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O Tempo Vivo DA MEMORIA [EMORIA _ ENSAIOS DE PSICOLOGIA SOCIAL 1 Se A SuBsTANcIA SOCIAL DA MEMORIA Histéria e Crénica A hist6ria que estudamos na escola nao aborda o passado recente e pode parecer aos olhos do aluno uma sucessao unili- near de lutas de classes ou de tomadas de poder por diferentes forgas. Ela afasta, como se fossem de menor importancia, os aspectos do quotidiano, os microcomportamentos, que so fun- damentais para a Psicologia Social. Estes aspectos so abrangidos pelo que chamavam na Idade Média de “crénica” (nao esquecer a raiz chronos = tempo), anedotica, tecida de pequenos sucessos, de episddios breves da famflia, de cenas de rua vividas por andnimos. As comunas medievais tiveram seus cronistas que narravam episddios agradaveis, pitorescos, enfim, aquilo que podemos chamar de cr6nica urbana. Levando em conta somente os cro- nistas italianos, citemos, em Milio, Landolfo Senior e Junior, autor de Historiae Mediolanenses, em latim vulgar (século XID; em Génova, os Anais de Cdffaro di Rustico (século X11); 13 O TEMPO VIVO DA MEMORIA em Parma, 0 Chronicon (século XIII), em latim Vulgar, ond percebemos o humor maldizente do Irmao Salimbene da _ ma, obra rica em pequenos episddios, em conversas de ru: uma janela para outra. A cidade de Florenga conserva 0 registro de dois Cronistas do século XIV: Dino Compagni, que, na Cronica delle cose occorrenti ne’ tempi suoi, trata da vida familiar e politica dg ci. dade, onde Dante se inspirou para descrever seus contempor4- heos e prometer a ida de alguns ao inferno; e Giovanni Villani, autor da Nuova Cronica que curiosamente comega a histéria de Florenga pela descrigao da Torre de Babel. Eis alguns cronistas do povo ou da pequena burguesia nascente. Na verdade, eles registraram a meméria oral. Provando a oralidade das fontes, os dicionérios italianos buscaram nos cronistas florentinos as palavras em uso na Idade Média. Quando, para vencer as “corporagGes dos oficios”, as signo- rie se instalam, a burguesia concentra seu poder nos centros urbanos: os Doria em Génova, os Vendramin em Veneza, os Co- lonna em Roma, os Medici em Florenga, os Visconti e os Sforza em Milao, os Grimaldi em Ménaco... A histéria destas cidades se torna uma hist6ria politica compacta e vai registrar o poder das grandes familias, dos reinos, da guerra entre os estados. A cronica seré relegada como um género literério menor, que trabalha com o aspecto descontinuo dos eventos. Uma “conti- nuidade” costurada pelo presente surge, unitdria e teleoldgica, como se todos os eventos tivessem um fim: a gléria de Luis XIV, de Napoledo, das monarquias nacionais etc. Quando nos anos 1970, as grandes teorias da hist6ria, como a teoria evolucionista, a teoria hegeliano-marxista entram em crise, entra em crise também o sentido da Hist6ria Politica. O Oceano de pequenas estérias tomaré seu lugar, como a est6- a, de 14 A SUBSTANCIA SOCIAL DA MEMORIA tia do descontinuo, do pontual, do que parece fragmentario, ao ponto de esquecer o tecido histérico que sustenta os fatos, como € 0 caso da psicologia dos microcomportamentos. Por que a crénica e a tradico oral est&o de novo valori- zadas? A meméria oral é um instrumento precioso se desejamos constituir a crénica do quotidiano. Mas ela sempre corre 0 risco de cair numa “ideologizagio” da histéria do quotidiano, como se esta fosse 0 avesso oculto da histéria politica hegem@nica. Os velhos, as mulheres, os negros, os trabalhadores ma- nuais, camadas da populacdo exclufdas da histéria ensinada na escola, tomam a palavra. A histéria, que se apoia unicamente em documentos oficiais, nao pode dar conta das paixGes indivi- duais que se escondem atras dos episédios. A literatura conhe- cia ja esta pratica pelo menos desde o Romantismo: Victor Hugo faz surgir Notre Dame de Paris num quadro popular me- dieval que a histéria oficial havia desprezado. A meméria dos velhos pode ser trabalhada como um media- dor entre a nossa geracdo e as testemunhas do passado. Ela é o intermediério informal da cultura, visto que existem media- dores formalizados constitufdos pelas instituigdes (a escola, a igreja, o partido politico etc.) ¢ que existe a transmissao de valores, de contetidos, de atitudes, enfim, os constituintes da cultura. A meméria oral, longe da unilateralidade para a qual ten- dem certas instituigdes, faz intervir pontos de vista contradi- torios, pelo menos distintos entre eles, e af se encontra a sua maior riqueza. Ela nao pode atingir uma teoria da histéria nem pretender tal fato: ela ilustra 0 que chamamos hoje a Histéria das Mentalidades, a Histéria das Sensibilidades. om ‘A meméria se enrafza no concreto, no espago, gesto, imagem ¢ op jeto. A histéria se liga apenas as continuidades temporais, as evolucies € As relacdes entre as coisas’. A pesquisa me permitiu colher alguns resultados sobre a meméria familiar, a meméria politica, a meméria do trabalho, enfim, sobre a substancia social da mem6éria; exponho agora algumas reflexdes com liberdade na eleigdo dos temas que me so caros, liberdade que gostaria de compartilhar com o leitor, Historia Oral, Histérias de Vida O movimento de recuperagao da memoria nas ciéncias hu- manas seré moda académica ou tem origem mais profunda como a necessidade de enraizamento? Do vinculo com o pas- sado se extrai a forca para formagao de identidade. Simone Weil julga esse vinculo um Direito Humano seme- Ihante a outros direitos ligados a sobrevivéncia. Fontes de outras épocas repropdem questées sobre o presente. Simone Weil, para enfrentar os tempos sombrios do nazismo, lia e relia Herddoto, Tucidides, Plutarco, César, Tito Livio, Técito... Ea Iliada, Es- quilo, Séfocles, que atingiram motivagées tao profundas que resistiram até nossos dias; e mergulhou no Livro dos Mortos dos egipcios, na Biblia, no Bhagavad Gita, procurando ouvir nos originais sanscritos e babilénicos 0 mesmo antigo grito”. Quando se trata da hist6ria recente, feliz o pesquisador que se pode amparar em testemunhos vivos e reconstituir compor- 1. P.Nora, Les liewx de la mémoire, Patis, Gallimard, 1984, vol. I, p. XIX. 2. Simone Weil. A Condigdo Operdria e Outros Estudos sobre a Opressdo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996, 16 ‘A SUBSTANCIA SOCIAL DA MEMORIA tamentos e sensibilidades de uma época! O que se da se 0 pes- quisador for atento as tensdes implicitas, aos subentendidos, ao que foi s6 sugerido e encoberto pelo medo... Um exemplo que pode parecer pouco dramatico é 0 relato de uma reuniao “oficial” de que o depoente participou. Se for registrado em documento, ser4 esquematizado, empobrecido e sobretudo feito para agradar o poder em exercfcio ou a facgao prestigiada no momento. As atas de reuniées oficiais suprimem as dissonancias como impertinéncias, e os conflitos séo apa- gados como digressdes intiteis. Onde a razio que vacilou, ga- guejou e nao soube se expressar? Tais registros nao refletem a microssociologia do poder, as redes de influéncia e nado captam a “atmosfera” do grupo: 0 campo mutuamente compartilhado dos gestaltistas cujos contornos sao definidos pelos olhares e express6es faciais. Mas nao va alguém pensar que as testemunhas orais sejam sempre mais “auténticas” que a versio oficial. Muitas vezes sao dominadas por um processo de estereotipia e se dobram & memi6ria institucional. Ouvi, numa mesa redonda, Michael Hall contar que quando entrevistava um lider sindical que havia encabegado um movi- mento operario, este, para desespero do historiador, 0 atalhou: — “O senhor volte outro dia, estou despreparado. Quero ler 0 que se escreve sobre o movimento para me informar e responder direito as suas perguntas”. Pude perceber essa forga da meméria coletiva, trabalhada pela ideologia, sobre a meméria individual do recordador, o que ocorreu mesmo quando este participou e testemunhou os fatos e poderia portanto nos dar uma descrigao diferenciada e viva. Parece que h4 sempre uma NARRATIVA COLETIVA privile- giada no interior de um mito ou de uma ideologia. E essa narra- 7 0 TEMPO VIVO DA MEMORIA tiva explicadora e legitimadora serve ao poder que a transmite e difunde. A Universidade também tem 0 poder de contar e interpreta, 0s eventos que se passam no mundo operdrio ou nos meio, populares, em geral. Ha portanto uma meméria coletiva produzida no interio, de uma classe, mas com poder de difusao, que se alimenta de imagens, sentimento, ideias e valores que dao identidade aquelg classe. A meméria oral também tem seus desvios, seus precon- ceitos, sua inautenticidade. Exemplos nao faltam: como a dos franceses que colaboraram com os nazistas durante a guerra E dos alemaes durante a ascensio de Hitler. Quem aclamava 9 Fiihrer nos estddios? Que multid&o erguia milhares de bracos? Seriam bonecos ou mdscaras de Ensor? E alguns judeus ao relembrar 0 Holocausto esquecem os vinte milhdes de soviéticos sacrificados pelo nazismo. Entrevistei japoneses que se dizem pacifistas mas que se recusam a pensar em Hiroshima e Nagasaki. Cabe-nos interpretar tanto a lembranga quanto o esqueci- mento. Esquecimento, omissdes, os trechos desfiados de narrativa sao exemplos significativos de como se deu a incidéncia do fato histérico no quotidiano das pessoas. Dos tragos que deixou na sensibilidade popular daquela época. Sempre me intrigou a vivacidade ea tiqueza de detalhes com que os velhos paulistanos lembram a Revolugao de 1924, a do Isidoro. Nao nos surpreenderemos mais contudo, ao verificar- mos quantas casas e quintais foram metralhados nos bairros de Sao Paulo. Houve um éxodo de familias que se refugiaram n0 interior com parentes que os acolheram enquanto durou a revol- 18 A SUBSTANCIA SOCIAL DA MEMORIA ta. E apesar de tudo houve simpatia da populagao pelos tenentes Tevoltosos. Seis anos depois, as professoras do Bras, da Mooca, da Lapa, comegaram a alfabetizar muitos I: lsidoros que haviam nascido em 1924, O presente, entregue as suas incertezas e voltado apenas Para o futuro imediato, seria uma prisio. Se 0 tecnicismo reinante quer-nos convencer que a nostalgia € sentimento inutil, ela, no entanto faz parte da humanidade do homem e teria direitos de cidadania entre nés, na opiniao de Alain Finkielkraut, A técnica cria redes de globalizagao mas o mundo ¢ feito de territdrios, nagdes, Paisagens. O fetichismo da técnica nao con- Segue explicar por que nada substitui a reflexdio solitdria. A in- teracdo nao esgota 0 alcance da comunicagdo. Caso contrario, nds nos comunicariamos apenas com os contemporaneos 0 que seria uma grave perda. E ha formas de comunicagao insubs- titufveis como a conversa espirituosa entre amigos em volta da mesa, cujo charme a técnica nao conseguiria reproduzir’, Grande mérito dos depoimentos é a tevelagao do desnivel assustador de experiéncia vivida nos seres que compartilharam a mesma época; a do militante penetrado de consciéncia hist6- rica e a dos que apenas buscaram sobreviver. Podemos colher enorme quantidade de informages factuais mas o que importa € delas fazer emergir uma visio do mundo. Como arrancar do fundo do oceano das idades um “fato puro” memorizado? Quando puxarmos a rede veremos 0 quanto ela vem carregada de representag6es ideoldgicas. Mais que o docu- mento unilinear, a narrativa mostra a complexidade do aconteci- mento. E a via privilegiada para chegar até o ponto de articulacao 3. A. Finkelkraut, entrevista a Label France, Paris, 2000. 19 0 TEMPO VIVO DA MEMORIA a da Historia com a vida quotidiana. Colhe pontos de vista iver sos, As vezes opostos, € uma recomposigao constante de dado. Nao esquecamos que a meméria parte do presente, de uy presente vido pelo passado, cuja percepgao “é a Aptopriaggy veemente do que nds sabemos que nao nos pertence mais‘, A fonte oral sugere mais que afirma, caminha em curyag , desvios obrigando a uma interpretagio sutil e rigorosa, Marguerite Yourcenar confessou que s6 conseguia recompo, © passado com um pé na erudigdo e outro na magia. Mas sem enveredar por esse caminho, poderemos empregar uma expres. sio como “sensibilidade diacrénica”, 0 que deve ter o cientist, que, além de observar 0 jogo sincr6nico das oposi¢Ges, procura nos fenédmenos a sucessao e 0 devir. Segundo Benjamin, os adivinhos achavam que dentro do tempo existia algo a ser extraido; 0 tempo € nao homogéneo € vazio, mas repleto de indices. Os profetas apelavam para as ligdes da memoria porque “o passado arrasta consigo um indice secreto que 0 remete a salvacao”>. O mago que transmuta o passado em futuro deve ter mio rdpida para capturar 0 Tempo no timo da sua cognocibilida- de porque ele fulgura um instante e se desvanece, Se o olhar demora e fixa, retém 0 esteredtipo, nao uma coisa viva como a imagem que sobe do passado com todo o seu frescor, Chamada de novo, trabalhada pela percepcao do agora, arrisca-se a fugit da captura de um presente que nao se reconhece nela. A sensibilidade a diacronia permite que se faga a invocagao de uma gestalt longinqua que foi um dia um complexo vivo de significagées, 4. P.Nora, op. cit, p. XI. 5. W. Benjamin, “Teses sobre a Filosofia da Historia” em Obras Escolhidas, vo 1, Sio Paulo, Brasiliense, 1996, 20 A SUBSTANCIA SOCIAL DA MEMORIA SOB O SIGNO DE BENJAMIN Walter Benjamin debrugou-se sobre a meméria familiar e a escassa memoria ptiblica dos burgueses franceses do tempo de Baudelaire e dos burgueses alemaes de sua época. E meditou sobre 0s efeitos do capitalismo andnimo que corréi, quando nao destrdi a meméria coletiva, forcando o agarrar-se aos fiapos da sua meméria familiar’, No meu campo de observagiio estavam velhos recordadores que nasceram no comego do século XX no Brasil. Os anos 1920 © 30 formam a substancia de suas lembrangas. Pertenceram (uso 9 pretérito porque eles ja se foram) quase todos a classe média baixa que se constituiu com a migragdo europeia em Sao Paulo. Cronologicamente, sem dtivida, sio contemporaneos de Benjamin. Mas até que ponto o curso das suas lembrangas tende para a vida doméstica, ninho tépido de uma identidade protetora que a anomia capitalista moderna jamais lhes poderia oferecer? A questo seria impensdvel sem o cruzamento das fronteiras da Psicologia, da Sociologia, da Histéria, cruzamento que se tornou possivel com a leitura de Benjamin e dos frankfurtianos. E deve-se ressaltar a admirdvel contribuicdo de um socidlogo classico sacrificado pelo nazismo, Maurice Halbwachs. Mas voltando a questiio proposta: Quando um acontecimento politico mexe com a cabega de um determinado grupo social, a memoria de cada um de seus membros é afetada pela interpretagao que a ideologia dominan- 6. Este texto se originou na leitura e arguigio que fiz. da tese de Jeanne Marie Gagnebin (10.5.1995) publicada no livro Historia e Narragdo em W. Benjamin, ensaio de um vigor e profundidade notiveis, S4o Paulo, Perspectiva, 1994. a 0 TEMPO VIVO DA MEI te dd desse acontecimento. Portanto, uma das faces da Meméria ptiblica tende a permear as consciéncias individuais. E preciso sempre examinar matizando os lagos que unem memiria e ideologia; lacos que, antes da secularizagio Moder. na, amarravam a meméria ptiblica 4 memoria individual, Um exemplo talvez ilustre melhor essa hipdtese: A burguesia paulista viveu apaixonadamente a chamada Revolugiio Constitucionalista de 1932. Nao se pode negar nem a participagao efetiva da maioria dos seus membros, nem a me. méria, coletiva e pessoal, que restou dessa participacao. O mo. vimento, como se sabe, foi vencido militarmente pelas tropas federais. So Paulo continuou sob o governo de um interventor nomeado por Gettlio Vargas. Esta, a verita effettuale della cosa, no dizer de Maquiavel. No entanto, quando um de meus memorialistas recorda o fim da luta, da qual ele participa de corpo ¢ alma como soldado voluntério de primeira hora (pois pertenceu ao 1° batalhdo organizado no préprio Instituto do Café), a sua interpretagio é, convictamente, a de um vencedor, Como sua classe, como o seu grupo de convivéncia, 0 velho Ribas nao podia admitir a ideia do fracasso, ele, que no entanto, vira com seus olhos a extensio da derrota. Diz com toda certe- Za: “Sao Paulo ndo perdeu, nem se rendeu; apenas ensarilhou as armas”. E com ele dizem o mesmo os narradores que oficiam anualmente, a 9 de julho, a vit6ria moral da Revolugio de 32¢ se elegeu um lugar de meméria no monumento “aos épicos de 32”. Ha, portanto, uma meméria coletiva (no caso, a produzida no interior de uma classe, mas com poder de difusio), a qual se alimenta de imagens, sentimentos, ideias e valores que dao identidade e Permanéncia aquela classe. No caso, os interesses da burguesia do café acabaram envolvendo sentimentos regio- nais de paulistismo, que ainda hoje operam como fator discri- 22 A SUBSTANCIA SOCIAL DA M minante em plena sociedade de massas, tal como veio a confi- gurar-se a populagiio da cidade de So Paulo. Mas nao se pode negar que exista uma memoria coletiva ou de classe. Ja dei, noutro lugar, o exemplo do sindicalista que precisou ler livros de Histéria para responder A entrevista sobre 0 que ele havia vivido. Quer dizer: nao é que nao haja mais, absolutamente falando, ocasido para alimentar uma meméria ptiblica (maio de 1968 que o diga...; e para nds, as passeatas, a campanha das eleigGes diretas que o digam também); mas, quando essas ocasides se dao, a meméria desses eventos, mesmo quando participados, pode ser cooptada por esteredtipos que nascem ou no inte- rior da prépria classe (caso da versao da burguesia paulista de 1932), ou de instituigdes dominantes como a escola, a univer- sidade que so instancias interpretativas da Historia. Estes exemplos ¢ observagées nao contradizem absoluta- mente as reflexdes de Benjamin sobre a fabricagao sistematica de “espagos de intimidade” e de suas evocagées pela cultura burguesa que viveria de costas para a experiéncia piiblica; ape- nas nos dao a pensar que em relagio as representagGes coletivas a classe mais influente deixou suas marcas. As instituigdes escolares reproduzem essas versGes solidifi- cando uma certa mem6ria social e operando em sentido inverso ao da lembranga pessoal, tio mais veraz em suas hesitagdes, lacunas e perplexidades. Tempos Vivos e Tempos Mortos Existe, dentro da hist6ria cronolégica, outra hist6ria mais densa de substancia memorativa no fluxo do tempo. Aparece 23 EMPO VIVO DA MEMORIA 9 com clareza nas biografias; tal como nas paisagens, hg matey no espago onde os valores se adensam. O tempo biografico tem andamento como n oallegro da infancia que parece na lembranga | até 0 adagio da velhice, A sociedade industrial multiplica horas mortas Suportamos: sao os tempos vazios das filas, dos ba Tocracia, preenchimento de formulério: Como alguns percursos obrigatérios na cidade, zem actimulo de signos de mera informagao no Casos; tais percursos sem significagao biogrdfica, mais invasivos, 8 a Musica dese luminoso @ doce Ue apenas NCOs, da by, Ue nos tra. melhor dos sao cada vez Meus depoentes eram jovens, decénios atrds, € penso que neles tenha pesado menos esse tempo vazio; pesa entao sobre n6s um desfavor em relacao a esses velhos tecordadores, Se ey pedir: — Conte-me sua vida! Sei que o intelectual me vird com varias interpretagdes Para preencher lacunas ou iludir esse des- favor. Mas se eu Conseguir que me narrem seus dias como fazem &S pessoas mais simples, ficard evidente a espoliagiio do nosso tempo de vida pela ordem social sem escamoteagio possivel, Se a substincia memorativa se adensa em algumas passa- Sens, noutras se esgarca com grave prejuizo para a formagao da identidade. E grave também Nesse processo 0 ofuscamento Perceptivo, ou melhor dizendo, su ibjetivo, uma vez que afeta o sujeito da percep¢io, AS coisas aparecem com menos nitidez dada a rapidez ¢ descontinuidade das relagdes vividas; efeito da alienagao, a grande embotadora da Cogni¢ao, da simples observagao do mundo, do conhecimento do outro. Desse tempo vazio a atengio foge como ave assustada. 24 A SUBSTANCIA SOCIAL DA MEMORIA, kok Se h4 uma relaciio que une época e narrativa, convém veri- ficar se a perda do dom de narrar é sofrida por todas as classes sociais; mas nao foi a classe dominada que fragmentou o mun- do e a experiéncia; foi a outra classe que daf extraiu sua energia, sua fora e 0 conjunto de seus bens. Objetos Biogrdficos e Objetos de Status Na Pequena Histéria de Fotografia ¢ em Paris, Capital do Século XIX, Benjamin descreve 0 interior dos lares burgueses, a intimidade atapetada e macia, os detalhes da decoragiio que procuram marcar a singularidade de seus proprictarios. Criamos sempre ao nosso redor espacos expressivos sendo 0 processo de valorizacao dos interiores crescente na medida em que a cidade exibe uma face estranha e adversa para seus moradores. So tentativas de criar um mundo acolhedor entre as paredes que o isolam do mundo alienado e hostil de fora. Nas biografias que colhi, as casas descritas tinham janelas para a frente; ver a rua era uma diverso apreciada nao haven- do a preocupagao com 0 isolamento, como hoje, em que altos muros mantém a privacidade e escondem a fachada. — Fui tentada a rever uma oposi¢do, que hd muito venho fa- zendo ao comparar lembrangas, a oposi¢do entre objetos bio- grGficos e objetos de status. Se a mobilidade e a contingéncia acompanham nossas re- lagées, ha algo que desejamos que permanega imével, ao me- nos na velhice: 0 conjunto de objetos que nos rodeiam. Nesse conjunto amamos a disposi¢io tacita, mas eloquente. Mais que TEMPO VIVO DA MEMORIA uma sensagiio estética ou de utilidade eles nos dao um aSsentj. mento A nossa posigao no mundo, a nossa identidade; ¢ © que estiveram sempre conosco falam & nossa alma em sua lingua natal, _ O arranjo da sala, cujas cadeiras preparam 0 Cfrculo das NY conversas amigas, como a cama prepara 0 descanso ea mesa de y cabeceira os derradeiros instantes do dia, 0 ritual antes do Sono, A ordem desse espago nos une e nos separa da Sociedade ¢ € um elo familiar com 0 passado. Quanto mais votados ao uso cotidiano mais expressivos sio os objetos: os metais se arredondam, se ovalam, os cabos de madeira brilham pelo contato com as maos, tudo perde as arestas e se abranda. Sao estes os objetos que Violette Morin’ chama de objetos biogrdficos, pois envelhecem com 0 Possuidor € se encorporam res vida’ a relGcio da fami rafias. a ‘Vivida, uma aventura afetiva do morador. Diferentes sao os ambientes arrumados para patentear sta- tus, como um décor de teatro: h4 objetos que a moda valoriza, mas ndo se enrafzam nos interiores ou tém garantia por um ano, nao envelhecem com 0 dono, apenas se deterioram. S6 0 objeto biografico é insubstitufvel: as coisas que enve- lhecem conosco nos dio a Pacifica sensacio de continuidade. Reconhece Machado de Assis: —=—=S*=~S*~S*~ galerias; mas haveré “alguém para recolher os despojos da cidade para os quais nin- guém volta os olhos ¢ o vento dispersa. Os depoimentos que ouvi esto povoados de coisas perdi- das que se daria tudo para encontrar quando nos abandonam, sumindo em fundos insondaveis de armérios ou nas fendas do assoalho, e nos deixam a sua procura pelo resto da vida’, 8. No Orlando Furioso, de Ariosto, as coisas perdidas na terra sobem para a lua ‘onde permanecem, quem sabe, & nossa espera. 29 © TEMPO VIVO DA MEMORIA a e ouvi do Sr. Amadeu, jeste, que combatey dial: Reproduzo aqui trecho da narrativa qu filho de uma grande e afetuosa familia de Tr na Resisténcia durante a tiltima guerra mun = Hoje as criangas leem Pindquio em adaptagao ea historia fica bem resumida, Ou veem 0 filme de Walt Disney. Mas nés tin! Nele, 0 carpinteiro Gepetto hamos em casa 6 livro original do escritor italiano Collodi. +a um trabalhador que s6 conheceu a po. de lutava contra a fome e 0 frio com No fundo desse que criou 0 boneco de pau e breza. Morava num quartinho on a forga do seu brago que ia dimint quartinho via-se uma lareira com u! pintura do engenhoso Gepetto na par com a visio de uma lareira. Esse des wuindo com a idade. m belo fogo: mas era apenas uma ede, para iludir 0 frio do inverno enho me encantava € penso que olivro. Gepetto aconselhava 0 teimoso Pindquio, cabega de pau: ode servir para alguma coisa! ainda encanta as criangas que folheiam — Nao jogue nada fora. Isso um dia p\ (Este conselho os velhos vivem repetindo: eles nao conse- guiram assimilar ainda a experiéncia do descartavel que lhes parece um desperdicio cruel. Por isso 0 armario das vovés € cheio de caixas, retalhos e vidrinhos...) Os meninos italianos ouviam de suas maes este conselho que Gepetto dava para o endiabrado Pindéquio. aK Capturado pelos nazistas, Amadeu conheceu um extremo despojamento, foi privado de tudo. As roupas largas dangavam no bea Corpo € os sapatos, tirados de uma pilha sem numera¢ao, feriam seus pés. Vagava pelo campo como um espectro famin- {0, ia resistindo no “avesso do nada”. Mas sempre havia algo 30 ‘A SUBSTANCIA SOCIAL DA MEMORIA a ser descoberto: um papel rasgado que a ventania arrastava, um santinho amassado que alguém esqueceu, um prego sem cabega, uma chave partida. Ele ia guardando cada um desses fiapos abandonados. Por exemplo, de um papel rasgado fez um envelope, des- creveu no avesso a sua agonia, enderegou ao irméo em Trieste e escondeu-o num buraco do chao. Dois anos depois seu irmao recebia a carta. Alguém a havia encontrado e enviado pelo cor- reio. Quem teria sido? Nunca souberam. A chave partida que recolheu num ralo e conservou por tanto tempo, ele transformou num instrumento heroico. Quan- do conduzido para Auschwitz, usou-a como chave de fenda na janelinha do banheiro do trem ¢ daf saltou para a liberdade e para a vida. ae A Luz de Estrelas Remotas A meméria opera com grande liberdade escolhendo acon- tecimentos no espaco e no tempo, nao arbitrariamente mas porque se relacionam através de indices comuns. Sao configu- ragdes mais intensas quando sobre elas incide o brilho de um significado coletivo. F tarefa do cientista social procurar esses vinculos de afini- dades eletivas entre fenémenos distanciados no tempo. Como exemplo, cito uma frase do longo depoimento de Dona Jovina Pessoa, militante que acompanhou desde os pri- meiros vagidos anarquistas do Brasil até a luta pela anistia dos presos politicos que ela travou j4 com 80 anos. 31

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