação entre as dificuldades do sexo e a repressão social,
isto é, o discurso que se serve do significante para limitar os gozos. :tvlas há
também uma ordem de determinação inversa. Se empreguei a expressão "os
mandamentos do gozo", era precisamente para dizer que o gozo em suas
diversas maneiras tem efeitos subjetivos. Que o discurso contemporâneo
que dizemos "permissivo" por deixar emergir o gozo dito perverso modifica
a noção de psiconeurose de defesa. Se nos ativermos apenas aos fenômenos,
poderíamos quase achar que ele a torna obsoleta. Como dizia Lacan, é que
tudo o que não é proibido passa a ser obrigatório - acrescento: por efeito
de indução imaginária - e, com isso, a emulação quanto às práticas de gozo
prossegue, claramente identificável em particular nos adolescentes e nos
diversos grupos de afinidade. Entretanto, é importante aí não se enganar:
as defesas imanentes ao sujeito falante nem por isso são reduzidas, apenas
modificadas em suas formas, uma vez que a experiência analítica do incons-
ciente não cessa de atestá-las, já que têm menos a ver com as contingências
históricas do discurso que com o efeito de linguagem, este irredutível.
A perversão generalizada, é patente, caminha junto com toda uma
série de manifestações subjetivas próprias à época, que aliás contrastam
singularmente com as proclamações daqueles que, no rastro de Foucault,
acreditam ter chegado o tempo do autoengendramento pela livre escolha
para cada um de seus gozos: depressão crescente, suicídios e, a mínima,
solidão, morosidade, não senso, etc. É que o gozo perverso, embora seja
gozo, não deixa de ser, no essencial, gozo que insatisfaz o sujeito. É aquele
"que não seria necessário", como diz Lacan em /'dais, tlinda, para que, de
dois, Eros pudesse fazer o Um da fusão sonhada, aquela que lembra a toda
hora a divisão do sujeito e a falta central da relação.
Nesse contexto, de onde vem. então, a satisfação específica do ato
sexual? Noto, antes de mais nada, que esta não é tão geral quanto se acre-
dita - não esqueçamos o crescimento dos sexless e, de modo mais amplo,
141

da ética do celibatário. No entanto, há, a meu ver, uma função subjetiva


do orgasmo. Ela tem a ver, penso, com o fato de ele tocar no problema da
identidade sexual, sem a ele responder, para falar a verdade, e ao mesmo
tempo reproduzindo na relação com o parceiro, mutatis mutandis, o duplo
impacto das pulsões parciais. Não há ato sexual, escreve Lacan, "que tenha
peso para afirmar no sujeito que ele é de um sexo" 7 . Entretanto, o êxito do
ato é, de um lado, a experiência para cada um dos dois, embora de modo
diferente, de estar para o outro, no espaço de um instante, no lugar da coisa ...
inatingível; enquanto que, do outro lado, o momento da própria satisfação
é restauração da separação que, de dois, não faz um. Resta, então, conforme
o lado no qual nos inserimos, ou recomeçar para obsedar as abordagens da
coisa (via corrente), ou evitar (via que parece crescer). Talvez fosse necessário
precisar aí as diferenças devidas ao sexo. Daí concebemos que a disparidade
do ser homem e do ser mulher também se repercute na subjetivação do ato.
Sem falar que o gozo outro, o único a se excetuar do gozo perverso, tem suas
repercussões próprias, como já desenrnlvi 8 • Então, poderíamos esperar da
comunicação de fala, especialmente da fala de amor, que ela tempere esses
impasses? É outra questão 0.

A teoria clássica percebeu bem que a fantasia estava em jogo naquilo que cria
laços eróticos com o semelhante, uma vez que o objeto da fantasia suporta
a dita "relação de objeto". Entretanto, é certo que esse laço de desejo em
nada assegura a resposta do gozo. O sintoma, emergência do inconsciente
real. é "um acontecimento de corpo". O termo "acontecimento" conota
o não programado de uma manifestação de gozo que se impõe ao sujeito
que a sofre. O orgasmo ilustra isso no nível do casal, e dizer que o parceiro

]. Lacan. "'Compre rendu du séminaire La logique du famasme", Omicar?, 29, Paris, Navarin,
1984, p. 16.
C. Soler, Ce que Lmm disait desfemmes, Paris, Le Champ Lacanien, 2003.
Ver mais abaixo.
142 Lacan, a inconscient..z reinrentado

é sintoma é dizer que ele é causa do acontecimento de gozo. Cito: "Uma


mulher é um corpo que faz o gozo de um outro corpo" 1º.
Esse sintoma do inconsciente real, até onde ele determina o sujeito?
Entre a lei de bronze dos efeitos de linguagem sobre o vivente e a contingên-
cia do encontro que faz acontecimento de corpo, há margem para alguma
liberdade? Entre o que não cessa de se escrever do efeito castração e os acasos
do acontecimento, resta um lugar para a escolha, ou então o sujeito ali é só
a marionete do inconsciente?
Esse debate não vem de hoje, mas é mais atual que nunca. Falando de
psiconeurose de defesa, Freud podia evocar o que ele chamava uma "escolha
da neurose", já que a própria noção de defesa implica uma posição do sujeito
quanto ao que o constrange - a saber, segundo Freud, suas pulsões. Lacan,
em 1946, em suas "Formulações sobre a causalidade psíquica", batalhando
contra o organo-dinamismo de Ey, já denunciava uma concepção da doença
mental que excluía a dimensão de alguma liberdade, que reduzia o sujeira a
ser apenas o produto de um mau funcionamento de órgãos. Deixo de lado
as diversas formas assumidas por essa perspectiva no passado e hoje com
o crescimento dos pressupostos cognitivo-comportamentalistas. A questão
continua sendo o que a psicanálise pode a isso contrapor. É sabido que,
desde o início, Lacan implicava na própria loucura o que ele nomeava "a
obscura decisão do ser" e que, para a identidade sexual, décadas depois, ele
não recuou em dizer: "Os sujeiras podem escolher". De modo mais geral,
formular a noção de uma ética da psicanálise e até de uma ética sexuada
quando ele fala da "ética do celibatário" exclui o pensamento determinista.
Mas com quais fundamentos?
Em Freud, homem ou mulher, isso depende estritamente da anatomia.
Há lugar para alternativas subjetivas, mas elas estão num outro nível, essen-
cialmente aquele das respostas de cada um à prova do complexo de castração
(e sabemos que, para as mulheres, Freud distingue três), e também no nível
da escolha de objeto, homo ou hétero. Mas, de qualquer modo, para ele, é
a anatomia que faz função do elemento real do sexo, o arranque de todas as
configurações particulares. A tese parece mais próxima do bom senso.

'º J. Lacan, Joyce /e symptóme II, Paris, :'.\Jayarin, 198~. p. 35.


C Í •11 j e· a r e IZ <J l' a da 143

A concepção de lacan é bem diferente. O próprio termo "sexuação",


que agora utilizamos correntemente, e que conota um processo, já indica
isso. Separo algumas fórmulas que impressionam. São tardias. Entre o lado
homem e o lado mulher, diz ele, os sujeitos podem escolher. E, mais tarde, de
modo mais forte ainda: os seres sexuadas se autorizam por eles mesmos.
Portanto, desconexão maior do sexo e d~ anatomia. Ora, a anatomia
implica muito mais que a forma da imagem, já que é solidária ao organismo
Yivo enquanto sexuado. O antinaturalismo dessas fórmulas é patente, e é
evidente que poderia despertar a suspeita de um antirrealismo, talvez até
de um antibiologismo, como se a desnaturação pela linguagem fosse tal no
falante que seu pertencimento sexuado nada devesse ao corpo vivo. Estranho,
se nos lembramos que, nos anos 1960, entre o seminário A angústia e o
texto "Posição do inconsciente", Lacan dera grande importância ao real da
reprodução sexuada da vida, a seu laço com a morte e àquilo que a castração
devia às características do funcionamento do órgão macho.
Há aí algo da concepção de Lacan a ser julgado e avaliado.
Ela é nova, tanto em relação ao sentido comum quanto em relação
a Freud; além disso, o termo "escolhà' não deve levar a pensar que a tese
é foucaultiana. É sabido que Foucault esmerou-se em acentuar a ideia da
livre escolha dos prazeres como princípio de autofabricação do sexo. É uma
tentativa para desconectar a questão da identidade, questão tão atual em
nossa civilização, e a questão do sexo. Logo, modo de negar que haja algo
como uma identidade sexuada e de desmentir que haja algo de realmente
coercitivo no campo da sexualidade. Aliás, essa própria tentativa deve ser
distinguida das teorias do gender, que fazem do sexo um produto social.
Com suas fórmulas da sexuação, lacan afirma que a identidade ho-
mem/mulher não passa nem pela anatomia, nem sequer pelos semblantes,
pelas imagens e pelas ideias da mulher e do homem, que não faltam em
nenhum discurso e aos quais as teorias do gender se referem. O indivíduo
é homem ou mulher conforme o modo de gozo, conforme para um dado
sujeito ele for todo ou não-todo fálico. Desenvolvi esse ponto em 1992,
em Londres, numa contribuição intitulada Otherness today. Assim, diremos
homem todo falasser que está todo no gozo fálico, pouco importa sua ana-
tomia; e mulher, todo falasser que está não-todo no gozo fálico; aí ainda,
pouco importa sua anatomia.
144 L L7 e Ll n , <.J i 11 L- 1..1 H s e ie n t '-' r ""' i n e ci n f <.1 J ,_1

A tese é difícil de manejar e é bem evidente que a manejamos mal,


pois, se repetirmos as fórmulas que acabo de citar, continuamos a falar das
mulheres conforme o senso comum. Bem longe de chamar mulheres o que
é "não-todo", atribuímos, ao contrário, o "não-todo" com seu outro gozo
àquelas que são mulheres conforme a anatomia ou o estado civil, já que é a
mesma coisa. O que cria, aliás, alguns efeitos cômicos, que já tive a opor-
tunidade de sublinhar, uma vez que permite àquelas que são visivelmente
as mais todas fálicas que se paramentem de um pseudo-não-todo como de
direito.
Assim, a avaliação a ser feita do antinaturalismo que eu evocava
dependerá da concepção que temos do gozo. Já podemos dizer que esse
antinaturalismo não é um antibiologismo, ele não negligencia o Real, o
Real fora do Simbólico, aquele que Lacan inscreve em seu nó borromeano e
que inclui justamente tudo o que é chamado a vida, sem poder imaginá-la.
O gozo deve ser posto na conta desse real da vida e não na conta do corpo
anatômico da forma, ou seja, do Imaginário. Quando for todo fálico, esse
Real traz a marca das letras do inconsciente. Quando não for todo falico,
Outro, ele permanece não marcado, habitando mesmo assim o corpo
substância, pois para gozar é preciso um corpo vivo. De qualquer modo,
o gozo é anomálico, estranho às homeostases do organismo e aos arranjos
dos semblantes. Antes incômodo, pois perturba os prazeres ... que dizemos
naturais e a boa ordem das coisas que é a do discurso.
Assim, posso precisar: a tese da escolha do sexo não é nem um antibio-
logismo, nem um antirrealismo, ao contrário. Seu pressuposto, o postulado
que a fundamenta, é que o Real é heterogêneo, que ele está, naturalmente,
desatado dos enlaces, se posso empregar esse termo, do Simbólico e do
Imaginário ordenados pelo discurso, os quais presidem justamente às justas
dosagens dos prazeres, à equilibração das satisfações.
O que não diz ainda em que os sexuadas falantes se autorizariam por
eles mesmos. A tese parece bem paradoxal. É verdade que, no que se refere
à identidade sexuada, muitos sujeitos não confiam na anatomia e desenvol-
vem, ao contrário, todas as dúvidas que sabemos sobre seu ser homem ou
mulher e, às vezes, chegam a contestar o registro civil, que, este, só conhece
a anatomia. A mascarada feminina, a parada viril parecem afirmar o sexo
145

ao usarem imagens e símbolos do homem e da mulher, mas elas são antes


os tapa-miséria da questão que com tanta frequência atormenta: sou real-
mente uma mulher?, ou realmente um homem? Os sujeitos em sua maioria
estão bem longe de achar que podem escolher. Ao contrário, toda a clínica
imediata atesta o fato de que eles aceitam o que faz sua realidade sexual,
e com frequência a contragosto. Confrontados com impotência, frigidez,
intrusão de gozos incômodos, mas também sardônicas repetições da escolha
de objeto, nojo insuperáYel, apetência incoercível, fuga automática, talvez
até indiferença ou insensibilidade, e igualmente - que surpresa! - bom
encontro inesperado, de qualquer modo eles não aguentam mais, e estão
bem longe de se achar agentes secretos de seus sintomas. Sexuadas, é certo,
mas não sexuantes os sintomas de gozo.
Assim, concluo: embora se autorizem por si mesmos, este "si mesmos"
não é sujeito. Em todo caso, não o sujeito suposto aos enunciados da queixa
e ao padecer de que ele é testemunha.
A tese de Lacan é ininteligível fora da concepção da divisão do ser
que fala e que, por ser dividido, é mesmo assim apenas um único indiví-
duo, já que tem um corpo e só tem um. Divisão entre o que ele é como
representado pelo significante e o que ele é como afetado em seu gozo pela
linguagem. Entre os dois, o gap é irredutível. Um sujeito não tem muita
coisa a fazer com o gozo, Lacan diz isso em Mais, ainda, mas o indivíduo
corporal que o suporta, sim, pois ele mesmo está sujeito ao ravinamento
do Outro. Ao contrário do que eu disse precedentemente, nota Lacan em
1977, o inconsciente não faz cadeia: entre a fala que representa o sujeito,
aquele que nos fala deitado num divã, e os significantes do saber de alíngua,
que marcam o gozo do corpo vivo, há um gap. Dito de outra maneira: o
gozo está sujeito à linguagem, mais exatamente à alíngua que o coloniza,
mas o sujeito permanece disjunto de seu gozo, que no entanto dizemos
seu porque é seu corpo que é afetado. A despeito do Édipo freudiano e das
identificações às quais ele preside e que Freud quis que fizessem tudo entrar
na ordem, o gozo dos sexuadas não se autoriza pelo Outro, não pelo Outro
assim como não pela anatomia deles.
As fórmulas de 1964 que evoquei (ver p. 135) não davam nenhuma
tradução da diferença real dos sexos no campo do falasser. Se Lacan tivesse
]4(Í Laca11, l.1 inconsciente rei11l:211t<.1JL1

ficado por ali, então sim, teríamos tido uma identidade sexuada puramente
Outrificada, se posso dizer: entre os semblantes, de um lado, e as pulsões
parciais em si mesmas assexuadas, do outro, não havia lugar para o sexo ...
real. É o que ele corrige a partir das fórmulas da sexuação. A diferença dos
sexos não é de semblante, ela de fato se inscreve no Real, pelos dois modos
do gozar já evocados. O enrolo, evidentemente, em todo caso a complicação,
bem marcada em Mais, ainda, é que esses dois modos, por mais reais que
sejam, nada têm de natural e vêm do ser de linguagem.
A escolha do sexo é a do gozo, mas no sentido subjetivo, ao ponto
que seria possível quase dizer que é ele que escolhe; ali onde ele responde,
e nas formas em que responde, todo ou não-todo, ele faz lei ... sexual. Diria
eu epifanias (com ums) do Real no espaço do sujeito? A tese de Lacan só
era aparentemente paradoxal, mas é verdadeiramente sardônica.
Com efeito, esses sujeitos, se se autorizam, é por um si mesmos que
por certo está muito próximo deles, tão próximo quanto o que eles são
como corpo, mas um si mesmos que não é nem o eu [moi] nem o sujeito
propriamente falando. Não há aqui o menor livre arbítrio, nenhuma liber-
dade de indiferença, está fora de questão escolher esse íntimo tão êxtímo.
Foi ele quem já nos escolheu e, por mais de longe que fale, é ele quem nos
faz falar. O Real comanda o dizer da verdade 11 • Logo, é no que dissermos,
mais precisamente é no nosso dizer - tal como definido por Lacan - que ele
será reconhecido. O que quer dizer, entre parênteses: inútil algo esperar ali
do testemunho, que hoje está na moda. É esta a maldição genérica cono-
tada pela fórmula dos sexuados que se autorizam por si mesmos. Quando
digo "genéricà', quero dizer que ela é para todos os falasseres. Como veem,
estamos longe, muito longe da ilusão de Foucault. Que margem de escolha
resta para aquele que diz eu [je]? A margem da posição que ele vai assumir
em relação àquilo que o escolhe. Rejeição, consentimento, paciência, en-
tusiasmo, são muitas. É um outro capítulo. A noção de identificação com
o sintoma é parte dele.

11 J. Lacan, 'Térourdit", Scilicet4, Paris, Le Seuil, 1973, p. 9.


s I :\' T o ~L\ D o I ~ e o :\' :3 e l E N T E R E A L

º estatuto do gozo que não escreve a relação sexual muda a função da-
quilo que chamamos sintoma. Se todo gozo pode ser dito perverso, e
para todos, não se deve dizer: todos perversos, o que não acrescentaria nada,
exceto a complacência. Mas se, por outro lado, esse gozo está por toda parte
deslocado na série dos signos que o veicula e na qual é decifrado, constituinte
da realidade até dos laços sociais, é preciso extrair a especificidade do sintoma
enquanto formação de gozo, e o que o determina dos dois inconscientes.
Com efeito, o sintoma não é qualquer formação decifrável do incons-
ciente. Sonho, lapso, ato falho são pontuais, embora por vezes repetidos, mas
o sintoma, por sua constância e sua fixidez a um só tempo gozosa e incômoda,
se excetua dessas emergências efêmeras. Ele se excetua tanto da cifraçáo do
inconsciente e da deriva metonímica da fala que não cessam de deslocar o gozo
castrado quanto do mais-de-gozar. Diferentemente deles, ali onde a linguagem
desloca na série dos signos, o sintoma ancora, fixa, faz fixão.
Lembro, Lacan escreveu em "Rs1" a estrutura dessa exceção sintomática
como uma função da letra: fix), f sendo a função gozosa, x um elemento
qualquer do inconsciente tornado letra gozada, letra que, a contrario do
significante, se caracteriza pela identidade de si a si. O que conduz Lacan a
dizer que o sintoma é "a maneira como cada um goza de seu inconsciente" 12 •
Mas maneiras existem várias e podemos ordená-las. A perversão generalizada

1' J. Lacan, "Rs1", inédito, aula de 18 de fevereiro de 1975.


IJ8 L a C t1 11 , O Í 11 C 1..I Jl S C ,' 2 J1 f C 1· 2 j 11 i· e J1 f ü dO

do gozo pede, pois, uma clínica da variedade [variété] - "varidade" [varité],


diria Lacan jogando com o equívoco entre "variedade" e "verdade" [vérité],
da varidade de seus arranjos; em outras palavras, das diversas versões de
sintoma conforme o gozo estiver ou não enodado às duas outras dimensões,
conforme, pois, ele incluir ou não a verdade da fantasia.

,\ L' TI :3 TA :3 C' l' :3 C' C I A LI Z .\:\"TE :3

Em Lacan, a distinção do sintoma e do sinthoma, que ele escreve num lugar


diferente no nó borromeano, repercute, mas de outro modo, a distinção,
freudiana, do auto e do heteroerotismo, heteroerotismo que Freud afirma
começar antes da distinção dos sexos, aliás, no nível da pulsão de agressão.
É que o gozo do elemento linguageiro, da moteri,zlidade do inconsciente,
não precisa do parceiro outro. Configurações de gozo tão diversas, fenome-
nologicamente falando, quanto a jubilação de Joyce a triturar solitariamente
alíngua quando escreve Finnegans Wáke, a satisfação do fumante Freud, ou
tal compulsão corporal de esquizofrênico têm isto de comum, o fato de não
convocar nenhum outro corpo. São aquilo que chamei sintomas autistas, a
serem inscritos entre Real e Simbólico como efeito direto de alíngua sobre
o gozo. Em si mesmos eles excluem o laço social, retraídos no gozo que
costumo dizer autoerótico, se Lacan não contestasse esse termo em nome
do fato de, para o fal1H.-er, ele não ser nenhum gozo, e, em todo caso, não o
gozo do órgão fálico, que não supõe a heteridade da linguagem.
Esses sintomas autistas devem ser distinguidos daqueles que chamo
socializantes, nos quais o gozo, por muito pouco que ligue, se aloja num
laço pelo fato de se enodar ao Imaginário e ao Simbólico do parceiro. Estes
merecem se chamar sintomas borromeanos. Lacan passou da generalização
do gozo "considerado perverso", equivalente à não-relação sexual, à afirmação
do parceiro-sintoma, que supre a foraclusão da relação. Não há relação sexual,
mas há para cada um o sintoma fundamental que supre, eu disse. A tese é
explícita para o casal hétero numa famosa aula de janeiro de 1975: "Para um
homem, o que é uma mulher? É um sintomà'. Em outras palavras, um corpo
de gozo 13 • E dizer "corpo de gozo" é dizer mais que objeto causa do desejo.

13 J. Lacan, "Rsr", inédito, aula de 21 de janeiro de 1r5.


(..- f í 11 i e t.1 r.: 11 '-, l' t7 J t? 149

Corpo de gozo, mas não qualquer um. Não é toda mulher que é sintoma
para um homem, apesar do sonho, bem feminino, de Don Juan. Portanto,
um corpo eleito através do inconsciente. Dito de outra maneira, para um
homem uma mulher é uma formação de seu inconsciente. Não é o caso de
todo parceiro? O que nos mostra, por exemplo, a obsessão do Homem dos
ratos? É verdade que ela ocupa o segredo de sua solidão, obseda sua intimidade,
mas ela não é autista: é verdade que o rato é metonimizado sob formas que
Freud detalha, mas a obsessão só o convoca enodado aos significantes do pai
e da dama e às representações de corpo no roteiro do suplício.
Dele se pode dizer, por um lado, o que Lacan diz de todo sintoma,
que ele assegura "selvagemente" o gozo de uma letra do ICSR, letra que ele
torna manifesta, nesse caso; por outro lado, que, por incluir a fantasia e sua
verdade, ele a enoda ao sentido, ou antes, ao joui-.,r:n., '_gD::o-do-se;zúdo].
Evidentemente, no percurso dessa elaboração, o sin:orr.a mudo11 de
sentido. Classicamente sinal de algo que cria problem;1, que Ll chJ.:Te:1105
doença ou não, para a psicanálise ele é também um sinal, mas de uma cio.:nç.,
genérica do sexo, do lado perturbado da sexualidade que Freud percebeu
bem no fim, e cuja fórmula é dada por Lacan. Com isso, ao mesmo tempo
que endossa, insisti nisso, ele também é resposta e solução, sempre singular,
à carência que, esta, é geral. E, por esse fato, igual ao inconsciente que a
análise não reduz, o sintoma se encontra no final de uma análise, transfor-
mado com certeza (efeito terapêutico), mas como aquilo que não cessa de
se escrever, para cada um, do respondente de gozo que lhe é deixado por
sua castração.

De qualquer modo, o Um lerrificado do sintoma, eventualmente holofrásti-


co, só vale para um único, conforme o valor de gozo que as palavras tomam
para um dado sujeito. Ele é gozo do inconsciente real, fora de sentido. Vale
dizer que é... neológico, se o neologismo for bem uma palavra ou uma
expressão que ganhou um peso de gozo inefável e pessoal. Daí o termo
"autismo" que lhe apliquei. É o núcleo psicótico daqueles que psicóticos
150 La e a n, o i 11 e o n sei ente rei 11 i· e 11 ta d,.. ,

não o são, e que faz de cada um "um esparso, disparatado" 14, conforme a
bela expressão de Lacan no "Prefácio à edição inglesa do Seminário X!', a
letra fora de sentido sendo homóloga ao fenômeno esquizofrênico de base.
Este trata as palavras como as coisas, a se crer em Freud, e para ele "todo o
simbólico é real", ou seja, fora de cadeia e fora de sentido.
Lacan polemizou muito contra os partidários do núcleo psicótico
introduzido por Melanie Klein, mas é que ela o homologava à fantasia do
corpo materno, a qual supõe a relação com o Outro. É preciso colocar a tese
sob a influência do inconsciente real: ele vem de alíngua fora de sentido e
não se prende necessariamente à fantasia.
Com o nó borromeano, Lacan traduz novamente o "fora de discurso"
da psicose que implicava o fora de laço social em termos de não-enodamento.
O ICSR que faz o núcleo do sintoma adiciona um elemento de linguagem
e gozo, entre Simbólico e Real, portanto, mas ele não se enoda de modo
necessariamente borromeano ao Imaginário para fazer laço social.
Em consequência, o campo clínico se divide entre os sujeitos cujos
sintomas são tudo no inconsciente real- digamos: os do esquizofrênico puro,
caso exista, fora de laço, fora de sentido e cujo Imaginário está desatado - e
aqueles que não são tudo pois há para eles o que Lacan nomeou sinthoma,
ou seja, um enodamento desse Real ao inconsciente-fantasia, entre Imagi-
nário e Simbólico.
Mas ... há o caso Joyce.

JOYCE, L'M PAI DA DIOLOGIA 15

Eu disse tudo ou não tudo no inconsciente real, mas Joyce lá é a um


só tempo tudo e não tudo. Procurei mostrar isso no ano em que tratei de
"A querela dos diagnósticos".

14 J. Lacan, "Préface à l'édirion anglaise du Semínaire )(.!", A.urres écrits, Paris. Le Seuil, 2001,
p. 573.
15 J. Lacan, "La méprise du sujer supposé sarnir", Scílicet 1, Paris, Le Sei.:il, 1968, p. 39.
("/rnica r,2,n ...,1.:adu 151

Ele lá é tudo, uma vez que recolhe no início esses pedacinhos reais do ouvido
que são suas epifanias, e no final uma vez que goza das cifras pulverulentas de
alíngua ao escrever Finnegans Wáke. Esse manejo literário da letra "não para
ler" ocorre sem passar pelo corpo, pelas fantasias de corpo, o que combina
com a ausencia nele das paixões imaginárias para com o semelhante 16 à qual
Lacan deu tanta importância. Mas, de qualquer modo, lá, afinal, ele não é
tudo na medida em que, pela publicação, cuja função é outra, ele se impõe
finalmente como "O artista" que ele queria ser. Assim, ele restaura um laço
social com sua audiência, que corrige o sintoma autista de seu inconsciente
real ao inseri-lo nesse laço específico com o público, e até ao fazê-lo ali servir.
Sabemos que ele quis esse laço de modo furioso, e precoce, sublinhei. É
verdade que, para ele, esse laço social é adpico, sem laço com o sexo, mas
bem efetivo, já que permite que ele se renomeie. Sinthoma, diz Lacan, para
designar o que deve ser acrescentado às três consistências do Imaginário,
do Simbólico e do Real a fim de que se enodem. Esse enodamento quase
sempre costuma supor o dizer nomeador do pai, mas, para Joyce, foi um
dizer de autonomeação que ele conseguiu impor.
Um dizer bem singular que emenda o inconsciente real ao imaginário
da relação com seus semelhantes sem passar pelo corpo. Joyce, diferente-
mente, digamos, do jeito que vem, era mais idólatra de seu texto "Book of
himself" que de seu corpo, e, a se crer em Lacan, como faço, é por esse Ego
especial que ele se sustenta como O artista, artigo definido e maiúsculo. O nó
que ele produz, efetivo o bastante para renomeá-lo, não passa pelo pai. Esse
não-rolo do pai nada queria saber a não ser do dizer magistral. Ignorando a
"hisrorietà', tanto a do Cristo quanto a de Édipo, estranho a toda solução
edipiana, ele não se tomou sequer pelo redentor, pois, se se salva, é sozinho.
E, no entanto, terá remediado a carência paterna e terá assim passado sem
o pai servindo-se de suas letras-sintomas para sua autoinstituição.
Por isso é que Lacan pode afirmar que deu "a volta pela reserva" do
inconsciente. Com efeito, ele ilustra sucessivamente e, às vezes, conjunta-

16 C. Soler, L'aventure littéraire, ou la psychose inspirée. Rousseau, Joyce, Pessoa, Paris, Le Champ
lacanien, 2001.
152 L <.1 e L7 11, o i 11 e cJ n se; e n te r e i n l' .:i n t c.1 ..Í L1

mente, o sintoma do verbo no real do gozo, fora de sentido e fora de laço,


exceto o laço com seu gozo (I:) e com o sujeito que digo borromeano, cujo
ICSR está preso num laço social, uma vez que seu ego de artista supriu a
carência paterna. Daí por que Lacan fazia dele um pai da diologia.

s
Sinthoma Joyce. Nó errado corrigido pelo ego-artista

É patente que esse sintoma fundamental constituinte de laço, dife-


rentemente do que costuma ser o caso, não enceta para ele a diferença dos
sexos e não diz respeito a seu laço com a mulher. Em outras palavras, ele não
supre a não-relação sexual, mas apenas o fora-de-discurso de sua relação com
alíngua, produzido pela carência paterna de que ele padece. A esse respeito,
Joyce nos ensina algo da função do pai, vou a isso voltar, e não me espanto
mais que Lacan, desde 1967, em "O engano do sujeito suposto saber", o
tenha situado entre os Pais da Diologia, junto com .'vfoisés e Mestre Eckart,
ou seja, aqueles que souberam marcar o lugar de Deus-o-Pai 1-, e que, em
1975, ele o diga "filho necessário". Mas ele nos deixa também com a questão
de sua relação com o Outro sexo.

Sua "esquisita relação"

Assim, a respeito de Nora, podemos perguntar o que foi essa mulheç para
esse homem, James Joyce, em sua singularidade. Lacan disse que Joyce era

i: J. Lacan, "La méprise du sujet supposé saYoir'', Sci!icet 1. Paris, Le Seuil, 1968, p. 33 :-.
153

"desabonado do inconsciente". Mas qual, se ele pode dizer igualmente que,


com sua escrita de Finnegans fl.7czke, ele vai direto ao que se pode esperar de
melhor de uma análise? Seguramente desabonado do inconsciente-verdade
ordenado pela fantasia, mas não do inconsciente real disjunto do Imaginá-
rio, no qual letra e gozo se conjugam sem mediação, exceto que nele essa
copulação de alíngua e do gozo não implica a substância gozosa do corpo
e que ele goza de alíngua como de uma coisa.
Freud tentou definir diversos tipos de escolha de objeto, narcísica ou
por apoio. Lacan, por sua vez, no seminário "RSI", definiu o parceiro-tipo
do homem que decorre da versão pai do sintoma. Mas Nora é outra como
o próprio Joyce é outro.
Está claro que Nora sua mulher, Giorgio seu filho, Lucia sua filha
não estão colocados no laço social constituinte de que acabo de falar. Nora
não foi sequer sua inspiradora, nome comum para designar o fetiche do
desejo de artista. E, no entanto, Joyce era apegado a eles de modo quase
furioso. Oportunidade para nós de verificarmos, mais uma vez, que existem
várias maneiras de gostar de um ou de vários seres e que, além disso, não é
no nível da realidade social, observável, que a questão pode ser resolvida.
Uma mulher e filhos, o que de mais conforme?, mas isso nada diz nem da
heterossexualidade nem da posição paterna de Joyce. Como situar, então, a
força indubitável de sua relação com ~ora e com os filhos? Tomo, primei-
ramente, as coisas no nível da superfície, do mais visível.

O exilado, não sem bagagens.


Digo sozinho, mas não sem bagagens. Em primeira aproximação, pen-
so que Nora e os filhos tinham mais ou menos esse estatuto de "bagagens".
É evidente que é uma imagem. Eu a desenvoki em outro texto. Sabe-se
bem que um parceiro pelo qual se tem apego pode nler a títulos muito
diversos. A teoria analítica recenseou alguns. Ele pode Yaler, por exemplo,
como caixa registradora, quando for a mulher rica ou o homem afortuna-
do, como uma despensa (vemos casais assim), como um animal doméstico
quase transicional e - por que não ainda? - como um móvel. Lacan evoca
um caso assim num de seus seminários.
As bagagens são outra coisa, uma pequena variante. As bagagens nos
acompanham em nossas peregrinações, e Deus sabe que Joyce, exilado sem
154 L a e a 11 , o i n e o n E e i e ,z t e r e i n i· e 11 t a J o

abrigo, conheceu muitas, mais ou menos necessárias, mais ou menos capri-


chosas. As bagagens nos acompanham, se for o caso as pousamos, às vezes nos
estorvam, até com frequência, são pesadas demais, mas não as abandonamos
e desejamos que não sejam roubadas, cuidamos disso com ciúme.
Há uma anedota, que me havia impressionado à primeira leitura, na
biografia que Richard Ellmann dedicou a Joyce. Ela me havia impressionado
pelo que indicava de uma certa singularidade subjetiva de Nora, mas não
é o que me interessa hoje. Richard Ellmann nota que, durante a primeira
viagem dos dois, na chegada a Londres, depois a Paris, acontece a mesma
coisa: a cada vez, ele pousa Nora com as bagagens num parque e sai em
busca de conhecidos para encontrar... dinheiro e lugar para ficar. E Nora
espera junto às bagagens até que ele ache. Temos o testemunho por uma
de suas confidentes de que, na primeira vez, ela pensou que ele não voltaria
e mesmo assim não saiu do lugar, continuou a esperar o homem que não
voltava e que finalmente, ao cair da noite, a encontrou ali, a esperar. Eviden-
temente, o impacto subjetivo desse episódio deve ser relativizado em função
de seu contexto. Era a Irlanda do início do século; segundo os números
que pude ler, houve 17.500 irlandeses que foram embora no mesmo ano,
mas de qualquer modo ... E, por outro lado, acrescento que, quando é ela
quem quer partir, é ele quem a encontra e a traz de volta. Finalmente, por
um obscuro acordo, diria eu de inconsciente a inconsciente, ela nunca foi
parar nos objetos perdidos. É evidente que esse lugar de condição absoluta
não deixa de evocar para o psicanalista o próprio objeto transicional: o
qualquer coisa, que em si mesmo não tem valor algum, mas que é exigido
de modo incondicional.
Digo bagagens para caracterizar um laço que eu qualificaria de laço
de contiguidade, uma espécie de extensão do próprio sujeito.
Contudo, não há dúvida, Nora era para ele uma mulher eleita, única,
apesar de duas ou três veleidades sem importância. Lacan diz: "Só há uma
para ele". Com efeito, e é antes raro. Assim, ela pertenceu a ele, absoluta-
mente, tudo indica, mas a que título?
É conhecida, desde Freud, a relação narcísica com o parceiro. Nada
semelhante com Nora. E, aliás, os próximos de Joyce ficaram bastante sur-
presos com essa escolha disparatada de uma mulher notavelmente inculta
L. . . / i n ; e L1 r 2 n o e a da 155

para um homem como ele - da mesma forma que os próximos de Jean-


Jacques Rousseau ficaram com a escolha de Thérese. Ela não é adquirida
por afinidades intelectuais. Tampouco é uma mãe conforme o esquema
freudiano. Nunca cuidou do corpo, do conforto corporal, das refeições
(em plena pobreza, eles vão todos os dias ao restaurante), etc. Não é nem a
escolha narcísica nem a escolha por apoio. Vamos supor, então, que foram
os benefícios eróticos que prevaleceram? ~ão parece. É até a hipótese bem
sustem:ada por Lacan: "Ele só metia com repugnância"*. Repugnância, o
termo é forte. É verdade que existem as cartas eróticas de Joyce a Nora. Mas,
justamente, as cartas eróticas não implicam o corpo-a-corpo; ao contrário,
a separação dos corpos, e é justamente o que deixa o campo livre para a
carta. O erotismo escatológico e masturbatório ali é evidente, ao passo que
o lugar de Nora não está particularmente legível. Aliás, segundo as confi-
dências de uns e outros, parece que, após essas cartas ardentes, quando Joyce
voltava para casa, tudo mudava. E tampouco é para lhe dar filhos que ela
lhe pertence, como na versão pai do homem, pois, a cada vez, é um grande
drama. É sabido que Giorgio só foi declarado em cartório um ano após o
nascimento, Joyce é quem estava encarregado de fazê-lo. Aliás, deram a ele
o nome de um irmão morto ...
Ao contrário do que acontece com o sintoma pai, "os filhos não esta-
vam previstos no programa". Não estavam previstos no programa do sintoma
escriturário, que, por outro lado, em nada o ligava a Nora, e tampouco esta-
vam previstos no laço específico que o ligava a ela. Talvez não seja sem uma
obscura relação com o futuro destino dos dois, com a esquizofrenia de Lucia
e o alcoolismo gravíssimo de Giorgio. Tudo indica que o nascimento deles
foi um problema e que Joyce não suportou a mudança produzida em Nora
tornada mãe. O tema é clássico, mas há, a esse respeito, uma carta escrita à
tia, após o nascimento de Giorgio, portanto, o filho mais velho, na qual ele
relata essa mudança na relação dos dois e o desinteresse de que ele padece,
e em que diz: "De qualquer modo, não sou um animal doméstico, acho
que sou um artista". Em todo caso, queixa-se amargamente do nascimento
dos filhos. Mesmo assim, não os deixou de lado. Procurou incentivá-los e

* "Jl 11e s'en gantait qu'avec répugnance": Lir.:"Ele só calçava luvas com repugnâncià'. (N.T.)
15()

protegê-los. Fez de tudo para que Giorgio fosse tenor, já que havia uma
tradição de canto na família. Quanto a Lucia, defendeu-a de maneira incrível
contra os psiquiatras, até o fim, enquanto pôde.

"Ela 'não serve para nada"'.


À questão "O que era, então, essa mulher para esse homem?", Lacan
responde: "Ela não serve para nada. Apenas com a maior das depreciações
é que ele faz de Nora a mulher eleita" 18 •
O termo "depreciação" merece uma explicação. Ele parece em con-
tradição e com todas as provas que temos da estima que Joyce tinha por
Nora e também com o fato patente de que ele a utilizou a vida inteira. Mas
"depreciação", quando se trata de uma mulher, não designa segundo Lacan
uma minoração narcísica das qualidades próprias da pessoa. O termo visa
sua função de mulher, numa época em que Lacan produziu a tese de uma
mulher sintoma do homem- entendam: corpo implicado no gozo de outro
corpo, como ele justamente ressalta na segunda conferência sobre Joyce. E
não é precisamente pelo sintoma que serve ao gozo que cada um está mais
interessado, o que ele aprecia mais, realmente, embora às \'ezes às próprias
custas, custas egoicas? Pode-se dizer de outro modo: Nora não serve para
sua sustentação fálica, não é ela quem a assegura, ele a isso provê por sua
escrita.
O implícito da afirmação de Lacan, seu postulado, é que apreciar uma
mulher consiste em elevá-la ao nível de sintoma - em outras palavras, em
fazer com que ela sirva ao gozo. A tese pode parecer defasada numa época
em que a reivindicação narcísica de reconhecimento e paridade está no auge.
Aqui, questão: homens e mulheres podem ser pares sob muitos aspectos,
sob todos os aspectos até no que se refere à realidade social, mas a paridade
tem sentido do ponto de vista erótico? Há quem hoje acredite nisso e milite
nesse sentido, é conhecido, e sempre ao preço da negação do inconsciente.
Nesse ponto, curiosamente, Lacan, que sempre esteve em sintonia com seu
tempo, não \'ai nem um pouco no sentido tomado pela época e mantém a
incomensurabilidade dos sexos em matéria de gozo, não a paridade.

18 J. Lacan, Le sinthome, Paris, Le Seuil, 2005, p. 8-4.


157

Joyce, que estan para além de todos os preconceitos de seu tempo,


soube estimar ~ora, sua simplicidade, suas boas qualidades, sua correção,
sua fantasia, seu jeito fácil de viver, mas não a fez servir como sintoma de
gozo, o que teria sido apreciá-la como ... uma mulher. Seu sintoma próprio
é sua escrita, e para gozar da letra e fazer dela uma nomeação ele não passa
pelo corpo de Nora. Basta que Nora o acompanhe, só isso.
O exílio da relação sexual assume em Joyce uma forma particular, que
Lacan diagnosticou em sua aula de 13 de janeiro de 1976. Comentando
o texto Os exilados (em inglês E·ilesJ, escrito, diz ele, "durante o reinado
de Nora", ele afirma, cito, que é "a chegada daquilo que é sintoma central
de Joyce [... ] é que não há razão alguma para que ele [Joyce] tenha uma
mulher, entre outras, como sua mulher". E, de fato, Joyce, desde o início,
de imediato, disse a Nora que ela nunca seria sua mulher, no sentido de
que ele jamais a desposaria, em outras palavras, jamais ele proferiria um
implícito "tu és minha mulher". E como, se ele mesmo não se considera
um homem entre outros, poderia ele considerar essa mulher eleita, única,
como a sua, o que seria a solução-tipo do homem edipiano - em outras
palavras, da pere-version?

Ela lhe cai feito uma luva ...


Aliás, é por isso que Lacan pode acrescentar correlativamente que ela
lhe cai feito uma luva. O sintoma, este, quaisquer que sejam seus benefícios
de gozo, nunca cai feito uma luva, antes fica atravessado, sempre incluin-
do a di-niensão [dit-mension] incômoda e irreprimível do inconsciente. E,
aliás, não é mistério para ninguém que a valorização de uma mulher como
sintoma não é muito propícia à paz dos casais.
Com essa expressão, Lacan ressalta a função do Imaginário, ao passo
que sua definição do sintoma acentua antes o enodamento do Real e do
Simbólico.
Ele com frequência usou a referência à luva que deve ser virada pelo
avesso para que a da mão direita se ajuste à da mão esquerda. Referência, aliás,
que ele toma emprestado de Emmanuel Kant. Essa virada tem o interesse
de anular e, por isso também, de revelar a dissimetria incluída na própria
relação especular que se manifesta pela inversão da direita e da esquerda no
158 L c..1 e a 11 , o i n e o n s e i e 11 t 2 r e i n i· e 11 t u d 1..1

espelho, de onde resulta que, apesar da aparência, a imagem refletida não


é idêntica a seu modelo. A virada da luva anula essa diferença (a luva da
direita convém à esquerda), a não ser que, como nota Lacan, a luva tenha
um botão, o que Kant não levou em conta, pois, então, o botão que estava
do lado de fora vai parar dentro da luva virada. Logo, retorno da diferença
entre o sujeito e seu objeto especular! Não nos espantará que Lacan relacione
esse botão com o clitóris e, portanto, com a disparidade fálica.
Em 1O de fevereiro de 1976, Lacan nota que tudo o que "subsiste da
relação sexual é essa geometria a que aludimos a propósito da luva. É tudo
o que resta à espécie humana como suporte para a relação". Assim, não é só
para Joyce, mas é para todos. Esse desenvolvimento tem sua importância,
pois completa a tese do sintoma como função da letra,j{x), gozo da letra do
inconsciente entre Simbólico e Real que permite que Lacan afirme: "Faz-se
amor com seu inconsciente". A geometria da luva reintroduz a consideração
do imaginário dos corpos. Mas ... costuma haver o botão.
Com isso, entendemos o sentido do "ela lhe cai feito uma luva'' que,
supondo não haver botão, assinala a anulação da heterogeneidade entre o
sujeito e o objeto - a imagem sendo o primeiro objeto-, heterogeneidade
que o próprio espelho preservava. A expressão designa uma relação na
qual não só o heteros, o que agora chamamos o "não-todo", está ausente,
mas na qual a própria disparidade imaginária é superada - não há botão
na luva. Daí por que eu falan de contiguidade. Evocarei uma espécie de
transitivismo objetal - não recíproco, talYez, não se sabe o que ele era para
ela - mas que evidentemente criou para :\"ora grandes obrigações, já que ela
consentiu. Não só a obrigação de suportar a vida de dissipação que ele a fez
levar, a obrigação de suportar sua pessoa, de se dobrar aos seus caprichos,
às suas decisões de ir morar em outro lugar, por exemplo, mas, além disso,
a obrigação de olhá-lo de maneira exclusiva, e de olhá-lo, digamos, com o
olho com o qual ele próprio se olhava, anulando, assim, a esquize do olho
e do olhar. É o que se percebe na carta que evoquei e em que ele se queixa,
no nascimento de Giorgio, do olho que não o vê como artista.
Exilado da relação sintomática-tipo com uma mulher, Joyce fez de
Nora o deus de sua vida? Nem um pouquinho; está bem claro que )fora
não é para Joyce o que Deus é para Schreber. Se há uma coisa maciçamente
L-/ínic~1 r2J1oi·ada 159

patente no laço dos dois, é que ela não tem a fala. Não que esteja amor-
daçada. mas o que ela diz não tem nenhuma importância. Não há nada
que pareça em Joyce com um "minha mulher diz que ...". Por quê? Minha
hipótese é que, se não houver a objeção fálica que classicamente barra a
relação sexual, há aquilo que vou chamar a objeção egótica, para equivocar
entre seu ego-sintoma, é claro, e o sentido da palavra égotique* em francês.
É aquela mesma que obstava a que ele se tomasse pelo redentor, eu disse,
e que objeta a que ele institua Nora numa posição que eu poderia dizer
divinizada: Nora não é o deus de Joyce.
Digamos a particularidade de Joyce: a não-relação, que é de estrutura,
a ele se revelou, embora costume estar velada para todos pela relação sinto-
mática, tão velada, aliás, que foi preciso toda a elaboração psicanalítica para
produzir sua tese, pois ela não se aprende nos livros. É preciso ser o Egótico
Joyce para que o reinado da adorada, ao invés de cobrir pelo menos por um
tempo a não-relação, como é o caso geral, a desvele.
O que resta, então, de relação se essa mulher não é nem a uma do
sintoma, nem o deus de sua vida? Resposta, e aí concluo: uma luva, que anula
a disparidade. Isso cria, de fato, uma esquisita relação, bem pouco sexual,
reduzida à geometria do envelope imaginário - geometria que, no normal,
se enoda ao sintoma de gozo. Envelope luva, Nora terá sido suplemento
imaginário ao ego a-corporal de Joyce.
É aí que Joyce ilustra pela negativa a verdadeira função do pai como
condição e "modelo" do sintoma fundamental sexuado.
Ü PAI E O REAL

L acan introduziu o Nome-do-Pai corno função metafórica. Daí urna


questão: nessa abordagem de urna clínica que inclui o real fora de sen-
tido, que fim leva a função do Pai? Ela permanece. Para além do Édipo não
é para além de sua função. Pude rnostrar 19 , acho, que Lacan precisou dos
dois seminários, "Rs1" e Joyce o sintoma, para concluir, após tatear e hesitar,
que o enodamento a três das três consistências figuradas pelas três rodelas de
barbante do nó supunha um quarto elemento, representado por uma quarta
rodela, escrevendo a função que é condição do enodamento, que ele nomeia
sinthoma. O Pai, não seu significante mas seu dizer, e mais precisamente
seu dizer de nomeação, faz sínthoma, é condição existencial do enodamento
borromeano. E foi dali que Lacan concluiu sobre a "sintomatologia" de Joyce
e a particularidade de seu sinthoma de suplência.
Se ele é a condição do enodamento, podemos concluir que é preciso
o Pai sinthoma para que a di-nzensâo [dit-nzension] do sentido seja limitada
pelo Real, e para que o Real não fique disjunto. É efeito do enodamento
supor que o Real tem um sentido, mas um sentido limitado. Com isso,
pode-se imputar, na foraclusão, de um lado o significante real, demasiado
real, do esquizofrênico, do outro o sentido desarrimado quando a menta-
lidade chega à psicose. O falante "pensa débil", ele tem uma mentalidade,
sonha acordado, não sai de seu envelope linguageiro e das representações

1~ Aulas do ano 2003-2004, "La querelle des diagnosrics". Documems du Champ lacanien.
l (1]

às quais ela preside. O visco do sentido não o larga, mas, contanto que o
sentido seja descarregado do Real, é a "doença da mentalidade", aquela que
ilustrei com Pessoa.
Coloca-se, no entanto, a questão de medir o que esse novo esquema-
tismo do nó borromeano com suas retraduçóes em cadeia traz de mudanças
ou de complementos às teses primeiras sobre a função paterna.
O que precede implica que os avarares da função do Pai não deixem de
incidir para cada sujeito sobre o tipo de sintomas, autistas ou socializantes,
o que classicamente chamamos as estruturas clínicas, e Lacan, aliás, acaba
por situar ela própria como uma função ... de sintoma.

A cA:=;TRA(},.0 SE.\! C' PAI

Marco os passos da elaboração. Lembrei as descobertas de Freud sobre a


pulsão parcial e a castração que conduziram Lacan à fórmula "não há rela-
ção sexual", a qual comporta que o gozo não faça laço. Por conseguinte, os
laços sexuadas de casal são sintomas que suprem a foraclusão da relação ao
enodarem o gozo do inconsciente real aos laços da fantasia. Porém o sintoma
fundamental do casal não é para todo sujeito, acabo de indicar isso a respeito
de Joyce, tampouco é necessariamente sintoma heterossexual, e a questão é
saber o que o torna possível. É aí que Lacan convoca o pai.
No fundamento de todos os edifícios sintomáticos pensáveis, no sen-
tido analítico, há a castração e a angústia específica que a isso se liga. Essa
tese é freudiana, datável de maneira precisa, explícita, do texto de 1926,
Inibição, sintoma, angústia, no qual, de maneira categórica e invertendo
tudo o que dissera até ali, Freud acaba dizendo que a genealogia do sintoma
- se posso empregar esse termo - vai da angústia primeira ao sintoma - em
outras palavras, da castração ao sintoma.
O fato é que o gozo perverso que é a sorte do falasser acomoda-se com
parceiros-sintomas bem diversos. Esse modo de gozo, eu disse, é o do indi-
víduo caído sob o golpe do efeito de linguagem que é efeito de mortificação
- castração primária. O que não diz nada nem daquilo que foi chamado na
história da psicanálise desde Freud a escolha de objeto, nem da identidade
162 Lucan, u i11co11scic11f12 reini·.:nt"1Ja

sexual. Deixo de lado o detalhe das construções freudianas para explicar isso,
mas o fato é que elas sempre convocam o complexo de castração em seu
laço com o pai do Édipo. Lacan dá um passo pela tangente, fundamental,
que começa com o seminário A angústia e que, apesar das aparências, chega
às fórmulas ditas da sexuação.
É impressionante constatar que Lacan, a partir dos anos 1960, cons-
trói sua teoria do objeto a e da castração sem recorrer ao pai. O passo é
particularmente legível no seminário A angústia, em que ele procede a uma
dedução do objeto a a partir do Outro, do efeito da linguagem, e a uma
abordagem quase naturalista do falo como "órgão da falta", que provoca
um curto-circuito em toda referência ao pai numa abordagem da castração
concebida como real. Encontramos o mesmo traço em "Posição do incons-
ciente". O pai ali não é evocado, e aos mitos da maçã maldita e do Édipo
ele acrescenta um de sua invenção, o da lâmina, que mitifica a parte de vida
perdida, sem pai e até sem Outro, já que são os enigmas da vida e do laço da
reprodução sexuada com a morte individual que ali são convocados. antes
mesmo de qualquer intervenção do Outro. Todo o esforço de Lacan terá
sido desprender a causa da castração, que não é um mito do pai, tanto de
Totem e tabu quanto do Édipo.
Ele mesmo acentua sua oposição a Freud quanto a esse ponto, e po-
demos acompanhar ao longo do seminário a volta de suas críticas virulentas
do pai edipiano supostamente culpado da angústia de castração. Poderemos
ler sucessivamente tanto a propósito do interdito, da ameaça, do homicídio,
que é um engodo, uma comédia (o Édipo não serve para nada na análise),
que é secundário, e pior, o pior que se pode dizer para uma teoria analfri-
ca, que é contrário à experiência20 • Entretanto, a cada vez, Lacan procura
recuperar o que dava a Freud fundamentos para sustentar o insustentável e
tenta dizer isso de outro modo, até fazer culminar o ano em considerações
sobre o pai e a necessária passagem para Os J.Vornes-do-Pai, anunciada para
o ano seguinte.
A subtração primeira que recorra o objeto a é um efeito de linguagem
que nada deve ao pai e tudo à entrada do sujeito natural na linguagem e à

20 Ver sucessivamente, em L'angoisse, Paris. Le SeuiL 200'±, as páginas 98. 232. 295. 389.
eIr 11 ; '-. a r 1: no i· a da 163

colocação em função de seus traços unários. O gozo limitado do falante,


que, a esse respeito, já poderíamos dizer castrado, não é efeito de interdito
algum. Do pomo de vista fálico, a própria castração não é a ameaça ao
órgão como Freud achava. Ela tem a ver com a disjunção do desejo e do
gozo e com as propriedades do órgão da copulação, que fazem do falo "o
órgão da falta", propício a ser colocado em série com os objetos a. Em
A angústia, podemos ler os longos desenvolvimentos dedicados ao ato
sexual e à impossibilidade em que se acha o desejo de ter acesso ao Outro
do gozo. Logo, a castração não é um mito e sim um osso, dizia Lacan,
ou seja, um real que nada deve ao pai bicho-papão. O pai não é o agente
da castração.
Poderíamos encontrar sob a pena de Lacan muitos textos que parecem
objetar. Notadamente suas análises sobre o pai de Hans, dito insuficien-
temente castrador no seminário A relação de objeto, mas que a "Questão
preliminar" não retoma no escrito; igualmente, a fórmula de A angústia "o
desejo do pai é a lei", se a lermos mal, omitindo o comentário feito por ele,
e sobretudo o "dizer que não do pai" em "O aturdi to". Alguns acreditaram
ali reconhecer o pai freudiano de Totem e tabu, não castrado, gozador de
todas as mulheres. Errado, a meu ver. Seria no entanto estranho e sobretu-
do ilógico que Lacan, para retraduzir o pai do Édipo, apelasse para o pai
primitivo, cuja noção ele nunca cessou de denunciar, que ele além disso
atribui à neurose de Freud e do qual ainda zomba no mesmo texto de "O
aturdito", ao ironizar sobre o "pai orador" [o perorador], o "perorador
gotango [o pai orangotango]" 21 * imaginado por Freud. Além disso, como
acordaríamos essa leitura com o que Lacan escreve com todas as letras, que
o "dizer que não" do pai, a ser cuidadosamente distinguido do dizer não, é
sem esperança para o acesso à relação sexual - em outras palavras, não faz
sair da castração de gozo? E é possível ignorar que todos os textos seguintes
sobre o pai, notadamente em "Rs1" e Joyce o sintoma, situam o pai, um pai,
como um sintoma de solução à castração?

21 J. Lacan, 'Tétourdit", Sci!icet4, Paris, Le Seuil, 1973, p. 13.


* Em francês, le pere orant, !e pérorant outang. (N.T.)
L G e tJ 11 , ci ; 11 '--~ o 11 ;; e i e n t tc? i-.:; n i· .: n t t'l J L1

Daí a questão, que Lacan nunca cessou de reelaborar: para que serve
o Pai? Ela é ainda mais justificada já que ele acabou afirmando que sem o
Pai podíamos passar sob condição de ... "dele se servir".
No que se refere a esse pai solução, a tese se constrói em duas etapas:
no fim de "A angústia", um pai é pensado como modelo de um desejo "fi-
nito", em 1975, "modelo" de sintoma.

D.\ CAl'SA ,\\...' P.\T

Nem a construção do objeto a como causa do desejo, nem a inscrição dos


sujeitos no gozo fálico resolvem a questão da escolha de objeto, do mistério
das "afinidades eletivas", e da estranha e rara conjunçáo do objeto de desejo
e de gozo.
É um faro, o parceiro do amor sexuado não é qualquer um: não qual-
quer, ele é o eleito, é o bê-á-bá da vida amorosa. E todos se perguntam o que
ele ou ela acha naquela ou naquele. Conhecemos a resposta de Monraigne:
"Porque era ele, porque era eu". Lacan primeiro objetou em referência a
um baile de máscaras tornado célebre pelo teatro de bulevar, e gostava de
repetir que, no final do baile de máscaras, não era ele, não era ela. É claro,
já que é o objeto tl que causa o desejo, ele que não é nenhum parceiro em
particular, apenas a contrapartida do sujeito na fantasia.
O objeto a mente ao parceiro. Daí as observações do fim do seminá-
rio A transferência, que consideram que não há objeto que nlha mais que
outro. É verdade se todos tomam seu peso do anonimato do objeto a ao
qual afinal se reduzem. Com isso, "eu não a amo" que Freud reservava à
psicose é para todos, neurose e pen-ersão incluídas~~. Cômico do amor que
faz crer que a minha vida está inteira num só objeto, único, insubstituÍ\-el,
o homem ou a mulher de minha vida, como se diz'. E o humorista, eirado
por Lacan em A angústia, diz, a propósito do filme de Remais Hiroshima
meu amor, que ele mostra bem que "qualquer alemão insubstituível pode
encontrar imediatamente um substituto perfeitamente válido no primeiro

22 J. Lacan, Telévision, Paris, Le SeuiL 19-3, p. 21.


c-1 r }1 ; ,: ~1 re }1 o l' 1.1 da 1 ÓÕ

japonês encontrado na esquina"~\ Lacan, porém, não se ateve a isso e


emendemos por quê.
É wrdade, é o objeto 11, enquanto objeto caído, subtraído pela operação
primária da linguagem, objeto "que não temos mais", que está no princípio
de todos os acessos de apetências, de todas as extensões da libido. Mas essa
..sepanição'" de origem faz dele um segredo "insubjetivável", como ele diz
em A angústia, cujo sujeito permanece dividido o bastante para nunca saber
de onde ele deseja, não fosse o indicador da angústia que é única a assinalar
na experiência o objeta a-fenomenal. O objeta a, que não tem nem nome
nem imagem, por certo causa o desejo, mas como indeterminado e anôni-
mo. Hiância entre a causa e o objeto eletivo que fixaria o desejo e lhe daria
suas formas acabadas, vivíveis num laço social. É possível representar essa
estrutura de hiância do desejo indeterminado. sem objetivo específico:

a --7 d -7 ( ... ?... ).

Dito de outra maneira, a causa faz desejar, vetor, mas deixa o alvo em
branco. Ela não diz ... o desejável. É verdade que existem tipos de desejo em
função dos cones corporais, e é possível falar de desejo oral, anal, escópico,
invocante para especificar o mais-de-gozar visado, mas isso nada diz de um
parceiro eletivo de onde extrair esse mais-de-gozar, que, em relação ao objeto
causa, sempre aparece como um "engodo". Aliás, Lacan enumerou algumas
das formas do desejo indeterminado dominado pelo desejo ... de outra coisa:
o tédio, a prece, a vigília, a espera. Existem outras, a depressão, às vezes,
quando é como uma anorexia de rodos os objetos, e, por que não?, a vaga-
bundagem, que restabelece indeterminação no lugar do objeto eletivo.
Essa estrutura de hiância da causa permite entender que a fixação do
desejo sobre os objetos específicos, e notadamente sexuais, exige uma con-
dição complementar. Qual? Vemos facilmente que os discursos utilizam a
estrutura de hiância da causa para comercializar o desejo e fazer desejar "sob
comando" 2-i os objetos conformes que eles propõem. Esses imperativos do

2 ' J. Lacan, L'angofoe, Paris, Le Seuil, 2004, p. 387.

2ª Expressão do seminário ,1 t111gzísti,1.


166 La ea n , o ; n e o n s e i e n t e r e i 11 t' e 11 tu do

discurso vêm hoje assumindo a forma específica do mercado do consumo


capitalista, utilizando todas as imagens e slogans publicitários para dirigir
as aspirações para os mais-de-gozar industrializados, mas a operação não é
nova: como sempre, foram as sugestões do discurso que foram oferecidas
para saturar o parêntese vazio e indicar o desejável. Evidentemente é preciso
muitas imagens para cativar os interesses por indução imaginária e muitas
palavras para sugerir o valor. É nisso que as formas do desejo estão sujeitas
à história - Freud teria dito: à civilização -, embora até a causa, efeito de
estrutura, esteja anistoricamente ligada ao falasser enquanto tal.
Assim, é preciso distinguir o objeto a como pura causa de desejo e
o objeto a "integrado ao espaço do Outro", de acordo com a fórmula bem
falante de A angústia, quando seu quantuum de investimento é transferido
para objetos historizados, vestidos com as imagens e os significantes do
discurso. ,-\_ fantasia nada mais é que o produto dessa transfusão de a para
o campo do Outro. Aliás, é a partir daí que Lacan define sua concepção
do luto como tempo de apego aos detalhes dos indicadores especulares e
históricos do objeto, que só chega ao fim por sua redução ao objeto a como
pura causa, no momento em que o primeiro japonês que apareceu ...
É essa mesma passagem ao Outro que fundamenta a possibilidade da
transferência, se aceitarmos admitir que o sujeito suposto saber no qual o
objeto está "latente" é um outro nome daquilo que Lacan chamaYa em 1963
o espaço do Outro. Esse objeto tornado ah'o do desejo, posso chamá-lo por
referência implícita aos textos ulteriores de Lacan o objeto sintoma: a:.

É nesse nível que é encontrado o modelo do pai: ele apresenta o


exemplo de uma solução para a indeterminação do desejo, o que, ao mesmo
tempo, faz dele a condição da superação da angústia - pois não esqueçamos
que Lacan visava a superação da barreira freudiana relacionada à angústia de
castração. É o que coloca a última aula do seminário. Ele diz isso de forma
precisa: "o desejo do pai, desejo fixado a um determinado objeto", é um
desejo finito que "reintegrou sua causa", que se aventurou no que ele chama
a "realização" de seu desejo. Em outras palaYras, que se aventurou rumo a
(~ i f n i e c..1 r 2 n u I' a da ló?

um objeto sexual chamado como responsável pela castração. O que há de


excepcional é o fato de que, a despeito do (-cp), há para ele um a assegurado,
fixado. Logo, um pai não é a figura do problema, mas a da solução, de uma
solução sintomática.
Lacan não deixou de encontrar aí um problema: se é assim, por que a
função do pai permanece tão indissoluvelmente ligada ao interdito do inces-
to? Paro nas fórmulas de A angústia. "O desejo do pai e a Lei são uma única
e mesma coisa". Ele ressalta que a frase não quer dizer que seja necessário
se submeter ao desejo do pai, mas, antes, que ele mostra a via do desejo:
o desejo, ele ressalta, é a lei. Cito: "O desejo enquanto desejo pela mãe é
idêntico à função da lei. [... ] Para tudo dizer, deseja-se sob comando. O mito
de Édipo quer dizer que o desejo do pai é o que fez a lei" 2 \ O que dizer, se
não que ele prescreve o objeto feminino subtraindo o primeiro objeto? Ele
parece assim fazer para a relação sexuada o que a linguagem faz, sem interdito,
para a pulsão: assegurar uma subtração de gozo que gere a apetência26 • Não
importa, esse pai subtraidor sempre é a racionalização do impossível: não é
o Pai que impede de gozar do Outro, é que o gozo do Outro é impossível,
castração da relação, se posso dizer, e o pai, por seu objeto - Lacan dirá em
seguida: por seu sintoma-, indica uma via de suplência.

'--' PAI :31NT01\1A

"Rs1", uns quinze anos mais tarde, incluindo o Real, vai mais longe. Ele
convoca, mais que o desejo do pai, seu sintoma, ou seja, uma mulher/mãe,
que lhe dê filhos. É um sintoma que faz duplamente laço social, entre os
sexos e entre as gerações, como desenvolvi, suprindo assim a foraclusão da
relação sexual na linguagem. Entretanto, ele não opera a céu aberto e só traz

2' !bid., p. 126.


2 '· Já no texto "Kant com Sade", escrito logo antes, ele havia colocado essa tese da identidade
do desejo do pai e da lei e desembocado num "veredicto" relativo a Sade. Ele dizia: Sade
permaneceu preso ao interdito, ele é sujeito da Lei, "violada e costurada a mãe permanece
proibida", é a instância negativa do desejo, mas de um verdadeiro tratado do desejo, de sua
instância positiva, ele não nos dá nada.
]{18 La e a 11, o ; 11 e o 11 sei t! 11 t l? r e; 11 L' t? 11 tu d o

seus efeitos por um "justo semidizer". A angústia, ainda tateando, dizia do


pai: ele sabe a que objeto seu desejo se refere. Na verdade, nenhum sujeito
pode saber de onde ele deseja, mas pode semidizer, ou seja, deixar ouvir sua
verdade aos ouvidos interpretativos de sua descendência. Vale dizer que um
pai aí é convocado como um sujeito, caindo, como todo sujeito, sob o golpe
da verdade não toda, que opera por seu dizer.
É uma virada maior, pois o dizer não é uma função significante, mas
uma função de existência. Se a função Nome-do-Pai é trazida por uma
existência singular, e Lacan nunca mais voltou a essa tese, exigências exis-
tem "tantas e tantas" que o plural se justifica para designar os suportes da
função. Com esse plural anunciado no final de A angzístia, como desenvolvi
amplamente, a contingência faz sua entrada, embora a função, esta, seja
bem necessária para que o sujeito possa estar - cito A angústia - "preso(s) a
desejos finitos"xc, sem os quais não existe realização autêntica.
Vemos que um pai apresenta uma versão de sintoma fundamental: se
não for a natureza quem fala, nenhuma dúvida quanto a esse ponto, e se o
objeto a não determinar a singularidade da eleição, a castração não decide o
parceiro eleito. Resta, então, o sintoma sexuado para suprir a foraclusão da
relação sexual. Ele cobre a hiância do "não há" com um "há', instaurando
um substituto, uma suplência. E pode-se então dizer que o sujeito, por outro
lado submetido à grande lei da falta, ali está casado com uma constante de
gozo específica através das palavras do ICSR Um pai só traz a função porque
tem o sintoma pai, uma versão da perversão generalizada. É um caso de li-
bido masculina, um caso entre outros, pois também há os héteros não-pais
e aquilo que Lacan nomeia os celibatários, designando por aí aqueles que
não se ligam ao Outro sexo. Um pai primeiro se especifica por um desejo
heterossexual que "faz de uma mulher a causa de seu desejo"; além disso,
um desejo que conjuga o parceiro mulher ao parceiro mãe e ao parceiro
filho, logo, de certo modo, um triplo parceiro. Seu sintoma é borromeano,
ele enoda o ICSR à verdade da fantasia. Ele pode ter outros sintomas, mas
é por esse que ele traz a função. Daí a questão de seu laço com a família
conjugal; a isso voltarei.

lbid., p. 389.
S e um pai só é Pai, isto é, só encarna a função, pelo semidizer de seu
sintoma, a questão é saber como esse dizer opera para assegurar o que
Lacan chama a função sinthoma de enodamento das três dimensões. Lacan
acaba colocando que esse enodamento passa pelo dizer de nomeação, des-
lizando assim do Nome-do-Pai ao Pai do nome.
Antes de a tese cristalizar, Lacan havia marcado várias vezes o laço da
função do pai com a nomeação. É o caso, notadamente, no final do seminário
A angústia, em que o pai é invocado no laço com seu objeto como princípio
de superação da angústia. São indicações breves, mas muito preciosas, após
observações sobre a transferência que faz o objeto passar para o campo do
Outro: "Só há superação da angústia quando o Outro é nomeado. Só há
amor de um nome, como todos sabem por experiência. O momento em que
é pronunciado o nome daquele ou daquela a quem se endereça nosso amor,
sabemos muito bem que é um limiar que tem a maior importância" 28 •
O nome é o que fundamenta "um desejo que não seja anônimo",
conforme a expressão das "Notas a Jenny Aubry" (1969). Logo, um desejo
eletivo, particularizado, de um objeto distinto dos outros, no qual possa-
mos nos reconhecer, diferentemente do objeto desconhecido da angústia.
O amor é, de fato, inventivo de nomes, em todos os níveis, até na relação

:s lbid., p. 390.
1]() Lu ea n , o ; n e o n :s. e i e n t e r f! i n l' ..:! n t L"l J L1

com a criança - vai dos pequenos nomes aos grandes nomes, nomes que
damos ao amado. Claudel, com seu Ysé, já sabia disso.
É que o objeto, o verdadeiro, aquele escrito a, não tem nome. Ele é
causa da angústia justamente na medida em que é anônimo e desconhecido.
Vale aqui aproximar o fim do seminário A transferência e o de A angústia.
No primeiro, lê-se: "Não há objeto que tenha maior preço que outro", "aqui
está o luto em torno do qual está centrado o desejo do analista". O que
deixou que alguns pensassem que, para fazer um analista, fosse preciso uma
tal transformação do sujeito que, no final, ele entrasse na indiferença cínica.
Mas se tratava do objeto a, que destitui o parceiro, o qual ele anula, o qual
ele "a-nisa'' [a-nise], chega Lacan a dizer. E todo o movimento do seminário
vai do amor, de seus brilhos, de seu "milagre" - em suma, de sua metáfora
- rumo à metáfora totalmente oposta do desejo, que substitui o agalma do
Outro idealizado, que sofre uma queda, por esse objeto. E Lacan evoca "a
perfeita destrutividade do desejo" causado por esse objeto chamado como
complemento de vida, que justamente não tem nome e que encontramos
na angústia.
O seminário A angústia parte do objeto que faz o ponto de chegada
da Transferência. Vai da angústia de um sujeito confrontado com o desejo
enigmático do Outro e com a iminência de sua redução ao objeto não ele-
tivo até sua última aula, que recorre ao pai como princípio da superação da
angústia por seu objeto, não só finito, mas também nomeado. Nos termos
da época, vemos a função que é atribuída à nomeação: ela é um para-an-
gústia, pois faz o a anônimo passar para a História - em outras palavras, ela
transfere a causa desconhecida do desejo para o objeto nomeável.

~ O ( l' E) ,\l I ;--: A TI O N *

O Pai do nome é um salto conceituai maior.


Poderíamos pensar que, com esse pai nomeante, Lacan salva o pai,
que simplesmente assume o lugar a um só tempo da velha ladainha bíblica

* Amálgama formado a partir de noue [enoda] e nomination [nomeação:. (;\;.T.)


(__~ / í n i e a r e n 1.., i· a Ja 171

e do Édipo freudiano, mas seria bem espantoso num tempo em que ele
multiplica as expressões de rebaixamento do pai: é um nome a ser perdido,
passar sem ele, não há recurso, etc. :-Ja verdade, é o contrário de um sal-
vamento: essa definição mantém a função Nome-do-Pai, mas na verdade
a desconecta dos pais da família tradicional, os pais do trio edipiano. É o
que eu gostaria de mostrar. A tese é de um impacto imenso para nós que
somos de um tempo em que a falência dos pais de família está à flor dos
fenômenos - quero dizer, à flor da clínica.
É evidente que não ignoro o que todos os leitores assíduos de "Rsr"
têm em mente, a famosa passagem, que evoquei um pouco mais acima, da
aula de 21 de janeiro de 1975, sobre o que é um pai digno desse nome - e,
quando digo "famosa'', isso quer dizer que já se tornou uma lengalenga la-
caniana. Essa passagem mostra em que condições um pai particular, um pai,
portanto, enquanto sujeito, pode veicular a função, ser o que vou chamar
um pai-Nome-do-Pai, com traço de união. Só que o fato de um pai ter esse
poder não implica ele ser o único a tê-lo.
Dizer que o pai nomeia já é dizer que sua função não é função de
metáfora, não é tampouco uma função da letra, que conecta um elemento
do Simbólico ao gozo, real. A nomeação não é propriamente falando uma
função significante embora seja privilégio do falasser. Ela é função de dizer, e
o dizer, cito, "é acontecimento". Ele não é nem verdadeiro nem falso, ele é ou
não é. Acrescento: igual ao ato. Acontecimento, isso implica a contingência,
um "o que cessa de não se dizer". Diferentemente dos significantes que estão
no Outro, "disponíveis", o narning do pai é um fato de ex-sistência.
O que recoloca a questão da relação do Pai com os semblantes, esses
semblantes que os ingleses traduzem tão justamente por make believe. Do
significante do Pai foi possível dizer que ele próprio era um semblante,
mas o "dizer"? Seu acontecimento ex-siste aos semblantes e, por isso, pode
colocá-los no lugar deles, permitindo que o sujeito se "afale"* no discurso,
que dele se faça o tolo, que consinta no semblante que fundamenta esse
discurso, o qual, este, é sempre "semblante". Entretanto, os próprios dis-
cursos sempre estão presos a um dizer, tive a oportunidade de mostrar isso,

x Em francês, "permettant au sujet de s'apparoler au discours. (N.T.)


172 Laca11, L) i11co11scit?J1Í.! r2iJic.:z11ft..1Jo

encarnado para cada um por uma figura da história. Lacan os nomeou,


Licurgo para o discurso do mestre, Carlos Magno para o da Universidade,
Sócrates para o da histérica, e, é claro, Freud para o analista. Sem o dizer
que põe o semblante em seu lugar, não compreenderíamos as afirmações
do seminário Mais, ainda. Aquelas que colocam que, a cada mudança de
discurso, surge um novo amor e até uma emergência do discurso analítico.
É que um dizer novo faz promessa, promessa de uma outra solução, e de
um novo saber - que conduzirá a uma outra barreira.
Outra maneira de formulá-lo, em termos de nó borromeano: a eficácia
do Pai é enodar as três consistências, prender, portanto, o Real impensável
do sintoma aos semblantes, entre Imaginário e Simbólico. O dizer sinthoma
preside à consistência dos semblantes, que não funciona sem o Real, sem
os sintomas do ICSR.
Mas em que e como um dizer de nomeação faz nó?
A nomeação se abre em leque, se posso dizer, da atribuição do nome
comum àquele do Nome que dizemos próprio porque é de um e de nenhum
outro. Dar um nome às coisas, a Bíblia o imputa a Deus. ,\las Deus só deu
às coisas seu nome comum. O Nome próprio, este, tem mais pretensão e
maior impacto.
A função do nome próprio responde ao que do ser é impensável, ao
que ele tem de impredicável. O impredicável é um problema com o qual
cada psicanálise nos confronta diariamente, pois o sujeito que fala, por ser
representado por sua fala ou por seus significantes, nem por isso deixa de
ser um impredicável. Dito em termos mais familiares, na fala - na conversa
mole, como diz Lacan -, só o recalque originário responde à questão do
sujeito, ao Che vuoi?. Outra maneira de dizê-lo: o "Simbólico faz furo'', furo
irredutível. Esse furo tem um nome fora da psicanálise, é Deus, o Deus do
"sou o que sou'', asserção sobre o perfeito impredicável. Na psicanálise, o
nome do furo é a coisa mesma.
Qual é o recurso contra esse furo? ... Fora de análise, é a identifica-
ção, que por certo cobre o furo do sujeito, mas sem reduzi-lo. e basta uma
psicanálise para que esse furo seja descoberto, no duplo sentido da palaYra
"descobrir''. O nome próprio é precisamente o que tenta suprir a impotência
da identificação. Como consegue isso é outra questão.
173

Logo, os nomes vêm do furo do inconsciente. O furo, diz Lacan, cospe


fora os Nomes-do-Pai. Na verdade, ele cospe fora nomes, cada sujeito ou,
ames, cada inconsciente de fato produz nomes, e, quando é numa análise,
faz isso através da conversa mole interpretada. Mas o que é nomeado? Tudo
o que não passa para o significante, o objeto e, eminentemente, o Real. É
bem visível com o dizer de um pai-Nome-do-Pai. Eu disse, seu dizer nomeia
seus objetos, sua mulher sintoma e os filhos advindos e, assim fazendo, ele
enoda o gozo que o constitui ao Simbólico e ao Imaginário - digamos: o
Real aos semblantes. É por aí que o dizer do nome é enodante. "Pelo naming,
a conversa mole se enoda a algo de real". O Real é furado pelo significante,
mas enodado pelo nome. Ao ponto, eu disse, de ser preciso escrever, por
neologismo calculado: no(ue)mination. A nomeação enoda a conversa mole,
que representa o sujeito, com o real do gozar - digamos: com seu nome
sintoma. É o que justifica Lacan a dizer que os nomes que respondem ao
impredicável são Nomes-do-Pai. Eles podem bem não ter nada a ver com
qualquer pai que seja, eles rêm uma função enodante, borromeana.
Há mais: o enodamento da conversa mole e do Real é indissociável
do laço social. Não há autoprodução e não há amoatribuição do nome. O
nome, seja nome comum ou mais radicalmente nome próprio, deve ser
homologado para ser. É verdade que é possível querer ter um nome, alguns
se renomeiam, como diz nossa língua, por suas obras, boas ou más, mas
nenhum se aucoatribui o nome. Prova com Joyce: ele delirou seu nome,
se posso dizer, antes de tê-lo, mas não há Joyce sem joycianos, sem o dizer
magistral dos joycianos. Exemplo menos lembrado: o patronímico do Sr.
Poubelle tornou-se nome comum para um objeto* de nosso cotidiano, mas
não sem o público que reconheceu sua utilidade. A heteroatribuição do
nome vale até para o nome "sintoma". Vejam, por exemplo, já os citei, Jack
o estripador, Sr. Maldito, Zorro o justiceiro, e até o Homem dos ratos. O
nome que indica a identidade é recebido num laço social.
Logo, o que é preciso provar: a nomeação enoda as três consistências,
ela faz sinthoma (a ser distinguido do sintoma função da letra), e é por

• Poubelfe em francês é lata de lixo. O nome vem de Eugene Poubelle, prefeito da região do
Sena, que instituiu o uso obrigatório do recipiente, ao qual os habitantes deram, então, seu
nome. (N.T.)
174 La e c.1 n, o i 11 e L1 n sei e 11 t2 r e; 11 i· t.? n ta Jv

isso que Lacan sugere acrescentar a letra h, o h de homem, entre o n e o o:


n'homear. A nomeação faz o Um do homem - logo, corrigindo o "algum
dois" do sujeito, sempre equívoco. O namingé Pai. Daqui por diante escrevo:
"Nomeação-Nome-do-Pai com traço de união. Eis, pois, os pais reduzidos
a serem apenas casos particulares, além disso contingentes, de uma função
mais geral.
Aliás, esse ponto já estava implicado na colocação no plural dos No-
mes-do-Pai. Ele não foi compreendido, tah'ez não fosse então decifrável.
Ela havia conduzido Lacan a dizer que o pai tem tantos e tantos nomes que
não tem Nome próprio. Um pai, que tem a versão pai do sintoma, tem um
nome próprio, mas não a função. Como lembrei, Lacan declinou alguns
desses nomes múltiplos da função.

SDl A FA.\lÍLIA

Primeira consequência, e é forte: a função Nome-do-Pai não é necessaria-


mente solidária à família. Em 1969, Lacan falava da família conjugal como
resíduo derradeiro da fragmentação dos laços sociais. Hoje se sabe que ela
não é o resíduo derradeiro; ele mesmo viu, é o indivíduo quem é o resíduo
derradeiro. Hoje, é do exterior, do estado dos modos e da família que os
psicanalistas recebem, na cara, uma interpelação midiatizada, que poderiam
ter identificado quarenta anos antes, uma vez que já estava sob a pena de
Lacan. "O parentesco em questão" não é novo. Em 1977, já era o título de
um livro publicado pela editora Seuil, de um certo Robert Needham, que
Lacan cita em sua aula de 18 de abril daquele ano. Após todo esse tempo,
penso que é urgente extrair as respostas dadas por Lacan às questões que ele
lançava aos analistas e medir seu possível uso para nossa clínica.
O núcleo duro dessas respostas é o questionamento do Édipo freudia-
no que "não pode manter-se indefinidamente em cartaz" 29 e uma redefinição
constante, em décadas, da função paterna que culmina na função de no-
meação. Ora, a família não é a condição da nomeação. Esta decorre de um
dizer existencial que nada tem a ver com a instalação conjugal conforme.

29 ]. Lacan, "Subversion du sujet et dialecrique du désir'', Écrits, Paris. Le Seuil. 1966, p. 813.
L~ / f n i eu r ,2. 12 L, t· 1..1 da 175

É pelo nome que ele dá a seus objetos-sintoma - mulher, mãe e filhos


- que um pai faz no(ue)mination, e até "nós" [pronome pessoal da lª pessoa
do plural] com ums. Nada a ver com a família da qual, aliás, sabemos, por
experiência, que até em suas configurações mais conformes ela está bem
longe de obstar à foraclusão.
Há aí uma questão atual. Não estamos mais no tempo em que podia
elevar-se o grito "Famílias, eu vos odeio"*; hoje, é só um grande grito, inver-
so: "Famílias, sentimos sua falta". Será que a função do dizer existencial do
Pai não implica sua presença na família, talvez até a estabilidade do casal, e
depois também a heterossexualidade? A mesma questão se colocava quando
Lacan falava de um pai do desejo.
Com efeito, quando se fala de desejo do pai, ou de dizer do pai, não
se trata apenas de um significante como Lacan primeiramente colocou, mas
visivelmente de uma presença libidinal. Em sua "Questão preliminar", Lacan
ressaltava que o significante do Nome-do-Pai se acomodava muito bem à
ausência do pai30 , do boneco-pai, o que desjuntava a função não só do
genitor, mas também dos avatares da família conjugal, até poder identificar
esse significante a uma abstração.
O que acontece com o Pai do dizer? Pode ele ser veiculado apenas pelo
discurso, sem requerer sua presença, ou é preciso, como dizia Winnicott,
"o pai no café da manhâ'? Na verdade, ele dizia the breakfast, e o breakfast
inglês é bem diferente do nosso café da manhã, mas não importa. Esse pai
no café da manhã é uma metonímia que remete ao que precede o café da
manhã, o pai no leito conjugal, do qual a criança está excluída. Com essa
metonímia, corre-se o mesmo risco que com a primeira metáfora de Lacan.
Esta não supunha o pai no café da manhã, acabo de dizer, mas parecia supor,
para uma leitura apressada, uma mãe responsável pela presença do signifi-
cante. E o risco, já amplamente realizado, era fazer disso uma interpretação
familiarmente conformizante e, por via de consequência, com o sucesso da
tese, passar diretamente, notadamente nos serviços que cuidam das crianças,
a apelos ao pai que o destituem mais do que o sustentam, já que significam,

* Frase do escritor André Gide. (N.T.)


30lbid., p. 557.
}7(1

que se queira ou não, que ele não faz seu papel. Além disso, é uma confusão
entre o desejo do pai e os pareceres educativos do pai - digamos: o magister
do pai, contra o qual Lacan sempre lutou.
Estamos aí numa fronteira ideológica que Lacan evoca no fim da
"Proposição sobre o psicanalista da Escola" de 1967, especialmente em sua
primeira versão. Ele ali denuncia "a ideologia edipiana", bem como, cito,
"o apego especificado da análise às coordenadas da família, [... ] ligado a um
modo de interrogação da sexualidade que corre o grande risco de deixar
escapar uma conversão sexual que se opera sob nossos olhos" 31 • Logo, ele
havia percebido o atraso dos analistas em relação à época, e, se conversão
houver, ela só pode estar ligada à "subida ao zênite social" do objeto a, a-
sexuado.
Entretanto, a mesma questão é recolocada com os textos de janeiro
de 1975 de "RsI". Lacan ali aborda novamente a questão da relação entre
a função lógica da exceção e os indivíduos que portam essa exceção. Não
é a mãe que está na berlinda e sim o pai. É preciso, segundo Lacan, que a
exceção paterna possa ser encontrada em alguém, mas esse alguém não deve
ser um qualquer, ele deve preencher duas condições: a primeira é aquela que
ele já colocou, o desejo por uma mulher, a mulher do pai; a segunda, que
ele acresce ma nessa data, e é capital, é que ele tenha um cuidado ... paterno
com os filhos que ela lhe faz.
Estamos longe da metáfora cujo efeito devia substituir a mulher do
desejo à mãe primordial. Aqui, é o inverso, a perspectiva dada pelo desejo
do Pai, ou seja, o desejo de um homem não qualquer, de um heterossexual
não qualquer, faz passar de uma mulher, a dele, a uma mãe, a mãe de seus
filhos. Em outras palavras, o desejo hétero não basta.
Mas o que é o cuidado paterno? Seguramente não é o cuidado mater-
no. Com essas noções de cuidado materno e paterno, aventuramo-nos num
terreno ideologicamente espinhoso. Com efeito, hoje, os ideais da paridade
entre os sexos induzem a separar sempre mais os papéis sociais e familiares,
com suas respectivas cargas, de sua ancoragem sexuada. E vemos as mulheres
reivindicarem ser assistidas nos cuidados do corpo, da sobrevivência e da

·11 J. Lacan, "Annexes", Autres écrits, Paris. Le SeuiL 2001. p. 58-.


L-linicL1 ren1.1L·aJ(.:z 177

economia familiar na qual foram por tanto tempo relegadas. Só vejo uma
maneira de entender isso, esse cuidado paterno específico, no momento em
que Lacan o profere, é o cuidado de nomeação, cuidado que, por distinguir
os objetos, aqui os filhos, como produtos do casal, os tira do anonimato
genérico da reprodução dos corpos apenas. Para o filho, ele promete, torna
possível aquilo que Lacan em certa época chamava a humanização do desejo.
Com efeito, de que serve a nomeação, na verdade, pois ela serve? Ela obsta
ao estatuto proletário do indi\·íduo corporal, que nada tem para fazer laço
social. É a associação dos significantes que permite fazer laço, e é o que o
pai nomeante fornece, ou o nomeante que é Pai: os significantes do laço de
origem que produziu o filho. Toda a clínica mostra a que ponto é capital.
A única presença exigível do pai - a única que obsta à psicose, pois a
questão não é a dos prazeres do cotidiano conforme o pai estiver ali ou não
-, a única presença exigível é a do dizer que nomeia. Evocando um cuidado
paterno específico, Lacan não se coloca na onda da paridade, é seguro, mas
tampouco, creio, na onda machista do patriarcado, que, aliás, "já era" em
nossas paragens.
Resta a questão: dizê-lo Pai não requer que o pai de família esteja ali
no café da manhã? É seguro que não. O dizer, acontecimento fundador,
implica contingência e pode, portanto, estar disjunto das conjunturas da
geração, da manutenção dos corpos e da boa ordem do cotidiano.
Já ressaltei isso, quando Lacan introduz essa função de nomeação,
o Pai do nome se lê nos dois sentidos: o Pai, um pai-Pai nomeia, mas, da
mesma forma, o que nomeia é Pai. Sem essa contingência, não se pode
pensar a complexidade da época atual.
Vale dizer que não é a família que faz o pai-Nome-do-Pai. É, ao con-
trário, o dizer que nomeia, quando está ali, que faz os corpos ficarem juntos,
sem necessariamente passar pelo cartório, o anel no dedo e a convivência
dos diversos objetos que a família pretendia juntar sob o mesmo teto. A
nomeação-Nome-do-Pai pode passar sem os pais e se acomodar com nomes
sinthomas quaisquer outros. Prova extrema por Joyce.
Logo, os psicanalistas também poderiam passar sem seu apego às co-
ordenadas da família tradicional que Lacan já estigmatizava em 1967. Isso
permitiria que enfrentassem as situações atuais ao invés de deplorá-las.
178 L a e a 11 , o i 11,: L' 11 se i l: 11 t 2 ,. e i 11 t· e 11 t i1 d L,

Resta a questão do laço com o sexo. A nomeação-Nome-do-Pai,


sempre com o traço de união, também pode estar disjunta do sexo? Dizer
que um pai faz de uma mulher a causa de seu desejo não é significar uma
necessária aderência da função a um homem hétero? No entanto, olhando
isso melhor - quero dizer: levando em conta o conjunto dos textos-, noto
que, sob a pena de Lacan, os nomes do Nome-do-Pai não são sexuados. O
que é uma atualização bem diferente e que se conjuga de modo impressio-
nante com as evoluções do tempo. Evocar a subversão sexual em 1967 era
visionário: hoje, ela é verificada no dia-a-dia. A dita subversão se deve ao
fato de que agora se sabe, pela graça do capitalismo e, com certeza, também
da psicanálise, que nosso gozo só é situado pelo mais-de-gozar - em outras
palavras, que ele não estabelece relação. Mas esse regime de gozo muda o
lugar da heterossexualidade no discurso e correlativamente relativiza a figura
do pai hétero.
O pai não ser o genitor, embora o genitor possa ser também pai, é
uma tese com origem em Lacan e que, hoje, a ciência faz passar ao ato. A
nomeação-Nome-dó-Pai generaliza essa disjunção ao a ela acrescentar a
disjunção com a copulação dos corpos. As consequências do namíng, diz
Lacan, vão até o gozar; mas, se todos os nomes do Nome-do-Pai se referem
ao gozo, nem todos se referem ao sexo, como vemos bem, por exemplo,
com "o homem mascarado", de sexo duvidoso, do qual Lacan faz um dos
Nomes-do-Pai e, mais ainda, com "O artista'', sinthoma a-sexuado que dá
seu nome a Joyce, o sem-corpo.
Hoje, de fato, constatamos, as configurações daquilo que se transmite
em matéria de "tu és meu sintoma'', ou "tu és meu filho, ou minha filha'', "tu
és o nome de um dos meus gozos" são, na realidade, realidade social, muito
mais variadas do que foram. A tese da nomeação-Nome-do-Pai, uma vez que
é disjunta não só da família mas do sexo, que ela pode no entanto incluir, é
na hora dessas evoluções que ela permite pensar, no momento mesmo em
que, em razão da ciência, a transmissão da vida pelas vias do sexo está ela
própria em questão no que se refere à reprodução dos corpos.
Concluo com uma consequência muito concreta e muito atual: a
contingência do namíng no laço social, contingência, insisco, que abre
para o encontro, objeta a priori à previsão e com ela a todos os projetos de
prevenção junto às crianças. É evidente que distingo a proteção das crian-
ças, que atende a estados de fato, da prevenção que pretende antecipar os
efeitos e que, postulando uma falsa causalidade, quer evitar seus supostos
danos, com resultados em geral mais próximos da discriminação que do
cuidado verdadeiro.
O fato de o dizer da nomeação ser, como qualifiquei, epifânico, acon-
tecimento, faz fracassar a previsão, tão cara às políticas de saúde e educação.
O tema é atual, já que foi possível imaginar, se acreditarmos num recente
relatório INSERM*, detectar desde a idade de trinta e seis meses as crianças
com problemas futuros! Toda a questão para os analistas seria largar, en-
fim, a referência à norma edipiana e familiar para procurar e reconhecer as
ocorrências clínicas das variedades dos dizeres de nomeação ali onde eles
se apresentam.

* Instituto da saúde mental e da pesquisa médica. (N.T.)


Ü A,\lOR E O REAL

A questáo de saber se a psicanálise pode prometer um novo amor para


além dos sintomas da vida amorosa que lhe são endereçados está aí
desde a origem. Hoje, do ponto de vista das elaborações precedentes, a ques-
tão é mais precisamente saber que luz nova a consideração do inconsciente
real traz para essa questão.
Desde o início, Freud postulou que os laços tão incompreensíveis
das paixões do amor não escapavam nem à racionalidade nem à lógica. Ele
conseguiu demonstrar a incidência da repetição. Um amor repete outro. Em
outras palavras, o objeto traz os traços, as marcas do objeto primário. Logo,
o primeiro é sempre o segundo, diz Freud. Nos termos de Lacan, o objeto
traz as marcas do primeiro Outro envolvido na primeira demanda de amor,
o que Freud chama os objetos edipianos. Estamos no nível das histórias de
famílias. Ora, estas sempre são, segundo Freud, histórias de desespero. :'.\Jão
há infância feliz, apesar do esquecimento. É preciso ler sobre esse tema, em
"Para além do princípio de prazer", uma página espantosa, e animada por
uma vibração bem rara em Freud, dedicada às infelicidades da infância' 2 •
Entretamo, do pomo de vista erótico, o objeto herda outra coisa, não
marcas do Outro, mas traços onde se inscreveram os primeiros encontros
de gozo, algo visto, ou ouvido, ou sentido, sempre traumático, diz Freud.
E, aí, estamos no nível de uma história de corpo, mais precisamente da-

·' 2 S. Freud. lhe St,mdard Editio11 ofrhe Complete P.'.vcho!ogicd ffór.ks ofS Freud, rnl. 28. p. 20.
181

quilo que Lacan chamou ''acontecimentos de corpo". Assim, para Freud,


desespero e trauma, que o termo "castração" na verdade condensa, são
as duas fontes da repetição. Daí se pode compreender que o amor, no
entanto chamado a título de reparação, fracassa em evitar as repetições
que arruínam a vida amorosa.
A isso se acrescenta que, para Freud, a transferência também é repe-
tição, que vai, portanto, reiterar o pior do passado, sem possibilidade de
prazer, como ele diz, o que arrisca bem fazer dela no fundo uma experi-
ência reiterada de castração: falta de amor, de saber e de satisfação sexual.
Impasse, pois.

Lacan seguiu o mesmo eixo que liga o amor à casrração, ela própria efeito
de linguagem, eu disse. A fórmula conhecida: "O amor é dar o que não se
tem" está nessa linha. E o seminário A transferência evocou amplamente o
efeito de ser que disso se obtém quando o amado por sua vez ama, efeito
ilusório, porém, com relação ao desejo.
Não é excessivo dizer que há no ensino de Lacan algo como um proces-
so do amor, e o procurador conclui: primeiro, pela baixeza do amor'·1 • ''Amar
é querer ser amado"'\ e é verdade que a questão de um amor possivelmente
desinteressado atravessou os séculos antes da psicanálise. Na teologia cristã,
deu lugar, notadamente numa de suas últimas retomadas com Madame
Guyon, ao debate sobre o puro amor que não exigiria nenhuma retribuição,
nem sequer a da salvação. Ele conclui, em seguida, pela covardia do amor
que não quer saber do real irredutível da castração que fundamenta o desejo
e marca o gozo, depois por sua enganação também, pois o amor mente sobre
o verdadeiro parceiro - Lacan generaliza em todas as estruturas o "não o(a)
amo" que Freud aplicava à psicose. No fim do baile, não era ela, não era

'5 J. Lacan, "Subversion du sujet e[ dialectique du désir", Écrits, Paris, Le Seuil, 1966, p.
723.
5• J. Lacan, "Ou Ti·ieb de Freud", Écrits, Paris, Le Seuil, 1966, p. 853.
182 L u e a 11, o ; 11 e o n sei ,2 n t t? r t? i n i· 2 11 t t1 J L..,

ele, lembrei. Aliás, há mais, é que a própria fala de amor é rival do amado,
pois falar de amor é em si um gozo que não pede nada a ninguém. Sobre
esse ponto, Lacan tem fundamentos para evocar são Tomás, que, após uma
vida de discurso dedicado ao amor de Deus e para Deus, no fim conclui
por um sicut palea, que conota a um só tempo a mentira e o gozo da pulsão.
Enfim, ele conclui pela ilusão, cômica, que faz crer que um objeto é nossa
vida. Todos esses desenvolvimentos afirmam a antinomia da cena em que
o amor faz enorme barulho e do real em que ele se abisma.
Não se trata apenas de um inventário, que faria uma constatação:
vemos, são julgamentos éticos. Julgamentos assim existem muitos sob a pena
de Freud. A própria noção de defesa os implica. Quando Lacan diz que o
neurótico é um covarde, que a tristeza dele é um delito não contra Deus,
como no cristianismo, mas contra o imperativo analítico, é um julgamento
relativo à ética da psicanálise. Pois existem vários gêneros de coragem, a do
mestre não é a do analista, e o neurótico também pode ser um herói, em
outro momento, por exemplo em tempos de guerra, embora recue diante
do real do inconsciente. São outros tantos julgamentos que reconhecem no
amor e no gosto que temos por isso uma figura da defesa contra o Real, amiga
da paixão da ignorância que não quer saber nada disso. É evidente que não
se trata de qualquer real, mas daquele que está em jogo na análise.
Será, porém, a última palavra? O amor de transferência já pedia uma
reserva. Para Freud, foi uma descoberta surpreendente esse amor inesperado,
não previsto em seu dispositivo, cujas exigências o embaraçaram, mas que
ele bem rápido percebeu que era a condição da análise.
Esse amor que, contrariamente a qualquer outro, surge quase auto-
maticamente no dispositivo freudiano, contanto que o parceiro opere como
analista, já é, segundo Lacan, um amor "novo", embora menos ilusório.
O amor é cego, diz o provérbio, mas talvez não o da transferência. É que,
contrariamente a qualquer outro, cito, "ele se endereça ... ao saber" 35 , ao
saber inconsciente. Logo, ele parece excetuar-se das três paixões do ser já
distinguidas no budismo, o amor, o ódio e a ignorância, uma vez que está
à espera tanto de um efeito de ser quanto ... de interpretação. Um amor que

35 ]. Lacan, "Imroduction à l'édition allemande des Écrits", Scilicet 5. Paris, Le Seuil, 19 7 5. p. 16.
l-. / í n i e a r e n o i· a L-l a 183

teria um impacto epistêmico ... Exceto que, como sabemos desde Freud, é
ele também que resiste à revelação analítica. Lacan não diz não: por mais
necessária que seja, a transferência, com seu amor pelo saber, seu postulado
de um sujeito suposto ao saber, ao próprío saber suposto que daria sentido
ao sintoma, a transferência, portanto, é uma denegação do inconsciente
real. De transferência ao inconsciente, há divergência da suposição, já dizia
"O engano do sujeito suposto saber".

l'.\1 A,\lOR Ql'E :3ABE

Lacan dá mais um passo no tempo em que ele revela o inconsciente real. Eu


disse o acabamento de sua trajetória: a foraclusão generalizada da relação
sexual, que faz a "maldição sobre o sexo" própria ao humano, é solidária
à tese do parceiro-sintoma, quer se trate do gozo parceiro, civilizado por
alíngua, ou do parceiro humano que por vezes a acolhe e que é eleito através
dos significantes e das representações da fantasia. O gozo "não é o signo
do amor" 36 , mas acontece de eles se enodarem. Fazer amor é poesia, dizia
Lacan, pois o ato sexual nada mais é, cito, que a "perversão polimorfa do
macho". Não há, pois, relação sexual, mas ... uma relação de amor possível
que, desta vez, reconhece o outro.
Lacan a introduz, no final do seminário Mais, ainda, como um afeto,
efeito do inconsciente real. Já indiquei que, através do ICSR, Lacan havia
dado nova função aos afetos, ou antes, ao caráter enigmático dos afetos. Ele
faz a mesma operação com o amor, nele reconhecendo um signo: signo de
uma percepção do inconsciente e de seus efeitos. O amor é reconhecimento
obscuro, com "signos sempre enigmáticos" 37 , da maneira como o outro é
afetado pelo destino que lhe é traçado pelo inconsciente. O mistério do
amor não está reduzido, mas relacionado com o fundamento inconsciente.
É um passo para além das tentativas freudianas, que mais buscavam seus
fatores determinantes, algo como leis de produção, que seriam suscetíveis de

-'6 J.Lacan, Encare, Paris, Le Seuil, 1975, p. l 1.


r Ibid., p. 131.
18"1 L a eu 11 , o ; n e o n sei i: 11 te ri: i 11 i·.;: 11 f tt J L1

suspender-lhe o mistério. Esse termo "reconhecimento" diz que esse amor


assume a função nova de revelar a presença e os efeitos do inconsciente.
O texto parece hesitar quanto à natureza desse reconhecimento. Ele
considera que seja reconhecimento da "coragem" do ser de suportar sua sorte
de falasser, sua relação com o real da não-relação e com o sintoma que a ela
supre. O amor seria, então, como um detector ético de um sujeito afetado
de solidão e de um gozo do qual ele não é dono. Mas talvez seja aventurar-se
demais, talvez seja preciso dizer, mais provável, reconhecimento entre dois
saberes inconscientes - digamos: duas alínguas - que não implicam forço-
samente a ética do sujeito que por ele é afetado. Nos dois casos, o enigma
do amor, desde sempre reconhecido, aparece como o signo re,;elador da
percepção de um saber que está ali, insabido, mas obscuramente apreendido.
Um índice não de uma intersubjetividade, mas de um inter-reconhecimento
entre dois falasseres, feitos de duas alínguas.
Entenderemos que fazer do amor esse deus bem malicioso, um reve-
lador, é implicar que o significante não é mais o único indicador do saber.
A inversão de perspectiva é considerável, e vemos a diferença com a famosa
fórmula "tu és minha mulher". Essa fala plena era um ato que instituía o
outro, o parceiro. O amor obscuro reconhecimento não é primariamente
um ato, ele é sensibilidade que registra algo como que uma afinidade, o que
não quer dizer uma identidade, entre dois inconscientes insabidos; logo,
incomensuráveis.
É evidente que há um problema, pelo menos no plano epistemológico:
o que é reconhecido não pode ser transmitido, e só o próprio reconhecimento
é mostrado, encenado, de certo modo.
Essa tese do amor reconhecimento do inconsciente tem consequên-
cias imensas, que não me parecem ter sido completamente percebidas.
No entanto, ela permite lançar uma nova luz sobre diYersos fenômenos
conhecidos.
Por exemplo, o fato de o amor ser tagarela. É notório que ele faz falar
e até cantar. O objeto indizível cria palavra, e é muito difícil acreditar num
amor silencioso. Aliás, através dos séculos, quando o deus de amor se cala,
ele tem seus intérpretes, sempre muito prolixos. Esse blablablá é denunciado
como enganador, mentira da sedução, "cantada", e, além disso, como uma
ej f 11 ; C L1 J' ;! J1 0 l_' L1 dQ 185

fala autossuficiente pois gozosa, assim como as cartas de amor. Não é falso,
mas também se pode perceber que, se o amor solta a língua, talvez seja por
ele estar justamente baseado num encontro entre duas alínguas. E se este
é uma obscenidade na qual o gozo se depositou, é preciso então dizer que
o epitálamo, o duo entre os amantes, é uma relação específica entre duas
obscenidades, entre duas alínguas gozadas que, ao mesmo tempo que tem
forçosamente a ver com o ato sexual, assegura a copulação verbal de dois
falasseres. Entende-se, então, que o diálogo privado dos amantes retorne
de modo tão irresistível no falar bebê, como se sua bestificação buscasse
reencontrar a lalação de origem.
Da mesma forma, é possível voltar à escolha de objeto. A escolha
marcada de repetição que Freud percebeu e, na verdade, sustentou de dois
lados: do lado do programa de gozo, mas também do lado narcísico. Do
lado narcísico, o ideal do eu (IM [ideal do moi]), que na verdade é, segundo
Lacan, um ideal do Outro, r(A), está em jogo naquilo que Freud percebeu
como idealização do objeto. Com ele, nossos amores particulares se ligam aos
valores de uma época, ao que dá prestígio em cada momento da civilização
ao sabor de seus semblàntes. Assim, o amor enquanto repetitivo trabalha
na direção da conformidade, percebemos?
Entretanto, não podemos ignorar as surpresas do amor. Essas escolhas
discordantes em relação ao mundo de um sujeito, que reúnem de surpresa
seres perfeitamente desfalcados em relação aos semblantes que os regem.
Difícil explicar essa discordância apenas com a referência à fantasia, isto
é, ao objeto a. A implicação do objeto também determina, antes, escolhas
típicas não do ponto de vista dos semblantes, mas do ponto de vista pulsio-
nal: parceiro oral, escópico, etc., e, longe de tornar pensável a exclusividade
do objeto parceiro, ela antes fundamenta a equivalência secreta de todos
os objetos eleitos.
O encontro das duas obscenidades permite, ao contrário, compreen-
der melhor as escolhas discordantes, pois alíngua não obedece nem ao ideal
nem à fantasia. É a força derradeira da singularidade - infelizmente de uma
singularidade rebelde à apreensão conceituai.
Também é possível acrescentar alguns desenvolvimentos ao capítulo da
fala sob transferência. Qual é a parte de alíngua gozada quando o analisando
]8(1 Lacan, o incL..,nsciente rt:!Ínt't?ilta)o

fala sem nada dizer? O que Freud situou como momento de fechamento
do inconsciente, e Lacan como fala vazia, foi primeiramente formalizado
por ele na estrutura de linguagem através do objeto que vem em posição
de obturador. É possível abordá-los novamente através desse inconsciente
outro que é o inconsciente-alíngua e que se dá tanto mais rédeas porquanto
as exigências da fala de comunicação comum estão suspensas na associação
livre. A fala vazia, ao repetir seus ritornelos, mostra não ser tão vazia, pois
saturada dos signos gozados de alíngua, e impõe ao analista a tarefa espe-
cífica que não é revelar o sentido mas se aproximar do valor específico que
o sujeito dá às palavras, esse gozo opaco que coloca a questão de saber se o
manejo desses tempos não é mais importante numa análise que aquele em
que se recolhem as pérolas de verdade de um sujeito.

A P R O ,\l E 3 :3 A .-\. ;\' A Li TI C A

Enfim, questão crucial, a promessa analítica acaba modificada? Tudo o que


foi elaborado até ali dava conta dos obstáculos, da maldição sobre o sexo.
Dante só obtém de Beatriz um batimento de cílio, um olhar, objeto de sua
fantasia. O parceiro permanece o Outro, entre o homem e a mulher há um
muro - em outras palavras, o parceiro do casal sempre é o lugar-tenente do
verdadeiro parceiro, do objeto a quando ele é visado pelo desejo, do gozo do
inconsciente quando ele é sintoma de outro corpo. Entretanto, nem o objeto
a nem o gozo do inconsciente dissipam o mistério da escolha eletiva.
Eles dizem o que vale em Beatriz, mas não dizem por que é Beatriz
e não uma outra. Por que não uma Julieta? Em consequência, só restava
pôr os encontros eletivos e até exclusivos do amor, que de qualquer modo
existem, na conta da contingência, da boa hora, e dizer, como faz Lacan em
Televisão, "o sujeito é feliz". Feliz porque só pode se repetir em sua relação
com o parceiro, mas mais essencialmente porque submetido à fortuna no
que se refere ao encontro. Traduzo assim: como a rosa, o objeto eletivo do
amor é sem por quê. A contingência do encontro é o mistério do amor
reintroduzido no freudismo. Seria uma maneira de "entregar os pomos"?
É antes uma maneira, bem indispensável, de situar a promessa analítica,
acolhendo o mistério do amor na lógica da cura.
C/ínic1.-1 re1101.·adL1 187

A promessa analítica, se não mente, depende daquilo que pode se


inscrever da fala analisante. Ora, a elaboração do inconsciente inscreve
apenas o Um, não o dois do amor: Um de gozo, letra ou signo, e Um dizer
do falante que só tem a ver com a solidão. Conhecemos os avatares his-
tóricos da promessa analítica, na época notadamente em que numa certa
corrente não se hesitava em prometer, talvez até em exigir de um fim de
análise o que se chamava o amor genital, aquele justamente que criaria en-
contro. Lacan lutou contra essa oferta falaciosa, ela mesmo assim conheceu
estranhamente variantes pseudolacanianas, com a quase-palavra de ordem
"desejar a mulher que se ama", e reciprocamente. Não é que não aconteça,
mas não se programa a tiquê. A análise talvez possa prometer uma mudança,
e até substancial, a partir daquilo que se inscreve da fala analisante, mas o
bom encontro, contingente, ela não pode prometer, somente pode criar as
condições de possibilidade.
O fato de se perceber que o amor é reconhecimento de inconsciente
a inconsciente aí não muda nada. Dele não se poderia mais realmente dizer
que é como a rosa, sem por quê. Ele tem um porquê, os afetos de incons-
ciente, um passo suplementar é dado aí por Lacan - mas que não passa para
o saber e que não reduz a contingência do encontro.
Seria, pelo menos, promessa de remediar o "não há diálogo" no qual
Lacan tanto colocou o acento? Esse não há diálogo não é uma novidade,
todos estão prevenidos, mas a psicanálise dá uma explicação. A não-relação
de gozo repercute no nível da troca para ali produzir uma não-relação de
fala. É que o gozo perverso metonimizado deriva na cadeia da fala, espe-
cialmente da fala de sedução, e até, escândalo, da fala de amor. O postulado
anticognitivista da psicanálise lacaniana, que reconhece na linguagem o
aparelho único do acesso à realidade e ao gozo, implica que o "a cada um
sua verdade" tenha por fundamento o "a cada um seu gozo". Não há diálogo,
inconveniente até no interior de cada sexo e, acima de tudo, falar de amor
é em si um gozo. O parceiro da fala é ... o gozo perverso. A fala faz signo,
por certo, mas não a alguém. Gozo do blablablá, diz Lacan. Ela não tem
acesso ao parceiro Outro como não o tem o próprio orgasmo. De resto,
essa não-relação de fala hoje está a céu aberto, denegada por vezes, mas bem
ali, a nutrir os dois grandes temas do clamor contemporâneo: precariedade
dos casais e solidão.
188 Ld e <-1 11 , (.., i 11 e(.., 11 s e ie 11 f 1.: r e ; 11 e e n f u J 1...,

E as mulheres pedem que ele lhes fale. Pedido sem esperança, sem
esperança que o inconsciente-alíngutt ainda multiplica com suas palavras
fora de sentido, impróprias à troca. É verdade que o epitálamo dos amantes
por mim evocado parece a isso contradizer: com suas réplicas, ele parece
fazer ponto de exceção, mas, duas vozes em uníssono que se correspondem,
isso faz um diálogo? Não é seguro. Os grandes duas da ópera deveriam pelo
menos passar essa suspeita.

Entretanto, não se pode imaginar que a análise seja sem efeito sobre o amor
e a experiência, com deito, prova que não é o caso.
Em 1975, em sua "Nota aos italianos", lacan empregou o termo amor
"mais digno" para qualificar essa mudança. Mais digno que a abundância de
tagarelice em que ele em geral consiste. logo, um amor que percebeu seu
núcleo real, fora de sentido, que portanto se tornou sintoma no qual... não
se acredita mais. O sintoma, acreditamos nele [on y croit], dizia lacan, o
que significa que acreditamos que ele pode dizer algo. É a própria definição
do sintoma de transferência: esperamos que ele diga alguma coisa, já que
supostamence t-:m o saber inconsciente. Quando o sintoma é uma mulher,
na medida em que ela fala, impõe-se a distinção entre acreditar nela (l' croire]
e dar crédito a ela [la croireJ. _-\creditar nela, acreditar que ela pode dizer algo
de nós ... Tive a oportunidade de sublinhar o quanto certos sujeitos recebem
sua mensagem sob a forma invertida de um "minha mulher diz que''. Dar
crédito a ela é outra coisa: faz com que ela valha tanto quanto as ,·ozes do
"automatismo mental", que falam de nós no Real. Certos sujeitos disso se
sustentam uma vida inteira, contanto que ela consinta em fazer o papel.
O amor mais digno é um amor que nem acredita no parceiro, nem
dá crédito a ele - louco, portamo. Tendo avaliado o inconsciente real e a
contingência de encontro que a ele é solidária, ele tampouco o interroga
sobre seu sentido, pois no mínimo passou a suspeitar do gozo fora de sen-
tido que ali se aloja. Foi o que chamei o amor ateu, não transferencial, não
menos sólido que outro, mas com certeza menos tagarela.
L""línir:a r::11L1cadt1 18()

Esse amor, porém, a psicanálise tampouco o prescreve, e com razão,


pois ele é apenas uma das diversas formas de sintomas socializantes, pois a
linha de panilha essencial passa entre os sintomas autistas, sem laço, e os
sintomas socializantes que fazem laço. Entre estes não há hierarquia por
falta de algum Outro que dissesse o valor deles. No máximo, consequências
mais ou menos cômodas para os sujeitos. 1V1as quem pode decidir isso, se
não eles mesmos? O discurso comum prescreve as modalidades de satisfação
receptíveis, não o da psicanálise lacaniana. Seu único imperativo, se houver
um, é reconhecer o Real, ou o que faz função de real, ali onde ele está. Daí
a suspeita que evoquei quanto à ,·erdade que só pode mentir sobre o Real
fora de sentido ...
Nem a ciência, nem o capitalismo que ela condiciona trabalham para
Eros, o deus do laço. Assim, cabe à psicanálise a ele se aliar, mas na medida
para cada um do real sincomitico que o define e sem passar pela norma,
ainda que hétero. Aliás, ela assim se conjuga com as evoluçôes que, no re-
manejamento dos grupos sociais, maltratam bastante as normas tradicionais
do sexo e da família.
Deve-se dizer, é um outro programa para a psicanálise que o dos
primórdios, que buscava fundamentar o inconsciente na razão para dar ao
saber analítico uma dignidade igual ao saber da ciência. Com a mudança
de paradigma introduzida pelo ICSR, trata-se, antes, das configurações de
gozos, das satisfações/insatisfações dos sujeitos e de suas consequências
sobre os laços.
PERSPECTIVAS POLÍTICA:::
O I :3 :3 I D Ê ~ C I A D O :3 I ~ T O :.1 A ?

O conjunto dos remanejamentos lacanianos relativo às regulagens do


gozo, o sexo, o Pai, as estruturas clínicas, o amor e as finalidades cor-
relativas da análise, não deixa de implicar consequências políticas. Com toda
evidência, elas próprias devem ser repensadas em função desses avanços, mas
também ser ajustadas às mudanças de época e aos remanejamentos sociais
produzidos pelo triunfo do capitalismo globalizado.
O fato de o sintoma ter um impacto político é uma tese freudiana;
um simples títuio como }l!al-estar na civilização indica isso.
Anunciar, como faz Lacan, uma identificação final com um sintoma
repensado como o produto de um duplo "acontecimento" de corpo e de
dizer com certeza a isso acrescenta algo.
A implicaçáo do gozo é evidente nos sintomas de conversão da histeria,
nas perversões, que instalam, todas, roteiros de corpo, é até bem visível na
esquizofrenia, com seus fenômenos anomálicos de corpo. Mas a obsessão
e a paranoia? É verdade que a obsessão é um fenômeno mental que poda
o pensamento; entretanto, são pensamentos de gozo, sempre. Da mesma
forma para a paranoia. O paranoico também é um pensador, mas em que
ele pensa, se não for no gozo do outro, do perseguidor?

O CORPO CI\'TLIZADO

Esses sintomas acontecimentos de corpo devem ser situados em relação


ao corpo com o qual estamos lidando: o corpo civilizado - quero dizer,
194 lacan, o i11cL,11sci~11ti2 r1:."!,"11r.zntudo

socializado. É preciso avaliar bem que há uma fábrica do corpo, de nossos


corpos socializados. Esse corpo não é um produto da natureza, é antes um
produto da arte. E é bem certo que o que chamamos a educação é antes de
mais nada uma tentativa, que aliás dá certo, de domar o corpo, de fazê-lo
entrar em práticas coletivizadoras de corpo. E ensinamos à criança como
comer, como regrar as excreções, a que hora, sob que forma, como se apre-
sentar, etc. Transmitimos a ela as posturas socializadas admissíveis. E, para
que respeite os bons modos, fazemos com que se dobre ao habitus, para
retomar um termo, aí também muito apropriado, de Pierre Bourdieu. Se
perguntarmos como aí chegar, é primeiramente pela operação dos signifi-
cantes mestres em função de imperativo, pelos breviários da boa conduta,
mas também pelo contágio imaginário, pela indução dos modelos, pois é
fato que os pequenos são transitivistas, tendem a "fazer como se". Nesse
sentido, o corpo socializado não é apenas para as "boas sociedades". Os
meninos de rua, das favelas, dos países subdesenvolvidos caem da mesma
forma sob a indução de modelos corporais.
Verificamos, o corpo humano assimila as relações simbólicas e ima-
ginárias. Lacan formulava isso bem no início de seu ensino ao dizer: ··o
hábito e o esquecimento assinalam a integração no organismo das relações
simbólicas" que em seguida se traduzem como dobras do corpo e se tornam
idênticas ao sentimento que cada um tem ... de si mesmo. Com efeito, um
corpo que chamo aqui civilizado sempre é solidário ao estado das mentali-
dades com tudo o que elas implicam de Simbólico e de Imaginário.
Se quisermos avaliar essa socialização profunda do corpo, podemos
nos voltar para as diferenças entre as civilizações em que, justamente, as
práticas de corpo não são as mesmas. Foi na França, no século :,.,._,'1II, uma
grande descoberta: acreditavam o homem universal; pois bem, havia outros
em outros lugares, aqueles que j\fontesquieu chamava os "persas". Na época,
foi um choque descobrir aqueles modos heterogêneos de outras civilizações.
Deve-se dizer que, entre as diferentes práticas de corpo estabelecidas nas
diferentes civilizações, nem sempre há uma completa amizade, porque, no
fundo, as práticas de corpo distintas sempre são percebidas como bárbaras,
e, de fato, essa questão é muito delicada. Atualmente, a globalização do
mercado do capitalismo está homogeneizando até as práticas do corpo, mas
P.:rsp.:cfit"as políticas 195

vemos que os sinais de antipatia entre os discursos são ainda mais raivosos.
Quando ouvimos falar da excisão das mulheres, em nossas terras trememos,
e quando pensamos nos pés atrofiados das chinesas durante séculos (isso
acabou), quando pensamos no pescoço ou nos lábios de certas mulheres
africanas, todas essas práticas de corpo que tinham, que por vezes ainda têm
por objetivo distinguir os corpos conforme o sexo, homem-mulher, então,
em nome do discurso hegemónico dos direitos do homem e do indivíduo,
é claro que ficamos chocados. Mas, enfim, o que isso mostra é que há uma
espécie de competição entre as regulagens de corpo conforme os lugares e
as épocas, antes uma antipatia. O que Lacan dizia com uma fórmula bem
contundente: ele falava do "racismo dos discursos em ação".
Aqui, um pequeno parêntese. Vemos bem a oferta do discurso que
se diz capitalista. Ela consiste em tentar fazer entrar todos os gozos nessa
máquina louca da produção-consumo. Sempre se diz, e se tem razão, que,
para a psicanálise, não há inconsciente coletivo; é verdade, mas há modos
coletivizados de gozo. E são esses modos coletivizados que se transpõem em
todas as produções da cultura. Começa com as canções que são cantadas
numa cultura e chega às produções mais elevadas da arte, o que chamamos as
sublimações, que são sublimações de gozo. São esses modos coletivizados de
gozo que fundamentam o sentimento de pertencimento a uma nação, a um
lugar, a um povo, há muitos nomes para designar aquilo a que se pertence.
É uma questão bem aguda hoje na Europa. Fundamenta o sentimento de
pertencimento, mas, igualmente, o sentimento de exílio.
Logo, o discurso nos dá nosso corpo. O corpo do qual devemos dizer
que o "temos". O sujeito, entendam o falante, ao contrário do animal, não
é seu corpo. Vemos pelo fato de que ele o precede no discurso do Outro e
a ele sobrevive por um tempo na memória, ao passo que seu corpo é devol-
vido, como se diz em certa tradição, ao pó. Daí a insistência que deve ser
posta em "o sujeito tem um corpo", porque, ter um corpo, o que quer dizer?
Todos os sujeitos têm bem um organismo, mas talvez nem todos tenham
um corpo se o fato de ter um corpo se decidir, segundo Lacan, do ponto
de vista do uso que dele se pode fazer.
Usamos e abusamos de nosso corpo. Primeiro, o tratamos como um
objeto, a começar pela imagem que temos dele, que é o primeiro objeto.
19c, L a e a 11 , o ; n e o n s e i e n t ,2 r e ,' n i· ent L7 J 1...1

Essa imagem, nós a amamos ou a odiamos, ou os dois, mas sobretudo


procuramos transformá-la, melhorá-la, distingui-la. Seria preciso aí eYocar,
além da moda, todos os usos cirúrgicos, que vão até a mudança de sexo nas
operações dos transexuais, todas as práticas de piacing, de tatuagem, que
hoje se multiplicam. Toda uma manobra para acomodar o corpo aos gostos
dos sujeitos da época.
O uso não é apenas no nÍYel da imagem. Existem também os usos
performáticos, por exemplo no esporte, que ilustra bem o corpo instrumento,
o corpo que é usado. Depois, é claro, o uso erótico desse corpo que pode
ser vendido, emprestado, recusado, etc.
Os sujeitos que não têm corpo, como diz Lacan, por exemplo, de
Joyce, mas também de uma jovem mulher numa apresentação de doente,
esses sujeitos evidentemente têm um organismo e uma imagem, mas não
fazem uso disso, ou em codo caso não o uso padronizado. O uso do corpo
vale para o corpo socializado, e esse uso tem seu limite, pois de fato se faz
uso de uma coisa sobre a qual se tem um cerro domínio.
O limite do "fazer algo com'' está no nível sexual, ou mais precisamente
no nível da resposta de gozo de corpo, do qual o sujeito não é mestre. Vale
dizer que o uso do corpo, que supõe um certo grau de instrumentalização
do corpo, cessa tão logo nos aproximamos do gozo dito sexual. Eu poderia
acrescentar '\1 despeito de i\1ichel Foucault", porque Michel Foucauk que
por outro lado tem muitos méritos, insistiu naquilo que ele chama a escolha
dos prazeres, a escolha das práticas que comandam o tipo de prazer sexual
que é eleito. É certo que é possível, de maneira voluntarista, eleger roteiros
de corpo-a-corpo. O que é certo é que nunca escolhemos a resposta de
gozo. É muito verdade no nível do orgasmo sexual, codos os malogros desse
registro indicam bem isso, mas não apenas, nas práticas sadomasoquistas,
que estão tão na moda; é possíYel tudo programar do roteiro, mas não é
possível programar o efeito de gozo: ou é encontrado ou não.
Então, é o sintoma de gozo sexual que marca o ponto limite desse uso
do corpo socializado. O esquizofrênico, fora de discurso - mas não fora de
língua-, enfrenta seus órgãos sem o socorro de um discurso estabelecido.
Por homologia, seria possível dizer: cada um enfrenta o corpo-a-corpo sexual
sem o socorro de um discurso estabelecido. O discurso diz muito sobre o
Po!rsp-2clivas políticas 197

sexo, constrói-lhe os semelhantes e até regra os roteiros das práticas eróticas


que sabemos ser sujeitas às influências da cultura. Nesse sentido, ele toca
até no que acontece na cama, mas sem no entanto poder agir sobre o que
chamei a resposta de gozo.

1..- 2 r;:_ p 0 F 0 J~ ,\ D E D TS LT !~ S 0

O corpo socializado poderia ser ilustrado a contrario justamente pelo autista,


o verdadeiro, que me parece muito demonstrativo. Falo aí dos pequenos
sujeitos autistas, não do sentido ampliado do termo tal como hoje é enten-
dido. O que caracteriza esses autistas? Eles não deliram, têm distúrbios da
linguagem, da relação com o semelhante e depois, sobretudo, distúrbios
da ordem pulsional. Ora, para quem faz referência ao ensino de Lacan, um
distúrbio da ordem pulsional traduz um distúrbio da relação com o Outro
da linguagem, uma vez que é o dizer do Outro que determina a ordem
das pulsões, a passagem da pulsão oral à pulsão anal por uma virada da
demanda e a colocação em movimento das pulsões escópica e invocante
pela emergência de seu desejo.
O que impressiona, por exemplo para quem lê as obras de Margaret
Mahler ou as obras de Meltzer sobre o autismo, é constatar o quanto para
eles é um enorme problema teórico. Como compreender que uma criança
de seis anos manifeste durante horas um erotismo oral de um bebê de seis
meses? Eles não têm outro recurso senão supor uma desordem orgânica. E
Meltzer imagina que a criança calvez tenha nascido com um sentido preva-
lente entre os cinco sentidos que conhecemos.
Podemos nos reportar a dois casos célebres para ter uma ideia da
maneira de atacar o problema: o caso Joe de Bruno Bettelheim e o caso
Stanley de Margaret Mahler.
No pequeno Joe, nenhuma de suas funções corporais funciona so-
zinha. Ele não consegue nem comer, nem evacuar, nem dormir sem estar
ligado à sua máquina, ele tinha uma máquina. E, no fundo, é bem compre-
ensível para nós: é que a máquina do discurso, na falta de ser incorporada
- condição para que o corpo seja socializado -, funciona de fora, ou antes,
encontra um suprimento no Real.
1Q8 L t1 e 1.:111 , '--1 i n e t.' n sei e n te r 2 i 11 t· e n tu J (._l

O caso do pequeno Stanley ainda é mais demonstrativo. Margaret


Mahler insiste muito em dizer que esse menino tem dois estados: num, ele
se apresenta como uma cifra, um pacote inanimado, em outras palavras,
totalmente deslibidinalizado e até desfuncionalizado, e ela descreve com
muita precisão como ele se anima, e isso ela não pode ter inventado, ela o
observou. Ele tem duas maneiras: ou bem tocar o corpo do adulto, aqui o
terapeuta, ou bem pronunciar certas palavras. Vale dizer que é um caso em
que vemos que um outro corpo, homólogo à máquina de Joe, e as palavras
da língua têm o mesmo efeito. Operam enquanto separados, no Real, por
falta da incorporação que produzisse uma subtração dinamizadora.
Assim, não só não são todos os corpos que são socializados e, para
que o sejam, é preciso o enodamento das três consistências, dos semblantes
e do Real. Mas quando não estão fora de discurso, logo, civilizados, há de
qualquer modo gozo que não caminha no mesmo ritmo do discurso da
norma. Não é todo o gozo que é absorvido nas ofertas do discurso, é bem
perceptível no nível dos sintomas sexuais. Aliás, quantas vezes o sujeito que
vem demandar uma análise não pergunta por que ele não consegue ser ''como
os outros", fazer um casal como rodas as amigas, ter um filho na idade de
suas amigas, encontrar a mulher ad hoc como a maioria, etc.? O sintoma
sexual é o ponto de exceção do laço social estabelecido.
Talvez seja uma das razões pela qual no mundo anglo-sa..-..,:ão a palaYra
"sintomà' vem desaparecendo em proveito de disorder. Não se diz ''obsessão",
mas obsessional disorder. E, de fato, com esse termo "desordem", indica-se
que a ordem do discurso estabelecido que regra os corpos está prejudicada.
O que me leva ao que posso chamar a dissidência do sintoma para marcar
justamente seu impacto político.

0 :::r;-.;TO.\lA OBJETOR

Escolho dois exemplos maiores. O primeiro se situa bem cedo na psicaná-


lise. Freud com ele se confrontou no momento da guerra de 1914-1918,
em que vemos surgir o que então chamavam as neuroses de guerra, que se
apresentavam descritivamente como muito próximas dos sintomas histéricos:
P 2 r s p 2 e ti,. as p o/ í ti e as 100

sujeitos aterrorizados pelo corpo-a-corpo mortífero - ainda era uma guerra


de corpo-a-corpo, à baioneta -, logo, sujeitos aterrorizados que estavam
tomados de desmaios, vômitos, tremores e impossibilidade de ir para a linha
de frente. E rodos devem saber que as autoridades militares consultaram
Freud- a época mudou muito - para saber se eles simulavam ou se estavam
doentes. Tinham razão de se colocar essa questão já que, na mesma época,
havia sujeitos que recusavam ir para a linha de frente não por neurose de
guerra., mas por antimilitarismo. E a alternativa para a autoridade militar
era: devem ser fuzilados, como fuzilaram certo número de objetores de
consciência, como exemplo para os outros, ou devem ser cuidados, o cui-
dado imaginado sendo o tratamento elétrico (sic)? Há uma carta de Freud
às autoridades militares que é formidável, em que ficamos impressionados
com a coragem do homem Freud: é evidente que ele era contra o tratamento
elétrico. No entanto, do ponto de vista teórico, independentemente de sua
resposta às autoridades, o que ele diz? O neurótico de guerra é um objetor
que se ignora, um objetor em seu inconsciente e, portanto, um sujeito di-
vidido entre o inconsciente que objeta e seu consciente, que bem gostaria
de ir em freme. Em outras palavras, a neurose de guerra tem um impacto
político: ela objeta ao discurso do mestre militar.
O outro e::-.:emplo é a histeria - mais exatamente, o sintoma de con-
versão histérica. Essa perturbação funcional sem fundamento orgânico,
que pode atingir o caminhar (paralisias), a vista (cegueira), o estômago (a
digestão), o sono ... , perturba, segundo Freud, a ordem funcional sem ser
uma doença do organismo, mas uma erogeneização fora de lugar. O corpo
civilizado, socializado, tem seus lugares designados para a erogeneização, o
que Freud chamava as zonas erógenas, desenhadas na superfície do corpo
pela fala, pelo dizer do Outro. Nesse sentido, o sintoma de conversão ma-
nifesta essa "recusa do corpo" própria à histeria: ele objeta à norma erótica
ao erotizar as zonas silenciosas quanto ao erotismo.
Vemos aí a ambiguidade da histeria. É que o sujeito histérico, não
falo do sintoma histérico, o sujeito histérico, este, não é nem um pouco
um objetor. Lacan sempre as chama as apaixonadas por alhures, ou o apai-
xonado 1. Enquanto sujeito, o sujeito histérico, é conhecido, é antes um

1 C Soler, "Les hvstérics", L'É110!11tio11 p,Jchiatriq11e, nº 72- novembro de 2006.


200 Lacan, o inconsciente re,"11c~ntc..1do

torcedor do mestre, um fã, mas há o "mas" de seu sintoma que, este, não
vai no mesmo ritmo, pois objeta. Aí, com sua prescrição da norma macho
"pênis repetidamente" para tratar a histeria, Charcot de fato estava por fora.
Cada histeria, seja ela homem ou mulher, é dividida entre esses dois aspectos,
e é no nível do sintoma de corpo que se pode compreender a expressão que
Lacan emprega para ela: "Ela faz a greve do corpo". O que de mais políti-
co! Greve da norma corporal nos sintomas de conversão, greve também, e
sobretudo, na relação genital em que, sejam quais forem as licenças de sua
conduta bem propícias a embaralhar as pistas hoje, ela recusa ser sintoma
de outro corpo. A expressão "greve do corpo" é bem feita para dar a ideia
de seu impacto político.
O valor político do sintoma dissidente em relação ao corpo socializado
foi percebido muito cedo, como eu disse, mas o vimos mudar ao longo do
tempo. Quando o significante mestre ainda é poderoso, o sintoma aparece
claramente como um dissidente político. Pensem no slogan ''A psicanálise
ciência burguesa''; ele vinha do marxismo, e para dizer que cuidar era fazer
aceitar a disciplina do grupo, que o terapêutico é a colaboração com o dis-
curso dominante. Aliás, Lacan dizia isso das psicoterapias. Pensem também
nos psiquiatras russos da bela época stalinista, que forjaram a noção de
"psicose branca'', justificando pela doença mental suposta a prisão de um
certo número de oponentes ao regime.
Foi nesse nível que algo mudou, com certeza ligado ao que Foucault
nomeou o biopoder para designar o fato de que os Estados doravante se
encarregam da vida, se preocupam em fazer viver, como mostram, com
efeito, todas as políticas de natalidade, de saúde e, agora, de proteção do
planeta, de indenização, etc. Em relação a esse biopoder, o que é preciso bem
chamar os biossintomas, os sintomas de corpo, são avaliados de outro modo.
Mas nosso biopoder não é qualquer um, ele é do tempo do capitalismo, em
que o imperativo de discurso é a competição no produzir e no consumir, e
os sintomas que o inquietam não são aqueles do mal-estar sexual, mas, ao
contrário, aqueles que questionam a vida e a competitividade. A anorexia,
que pode ser mortal, a depressão, que impede de trabalhar e custa caro,
tudo o que pode conduzir ao suicídio, a droga evidentemente e também,
é claro, as violências destrutivas. Ora, o biopoder capitalista está aliado à
P.2rsp.2cti,-as políticas 201

ideologia da ciência e aos valores performáticos que ela sustenta; logo, ele
não considera mais, no essencial, que os biossintomas sejam dissidentes
políticos, mesmo que tenham consequências políticas. Ele os pensa como
disfuncionamentos ou panes de uma máquina humana neurológica, hormo-
nal, social, etc., que se desarranja como se desarranjaria qualquer máquina.
É uma enorme mudança que foraclui o valor de verdade do sintoma, aquele
que Freud revelou.
Com isso, o que dizem esses biapoderes de hoje quanto aos sintomas
sexuais? Pouca coisa. São bem indiferentes quanto ao sexo, como vemos no
fato de os lobbies sadomasoquistas estarem bem instalados no mercado - é a
permissividade de nossa época, e em nome de que se poderia objetar? Daqui
por diante, uma única barreira no discurso do individualismo capitalista
solidário aos direitos do homem: tudo é permitido sexualmente, no limite
do consentimento mútuo2, tive a oportunidade de desenvolver. Resultado,
além do assassinato, no essencial só resta um grande tabu sexual: a pedofilia,
em que o consentimento recíproco não vale.

C l\l D I S C C R :3 -::' D E U R G Ê N C I À

Tudo isso muda o lugar da psicanálise: ela fica em confronto direto com
a operação do biopoder capitalista. Esta é dupla: de um lado, fazer viver
esses instrumentos do mercado que são os indivíduos, manter o que agora
chamamos o material humano, ao construir para eles, com grande reforço de
imagens e slogans, os sintomas-tipos do produtor-consumidor normatizado;
do outro, reduzir os sintomas atípicos que disso se excetuam e a isso obstam,
reduzi-los como outros tantos disfuncionamentos, pane da máquina cog-
nitivo-comportamental. Vasto programa: fazer o anoréxico comer, a muda
falar, o deprimido sorrir, o estressado ficar tranquilo, o agitado, calmo, e
tudo para ele está bom. É patente: é a hora dos psicotrópicos. E ... do psi,
talvez menos pior, mas que "leva ao pior". Esses sintomas que por vezes

C. Soler, "Otherness coday'', Londres, 22 de março de 1997, Colóquio da EEP "Limits of


gender".
/_ L1 e 1..111 • v i 11 L~ '-; 11 sei t! 11 f e r ~ i 11 l'.: 11 t 1..1 J '-1

dizemos novos, que atingem a oralidade, a ação, o humor, são quase todos
sintomas fora de laços, portadores de gozo autista.
O que pode a psicanálise nessa conjuntura, ela que não recusa o
objetivo terapêutico? Mais precisamente, o inconsciente real, tal como
Lacan forjou e fundamentou sua noção, muda a distribuição das canas?
A noção implica, eu disse, uma divisão do inconsciente entre um incons-
ciente linguagem, decifrável, ao qual a fantasia dá sentido, ou seu valor
de verdade, talvez até de gozo-do-sentido Uoui-sens], e o inconsciente
real que fixa o gozo de um elemento linguageiro, fora de sentido, em si
mesmo disjunto do Imaginário. Neológico ou holofrásrico, vindo dos
efeitos de alíngua, ele não é um produto do discurso e não caminha no
mesmo ritmo das injunções coletivas, não se presta a nenhuma troca, antes
autista, embora nem sempre rebelde à percepção de obscuras afinidades.
Ele constitui, esteja ou não enodado ao Imaginário, o núcleo mais real da
singularidade de cada falasser.
De onde vem ele se não dos primeiros encontros? Apesar da distància
entre as fórmulas, também é a tese de Freud, do Freud de Inibição, silltoma,
angústia, que coloca que o sintoma vem, para todos os sujeitos, da angústia
produzida pelo encontro dito traumático, encontro surpresa, com uma
emergência de gozo inesperada, vista, ou ouvida, ou sentida, ele precisa.
Logo, acontecimentos de corpo. É por isso, creio, que Freud jamais incrimina
o Outro para dar conta dos gozos sintomáticos, a despeito de toda a sua
construção edipiana. Lacan define o ICSR ao estabelecer o laço entre esses
primeiros acontecimentos de corpo e o encontro com alíngua primeira, ela
também contingente em suas modalidades. Assim, ele acrescenta à contin-
gência dos encontros traumáticos de Freud a contingência do dizer primeiro,
também traumática. O que tampouco incrimina o Outro. A história começa,
decerto, na primeiríssima infância, em que se conjugam as duas heteridades,
dos primeiros gozos e do dizer primeiro, mas não é destino.
Noto que as manifestações sintomáticas do inconsciente reaL tal
como foram reveladas por Lacan, que andem sozinhas ou que estejam in-
clusas num laço borromeano com o parceiro fantasmático, partilham com
os ditos "novos sintomas" pelo menos um traço, o de um gozo autista fora
de laço e fora de troca. Exceto, e aí está roda a diferença, que elas não são.
2(13

como eles, a face invertida das pressões do capitalismo triunfante. Quem


hesitaria em escolher entre um sintoma de singularidade real, que ancora
identidade, separação, e outros, igualmente autistas, mas que reagem in-
vertendo a alienação às injunçóes do discurso e que não subtraem o sujeito
ao clamor comum?
A psicanálise cuida, é claro, quer até cuidar, mas sem mentir nem
sobre a relação que falta, nem sobre o Real e os sintomas que suprem e fa-
zem para cada sujeito o destino do falasser. Contrariamente ao que alguns
imaginam, a multiplicação das vítimas do capitalismo globalizado, sempre
a produzir mais sujeitos fora de laço social, pode ampliar o campo de ação
do psicanalista, bem longe de reduzi-lo. Aliás, é o que comportava a noção
de campo lacaniano introduzida por Lacan em 1970.
Ainda é preciso ter compreendido que a psicanálise não reduz a ca-
rência sexual: ela apenas revela seu fundamento de "maldicão" linguageira
- incurável o faro de a linguagem não comandar nenhum ourro parceiro a
não ser esses objetos desprendidos do corpo pda linguag;.::m que são o objeto
oral, anal, etc. e de o laço social só se instaurar por artifícios discursivos.
Nesse sentido, os laços ordenados por cada discurso, e especificamente os
modelos de casal que eles constroem através de seus semblantes, suprem a
relação que falta ao construírem normas implícitas do amor.
Entretanto, nem rodos ainda entenderam. Quem duvidar pode ler
o livro de Otto Kernberg, de 1995, não é tão velho, Love Relations. Ele ali
explica o que é o amor sexual maduro, resultado de uma análise bem-su-
cedida. É a volta, bem anacrônica, da ablatividade genital dos anos 1950,
que ela própria nada era senão, aliás, a versão pseudopsicanalítica da ideo-
logia edificante do amor cristão, o qual já tem alguns séculos de história no
discurso do mestre. Logo, a psicanálise a serviço das velhas normas. Aquela
que visa o Real se dá outro objetivo: não de trazer de volta aos trilhos, mas
o de revelar o sintoma fundamental do inconsciente do sujeito, aquele que
faz sua singularidade.
Assim, a primeira questão é, na verdade, para cada sujeito, saber qual
é seu sintoma de suplência, e aquilo que ele permite de humanização num
laço social vivível. Se ele próprio for socializante, a visada irá do romance
fantasístico de uma vida na direção do real desconhecido da letra unária
204 Lacan, v incL,nscientt:? reinventadl.,

autista, revelando as contingências de origem que a repetição elevou ao ne-


cessário e que, desde então, não cessam mais de se escrever como programa
de gozo; no caso contrário, ela procurará ir de um Real livre demais, fora
de laço, na direção de seu arrimo linguageiro. Em todos os casos, ela visa,
assim, o que Lacan em certo momento chamava "a diferença absoluta''-\
bem longe de acusar o sujeito de não estar todo na norma, ou de induzi-lo
a dela se fazer o clone.
Vale dizer que o mal-estar no capitalismo é mais que nunca assunto do
psicanalista, uma vez que seu programa de gozo prejudica não a sexualidade
enquanto cal, mas a libido socializante em pro,·eito dos grandes agregados
de corpos proletários, que nada mais têm "para fazer laço social". Eu disse
que esses laços sociais que são os discursos suprem o laço da relação que
falta, todos, exceto o discurso capitalista, que foraclui os "assuntos de amor''
e não constrói nenhum casal-tipo. Assim. resta apenas a precariedade dos
amores-sintomas, surgidos ao sabor de, i:1conscientes particulares e das
contingências do encontro.
Para falar a verdade. não i: ,ó e, c2.pi:a.lismo que está em causa, mas o
que o tornou possí,·el - a sab.::r. a. ;::·;c,L.1.ci,J tecnológica devida à ciência. As
maravilhas da ciéncia. com u..r.t.::·s r:-c;:-t550S bem visíveis, não podem deixar
esquecer que ela trabaiha para o q:.ie Freud nomeou a pulsão de morte. Com
o salto para frente da biologiJ. neste inicio de século XXI e a desvitalização
que ela torna possível, o que não é mais exatamente um segredo. No século
passado, alguns sábios da física alertaram para as consequências letais de suas
descobertas. O que não parou nada. Hoje, de comitê de ética em comitê
de ética, gritamos que a biologia, única ciência, aliás, que Lacan inscreve
no nível do Real, trafica o ser vivo, sua reprodução, sua seleção, sua longe-
vidade, etc. O que provavelmente também não vai parar nada, mas eleva a
psicanálise ao estatuto de discurso de urgência na civilização.
Um discurso de resistência, que valoriza um outro Real que o da ci-
ência, o do falasser, e que trabalha, esse Real, para enodá-lo ao Eros de um
possível laço vivível. Deve-se dizer. com toda justiça, que essa oferta traz a
possibilidade de uma mudança sensh·el da demanda social. A vida doravante

]. Lacan, Séminaire XI, Paris, Le Seuil. 1r3. p. 248.


P~ 1·spi2(..~til't1s p,..1/íticas

é pensada como um objeto a ser gerido. "O que fazer da vida?" não é uma
questão de sempre, mas sempre mais uma questão de hoje, evidentemente
ligada à multiplicação dos possíveis que deixa as escolhas ao encargo dos
sujeitos. Nessa conjuntura, os sintomas do sexo estão longe de ser os mais
invocados, ao passo que muitos indivíduos deploram suas dificuldades de
"construir" laços personalizados, como eles se exprimem, sejam os do tra-
balho, do amor, da família ou da amizade. A aspiração a ser integrado está
por toda parte. Nada a criticar, é o efeito disruptivo do capitalismo que a
motiva.
A análise do mal-estar na sexualidade revelou com Lacan que a não-
relação dos gozos sexuadas, combinada em· nossa realidade com o cinismo
generalizado do gozo perverso, está no fundamento das dificuldades do
laço social: não há diálogo entre os sexos, mas não há tampouco diálogo
entre os sintomas reais. Logo, a psicanálise não pode prometer a fusão, mas,
contanto que conduza o sujeito a se reconhecer não em seus pertencimentos
prescritos mas em seu sintoma fundamental, assegura, ao um por um, essa
"saídà' do discurso capitalista que Lacan evocava em Televisão.
Eu disse a psicanálise, subentendido, definida pelo ato constituinte
de seu discurso. não os psicanalistas. A respeito deles é notório que nem
sempre estão sintonizados. Quantos, nostálgicos de uma tradição que er-
radamente confundem com a eficácia do pai, se rebelam contra a época e
denunciam os sujeitos aprisionados pelos valores deletérios do capitalismo
embora devessem acolhê-los em seu discurso? Quantos, por não terem en-
tendido a subversão propriamente lacaniana, deixam de utilizar os recursos
que ela produziu com esse inconsciente real e que lhes permitiria ainda ir
ao encontro da ''subjetividade da época"4, aquela deste início de século
que não é mais o de Freud?

'J. Lacarr, "Fonctiorr ct champ de la parole et du langage", Éoits, Paris, Le Scuil, 1966, p. 321.
A p sIeÀ l\' Á L I sE E o e A p I TA L I s ,\l o

O s psicanalistas de hoje pegaram o hábito de incriminar o capitalismo.


Suas queixas merecem ser pesadas.
Tanto Freud quanto Lacan exaltaram a ação analítica como uma das
mais altas e das mais contra a corrente. Os termos falam: peste, atopia, ex-
sistência, outro desejo, subversão. Não estamos mais exatamente aí, o tom
mudou. Não há meio, porém, de apagar a oposição das finalidades: aquele
que analisa está em luta. E, mesmo assim, o recuo de um século permite
perceber melhor que ele também é solidário àquilo a que ele consegue
se opor, e que a junção entre os dois discursos está longe de ser também
binariamente contrastada. Para dizer de outra forma, embora a psicanálise
seja o avesso do discurso do mestre, como Lacan demonstrou, ela não é o
avesso do discurso capitalista.

ABRI~D0 0:3 0LH0:3

Vejamos bem que toda uma parte daquilo que a psicanálise produz no par-
ticular, parece que o capitalismo a obtém, em grande escala, no Real. Cada
psicanálise não visa a um só tempo a desidentificaçáo do sujeito (queda
dos semblantes introjetados do Outro), que também é desalienaçáo, e a
revelação do objeto gozo que o comanda? "Saldo cínico" da análise, dizia
Lacan. Ora, o capitalismo não é, por outras vias, responsfrel pela queda
Perspectivas políticas 207

dos grandes semblantes, Deus, o pai, a mulher, etc., em proveito apenas


dos mandamentos da mercadoria, do incita-a-consumir que homogeneíza
sem passar pelo universal dos ideais da tradição e que desfaz até a massa
freudiana apensa à exceção paterna?
Quanto ao que a psicanálise revelou, o sexo pagando caro, a saber,
que a exigência pulsional é uma das forças maiores da libido, hoje está a
céu aberto, como se, um século depois, o segredo estivesse descoberto.
Aliás, os Três emtZios sobre a sexualidade de Freud, eu disse com frequência,
nada são se comparados ao que figura em nossas telas. Os direitos do ho-
mem doravante se estendem até o direito ao gozo, que pode, portanto, ser
exibido, reivindicado e do qual não está sequer excluído fazer uma causa
privada. De fato, constatamos, interpretar com a pulsão é o que se faz por
toda parte fora da psicanálise, tanto em política quanto em amor. Como
os enunciados da demanda não seriam mudados, da mesma forma que as
condições da interpretação analítica? Difícil pensar que a psicanálise possa
isentar-se de toda responsabilidade nessa evolução.
Por outro lado, tampouco se pode imputar ao capitalismo as infelici-
dades do sexo, repito. Foi possível imaginar, e não se deixou de fazer, que se
alguém goza mal é por efeito de um mau arranjo da sociedade. Daí os sonhos
de um mundo melhor que fizesse o homem novo que tanto trabalharam o
século precedente, com os resultados que conhecemos. Águas passadas, é
verdade, e hoje só resta a deploração das vítimas em busca de responsáveis
para incriminar.
Quanto aos problemas de sobrevivência, da carga das necessidades,
pode-se legitimamente incriminar a má ordem social: monopolização,
desapossamento, exploração, e dispenso o resto, não são palavras vãs, é
verdade. Mas, no que se refere a Eros, o deus malicioso, do qual se espera
a união das almas e dos corpos, não é culpa da sociedade se a coisa não
vai bem. O "não há relação sexual" que a psicanálise lacaniana atesta não
é feito do capitalismo. É que, antes, os arranjos propostos pelos discursos
são, em todos os casos, incapazes de estancar uma "maldição sobre o sexo"
que vem de outro lugar.
Vale dizer, a esse respeito, que todas as ordens são equivalentes?
Seguramente que não, e como o psicanalista não seria parte interessada?
Os primeiros sofrimentos sintomáticos que lhe são apresentados sempre
mostram as insuficiências da solução padrão, e ele hoje recebe um clamor,
tão globalizado, eu disse, quanto o próprio discurso capitalista. Depressão,
morosidade, revoltas impotentes, colapsos súbitos dos corações, abulias,
desvarios, violências, excessos diversos, traumatismos múltiplos, e dispen-
so o resto, dizem o não-senso de esmerar-se por mais-de-gozar falsos, sem
nenhuma transcendência, e a inépcia de vegetar no equilíbrio produtor-
consumidor, mais-menos. Esse clamor se queixa do pré-tratamento dos
sujeitos pelas normas de desejo e de gozo de um discurso cuja particularidade
é mascarar a maldição sobre o sexo e destruir todos os semblantes que a
encobrem nos outros discursos - outra afinidade com a psicanálise .•.\ssim,
o mal-estar vai subindo, como sombra carregada das comodidades que o
capitalismo pretende trazer.
Cada discurso, o que Freud chaman a ciYilização, constrói um tipo
de laço social - digamos, um casal-tipo: o mestre e o escraYo, o professor e
o estudante, a histérica e o mestre, e depois o psicanalista e o psicanalisan-
do. É verdade que eles não são equivalentes, podem ser denunciados, mas
todos fazem laço e sef\'em de recurso contra os infortúnios programados do
casal sexual. Não há nada igual no discurso capitalista ciemihcizado, que
não é uma variante do discurso do mestre e constrói apenas um único laço.
bem pouco social, entre o indivíduo e os produtos, indiferente que é aos
"assuntos de amor", que vai rumo a uma fragmentação e a uma instabilidade
crescentes dos laços sociais e deixa os indivíduos sempre mais expostos à
precariedade e à solidão".
O resultado tem algo de paradoxal: é que as satisfações obtidas são ao
mesmo tempo insatisfações num mercado da falta de gozo generalizada. Com
efeito, todas as ofertas feitas por esse discurso, consumo e êxito narcínico,
como me exprimi, com o que isso implica de indiYidualismo furioso. de
competição e instabilidade generalizada dos laços, do trabalho, do estado
do mundo, etc., essa oferta, portanto, é o próprio objeto das insatisfações
e das queixas.

C. Soler. ''Le discours capiralisre". confer~ncia de abenura de --;:__a Di.::ou\·ene freudicnne",


em 26 de noYembro de 2000. na l'ni\·ersidade du .\[irai!. em Toi.:.lo1.1se.
.F> o2 1· s ·J-"' e i i e as
l..~ p o/ í t; e l7 s 200

Ora, esse discurso precisa da satisfação dos sujeitos contemporâneos


para que a máquina funcione. Nem sempre foi o caso; houve épocas, por
exemplo, em que a religião permitia tratar, talvez até idealizar a insatisfa-
ção concreta das massas. Esse tempo não existe mais, pois a biopolítica em
princípio deve cuidar do bem-estar dos sujeitos, embora as vítimas sejam
sempre mais numerosas.
Sobre esse ponto de equiYalência entre satisfação e insatisfação, o
mais significativo, a meu ver, não é a insatisfação dos perdedores, como se
diz, é a dos ganhadores. Todos esses fenômenos súbitos de desabamento,
que viraram epidemia nos Estados Unidos da América, há uns dez anos,
entre os altos executivos e, hoje, em todos esses grandes dos negócios, das
artes, do shoz/' business que, perturbados, correm as religiões, as seitas, os
psis e muitos outros ainda. E, cereja no bolo, considerando que os valores
de combatividade e otimismo que toda a nossa cultura tenta insuflar não
conseguem mascarar o reverso da medalha, evidentemente apareceu alguém
para promover o valor resiliência para todos: impor a todos um dever de
suportar, sem perder a calma, os malefícios reais e subjetivos da época!
Mas a multiplicação das YÍtimas, com a escalada correlativa da ide-
ologia da vitimização, não prevalece apenas porque o universo capitalista
é duro e faz da satisfação e da insatisfação duas irmãs gêmeas, como acabo
de dizer. Houve épocas bem mais duras em nossa história ocidental. Tive
a oportunidade de desenvolver isso 6 : não existe horror que um discurso
consistente não permita suportar. Ver em outro lugar os fundamentalis-
mos de hoje.
O capitalismo não é só duro, ele está em déficit em outro ponto. Ele
destrói o que Pierre Bourdieu chamava o capital simbólico. O capital sim-
bólico não se reduz ao estoque dos saberes transmitidos, esses saberes que
são as armas, os instrumentos do êxito, ele inclui os usos do mundo e, com
eles, o que chamamos os valores, sejam eles estéticos, morais, religiosos. São
eles que permitem dar sentido às atribulações dos sujeitos, ou compensá-las;
logo, eles permitem suportá-las organizando defesas íntimas.
Bourdieu denunciava a desigual repartição do capital simbólico con-
forme as classes sociais. Ele tinha razão, mas acho que o fenômeno vai além

'' C. Soler, 'Tépoque dcs traurnarismes", Rome, Biblink, 2005, francês/inglês.


210 Laca11, u i11c1...111scie11t2 rcinccntudo

da diferenciação de classes. Relendo qualquer grande obra literária do século


XIX ou do início do século xx, revendo até os filmes dos anos 1950, percebe-
mos o que se perdeu de capital simbólico. Stefan Z.weig, o contemporâneo
e amigo de Freud, é um daqueles em quem talvez isso seja mais sensível, o
que às vezes o deixa bem datado. Aliás, não é que não existam mais valores,
mas, diferentemente do mercado, eles não estão globalizados; ao contrário,
fragmentados, locais, as coisas do mundo menos compartilhadas ... E os
direitos do homem se esforçam inutilmente para manter uma derradeira
barreira à mercamilização generalizada dos indivíduos.

DEl~RJSÃ1..._1 D,\ FAL\

Mas, mesmo assim, não podemos creditar a nossa época o fato de ela
aceitar que a queixa seja feita, de a reconhecer o bastante para tolerar um
bom entendedor, um que não seja simplesmente um substituto da ordem,
um retificador de desvio sintomático? Essa condição nem sempre é dada
na história, não há dúvida alguma, e é possível verificar facilmente que
tanto totalitarismos quanto fundamentalismos a excluem. Emendemos
por que e como: no quadro de uma ordem absoluta, política ou religio-
sa, as vozes particulares só são admitidas na medida em que estão em
consonância com a mensagem única. Portanto, todo valor de verdade
é automaticamente recusado como desvio do sintoma. Cm tal discurso
eventualmente deixa lugar ao psiquiatra ou aos diversos juízes, jamais ao
psicanalista-intérprete.
Visivelmente, não estamos neste ponto. Muito pelo contrário, o
discurso capitalista, solidário às formas políticas da democracia, parece dar
direito de cidade às mais múltiplas vozes particulares. Mais até: ele incentiva
a falar, reconhece os benefi'.cios da fala, produz sem descanso psis para os
traumatizados de todo gênero. O um por um tornou-se a regra, e assistimos
a fenômenos de fala sem precedente. A prática do testemunho, por exemplo.
Hoje, é levada à mania, independentemente de qualquer conteúdo. Não têm
nada a dizer? Razão a mais para que se expressem. Om·ido no rádio, de uma
mulher que é entrevistada: "Não sou nada, não tenho informação particular,
mas não é uma razão para que eu me cale". É formidável como frase.
P e r s p e e t i i· as p o / f t ; e as 211

É claro que os processos de monopolização da fala não desaparece-


ram, mas a ideologia do direito à expressão triunfa tanto hoje que talvez
não haja mais nada a ser ouvido, passado a anedota, a não ser o clamor
universal da infelicidade humana, seja ele proclamado ou denegado. Este é
o avesso do fenômeno. Digam o que quiserem, de qualquer modo vai ser
sem consequência. "Você conversa, conversa ...". Derrisão suprema de uma
fala empurrada para seu papel de exutório catártico da qual se espera apenas
que cuide bem dos sofrimentos do consumidor-eleitor. E até o que foi, no
século XVII, a bela arte da conversa não funciona mais assim, pois, doravante,
tagalerice e silêncio estão conjugados. A mordaça não foi retirada, ela apenas
age de outro jeito. Vejo nisso também uma das razões do desenvolvimento
sem precedente das técnicas de escuta próprias a acolher as vozes solitárias
e em desamparo por falta de achar remédio para isso. Elas têm sua função
social, compensatória. Além disso, e sem que o saibamos, aliás, esse novo
regime da fala provavelmente se mantém pelo fato de que falar, e até falar
inutilmente. é em si um gozo, e um que não custa nada a mais!
O que esperar para a psicanálise? Ao contrário do que se poderia
imaginar, essa cultura da fala sem consequência não é muito favorável, e,
aliás, constatamos que é mais compatível com essa redução do sintoma a
uma desordem orgânica que eu denunciava. Para a psicanálise, ela é um
obstáculo muito poderoso à instituição do sujeito suposto saber sem a qual
a força do sintoma não pode ser questionada. Encontramos essa dificuldade
na maioria das primeiras consultas em que o voto de confiar-se, de dizer o
que se sabe e para se fazer entender, rivaliza com a associação livre e a espera
da interpretação daquilo que não se sabia.
Num nível mais coletivo, é possível temer algum efeito bumerangue, é
seguro. Se agora só existe a audiência, o número que é ninguém, para suprir
o grande Outro, não estaria aberta a via a um "retorno no Real" das vozes
de exceção? A multiplicação das seitas vai nesse sentido. Todas se prendem
à voz profética de Um não qualquer e contam com a promessa de alguma
transcendência que supere e arraste os sujeitos. Hoje, por toda parte, está
na moda fanfarronar sobre o cinismo generalizado, e os lacanianos nem
sempre ficam atrás. Continuamos repetindo que a época das grandes causas
coletivas ficou para trás, apanágio do século XX, que os ideais e os valores
212 L a e a n , o i 11 e ç, 11 s e i 12 11 t '-"' rein i· ,2 n t 1..1 .../ c..'l

correm perigo, etc. É verdade. No entanto, outras causas são buscadas,


também é evidente, causas que parecem bem vir do lado do religioso, como
aliás Lacan havia predito.
Freud, que no entanto não acalentava ilusões quanto à "coisa" falante,
já havia percebido o quanto o ser que se sabe mortal aspira a algo que o
supera, e sublinhava, nos anos 1920, que os homens não são apenas mais
"imorais" do que creem ser; são também mais "morais", visando, o que quer
que tenham disso, o que eu no mínimo chamaria uma pequena "dose" de
ideal. Esse vocabulário com certeza não é mais o nosso, mas Lacan começou
por essa tese, embora em outros termos: entregues a si mesmos, os sujeitos
sublimam sem descanso, dizia ele em 1\1ais, ainda. Governados pelas pulsões,
sim, com certeza, mas o que o efeito de linguagem lhes deixa em matéria de
satisfação - a saber, nada que não seja limitado, despedaçado, e nada que
realize a fusão com a qual sonha Eros - faz com que sonhem com outra
coisa. Só que a própria Outra coisa, conforme as conjunturas, poderia bem
afigurar-se letal. A famosa pulsão de morte, se quisermos designar com isso
tudo o que ameaça as homeosrases do discurso, não está apenas do lado do
gozo cínico, ela também se sustenta das esperanças de desespero. A continuar.
portanto, no novo século.
O que já é seguro é que elas também sustentam as segregações. ?\ão
falo só das segregações impostas pelos diversos ostracismos, mas das segrega-
ções inspiradas pelas afinidades, aquelas que são espontaneamente escolhidas
para ficar entre si com aqueles que conosco se assemelham, os irmãos e irmãs
em sintoma notadamente: alcoólicos anônimos, obesos, gays, mas também
os "elegantes e refinados" dos belos bairros que se protegem, os bobocas ...
Todos esses agrupamentos em que doravante se fundamentam as identifi-
cações dos sujeitos, e ainda mais que também pesam pelo número.
Volto ao psicanalista. Ele acolhe o mal-estar, mas não pode sonhar
em suprimi-lo. É outra partilha que o interessa, aquela produzida pelo
inconsciente, sempre individual, que inscreve uma barreira entre, de um
lado, as satisfações/insatisfações, comodidades e mal-estares padronizados
e, do outro, a verdade do gozo, essa verdade que, em cada um, responde
por ficções, ou fixões, sempre particulares, que separam do rebanho e que
só se revelam numa análise.
P.;, ,. s p.: e ti,. as p o/ í ti e as 213

O laço entre o analista e o analisando, laço social bem singular, é ele


próprio inteiro ordenado pela "questão do gozo". Quando digo questão,
não digo simplesmente tratamento, arrumação ou terapia do gozo. Uma
questão não é do registro do cuidado, ela se refere ao saber, esse saber que
de partida falta ao analisando, já que ele sabe tão pouco de onde lhe vêm
seus sofrimentos sintomáticos que espera que a interpretação lhe revele
isso. Essa polarização da ação analítica rumo ao mais real não provoca um
curto-circuito na verdade freudiana, associação livre obriga, mas tampouco
se contenta com seu semidizer, e se opõe às visadas do discurso comum.
Não nos enganemos com um diálogo possível entre as diversas ordens dis-
cursivas do gozo: entre o discurso primeiro e o da psicanálise há oposição
das finalidades.
É tão verdade que a questão é saber o que possibilitou a emergência
e o sucesso de Freud. O sucesso de Freud é que, um século depois, ainda
haja psicanalistas e psicanalisandos, sujeitos que continuam a oferecer uma
análise a outros que se apossam dessa oferta para se analisar com eles.

Como o capitalismo do fim do século XIX pôde acolher a nova prática- não
sem resistir, é verdade? Vejo só uma resposta: ele não sabia. Como Descartes,
Freud avançou mascarado~. Aliás, conhecemos suas palavras: eles não sabem
que estamos lhes trazendo a peste. Evocam-se com frequência as afinidades
da obra freudiana e da tradição humanista que desde então já deu o que
tinha que dar. Freud, de fato, foi um letrado dessa tradição, e o impacto de
sua invenção supera de longe os meros problemas da terapêutica. A noção
do inconsciente introduzia novidade quanto ao sujeito dessa tradição, uma
verdadeira subversão até, que teve seus entusiastas. Mas pode-se seriamente
pensar que foi o que lhe valeu a indulgência do mestre capitalista da época?
A descoberta era filosófica e eticamente subversiva, mas Freud não avançou
como um subversivo.

- Faço alusão à observação de Descartes dizendo: "A ponto de subir na cena do mundo, avanço
mascarado".
214 Lacan, o Ín,:011scÍent<? reinz.·e11t(.1do

Numa época que, pelo menos na Europa, foi uma época fecunda da
psiquiatria, a psicanálise nasceu como derivação dos dispositivos da saúde
mental, confrontada com o sintoma ... de uma nervosidade crescente. Para
Freud, até o impulso lhe veio dos enigmas da neurose, pois nem a psicose
nem a perversão foram suas musas enquanto inventor da psicanálise. Entre,
de um lado, os danos causados pela neurose e registrados pelo corpo social, do
outro, a impotência das ofertas do corpo médico de a isso se opor, a técnica
nova avançou valorizando sua eficácia terapêutica e a cientificidade afirmada
de seu método. Novidade, eficácia, cientificidade: nada aí que derrogasse
aos ideais do capitalismo, longe disso. Freud pôde crer em sua peste, ele que
avaliara a dimensão do inconsciente, e imaginar que ela assinalava o fim do
mestre clássico. Mas o que ele não havia previsto é que o capitalismo não se
preocupa nem um pouco com o sujeito e a verdade do gozo. Para assumir
o lugar da foraclusáo do sujeito que caracteriza a ciência, ele só conhece a
gestão dos indivíduos - quero dizer: corpos proletários-, à qual ele hoje dá
uma dimensão industrial. É com isso que estamos doravante às voltas, pois
gerir o gozo e interrogá-lo são duas operações bem distintas. Daí a questão:
de que armas dispõe a psicanálise?
i\11A L - E :3 T A R N A P :3 I C A N Á L I S E

P aira urna inquietude, é sensível. Talvez tenha sido sempre o caso, pois,
desde a época de Freud, a obsessão de assegurar a sobrevivência estava
presente. A diferença, no entanto, é que ela então se traduzia em posição
de combate - os textos e correspondência atestam isso amplamente e foi
igualmente o caso com Lacan. Hoje, algo mudou na civilização, mas não
menos entre os psicanalistas.
Entretanto, em toda parte se consome psicanalista. Impossível duvidar
desse sinal. France Info, certa manhã: urna psicanalista, de voz e cadência
agradáveis como convém para uma tão ampla audiência, distribui frases de
simples bom senso, que não vão além das banalidades consensuais, sobre
os pequenos fenômenos de sociedade que lhe são submetidos. Por que
fazer com que sejam emitidos pela boca de um psicanalista? Deve-se supor
que um enunciado dito por um psicanalista tem uma aura especial, que se
saiba ou não? O que assinalaria a presença de uma transferência coletiva. A
não ser que seja justo o contrário. Pois, do psicanalista, uma vez posto em
série com todos os entrevistados do esporte, da medicina, das catástrofes
do momento, dos agressores e agredidos, dos festivais, das feiras nacionais,
dos homens da semana, o que resta?
E, por outro lado, quantos títulos sobre o futuro da psicanálise para
dizer que ela não tem mais futuro há uns trinta anos! A novidade de todos
estes últimos anos é que existem psicanalistas para exagerar ainda mais essas
previsões e para assinar, eles próprios, as orações fúnebres antecipadas. É
21Ô Laca,1, L1 i,11..·1..111~cii212tc r . .,i,1z:.:11taJ1..1
.

certo que existem todas as razões para supor que a psicanálise, produto da
civilização, permanece à mercê de suas evoluções, mas há, aí, ames, mal-estar
na psicanálise. Ele toma a forma, eu disse, de uma nostalgia do humanis-
mo passado, combinada com uma denúncia da cultura contemporânea e
dos sujeitos modernos que ela produz com seus próprios sintomas. É um
fenômeno recente. Nada a ver com o que articularam Freud depois Lacan.
O primeiro diagnosticou o mal-estar, sabemos; o segundo questionou
repetidas vezes "os impasses crescentes de nossa ciYilização", até imaginou
que ela pudesse "depor as armas", mas para fixar à psicanálise seus objetivos
ajustados ao momento de sua história.
Na verdade, houve algum dia sujeitos pré-adaptados à subversão
freudiana? Seria preciso novamente avaliar a vontade de que precisaram os
inventores - penso em Freud, em 1'..1elanie Klein, em Lacan - para lanar a
terra, para inventar ou renovar a prática em conjunturas sempre adversas.
Bastar reler os textos de Freud que descrevem o quanto a técnica da associa-
ção livre começou, na verdade, como uma associação forçada, imposta por
Freud, ajudado pela imposição das mãos na testa(!), para fazer formular os
pensamentos secretos ligados ao sintoma. E Melanie, como pôde reconhe-
cer, na criança, a transferência que ninguém via? Aceito que sua fa..ntasia
tenha algo a ver com isso, mas não é sobretudo por ela ter ousado levar a
interpretação até ali onde ela ainda não tinha ido, na língua do jogo e das
condutas da criança, ali onde Anna Freud e todos os outros nada mais viam
a não ser um sujeito a ser educado, e por ela ter recusado em ato a existência
do primeiro inanalisável suposto da psicanálise, a criança? Ainda bem que
a certeza de Melanie Klein mesmo assim se propagou e que a própria Arma
Freud soube mudar posteriormente suas posições. Quanto a Lacan! Divirto-
me imaginando onde estaria hoje a psicanálise se ele tivesse esperado que
os sujeitos do capitalismo lhe pedissem para ajustar o tempo da cura e da
sessão aos tempos do falasser.
Suspeita, portanto: se a psicanálise hoje perde sua posição de combate,
não seria porque os próprios psicanalistas também fazem parte desses sujeitos
remanejados pelo capitalismo dos quais nos falam? Os potenciais candidatos
a fazer análise talvez não sejam os únicos cujo desejo seja trabalhado pelos
valores do capitalismo.
p,,_.,rs:p ........-fic'-1s pL1fíticas 277

PRECARIEDADE DAS !;(ST!Tll(ÕES

O faro é que a postura social dos psicanalistas mudou ao longo das últimas
décadas. O que lhes aconteceu para o "ao-menos-eu" de cada um, como
dizia Lacan, ter agora tomado uma forma tão midiática?
Com o passar do tempo, penso às vezes que os grandes mudos da
psicanálise tinham seu mérito. Não falo do faro de haver entre os psicana-
listas, como em outras partes, gostos e aptidões diversas - digamos: tenores
e ... carpas*. Falo da postura coletiva do grupo analítico.
Houve um tempo em que existiram esses hiperdiscretos. É verdade
que foi antes do regime do !oft generalizado, em que cada um deve cantar
a sua música. A IPA8 fizera disso até como que uma doutrina, através da
neutralidade necessária de um analista de cores opacas, que reservava suas
eventuais frases para o cenáculo fechado de seus colegas. Lacan lhes fez a
irônica homenagem de um panfleto, "Situação da psicanálise em 1956",
estigmatizando-lhes os ares de compunção e a igreja paródica. E, no entanto,
sua Escola, a Escola Freudiana de Paris, não eliminou sua geração espontâ-
nea. Ele então zombou equitativamente de uns e outros, nos dois casos em
nome do ideal de racionalidade das Luzes, e sabendo bem, como ele diz, que
"o ruído não conYém ao nome do psicanalista" - o que ele provavelmente
sabia por experiência.
É evidente que de modo algum defendo a volta à suficiência do silên-
cio. Penso, ao contrário, que é sempre mais necessário que os psicanalistas
falem aos sujeitos de hoje, mas contanto que lhes falem daquilo que é a
psicanálise, que se expliquem, que enfrentem a dificuldade própria da trans-
missão em seu campo. É outra coisa que se aplicar à tagarelice midiática.
Só que, se há um domínio no qual os rigores da ambição bourbakiana
de transmissão integral sempre encontraram obstáculos, é bem o da psi-
canálise. O próprio Lacan acabou reconhecendo isso ao dizer: "O truque
analítico não será matemático". Não por causa de má vontade, mas justa-
mente porque o inconsciente, que no entanto é racional, e o gozo que ele
programa não permitem, como o faz a ciência, elidir a singularidade. Esta

• Jogo com a expressão francesa "mudo feiro uma carpa". (N .T.)


lnremarional Psychoanalvtic Associarion.
218 Lacan, o inconscient.z reinr:entudo

é na prática tão crucial que objeta a que o analista se reduza a seu nome
comum de analista.
E, aliás, algum dia um analista recebeu uma única vez um único sujeito
que, para demandar uma análise, não chegue munido de urna fala, de urna
frase ouvida, de uma leitura que indique aquele a quem ele se endereça? Que
seja em geral no maior desconhecimento, sem relação com os verdadeiros
critérios de competência, é seguro. Mas essa abordagem imaginária assinala
a impossibilidade do analista anônimo. Lacan pôde falar do "significante
qualquer" do endereçamento analítico, mas logo acrescentava que o ana-
lista, este, deve ser alguém, embora seu significante possa ser qualquer. Ter
pendurado na lapela o nome da função, psicanalista, não basta, jamais; é
preciso um pequeno sinal a mais, por ilusório que seja, que diga ao candidato
que se trata de Um que valha.
Esse fato clínico indica duas coisas. Antes de mais nada, que, em seu
primeiro passo, o candidato à análise nunca se autoriza por si mesmo. Em
seguida, e sobretudo, mais essencialmente, que o amor de transferência
que acompanha a instituição do sujeito suposto saber se endereça, em seu
horizonte, como todo amor, a um nome próprio pelo menos potencial.
É a cruz das associações analíticas! Elas gostariam que aquele que não
se autoriza por si mesmo para endereçar sua demanda de análise confiasse
na autoridade delas mais que naquilo que circula de boca em boca e de um
a outro conforme os encontros. Em outras palavras, elas gostariam que uma
transferência prévia para a instituição orientasse as transferências individuais.
Esse voto não é infundado, nunca vamos dizê-lo o bastante, pois a única
garantia para um analista só pode vir de alguns outros que ali se conhecem
e que o reconhecem. Quando isso acontece, quando a instituição analítica
é elevada ao estatuto de sujeito suposto saber, essa transferência recai sobre
cada um de seus membros, e então cada um pode também ser muito dis-
creto, pois seu pertencimento é para ele urna segurança.
Foi o caso durante décadas enquanto a Associação Internacional criada
no tempo de Freud era a única suposta depositária do saber analítico. Mas,
hoje, está acabado o belo tempo da instituição única. Estranha história, na
verdade: as contingências de suas peripécias confluem tanto com o espírito
do tempo da livre empresa que ternos a impressão de que são tramadas.
Tomemos uma associação diretamente oriunda de Freud, querida
por ele, numerosa, internacional, que vela pela formação e pela garantia
P e r s p" e I i ,. as p o/ í I i e as 219

dos analistas e que conseguiu até fazer com que correntes diversas convi-
vessem, que ficassem juntas, por exemplo Melanie Klein e Anna Freud.
Uma pe1formance! Logo, tudo parece em ordem, pelo menos visto de fora,
no que se refere à respeitabilidade, até surgir o ensino de Lacan. Passo por
cima dos acidentes da história para ir diretamente ao resultado: procede-se
a uma discreta depuração. Fora com o agitador.
Entretanto, não foi uma boa limpeza: é a partir daí que tudo começa,
que o sujeito suposto saber se divide irremediavelmente com a renovação
da doutrina e que a bipartição do campo, que irá até a dispersão centrífuga
após a dissolução da Escola de Lacan, se inicia. Como esse ataque desferido
contra um sujeito suposto saber único da psicanálise não repercutiria sob a
forma de uma inquietude bem sensível? Em consequência, a concorrência
liberal tomou conta das associações analíticas, as rivalidades transferenciais
que foram primeiramente internas aos poucos se adaptaram ao nível inte-
rassociativo; é a luta pelo reconhecimento público, com eventual recurso
ao Estado, que doravante domina. A canalhice ali se acha à vontade, é o
que todos podem constatar. Aliás, noto que não é espantoso, uma vez que
a lógica nunca perde seus direitos, que alguns comecem a sonhar com reu-
nificação e - por que não dizer? - com "fusão", para ficar no tom da lógica
dos grandes trustes do capitalismo.
Eu disse mal-estar, mas é um eufemismo, quando é toda a lógica ins-
titucional que objeta à subversão analítica. Ela não poupa ninguém, domina
qualquer um, pois a via solitária não é uma alternativa mais promissora
pelo fato de que o analista não pode se autoinstituir. É verdade que ele
se autoriza por si mesmo em seu ato e não por sua instituição, Lacan terá
pelo menos feito passar essa verdade; mas esse ato não acontece sem uma
elaboração de discurso que não pode ser obra de um único e coloca todos
sob o controle de seus pares. Foi daí que Lacan formulou a necessidade de
uma Escola de psicanálise.

A I:'\STITL'IÇÃO REINVEN"T ADA

A questão é controvertida, mas é seguro que o conceito de Escola, longe


de ser um acréscimo que poderia ser subtraído sem tocar no essencial, está
220 L <.1 e L7 n , Li ; 11 e L1 n ~ e ; e H t ..: r e Í 1l 1.· en t r..1 ../ L1

implicado na opção lacaniana. Supomos que os praticantes da análise en-


contram no conforto, tanto quanto no desconforto dos grupos associativos,
a um só tempo uma inscrição social, uma garantia e, hoje talvez, além disso,
um abrigo contra as inquisições de Estado, mas a lógica desses agrupamentos
não é a do discurso analítico.
O termo "Escola" é feito para trazer de volta isso. Parece indicar que se
trata essencialmente do saber. Não é falso, mas é só parcialmente verdadeiro.
Com efeito, está bem em questão aquilo que a psicanálise ensina, aquilo
que cada um aprendeu de sua cura que possa e\'entualmente valer para
todos, aquilo que ela mudou no caso a caso que permita reproduzi-la para
outros, aquilo que o próprio analista sabe dela e como age sobre ela. Aliás,
a velha noção de análise didática implicava desde a origem um analisando
na escola de sua própria psicanálise. Ainda é preciso que aquilo que ele crê
ter aprendido seja submetido à prova de uma transmissão, já que se trata
de uma experiência sempre singular e jamais reiteráYel, contrariamente ao
que se passa na ciência. Idealmente pelo menos, a questão com o projeto
de Escola não é encontrar um abrigo, mas um lugar de questionamento da
experiência do inconsciente e daquilo que os analistas fazem com isso. Está
excluído que seja um trabalho solitário, pois são necessárias muitas presen-
ças múltiplas para pensar a psicanálise, até para inovadores como Freud e
Lacan. Logo, há bem uma visada de transmissão epistêmica com a Escola,
mas, a meu ver, é na verdade secundária.
Aqui como em outros lugares, prepara-se o saber, retificando a ética.
Aliás, vinte anos de seminário serão sem efeitos de Escola, sem efeito sobre
o desejo do analista? Por trás do que se elabora de doutrina, um dizer se
afirma e um desejo se transmite.
É que na psicanálise, diferentemente da ciência, é preciso levar em
conta o horror do saber em jogo, que sempre é, para todos, saber duramente
adquirido do inconsciente que lhe é próprio, bem real, e de suas conse-
quências. Desde Freud, a consequência maior tem um nome: casuação.
Nome tão sugestivo quanto enganador com suas conotações de mutilação,
mas que diz mesmo assim, mal e convocando imaginário em excesso, que
para o analisando esse saber só pode ser abordado ao preço de uma supe-
ração da angústia.
JJerspLL·tii:as políticas 221

O fato de esta última poder induzir ao recuo está mais que assegu-
rado e ela atinge os psicanalistas o bastante para que com mais frequência
entreguem os pontos quando acontece. Logo, a psicanálise está à mercê do
psicanalista, o qual Lacan não hesitava em acusar de "responsável" pelo in-
consciente. Responsável por sua articulação na medida em que o analisando
só pode interrogá-lo até fazê-lo produzir uma resposta se ele for causado pelo
desejo em ato do analista. Uma Escola é feita para sustentar esse desejo. A
esse respeito, entre a análise do analista e a Escola, há homologia: o fato de
haver psicanalista é o que está em jogo nos dois casos. Da primeira se espera
o ajuste preciso de um desejo que permita que o analisando sustente o ato
analítico - do qual nunca lembraremos o bastante que ele não é um ato
simplesmente terapêutico -, enquanto que, de uma Escola de psicanálise
com seu passe, espera-se que os analistas, sem os quais o inconsciente não
pode ser interrogado, passem eles próprios a trabalhar a questão, não tanto
pelo que sabem quanto pela retificação da ética.
Retificação sem retificador, evidentemente. E nunca adquirida de
uma vez por todas, porque os psicanalistas têm horror daquilo que lhes foi
revelado, mas também porque as condições da invocação do inconsciente,
através da transferência, mudam ao sabor das evoluções da civilização. Se o
inconsciente é bem aquilo que Freud disse dele, depois Lacan e alguns ou-
tros, os psicanalistas têm esse curioso destino de só conseguirem se integrar
- Deus sabe como o tema é atual - como "êxtimos". Assimilados, juntam-
se à massa dos psicoterapeutas; excluídos, não é melhor, desaparecem. Se
a única política possível é fazer ex-sistir seu discurso, sustentar seu estatuto
de exceção, eles precisam a um só tempo desfazer-se dos modelos ajustados
às décadas anteriores e nunca romper com a ética do bem-dizer. Como
poderiam não ter que em permanência reinventar sua estratégia em relação
aos sujeitos que a eles se endereçam a partir do outro discurso? A imitação
e a reiteração lhes são fatais, mas o esquecimento da subversão freudiana
que causou comoção no início do século xx não o é menos.
Assim, o dispositivo do passe é consubstancial à Escola. Dez anos
depois de tê-lo concebido, em 1976, no prefácio que comentei, Lacan volta
a ele como a um leitmotiv, mas repensado. Ele põe na berlinda o analista
que a isso se presta para que dê o testemunho de sua relação com o sujeito
222 L a e a n , (.., i 11 e o n s e ; ~ H t 1..."' r t2 i 11 e 2 n t a J L,

suposto saber, com a verdade e o Real. É uma prova, a dela não duvidar. É
até o que seus detratores retêm contra esse passe. Teremos tudo entendido
sobre o tema: bomba de efeito retardado para a instituição, talvez até indi-
cador da malícia de Lacan; dispositivo antropófago que devora o passante
se não o vomita; de resto inútil, e que nada inventou, pois, em outra parte,
já se questionavam as análises finitas, que aliás não convém questionar, etc.
Os argumentos do caldeirão sempre assinalam o enrolo, mas é verdade que
há prova e não apenas para o passante.
Mas é tão grave? E também não é o caso na própria cura? De uma à
outra, é a mesma questão: a do bem-dizer, em razão até da inconsistência
do Outro. Que analistas, passada a instalação na profissão, recusem coleti-
vamente a prova, faz sonhar.
O dispositivo do passe, para além de seus fins de garantia e seleção,
não é também o mais propício para cada um, e para o passante em particular,
avaliar o que se tornou sua relação com o sujeito suposto saber, perceber
até onde ele foi realmente na exploração do Outro - essa vista às vezes é
a oportunidade de uma retomada de análise, e é antes um bom sinal -, e,
sobretudo, que condução ele dá àquilo que aprendeu? Pois existem várias
possíveis, na primeira fileira das quais o esquecimento, a fuga, a exploração
cínica, etc.
É que poderia bem haver "retornos no Real" daquilo que a prática
analítica impõe à pessoa do analista. O fato não é novo, mas talvez a época
lhe ofereça vias inéditas. Durante mais de meio século, foi a instituição
analítica que absorveu esses fenômenos de retorno compensatório. Eles
agora passaram para a cena coletiva e se imiscuem no discurso público dos
analistas. Há mais, no entanto. Levanto a hipótese, para dizê-lo previamente,
de que a função analítica, que supõe, como se sabe, uma formação longa,
difícil, e cujo desfecho, além disso, nunca está assegurado, que essa função,
portanto, sempre se faz mais penosa na atual conjuntura capitalista.
Sándor Ferenczi foi o primeiro, bem cedo, e com certeza em razão dos
limites de sua própria análise, a ter realmente percebido o preço a ser pago
por aquele que se oferece para suportar a transferência do analisando. Vários
termos foram produzidos para dizer isso: "abstinência" e "neutralidade",
dizia Freud para designar uma suspensão dos preconceitos da pessoa, de seus
P e r; p e e ti,. a; p o lí ti e as 223

gostos, de suas escolhas vitais - em suma, de todas as suas opções próprias


em proveito de um interesse igual dado ao conjunto dos ditos do sujeito e
visando apenas interpretá-los. Todas as correntes analíticas concordam neste
ponto: a função analítica supõe para o analista uma suspensão daquilo que
ele é propriamente. Nessa condição, ele pode presentificar para cada anali-
sando o objeto que o causa. Por outro lado, o termo "contratransferência'', ao
qual se dá tanta importância na corrente da Ego-psychology, na teoria e na
prática, está ali para dizer a dificuldade dessa abnegação e a tentação sempre
presente de dar novamente voz à pessoa do analista na própria cura.
Não há dúvida, o analista padece por ter de apagar sua pessoa - em
outras palavras, por ter de pôr sua fantasia e seu sintoma entre parênteses
para fazer sua, durante todo o tempo, a causa do trabalho analisando. O ato
analítico custa esse preço. Essa subtração metódica do fator pessoal custa
mais ou menos, é verdade, conforme as exigências próprias do narcisismo do
analista, e para isso é preciso o ajuste preciso de um desejo específico, dito
"desejo do analista". Além disso, ela nunca é totalmente cumprida, sempre
há um resto; mas, de qualquer modo, essa elisão que define a economia
psíquica do analista em ato produz fenômenos de retorno que mereceriam
ser estudados, pois o que é renunciado de um lado sempre arrisca fazer valer
suas exigências do outro.
Há mais, no entanto. Lacan reconheceu entre os analistas o que ele
designava como um "horror do ato deles". O termo é forte e vai mais lon-
ge que significar apenas a carga transferencial percebida por Ferenczi. Ele
implica as finalidades da análise, o que ela visa.
O inconsciente é por certo coisa bem complexa: desejo inconsciente
indestrutível, dizia Freud, ou ainda recalque originário incontornável;
Lacan reformula, inconsciente-sujeito suposto ao inconsciente-linguagem,
primordial e irredutivelmente recalcado; depois, eu disse, reinventa o ICSR,
o inconsciente encarnado, que toma corpo para fixar o gozo do sintoma.
Assim, o conceito não foi elaborado de uma só vez e permanece aberto a
remanejamentos, mas, de qualquer modo, o inconsciente é reconhecido
como indestrutível, impossível de reduzir pois inerente ao ser que fala. O
que não é indestrutível, por outro lado, e que emergiu historicamente, é
o procedimento que permite interrogá-lo. Freud inventou o dispositivo
L t.'l e <.1 n , o i 11 e t..'l 11 se i t:? 11 t . ,. ,. ,z i 11 L' 12 11 tJ Jo

próprio a revelar o inconsciente com o real que ele implica, e esse disposi-
tivo inclui o analista. Logo, a psicanálise permanece em parte à mercê dos
psicanalistas.
Ora, revelar o inconsciente é fazer surgir um efeito de divisão, irredu-
tível. Seguir, por exemplo, a via da decifração das formações do inconsciente,
sonhos mas sobretudo lapsos, já será revelar ao sujeito que a linguagem trabalha
nele, sem ele e antes às suas custas. Freud fazia disso o objetivo primeiro da
análise do analista: que ele tivesse experimentado esse efeito o bastante, dizia
ele, para que "acreditasse" no inconsciente. Parece pouco, mas é muito e talvez
o máximo, se deixa perceber o efeito de divisão que de antemão condena a
introspecção e torna impossível toda autoanálise. Uma verdadeira "subversão
do sujeito", dizia Lacan para designar a objeção feita à unidade e à autonomia
supostas do sujeito clássico assim como às suas visadas de domínio. Lapso
das intenções, contravontade do desejo inconsciente, sardônicas injunções
da repetição assinalam a distância entre as prescrições do discurso coletivo
e as tramoias de um inconsciente que trabalha o gozo e que leva mais rumo
ao "para além do princípio de prazer'' que rumo aos equilíbrios daquilo que
chamam a felicidade. Quem pode querer, ou querer saber, desse inconsciente
tão pouco amável? Algo como um santo nova época?
Ainda mais que, no termo, o analista é o rebatalho da experiência.
O que quer dizer? Não nos deixemos enganar pelas ressonâncias patéticas
do termo. Ele não diz simplesmente que o analista é um objeto destinado
a ser deixado, sorte bem comum, mas que ele só o pode ser desde que seja
destituído de sua posição de objeto da transferência, daí o termo "des-ser".
Acrescento, porém, e aí está o ponto essencial, destituído [déchu] ... sem que
lhe caiba o benefício da operação.

O ato analítico, quando opera, obtém a transformação analisante, mas é


esquecido na medida de sua eficácia, uma vez que rodo o benefício cabe ao
analisando, e a justo título. É nesse sentido que o analista é o reboralho da
operação. Ele assume uma tarefa, eminente, difícil, mas cujas consequências
225

não são atribuídas a seu nome; sorte única esta: o ato analítico opera, mas
ele não é assinado. O que não impede os analistas de serem bem diferentes,
uma vez que o fator pessoal não pode se reduzir a zero, mas o analisando não
tem que trazer a marca dele - e, quando isso acontece, é antes o indício dos
limites de uma prática. Herói obscuro de um ato que o desapossa, o analista
tem de aceitar responsabilizar-se pelos fracassos das análises que ele dirige,
ao passo que os eventuais êxitos devem ser levados ao crédito do analisando.
Responsável, mas não beneficiário, entendemos por que é preciso que ele seja
pago! Para dizer de outra forma: ato e árvore genealógica são incompatíveis.
O analista não tem descendente: o analisando transformado não é nem o
descendente nem o herdeiro, ainda menos a obra do analista. Em outras
palavras: impossível identificar-se com o analista definido por seu ato. Vale
dizer que a psicanálise se perpetua, mas não se transmite.
Creio que foi por isso que Lacan pôde evocar o enigma da escolha
dessa posição. Como sustentar um ato tão anticapitalista, quando ressoa em
todas as coisas a grande questão: o que isso rende e onde está a vantagem?
Como suportar esse ato sem Outro, não só solitário por essência, mas não
capitalizável pelo nome próprio, num mundo que só funciona na base da
retribuição cornábil? Ganhar a subsistência não pede tanto!
Dito de outro modo: é possível ser santo em regime capitalista? Eu
o formulo assim para dar eco à célebre página de Televisão na qual Lacan
comparava o analista ao que foi outrora o santo: aquele que um desejo
singular e contagioso conduzia à margem de toda via canônica, fora dos
caminhos balizados do discurso do tempo. Daí por que, aliás, ele só podia
ser canonizado após a morte e antes suspeito durante a vida. A analogia tem
sua consistência: não há via canônica do ato, que visa, além disso, a saída
do discurso capiralista0 •
Vemos, no entanto, a diferença com o santo clássico. É que o santo não
estava só. Ele era de um tempo que fazia o Outro existir, que o assegurava
da presença divina e lhe fazia promessa da beatitude infinita. Assim, suas
tribulações, seus sacrifícios não o deixavam nunca só, ainda que fosse anaco-
reta no deserto. Com certeza autorizando-se por si mesmo, mais que pelos
preceitos de sua Igreja, mas não sem Outro, e até um Outro de retribuição.

' J. Lacrn, Tél,h•ision, Paris, Lc Srnil, 1973, p. 29.


226 La e a 11, o i n e ci n sei e n t t2 r e j n 1..: e 11 ta j {_)

A condenação de Madame Guyon 10 é, a esse respeito, exemplar: tocar no


Deus de retribuição com seu "puro amor" era ameaçar todo o edifício.
Nada igual, evidentemente, para o analista. Rebotalho de seu discurso,
ele nada pode esperar do discurso capitalista, exceto a objeção. Este nada
pode lhe prometer, ele cujas vias giram em circuito fechado, aquele que
Lacan escreveu em 1970 como um ciclo infernal no qual os mais-de-gozar
comandam o sujeito, etc.; o qual sujeito comanda a cadeia da linguagem,
que comanda a produção dos mais-de-gozar que comandam o sujeito, etc.
Quando o Outro é consistente, os atalhos mais marginais podem se fazer
desejáveis, talvez até santificados quando chega o momento. Mas quando
o Outro não o é mais e os laços se desfazem, é, ao contrário, o desejo de
integração que se desencadeia na medida da derreliçáo. Vemos isso hoje
por toda parte, e os analistas escapam tanto menos a essa lógica que hoje
lhes domina a vida institucional porquanto eles não podem contar com
nenhuma retribuição de seu ato.
Nem sequer a do nome próprio. O artista, o político, até o esportista, e
todos aqueles que se instituem por uma façanha, seja ela qual for, fazem um
nome com sua ação. Não é o caso do analista, que nunca faz um nome pelo
cotidiano de sua prática. Aliás, verificamos isso pelo simples fato de que, na
história da psicanálise, só permanecem os nomes daqueles que fizeram mais
que praticar, aqueles que tentaram pensar a psicanálise e produziram saber,
Freud o primeiríssimo. Fazer-se criador de discursividade é bem ainda um
ato, com certeza, mas não inteiramente o mesmo. Em todo caso, ele indica
que a junção entre desejo do analista e desejo de saber não pode ser apagada.
Tirem o que se elabora de uma transmissão possível de saber, e o analista se
reduz ao dito "praticante". E como distinguiríamos esse praticante de um
outro se não houvesse tudo o que se depositou de doutrina a partir do desejo
de saber de Freud, a começar pelo conceito do inconsciente?
Era bem por isso que Lacan queria uma Escola, um lugar que sustentasse
o desejo que é preciso para resistir às seduções adversas do discurso contem-
porâneo e para manter na época nova as finalidades próprias da psicanálise.

'º Remeto, quanto a esse ponto, ao liHo de Jacques Le Brun. Le pur ,mzo11r de P!ato11 à Laca11,
Paris, Le Seuil, 2002.
Ü QL'E QUER O PSICANALISTA?

R esta que pôr a psicanálise no singular torna-se sempre mais um proble-


ma, no singular, com a fragmentação das associações e das doutrinas.
É realmente possível sustentar que de política ela só tem uma, inerente ao
dispositivo relacional inventado por Freud? Com efeito, desse dispositivo
é possível considerar, como faz Lacan, que ele é mais importante até que a
descoberta do inconsciente e que as obrigações que ele instaura e as regras
que promove predominam sobre a diversidade dos atores.
Assim, da associação livre requerida do analisando e do dever de in-
terpretação imposto ao analista seria possível concluir por uma única grande
política: a da revelação do inconsciente. Da mesma forma, das regras de
atenção flutuante e de neutralidade benevolente colocadas por Freud con-
cluiremos que analisar não é dirigir o paciente e que o desejo do analista
exclui o desejo de ser o mestre, etc.
Os psicanalistas em sua maioria talvez pudessem concordar com
essas fórmulas muito gerais, mas seria com um acordo sem consequências
enquanto não se dissesse, do inconsciente, "O que é?", e, dali, o que pode
advir numa psicanálise.
Por exemplo, se vocês disserem, como foi o caso numa certa corrente,
há por certo esse diabo de inconsciente fomentador de distúrbios e anomalias
diversos - sintomas, portanto-, mas essa peste freudiana não é tudo, há
também uma parte sã do eu [moi], racional, com a qual se pode raciocinar
e que dispõe de aparelhos de conhecimento independentes das pulsões e
228 L t1 L- u n , , . . , i n e ti n s L- i e 11 t .., 1· eÍn t' '-., n t . 1 j . _. .

suscetíveis de contribuir para o reforço de sua autonomia 11 , o que vocês


fazem? Teoricamente, por antecipação, vocês fazem o cognitivismo entrar
na psicanálise. E é à piedade filial de Anna Freud que devemos esse cavalo
de Troia capaz de assegurar a derrota do inconsciente freudiano!
Politicamente, vai-se dizer que vocês fazem o mestre? Seria simples
demais. Vocês apenas fazem o mestre entrar no aparelho psíquico, é uma
questão epistêmica que implica a concepção do sujeito. Depois disso, vocês
poderão arguir que, longe de fazer o mestre, vocês se fazem apenas o aliado
daquele que já estava no lugar sob a forma do eu [moi] como aparelho da
realidade, agente de domínio e de conhecimento. Reeducador, portanto,
de um eu [moí] entravado. Mas por que, se o inconsciente é indestrutível
como professava o inventor da psicanálise, por que essa PCC (psicanálise
comportamental-cognitivista) teria melhor êxito que as pressões da educação
primeira, unidas àquelas do supereu social que se acumulam nos ombros dos
pobres sujeitos? Nada espantoso, no fundo, que, ali onde passou essa Ego-
psychology, ela tenha conseguido mais vencer o freudismo que os próprios
sintomas, que, estes, continuam muito bem, para não dizer melhor.
Da mesma forma, se vocês pretendem que o impasse sexual está
resolvido ao termo da análise, e que a libido primeiramente extraviada no
sintoma pode voltar à norma do amor genital, vocês visivelmente não to-
mam partido quanto ao aparelho psíquico, mas mesmo assim postulam que
a operatividade do inconsciente, que forja essas "formações de gozo" 12 que
são os sintomas, pode ser posta fora de jogo. Assim fazendo, como evitariam
sobrecarregar os sujeitos com a norma heterossexual, bem a contratempo
das evoluções de hoje, e sobretudo bem a contrassenso do discurso analítico,
que precisamente se impõe como o avesso do discurso da norma?
Pode-se dizer, então, que a maneira de pensar a psicanálise determina,
mais que as modalidades da ação, seus próprios fins?
Um texto como aquele que Lacan intitulava "A direção da cura e
os princípios de seu poder" poderia levar a pensar que é bem assim. Com

11 Cf. as três "linhas de desenYoh-imento'' distintas que Anna Freud isola. a do eu [moí]. com
seus aparelhos, a das relações de objetos e as das pulsões.
12 Empreguei essa expressão a partir daquela de "formações do inconscie:1re··. forjada por Lacan.
para dizer que o sintoma também é gozo.
Perspecfii-as poffticas 22Q

efeito, ele subordina o que precisamente nomeia a política do analista,


seus fins, ao instrumento utilizado - a fala no campo da linguagem - e às
potencialidades dele. Sugere, assim, uma ordem que vai do entendimento
à ação analítica, do saber à orientação política. Exemplo: um imperativo tal
como "É preciso tomar o desejo ao pé da letra'', título da quinta parte do
texto, não fixa uma finalidade política subordinada ao saber da estrutura,
nomeadamente a da fala, em que o desejo, dito por Freud inconsciente,
vem em lugar de significado? E como, com efeito, abordar um significado,
se não for ao pé da letra, ou seja, pela cadeia que o significa? Epistemo-
política, então? Não por inteiro. Esse imperativo na verdade só diz respeito
ao como - seria antes epistemo-estratégia -, não à própria finalidade que
permanece implícita e que resulta de uma escolha que o saber não comanda:
ter por alvo o desejo, aquele que Freud nomeava inconsciente, mais que
aquilo que poderia contê-lo. E, é claro, é diferente, para me referir a meus
dois exemplos precedentes, visar reforçar as defesas que o eu [moi] pode lhe
opor ou tentar fazê-lo entrar na norma sexual. Bem-pensar a psicanálise e
bem-fazer são solidários para o psicanalista, sem que se possa no entanto
dizer que um comanda o outro, pois, se doutrina e prática estão enodadas,
ambas têm a ver com uma mesma opção terceira.
Os fins ligados a um discurso, seja ele qual for, permanecem sempre
apensos à contingência, sempre carregados por figuras históricas e suscetíveis
de mudar de curso sob um novo dizer. Estão à mercê do ato, ato daqueles
que vêm em posição de agente: o mestre, o professor, o sujeito dividido ou ...
o psicanalista. Se não podemos fazer menos que dizer a psicanálise freudiana,
ou a psicanálise lacaniana, não é apenas para designar diferenças de dou-
trinas, mas precisamente porque o dispositivo prepara o lugar do dizer de
onde a ordem do discurso pode se renovar ou, ao contrário, se renegar. Esse
nível não é aquele do automaton da regra, mas aquele, existencial, da opção,
contingente, indedutível e, quando a ocasião se apresenta, fundadora.
Em 1962, no início de seu "Kant com Sade", Lacan escrevia:"[ ... ] pre-
para-se a ciência retificando a posição da ética'' 13 e em outra parte: "Pensar

u J. Lacan, "Kant avec Sade", Écrits, Paris, Le Seuil, 1966, p. 765.


230 Lacan, u i11co11sci12.ntc. rei11i·cnt1.-1do

procede apenas por via éticà' 14 • Era colocar que a opção ética domina o registro
epistêmico - do qual acabo de lembrar que ele próprio está enodado ao político.
A tese vale para todos os casos, pois a frase se aplicava tanto às condições que
possibilitaram a emergência da ciência moderna quanto àquelas que abriram
a via de Freud, e ela me parece ainda mais assegurada hoje que ontem.

O AVESSO DO COGNITl\'1:3:S!C'

O problema, além disso, é que, uma vez reconhecido esse efeito de divisão, é
preciso reconhecer também que ele não poupa nada, sequer o pensamento,
do qual gostaríamos de pensar (sic) que ele pode livrar-se de boa. Mas não,
o desejo de que vive o pensamento não é menos sujeito ao efeito de divisão
que qualquer outro desejo. Nesse sentido, não se pensa realmente a divisão
do sujeito, na melhor das hipóteses se pode pensar "dentro da divisão" 15 •
O discurso sobre o inconsciente é um discurso condenado, pois não existe
coerência de discurso da qual o inconsciente não caçoe. Com isso, como
conversar com aqueles que não experimentaram isso e como fazer a episte-
mologia da psicanálise?
Afinal, pode-se concluir, como faz Lacan em Mais, ainda, que "a
realidade é abordada com os aparelhos do gozo" 16 • Um único aparelho,
portanto, a linguagem, para facilitar o acesso a um só tempo à percepção, ao
pensamento e ao gozo. Vale dizer que o próprio pensamento procede apenas
por via ética, que "o julgamento da mesma forma, até o 'último', é apenas
fantasia [... ]" 17 , e que não há "universal que não se reduza ao possível" 1'. É
este o postulado radicalmente anticognitivista da psicanálise em sua \·ersão
que eu de bom grado diria freudo-lacaniana, mais que somente lacaniana,
embora as fórmulas sejam de Lacan.
Com efeito, não sou favorável à tese de um Freud cientificista. Há
por certo em Freud formulações que resultam de um toque ciemificista,

14 J. Lacan, " ... ou pire'·, Scilicet 5, Paris, Le Seuil. Jr5. p. 9.


IS Daí o faro de Lacan recorrer à topologia e à lógica conjunrista.
Ic, ]. Lacan, Encare, Paris, Le Seuil, 1975. p. 52.
1" J. Lacan, ''L'érourdit". Scilicet 4. Paris, Le Seuil, 1r3, p. 44.
IS lbid., P· 7.
P,2rspcctic,1s políticas 231

mas nenhuma inspiração cientificista jamais poderia ter sido parida pela
psicanálise. Quanto ao postulado que digo anticognitivista, ele nada tem
a ver com um retorno a um qualquer pré-racionalismo que faria pouco do
cuidado da demonstração própria ao próprio espírito científico, ao qual
tanto Freud como Lacan sempre deram muita importância. É o contrário:
antes seria preciso notar que o próprio cognitivismo está longe de poder
explicar a ciência, tão desigual à epistemologia que ela requer que ele dela
é antes o rebaixamento. Mas não é este o meu propósito.
Três teses são enodadas: não há política da psicanálise sem uma con-
cepção da psicanálise e do sujeito que ela trata. Aliás, é por isso que Lacan
podia evocar seus próprios ''esforços para desatar a estagnação do pensamento
psicanalítico"!') e para restituir sua visada de cientificidade. Mas, por outro
lado, não há pensamento todo, que possa excetuar-se dos efeitos de divisão:
o "Penso" está dividido e, para cada asserção, das razões que a justificam à
causa que a produz, há um mundo. O pensamento, longe de poder pensar a
própria causa, é por ela dividido; resultado, é a opção dita ética que domina
saber e política. Aliás, seria preciso retomar daí a indiferença em matéria
doutrinal, da qual o atual discurso tende a fazer uma virtude de abertura (sic)
ao ponto de criticar o sectarismo em todos os criadores de discursividade,
sem perceber que cedendo no pensamento eles cederiam na ética do próprio
discurso. Hoje, o termo "éticà' está, infelizmente, muito desprestigiado entre
os próprios analistas que, por vezes, não hesitam em dele se paramentar,
mas ele guarda, contudo, seu valor. A ética da psicanálise está situada, como
qualquer outra, numa posição em relação ao Real, mas se distingue, entre
todas, por visar esse Real pelo "bem-dizer". Logo, o que pode ser uma po-
lítica orientada apenas pelo dever do bem-dizer, tanto do ponto de vista de
cada cura quanto do ponto de vista das instituições analíticas?

U,\'li\ TEl~J\l'Él'Tll'A, 0!.~0 PRES(l~lTJ\'A

Não nos espantará a psicanálise ser interpelada em seus objetivos,


pois o bem-dizer não é bem-cuidar. Ele não coloca a visada terapêutica no

19 J. Lacan, "Raisons d'un échec", Scilicet 1, Paris, Le Seuil, 1968, p. 50.


nível dos fins. Nem por isso a despreza, mas faz dela algo como um bene-
fício secundário, vindo "a mais", como dizia Freud. Alguns podem então
imaginar que esse bem-dizer é um luxo em relação ao bem-curar. Quanto
aos psicanalistas de hoje, pegos pela política do controle e da padronização
dos cuidados, eles tendem a se enrolar, tah·ez até a se embaralhar - vimos a
propósito da lei sobre a saúde mental, finalmente votada em 2004. Alguns
puderam até reivindicar não serem ... terapeutas, ao contrário do valor que
a opinião lhes dá, e lhes dá tanto que, para difamá-los, critica neles o fato
de que não curam tão rápido e de modo tão eficaz quanto outras terapias!
Mas deixemos, pois o problema essencial é outro.
O que é cuidar, uma wz que não estamos no campo da medicina dos
corpos, mas no campo do sujeito dividido? Já se pode notar que o bem-dizer
não se opõe ao bem-fazer. Não sendo o belo-dizer, nem tampouco o dizer
de um único, mas o dizer que se infere de todos os ditos que o trabalho
analítico deposita, é um dizer que ... satisfaz. Satisfaz no semido da satisfação.
mas também da operação: ele stttis-fizz, faz o bastante para aquele que entra
no dispositivo. A alternativa entre analisar e curar é simplista demais para
ser pertinente e ganha sendo reformulada.
Aliás, constatamos que um século de psicanálise. ;:né as últimas elabo-
rações de Lacan, levou a repensar a própria definição do sintoma. :\"a apro-
ximação comum atual, contentamo-nos em ficar no impreciso e tendemos
a tratar de modo desordenado, como sintomas a serem cuidados, os diwrsos
males dos sujeiras contemporâneos. Existe hoje um mercado do sofrimento.
Mas nem toda dor é sintoma, e acolher a miséria do mundo e seu clamor,
supondo que a intenção seja lom·á,·el, não é tratar o falasser.
Eu disse: uma vez que o sintoma fomentado pelo inconsciente supre
a carência do sexo genérico no falasser. uma vez que ele preside. pois, para
cada um, à escolha do ou dos parceiros de gozo. e às wzes até a essa relação
de sujeito a sujeito, que chamam o amor, só existe parceiro sintomático,
determinado pelo inconsciente, e a própria norma heterossexual, por se
realizar apenas pelas Yias do discurso priYado do inconsciente, é sintoma.
É evidente que essas reses repercutem nas intenções terapêuticas.
Não se pode mais pensar reduzir o sintoma a zero, e, se não há sujeiro sem
sintoma, o que acontece, então, com o efeiro terapêutico da análise? Ele de
1-\:: rsp.::1.:f;t·1.1s polrt;ct.1s 233

fato existe, a experiência prova, mas ele é apenas mudança de sintoma. Dito
sem ironia, uma obsessão pode ceder, pois uma mulher, ou um homem,
ou qualquer outro parceiro pode vir a substituí-ia! Uma homossexualidade
assumida pode se substituir a uma heterossexualidade que era apenas de
fachada, e reciprocamente, etc. Um sintoma mais vivível para o sujeito se
substituir ao que lhe era intolerável é um belo sucesso. Só que é um sucesso
que o sujeito é o único a poder avaliar, pois só ele experimenta seu benefício
de satisfação. É o problema, pois nada diz que um sintoma mais vivível
para ele esteja mais de acordo com as expectativas das pessoas à sua volta
e, de modo mais geral, com os preconceitos sociais. Logo, é preciso estar
preparado para que continuem os protestos bem conhecidos daqueles que
não obtêm os analisados a seu gosto!
Quem ousará dizer hoje, e em nome de que, o que deve ser o sintoma
de saída? E que, por exemplo, ele precisaria ser hétero mais que homo, ou
ainda apaziguador para a felicidade dos vizinhos, e materno quando é uma
mulher, etc.? Digo hoje, pois algo já mudou no discurso. Pode-se medi-lo
pelo fato de que a homossexualidade, que era, há um século, tratada como
um delito e uma perversão da namreza, tem hoje direito de cidadania. A
psicanálise com certeza tem algo a ver com essa evolução, e uma parte daquilo
que ela nos ensina entrou, com efeito, no discurso comum.
Como o psicanalista criticaria essa evolução dos gostos? Ele no máximo
poderá constatar, observar que, uma vez afrouxada a repressão puritana e
permitidos os gozos "considerados perversos" 20 , os sujeitos nem por isso
estão muito mais alegres [gais], é um fato. O que não vai nos espantar, pois
ele é pago para saber que os gozos do falasser encontram entraves que não
são casuais. Ele poderá até antecipar os processos superegoicos de escalada
excessiva que um regime de permissividade não deixa de induzir. Daí não
concluirá por uma perversão crescente, mas pela pegada forçada do efeito
de discurso sobre os sujeitos.
O que está excluído, por outro lado, é que ele possa prescrever o
discurso de seu tempo a não ser saindo do dele, que não visa retificar os
modos, mas analisar os sintomas e reduzi-los, para cada um daqueles que o

20 J. Lacan, "Compre rendu sur 'Lacte analytique"', Ornicar?, 29, Paris, Navarin, 1984, p. 22.
234 La e <.1 11, '-, i n e L., n 5 e i e 11 te r .J ; 11 i· e 11 t LI J (. ,

demandam, até seu sintoma fundamental. A ética do bem-dizer é relativa


ao discurso analítico. Daí o problema, para os analistas, de saber como se
situar na política do tempo sem se renegar e sem ultrapassar o saber que a
experiência deposita. Como resolver esse dilema? Os escolhos são abundan-
tes: demagogia e coquetismo, de um lado, purismo fora de tempo, do outro,
constituem os dois polos opostos, geradores dessa burrice profissional que
cresce na medida mesma do fato de que os psicanalistas se autorizam por
destino público. Verificamos isso caso por caso: isso não perdoa. E, mesmo
assim, não se pode duvidar de que a política da psicanálise não lhe impõe
continuar a "a dar dividendos no mercado" 21 , como Lacan formulava em
1974, já que sua prática é equilibrada pela transferência dos sujeitos. Im-
possível para a psicanálise dissociar-se da política do discurso de seu tempo.
Ainda é preciso que seja bem ela que se faça ouvir.
Felizmente, quase sempre, os psicanalistas de hoje são tão conformes
que, quanto mais os ouvimos, mais suspeitamos que a subversão analítica
deve bem estar em outro lugar! Talvez entre aqueles que ainda ousam tentar
a aventura de uma análise, embora até não possam saber de antemão aonde
ela os conduzirá.

~1 J. Lacan, '·Note icalienne", Azttres ecrits, Paris, Le SeuiL 200 l, p. 31 O.


antes mesmo da
das equivocidades da língua materna.

A lalíngua de çiue o Inconsciente real é feito é da ordem

.. ....
transformação radical que provoca esse conceito na constelação das referências
, ••• 1 lacaniano. Assim, • • 1 .. ~

mentos teóricos e as repercussões clínicas do sintoma "analfabeto" a-gramatical,


o Nome-do-P.ai em sua função de enodamento dos três registros (R, Se

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