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Pa 201 2
Pa Autor: Soler, Co!ette, 1937-
Título: Lacan 1 o inconsciente reinventad
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29832 1208 . Ac 547 114
C0LETTE SOLER
LACAN,
o inconsciente
reinventado
TRADUÇÃO
Procópio Abreu
EDITOR
José Nazar
facebook.com/lacanempdf
9Freud
Copyright © Presses Universitaires de France. 2009
TÍTULO ÜRJGINAL
Lacan, L 'inconscie11t réhwe11té
EDITOR-\.Ç.\O ELETRÔNICA
FA - Editomçdo Eletrónica
R.Evrs.:\o
Sandra Regina Felgueiras
EDITOR REsroi-.:sAvEL
josé i\ízzar
CONSELHO EDITORIAL
Bruno Pal-1zzo J\àú1r
José J\ízzar
José Mdrio Simil Cordeiro
Afaria Emília Lob,tro Lucindo
Pedro Pa/,1zz,1 1\ízz.zr
Teresa Pal,1zzo Naz.ar
Ruth Ferrefra Bastos
CIP-BRASIL CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
J27f
SOLER, Colette
ISBY r8-85-7-:"24-086-9
editora
Prefácio ...................................................... 9
Introdução .................................................. 11
O I~CO~SCIENTE, REAL
Tra.ietória .................................................... 17
Estrucuralista? ............................................. 19
O momento estruturalista .................................... 21
Reavaliações ............................................... 23
Sujeitos "reais" ............................................. 26
Do falasser . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 5
CLÍi\lCA RE{';O\'ADA
PERSPECTIVAS POLÍTICAS
'. J. ~.acrn, ··:...;. -:ci<:ne<: er la ,·érité'', Écrits, Paris. Le Seuil, 1966, p. 861.
20 Lacan, o inconsci~nte reÍnL·cntodc
3 lbid., p. 862.
" J. Lacan, "Le séminaire sur "La leme volée''", Écrits, Paris, le Seuil, 1966, pp. 42-43.
lbid.
(_l i 11 e o 11 sei t! 11 te, r e a f 21
cado. É um atalho dizer isso, pois seria preciso distinguir, como Lacan aliás
faz, o uso da metáfora no recalque e seu uso poético ou retórico, mas a tese
permanece. Com suas duas expressões, "recalque" e "retorno do recalcado",
Freud deixava em suspenso a questão que é saber onde subsiste o elemento
recalcado, como ele se mantém ativo, a despeito de seu desaparecimento,
ao ponto de poder retornar. E Freud, que não publicou seu Ensaio de psi-
cologia científica, sabia que havia ali um problema. A metáfora do sintoma
responde a essa questão: o significante se mantém latente no significado do
discurso atual, metonímico, e permanece acessível, decifrável a partir do
mais de significação que ele produz.
Entendemos que uma metáfora do sintoma, idêntica ao recalque-
retorno do recalcado, não seja para todos, e em particular não para os
sujeitos para quem o significante retorna no real, fora de cadeia, precisa
Lacan (inconsciente a céu aberto, dizia Freud), aqueles mesmos para quem,
por hipótese, a metáfora do pai falta. Logo, a metáfora do sintoma deve ser
pensada como subordinada àquela do pai e excluída na psicose.
Essa metáfora do pai também escreve a sincronia de uma cadeia de
significantes, mas, uma vez que são aqueles do Édipo, pai, mãe, indisso-
ciáveis das significações da relação, do amor e da procriação, para além da
relação exclusiva com o gozo, ela introduz e ordena o laço social entre os
sexos (homem/mulher) e as gerações (pais/filhos).
Mas o que dizer do sujeito suposto à cadeia do inconsciente, que de
certo modo é seu significado real, se posso dizer, irredutível tanto aos sig-
nificantes da cadeia quanto às significações que ela engendra, inapreensível,
portanto? Inapreensível a não ser com uma metáfora específica, a única que
permite pegá-lo e que Lacan chama precisamente a metáfora do sujeito, gra-
ças à qual "sua inefável e estúpida existência'' e o x de seu ser encontram-se
inscritos, não sem um preço a ser pago. Lacan propôs uma ilustração disso
em seu comentário de um poema de Victor Hugo, "Booz adormecido", no
qual a fecundidade de seu "feixe" não funciona sem a foice.
Três metáforas solidárias, portanto, que permitem capitonar a deriva
metonímica do discurso e reconhecer assim todo o imaginário da significação
por "indução" do significante. Assim, do Simbólico ao Imaginário, uma ordem
de determinação é colocada, de onde, aliás, saiu outra grande ladainha a se
O i11conscie11te, real 23
REA \'ALIAÇÔES
Marco a oposição das novas fórmulas para com as antigas, sem justificá-las
por enquanto. O enodamento toma o lugar da função metafórica. O que
Lacan primeiro repartiu com os binários metáfora do pai em função ou
foraclusão, com seus correspondentes, significante em cadeia do sintoma
/ ou significante no real, fora de cadeia, é doravante recolocado no nó
borromeano através da oposição enodada borromeanamente ou não. É tão
verdade que ele diz em 1975: o Nome-do-Pai é o nó borromeano. Com
efeito, mediante a adição da operação de enodamemo, o sintoma que, de
memória freudiana, enquanto "substituto sexual", enoda a dois Simbólico
e Real, significante e gozo, esse próprio sintoma se prende ao sentido da
fantasia, produzido entre Imaginário e Simbólico.
Nó borromeano
24 Lacan, o inconsciente reini·ent-ai:/L,
SUJEITOS "REAIS"
S1 S,
--~-~ -
sll(-1)
ou enunciar, como Lacan faz novamente em Mais, ainda, que "seu ser
sempre está em outro lugar". Desse sujeito já é possível certamente dizer
que ele é real, mas no sentido em que é impossível reduzir essa estrutura de
suposição na linguagem.
Lacan aí procedeu a um extraordinário esvaziamento das evidências
da experiência. Primeiro, a da experiência do semelhante, a saber, que os
humanos, bem longe de serem evanescentes, de fato estão ali, fazendo baru-
lho e ocupando lugar, para não dizer mais. Toda uma geração de lacanianos
instruídos pelo estádio do espelho se acostumara a enviar isso com um revés
de mão ao Imaginário, como se isso bastasse para volatilizar os fatos.
Não é verdade apenas na experiência do semelhante, mas também
no próprio nível da interpretação: o sujeito do texto não supõe nada, mas
c1 i ll C L7 11 5, C j~ }1 t t!, T.;} J ! 27
para que Lacan colocasse sua hipótese: esse sujeito e esse indivíduo são o
mesmo. Ele alguma vez duvidou disso? Não acredito, mas a questão não
era uma questão filosófica sobre a essência do homem, era uma questão de
prática analírica: como, com um procedimento reduzido à fala, reconhecer
esse sujeito suposto que desliza na cadeia? Em outras palavras, como chegar
ao referente, à Coisa mesma? E não é justamente o que é visado por toda
interpretação? Parar o deslizamento, colocar um stop na decifração, dizer
qual é o lastro, visar no coração? O encaminhamento de Lacan nesse ponto
é instrutivo.
Foi desde o início que ele buscou um princípio de fixação do ser que a
interpretação poderia tomar por alvo, mas ele primeiro explorou os recursos
da linguagem. Todos os seus desenvolvimentos sobre os pontos-de-estofo
que param o deslizamento da cadeia, sobre o significante primordial, sobre
a fantasia como significação absoluta são outras tantas tentativas de resposta.
As fórmulas possíveis da interpretação continuam, já que é ela que está em
questão: interpretação como significação aproximada, ou interpretação que
inclui o significante primordial de um sujeito fixado pelas três metáforas
que lembrei.
Podia ele ater-se a isso? É seguro que não, se quisermos bem considerar
que o significante com seus arranjos não é só causal, mas igualmente causa-
do. Eu poderia reutilizar a metáfora freudiana, diferenciando a respeito do
trabalho do inconsciente o empresário que maneja as regras de fabricação,
mas que não serve para nada sem aquele que traz o dinheiro, o investidor;
portanto, sem o qual não haveria nada, nem sequer o menor sonho, sem
falar dos sintomas. É o que Lacan busca encontrar e que ele nomeia com
diversos termos ao longo do tempo, ali designando a cada vez o alvo da
interpretação.
O primeiro desses termos e que marca uma escansão forte é a Coisa.
A Coisa, como núcleo inamovível do ser, que nenhum significante repre-
senta mas que pode ter um nome próprio; depois o objeto, como causa
central, que ele aliás escreverá a acoisa [fachose] com um apóstrofo; depois,
finalmente, o falasser. São outros tantos nomes de um sujeito real, que
responde hic et nunc, em sua presença digamos, libidinal ou gozosa, e que
l l i 11 e o 11 sei ..J 11 te, r ~ t1 / 29
é menos ... impossível de dizer. É nesse sentido que o objeto podia ser posto
na conta do Real, como Lacan durante um tempo fez. Em outras palavras,
a verdade articulada é impotente em dizer o real que a comanda: ela nunca
conclui, mas se obstina. É recalcada, volta, é amordaçada, fala em outro
lugar, pedem-lhe a palavra final, a última palavra como eu me exprimia
há pouco, ela semidiz. Entretanto, sua insistência reiterada abre uma vista
para o real da causa inominável que a anima. Assim, Lacan primeiro fez da
fantasia aquilo que faz função de real pelo impossível de dizer desse "objeto
que falta", que "não temos mais" embora engendre os mais-de-gozar por
onde o desejo se articula ao gozo. Recorrendo à lógica, ele o homologou a
um axioma cuja constância indedutível faz o núcleo de tudo o que se pode
articular do inconsciente e que a análise permitiria perceber... num clarão.
Isso ainda não fazia um saber do impossível, mas, ao contrário, um
"saber vão de um ser que se furtà' era o veredicto em 1967. "Saber vão de
um ser que se furtà' é bem um limite que pode fazer má surpresa numa
prática em que a transferência, para além das esperanças terapêuticas, nos
seduziu com a perspectiva do saber. Não há saber do objeto a, no entanto
o induzimos a partir do que é constatado do desejo, imaginamo-lo corpo-
ralmente, oralmente, excremencialmente* ... , mas a psicanálise não pode ser
uma ciência do objeto 12 •
No passo seguinte, Lacan busca o que faz função de real no saber,
tomando por modelo a lógica e os impasses da formalização. Recorre, então,
não à indução como para o objeto a, mas à escrita, mais precisamente ao
impossível de escrever. O que anuncia um passe e uma conclusão de fim
por demonstração lógica do impossível, cujo postulado é que, através do
dizer analítico, algo se escreve. Com a questão de saber, com certeza, o que
quer dizer "escrever-se" numa prática que não tem outro instrumento a
não ser a fala.
Uma junção da fala com o Real, e não somente com a verdade, é
ali suposta. Pela conversa mole algo real é alcançado, dirá Lacan. O dizer
da análise deixa rastros de escrito que são relativos ao discurso analítico. E
Lacan reformula a definição clássica das modalidades lógicas - o possível, o
Vemos que, até ali, não há inconsciente real, apenas o que faz função
de real.
Durante muito tempo me perguntei o que fundamentava o passo,
dado no Seminário Mais, ainda, que fez Lacan passar do acento colocado
durante anos na estrutura de linguagem, sua lógica e sua topologia ao acento
colocado nos efeitos de alíngua escrita numa só palavra, com a tese, inaudita
em relação ao que precede, do inconsciente "lucubração de saber" 1". Trata-se,
ele precisa, do inconsciente "situado por sua decifração", aquele, portanto,
que tentamos apreender a partir do trabalho de associação sob transferência
e que ele colocou que é "estruturado como uma linguagem".
Noto que esse novo capítulo é estritamente contemporâneo de seus
primeiros recursos ao nó borromeano e que se segue imediatamente também
ao acento colocado já em 1970, com "Lituraterre", na função da escrita
como modo outro do falante. Essa conjunção não é casual.
O C,\lBIGO
OS DOIS INCONSClE:--:TES
20 Jbid., p. 127.
37
s S. o saber inconsciente
s
(5. (S. (S. -j (5))))
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l 1 '- l.L:ifr.11..i<J o~ . Jl· ,dl11g11,1
. d., p. 130.
ÀLÍNGUA, TRAVJ\lATICA
22 As referências são numerosas: Afaís, ,1i11da, Te!euisiio, ".-\ terceira" (fim de outubro de 1974),
RSI (1974-1975), A conferência de Genebra (outubro de 1975), in O bloco de notas da psi-
canálise, nº 5, O sintoma (1975-1976). :dais algumas obsen·ações ulteriores em 'Tinsu que
sait d'l'une bévue s'aile à mourre" e "O momento de concluir".
23 J. Lacan, Joyce avec Lacmz, Paris, :'-Janrin, 1985. p. 35.
* No original, há homofonia: ''!'011 !'a, !'011 !'a l'air. !'on l'aire, de !'on !'a". (:'-J.T.)
(l inL-L..,1l5L-i.::nt2, r2a/ 3Q
O que distingue alíngua das línguas é que o sentido não está ali. Televisão
formula isso: a língua só dá a cifra do sentido, pois cada um de seus elemen-
tos pode tomar qualquer sentido. Eis por que Lacan pode dizer em outra
parte que alíngua nada tem a ver com o dicionário 24 • Ora, justamente, toda
língua se garante pelo dicionário. O dicionário recenseia os elementos um
por um - digamos: os significantes - e indica os sentidos que o uso fixou,
citações para confirmar. O fato de o sentido vir do uso prova bem que toda
língua vem do discurso - a saber, daquilo que se disse, dicção, num dado
laço social, sempre historizado. As citações 1o dicionário são o recurso ao
uso, e até ao uso autorizado. Passo por cima dos outros usos, que se definem
por não serem autorizados, das diferentes slangs, gírias, e do que é chamado
os níveis de língua, que correspondem ao fato de que os laços sociais nunca
são homogêneos e o uso varia em função das classes, dos meios, da instru-
:ão, etc. O que chamamos uma língua viva é uma língua em evolução. O
dicionário, ao introduzir palavras e novas locuções, ao abandonar as palavras
,)bsoletas, etc., tenta fixar a configuração do atrelamento entre as palavras
~ o sentido delas num dado momento. Dizer que alíngua nada tem a ver
:om o dicionário é justamente dizer que falta em alíngua esse atrelamento
Jas palavras e do sentido convencionado delas.
Logo, diferentemente do Simbólico, alíngua não é um corpo, mas
-1ma multiplicidade de diferenças que não tomou corpo. Não há (- 1) de
.z/íngua que faça dela um conjunto. Não há ordem em alíngua. Ela não
Entretanto, alíngua está ligada aos discursos. Cito "A terceira" 26 : alíngua
"é o depósito, o aluYiáo, a petrificação que se marca pelo manejo, por um
grupo, de sua experiência inconsciente". A experiência inconsciente implica
o efeito da fala e do discurso sobre o corpo substância. É o que o discurso
ordenou e Yeiculou de gozo num dado laço social, sempre histórico, que faz
depósito numa língua. E quando digo que o discurso inclui as produções
mais banalizadas, as mais comuns de um discurso, tanto quanto as inven-
ções mais sublimadas e as mais originais da poesia e da literatura, aqui se
enxertaria a questão, à qual virei em seguida, do discurso privado por onde
o sujeito se constituiu.
logo, poderíamos pensar que uma língua é permanentemente en-
gravidada pelo gozo que agencia a fala e seus significantes gozados . .\las
um termo como "engravidada", que evoca a vida, seria impróprio. Cma
língua é antes um cemitério. Traduzo, assim, o que Lacan nota: até dita
viva, até quando está em uso, uma língua é sempre uma língua morta,
pois é, cito, "a morte do signo que ela veicula" 27 • O que ela recolhe é o
gozo que passou ao signo, ou à letra, o gozo mortificado, portanto, que "se
apresenta como árYore morta". Cemitério, mas em reatualização constan-
te, aliás como os verdadeiros cemitérios. Novos signos ali são admitidos,
signos que eu preferiria dizer excorporados a partir das experiências vitais.
Estas, passando ao verbo, secretam novas palavras, locuções, equívocos,
os quais não esperam nenhum dicionário para estar em uso, a despeito
dos acadêmicos, e "em uso" quer dizer "uso de gozo". Outros signos, ao
contrário, caem em desuso, são eliminados, pois impróprios à atualidade
dos gozos; logo, fora de uso. A língua morreu, mas ela vem da vida, e todo
o problema é, portanto, saber como uma língua morta pode operar sobre
o vivente, traumaticamente.
OS EFETOS DE ALÍ0'.GC.\
Alíngua é saber inconquistável, mas não sem efeitos, caso contrario não
haveria razão para se interessar por isso. Esses efeitos são afetos: alíngua
afeta o gozo.
Essa tese se distingue da questão do gozo de alíngua. O fato de po-
dermos gozar de alíngua é garantido pela existência do poeta, dos letrados
em geral e também do esquizofrênico, que se desobriga do simbólico mas
não de alíngua. A prova pelo último Joyce.
O que nos garante do fato de que alíngua afeta o gozo vivo do ser que
fala? Como sabemos isso? É preciso colocar bem essa questão, já que a tese
está longe de ser unanimidade. O século xx, chamado século da linguagem,
não é o século dos efeitos da língua; pelo contrário, paradoxalmente, já que é
crença de que a própria linguagem seria produto do cérebro. Vejam Chomsky
e tantos outros partidários do homem neuronal. Assim, peço aos textos de
Lacan que respondam à questão: o que prova que alíngua, em sua diferença
em relação à linguagem, afeta o vivente. Ponho em série os argumentos.
Que a experiência, com seus gozos vividos, convenha à alíngua, é
seguro, já que uma língua evolui em função das comunidades de vida.
Interessante, a esse respeito, o problema atual do inglês e as dificuldades
maiores de tradução entre o inglês da Inglaterra, dos Estados Unidos e da
Austrália. Sem esquecer o quarto, desastroso se quiserem, mas significativo
para nós, esse inglês internacional, reduzido a seu uso de comunicação, para
o que ele é feito, mas ao preço de um empobrecimento que salta aos olhos
em relação aos ingleses que acabo de evocar. Esse próprio empobrecimento
mostra que a função de comunicação não é nem primeira nem fundamen-
tal, e que uma língua na verdade evolui ao recolher as palavras surgidas
do existencial. O afeto no sentido do indizível vivido cria palavra. Tese já
presente em "Questão preliminar a todo tratamento possível da psicose".
Também seria preciso estudar o fracasso do esperanto. Era um esforço para
desprender a língua diplomática dos poderes nacionais e criar uma língua
politicamente neutra. Seu fracasso deve ser visto em comparação com a
escalada desse inglês internacional que, por mais empobrecido que seja, não
é, ele, politicamente neutro.
ll i n e L1 n ~ e ; .: 11 t ,2 • r ~ 1..1 / 43
" C. Soler. ''La!angue, rraumacique", Reuue des Colleges cliniques du champ lacaníen, nº 7, março
J~ 2'.JOS.
46 La e a 11, o ; n e o n sei ente rei 11 l.' e 11 ta d L~
O INCONSCIENTE IIOLOfR.\.:C:TIC0
Quero marcar bem o passo que é dado, nesta passagem, da incidência causal
da linguagem a alíngua.
O inconsciente estruturado como uma linguagem era pensado como
composto de significantes, mas os significantes não eram forçosamente as
palavras. Lacan durante muito tempo insistiu na ideia, forjada no modelo da
estrutura linguística, de que todo elemento discreto e combinável funcionava
como um significante. Deu o exemplo do tapa [gifle], tornado significante
que atravessa o discurso ao longo das gerações. Alíngua, esta, pode por certo
* Amálgama criado por Lacan a partir de mot [palana] e matérialité [materialidade]. (N.T.)
L) inc<-"112-st.-iJnte, ret.1/ 47
recolher as imagens oriundas do discurso, mas seu saber se reduz aos uns
de sua moterialidade, e o inconsciente é pensado como o efeito direto dos
elementos, um por um, palavra por palavra, precedendo as frases da própria
criança. É o primeiro ponto.
Segundo ponto, essa passagem não exclui a função do Outro, de que
Lacan falou até ali e que é mais conhecida. Lacan a retoma, nessa mesma
conferência e em outros lugares. Cito: "Os pais modelam a criança nessa
função que chamo simbólico. [... ] A maneira como lhe foi instilado um
modo de falar (instilam-lhe o que a impregna) só pode trazer a marca do
modo sob o qual os pais a aceitaram". Isso parece muito com a tese clássica
que dizia que o desejo (incluído o dos pais) circula na fala. Mas, com a
materialidade, estamos aquém da distinção significante/significado, pois
os sons que se distinguem uns dos outros precedem o sentido no ouvido,
la, la, la, como o um precede o alguns dois da cadeia. Por isso, os uns
enigmáticos que subsistem da canção do ouvido têm um efeito direto ao
se conjugarem com o enigma do sexo. Não há pré-verbal no falante, Lacan
martelou muito isso, e sim pré-linguagem no sentido da sintaxe. A canção
- ou melhor, a "melodia" - dos pais não é a mensagem do Outro e o excede
como o inconsciente-alíngua excede o inconsciente-linguagem. Aliás, é por
isso que à maneira de falar do Outro é preciso acrescentar, como faz Lacan,
a maneira de ouvir da criança. O que a determina? Com frequência o ana-
lisando pergunta, a respeito daquilo de que ele não consegue se livrar: mas
por quê? Não há "por quê" a não ser a contingência irredutível. Há também
uma tiqué da maneira de ouvir, que aliás limita muito a responsabilidade
dos pais para com os filhos.
Aqui, poderíamos entre parênteses introduzir considerações sobre a
transmissão de que tanto se fala, e que a psicanálise tanto contribuiu para
exaltar. A objeção a todo domínio da transmissão, domínio que faz o ideal
do educador tanto quanto o drama e a impotência dos pais, objeção que
Lacan primeiro abordou pelo desejo inconsciente, deve ser relacionada mais
fundamentalmente à antecedência mais primária de alíngua.
Paro um instante nas fórmulas de Lacan: um modo de falar ali onde
ele dizia anteriormente discurso do Outro. Discurso do Outro: nada de vago
nessa noção. O significante se ouve, ele está nas linhas. O que se diz entre as
linhas, no intervalo significante, se interpreta e se nomeia desejo e fantasia.
Um modo de falar é, por outro lado, uma expressão vaga, mais geral, e mais
48 L a e t.1 n , o i n e o n s e i e n t J r e i n t: e n l t1 ..t o
QUE TRAl':-lA?
Onde está o traumatismo em tudo isso? Bastam marcas deixadas pela co-
alescência entre os destroços da linguagem e o trauma do fálico para dizer
alíngua traumática, embora até bem raros sejam aqueles que podem ter o
sentimento de ser traumatizados por ela? Ao contrário, muitos sujeitos em
mau estado podem dizer que encontraram a salvação pelas palavras. Sem
l} i 11 e o 11 sei e 11 te, r e a/
sequer passar por Joyce, uma recente entrevista de Elfriede Jelinek, prêmio
Nobel de lireratura, publicada pelo jornal Le Monde des livres, mostrava isso.
Não é um caso único. Existem sujeitos que encontram no nível de alíngua
algo como uma salYação.
Do discurso do Outro parental o analisando se queixa, quanto a isso
não há exceção, ele se queixa daquilo que ele articulou, do que não articulou,
do que dele recebeu como do que não recebeu, ou pelo menos do que crê
que recebeu ou não. Daí o acento colocado na transmissão dos efeitos ditos
simbólicos da fala a partir das figuras do Outro nas gerações. Ao inverso, só
raramente ele se queixa da língua.
Ao colocar o acento em alíngua, Lacan não recusa a incidência do
Outro, sob a forma notadamente dos pais, eu disse, mas desloca o ponto
de impacto: do peso do discurso do Outro (articulado em linguagem) ele
passa ao peso de alíngua do Outro, a língua ouvida do Outro. Pois bem,
é uma passagem do Simbólico ao Real. Alíngua não é Simbólico, é Real.
Real porque é feita de uns, fora de cadeia e, portanto, fora de sentido (o
significante passa a ser real quando está fora de cadeia), mas de uns que,
além disso, estão em coalescência enigmática com gozo. De um lado, alín-
gua opera sobre o Real pelo qual corpo se goza, ele o "civiliza'', dirá Lacan,
sintoma; do outro lado, recolhendo os signos deixados pelas experiências
de gozo, ela própria passa a ser objeto de gozo. É uma das grandes teses do
seminário Mais, ainda: falar é em si um gozo. Subversão do cogito: o eu pen-
so, logo se goza. Alíngua singular que vem ao sujeito pelo Outro não deixa
de trazer o rastro dos gozos desse Outro, daí a afirmação da obscenidade
de alíngua, da qual poderíamos dizer que ela marca o sujeito com signos
de gozo* a um só tempo enigmáticos e improgramfreis. Já na origem, a
linguagem implica para cada falante um laço com o Ouuo, mas um laço
que não é intersubjetividade, que até hesitaríamos em qualificar de social
propriamente falando, um laço que mergulha suas raízes num banho de
obscenidade singular, a qual sai em seguida como sintoma, sonho e lapso,
etc. Talvez seja o que motiva Lacan a evocar uma relação sexual entre as
gerações, a qual, vemos, é bem outra coisa que o ato incestuoso.
O SINTOMA ANALFABETO
55 J. Lacan, "Pro;:,osition sur le psychanalysce de l'École", Autres écrits, Paris, Le Seuil, 2001, p.
2"±8.
54 Lacan, o i11conscie11te reini-entado
fora de análise, sua credulidade. Esse termo "suposição" era uma maneira
de dar à transferência uma dignidade epistêmica ao elevá-la ao estatuto da-
quilo que uma hipótese científica é. O termo, introduzido no seminário Os
quatro conceitos fundamentais da psicanálise, deve ser colocado em binômio
com um outro, da mesma época, o de "posição do inconsciente", o que
já indica que não basta supor o inconsciente para posicioná-lo*. Cabe ao
analisando a suposição; ao analista, a posição. O ato analítico, sejam quais
forem suas manifestações, é isso: posicionar um inconsciente, que em si
mesmo não se posiciona, e que, por isso, o analisando poderá supor, pois a
suposição é retroação da posição. Daí a ideia - que nada tem de paradoxal
se soubermos do laço do inconsciente com a fala - de que os psicanalistas
são responsáveis pelo inconsciente.
Mas, vão me dizer, o sonho, o lapso, o ato falho, sem falar do sintoma,
não são manifestações patentes do inconsciente? Com certeza, mas somente
na retroação do ato de Freud que primeiramente os colocou como tais ao
afirmar que uma verdade ali estava em ação. A especificidade de Freud é
que, nele, a suposição e o ato de posição acabaram conjugados. Entre as
manifestações que acabo de nomear, ditas de "engano" por Lacan, e a afir-
mação do inconsciente, há o dizer de Freud. E é por isso que a psicanálise
permanece apensa a esse dizer. Tendo por resultado que, diante daqueles
que desprezam essas manifestações, que portanto desprezam o engano*"',
não há argumentação que se sustente, assim como não há demonstração
dita clínica suscetível de convencê-los ou de criar acordo.
A série dos enganos, lapsos, ato falho, sintoma deve ser completada
pela associação livre. A associação, segundo Freud, é um modo da fala
disjunto do domínio intencional, visando tornar possível a intrusão de
significantes inesperados, uma fala na qual o sujeito aceita não saber o que
diz. E é sabido que um sujeito que não aceita esse registro do "eu falo, mas
não sei o que eu digo" torna toda interpretação inoperante. É por isso que
digo com tanta frequência que o apelo à confidência, ao testemunho ou à
* Há jogo homofônico: "il ne sujfit pas de "!e supposerpour !e poser", l'inconscient. (:::-J.T.)
** Jogo: "Qui méprisent la méprise". La méprise [o engano] Yem do particípio passado do Yerbo
(se) méprendre [enganar-se], enquanto que o desprezar é mépriser. (:::-J.T.)
(_/ inc.J1?sc;.2nt2, r.2uf 55
sentido é singular, próprio a cada um. Ele não cria saber transmissível. Não
há sentido comum do sintoma, apenas verdades particulares. A verdade e o
sentido são noções conjuntas. Têm primeiramente em comum o fato de que
ambos são fenômenos do sujeito (só há sentido e verdade para um sujeito) e
de que, em segundo lugar, nenhum atinge o saber: uma, a verdade, por ser
apenas semidizer; o outro, o sentido, por fugir, irredurivelmente.
O discurso analítico, tal como Lacan o escre\·e, põe o saber no lugar
da verdade. É dizer primeiramente que não há na fala analisante solução
ao semidizer. É verdade que às vezes acontece de um sujeito se fixar em tal
produção de verdade e lhe dar consistência ao ponto de fazer dela sua última
palavra, mas, no essencial, quanto mais o dizer de verdade de desdobra, mais
seus ditos se acumulam, mais o analista os recolhe como outras tantas ficções
de verdade e menos a verdade significada se iguala ao saber. Impotência da
verdade, portanto. Em segundo lugar, porém, o semidizer da verdade não
seria sem os significantes do inconsciente, sem sua materialidade. Daí a
estranha fórmula que tanto desorientou, no "Prefácio ao Seminário X!', que
diz que a função inconsciente - e ele fala aí do inconsciente real - "fuxica
a verdade" 34 • O termo fuxicar [tripoter] é sexualmente bem evocador para
dizer que a coisa não chega à consumação das núpcias.
A associação livre é uma estrutura tantalizante. De um lado, ela
mantém a suposição rransferencial pela recorrência de suas emergências
de verdade; do outro, ela a faz fracassar, por sua impotência, não menos
recorrente, em encontrar o que valeria para a outra metade da verdade. Mi-
ragem da verdade, diz Lacan, para sublinhar que ela nunca atinge o oásis da
completude, da verdade toda, mas que antes se perde no que ele justamente
nomeou o "deserto da análise".
O que se afigura na fala analisante é que não há casamento da verda-
de articulada do sujeito com o saber e que o próprio saber não tem limite.
Cantor, socorro! Mas o analisando não é Cantor e a série associativa não
é tampouco a série dos números transfinitos. Quanto mais a verdade se
articula fazendo surgir o sentido do sintoma, e é isso o produto da elabora-
34 J. Lacan, "Préface à !' édition anglaise du Sémimzire X!', Autres écrits, Paris, Le SeuiL 2001,
p. 572.
Ll ;111...-onsci.znt.2, rt!a/ 57
* Em francês, passe au réel, literalmente "passagem ao real". A palavra passe também se refere ao
momento do final de análise, da passagem de analisando a analista, e ao nome do dispositivo
de Escola de averiguação dessa passagem. (N.R.)
,; Ibid.. p. 571.
58 La ea n , o ineo n s eien te 1· e i n L' e n ! a j u
Laps
s(S 1, 52, ... Sn)
3 . ?ig_n!ficante do ~-ªf'S
ICSR (fora de sentido)
Logo, antes de mais nada, o laps com seu sujeito suposto; depois o
espaço da hystorização transferencial com seu impacto de sentido; enfim,
a redução do laps a um significante desligado de toda suposição de sujeito
e fora de sentido. Daí por que digo que é um modelo reduzido da queda
do sujeito suposto ao saber, queda essa que faz o significante do laps surgir
como real.
Mas, atenção, não é um lugar onde as pessoas se instalam. Cito:
"Basta que nele prestemos atenção para dele sairmos". Com efeito, a aten-
MüTERIALIOADE DO I~C0:\':3(IE:\'TE
ção, trituração, esse jogo entre sonoridade e grafia como no título 'Tinsu que
sair d'l'une bévue ..." em geral tem por referente o modelo Joyce. Mas é que o
próprio Joyce está na moda dos procedimentos do inconsciente como Lacan
busca ressaltá-los nesses anos particularmente. Ele não os usa nunca, pelo que
percebi, sem uma intenção suplementar precisa, no que, aliás, ele se distingue
de Joyce, em quem os jogos de língua estão diretamente conectados ao gozo
sem passar pelo sentido, o que evidentemente os leva ao cúmulo do enigma.
Vejo aqui duas dessas intenções, muito diferentes.
A primeira, pouco visível, em surdina, introduzida graças ao esp do laps,
é epistemo-política. Das duas palavras, "espaço" e "lapso", Lacan extrai por
fragmentação uma única sílaba. Não posso dizer um único fonema, já que
acontece de, em francês, "laps" ser ela própria uma palavra que tem sentido.
O laps"' convoca o tempo, e até uma medida do tempo, ao lado do espaço.
Logo, esse início de frase convoca, na latência de suas significações,
as duas categorias espaço e tempo da estética transcendental de Emmanuel
Kant, pela qual, em sua Crítica da razão pura, Kant tenta explicar a univer-
salidade da física newtoniana.
Em segundo plano, são os múltiplos desenvolvimentos de Lacan a
contestar reiteradamente a estética transcendental de Kant. Em nome de
que, de quem? Einstein e a física quântica com certeza, mas sobretudo
Freud. Para o primeiro, o argumento é desenvolvido na resposta à questão
dois de "Radiofonia"; para o segundo, quantas vezes terá ele repetido que
a topologia do inconsciente impunha refazer a estética transcendental de
Kant, com a qual ele é mais que severo, chegando até a qualificá-la, em "O
aturdi to", de inepta e imbecil.
Ora, para Lacan, os debates epistêmicos sempre têm um impacto
político. ~o que se refere a Kant, esse impacto é explicitado na "Introdução
à edição alemã dos Escritos", em que, falando do bom senso que é lei na
política, ele diz: "Não preciso lembrá-lo ao falar ao público alemão que a
isso acrescenta tradicionalmente o sentido da crítica" - eis Kant de novo
- "sem que seja inútil lembrar aonde isso o conduziu por volta de 1933".
Não creio que seja para acender novamente uma velha querela, mas para
que não se esqueça que pensar procede por via ética, sempre engaja uma
* O francês distingue lapsus, emprego involuntário de uma palavra por outra, de laps, intervalo,
dernrso de tem?º· (K.T.)
66 Laea n, e i n e o n s e ; t2 n t e r e i 11 i: en t t.1 j D
Cadeic do ::xonsciente
Grafo do \Vitz
O ponto crucial a meu ver é que alíngua é o que posso bem chamar... um
princípio de incerteza. Uma vez que, como acentuei, o Um de gozo que
não seria apenas um entre outros ali é incerto, hipotético, pois o "saber
falado" do inconsciente desafia a tomada do saber. Dito de outra maneira:
a parte do saber que é assegurada pelo trabalho analítico aparece em déficit
do ponto de vista do saber de alíngua real e, além disso, suspeita de ser
apenas imaginária.
Numa época, Lacan podia prescrever interrogar o inconsciente até
que ele desse uma resposta que não fosse inefável, seja a da fantasia ou a
dos significantes soletrados a partir do sintoma. Belo programa, mas duro
para o inconscieme-alíngua, nunca todo decifráYel e cuja parte decifrada
permanece hipotética.
Como esse inconsciente pode responder? Se os efeitos de alíngua nos
superam, e é possível concordar com Lacan que de fato é assim, então a
psicanálise não está reduzida ao duplo escolho do inefável e da incerteza?
Fracasso na ambição do materna. Lacan, aliás, constata isso em Mais, ainda.
Ele que dera tanta importância à "matemática do significante", formula, eu
disse: "O truque analítico não será matemático". Poético, talvez? Exceto que
o poema já está feito, cada analisando sendo poema mais que poeta, mas
poema impossível de ler em sua integralidade. É que, com alíngua, não há
matemática ou lógica que se sustente, mas significante no real, e do qual
não há exaustão possível.
Passados os pedaços de respostas que dali deciframos - digamos: suas
letras, já que a letra se define por uma coalescência do gozo e de um elemento
linguageiro fora de sentido -, como apreender esse inconsciente real?
A preocupação com o real em Lacan é bem anterior ao conceito de
ICSR, eu disse. Como a fluidez da fala e a infinitude da decifração não têm
em si mesmas princípio de parada, para pensar a finitude do processo ana-
lítico ele primeiramente convocou as barreiras que faziam "função de real"
na fala analisante. Como eu disse, é possível seguir as sucessivas fórmulas
pelas quais ele o define. As duas primeiras convocam a categoria lógica do
impossível: impossível de dizer, depois impossível de escrever.
O inconsciente real é outra coisa. Ele não se demonstra, não se alcança
pela lógica, ele se manifesta. É por isso que empreguei o termo joyciano
72 La e a 11 1 o ; 12 e o 11 se; e 11 te i- e in i: e 11 t c1 d o
"epifanià'. Ele tem seu abrigo em alíngua e não resulta da abordagem estru-
tural que o precede no ensino de Lacan. Efeito de alíngua, ele é duplamente
real: seus Uns são fora de cadeia, logo, fora de sentido, e passaram para o
campo do Real fora do Simbólico, o da substância viva. O que complica
é que esse inconsciente saber falado faz o saber fracassar - princípio de
incerteza, eu disse.
O recurso ao novo esquematismo do nó borromeano, aliás introduzido
de maneira contemporânea ao acento colocado na função de alíngua, eu
disse, responde em parte a essa dificuldade e encontra ali, segundo eu, uma
de suas mais fortes justificações.
O materna linguístico, S/s, pelo qual o inconsciente-fantasia podia
ser pensado, não permitia situar o Real do vivo, fora do Simbólico e fora
do Imaginário, que não é um significado e que nada deve ao sujeito. "O
Simbólico só faz as coisas fantasisticamente", dirá Lacan. Ora, os sintomas
não são fantasísticos e sim, de fato, inscritos no Real "do qual o corpo se
gozà' 42 • A materialidade gozada deles, reconhecida verdadeira pela análise,
induz a colocar a um só tempo o real de alíngua e o do vivo. Ao representar
esse Real que é de fato o impensável, não fossem as tentativas das ciências
da vida, por uma das três rodelas de barbante que compõem o nó, Lacan
faz com seu sujeito uma espécie de operação Cantor, o aleph zero dele, pois,
com o nó, esse referente por assim dizer absoluto, sem ser sabido, passa a ser
teoricamente manejável. O nó borromeano é um verdadeiro instrumento
de reconhecer o Real, que nem se imagina nem se pensa, para revelar-lhe o
lugar e a função eventual.
O nó acrescenta ao atrelamento das duas dimensões do Imaginário
e do Simbólico, que Lacan primeiro pensou no esquematismo linguístico,
o atrelamento delas a três com o Real. Eu disse, ele pressupõe a autonomia
e a equivalência dessas três dimensões e por isso abre o capítulo de uma
renovação das definições das três di-mensões [dit-mensions]. Entre Imaginá-
rio e Simbólico, o sentido, o inconsciente-fantasia, o que Lacan vai chamar
a mentalidade. Logo, a mentalidade é um misto, que não é mais aquele,
hierarquizado, do significante e do significado da época de ''A instância
da letra", pois ela supõe um enodamento entre essas duas dimensões. Esse
misto desdobrado pela conversa mole, analisante ou não, que é feito de
representações que não funcionam sem significantes, Lacan o qualifica de
débil; "o homem pensa débil", diz ele, para indicar que, nele mesmo, ele
está sem domínio sobre o Real fora do Simbólico.
Ele abre igualmente o capítulo de uma nova combinatória, a dos
enodamemos possíveis e de seus efeitos. De fato, Lacan passou anos es-
tudando os enodamentos possíveis na esperança de encontrar a tradução
clínica deles.
É que o gozo real disjunto do sujeito deve bem estar enodado ao
verbo, emre Simbólico e Real, para ser decifrável na psicanálise, marcado
por alíngua, que o fragmenta, o parcializa e o absorve - ele se esquiza de
maneira pura na esquizofrenia, deixando o sujeito no autismo fora de laço
de seu gozo.
Contanto que esteja enodado ao Imaginário, esse inconsciente real
está como que fixado, enquanto que, por sua vez, ele "limità' o Imaginá-
rio, o arrima o bastante para que o sujeito não fique todo no delírio da
mentalidade. Não é um acaso se é a partir de 1975 que Lacan desenvolve a
noção de mentalidade, de onde ele até tira um novo diagnóstico, "doença
da mentalidade", para designar um Imaginário não lastrado de Real, que
divaga ao sabor das circunstâncias.
A necessidade de um novo esquematismo que permita situar o Real
impensável não deixa dúvida. Entretanto, seu manejo quando se trata de
pensar a experiência analítica não deixa de apresentar uma dificuldade.
Essa dificuldade se deve ao fato de um nó apresentar uma estrutura
sincrônica, ao passo que a análise se desenrola no tempo. Em sua diacronia
que procede apenas de falas, o real do inconsciente só é abordado como
termo e barreira dos ditos de verdade, eu disse, e é o que permite afirmar que
o chiste poupa o caminho, ou que Joyce com seu tratamento de alíngua foi
direto ao que se pode esperar de melhor de uma análise, afinal. Com o nó,
Lacan tentou retraduzir o que se faz na duração de uma análise não mais
em termos de metáfora e metonímia com o ponto-de-estofo ou o ponto
de fuga, mas em termos de nó que se faz, se transforma, se desfaz, etc. Daí
expressões tais como o nó "já está feito", "lapso do nó", sutura, entrelaçado,
74 Laca11, o i11co11scie11te rei11,0 e11taJ.o
fora do Simbólico, logo também fora de sentido, e até fora de sentido goza-
do, fora do "penso, logo se goza". O Real não todo, não universal, rebelde
à representação. Mas, com esse termo "falasser", vemos imediatamente que
a função da fala presente no início ainda está ali no fim.
A FALA INVENTARIADA
Trata-se de um retorno à fala? Não penso, pois ela nunca foi esquecida,
mas talvez não seja a mesma função da fala. A periodização, bem feita para
fazer esperar o que vai seguir no fim, por vezes tem virtudes pedagógicas,
mas não respeita o que me parece caracterizar a epistemologia de Lacan.
Esta por certo conjuga fulgurâncias e progressão, mas numa elaboração que
avança ao não cessar nunca de remanejar o conjunto das noções previamente
produzidas, que ela não anula. Delas até conserva as fórmulas às vezes, mas
as torna igualmente desconhecidas ao mudar-lhes o contexto à maneira de
uma teoria generalizada e em proveito de uma coerência que se desloca e se
renova num caminhar em espiral.
A fala convocada em "Função e campo da fala e da linguagem" era
uma fala de solução. Constituinte do inconsciente enquanto fala recalcada
e que retorna em outra parte, a "fala plena", restituída na análise, fornecia
o ponto-de-estofo que no final assegurava a identidade de cada um a seu
ser. Assim, a experiência se situava inteira no triângulo da fala amordaçada,
do isso fala em outro lugar e da fala plena, restitutiva.
Essa fala de solução rapidamente não deu certo no ensino de Lacan.
A esse respeito, o texto maior é o da "Direção da cura", que acaba na impo-
tência da fala. Você conversa, conversa ... O texto reelabora a tese freudiana
do desejo inconsciente como significado de tudo o que se enuncia pela
fala do sujeito e por todas as suas formações do inconsciente, pois coloca
"a incompatibilidade do desejo com a fala"~'. Como significado, o desejo
obseda a fala, lhe dá seu sentido, o sentido do objeto indizível, mas não há
fala plena que se sustente, o desejo, efeito de fala e que faz o ser do sujeito,
é inarticulável de seu lugar. Inconsciente indestrutível, dizia Freud.
Com a noção do falasser, são novos poderes da fala que são revelados.
O texto da última conferência sobre Joyce o institui. Cito: "Daí minha ex-
pressão falasser que substitui o 1cs de Freud (inconsciente, é lido assim): sai
daí pc1ta eu então entrar. Para dizer que o inconsciente em Freud, quando
ele 9. descobre (o que se descobre é de uma só vez, ainda é preciso após a
invenção fazer seu inventário), o inconsciente é um saber enquanto falado,
como constitutivo d'uoM [LoM]"-i 6 • Esse saber falado é com toda certeza
aquele de alíngua, pois, no que se refere ao saber elaborado, ele antes se
assegura pelo escrito e dispensa sem maiores problemas a fala.
D I :3 0 R T 0 G R A F l .\ C .\ L C l' L\ D.\
Entendemos a razão que lhe faz evocar UOM, o homem borromeano, se posso
dizer, constituído como Um a partir do enodamento das três consistências,
80 L '-1 e a n , v i 11 e 1.J n se i e 11 te r e i 11 e (; n f- a J L1
de onde ele vem, o que quer e o que quer dizer. Nós o montamos, por isso,
como significante da transferência. Logo, é o sintoma no qual acreditamos:
supomos que ele pode dizer algo. É o que mais comumente chamamos
subjetivação do sintoma.
O espaço do sintoma pode se definir exatamente como aquele do lapso.
É a extensão de sua associação a outros significantes que lhe dão sentido.
Logo, o espaço da hystorização onde ele fuxica a verdade. Quando esse
espaço não tem mais nenhum impacto de sentido, o sintoma está disjunto
de toda verdade subjetiva, ele é real, despregado do postulado transferencial.
O que resta, então? O elemento intruso (letra, diz Lacan em 1975) alojado
no nível do gozo. Daí por que pude imitar e dizer: quando o esp de um sint
não tem mais nenhum impacto de sentido, estamos no inconsciente, real,
fora de sentido. Reduzimos o sintoma a seu núcleo neológico. Clinicamente,
é, digamos, o fim da questão. Fechamento transferencial, portanto. Talvez
fosse preciso abrir aqui a questão da interpretação, conforme ela se ajustar
às escansóes da verdade, como fazia no essencial a interpretação freudiana,
ou conforme ela visar o inconsciente real, fazendo antes furo no sentido.
Deixo esse ponto em suspenso.
Mas, se não estamos mais na espera transferencial, se não acreditamos
mais que ele possa dizer algo, será por ele ter dito tudo?
Será que não poderia dizer ainda mais, ou outra coisa? Ao infinito,
portanto. E, supondo que se cale, não vai recomeçar a falar? É a perspectiva
da análise sem fim ou recomeçada. Essa questão está fundamentada. Está
fundamentada estruturalmente, é por isso que ela ressurge repetidamente.
Ela está fundamentada pelo fato de que, no fundo, o inconsciente alíngua é
inesgotável e até o que se isola como letra do sintoma sempre é hipotético.
Logo, fora de questão o inconsciente poder dizer até onde ir em sua própria
prospecção, não é ele que marcará nenhum de seus significantes, emergen-
tes na mancada, ou insistentes na repetição do sintoma, como significante
último. O inconsciente com certeza fala, mas não conclui. Entre mentira e
engano, no nível da linguagem, não há termo inerente à hystorização do lado
sujeito, e não há exaustão pensável do inconsciente-alíngua, do lado real.
Então, o que decide o termo? Nem o ICSR nem a verdade, mas o
terceiro comparsa que ali se acrescenta e que não é de ordem linguageira.
,--l a11ális2 orientada pa,·a o real 87
isso não basta de modo algum para assegurar o fim da análise. É preciso que
a isso se acrescente uma mudança na resposta de satisfação do sujeito. Ora,
de que depende o fator satisfação ou insatisfação? Ele define o ser, mas é
incalculável e, portanto, improgramável. É em vão que na análise alguns se
esmeram em buscar-lhe a origem no passado e, fora de análise, toda política
de previsão dos sujeitos é tentativa de foracluir o inconsciente. Esse incal-
culável do sujeito que podemos dizer ético permite que Lacan diga que a
demanda da satisfação de fim é uma urgência, cito, "que não estamos seguros
de satisfazer", e ele acrescenta: "exceto se for pesada''. Bem interessante esse
termo "pesar". Em todo caso, pesar não é calcular.
Essa pesada busca avançar para o que é esperado para além do "ponto
em que toda estratégia vacila", esse ponto bem assegurado estruturalmente,
em razão não só de hiância da verdade mas do real do inconsciente incon-
quistável. Para além desse ponto, não há suposto saber... o quantum de
satisfação. É o ponto de desafio ao cartel do passe: o sujeito é incalculável
e assim permanece. O tipo de satisfação, ou seja, o tipo de afeto que cor-
responde a essa estrutura, para um dado sujeito, não resulta de nenhum
cálculo, com essa consequência: que não se pode predizer nem a satisfação
de fim, nem o ato analítico. Daí também concluo que é o incalculável do
sujeito ético que torna o dispositivo do passe necessário, com seu paradoxo.
Espera-se de um passante que ele seja testemunha da verdade mentirosa- em
outras palavras, que ele hystorize sua análise. E para isso não bastará que ele
recenseie as produções de verdade que marcaram essa análise, pois aí seria
só o romance de uma análise. Ainda seria preciso que ele deixasse perceber
como a mentira percebida da verdade o curou da miragem e o fez perder o
gosto pela corrida, e isso embora até para dizê-lo ele só tenha como meio a
fala com sua verdade ... mentirosa.
Então, pesar a demanda, o que isso pode ser? Lacan evoca aí, penso, as
entrevistas preliminares, sobre as quais ele muito insistiu, e que manejamos
mal quando as prolongamos, mas sem distingui-las do trabalho associativo
que deveria ser reservado a sua sequência. Pesar a demanda, não penso que
isso queira dizer avaliá-la, o incalculável a isso igualmente objetaria. Daí,
aliás, a impostura ou a ilusão dos diagnósticos de analisabilidade na entrada.
90 Lacan, o inconsciente reinue11ta1..-/o
4 J. Lacan, "Inrroduction à l'édition allemande des Écrits", Scilicet 5, Paris, le SeuiL 1975. p.
16.
Ü T E ~1 P O , ~ A O L Ó G I C O
AFETOS DIDÁTICOS
Assim, não basta mais que uma análise tenha chegado a seu fim epistêmico
para fazer um analista. O desejo do analista não se deduz do saber adquiri-
do. É esta a tese da "Nota aos italianos" de 1974 e da "Introdução à edição
inglesa do Seminário X!' em 1976.
Segundo a "Notà', há analista quando o sujeito analisado, aquele que
delimitou seu horror de saber, o dele próprio, foi levado ao entusiasmo.
Outros podem ser levados ao contrário, evoquei isso, do horror ao ódio. A
experiência atesta isso. Mas há, ainda, outras alternativas, a mais frequente
sendo a do horror ao esquecimento. O darão do despertar, quando acontece,
em geral logo acaba, e o rebaixamento para as finalidades terapêuticas é aí
um cúmplice sempre disponível, e bem cômodo.
Em 1976, inflectindo um pouco os termos, Lacan propõe avaliar no
passe não o entusiasmo, mas "a satisfação que marca o fim da análise". O
artigo definido marca bem que ela não é eventual, que sem ela não há fim,
que ela é constitutiva do fim. Ela surge quando cai a satisfação obtida da
verdade mentirosa, eu disse. Seria uma mudança de gosto, uma satisfação
obtida do fora-de-sentido do inconsciente real que viria limitar aquela
obtida da verdade?
Vale dizer que, com esse princípio de avaliação que se refere não ao
efeito didático mas a uma resposta do ser ao efeito didático da análise, esta-
mos muito longe da ideia de que roda análise levada a seu ponto de finitude
produza um analista - entendam: um analista que se interesse pelo Real.
Nenhum automatismo nem do entusiasmo, nem da satisfação de fim. A
variável não-lógica torna o analista apenas possível, para além daquilo que
prudentemente chamamos o clínico.
É preciso medir aí a mudança de perspectiva que Lacan introdu-
ziu, com uma dupla desvalorização: da verdade em proveito do Real, da
A. ,111.:ífise ,,rientada para o real 95
estrutura lógica em proveito da posição do ser. Ela não pode deixar de ter
consequências práticas. O analisando trabalhador é um analisando que se
interessa pela verdade inconclusiva, por sua hystorização com um y, que
é um eufemismo; seria preciso dizer claramente que hystorizar-se e gozar
de sua fantasia é a mesma coisa, daí por que Lacan diz que o analisando
consome gozo fálico e que o analista se faz consumir. Assim, o amor da
verdade aparece como o que ele é, sintomático, e defensivo: a abundância
de tagarelice, o dizer besteiras à profusão mantém-se pela satisfação obtida,
que adia o momento de concluir.
Daí a questão dos meios que se dá uma análise orientada para o Real e da
responsabilidade do analista. Que pode ele que favoreça o movimento rumo
a essa destituição da verdade?
Reencontro aí o problema da sessão lacaniana e também da interpre-
tação propriamente lacaniana. Da sessão curta lacaniana - já falei disso no
texto "Uma prática sem tagarelice" 6 -, direi dela hoje justamente que ela
tem por alvo o Real visado pela análise lacaniana.
A questão não é objetar a Lacan que o inconsciente pede tempo para
se dizer, ele foi o primeiro a declinar isso sob todas as formas; a questão é
saber se o batimento abertura-fechamento do inconsciente que acontece na
transferência é isomorfo à alternância sessão/fora-de-sessão - em outras pa-
lavras, à presença do analista. Toda a experiência mostra que não é o caso.
E, primeiramente, esta, muito banal, do analisando que chega todo
animado à sessão, que, como ele diz, conversou o dia inteiro e a noite inteira
com seu analista e que, mal cruza a porta, vê desabar toda sua lucubração,
ou então permanece quieto ou então se ouve emitir frases totalmente ines-
peradas. Ao inverso, uma sessão vazia costuma desembocar, uma vez cruzada
1' C Soler, "L'ne pratique sans bavardage", novembro de 2003, Colloque de la Fondacion
européenne de pwchanalyse, in Trav,úller avec Lacan, Paris, Aubier, 2007.
06
É isso que permite precisar a satisfação de fim. Ele não troca simplesmente
uma satisfação que seria obtida do Real fora de sentido por aquela obtida
da verdade no processo da associação livre.
Quid, pois, do afeto de fim, a famosa satisfação dessa passagem [passe]
ao real? Satisfação ou insatisfação é o que responde no sujeito a um estado
do gozo, que, este, não é do sujeito e sim do corpo.
Lacan falou positivamente do gaio saber [gay sçavoir], mas é bom não
se enganar. A satisfação de fim, se o Real ali estiver em seu lugar, recusa o
gaio saber tanto quanto a tristeza. Aliás, lendo bem, já se podia deduzir de
Televisão. Por quê? Porque o gozo da decifração, que define o gaio saber,
de qualquer modo, diz Lacan, traz de volta o pecado: em outras palavras,
a recaída na culpa e na tristeza que ela gera ao impedir se achar no incons-
ciente. Com efeito, na decifração, não nos achamos: ficamos numa deriva
sem fim no gozo fálico. Essa afirmação é coerente com a ideia de que o amor
do saber que é a transferência, amor que sustenta a decifração visando o
sentido, não sustenta o desejo de saber. Um fim de análise também é o fim
das alegrias da decifração.
A satisfação de fim se adquire com o uso, uso de um particular, diz
Lacan. Logo, está fora de questão encontrar para ela uma definição que sirva
para todos. Só é possível dizer o que a condiciona e sua função.
Tem a ver com a lógica da linguagem. É essa lógica que faz que,
como usuário do trabalho analítico, eu experimente repetidamente, após
as satisfações obtidas da miragem da verdade e dos instantes de despertar
para o Real, dois limites. De um lado, a mentira da verdade, cedo percebida
por Freud com seu próton pseudos, ou seja, sua impotência em reencontrar
o Real, entendo o real do gozo, tanto quanto em concluir; com ele não
consigo, castração assegurada. De outro lado, o inconsciente sem sujeito
se impõe e me supera, trabalhando sozinho, fora-de-sentido, em cada uma
de suas fixões de gozo.
Podemos precisar os afetos gerados tanto pela corrida à verdade quanto
pelas emergências do rcsR. De um lado. espera, esperança que evoluem no
tempo, de encantamento a decepção: a \·erdade fala mas não vai além de
um semidizer que faz da parte semi-não-dita uma miragem. Do outro lado,
os afetos da emergência do real, de lapso a sintoma, oscilam de espanto no
sentido forte à angústia. Angústia afeto-tipo de todo advento de real.
De que maneira é possível, dessas duas provas reiteradas ao longo da
associação dita livre, não sair na medida em que o sujeitado ali trabalha um
duplo desespero - ou, se preferirem, um desespero duplamente sustentado?
De resto, constatamos isso nos tormentos das fases finais da análise - pelo
menos ali onde o passe coloca a exigência de um fim de análise. Com efei-
to, por essas duas provas mantém-se, à medida que a análise as revela, uma
deterioração da espera transferencial, e conhecemos, por experiência, os
protestos que ela suscita. Entretanto, esses escolhos não levam necessaria-
mente a uma colisão com um rochedo.
_-\_ unâfis~ L... ri~ntadu para o ri2a/ Q9
por certo, uma topologia do objeto a, mas o que a topologia situa de mais
real são os furos. Pelo menos é assim que me explico esta estranha frase de
Lacan que diz que os analistas que só se autorizam por seus descaminhos
- o contrário do analista orientado pelo real, portanto - vão encontrar seu
bem na topologia 9 . Aliás, acho que esse veredicto de insuficiência estava
nascendo na "Proposição" quando Lacan diz: "Saber vão de um ser que se
furtà'. Não se poderia dizer do ICSR, embora insabido, sem sujeito, que ele
se furta, uma vez que não se manifesta na fuga do sentido, mas em moda-
lidades de gozo bem tangíveis.
Ora, creio que a conceitualização desse Real é bem necessária para
situar aquele que triunfa no discurso capitalista, talvez até para pregar-lhe
uma peça. Lacan estava no momento exato, com certeza sabedor de que
o Simbólico não ganha nunca contra nenhum Real e que a alternativa é
jogada entre inconsciente real e real do capitalismo.
Resta, no entanto, a questão do sujeito produzido pela análise para
além do eventual passe final.
o estripador, Sr. Maldito e, é claro, Joyce o sintoma. Daí a pensar que uma
análise visa encontrar o verdadeiro nome próprio é só um passo. Mas é dizer
também que todo sujeito tem pelo menos dois nomes próprios: seu patro-
nímico, do qual sabemos que sempre tem grandes ressonâncias subjetivas,
e seu nome reservado, o de seu ser de gozo.
O patronímico é um nome recebido da genealogia, transmitido. Di-
gamos que ele vem automaticamente do Outro. Aliás, patronymíkos vem de
pater e onoma, como se a língua registrasse a genealogia paterna. Entretanto,
sabemos que essa junção ao pai não é tão geral, há regras matronímicas da
nomeação. Além disso, a prática da nomeação generalizada para todos os
sujeitos é relativamente recente na história, pois durante muito tempo, e
desde a Grécia antiga, o patronímico foi reservado às grandes famílias. Há,
além disso, os casos atípicos em que é o corpo social que nomeia, por exem-
plo, as crianças achadas, ou nascidas sem nome. Como se hoje a obrigação
de declarar o nascimento, de inscrever obrigatoriamente sob um nome cada
criança nascida no cartório de registro civil, tivesse, para além de uma função
de controle social bem evidente, uma função de acolhimento de cada novo
vivente, função de certo modo homóloga sob o ponto de vista laico àquela
do batismo cristão.
Ao contrário do nome comum, cujo referente em geral é uma classe de
coisas, do patronímico se espera que ele indexe uma existência, e uma única,
independentemente de qualquer qualidade além da descendência e ... do sexo.
Com este limite como exceção: o patronímico não é um significante, pois
ele tende a designar independentemente de qualquer atribuição. Certo, um
patronímico pode ter um sentido: Sr. ou Sra. Boulanger [Padeiro J, Meunier
[Moleiro], Beauregard [Belo olhar], e por que não Soler [homofonia com
solei!: sol], que, em sua língua de origem, remete ao solo enquanto que, para
o ouvido francês, é o astro maior! Mas, de qualquer modo, em sua função
de nome próprio, o sentido é elidido.
O prenome que se acrescenta ao patronímico é coisa bem diferente:
ele não é transmitido automaticamente, pois inscreve uma escolha. Por
isso é sempre o estigma do desejo do Outro para com o recém-chegado,
um significado do Outro (s(A)) que traz o rastro de seus sonhos, de suas
expectativas. E quantas vênus, ofélias, marilyns ... a não ser que seja o rastro
_--\ ,111â/ise ,..,r;t:.... nt . .1.../,1 para o real W3
dizem o que ele é, digamos nele mesmo, fora de representação, e que, portanto,
permanece um x. O nome próprio não é precisamente um significante que
representa o sujeito, mas o indicador daquilo que ele é de "impensável", daquilo
que dele não passa para o significante. Os dois nomes desse impensável são,
em Freud, "libido" e "pulsões", em Lacan primeiramente "desejo" e "sinto-
mà', depois o enodamento borromeano específico que define um folasser, o
que ele chama sinthoma. Assim, o nome próprio é mais o nome da coisa do
que do próprio sujeito. E, ao dizer do neurótico que ele tem horror de seu
nome próprio, que ele nada quer saber do que ele é como coisa, Lacan está
reformulando o que Freud chamava a defesa neurótica, fundamentalmente a
distância tomada graças ao significante em relação ao Real.
Em todo caso, o nome "sintomà' é um verdadeiro nome de identidade
na medida em que nomeia a partir de uma singularidade e de uma única.
É o caso nos exemplos que evoquei no início. O que me traz de volta ao
renome. É a palavra para dizer a celebridade. O fato de ser famoso (foma)
remete a uma segunda operação de nomeação, ao "se fazer um nome" embora
já tenhamos um. O nome "renome" consegue o que o primeiro nome não
consegue - a saber, indexar conjuntamente uma existência e seus traços de
unicidade ao enodar o patronímico à singularidade distinta. Difícil consi-
derá-lo um simples "designador rígido", a denotar uma existência sem nada
conotar de sua especificidade; ele é antes o único a poder fixar identidade
singular. Como chamar essa singularidade, que ela se manifeste nas obras
ou nos fatos notáveis, bons ou maus, a não ser singularidade sintoma? Sob
condição, evidentemente, de reter a última elaboração de Lacan que no-
meia sintoma não a anomalia, mas o enodamento próprio a cada um que
faz ficarem juntos corpo, gozo e inconsciente. Logo, renomear-se sempre
tem uma função borromeana, e é por ela que um sujeito assina com sua
assinatura infalsificável. Como prova, Joyce.
Para ele, há, no entanto, uma especificidade de seu nome sintoma
- genialidade deixada de lado. Lacan não disse Joyce, as línguas, ou "a
elangua"*, como ele se exprime no seminário de 18 de novembro de 1975.
Teria sido nomeá-lo por sua relação sintomática com a linguagem, de estilo
antes maníaco, tal como ele culmina na escrita de Finnegans "Wake. Com
"Joyce o sintoma", ele nomeia não o sintoma que ele tem, mas aquele que
ele é - a saber, o fato, cito, de "cumprir-se enquanto sintomà' 12 , com o que
o infinitivo "cumprir-se" implica de tempo, de esforços persistentes assin-
toticamente na direção de seu ser sintoma, esse ser sintoma que consiste,
para ele, em se renomear e em assim assumir a função borromeana ao ponto
de suprir a carência de seu pai. Ao assim fazer, à série dos Nomes-do-Pai
ele acrescenta um, "o filho necessário" 13 , que não cessa de se escrever e que
renomeia "o espírito incriado de sua raçà'.
Quero interrogar o fundamento daquilo que leva Lacan nos anos
1975 a deslizar do Nome-do-Pai ao Pai do nome, pois não penso que seja
apenas o gosto pelo jogo de palavras que o inspira. O "fazer-se um nome",
que parece deixar toda a carga do nome ao próprio sujeito, não deve nos
impedir de ver que não há autonomeação, o que quer dizer que um nome
próprio, ainda que sintoma, sempre é solidário a um laço social. De qual-
quer modo, para isso é necessário, por certo, o que vou chamar a oferta à
nomeação, ou seja, a colocação do sujeito. Mas vejam o Homem dos ratos,
o caso de Freud: pode-se dizer que "rato" vem de seu inconsciente como
o nome de um gozo alojado em sua relação fantasmática com a dama e
o pai, mas é preciso Freud para designá-lo como o Homem dos ratos e
lhe dar, assim, seu nome de entrada na análise. Da mesma forma, Joyce
o sintoma é Lacan quem nomeia. Aliás, de fato também é o caso para o
nome que ele primeiro deu a si mesmo: o artista, que, para ser, teve de
ser homologado pelo público - digamos: o século. Na falta desse laço,
ele teria sido apenas o megalomaníaco que Yeats percebera nele quando o
encontrou em sua primeira juventude. Vale dizer que o nome está à mercê
do encontro incalculável. Logo, ele participa, em parte, da contingência
- assim como o amor.
Quem dispõe do poder - é um poder - de nomeação? Uma vez que
a contingência está em jogo, o poder de nomear é relativamente disperso.
1" J. Lacan, "Foncrion er champ de la parole et du langage", Écrits, Paris, Le Seuil, 1966, p.
300.
1' J. Lacan, L'angoisse, Paris, Le Seuil, 2004, p. 390.
1" P Claudel, Parrage de midi, Paris, Gallimard, "La Pléiade", 1967, p. 1005.
108 L a e a n , o i n e o 11 sei e n t ,z re i 11 e L' a Ít.? Jc.1
* Em francês: ... à la fois nouanc et nou(s)anc. jogo com no!!s. pronome pessoal nós. ('.\'.T.)
~---\. t.7 n â /is 1.:1 l1 ri L 11 t L7 d L7 ,_, L7 r u o r e o/
,- C. Soler, "Les innrianrs de l'analyse finie", julho de 2004, Buenos Aires, in Hétérité, revue
de 1'1,-EPFCL, nº 5.
110 Lacan, o inconscie11le reinuentado
de L~can sobre esse ponto, no entanto trazido por fórmulas diversas, que
vão do "tu és isso" do texto de 1949 sobre o estádio do espelho à famosa
identificação com o sintoma dos anos 1975.
"Tu és isso".
1949, o que ele chama "Meus antecedentes", Lacan termina seu texto
dizendo que a análise acompanha o paciente até, cito, "o limite extático
do 'tu és isso"' 18 • Se isso não é uma fórmula de identidade, o que é? E de
identidade de separação, como indica o termo "extático".
Na década seguinte, é a famosa "assunção do ser para a morte" cujas
ressonâncias patemáticas ocultam a verdadeira estrutura. Uma vez que a análise
é então definida como a restituição da cadeia das falas constituintes do sujei-
to, poderíamos crer que a noção de intersubjetividade desenvolvida nos dois
grandes textos prínceps, "Função e campo da fala e da linguagem" e "Variantes
da cura-tipo", só deixa subsistir uma identidade alienada. Mas é precisamente
em relação a esta que a morte é convocada por Lacan: como um "centro exte-
rior à linguagem" - em outras palavras, real - e, mais precisamente, como um
paradoxal ponto-de-estofo real. E Lacan convoca o sujeito que, cito, "diz não",
não às agregações do Eros do símbolo, não à cadeia em proveito de um "desejo
de morte", do qual ele declina as três formas maiores, que não se confundem
com a pulsão de morte, mas que indicam, e Lacan diz isso de modo explícito,
que o ser para a morte é "afirmação da vida", a única verdadeira, segundo ele,
aquela que inscreve o ser próprio, único. A subjetivação do ser para a morte é
aqui concebida como uma instituição da diferença única. Ela passa ao ato no
suicídio de Empédocles, do qual Lacan fará mais tarde o paradigma da iden-
tidade de separação e que dá o modelo de um ato pelo qual o sujeito enfim se
torna idêntico a si mesmo. Não estamos longe do célebre verso de Valéry: "Tal
como nele mesmo enfim a eternidade o transforma''.
Destituição.
Resta a famosa "destituição do sujeito" da época do passe, cuja ver-
dadeira natureza é difícil desconhecer, pois Lacan foi levado a precisá-la ele
próprio, notadamente em "O discurso na EFP" de dezembro de 1967. Ao
contrário do que o termo "destituição" conota, não é uma negativação e sim
uma positivação. Ela só é concebível relativamente à instituição do sujeito
suposto ao saber que é toda entrada em análise. Mas esta só institui o sujeito
como falta-em-ser, x do desejo, enigma da indeterminação, tão irredutível
pela cadeia significante quanto o recalque originário de Freud. É a esse não-
identificável que a destituição dá sua identidade por equivalência do S e do
objeto, este último sendo o único a responder ao "que sou eu?" de entrada.
É a não-identidade do sujeito suposto à cadeia que é destituída.
Entretanto, essa identidade objetal é paradoxal. Com efeito, uma vez
que o objeto, apesar de sua consistência corporal a um só tempo imaginária
e real, não é um objeto da realidade, apreensível nas coordenadas da estética
kantiana, a identidade pela causa do desejo é uma identidade irrepresentável.
Ela não tem representante. A destituição faz ser aquele que era falta-em-ser,
ela determina aquele que estava indeterminado, ela faz isso pelo objeto-causa
que decide seu desejo - é isso que quer dizer decidido e era isso também que
Freud dizia com seu desejo "indestrutível", penso-, mas esse objeto-causa
permanece não representável. E, ao termo de toda elaboração, Lacan solta
seu veredicto, que pode ser mal interpretado, de\'e-se dizer: "Saber vão de
um ser que se furta" 2º.
Logo, uma identidade de separação, mas que se furta. Não estamos
longe do limite extático de 1949. Tu és este objeto que não está significanti-
zado no Outro - separação-, tu és isso que não cessa de causar todos os teus
ditos e atos - constância - mas que nenhum dito representa, que nenhum
ato estanca e que, portanto, só se manifesta em ato. Nada espantoso que
logo depois seja o seminário sobre o Ato!
20 J. Lacan, "Proposition sur le psychanal~·ste de l'École", Scilicet 1. Paris, Le SeuiL 1968, p. 28.
113
e foi mal compreendido por seus primeiros alunos. Estes elevaram a páthos,
e, com isso, a ideal, sucessivamente, a falta, a castração, o des-ser, a desti-
tuição, sem esquecer, é claro, o não-saber. Daí a estupefação quando viram
aparecer a identificação com o simoma, que, no entanto, apenas colocava
o derradeiro ponto-de-estofo na tese presente desde o início. Desse mal-
entendido o próprio Lacan deu o diagnóstico ao evocar os analistas "que só
se autorizam por seu extravio".
Ora, sem essa tese fundamental do fim por identidade de separação,
como aceitar um fato clínico maciço - no qual, aliás, os inimigos da psi-
canálise não perdem a oportunidade de insistir -, falo do fato de que estes
que são ditos analisados, para quem a análise às vezes mudou tudo, pois
bem, estes, no entanto, num certo nível, permanecem os mesmos, além
disso endurecidos?
Esse tempo excessivo para compreender tem inconvenientes. Clínicos,
é claro, mas não só, na medida em que a concepção do fim da análise tem
um impacto político decisivo.
Desde o início, falando da psicanálise, Lacan colocou que "a ética
não é individualistà' 21 e que traz a contrario efeitos da civilização atual.
Relendo o conjunto desses textos, fiquei impressionada com o número de
observações virulentas feitas à época e que se aplicariam perfeitamente a
este início de século XXI. Rapidamente: tempo de galera social, barbárie
do século darwiniano, produzindo vítimas comoventes: é "A agressividade
em psicanálise" 22 ; objetivação do discurso que cassa o sentido do sujeito: é
"Função e campo da fala e da linguagem", depois as éticas do supereu e do
terror: são "as Observações sobre o relatório de Daniel Lagache". A propo-
sição de 1967 sobre o psicanalista da Escola, prognosticando um futuro de
segregação pelos campos, dispenso o resto, até ''A terceira", que nos reconhece
todos proletários, não tendo mais nada para fazer laço social.
Paralelamente a cada um desses diagnósticos, a missão da psicanálise
é redefinida: ''Abrir novamente a via de seu sentido numa fraternidade dis-
creta [... ] à vítima comovente" 23 ; porque "a satisfação do sujeito encontra
meios de se realizar na satisfação de cada um" 24; saída das éticas do supereu
pelo silêncio do desejo 2"; e depois, fazer servir sua castração, "Subversão
do sujeito e dialética do desejo", subtrair-se ao "rebanho", sair do discurso
capitalista, Televisdo, e, enfim, opor-se ao real - entendo: o real do sintoma
social proletário, '~,-\ terceira''.
Vemos que, em todos os casos, e seria preciso acompanhar esse en-
caminhamento mais em detalhe, a finalidade prescrita vai no sentido de
restituir um laço social para além da resolução da alienação ao Outro que
a análise procura produzir.
Quanto a esse ponto, o que acontece com a identificação com o sintoma,
que concentra o mais íntimo do gozo autista? Ela não multiplica o individu-
alismo forçado e a derrelição do proletário moderno? .\lguns se perguntaram
como, passado o ano 2000, e uma vez que os sujeiras de hoje \-iwm às voltas
com os Yalores do capitalismo, como ainda se poderia querer "alcançar em
seu horizonte a subjetividade de sua épocà' como Lacan preconizava para o
analista no fim de "Função e campo da fala e da linguagem". É que os mesmos
devem ter pensado que a identificação com o sintoma era homogênea ao regime
daquilo que chamei o ''narcinismo" generalizado de nosso tempo. Acho que
aí está o erro. O sintoma social do "todos proletários", que globaliza a relação
conforme de cada um com os produtos do mercado, é disruptiva do laço social,
estabelecendo apenas wn único laço, muito pouco social, de cada um com os
mais-de-gozar prescritos. Não é o caso do sintoma fundamental- ou, melhor,
do sintoma que de modo algum exclui o laço social se ele for, como vou mos-
trar, sintoma borromeano, que enoda para cada um, de modo singular, jamais
global, o desejo e os gozos, o Imaginário, o Simbólico e o Real.
684.
116 L a e a 11 , o i 11 e o 11 s e i e n t e r e i 11 i· t! 11 ta Jo
esteja ausente em fim de análise, saibamos disso ou não. O que não exclui o
efeito terapêutico. Ele consiste em modificar uma parte de sintoma, aquela à
qual é possível dar sentido através da decifração. Vejam o caso paradigmático
do Homem dos ratos: ao fim da decifração, sua obsessão desaparece, mas
o sintoma fundamental de sua relação com o parceiro sexual não está nem
resolvido nem elucidado.
Esse sintoma não é qualquer um. No início e no decurso da análise,
estamos às voltas com sintomas plurais, múltiplos e variados, que criam
empecilhos às conformidades regradas pelos discursos estabelecidos. Ao
contrário, o sintoma no singular é aquele que estabelece laço ali onde pre-
cisamente não há laço social estabelecido e, pois, no "campo fechado" da
relação com o sexo ou com os diferentes objetos que podem tomar o seu
lugar - em outras palavras, nos "assuntos de amor" - que Lacan podia di-
zer em Televisão que eles estão clivados "de rodo laço social escabelecido" 2('.
Vale dizer que, da mesma forma que o esquizofrênico enfrenta seus órgãos,
e até mais, sua vida, sem o socorro de um discurso estabelecido, da mesma
forma rodo jàlasser enfrenta sexualmente o Outro do sexo sem o socorro de
um discurso estabelecido. O sintoma supre. Nesse nível, cada um é sem-
igual. Chamei esse sintoma de sintoma fundamental por analogia com a
fantasia fundamental. Também poderia dizer: sintoma derradeiro, já que
é ele que supre no campo do gozo a derradeira palavra que falta no campo
da linguagem.
A análise vai necessariamente do sintoma de entrada ao aperfeiçoa-
mento do sintoma de saída e impõe, portanto, a questão de saber, em cada
caso, o que é, no fim, a posição do sujeito para com seu sintoma fundamental,
o que ele sabe disso e o que disso suporta. Ao dizer que aquilo que se pode
fazer de melhor é aí se identificar, Lacan evidentemente deixa entender que
existem outras possibilidades ... piores.
Assim, exploro as alternativas. E, antes de mais nada, as alternach·as
excluídas. Com o sintoma borromeano não se pode dizer: ou o sintoma ou
o desejo, tampouco: ou o sintoma ou o laço social, como às vezes se ouve.
É um sintoma que faz laço entre os seres ao estabelecer um enodamento
entre gozo e desejo, entre Real e semblantes. É inexato pensar, como às vezes
se ouve dizer, que as últimas elaborações de Lacan tornam caducas as teses
sobre o sujeito da falta e do desejo.
C'm sintoma que faz o laço social específico entre os corpos inclui o
desejo e a fantasia que o sustentam. A tese se deixa ler claramente quando
Lacan, em seu desem·ol-vimento sobre o que é um pai que sustenta a função
Pai, sima sua mulher parceira a um só tempo como causa de seu desejo e
sintoma de seu gozo. ;\'ão podemos mais opor o Eros do desejo. que seria
socializante. pois que assegura a relação de objeto, e o sintoma. que seria
associal, recuo para o gozo próprio. É verdade que existem sintomas autis-
tas, mas igualmente desejos sufocados, igualmente associais. que es,·aziam
a relação com o outro de sua substância e que sáo relatiYamente bem ilus-
trados, sem ir buscar muito longe, pelo fechamento obsessivo e pela busca
aniquiladora da histeria.
Tiro daí uma primeira conclusão: a questão é apenas saber, para cada
caso, que tipo de gozo está ligado a que causa do desejo. Lacan respondeu
claramente à questão no que se refere ao sintoma-Pai, à versão pai da perver-
são. Existem outras wrsões, é claro: as dos sintomas celibatários desabonados
do outro sexo; as da gama dos sintomas heterossexuais não-pai, que, até o
rnlmen das tentações donjuanescas, bem querem mulher, mas não mãe.
Segunda conclusão: a oposição da "travessia da fantasia'' e da identi-
ficação com o sintoma deve ser repensada. É verdade que, na cronologia de
seu ensino, Lacan primeiro acentuou a crawssia da fantasia que faria surgir
para o sujeito seu ser de objeto e que sua concepçáo do momento do passe
é construída a partir daí. Mas a identificação com o sintoma. solidária ao
inconsciente real, não a recusa, ela a engloba e a completa. :\"ão as oponha-
mos a pretexto de trazer novidade a qualquer preço.
Alternativas: identificar-se com seu sintoma é a alternariYa a uma
outra identificação, a identificação com o Outro, O maiúsculo, em suas
diferentes ocorrências, ainda que seja a famosa identificaçáo final com o
analista promovida pela IPA. Numa análise que o sujeito demanda por estar
sob o peso de identificações incômodas - a percepção subjetiva do sintoma
sendo relativa às identificações-, com essa identificação final lhe é dado por
objetivo retificar essas identificações em favor de outras supostamente mais
118 La e 1.111, u ; n e o n sei e 11 t t2 rei n t' 1_; n t t.1 Jo
27 C. Soler, "Leçon clinique de la passe I'', Comme11tfi11issent les analyses?, Paris, Le Seuil, 1994,
p. 181.
..---\ a n â /is~ . ., ri ,z 11 t <.1 Ja par a o r e a/ 121
'' C. Soler, "Les deux amours", março de 1999, Journées des FCL.
122 Lc..1cc111, o inccinsc;ente r2inc.::ntad'-1
identificação com a função pai? Nesse caso, é preciso dizer: passar sem o
pai sob condição de se servir do sintoma... pai.
É evidente que as questões de clínica diferencial também se colocam
de acordo com os sexos. Como poderia ser de outro modo, uma vez que,
do lado mulher, não existe versão mulher da exceção? Em outras palavras,
não há exceção-uma que dê um modelo de solução para a castração. Tomo
aqui a palavra "modelo" no sentido em que Lacan a entende para o pai,
mas como modelo da função. O modelo da função, para uma mulher, está
necessariamente do outro lado, vai do homem a Deus, com a questão de
saber, para cada uma, se esse parceiro fundamental está mais no registro
da versão Pai, é aquele do amor limitado, com ou sem a greve do corpo da
histérica2 '', ou, se dele se afasta, flerca do lado do Outro ilimitado e opaco
da mística. Estranhamente, a famosa devastação ocorre mais no primeiro
caso, isto é, na mulher acasalada a um sintoma pai, e observo que os(as)
místicos(as), contanto que nos deem seu testemunho, não são devastado(a)s
- masoquistas tampouco, acho. Talvez seja precisamente porque, ao se faze-
rem sintoma de um Outro divino no qual se aniquilar, esses(as) místicos(as)
não encontram a objeção do limite fálico.
Restaria, enfim, ser retomada a questão do tornar-se analista, já que
o analista também é levado a emprestar sua presença e, portanto, também
seu corpo como sintoma. Para ele, como para a mulher, falta um modelo da
função. É verdade que tudo indica que o analista é bem tentado, na falta de
alguma versão-tipo do analista-sintoma. a se:> prender à versão pai, sobretudo
quando for homem. Freud já tiYera o mérito de perceber e formular esse
problema. Entretanto, não há versão-ripo do analista-sintoma assim como
não há versão mulher. E, como esta última, o analista se empresta ao outro,
o analisando, fazendo-se sintoma ... mas transitório, esperemos.
A tese é formulada, como sabem, no seminário sobre Joyce e relança
a questão daquilo que pode bem estimulá-lo a isso. Para a mulher, a questão
não se coloca, pois por serem sintoma seus benefícios de gozo parecem bem
evidentes; mas, para o analista que, como o santo, supostamente não deve
gozar de sua função, a questão deveria obsedá-lo. Acho que ela obsedan
Lacan. Muitos problemas éticos e clínicos aí se colocam.
Primeira apori,1
sr, O que Lacan nomeia alienação no Semi11drio XI é outra coisa, que não se deve à precedência
do discurso do Outro. mas à estrutura da linguagem, a qual impõe uma escolha forçada
implicando, de qualquer modo. uma perda.
]. Lacan, "Du Trieb de Freud'', Écrits, Paris, Le Seuil, 1966, p. 853.
72(1 L a ea 11 , o i 11 e o n s e i t? n t '-~ 1· e i n e .;: n t t1 J . .,
"o desejo é incompatível com a fala" 32 , que ele no entanto obseda e que,
numa via mais lógica, podemos dizer que o sujeito, uma vez que é suposto
a um significante que o representa mas não o identifica, como sempre vale
menos-um na cadeia da linguagem.
Se fosse a última palavra, a psicanálise não responderia à questão de
entrada, por causa de incompatibilidade do instrumento linguageiro utili-
zado, e somente traria o analisando de volta a seu desnudamento essencial.
Só que não é a última palavra, justo a primeira.
Onde encontrar um princípio de identidade, se a linguagem for
imprópria para a identidade? Em nenhum outro lugar que naquilo que,
da experiência, não for linguagem. E, de fato, o sujeito não é o todo do
indivíduo. Ele é efeito da fala, mas o indivíduo, este, tem um corpo, um
corpo a gozar, a distinguir do sujeito. Logo, é do lado do sintoma que se
pode buscar a solução.
-" J. Lacan, "La direction de la cure", Écrits. Paris. Le SeuiL 1966. p. 6'--11.
~---l .::z n á fi ~ ~ L--i ri e n t c.i J. .1 par c..1 e) r,.: a/ 127
de gozo, suplementa a relação que está foracluída para todos. Não há re-
lação sexual mas há o sintoma, modalidade linguageira de gozo, própria
a cada um. Cm gozo fixado, determinado por um ou vários elementos
do inconsciente-linguagem, esses elementos que procuramos decifrar na
análise. A.inda é preciso não esquecer a incidência dos dois inconscientes
que distingui e diferenciar os sintomas do inconsciente verdade e os do
ICRS. O nó borromeano os enoda, e cada um traz gozo: para o primeiro,
gozo do sentido, digamos: da fantasia; para o segundo, gozo dos uns en-
carnados a acampar no campo do Real 33 •
R s
Se9u11da aporia
ao Yerbo. Lacan escreveu sua estrutura no seminário "Rsr" como uma função
da letra uma. Ora, a letra, diferentemente do significante, se caracteriza
pela identidade consigo mesma. Assim, a identificação final com a letra do
sintoma parece resoh-er, como evoquei, o inefável do "tu és isso".
Daí um possí,·el programa a ser proposto aos analisandos: "encontra
a letra de teu sintoma''. Vimos, e ouvimos repetidamente, em certas tribu-
nas, o simpático eureca de analistas recém-formados pelo passe de antes da
cisão de 1998 a anunciar: encontrei a letra de meu sintoma. Só podemos
lounr os esforços da boa rnntade, de resto patética por ser induzida por
pressão de grupo. ,\fas como não perceber, em cada caso, a dimensão ir-
risoriamente "lucubrada", para retomar a palavra de Lacan, desse troféu,
talYez até desse fetiche, e a mentira organizada sobre a parte de opacidade
jamais reduzida?
É que esses eurecas esquecem de coordenar a tese do ICSR com a tese
da identificação com o sintoma. lv1as, se a isso nos aplicarmos, cessaremos,
então. de nos espantar por Lacan conYocar não um saber de alíngua, mas
um "saber se virar" com allngua. É justamente o correlato do não saber do
Cm encarnado no inconsciente-alíngua. Não é que não haja certeza quanto
ao Real, mas ela se refere à presença do elemento gozo, ao eu sou a minha
modalidade de gozo, não ao um que o fixa e que pode não cessar de ser
"indeciso'' para aquele que dele é o suporte. Eu sou a letra do meu sintoma,
é verdade, mas só o abordo a título hipotético. Digamos mais positivamente
que o inwmo por cruzamentos diversos para abordar os efeitos de alíngua.
O que os sujeitos têm de mais real são seus sintomas, diz Lacan; não é só
porque esses sintomas são gozo, mas também porque alíngua que "civiliza"
esse gozo é ela própria, como eu disse, real, a-estrutural, e o Real não é feito
para ser sabido.
:vledimos o quanto essa perspectiva é mais conforme à experiência
efetiva dos analisandos que conseguem terminar suas análises? Existe um
só que possa pensar ter reduzido por completo a opacidade de seu ser? Para
isso, teria que ter acenado suas contas com o inconsciente.
CLÍNICA RENOVADA
E3TATCTO D03 GOZ03
2 DIZER DE FREl'D
* Em francês,)' a pastem duplo sentido. Pode ser a afümaçáo [i!j _r .1 p,zs = há passo. bem como
a negação, ali suprimida, como no francês coloquial: [il n J _rapa.; = não há. (:\'. T.1
l .... / i n ; e L7 r.: n o l.' L7 JL1 135
é ela que está em questão na expressão "não-relação sexual". Esta não visa
nem o desejo nem o amor, mas o corpo-a-corpo do ato e o gozo que lhe é
próprio no orgasmo - única emergência de gozo, à exceção do sintoma, a
vir no espaço do sujeito, se acreditarmos em Lacan.
Freud viu bem que o casal sexual nada tinha de evidente e que, com
a descoberta das pulsões, sua possibilidade se tornava um problema teórico
a ser resolYido. As notas acrescentadas ao longo dos anos a seus Três ensaios
sobre a teoria da sexualidade são com toda evidência testemunhas disso. Sua
solução é o recurso ao Édipo, às figuras do casal parental indutoras de con-
dutas por identificação e aos efeitas separadores da ameaça de castração.
Lacan, aparentemente, não diz não. O texto de 1964, "Posição do
inconsciente", mostra isso. O texto coloca que a sexualidade, em sua relação
com o inconsciente, se reparte em dois lados, o lado do vivente e o lado do
Ouuo 1• Este último é o do Édipo freudiano, de seus significantes ideais e
das identificações às quais ele preside. É o espaço da "ordem e da normà'
- em outras palavras, dos semblantes do homem e da mulher, do significante
fálico e do pai. O lado do vivente é o do corpo-a-corpo do ato e do gozo
que ele implica.
Toda a questão, porém, é saber onde colocar a castração a que Freud
dá tanta importância e como concebê-la. É aí que Lacan se afasta de Freud,
para quem o complexo de castração está do lado do Édipo: castração por
causa do pai. Para Lacan, a partir pelo menos do seminário A angústia ( 1962-
1963), seja qual for a pregnância do imaginário do pai castrador, a castração
é sem o pai, uma vez que a função do pai é outra. A castração real começa
do lado do vivente marcado por alíngua e é castração de gozo. É o que diz
seu mito da lâmina que ''Posição do inconsciente" substitui tanto ao mito
bíblico quanto ao mito edipiano. É um mito não só sem o pai, mas, posso
dizer, sem o Outro da linguagem. Ele pretende mitificar os enigmas da vida
na medida em que ela se reproduz pelas vias do sexo ao preço de uma perda
de vida, que é ilustrada pela mortalidade individual e que fundamenta o
vetor da libido, libido na qual Lacan inclui até o mundo animal sexuado.
Daí sua referência à etologia que ele põe em paralelo com a histeria. Um
passo é dado apenas em relação à dialética da falta fálica pela qual, nos anos
1958, ele explicava o casal. Trata-se, desta vez, da libido na medida em que
ela busca um complemento de gozo através das pulsões parciais. E eis a
conclusão quanto ao próprio ato sexual, cito: "Não há acesso ao Outro do
sexo oposto a não ser pela via das pulsões parciais nas quais o sujeito busca
um objeto que lhe reponha essa perda de vida que é a sua por ser sexuado" 2 •
Ela de fato coloca a homologia do gozo do sintoma e do orgasmo sexual.
Ai, já estamos bem num mais além de Freud.
Quanto à dita genitalidade, Freud se interessou por seus malogros
sintomáticos: frigidez, impotência, disjunção do amor e do gozo no rebai-
xamento, insensibilidade masculina, etc. Mas para seus "êxitos" quase nada
em toda a sua obra. Não há teoria do casal dos corpos, apenas algumas
indicações esparsas que, evidentemente, deveriam ser levadas em conta para
nuançar o que afirmo. Escolho, primeiro, aquela que evoca o gozo do ato
como o summum dos gozos. Ela indica o quanto Freud distinguia esse gozo
da "brevidade do gozo autoerótico'', embora os dois passem pelo mesmo
órgão. Além disso, há todo o seu questionamento sobre o que das pulsões
parciais pode ou não se integrar ao prazer preliminar do ato. Enfim, suas
observações sobre o obstáculo que é o respeito pela mulher. Nada sistemático,
porém, e ainda menos consistente, nem sobre o que condiciona o orgasmo,
nem sobre sua função.
A RELA(,\.0 31:\'TO,\l.'\
A tese de Lacan trata do ato sexual e vai bem mais além. Não identifica a falta
da relação sexual e os malogros sintomáticos do ato, pois, ao contrário, coloca
que é o êxito do ato que faz a relação malograr. Cito Televisão, onde ele diz:
"Esse malogro em que consiste o êxito do ato"'. Aliás, a tese já está explicita-
mente presente no seminário A angústia nas numerosas passagens dedicadas
ao orgasmo e à identidade de seu êxito com o fracasso da relação.
Jbid.
J. Lacan, Teléuisio11, Paris, Le Seuil. 19 7 3. p. 60.
c. . línjcu r.2n ...,l:t.1d(1 137
X Jogo homofônico: La dite fémme [a <lira mulher] e on la diffame [é difamada] soam também
on la ditfemme [dizem que ela é mulher]. (N.T.)
138 La e c1 11, o ; Jl e o 11 se ; ,,; ,1 te r.;: i 11 i· t? 11 ta J Q
A teoria clássica percebeu bem que a fantasia estava em jogo naquilo que cria
laços eróticos com o semelhante, uma vez que o objeto da fantasia suporta
a dita "relação de objeto". Entretanto, é certo que esse laço de desejo em
nada assegura a resposta do gozo. O sintoma, emergência do inconsciente
real. é "um acontecimento de corpo". O termo "acontecimento" conota
o não programado de uma manifestação de gozo que se impõe ao sujeito
que a sofre. O orgasmo ilustra isso no nível do casal, e dizer que o parceiro
]. Lacan. "'Compre rendu du séminaire La logique du famasme", Omicar?, 29, Paris, Navarin,
1984, p. 16.
C. Soler, Ce que Lmm disait desfemmes, Paris, Le Champ Lacanien, 2003.
Ver mais abaixo.
142 Lacan, a inconscient..z reinrentado
ficado por ali, então sim, teríamos tido uma identidade sexuada puramente
Outrificada, se posso dizer: entre os semblantes, de um lado, e as pulsões
parciais em si mesmas assexuadas, do outro, não havia lugar para o sexo ...
real. É o que ele corrige a partir das fórmulas da sexuação. A diferença dos
sexos não é de semblante, ela de fato se inscreve no Real, pelos dois modos
do gozar já evocados. O enrolo, evidentemente, em todo caso a complicação,
bem marcada em Mais, ainda, é que esses dois modos, por mais reais que
sejam, nada têm de natural e vêm do ser de linguagem.
A escolha do sexo é a do gozo, mas no sentido subjetivo, ao ponto
que seria possível quase dizer que é ele que escolhe; ali onde ele responde,
e nas formas em que responde, todo ou não-todo, ele faz lei ... sexual. Diria
eu epifanias (com ums) do Real no espaço do sujeito? A tese de Lacan só
era aparentemente paradoxal, mas é verdadeiramente sardônica.
Com efeito, esses sujeitos, se se autorizam, é por um si mesmos que
por certo está muito próximo deles, tão próximo quanto o que eles são
como corpo, mas um si mesmos que não é nem o eu [moi] nem o sujeito
propriamente falando. Não há aqui o menor livre arbítrio, nenhuma liber-
dade de indiferença, está fora de questão escolher esse íntimo tão êxtímo.
Foi ele quem já nos escolheu e, por mais de longe que fale, é ele quem nos
faz falar. O Real comanda o dizer da verdade 11 • Logo, é no que dissermos,
mais precisamente é no nosso dizer - tal como definido por Lacan - que ele
será reconhecido. O que quer dizer, entre parênteses: inútil algo esperar ali
do testemunho, que hoje está na moda. É esta a maldição genérica cono-
tada pela fórmula dos sexuados que se autorizam por si mesmos. Quando
digo "genéricà', quero dizer que ela é para todos os falasseres. Como veem,
estamos longe, muito longe da ilusão de Foucault. Que margem de escolha
resta para aquele que diz eu [je]? A margem da posição que ele vai assumir
em relação àquilo que o escolhe. Rejeição, consentimento, paciência, en-
tusiasmo, são muitas. É um outro capítulo. A noção de identificação com
o sintoma é parte dele.
º estatuto do gozo que não escreve a relação sexual muda a função da-
quilo que chamamos sintoma. Se todo gozo pode ser dito perverso, e
para todos, não se deve dizer: todos perversos, o que não acrescentaria nada,
exceto a complacência. Mas se, por outro lado, esse gozo está por toda parte
deslocado na série dos signos que o veicula e na qual é decifrado, constituinte
da realidade até dos laços sociais, é preciso extrair a especificidade do sintoma
enquanto formação de gozo, e o que o determina dos dois inconscientes.
Com efeito, o sintoma não é qualquer formação decifrável do incons-
ciente. Sonho, lapso, ato falho são pontuais, embora por vezes repetidos, mas
o sintoma, por sua constância e sua fixidez a um só tempo gozosa e incômoda,
se excetua dessas emergências efêmeras. Ele se excetua tanto da cifraçáo do
inconsciente e da deriva metonímica da fala que não cessam de deslocar o gozo
castrado quanto do mais-de-gozar. Diferentemente deles, ali onde a linguagem
desloca na série dos signos, o sintoma ancora, fixa, faz fixão.
Lembro, Lacan escreveu em "Rs1" a estrutura dessa exceção sintomática
como uma função da letra: fix), f sendo a função gozosa, x um elemento
qualquer do inconsciente tornado letra gozada, letra que, a contrario do
significante, se caracteriza pela identidade de si a si. O que conduz Lacan a
dizer que o sintoma é "a maneira como cada um goza de seu inconsciente" 12 •
Mas maneiras existem várias e podemos ordená-las. A perversão generalizada
Corpo de gozo, mas não qualquer um. Não é toda mulher que é sintoma
para um homem, apesar do sonho, bem feminino, de Don Juan. Portanto,
um corpo eleito através do inconsciente. Dito de outra maneira, para um
homem uma mulher é uma formação de seu inconsciente. Não é o caso de
todo parceiro? O que nos mostra, por exemplo, a obsessão do Homem dos
ratos? É verdade que ela ocupa o segredo de sua solidão, obseda sua intimidade,
mas ela não é autista: é verdade que o rato é metonimizado sob formas que
Freud detalha, mas a obsessão só o convoca enodado aos significantes do pai
e da dama e às representações de corpo no roteiro do suplício.
Dele se pode dizer, por um lado, o que Lacan diz de todo sintoma,
que ele assegura "selvagemente" o gozo de uma letra do ICSR, letra que ele
torna manifesta, nesse caso; por outro lado, que, por incluir a fantasia e sua
verdade, ele a enoda ao sentido, ou antes, ao joui-.,r:n., '_gD::o-do-se;zúdo].
Evidentemente, no percurso dessa elaboração, o sin:orr.a mudo11 de
sentido. Classicamente sinal de algo que cria problem;1, que Ll chJ.:Te:1105
doença ou não, para a psicanálise ele é também um sinal, mas de uma cio.:nç.,
genérica do sexo, do lado perturbado da sexualidade que Freud percebeu
bem no fim, e cuja fórmula é dada por Lacan. Com isso, ao mesmo tempo
que endossa, insisti nisso, ele também é resposta e solução, sempre singular,
à carência que, esta, é geral. E, por esse fato, igual ao inconsciente que a
análise não reduz, o sintoma se encontra no final de uma análise, transfor-
mado com certeza (efeito terapêutico), mas como aquilo que não cessa de
se escrever, para cada um, do respondente de gozo que lhe é deixado por
sua castração.
não o são, e que faz de cada um "um esparso, disparatado" 14, conforme a
bela expressão de Lacan no "Prefácio à edição inglesa do Seminário X!', a
letra fora de sentido sendo homóloga ao fenômeno esquizofrênico de base.
Este trata as palavras como as coisas, a se crer em Freud, e para ele "todo o
simbólico é real", ou seja, fora de cadeia e fora de sentido.
Lacan polemizou muito contra os partidários do núcleo psicótico
introduzido por Melanie Klein, mas é que ela o homologava à fantasia do
corpo materno, a qual supõe a relação com o Outro. É preciso colocar a tese
sob a influência do inconsciente real: ele vem de alíngua fora de sentido e
não se prende necessariamente à fantasia.
Com o nó borromeano, Lacan traduz novamente o "fora de discurso"
da psicose que implicava o fora de laço social em termos de não-enodamento.
O ICSR que faz o núcleo do sintoma adiciona um elemento de linguagem
e gozo, entre Simbólico e Real, portanto, mas ele não se enoda de modo
necessariamente borromeano ao Imaginário para fazer laço social.
Em consequência, o campo clínico se divide entre os sujeitos cujos
sintomas são tudo no inconsciente real- digamos: os do esquizofrênico puro,
caso exista, fora de laço, fora de sentido e cujo Imaginário está desatado - e
aqueles que não são tudo pois há para eles o que Lacan nomeou sinthoma,
ou seja, um enodamento desse Real ao inconsciente-fantasia, entre Imagi-
nário e Simbólico.
Mas ... há o caso Joyce.
14 J. Lacan, "Préface à l'édirion anglaise du Semínaire )(.!", A.urres écrits, Paris. Le Seuil, 2001,
p. 573.
15 J. Lacan, "La méprise du sujer supposé sarnir", Scílicet 1, Paris, Le Sei.:il, 1968, p. 39.
("/rnica r,2,n ...,1.:adu 151
Ele lá é tudo, uma vez que recolhe no início esses pedacinhos reais do ouvido
que são suas epifanias, e no final uma vez que goza das cifras pulverulentas de
alíngua ao escrever Finnegans Wáke. Esse manejo literário da letra "não para
ler" ocorre sem passar pelo corpo, pelas fantasias de corpo, o que combina
com a ausencia nele das paixões imaginárias para com o semelhante 16 à qual
Lacan deu tanta importância. Mas, de qualquer modo, lá, afinal, ele não é
tudo na medida em que, pela publicação, cuja função é outra, ele se impõe
finalmente como "O artista" que ele queria ser. Assim, ele restaura um laço
social com sua audiência, que corrige o sintoma autista de seu inconsciente
real ao inseri-lo nesse laço específico com o público, e até ao fazê-lo ali servir.
Sabemos que ele quis esse laço de modo furioso, e precoce, sublinhei. É
verdade que, para ele, esse laço social é adpico, sem laço com o sexo, mas
bem efetivo, já que permite que ele se renomeie. Sinthoma, diz Lacan, para
designar o que deve ser acrescentado às três consistências do Imaginário,
do Simbólico e do Real a fim de que se enodem. Esse enodamento quase
sempre costuma supor o dizer nomeador do pai, mas, para Joyce, foi um
dizer de autonomeação que ele conseguiu impor.
Um dizer bem singular que emenda o inconsciente real ao imaginário
da relação com seus semelhantes sem passar pelo corpo. Joyce, diferente-
mente, digamos, do jeito que vem, era mais idólatra de seu texto "Book of
himself" que de seu corpo, e, a se crer em Lacan, como faço, é por esse Ego
especial que ele se sustenta como O artista, artigo definido e maiúsculo. O nó
que ele produz, efetivo o bastante para renomeá-lo, não passa pelo pai. Esse
não-rolo do pai nada queria saber a não ser do dizer magistral. Ignorando a
"hisrorietà', tanto a do Cristo quanto a de Édipo, estranho a toda solução
edipiana, ele não se tomou sequer pelo redentor, pois, se se salva, é sozinho.
E, no entanto, terá remediado a carência paterna e terá assim passado sem
o pai servindo-se de suas letras-sintomas para sua autoinstituição.
Por isso é que Lacan pode afirmar que deu "a volta pela reserva" do
inconsciente. Com efeito, ele ilustra sucessivamente e, às vezes, conjunta-
16 C. Soler, L'aventure littéraire, ou la psychose inspirée. Rousseau, Joyce, Pessoa, Paris, Le Champ
lacanien, 2001.
152 L <.1 e L7 11, o i 11 e cJ n se; e n te r e i n l' .:i n t c.1 ..Í L1
s
Sinthoma Joyce. Nó errado corrigido pelo ego-artista
Assim, a respeito de Nora, podemos perguntar o que foi essa mulheç para
esse homem, James Joyce, em sua singularidade. Lacan disse que Joyce era
i: J. Lacan, "La méprise du sujet supposé saYoir'', Sci!icet 1. Paris, Le Seuil, 1968, p. 33 :-.
153
* "Jl 11e s'en gantait qu'avec répugnance": Lir.:"Ele só calçava luvas com repugnâncià'. (N.T.)
15()
protegê-los. Fez de tudo para que Giorgio fosse tenor, já que havia uma
tradição de canto na família. Quanto a Lucia, defendeu-a de maneira incrível
contra os psiquiatras, até o fim, enquanto pôde.
patente no laço dos dois, é que ela não tem a fala. Não que esteja amor-
daçada. mas o que ela diz não tem nenhuma importância. Não há nada
que pareça em Joyce com um "minha mulher diz que ...". Por quê? Minha
hipótese é que, se não houver a objeção fálica que classicamente barra a
relação sexual, há aquilo que vou chamar a objeção egótica, para equivocar
entre seu ego-sintoma, é claro, e o sentido da palavra égotique* em francês.
É aquela mesma que obstava a que ele se tomasse pelo redentor, eu disse,
e que objeta a que ele institua Nora numa posição que eu poderia dizer
divinizada: Nora não é o deus de Joyce.
Digamos a particularidade de Joyce: a não-relação, que é de estrutura,
a ele se revelou, embora costume estar velada para todos pela relação sinto-
mática, tão velada, aliás, que foi preciso toda a elaboração psicanalítica para
produzir sua tese, pois ela não se aprende nos livros. É preciso ser o Egótico
Joyce para que o reinado da adorada, ao invés de cobrir pelo menos por um
tempo a não-relação, como é o caso geral, a desvele.
O que resta, então, de relação se essa mulher não é nem a uma do
sintoma, nem o deus de sua vida? Resposta, e aí concluo: uma luva, que anula
a disparidade. Isso cria, de fato, uma esquisita relação, bem pouco sexual,
reduzida à geometria do envelope imaginário - geometria que, no normal,
se enoda ao sintoma de gozo. Envelope luva, Nora terá sido suplemento
imaginário ao ego a-corporal de Joyce.
É aí que Joyce ilustra pela negativa a verdadeira função do pai como
condição e "modelo" do sintoma fundamental sexuado.
Ü PAI E O REAL
1~ Aulas do ano 2003-2004, "La querelle des diagnosrics". Documems du Champ lacanien.
l (1]
às quais ela preside. O visco do sentido não o larga, mas, contanto que o
sentido seja descarregado do Real, é a "doença da mentalidade", aquela que
ilustrei com Pessoa.
Coloca-se, no entanto, a questão de medir o que esse novo esquema-
tismo do nó borromeano com suas retraduçóes em cadeia traz de mudanças
ou de complementos às teses primeiras sobre a função paterna.
O que precede implica que os avarares da função do Pai não deixem de
incidir para cada sujeito sobre o tipo de sintomas, autistas ou socializantes,
o que classicamente chamamos as estruturas clínicas, e Lacan, aliás, acaba
por situar ela própria como uma função ... de sintoma.
sexual. Deixo de lado o detalhe das construções freudianas para explicar isso,
mas o fato é que elas sempre convocam o complexo de castração em seu
laço com o pai do Édipo. Lacan dá um passo pela tangente, fundamental,
que começa com o seminário A angústia e que, apesar das aparências, chega
às fórmulas ditas da sexuação.
É impressionante constatar que Lacan, a partir dos anos 1960, cons-
trói sua teoria do objeto a e da castração sem recorrer ao pai. O passo é
particularmente legível no seminário A angústia, em que ele procede a uma
dedução do objeto a a partir do Outro, do efeito da linguagem, e a uma
abordagem quase naturalista do falo como "órgão da falta", que provoca
um curto-circuito em toda referência ao pai numa abordagem da castração
concebida como real. Encontramos o mesmo traço em "Posição do incons-
ciente". O pai ali não é evocado, e aos mitos da maçã maldita e do Édipo
ele acrescenta um de sua invenção, o da lâmina, que mitifica a parte de vida
perdida, sem pai e até sem Outro, já que são os enigmas da vida e do laço da
reprodução sexuada com a morte individual que ali são convocados. antes
mesmo de qualquer intervenção do Outro. Todo o esforço de Lacan terá
sido desprender a causa da castração, que não é um mito do pai, tanto de
Totem e tabu quanto do Édipo.
Ele mesmo acentua sua oposição a Freud quanto a esse ponto, e po-
demos acompanhar ao longo do seminário a volta de suas críticas virulentas
do pai edipiano supostamente culpado da angústia de castração. Poderemos
ler sucessivamente tanto a propósito do interdito, da ameaça, do homicídio,
que é um engodo, uma comédia (o Édipo não serve para nada na análise),
que é secundário, e pior, o pior que se pode dizer para uma teoria analfri-
ca, que é contrário à experiência20 • Entretanto, a cada vez, Lacan procura
recuperar o que dava a Freud fundamentos para sustentar o insustentável e
tenta dizer isso de outro modo, até fazer culminar o ano em considerações
sobre o pai e a necessária passagem para Os J.Vornes-do-Pai, anunciada para
o ano seguinte.
A subtração primeira que recorra o objeto a é um efeito de linguagem
que nada deve ao pai e tudo à entrada do sujeito natural na linguagem e à
20 Ver sucessivamente, em L'angoisse, Paris. Le SeuiL 200'±, as páginas 98. 232. 295. 389.
eIr 11 ; '-. a r 1: no i· a da 163
Daí a questão, que Lacan nunca cessou de reelaborar: para que serve
o Pai? Ela é ainda mais justificada já que ele acabou afirmando que sem o
Pai podíamos passar sob condição de ... "dele se servir".
No que se refere a esse pai solução, a tese se constrói em duas etapas:
no fim de "A angústia", um pai é pensado como modelo de um desejo "fi-
nito", em 1975, "modelo" de sintoma.
Dito de outra maneira, a causa faz desejar, vetor, mas deixa o alvo em
branco. Ela não diz ... o desejável. É verdade que existem tipos de desejo em
função dos cones corporais, e é possível falar de desejo oral, anal, escópico,
invocante para especificar o mais-de-gozar visado, mas isso nada diz de um
parceiro eletivo de onde extrair esse mais-de-gozar, que, em relação ao objeto
causa, sempre aparece como um "engodo". Aliás, Lacan enumerou algumas
das formas do desejo indeterminado dominado pelo desejo ... de outra coisa:
o tédio, a prece, a vigília, a espera. Existem outras, a depressão, às vezes,
quando é como uma anorexia de rodos os objetos, e, por que não?, a vaga-
bundagem, que restabelece indeterminação no lugar do objeto eletivo.
Essa estrutura de hiância da causa permite entender que a fixação do
desejo sobre os objetos específicos, e notadamente sexuais, exige uma con-
dição complementar. Qual? Vemos facilmente que os discursos utilizam a
estrutura de hiância da causa para comercializar o desejo e fazer desejar "sob
comando" 2-i os objetos conformes que eles propõem. Esses imperativos do
"Rs1", uns quinze anos mais tarde, incluindo o Real, vai mais longe. Ele
convoca, mais que o desejo do pai, seu sintoma, ou seja, uma mulher/mãe,
que lhe dê filhos. É um sintoma que faz duplamente laço social, entre os
sexos e entre as gerações, como desenvolvi, suprindo assim a foraclusão da
relação sexual na linguagem. Entretanto, ele não opera a céu aberto e só traz
lbid., p. 389.
S e um pai só é Pai, isto é, só encarna a função, pelo semidizer de seu
sintoma, a questão é saber como esse dizer opera para assegurar o que
Lacan chama a função sinthoma de enodamento das três dimensões. Lacan
acaba colocando que esse enodamento passa pelo dizer de nomeação, des-
lizando assim do Nome-do-Pai ao Pai do nome.
Antes de a tese cristalizar, Lacan havia marcado várias vezes o laço da
função do pai com a nomeação. É o caso, notadamente, no final do seminário
A angústia, em que o pai é invocado no laço com seu objeto como princípio
de superação da angústia. São indicações breves, mas muito preciosas, após
observações sobre a transferência que faz o objeto passar para o campo do
Outro: "Só há superação da angústia quando o Outro é nomeado. Só há
amor de um nome, como todos sabem por experiência. O momento em que
é pronunciado o nome daquele ou daquela a quem se endereça nosso amor,
sabemos muito bem que é um limiar que tem a maior importância" 28 •
O nome é o que fundamenta "um desejo que não seja anônimo",
conforme a expressão das "Notas a Jenny Aubry" (1969). Logo, um desejo
eletivo, particularizado, de um objeto distinto dos outros, no qual possa-
mos nos reconhecer, diferentemente do objeto desconhecido da angústia.
O amor é, de fato, inventivo de nomes, em todos os níveis, até na relação
:s lbid., p. 390.
1]() Lu ea n , o ; n e o n :s. e i e n t e r f! i n l' ..:! n t L"l J L1
com a criança - vai dos pequenos nomes aos grandes nomes, nomes que
damos ao amado. Claudel, com seu Ysé, já sabia disso.
É que o objeto, o verdadeiro, aquele escrito a, não tem nome. Ele é
causa da angústia justamente na medida em que é anônimo e desconhecido.
Vale aqui aproximar o fim do seminário A transferência e o de A angústia.
No primeiro, lê-se: "Não há objeto que tenha maior preço que outro", "aqui
está o luto em torno do qual está centrado o desejo do analista". O que
deixou que alguns pensassem que, para fazer um analista, fosse preciso uma
tal transformação do sujeito que, no final, ele entrasse na indiferença cínica.
Mas se tratava do objeto a, que destitui o parceiro, o qual ele anula, o qual
ele "a-nisa'' [a-nise], chega Lacan a dizer. E todo o movimento do seminário
vai do amor, de seus brilhos, de seu "milagre" - em suma, de sua metáfora
- rumo à metáfora totalmente oposta do desejo, que substitui o agalma do
Outro idealizado, que sofre uma queda, por esse objeto. E Lacan evoca "a
perfeita destrutividade do desejo" causado por esse objeto chamado como
complemento de vida, que justamente não tem nome e que encontramos
na angústia.
O seminário A angústia parte do objeto que faz o ponto de chegada
da Transferência. Vai da angústia de um sujeito confrontado com o desejo
enigmático do Outro e com a iminência de sua redução ao objeto não ele-
tivo até sua última aula, que recorre ao pai como princípio da superação da
angústia por seu objeto, não só finito, mas também nomeado. Nos termos
da época, vemos a função que é atribuída à nomeação: ela é um para-an-
gústia, pois faz o a anônimo passar para a História - em outras palavras, ela
transfere a causa desconhecida do desejo para o objeto nomeável.
e do Édipo freudiano, mas seria bem espantoso num tempo em que ele
multiplica as expressões de rebaixamento do pai: é um nome a ser perdido,
passar sem ele, não há recurso, etc. :-Ja verdade, é o contrário de um sal-
vamento: essa definição mantém a função Nome-do-Pai, mas na verdade
a desconecta dos pais da família tradicional, os pais do trio edipiano. É o
que eu gostaria de mostrar. A tese é de um impacto imenso para nós que
somos de um tempo em que a falência dos pais de família está à flor dos
fenômenos - quero dizer, à flor da clínica.
É evidente que não ignoro o que todos os leitores assíduos de "Rsr"
têm em mente, a famosa passagem, que evoquei um pouco mais acima, da
aula de 21 de janeiro de 1975, sobre o que é um pai digno desse nome - e,
quando digo "famosa'', isso quer dizer que já se tornou uma lengalenga la-
caniana. Essa passagem mostra em que condições um pai particular, um pai,
portanto, enquanto sujeito, pode veicular a função, ser o que vou chamar
um pai-Nome-do-Pai, com traço de união. Só que o fato de um pai ter esse
poder não implica ele ser o único a tê-lo.
Dizer que o pai nomeia já é dizer que sua função não é função de
metáfora, não é tampouco uma função da letra, que conecta um elemento
do Simbólico ao gozo, real. A nomeação não é propriamente falando uma
função significante embora seja privilégio do falasser. Ela é função de dizer, e
o dizer, cito, "é acontecimento". Ele não é nem verdadeiro nem falso, ele é ou
não é. Acrescento: igual ao ato. Acontecimento, isso implica a contingência,
um "o que cessa de não se dizer". Diferentemente dos significantes que estão
no Outro, "disponíveis", o narning do pai é um fato de ex-sistência.
O que recoloca a questão da relação do Pai com os semblantes, esses
semblantes que os ingleses traduzem tão justamente por make believe. Do
significante do Pai foi possível dizer que ele próprio era um semblante,
mas o "dizer"? Seu acontecimento ex-siste aos semblantes e, por isso, pode
colocá-los no lugar deles, permitindo que o sujeito se "afale"* no discurso,
que dele se faça o tolo, que consinta no semblante que fundamenta esse
discurso, o qual, este, é sempre "semblante". Entretanto, os próprios dis-
cursos sempre estão presos a um dizer, tive a oportunidade de mostrar isso,
• Poubelfe em francês é lata de lixo. O nome vem de Eugene Poubelle, prefeito da região do
Sena, que instituiu o uso obrigatório do recipiente, ao qual os habitantes deram, então, seu
nome. (N.T.)
174 La e c.1 n, o i 11 e L1 n sei e 11 t2 r e; 11 i· t.? n ta Jv
SDl A FA.\lÍLIA
29 ]. Lacan, "Subversion du sujet et dialecrique du désir'', Écrits, Paris. Le Seuil. 1966, p. 813.
L~ / f n i eu r ,2. 12 L, t· 1..1 da 175
que se queira ou não, que ele não faz seu papel. Além disso, é uma confusão
entre o desejo do pai e os pareceres educativos do pai - digamos: o magister
do pai, contra o qual Lacan sempre lutou.
Estamos aí numa fronteira ideológica que Lacan evoca no fim da
"Proposição sobre o psicanalista da Escola" de 1967, especialmente em sua
primeira versão. Ele ali denuncia "a ideologia edipiana", bem como, cito,
"o apego especificado da análise às coordenadas da família, [... ] ligado a um
modo de interrogação da sexualidade que corre o grande risco de deixar
escapar uma conversão sexual que se opera sob nossos olhos" 31 • Logo, ele
havia percebido o atraso dos analistas em relação à época, e, se conversão
houver, ela só pode estar ligada à "subida ao zênite social" do objeto a, a-
sexuado.
Entretanto, a mesma questão é recolocada com os textos de janeiro
de 1975 de "RsI". Lacan ali aborda novamente a questão da relação entre
a função lógica da exceção e os indivíduos que portam essa exceção. Não
é a mãe que está na berlinda e sim o pai. É preciso, segundo Lacan, que a
exceção paterna possa ser encontrada em alguém, mas esse alguém não deve
ser um qualquer, ele deve preencher duas condições: a primeira é aquela que
ele já colocou, o desejo por uma mulher, a mulher do pai; a segunda, que
ele acresce ma nessa data, e é capital, é que ele tenha um cuidado ... paterno
com os filhos que ela lhe faz.
Estamos longe da metáfora cujo efeito devia substituir a mulher do
desejo à mãe primordial. Aqui, é o inverso, a perspectiva dada pelo desejo
do Pai, ou seja, o desejo de um homem não qualquer, de um heterossexual
não qualquer, faz passar de uma mulher, a dele, a uma mãe, a mãe de seus
filhos. Em outras palavras, o desejo hétero não basta.
Mas o que é o cuidado paterno? Seguramente não é o cuidado mater-
no. Com essas noções de cuidado materno e paterno, aventuramo-nos num
terreno ideologicamente espinhoso. Com efeito, hoje, os ideais da paridade
entre os sexos induzem a separar sempre mais os papéis sociais e familiares,
com suas respectivas cargas, de sua ancoragem sexuada. E vemos as mulheres
reivindicarem ser assistidas nos cuidados do corpo, da sobrevivência e da
economia familiar na qual foram por tanto tempo relegadas. Só vejo uma
maneira de entender isso, esse cuidado paterno específico, no momento em
que Lacan o profere, é o cuidado de nomeação, cuidado que, por distinguir
os objetos, aqui os filhos, como produtos do casal, os tira do anonimato
genérico da reprodução dos corpos apenas. Para o filho, ele promete, torna
possível aquilo que Lacan em certa época chamava a humanização do desejo.
Com efeito, de que serve a nomeação, na verdade, pois ela serve? Ela obsta
ao estatuto proletário do indi\·íduo corporal, que nada tem para fazer laço
social. É a associação dos significantes que permite fazer laço, e é o que o
pai nomeante fornece, ou o nomeante que é Pai: os significantes do laço de
origem que produziu o filho. Toda a clínica mostra a que ponto é capital.
A única presença exigível do pai - a única que obsta à psicose, pois a
questão não é a dos prazeres do cotidiano conforme o pai estiver ali ou não
-, a única presença exigível é a do dizer que nomeia. Evocando um cuidado
paterno específico, Lacan não se coloca na onda da paridade, é seguro, mas
tampouco, creio, na onda machista do patriarcado, que, aliás, "já era" em
nossas paragens.
Resta a questão: dizê-lo Pai não requer que o pai de família esteja ali
no café da manhã? É seguro que não. O dizer, acontecimento fundador,
implica contingência e pode, portanto, estar disjunto das conjunturas da
geração, da manutenção dos corpos e da boa ordem do cotidiano.
Já ressaltei isso, quando Lacan introduz essa função de nomeação,
o Pai do nome se lê nos dois sentidos: o Pai, um pai-Pai nomeia, mas, da
mesma forma, o que nomeia é Pai. Sem essa contingência, não se pode
pensar a complexidade da época atual.
Vale dizer que não é a família que faz o pai-Nome-do-Pai. É, ao con-
trário, o dizer que nomeia, quando está ali, que faz os corpos ficarem juntos,
sem necessariamente passar pelo cartório, o anel no dedo e a convivência
dos diversos objetos que a família pretendia juntar sob o mesmo teto. A
nomeação-Nome-do-Pai pode passar sem os pais e se acomodar com nomes
sinthomas quaisquer outros. Prova extrema por Joyce.
Logo, os psicanalistas também poderiam passar sem seu apego às co-
ordenadas da família tradicional que Lacan já estigmatizava em 1967. Isso
permitiria que enfrentassem as situações atuais ao invés de deplorá-las.
178 L a e a 11 , o i 11,: L' 11 se i l: 11 t 2 ,. e i 11 t· e 11 t i1 d L,
·' 2 S. Freud. lhe St,mdard Editio11 ofrhe Complete P.'.vcho!ogicd ffór.ks ofS Freud, rnl. 28. p. 20.
181
Lacan seguiu o mesmo eixo que liga o amor à casrração, ela própria efeito
de linguagem, eu disse. A fórmula conhecida: "O amor é dar o que não se
tem" está nessa linha. E o seminário A transferência evocou amplamente o
efeito de ser que disso se obtém quando o amado por sua vez ama, efeito
ilusório, porém, com relação ao desejo.
Não é excessivo dizer que há no ensino de Lacan algo como um proces-
so do amor, e o procurador conclui: primeiro, pela baixeza do amor'·1 • ''Amar
é querer ser amado"'\ e é verdade que a questão de um amor possivelmente
desinteressado atravessou os séculos antes da psicanálise. Na teologia cristã,
deu lugar, notadamente numa de suas últimas retomadas com Madame
Guyon, ao debate sobre o puro amor que não exigiria nenhuma retribuição,
nem sequer a da salvação. Ele conclui, em seguida, pela covardia do amor
que não quer saber do real irredutível da castração que fundamenta o desejo
e marca o gozo, depois por sua enganação também, pois o amor mente sobre
o verdadeiro parceiro - Lacan generaliza em todas as estruturas o "não o(a)
amo" que Freud aplicava à psicose. No fim do baile, não era ela, não era
'5 J. Lacan, "Subversion du sujet e[ dialectique du désir", Écrits, Paris, Le Seuil, 1966, p.
723.
5• J. Lacan, "Ou Ti·ieb de Freud", Écrits, Paris, Le Seuil, 1966, p. 853.
182 L u e a 11, o ; 11 e o n sei ,2 n t t? r t? i n i· 2 11 t t1 J L..,
ele, lembrei. Aliás, há mais, é que a própria fala de amor é rival do amado,
pois falar de amor é em si um gozo que não pede nada a ninguém. Sobre
esse ponto, Lacan tem fundamentos para evocar são Tomás, que, após uma
vida de discurso dedicado ao amor de Deus e para Deus, no fim conclui
por um sicut palea, que conota a um só tempo a mentira e o gozo da pulsão.
Enfim, ele conclui pela ilusão, cômica, que faz crer que um objeto é nossa
vida. Todos esses desenvolvimentos afirmam a antinomia da cena em que
o amor faz enorme barulho e do real em que ele se abisma.
Não se trata apenas de um inventário, que faria uma constatação:
vemos, são julgamentos éticos. Julgamentos assim existem muitos sob a pena
de Freud. A própria noção de defesa os implica. Quando Lacan diz que o
neurótico é um covarde, que a tristeza dele é um delito não contra Deus,
como no cristianismo, mas contra o imperativo analítico, é um julgamento
relativo à ética da psicanálise. Pois existem vários gêneros de coragem, a do
mestre não é a do analista, e o neurótico também pode ser um herói, em
outro momento, por exemplo em tempos de guerra, embora recue diante
do real do inconsciente. São outros tantos julgamentos que reconhecem no
amor e no gosto que temos por isso uma figura da defesa contra o Real, amiga
da paixão da ignorância que não quer saber nada disso. É evidente que não
se trata de qualquer real, mas daquele que está em jogo na análise.
Será, porém, a última palavra? O amor de transferência já pedia uma
reserva. Para Freud, foi uma descoberta surpreendente esse amor inesperado,
não previsto em seu dispositivo, cujas exigências o embaraçaram, mas que
ele bem rápido percebeu que era a condição da análise.
Esse amor que, contrariamente a qualquer outro, surge quase auto-
maticamente no dispositivo freudiano, contanto que o parceiro opere como
analista, já é, segundo Lacan, um amor "novo", embora menos ilusório.
O amor é cego, diz o provérbio, mas talvez não o da transferência. É que,
contrariamente a qualquer outro, cito, "ele se endereça ... ao saber" 35 , ao
saber inconsciente. Logo, ele parece excetuar-se das três paixões do ser já
distinguidas no budismo, o amor, o ódio e a ignorância, uma vez que está
à espera tanto de um efeito de ser quanto ... de interpretação. Um amor que
35 ]. Lacan, "Imroduction à l'édition allemande des Écrits", Scilicet 5. Paris, Le Seuil, 19 7 5. p. 16.
l-. / í n i e a r e n o i· a L-l a 183
teria um impacto epistêmico ... Exceto que, como sabemos desde Freud, é
ele também que resiste à revelação analítica. Lacan não diz não: por mais
necessária que seja, a transferência, com seu amor pelo saber, seu postulado
de um sujeito suposto ao saber, ao próprío saber suposto que daria sentido
ao sintoma, a transferência, portanto, é uma denegação do inconsciente
real. De transferência ao inconsciente, há divergência da suposição, já dizia
"O engano do sujeito suposto saber".
fala autossuficiente pois gozosa, assim como as cartas de amor. Não é falso,
mas também se pode perceber que, se o amor solta a língua, talvez seja por
ele estar justamente baseado num encontro entre duas alínguas. E se este
é uma obscenidade na qual o gozo se depositou, é preciso então dizer que
o epitálamo, o duo entre os amantes, é uma relação específica entre duas
obscenidades, entre duas alínguas gozadas que, ao mesmo tempo que tem
forçosamente a ver com o ato sexual, assegura a copulação verbal de dois
falasseres. Entende-se, então, que o diálogo privado dos amantes retorne
de modo tão irresistível no falar bebê, como se sua bestificação buscasse
reencontrar a lalação de origem.
Da mesma forma, é possível voltar à escolha de objeto. A escolha
marcada de repetição que Freud percebeu e, na verdade, sustentou de dois
lados: do lado do programa de gozo, mas também do lado narcísico. Do
lado narcísico, o ideal do eu (IM [ideal do moi]), que na verdade é, segundo
Lacan, um ideal do Outro, r(A), está em jogo naquilo que Freud percebeu
como idealização do objeto. Com ele, nossos amores particulares se ligam aos
valores de uma época, ao que dá prestígio em cada momento da civilização
ao sabor de seus semblàntes. Assim, o amor enquanto repetitivo trabalha
na direção da conformidade, percebemos?
Entretanto, não podemos ignorar as surpresas do amor. Essas escolhas
discordantes em relação ao mundo de um sujeito, que reúnem de surpresa
seres perfeitamente desfalcados em relação aos semblantes que os regem.
Difícil explicar essa discordância apenas com a referência à fantasia, isto
é, ao objeto a. A implicação do objeto também determina, antes, escolhas
típicas não do ponto de vista dos semblantes, mas do ponto de vista pulsio-
nal: parceiro oral, escópico, etc., e, longe de tornar pensável a exclusividade
do objeto parceiro, ela antes fundamenta a equivalência secreta de todos
os objetos eleitos.
O encontro das duas obscenidades permite, ao contrário, compreen-
der melhor as escolhas discordantes, pois alíngua não obedece nem ao ideal
nem à fantasia. É a força derradeira da singularidade - infelizmente de uma
singularidade rebelde à apreensão conceituai.
Também é possível acrescentar alguns desenvolvimentos ao capítulo da
fala sob transferência. Qual é a parte de alíngua gozada quando o analisando
]8(1 Lacan, o incL..,nsciente rt:!Ínt't?ilta)o
fala sem nada dizer? O que Freud situou como momento de fechamento
do inconsciente, e Lacan como fala vazia, foi primeiramente formalizado
por ele na estrutura de linguagem através do objeto que vem em posição
de obturador. É possível abordá-los novamente através desse inconsciente
outro que é o inconsciente-alíngua e que se dá tanto mais rédeas porquanto
as exigências da fala de comunicação comum estão suspensas na associação
livre. A fala vazia, ao repetir seus ritornelos, mostra não ser tão vazia, pois
saturada dos signos gozados de alíngua, e impõe ao analista a tarefa espe-
cífica que não é revelar o sentido mas se aproximar do valor específico que
o sujeito dá às palavras, esse gozo opaco que coloca a questão de saber se o
manejo desses tempos não é mais importante numa análise que aquele em
que se recolhem as pérolas de verdade de um sujeito.
E as mulheres pedem que ele lhes fale. Pedido sem esperança, sem
esperança que o inconsciente-alíngutt ainda multiplica com suas palavras
fora de sentido, impróprias à troca. É verdade que o epitálamo dos amantes
por mim evocado parece a isso contradizer: com suas réplicas, ele parece
fazer ponto de exceção, mas, duas vozes em uníssono que se correspondem,
isso faz um diálogo? Não é seguro. Os grandes duas da ópera deveriam pelo
menos passar essa suspeita.
Entretanto, não se pode imaginar que a análise seja sem efeito sobre o amor
e a experiência, com deito, prova que não é o caso.
Em 1975, em sua "Nota aos italianos", lacan empregou o termo amor
"mais digno" para qualificar essa mudança. Mais digno que a abundância de
tagarelice em que ele em geral consiste. logo, um amor que percebeu seu
núcleo real, fora de sentido, que portanto se tornou sintoma no qual... não
se acredita mais. O sintoma, acreditamos nele [on y croit], dizia lacan, o
que significa que acreditamos que ele pode dizer algo. É a própria definição
do sintoma de transferência: esperamos que ele diga alguma coisa, já que
supostamence t-:m o saber inconsciente. Quando o sintoma é uma mulher,
na medida em que ela fala, impõe-se a distinção entre acreditar nela (l' croire]
e dar crédito a ela [la croireJ. _-\creditar nela, acreditar que ela pode dizer algo
de nós ... Tive a oportunidade de sublinhar o quanto certos sujeitos recebem
sua mensagem sob a forma invertida de um "minha mulher diz que''. Dar
crédito a ela é outra coisa: faz com que ela valha tanto quanto as ,·ozes do
"automatismo mental", que falam de nós no Real. Certos sujeitos disso se
sustentam uma vida inteira, contanto que ela consinta em fazer o papel.
O amor mais digno é um amor que nem acredita no parceiro, nem
dá crédito a ele - louco, portamo. Tendo avaliado o inconsciente real e a
contingência de encontro que a ele é solidária, ele tampouco o interroga
sobre seu sentido, pois no mínimo passou a suspeitar do gozo fora de sen-
tido que ali se aloja. Foi o que chamei o amor ateu, não transferencial, não
menos sólido que outro, mas com certeza menos tagarela.
L""línir:a r::11L1cadt1 18()
O CORPO CI\'TLIZADO
vemos que os sinais de antipatia entre os discursos são ainda mais raivosos.
Quando ouvimos falar da excisão das mulheres, em nossas terras trememos,
e quando pensamos nos pés atrofiados das chinesas durante séculos (isso
acabou), quando pensamos no pescoço ou nos lábios de certas mulheres
africanas, todas essas práticas de corpo que tinham, que por vezes ainda têm
por objetivo distinguir os corpos conforme o sexo, homem-mulher, então,
em nome do discurso hegemónico dos direitos do homem e do indivíduo,
é claro que ficamos chocados. Mas, enfim, o que isso mostra é que há uma
espécie de competição entre as regulagens de corpo conforme os lugares e
as épocas, antes uma antipatia. O que Lacan dizia com uma fórmula bem
contundente: ele falava do "racismo dos discursos em ação".
Aqui, um pequeno parêntese. Vemos bem a oferta do discurso que
se diz capitalista. Ela consiste em tentar fazer entrar todos os gozos nessa
máquina louca da produção-consumo. Sempre se diz, e se tem razão, que,
para a psicanálise, não há inconsciente coletivo; é verdade, mas há modos
coletivizados de gozo. E são esses modos coletivizados que se transpõem em
todas as produções da cultura. Começa com as canções que são cantadas
numa cultura e chega às produções mais elevadas da arte, o que chamamos as
sublimações, que são sublimações de gozo. São esses modos coletivizados de
gozo que fundamentam o sentimento de pertencimento a uma nação, a um
lugar, a um povo, há muitos nomes para designar aquilo a que se pertence.
É uma questão bem aguda hoje na Europa. Fundamenta o sentimento de
pertencimento, mas, igualmente, o sentimento de exílio.
Logo, o discurso nos dá nosso corpo. O corpo do qual devemos dizer
que o "temos". O sujeito, entendam o falante, ao contrário do animal, não
é seu corpo. Vemos pelo fato de que ele o precede no discurso do Outro e
a ele sobrevive por um tempo na memória, ao passo que seu corpo é devol-
vido, como se diz em certa tradição, ao pó. Daí a insistência que deve ser
posta em "o sujeito tem um corpo", porque, ter um corpo, o que quer dizer?
Todos os sujeitos têm bem um organismo, mas talvez nem todos tenham
um corpo se o fato de ter um corpo se decidir, segundo Lacan, do ponto
de vista do uso que dele se pode fazer.
Usamos e abusamos de nosso corpo. Primeiro, o tratamos como um
objeto, a começar pela imagem que temos dele, que é o primeiro objeto.
19c, L a e a 11 , o ; n e o n s e i e n t ,2 r e ,' n i· ent L7 J 1...1
1..- 2 r;:_ p 0 F 0 J~ ,\ D E D TS LT !~ S 0
0 :::r;-.;TO.\lA OBJETOR
torcedor do mestre, um fã, mas há o "mas" de seu sintoma que, este, não
vai no mesmo ritmo, pois objeta. Aí, com sua prescrição da norma macho
"pênis repetidamente" para tratar a histeria, Charcot de fato estava por fora.
Cada histeria, seja ela homem ou mulher, é dividida entre esses dois aspectos,
e é no nível do sintoma de corpo que se pode compreender a expressão que
Lacan emprega para ela: "Ela faz a greve do corpo". O que de mais políti-
co! Greve da norma corporal nos sintomas de conversão, greve também, e
sobretudo, na relação genital em que, sejam quais forem as licenças de sua
conduta bem propícias a embaralhar as pistas hoje, ela recusa ser sintoma
de outro corpo. A expressão "greve do corpo" é bem feita para dar a ideia
de seu impacto político.
O valor político do sintoma dissidente em relação ao corpo socializado
foi percebido muito cedo, como eu disse, mas o vimos mudar ao longo do
tempo. Quando o significante mestre ainda é poderoso, o sintoma aparece
claramente como um dissidente político. Pensem no slogan ''A psicanálise
ciência burguesa''; ele vinha do marxismo, e para dizer que cuidar era fazer
aceitar a disciplina do grupo, que o terapêutico é a colaboração com o dis-
curso dominante. Aliás, Lacan dizia isso das psicoterapias. Pensem também
nos psiquiatras russos da bela época stalinista, que forjaram a noção de
"psicose branca'', justificando pela doença mental suposta a prisão de um
certo número de oponentes ao regime.
Foi nesse nível que algo mudou, com certeza ligado ao que Foucault
nomeou o biopoder para designar o fato de que os Estados doravante se
encarregam da vida, se preocupam em fazer viver, como mostram, com
efeito, todas as políticas de natalidade, de saúde e, agora, de proteção do
planeta, de indenização, etc. Em relação a esse biopoder, o que é preciso bem
chamar os biossintomas, os sintomas de corpo, são avaliados de outro modo.
Mas nosso biopoder não é qualquer um, ele é do tempo do capitalismo, em
que o imperativo de discurso é a competição no produzir e no consumir, e
os sintomas que o inquietam não são aqueles do mal-estar sexual, mas, ao
contrário, aqueles que questionam a vida e a competitividade. A anorexia,
que pode ser mortal, a depressão, que impede de trabalhar e custa caro,
tudo o que pode conduzir ao suicídio, a droga evidentemente e também,
é claro, as violências destrutivas. Ora, o biopoder capitalista está aliado à
P.2rsp.2cti,-as políticas 201
ideologia da ciência e aos valores performáticos que ela sustenta; logo, ele
não considera mais, no essencial, que os biossintomas sejam dissidentes
políticos, mesmo que tenham consequências políticas. Ele os pensa como
disfuncionamentos ou panes de uma máquina humana neurológica, hormo-
nal, social, etc., que se desarranja como se desarranjaria qualquer máquina.
É uma enorme mudança que foraclui o valor de verdade do sintoma, aquele
que Freud revelou.
Com isso, o que dizem esses biapoderes de hoje quanto aos sintomas
sexuais? Pouca coisa. São bem indiferentes quanto ao sexo, como vemos no
fato de os lobbies sadomasoquistas estarem bem instalados no mercado - é a
permissividade de nossa época, e em nome de que se poderia objetar? Daqui
por diante, uma única barreira no discurso do individualismo capitalista
solidário aos direitos do homem: tudo é permitido sexualmente, no limite
do consentimento mútuo2, tive a oportunidade de desenvolver. Resultado,
além do assassinato, no essencial só resta um grande tabu sexual: a pedofilia,
em que o consentimento recíproco não vale.
C l\l D I S C C R :3 -::' D E U R G Ê N C I À
Tudo isso muda o lugar da psicanálise: ela fica em confronto direto com
a operação do biopoder capitalista. Esta é dupla: de um lado, fazer viver
esses instrumentos do mercado que são os indivíduos, manter o que agora
chamamos o material humano, ao construir para eles, com grande reforço de
imagens e slogans, os sintomas-tipos do produtor-consumidor normatizado;
do outro, reduzir os sintomas atípicos que disso se excetuam e a isso obstam,
reduzi-los como outros tantos disfuncionamentos, pane da máquina cog-
nitivo-comportamental. Vasto programa: fazer o anoréxico comer, a muda
falar, o deprimido sorrir, o estressado ficar tranquilo, o agitado, calmo, e
tudo para ele está bom. É patente: é a hora dos psicotrópicos. E ... do psi,
talvez menos pior, mas que "leva ao pior". Esses sintomas que por vezes
dizemos novos, que atingem a oralidade, a ação, o humor, são quase todos
sintomas fora de laços, portadores de gozo autista.
O que pode a psicanálise nessa conjuntura, ela que não recusa o
objetivo terapêutico? Mais precisamente, o inconsciente real, tal como
Lacan forjou e fundamentou sua noção, muda a distribuição das canas?
A noção implica, eu disse, uma divisão do inconsciente entre um incons-
ciente linguagem, decifrável, ao qual a fantasia dá sentido, ou seu valor
de verdade, talvez até de gozo-do-sentido Uoui-sens], e o inconsciente
real que fixa o gozo de um elemento linguageiro, fora de sentido, em si
mesmo disjunto do Imaginário. Neológico ou holofrásrico, vindo dos
efeitos de alíngua, ele não é um produto do discurso e não caminha no
mesmo ritmo das injunções coletivas, não se presta a nenhuma troca, antes
autista, embora nem sempre rebelde à percepção de obscuras afinidades.
Ele constitui, esteja ou não enodado ao Imaginário, o núcleo mais real da
singularidade de cada falasser.
De onde vem ele se não dos primeiros encontros? Apesar da distància
entre as fórmulas, também é a tese de Freud, do Freud de Inibição, silltoma,
angústia, que coloca que o sintoma vem, para todos os sujeitos, da angústia
produzida pelo encontro dito traumático, encontro surpresa, com uma
emergência de gozo inesperada, vista, ou ouvida, ou sentida, ele precisa.
Logo, acontecimentos de corpo. É por isso, creio, que Freud jamais incrimina
o Outro para dar conta dos gozos sintomáticos, a despeito de toda a sua
construção edipiana. Lacan define o ICSR ao estabelecer o laço entre esses
primeiros acontecimentos de corpo e o encontro com alíngua primeira, ela
também contingente em suas modalidades. Assim, ele acrescenta à contin-
gência dos encontros traumáticos de Freud a contingência do dizer primeiro,
também traumática. O que tampouco incrimina o Outro. A história começa,
decerto, na primeiríssima infância, em que se conjugam as duas heteridades,
dos primeiros gozos e do dizer primeiro, mas não é destino.
Noto que as manifestações sintomáticas do inconsciente reaL tal
como foram reveladas por Lacan, que andem sozinhas ou que estejam in-
clusas num laço borromeano com o parceiro fantasmático, partilham com
os ditos "novos sintomas" pelo menos um traço, o de um gozo autista fora
de laço e fora de troca. Exceto, e aí está roda a diferença, que elas não são.
2(13
é pensada como um objeto a ser gerido. "O que fazer da vida?" não é uma
questão de sempre, mas sempre mais uma questão de hoje, evidentemente
ligada à multiplicação dos possíveis que deixa as escolhas ao encargo dos
sujeitos. Nessa conjuntura, os sintomas do sexo estão longe de ser os mais
invocados, ao passo que muitos indivíduos deploram suas dificuldades de
"construir" laços personalizados, como eles se exprimem, sejam os do tra-
balho, do amor, da família ou da amizade. A aspiração a ser integrado está
por toda parte. Nada a criticar, é o efeito disruptivo do capitalismo que a
motiva.
A análise do mal-estar na sexualidade revelou com Lacan que a não-
relação dos gozos sexuadas, combinada em· nossa realidade com o cinismo
generalizado do gozo perverso, está no fundamento das dificuldades do
laço social: não há diálogo entre os sexos, mas não há tampouco diálogo
entre os sintomas reais. Logo, a psicanálise não pode prometer a fusão, mas,
contanto que conduza o sujeito a se reconhecer não em seus pertencimentos
prescritos mas em seu sintoma fundamental, assegura, ao um por um, essa
"saídà' do discurso capitalista que Lacan evocava em Televisão.
Eu disse a psicanálise, subentendido, definida pelo ato constituinte
de seu discurso. não os psicanalistas. A respeito deles é notório que nem
sempre estão sintonizados. Quantos, nostálgicos de uma tradição que er-
radamente confundem com a eficácia do pai, se rebelam contra a época e
denunciam os sujeitos aprisionados pelos valores deletérios do capitalismo
embora devessem acolhê-los em seu discurso? Quantos, por não terem en-
tendido a subversão propriamente lacaniana, deixam de utilizar os recursos
que ela produziu com esse inconsciente real e que lhes permitiria ainda ir
ao encontro da ''subjetividade da época"4, aquela deste início de século
que não é mais o de Freud?
'J. Lacarr, "Fonctiorr ct champ de la parole et du langage", Éoits, Paris, Le Scuil, 1966, p. 321.
A p sIeÀ l\' Á L I sE E o e A p I TA L I s ,\l o
Vejamos bem que toda uma parte daquilo que a psicanálise produz no par-
ticular, parece que o capitalismo a obtém, em grande escala, no Real. Cada
psicanálise não visa a um só tempo a desidentificaçáo do sujeito (queda
dos semblantes introjetados do Outro), que também é desalienaçáo, e a
revelação do objeto gozo que o comanda? "Saldo cínico" da análise, dizia
Lacan. Ora, o capitalismo não é, por outras vias, responsfrel pela queda
Perspectivas políticas 207
Mas, mesmo assim, não podemos creditar a nossa época o fato de ela
aceitar que a queixa seja feita, de a reconhecer o bastante para tolerar um
bom entendedor, um que não seja simplesmente um substituto da ordem,
um retificador de desvio sintomático? Essa condição nem sempre é dada
na história, não há dúvida alguma, e é possível verificar facilmente que
tanto totalitarismos quanto fundamentalismos a excluem. Emendemos
por que e como: no quadro de uma ordem absoluta, política ou religio-
sa, as vozes particulares só são admitidas na medida em que estão em
consonância com a mensagem única. Portanto, todo valor de verdade
é automaticamente recusado como desvio do sintoma. Cm tal discurso
eventualmente deixa lugar ao psiquiatra ou aos diversos juízes, jamais ao
psicanalista-intérprete.
Visivelmente, não estamos neste ponto. Muito pelo contrário, o
discurso capitalista, solidário às formas políticas da democracia, parece dar
direito de cidade às mais múltiplas vozes particulares. Mais até: ele incentiva
a falar, reconhece os benefi'.cios da fala, produz sem descanso psis para os
traumatizados de todo gênero. O um por um tornou-se a regra, e assistimos
a fenômenos de fala sem precedente. A prática do testemunho, por exemplo.
Hoje, é levada à mania, independentemente de qualquer conteúdo. Não têm
nada a dizer? Razão a mais para que se expressem. Om·ido no rádio, de uma
mulher que é entrevistada: "Não sou nada, não tenho informação particular,
mas não é uma razão para que eu me cale". É formidável como frase.
P e r s p e e t i i· as p o / f t ; e as 211
Como o capitalismo do fim do século XIX pôde acolher a nova prática- não
sem resistir, é verdade? Vejo só uma resposta: ele não sabia. Como Descartes,
Freud avançou mascarado~. Aliás, conhecemos suas palavras: eles não sabem
que estamos lhes trazendo a peste. Evocam-se com frequência as afinidades
da obra freudiana e da tradição humanista que desde então já deu o que
tinha que dar. Freud, de fato, foi um letrado dessa tradição, e o impacto de
sua invenção supera de longe os meros problemas da terapêutica. A noção
do inconsciente introduzia novidade quanto ao sujeito dessa tradição, uma
verdadeira subversão até, que teve seus entusiastas. Mas pode-se seriamente
pensar que foi o que lhe valeu a indulgência do mestre capitalista da época?
A descoberta era filosófica e eticamente subversiva, mas Freud não avançou
como um subversivo.
- Faço alusão à observação de Descartes dizendo: "A ponto de subir na cena do mundo, avanço
mascarado".
214 Lacan, o Ín,:011scÍent<? reinz.·e11t(.1do
Numa época que, pelo menos na Europa, foi uma época fecunda da
psiquiatria, a psicanálise nasceu como derivação dos dispositivos da saúde
mental, confrontada com o sintoma ... de uma nervosidade crescente. Para
Freud, até o impulso lhe veio dos enigmas da neurose, pois nem a psicose
nem a perversão foram suas musas enquanto inventor da psicanálise. Entre,
de um lado, os danos causados pela neurose e registrados pelo corpo social, do
outro, a impotência das ofertas do corpo médico de a isso se opor, a técnica
nova avançou valorizando sua eficácia terapêutica e a cientificidade afirmada
de seu método. Novidade, eficácia, cientificidade: nada aí que derrogasse
aos ideais do capitalismo, longe disso. Freud pôde crer em sua peste, ele que
avaliara a dimensão do inconsciente, e imaginar que ela assinalava o fim do
mestre clássico. Mas o que ele não havia previsto é que o capitalismo não se
preocupa nem um pouco com o sujeito e a verdade do gozo. Para assumir
o lugar da foraclusáo do sujeito que caracteriza a ciência, ele só conhece a
gestão dos indivíduos - quero dizer: corpos proletários-, à qual ele hoje dá
uma dimensão industrial. É com isso que estamos doravante às voltas, pois
gerir o gozo e interrogá-lo são duas operações bem distintas. Daí a questão:
de que armas dispõe a psicanálise?
i\11A L - E :3 T A R N A P :3 I C A N Á L I S E
P aira urna inquietude, é sensível. Talvez tenha sido sempre o caso, pois,
desde a época de Freud, a obsessão de assegurar a sobrevivência estava
presente. A diferença, no entanto, é que ela então se traduzia em posição
de combate - os textos e correspondência atestam isso amplamente e foi
igualmente o caso com Lacan. Hoje, algo mudou na civilização, mas não
menos entre os psicanalistas.
Entretanto, em toda parte se consome psicanalista. Impossível duvidar
desse sinal. France Info, certa manhã: urna psicanalista, de voz e cadência
agradáveis como convém para uma tão ampla audiência, distribui frases de
simples bom senso, que não vão além das banalidades consensuais, sobre
os pequenos fenômenos de sociedade que lhe são submetidos. Por que
fazer com que sejam emitidos pela boca de um psicanalista? Deve-se supor
que um enunciado dito por um psicanalista tem uma aura especial, que se
saiba ou não? O que assinalaria a presença de uma transferência coletiva. A
não ser que seja justo o contrário. Pois, do psicanalista, uma vez posto em
série com todos os entrevistados do esporte, da medicina, das catástrofes
do momento, dos agressores e agredidos, dos festivais, das feiras nacionais,
dos homens da semana, o que resta?
E, por outro lado, quantos títulos sobre o futuro da psicanálise para
dizer que ela não tem mais futuro há uns trinta anos! A novidade de todos
estes últimos anos é que existem psicanalistas para exagerar ainda mais essas
previsões e para assinar, eles próprios, as orações fúnebres antecipadas. É
21Ô Laca,1, L1 i,11..·1..111~cii212tc r . .,i,1z:.:11taJ1..1
.
certo que existem todas as razões para supor que a psicanálise, produto da
civilização, permanece à mercê de suas evoluções, mas há, aí, ames, mal-estar
na psicanálise. Ele toma a forma, eu disse, de uma nostalgia do humanis-
mo passado, combinada com uma denúncia da cultura contemporânea e
dos sujeitos modernos que ela produz com seus próprios sintomas. É um
fenômeno recente. Nada a ver com o que articularam Freud depois Lacan.
O primeiro diagnosticou o mal-estar, sabemos; o segundo questionou
repetidas vezes "os impasses crescentes de nossa ciYilização", até imaginou
que ela pudesse "depor as armas", mas para fixar à psicanálise seus objetivos
ajustados ao momento de sua história.
Na verdade, houve algum dia sujeitos pré-adaptados à subversão
freudiana? Seria preciso novamente avaliar a vontade de que precisaram os
inventores - penso em Freud, em 1'..1elanie Klein, em Lacan - para lanar a
terra, para inventar ou renovar a prática em conjunturas sempre adversas.
Bastar reler os textos de Freud que descrevem o quanto a técnica da associa-
ção livre começou, na verdade, como uma associação forçada, imposta por
Freud, ajudado pela imposição das mãos na testa(!), para fazer formular os
pensamentos secretos ligados ao sintoma. E Melanie, como pôde reconhe-
cer, na criança, a transferência que ninguém via? Aceito que sua fa..ntasia
tenha algo a ver com isso, mas não é sobretudo por ela ter ousado levar a
interpretação até ali onde ela ainda não tinha ido, na língua do jogo e das
condutas da criança, ali onde Anna Freud e todos os outros nada mais viam
a não ser um sujeito a ser educado, e por ela ter recusado em ato a existência
do primeiro inanalisável suposto da psicanálise, a criança? Ainda bem que
a certeza de Melanie Klein mesmo assim se propagou e que a própria Arma
Freud soube mudar posteriormente suas posições. Quanto a Lacan! Divirto-
me imaginando onde estaria hoje a psicanálise se ele tivesse esperado que
os sujeitos do capitalismo lhe pedissem para ajustar o tempo da cura e da
sessão aos tempos do falasser.
Suspeita, portanto: se a psicanálise hoje perde sua posição de combate,
não seria porque os próprios psicanalistas também fazem parte desses sujeitos
remanejados pelo capitalismo dos quais nos falam? Os potenciais candidatos
a fazer análise talvez não sejam os únicos cujo desejo seja trabalhado pelos
valores do capitalismo.
p,,_.,rs:p ........-fic'-1s pL1fíticas 277
O faro é que a postura social dos psicanalistas mudou ao longo das últimas
décadas. O que lhes aconteceu para o "ao-menos-eu" de cada um, como
dizia Lacan, ter agora tomado uma forma tão midiática?
Com o passar do tempo, penso às vezes que os grandes mudos da
psicanálise tinham seu mérito. Não falo do faro de haver entre os psicana-
listas, como em outras partes, gostos e aptidões diversas - digamos: tenores
e ... carpas*. Falo da postura coletiva do grupo analítico.
Houve um tempo em que existiram esses hiperdiscretos. É verdade
que foi antes do regime do !oft generalizado, em que cada um deve cantar
a sua música. A IPA8 fizera disso até como que uma doutrina, através da
neutralidade necessária de um analista de cores opacas, que reservava suas
eventuais frases para o cenáculo fechado de seus colegas. Lacan lhes fez a
irônica homenagem de um panfleto, "Situação da psicanálise em 1956",
estigmatizando-lhes os ares de compunção e a igreja paródica. E, no entanto,
sua Escola, a Escola Freudiana de Paris, não eliminou sua geração espontâ-
nea. Ele então zombou equitativamente de uns e outros, nos dois casos em
nome do ideal de racionalidade das Luzes, e sabendo bem, como ele diz, que
"o ruído não conYém ao nome do psicanalista" - o que ele provavelmente
sabia por experiência.
É evidente que de modo algum defendo a volta à suficiência do silên-
cio. Penso, ao contrário, que é sempre mais necessário que os psicanalistas
falem aos sujeitos de hoje, mas contanto que lhes falem daquilo que é a
psicanálise, que se expliquem, que enfrentem a dificuldade própria da trans-
missão em seu campo. É outra coisa que se aplicar à tagarelice midiática.
Só que, se há um domínio no qual os rigores da ambição bourbakiana
de transmissão integral sempre encontraram obstáculos, é bem o da psi-
canálise. O próprio Lacan acabou reconhecendo isso ao dizer: "O truque
analítico não será matemático". Não por causa de má vontade, mas justa-
mente porque o inconsciente, que no entanto é racional, e o gozo que ele
programa não permitem, como o faz a ciência, elidir a singularidade. Esta
é na prática tão crucial que objeta a que o analista se reduza a seu nome
comum de analista.
E, aliás, algum dia um analista recebeu uma única vez um único sujeito
que, para demandar uma análise, não chegue munido de urna fala, de urna
frase ouvida, de uma leitura que indique aquele a quem ele se endereça? Que
seja em geral no maior desconhecimento, sem relação com os verdadeiros
critérios de competência, é seguro. Mas essa abordagem imaginária assinala
a impossibilidade do analista anônimo. Lacan pôde falar do "significante
qualquer" do endereçamento analítico, mas logo acrescentava que o ana-
lista, este, deve ser alguém, embora seu significante possa ser qualquer. Ter
pendurado na lapela o nome da função, psicanalista, não basta, jamais; é
preciso um pequeno sinal a mais, por ilusório que seja, que diga ao candidato
que se trata de Um que valha.
Esse fato clínico indica duas coisas. Antes de mais nada, que, em seu
primeiro passo, o candidato à análise nunca se autoriza por si mesmo. Em
seguida, e sobretudo, mais essencialmente, que o amor de transferência
que acompanha a instituição do sujeito suposto saber se endereça, em seu
horizonte, como todo amor, a um nome próprio pelo menos potencial.
É a cruz das associações analíticas! Elas gostariam que aquele que não
se autoriza por si mesmo para endereçar sua demanda de análise confiasse
na autoridade delas mais que naquilo que circula de boca em boca e de um
a outro conforme os encontros. Em outras palavras, elas gostariam que uma
transferência prévia para a instituição orientasse as transferências individuais.
Esse voto não é infundado, nunca vamos dizê-lo o bastante, pois a única
garantia para um analista só pode vir de alguns outros que ali se conhecem
e que o reconhecem. Quando isso acontece, quando a instituição analítica
é elevada ao estatuto de sujeito suposto saber, essa transferência recai sobre
cada um de seus membros, e então cada um pode também ser muito dis-
creto, pois seu pertencimento é para ele urna segurança.
Foi o caso durante décadas enquanto a Associação Internacional criada
no tempo de Freud era a única suposta depositária do saber analítico. Mas,
hoje, está acabado o belo tempo da instituição única. Estranha história, na
verdade: as contingências de suas peripécias confluem tanto com o espírito
do tempo da livre empresa que ternos a impressão de que são tramadas.
Tomemos uma associação diretamente oriunda de Freud, querida
por ele, numerosa, internacional, que vela pela formação e pela garantia
P e r s p" e I i ,. as p o/ í I i e as 219
dos analistas e que conseguiu até fazer com que correntes diversas convi-
vessem, que ficassem juntas, por exemplo Melanie Klein e Anna Freud.
Uma pe1formance! Logo, tudo parece em ordem, pelo menos visto de fora,
no que se refere à respeitabilidade, até surgir o ensino de Lacan. Passo por
cima dos acidentes da história para ir diretamente ao resultado: procede-se
a uma discreta depuração. Fora com o agitador.
Entretanto, não foi uma boa limpeza: é a partir daí que tudo começa,
que o sujeito suposto saber se divide irremediavelmente com a renovação
da doutrina e que a bipartição do campo, que irá até a dispersão centrífuga
após a dissolução da Escola de Lacan, se inicia. Como esse ataque desferido
contra um sujeito suposto saber único da psicanálise não repercutiria sob a
forma de uma inquietude bem sensível? Em consequência, a concorrência
liberal tomou conta das associações analíticas, as rivalidades transferenciais
que foram primeiramente internas aos poucos se adaptaram ao nível inte-
rassociativo; é a luta pelo reconhecimento público, com eventual recurso
ao Estado, que doravante domina. A canalhice ali se acha à vontade, é o
que todos podem constatar. Aliás, noto que não é espantoso, uma vez que
a lógica nunca perde seus direitos, que alguns comecem a sonhar com reu-
nificação e - por que não dizer? - com "fusão", para ficar no tom da lógica
dos grandes trustes do capitalismo.
Eu disse mal-estar, mas é um eufemismo, quando é toda a lógica ins-
titucional que objeta à subversão analítica. Ela não poupa ninguém, domina
qualquer um, pois a via solitária não é uma alternativa mais promissora
pelo fato de que o analista não pode se autoinstituir. É verdade que ele
se autoriza por si mesmo em seu ato e não por sua instituição, Lacan terá
pelo menos feito passar essa verdade; mas esse ato não acontece sem uma
elaboração de discurso que não pode ser obra de um único e coloca todos
sob o controle de seus pares. Foi daí que Lacan formulou a necessidade de
uma Escola de psicanálise.
O fato de esta última poder induzir ao recuo está mais que assegu-
rado e ela atinge os psicanalistas o bastante para que com mais frequência
entreguem os pontos quando acontece. Logo, a psicanálise está à mercê do
psicanalista, o qual Lacan não hesitava em acusar de "responsável" pelo in-
consciente. Responsável por sua articulação na medida em que o analisando
só pode interrogá-lo até fazê-lo produzir uma resposta se ele for causado pelo
desejo em ato do analista. Uma Escola é feita para sustentar esse desejo. A
esse respeito, entre a análise do analista e a Escola, há homologia: o fato de
haver psicanalista é o que está em jogo nos dois casos. Da primeira se espera
o ajuste preciso de um desejo que permita que o analisando sustente o ato
analítico - do qual nunca lembraremos o bastante que ele não é um ato
simplesmente terapêutico -, enquanto que, de uma Escola de psicanálise
com seu passe, espera-se que os analistas, sem os quais o inconsciente não
pode ser interrogado, passem eles próprios a trabalhar a questão, não tanto
pelo que sabem quanto pela retificação da ética.
Retificação sem retificador, evidentemente. E nunca adquirida de
uma vez por todas, porque os psicanalistas têm horror daquilo que lhes foi
revelado, mas também porque as condições da invocação do inconsciente,
através da transferência, mudam ao sabor das evoluções da civilização. Se o
inconsciente é bem aquilo que Freud disse dele, depois Lacan e alguns ou-
tros, os psicanalistas têm esse curioso destino de só conseguirem se integrar
- Deus sabe como o tema é atual - como "êxtimos". Assimilados, juntam-
se à massa dos psicoterapeutas; excluídos, não é melhor, desaparecem. Se
a única política possível é fazer ex-sistir seu discurso, sustentar seu estatuto
de exceção, eles precisam a um só tempo desfazer-se dos modelos ajustados
às décadas anteriores e nunca romper com a ética do bem-dizer. Como
poderiam não ter que em permanência reinventar sua estratégia em relação
aos sujeitos que a eles se endereçam a partir do outro discurso? A imitação
e a reiteração lhes são fatais, mas o esquecimento da subversão freudiana
que causou comoção no início do século xx não o é menos.
Assim, o dispositivo do passe é consubstancial à Escola. Dez anos
depois de tê-lo concebido, em 1976, no prefácio que comentei, Lacan volta
a ele como a um leitmotiv, mas repensado. Ele põe na berlinda o analista
que a isso se presta para que dê o testemunho de sua relação com o sujeito
222 L a e a n , (.., i 11 e o n s e ; ~ H t 1..."' r t2 i 11 e 2 n t a J L,
suposto saber, com a verdade e o Real. É uma prova, a dela não duvidar. É
até o que seus detratores retêm contra esse passe. Teremos tudo entendido
sobre o tema: bomba de efeito retardado para a instituição, talvez até indi-
cador da malícia de Lacan; dispositivo antropófago que devora o passante
se não o vomita; de resto inútil, e que nada inventou, pois, em outra parte,
já se questionavam as análises finitas, que aliás não convém questionar, etc.
Os argumentos do caldeirão sempre assinalam o enrolo, mas é verdade que
há prova e não apenas para o passante.
Mas é tão grave? E também não é o caso na própria cura? De uma à
outra, é a mesma questão: a do bem-dizer, em razão até da inconsistência
do Outro. Que analistas, passada a instalação na profissão, recusem coleti-
vamente a prova, faz sonhar.
O dispositivo do passe, para além de seus fins de garantia e seleção,
não é também o mais propício para cada um, e para o passante em particular,
avaliar o que se tornou sua relação com o sujeito suposto saber, perceber
até onde ele foi realmente na exploração do Outro - essa vista às vezes é
a oportunidade de uma retomada de análise, e é antes um bom sinal -, e,
sobretudo, que condução ele dá àquilo que aprendeu? Pois existem várias
possíveis, na primeira fileira das quais o esquecimento, a fuga, a exploração
cínica, etc.
É que poderia bem haver "retornos no Real" daquilo que a prática
analítica impõe à pessoa do analista. O fato não é novo, mas talvez a época
lhe ofereça vias inéditas. Durante mais de meio século, foi a instituição
analítica que absorveu esses fenômenos de retorno compensatório. Eles
agora passaram para a cena coletiva e se imiscuem no discurso público dos
analistas. Há mais, no entanto. Levanto a hipótese, para dizê-lo previamente,
de que a função analítica, que supõe, como se sabe, uma formação longa,
difícil, e cujo desfecho, além disso, nunca está assegurado, que essa função,
portanto, sempre se faz mais penosa na atual conjuntura capitalista.
Sándor Ferenczi foi o primeiro, bem cedo, e com certeza em razão dos
limites de sua própria análise, a ter realmente percebido o preço a ser pago
por aquele que se oferece para suportar a transferência do analisando. Vários
termos foram produzidos para dizer isso: "abstinência" e "neutralidade",
dizia Freud para designar uma suspensão dos preconceitos da pessoa, de seus
P e r; p e e ti,. a; p o lí ti e as 223
próprio a revelar o inconsciente com o real que ele implica, e esse disposi-
tivo inclui o analista. Logo, a psicanálise permanece em parte à mercê dos
psicanalistas.
Ora, revelar o inconsciente é fazer surgir um efeito de divisão, irredu-
tível. Seguir, por exemplo, a via da decifração das formações do inconsciente,
sonhos mas sobretudo lapsos, já será revelar ao sujeito que a linguagem trabalha
nele, sem ele e antes às suas custas. Freud fazia disso o objetivo primeiro da
análise do analista: que ele tivesse experimentado esse efeito o bastante, dizia
ele, para que "acreditasse" no inconsciente. Parece pouco, mas é muito e talvez
o máximo, se deixa perceber o efeito de divisão que de antemão condena a
introspecção e torna impossível toda autoanálise. Uma verdadeira "subversão
do sujeito", dizia Lacan para designar a objeção feita à unidade e à autonomia
supostas do sujeito clássico assim como às suas visadas de domínio. Lapso
das intenções, contravontade do desejo inconsciente, sardônicas injunções
da repetição assinalam a distância entre as prescrições do discurso coletivo
e as tramoias de um inconsciente que trabalha o gozo e que leva mais rumo
ao "para além do princípio de prazer'' que rumo aos equilíbrios daquilo que
chamam a felicidade. Quem pode querer, ou querer saber, desse inconsciente
tão pouco amável? Algo como um santo nova época?
Ainda mais que, no termo, o analista é o rebatalho da experiência.
O que quer dizer? Não nos deixemos enganar pelas ressonâncias patéticas
do termo. Ele não diz simplesmente que o analista é um objeto destinado
a ser deixado, sorte bem comum, mas que ele só o pode ser desde que seja
destituído de sua posição de objeto da transferência, daí o termo "des-ser".
Acrescento, porém, e aí está o ponto essencial, destituído [déchu] ... sem que
lhe caiba o benefício da operação.
não são atribuídas a seu nome; sorte única esta: o ato analítico opera, mas
ele não é assinado. O que não impede os analistas de serem bem diferentes,
uma vez que o fator pessoal não pode se reduzir a zero, mas o analisando não
tem que trazer a marca dele - e, quando isso acontece, é antes o indício dos
limites de uma prática. Herói obscuro de um ato que o desapossa, o analista
tem de aceitar responsabilizar-se pelos fracassos das análises que ele dirige,
ao passo que os eventuais êxitos devem ser levados ao crédito do analisando.
Responsável, mas não beneficiário, entendemos por que é preciso que ele seja
pago! Para dizer de outra forma: ato e árvore genealógica são incompatíveis.
O analista não tem descendente: o analisando transformado não é nem o
descendente nem o herdeiro, ainda menos a obra do analista. Em outras
palavras: impossível identificar-se com o analista definido por seu ato. Vale
dizer que a psicanálise se perpetua, mas não se transmite.
Creio que foi por isso que Lacan pôde evocar o enigma da escolha
dessa posição. Como sustentar um ato tão anticapitalista, quando ressoa em
todas as coisas a grande questão: o que isso rende e onde está a vantagem?
Como suportar esse ato sem Outro, não só solitário por essência, mas não
capitalizável pelo nome próprio, num mundo que só funciona na base da
retribuição cornábil? Ganhar a subsistência não pede tanto!
Dito de outro modo: é possível ser santo em regime capitalista? Eu
o formulo assim para dar eco à célebre página de Televisão na qual Lacan
comparava o analista ao que foi outrora o santo: aquele que um desejo
singular e contagioso conduzia à margem de toda via canônica, fora dos
caminhos balizados do discurso do tempo. Daí por que, aliás, ele só podia
ser canonizado após a morte e antes suspeito durante a vida. A analogia tem
sua consistência: não há via canônica do ato, que visa, além disso, a saída
do discurso capiralista0 •
Vemos, no entanto, a diferença com o santo clássico. É que o santo não
estava só. Ele era de um tempo que fazia o Outro existir, que o assegurava
da presença divina e lhe fazia promessa da beatitude infinita. Assim, suas
tribulações, seus sacrifícios não o deixavam nunca só, ainda que fosse anaco-
reta no deserto. Com certeza autorizando-se por si mesmo, mais que pelos
preceitos de sua Igreja, mas não sem Outro, e até um Outro de retribuição.
'º Remeto, quanto a esse ponto, ao liHo de Jacques Le Brun. Le pur ,mzo11r de P!ato11 à Laca11,
Paris, Le Seuil, 2002.
Ü QL'E QUER O PSICANALISTA?
11 Cf. as três "linhas de desenYoh-imento'' distintas que Anna Freud isola. a do eu [moí]. com
seus aparelhos, a das relações de objetos e as das pulsões.
12 Empreguei essa expressão a partir daquela de "formações do inconscie:1re··. forjada por Lacan.
para dizer que o sintoma também é gozo.
Perspecfii-as poffticas 22Q
procede apenas por via éticà' 14 • Era colocar que a opção ética domina o registro
epistêmico - do qual acabo de lembrar que ele próprio está enodado ao político.
A tese vale para todos os casos, pois a frase se aplicava tanto às condições que
possibilitaram a emergência da ciência moderna quanto àquelas que abriram
a via de Freud, e ela me parece ainda mais assegurada hoje que ontem.
O AVESSO DO COGNITl\'1:3:S!C'
O problema, além disso, é que, uma vez reconhecido esse efeito de divisão, é
preciso reconhecer também que ele não poupa nada, sequer o pensamento,
do qual gostaríamos de pensar (sic) que ele pode livrar-se de boa. Mas não,
o desejo de que vive o pensamento não é menos sujeito ao efeito de divisão
que qualquer outro desejo. Nesse sentido, não se pensa realmente a divisão
do sujeito, na melhor das hipóteses se pode pensar "dentro da divisão" 15 •
O discurso sobre o inconsciente é um discurso condenado, pois não existe
coerência de discurso da qual o inconsciente não caçoe. Com isso, como
conversar com aqueles que não experimentaram isso e como fazer a episte-
mologia da psicanálise?
Afinal, pode-se concluir, como faz Lacan em Mais, ainda, que "a
realidade é abordada com os aparelhos do gozo" 16 • Um único aparelho,
portanto, a linguagem, para facilitar o acesso a um só tempo à percepção, ao
pensamento e ao gozo. Vale dizer que o próprio pensamento procede apenas
por via ética, que "o julgamento da mesma forma, até o 'último', é apenas
fantasia [... ]" 17 , e que não há "universal que não se reduza ao possível" 1'. É
este o postulado radicalmente anticognitivista da psicanálise em sua \·ersão
que eu de bom grado diria freudo-lacaniana, mais que somente lacaniana,
embora as fórmulas sejam de Lacan.
Com efeito, não sou favorável à tese de um Freud cientificista. Há
por certo em Freud formulações que resultam de um toque ciemificista,
mas nenhuma inspiração cientificista jamais poderia ter sido parida pela
psicanálise. Quanto ao postulado que digo anticognitivista, ele nada tem
a ver com um retorno a um qualquer pré-racionalismo que faria pouco do
cuidado da demonstração própria ao próprio espírito científico, ao qual
tanto Freud como Lacan sempre deram muita importância. É o contrário:
antes seria preciso notar que o próprio cognitivismo está longe de poder
explicar a ciência, tão desigual à epistemologia que ela requer que ele dela
é antes o rebaixamento. Mas não é este o meu propósito.
Três teses são enodadas: não há política da psicanálise sem uma con-
cepção da psicanálise e do sujeito que ela trata. Aliás, é por isso que Lacan
podia evocar seus próprios ''esforços para desatar a estagnação do pensamento
psicanalítico"!') e para restituir sua visada de cientificidade. Mas, por outro
lado, não há pensamento todo, que possa excetuar-se dos efeitos de divisão:
o "Penso" está dividido e, para cada asserção, das razões que a justificam à
causa que a produz, há um mundo. O pensamento, longe de poder pensar a
própria causa, é por ela dividido; resultado, é a opção dita ética que domina
saber e política. Aliás, seria preciso retomar daí a indiferença em matéria
doutrinal, da qual o atual discurso tende a fazer uma virtude de abertura (sic)
ao ponto de criticar o sectarismo em todos os criadores de discursividade,
sem perceber que cedendo no pensamento eles cederiam na ética do próprio
discurso. Hoje, o termo "éticà' está, infelizmente, muito desprestigiado entre
os próprios analistas que, por vezes, não hesitam em dele se paramentar,
mas ele guarda, contudo, seu valor. A ética da psicanálise está situada, como
qualquer outra, numa posição em relação ao Real, mas se distingue, entre
todas, por visar esse Real pelo "bem-dizer". Logo, o que pode ser uma po-
lítica orientada apenas pelo dever do bem-dizer, tanto do ponto de vista de
cada cura quanto do ponto de vista das instituições analíticas?
fato existe, a experiência prova, mas ele é apenas mudança de sintoma. Dito
sem ironia, uma obsessão pode ceder, pois uma mulher, ou um homem,
ou qualquer outro parceiro pode vir a substituí-ia! Uma homossexualidade
assumida pode se substituir a uma heterossexualidade que era apenas de
fachada, e reciprocamente, etc. Um sintoma mais vivível para o sujeito se
substituir ao que lhe era intolerável é um belo sucesso. Só que é um sucesso
que o sujeito é o único a poder avaliar, pois só ele experimenta seu benefício
de satisfação. É o problema, pois nada diz que um sintoma mais vivível
para ele esteja mais de acordo com as expectativas das pessoas à sua volta
e, de modo mais geral, com os preconceitos sociais. Logo, é preciso estar
preparado para que continuem os protestos bem conhecidos daqueles que
não obtêm os analisados a seu gosto!
Quem ousará dizer hoje, e em nome de que, o que deve ser o sintoma
de saída? E que, por exemplo, ele precisaria ser hétero mais que homo, ou
ainda apaziguador para a felicidade dos vizinhos, e materno quando é uma
mulher, etc.? Digo hoje, pois algo já mudou no discurso. Pode-se medi-lo
pelo fato de que a homossexualidade, que era, há um século, tratada como
um delito e uma perversão da namreza, tem hoje direito de cidadania. A
psicanálise com certeza tem algo a ver com essa evolução, e uma parte daquilo
que ela nos ensina entrou, com efeito, no discurso comum.
Como o psicanalista criticaria essa evolução dos gostos? Ele no máximo
poderá constatar, observar que, uma vez afrouxada a repressão puritana e
permitidos os gozos "considerados perversos" 20 , os sujeitos nem por isso
estão muito mais alegres [gais], é um fato. O que não vai nos espantar, pois
ele é pago para saber que os gozos do falasser encontram entraves que não
são casuais. Ele poderá até antecipar os processos superegoicos de escalada
excessiva que um regime de permissividade não deixa de induzir. Daí não
concluirá por uma perversão crescente, mas pela pegada forçada do efeito
de discurso sobre os sujeitos.
O que está excluído, por outro lado, é que ele possa prescrever o
discurso de seu tempo a não ser saindo do dele, que não visa retificar os
modos, mas analisar os sintomas e reduzi-los, para cada um daqueles que o
20 J. Lacan, "Compre rendu sur 'Lacte analytique"', Ornicar?, 29, Paris, Navarin, 1984, p. 22.
234 La e <.1 11, '-, i n e L., n 5 e i e 11 te r .J ; 11 i· e 11 t LI J (. ,
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transformação radical que provoca esse conceito na constelação das referências
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