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92 Robert Gilpin economias dependentes so colhidos por uma rede de forgas do mercado da qual € muito dificil escapar.” Em suma, de acordo com Wallerstein, o sistema moderno instaurado pelo capitalismo ocidental nos séculos XVI e XVII nao foi alterado na sua esséncia a0 longo dos séculos, E um sistema que tende a se reproduzir, 4 medida que os ricos ficam mais ricos ¢ os pobres, mais pobres. No longo prazo, contudo, niio pode escapar as leis inevitiveis da extingdo do capitalismo, postuladas pela teoria marxista (Skocpol, 1977, p. 1078). Como vamos mostrar, essa concep- io da economia mundial influenciou profundamente muitos paises menos de- senvolvidos na sua demanda por uma Nova Ordem Econ6mica Internacional. A teoria da estabilidade hegeménica Segundo a teoria da estabilidade hegeménica, conforme formulada inicial- mente por Charles Kindleberger (embora ele preferisse em lugar de “hegemonia” 0 termo “lideranca” ou “responsabilidade”), uma economia mundial liberal exi- ge a presenga de uma poténcia dominante ou hegeménica. Nas palavras de Robert Keohane, a teoria sustenta que as estruturas hegeménicas de poder, dominadas por um tinico pais, sfio mais conducentes ao desenvolvimento de regimes internacionais fortes, com regras relativamente precisas e bem respeitadas (...) € de esperar que o declinio das estruturas hegeménicas de poder pressagie um declinio na forga dos correspondentes regimes econdmicos internacionais (Keohane, 1980, p. 132). poder hegeménico deseja e pode estabelecer e manter as normas ¢ as regras de uma ordem econémica liberal, e com o seu declinio essa ordem se enfraque- ce muito. ‘A palavra-chave no pardgrafo precedente é “liberal”, ou seja, a teoria est relacionada com a existéncia de uma economia intemacional baseada nos precei- tos do livre mercado, tais como a abertura ¢ a nflo-discriminagiio. A teoria no argumenta que uma economia internacional deixaria de poder existir e funcionar na auséncia da hegemonia. Obviamente, as economias internacionais sempre existiram, de uma forma ou de outra, O que ela afirma é que um tipo particular de ordem econdmiica internacional, a ordem liberal, ndo poderia florescer e alcangar seu pleno desenvolvimento sem a presenga de um poder hegeménico. 7D conceito de Estados “duros” “‘suaves" ou*fortes” ¢“fracos” é muito ambiguo e merece set mais bem analisado do que foi até agora. Creio que essa distin¢ao pode ser enganosa. Krasner (1978, cap. 3), Zolberg (1981) ¢ [kenberry (1986-b) tratam o tema de forma contrastante. A economia politica das relagdes internacionais 93 No cntanto, a simples cxisténcia de um poder hegem@nico nao basta para garantir 0 desenvolvimento de uma economia internacional liberal. E preciso também que a poténcia hegeménica tenha um compromisso com os valores do liberalismo ou, para usar a linguagem de John Ruggie, que seus objetivos sociais © @ distribuicdo interna de poder se inclinem favoravelmente a uma ordem internacional liberal (Ruggie, 1982, p. 382). As estruturas econdmicas internas da poténcia hegemdnica ¢ das outras sociedades sdo um determinante de Obvia importincia da inclinagdio dos Estados em favor de uma economia internacio- nal liberal (Katzenstein, 1976). Hegemonia sem um compromisso liberal coma economia de mercado levara, mais provavelmente, a um sistema imperial € & imposigao de restrigdes politicas e econdmicas as poténcias menores — como no bloco soviético, por exemplo. Finalmente, é preciso que haja entre as princi- pais poténcias econémicas “uma congruéncia de propésito social” em apoio a um sistema liberal (Ruggie, 1982, p. 384). Outros Estados poderosos devem também ter interesse na ampliagdo das relagdes de mercado. A poténcia hegeménica pode estimular, mas no pode obrigar outros Estados poderosos a seguir as tegras de uma economia mundial aberta. Portanto, trés pré-requisitos so ne- cessarios para a emergéncia e a expansdo de um sistema internacional de mercado liberal —hegemonia, ideologia liberal ¢ interesses comuns. Condigdes que sao estudadas em maior detalhe em Gilpin, 1981, cap. 3. A hegemonia ou lideranga baseia-se na crenga generalizada em sua legi midade e, ao mesmo tempo, na necessidade de manté-la, Os outros Estados aceitam a regra proposta pela poténcia hegemGnica em razfo de seu prestigio e status no sistema politico internacional (Frohlich, Oppenheimer e Young, 1971). Faz-se necessirio um grau consideravel de consenso ideolégico (ou o que os marxistas chamariam de “hegemonia ideolégica”, seguindo o pensamento de Antonio Gramsci) para que a poténcia hegeménica tenha 0 necessério apoio dos outros Estados poderosos (Keohane, 1984a, p. 44-45). Se estes iltimos comegarem a interpretar as agdes da poténcia hegeménica como tomadas exclu- sivamente em seu proveito, e contrarias aos seus proprios interesses politicos ¢ econémicos, o sistema hegeménico ficard muito debilitado; e também se dete- riorara caso os cidados da poténcia hegemdnica acreditarem que os outros Estados esto fraudando as regras do jogo, ou se os custos da lideranga excede- Tem as vantagens percebidas, Em tais situagdes, grupos poderosos se inclinar’o cada vez menos a subordinar seus interesses 4 continuagao do sistema. Historicamente, a conjuntura de circunstdncias favoraveis a lideranga hegeménica e ao surgimento de uma economia mundial liberal sé ocorreu duas vezes. A primeira foi a eta da Pax Britannica, que se estendeu do fim das guerras napolednicas até o principio da Primeira Guerra Mundial. Com 9 triun- fo politico da classe média, comprometida com a ideologia liberal, a Gri-Bretanha on Robert Gilpin usou sua influéncia para promover o livre comércio. O exemplo do sucesso econémico britinico, a aceitagdo geral das idéias liberais entre as principais poténcias econémicas ¢ o reconhecimento das vantagens do comércio esti- mularam os Estados a negociar redugdes tarifarias e a abrir suas fronteiras ao mercado mundial (Kindleberger, 1978b, cap. 3), Da mesma forma, os Es- tados Unidos assumiram a lideranga na promogdo de uma ordem econémica internacional liberal depois da Segunda Guerra Mundial. O Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt) e o Fundo Monetirio Internacional (FMI) foram. instituidos pelos Estados Unidos e seus aliados, incorporando principios li- berais. Subseqiientemente, a lideranga norte-americana foi exercida na re- dugao das barreiras comerciais. Durante esses periodos de preeminéncia britanica ¢ norte-americana houve uma expansao do mercado internacional e da interdependéncia econémica global.* Conforme formulada originalmente por Kindleberger e depois ampliada e modificada por outros autores, incluindo-se o deste livro, a teoria da estabilida- de hegeménica argumenta que uma economia de mercado aberto representa um bem coletivo ou piblico (Olson, 1965). O consumo desse bem por um indi- viduo, por uma familia ou por uma firma néo reduz sua disponibilidade para outros consumidores potenciais (Kindleberger, 1981, p. 243). Uma estrada ou uma calgada so exemplos importantes. No entanto, como um individuo pode “consumir” o bem sem pagar por ele, os bens coletivos tendem a ser insuficien- tes para atender 4 demanda, a nao ser quando os interesses de algum ator fazem com que sua participagdo nos custos seja desproporcional, ou quando haja alguma agéncia (por exemplo, 0 governo) que possa forcar os consumido- res a pagar pelo bem. No campo das relagdes internacionais, diz-se que existe um certo numero de bens coletivos. Um exemplo € 0 regime de comércio aberto ¢ liberal com base na clausula de Nagdo mais Favorecida, ou seja, uma concessio tarifiria a um pais estendida a outros paises.’ Outro exemplo citado com freqiiéncia é uma moeda intemacional estavel, porque facilita 0 comércio, o que pode trazer beneficios a todos. Um terceiro bem coletivo, mais discutivel, ¢ a provisio da seguranga inter- ¥Alguns escritores identificam a Holanda do século XVII como poténcia hegeménica, mas seus argumentos nao sfo convincentes, Embora certamente a Holanda tena sido a principal econo- ‘mia da época, nfo exerceu sobre o sistema internacional uma influéncia compardvel a da Gré- Bretanha no século XIX e dos Estados Unidos no sécuto XX. Vale lembrar que o sécuto XVII ‘marcou o auge da primetra cra mercantilista. * No caso de “reciprocidade-condicional”, as concessdes feitas a um membro do Gatt sto automaticamente disponiveis a todos os demais membros do sistema, Portanto, & uma situagdo bem préxima do prinefpio da ago mais Favorecida. Por outro lado, “reciproci- dade condicional” significa que as concessdes sé beneficiam as partes que reciproquem especificamente com as mesmas concessées. A economia politica das relacdes internacionais 95 nacional (Jervis, 1982). De acordo com esse argumento, os Estados individuais podem beneficiar-se desses bens coletivos, contribuam ou nao para eles. Segundo a teoria, em um sistema de comércio franco de bens coletivos de moeda estavel a poténcia lider ou hegemdnica é responsavel pelo suprimen- to dos bens coletivos, Presume-se que um sistema econdmico liberal nao pode ser auto-sustentavel, precisa ser mantido no longo prazo pelas ages da econo- mia dominante. Uma economia mundial aberta é especialmente ameagada pela existéncia dos “caronas” — atores que se beneficiam dos bens coletivos sem pagar sua parte no custo correspondente (Frey, 1984b, cap. 7). Da mesma forma, alguns Estados tentam. promover seus interesses 4 custa dos outros — por exemplo, ao explorar uma posigao monopolistica. De acordo com a teoria da estabilidade hegem@nica, a tentacdo de explorar os outros se sobrepde mui- tas vezes ao argumento liberal de que & desnecessério haver uma poténcia hegeménica, pois, por definigao, 0 comércio traz beneficios mtituos a vendedo- res e compradotes que dele participam. Segundo a teoria da estabilidade hegeménica, a poténcia econdmica hegeménica desempenha uma variedade de papéis cruciais para-o funcio- namento da economia mundial. Usa sua influéncia para criar regimes inter- nacionais definidos simplesmente como “principios, normas, regras ¢ pro- cedimentos decisérios em torno dos quais convergem as expectativas dos atores em uma certa area tematica” (Krasner, 1982a, p. 185). O regime prescreve condutas legitimas ¢ proibe condutas ilegitimas, com o objetivo de limitar os conflitos, assegurar eqilidade ou facilitar 0 acordo (Keohane, 1982a, p. 354). O poder hegem@nico precisa impedir a fraude e a ag&o dos “caronas”, impor as regras de uma cconomia libcral ¢ cstimular os outros a participar no custeio da manutengdo do sistema. O padrdio-ouro do século XIX e 0 sistema de Bretton Woods depois da Segunda Guerra Mundial sto exemplos notaveis de um regime econémico no qual a poténcia hegeménica determina ¢ aplica as regras de um regime de mercado liberal, suprimindo as tendéncias sempre presentes do nacionalismo econémico, Conforme argumenta Kindleberger, para que a economia mundial tenha estabilidade, precisa de um estabilizador, um pais que se disponha a fornecer um mercado para bens de socorro, um fluxo constante de capital — quando nao contraciclico — ¢ um mecanismo de redesconto que ofereea liqilidez. quando o sistema monetario for congelado pelo pinico (Kindleberger, 1981, p.247). A poténcia hegemdnica precisa também impedir que os Estados que gozem de poder monopolistic explorem os outros, assim como estimular aqueles que, pelo menos inicialmente, tm a perder com o livre comércio a remover suas barreiras comerciais (H. Johnson, 1976, p. 17-20). 96 Robert Gilpin Além disso, em um universo de taxas de cambio flexiveis e mercados de capital integrados, a poténcia hegemsnica “precisa também administrar, em certo grau, a estrutura das taxas de cambio, proporcionando alguma coordena- go das politicas monetarias nacionais” (Kindleberger, 1981, p. 247). A teoria sugere que, se nao houvesse um poder hegeménico para criar ¢ administrar os regimes internacionais, a economia internacional se tornaria instavel 4 medida que o liberalismo ¢ o livre comércio cedessem lugar as forgas do nacionalismo econémico."” Adicionalmente, 0 crescimento e 0 dinamismo da poténcia hegeménica servem como exemp!o dos beneficios do sistema de mercado, funcionando como um motor de crescimento para o resto do sistema; suas importagdes estimulam o crescimento das outras economias, e seus investimentos propor- cionam aos paises em desenvolvimento o financiamento de que precisam para crescer. Mediante a transferéncia de tecnologia e a difusdo do conhecimento, ela fornece também as economias em desenvolvimento a tecnologia ¢ a capacitagdo técnica necessdrias para sua industrializagao e seu desenvolvi- mento econémico. Esse papel da poténcia hegemonica no processo global de crescimento é a base que ajuda a manter o sistema: quando o crescimento declina, as forgas centrifugas manifestam-se com forga crescente.”! Embora as duas poténcias hegeménicas do mundo modero tenham sido, uma apés a outra, o Estado militarmente dominante no sistema internacional, sua influéncia foi projetada sobretudo pelo exercicio do poder econémico. Nas palavras de Robert Keohane, a poténcia hegemdnica “precisa ter controle so- bre as matérias-primas, sobre as fontes de capital, sobre os mercados, assim ‘como vantagens competitivas na producdo dos bens de alto valor” (Keohane, 1984a, p. 32). A poténcia hegeménica dispde de meios para exercer lideranga sobre as outras economias, mediante o controle do capital financeiro, das tecnologias particulares e dos recursos naturais. Assim, embora a lideranga hegem6nica beneficie aquelas economias habi- Jitadas a tirar vantagem da liberalizagao do intercdmbio, uma economia mundial interdependente cria também vulnerabilidades externas ¢ um nexo de relagdes de poder. Hirschann (1945, p. 16) escreveu que a esséncia do poder econdmi- co, pelo menos em uma das suas formas, é a capacidade de interromper 0 intercambio comercial. A interrupgao ou ameaga de interrupgao das relagdes comerciais, financeiras ¢ tecnolégicas pode ser uma alavanca poderosa sobre outros Estados. A capacidade que tem a poténcia hegeménica de aplicar o seu i Keohane (1984a) apresenta uma critica ao raciocinio de que ¢ necesséria uma poténcia hegemdnica para criare preservar uma economia liberal internacional "Devo Robert Walker essa observacio. A economia politica das relacdes internacionais 7 poder por meio dos mecanismos da interdependéncia econémica contribui para ‘a sua governanga e para o gerenciamento da economia internacional de mer- cado; por outro lado, como mostraremos mais adiante, permite também a po- téncia hegeménica explorar sua posig&o dominante.”? O tamanho relativamente grande do mercado dessa poténcia representa uma fonte consideravel de poder, habilitando-a a criar uma esfera econémica de influéncia,"’ podendo influir sobre outros Estados mediante a abertura ou 0 fechamento desse mercado, ao classifica-los como “amigos” ou “hostis”. Em- bora a utilidade das sangdes econdmicas tenda a ser muito exagerada, elas constituem a principal manifestagdo desse poder.'* Conforme veremos adian- te, os Estados Unidos ampliaram também consideravelmente seu poder hegem6nico por meio da expansao ultramarina das suas poderosas empresas multinacionais. papel central da moeda da poténcia hegeménica no sistema monetario internacional a instrumenta com poder financeiro e monetdrio, Tanto a Gra- Bretanha, no século XIX, como os Estados Unidos no século XX {em escala muito menor) utilizaram em seu beneficio o direito de senhoriagem, “o lucro que aufere o senhorio, ou © poder soberano, com a cunhagem da moeda” (Kindleberger, 1981, p. 248). Os Estados Unidos empregaram também seu poder financeiro para recompensar os paises amigos, dando-lhes acesso aos mercados de capital, e para punir os inimigos, negando-lhes esse acesso, Da mesma forma, no caso dos Estados Unidos as prerrogativas de poténcia hegeménica foram essenciais para sustentar sua capacidade de manter uma posigdo dominante e a prosperidade interna, na década de 1980. O fundamento da forga econémica da poténcia hegeménica é a flexibilida- de ea mobilidade da sua economia (Hawtrey, 1952). No longo prazo, o poder econémico nao consiste nem na posse de determinados monopélios ¢/ou tecnologias nem na auto-suficiéncia econdmica, mas na capacidade de a eco- nomia nacional transformar-se para responder as mudangas ocorridas no am- biente econdmico global, tais como as alteragdes nos precos e nas vantagens relativas. A inflexibilidade da economia britanica, no fim do século XIX, na sua "FA relagdo de interdependéncia e poder é complexa, em parte porque “interdependéncia” tem tantos sentidos. Cooper (1985, p. 1196-1200) explora numerosos aspectos do tera, "3 Oconceito da esfera de influéncia econémica é interessante, mas pouco desenvolvido. N6s 0 encontramos, por exemplo, em Alfred Marshall. Vide em Choucri (1980, p. 110) uma breve discussao sobre 0 assunto. 14 Recentemente muito se escreveu sobre as sangdes econdmicas e temas correlatos. Meu ponto, de vista de que essas sangdes tém pouca utilidade é discutido em Gilpin (1984). Os trabalhos, de David Baldwin (1985) e Hufbauer e Schott (1985) so os melhores e mais extensos sobre © assunto, 98 Robert Gilpin resposta ao surgimento de novas poténcias industriais, foi uma causa importan- te do seu declinio (Lewis, 1978b, p. 133). Da mesma forma, as dificuldades experimentadas pelos Estados Unidos para ajustar-se as mudangas profundas na localizagdo global das indistrias e a revolugdo no prego da energia, nas iiltimas décadas do século XX, prejudicaram seu poder e comprometeram sua posica0 internacional.’ Embora seja necessério um ambiente politico favoravel para a liberago € 0 desenvolvimento das forgas do mercado, o mercado internacional tende a fun- cionar segundo uma logica propria, Conforme observamos anteriormente, a com- petigdo econémica e os mecanismos dos precos levam a economia de mercado a niveis crescentes de eficiéncia produtiva, crescimento econdmico ¢ integragao dos mercados nacionais, Com 0 tempo, o mercado provoca mudancas profundas na localizagdo das atividades econdmicas, o que afeta a distribuigao internacional do poder econémico e industrial. A liberago das forgas do mercado transforma © proprio contexto politico, minando o poder hegem6nico, e cria um novo ambien- te politico, ao qual o mundo precisard se ajustar. Com a mudanga inevitivel na distribuigao do poder econémico e militar do niicleo para os paises em ascenséo situados na periferia e em outras posigées, diminui a capacidade da poténcia hegeménica de sustentar o sistema. Assim, o capitalismo € 0 sistema de mercado tendem a destruir as bases politicas das quais dependem. Embora tanto a Gri-Bretanha como os Estados Unidos tenham apressado seu declinio relative mediante suas préprias ages, o sistema hegeménico intrinsecamente instavel (Kindleberger, 1981, p. 251). Por razdes internas & externas, o poder hegeménico perde sua vontade e sua capacidade de adminis- trar o sistema. O consumo interno (tanto piiblico como privado) € 0 custo dos meios militares de defesa crescem em relacdo 4 poupanga nacional ¢ ao inves- timento produtivo, como vimos no caso dos Estados Unidos (Oye er al., 1983, cap. 1). A poténcia hegeménica cansa-se e frustra-se com os “caronas” ¢ com 0 fato de que seus parceiros econémicos tém mais a ganhar com a liberalizagao do comércio, Surgem economias mais eficientes, dinamicas ¢ competitivas, as quais deslocam a posigdo intemacional da poténcia hegemnica e neutralizam 08 ganhos econémicos que financiam os custos da hegemonia global (Gilpin, 1981). Com o tempo, a poténcia hegeménica torna-se cada vex menos capaz ¢ menos disposta a gerenciar e a estabilizar o sistema econdmico. Assim, ha uma contradigao inerente na economia mundial liberal: o funcionamento do sistema de mercado transforma a estrutura econémica e promove a difusio do poder, solapando os seus alicerces politicos. 15 Kindleberger (1962, cap. 7) analisa o problema da transformagdo econdmica e sua importin- = nincte As mudangas da economia. A economia politica das relagdes internacionais 99 ‘A questao importante ¢ interessante sobre 0 modo como o declinio hegeménico pode ser inevitavel, tendo em vista 0 alegado grande poder da poténcia hegeménica, ultrapassa o Ambito deste livro. Bastard dizer que, embo- ra todos os poderes dominantes devam um dia declinar, sua longevidade difere muito. Assim, pode-se dizer que Veneza foi um poder econémice hegeménico no Mediterraneo oriental durante todo um milénio; a hegemonia britanica durou mais de um século; ¢ a hegemonia norte-americana entrou em declinio depois de apenas trés décadas (vide em Gilpin, 1981, cap. 4, algumas especulagdes a esse respeito). Como Kindleberger sugere (ecoando em parte as opinides de Cooper que {4 discutimos), a renovagio da estabilidade econémica exige ou uma nova po- téncia econdmica, ou um conjunto de regras aceitas que obrigue todos os atores (até mesmo a poténcia hegeménica debilitada) ou uma coordenagao politica continua entre todas as poténcias econémicas (Kindleberger, 1981, p. 251-252). A poténcia hegeménica declinante pode também procurar reafirmar sua posi- ¢&o dominante econémica ¢ politica, como fez. governo Reagan. Se nenhuma dessas opgdes se materializar, o sistema liberal comegard a fazer Agua. Embo- ranenhum resultado especifico seja inevitavel, a teoria sugere que a economia mundial se caracterizara crescentemente pelos conflitos. A amplitude desses conflitos vai depender da capacidade de a poténcia hegeménica adaptar-se ao seu declinio. A medida que mudem o locus do crescimento econémico e os setores estratégicos, podera a poténcia hegeménica desenvolver novas industrias competitivas? Sera capaz de reequilibrar seus compromissos politicos com 0 poder econémico? Poderé cooperar com as poténcias econémicas em ascensao para resolver os pro- blemas inevitaveis trazidos por quaisquer transformagées econémicas impor- tantes? As respostas a essas ¢ a outras perguntas determinardo se uma or- dem econémica liberal pode sobreviver ao declinio hegeménico. Embora os regimes internacionais liberais associados com a poténcia hegeménica declinante possam ser erodidos, ha outros fatores que contribu- ‘em para manter o sistema: a forga da inéreia, a auséncia de uma alternativa, © residuo dos interesses comuns ou dos objetivos sociais entre as poténcias dominantes (Krasner, 1976, p. 342-343). Como Keohane (1984a) argumenta convincentemente, as normas dos préprios regimes existentes inibem a con- duta ilicita, E mais facil manter um regime do que crid-lo, ja que os Estados ndo deixam de perceber suas vantagens (Haas, 1980). Nas palavras de Kindleberger, mais facil manter os regimes do que crid-los, pois os seus custos marginais estdo abaixo dos custos médios: quando terminam os periodos hegeménicos, 300 Robert Gilpin com a redugo da vitalidade econdmica do pais que exerce a lideranga, é dificil criar os novos regimes necessarios para enfrentar os novos problemas (...) levou [oitenta] anos para que a Organizagao Mundial da Satide comegasse a funcionar, a despeito dos claros beneficios que traria para todos os paises com respeito ao controle da difusdo das doengas. Ea manutengéo de um regime exige esforgo; na auséncia de infusdes de atengo € dinheiro, no longo prazo eles tendem a decair (Kindleberger, 1986, p. 8). E, assim, como custa mais criar do que manter um regime, é preciso incorrer em custos consideraveis para derrubé-lo. Portanto, como dissemos, os regimes comercial e monetario do século XIX persistiram muito depois que a hegemonia britinica comegou a declinar, com o surgimento de poténcias rivais. No entanto, com o relativo declinio da poténcia hegeménica em termos de competitividade internacional e outras medidas de capacidade econémica, au- menta a possibilidade de que ocorra uma crise financeira ou alguma outra cala- midade que provoque um colapso dramatico do sistema, especialmente se hou- ver uma divergéncia de interesses entre as principais poténcias. Assim, por exemplo, 0 panico financeiro de 1929 ¢ a subseqtiente politica conflitiva das grandes poténcias destruiram completamente os regimes econdmicos que ti- nham sido revividos depois da Primeira Guerra Mundial. Embora no mundo contemporéneo uma ocorréncia semelhante seja altamente improvavel, ndo deveriamos presumir que os regimes criados pela lideranga hegeménica dos Estados Unidos so de alguma forma invulneravei Para Kindleberger, 0 papel crucial da poténcia hegeménica consiste na administragao das crises € no apenas na manutengao rotineira do regime. Para que uma economia mundial liberal possa sobreviver, a poténcia hegemSnica precisa ser capaz de reagir rapidamente as ameacas feitas ao sistema ¢ estar disposta a essa reagao. Por exemplo: como Kindleberger argiliu, a capacidade de a Gra-Bretanha assistir outros paises financeiramente, como /ender of last resort (“emprestador de tiltimo recurso”), moderou de forma substancial as crises financeiras de 1825, 1836, 1847, 1866 e 1907; em contraste, sua incapa- cidade de desempenhar 0 mesmo papel em 1929 ¢ a falta de disposigao dos Estados Unidos para atuar nesse sentido diante da escalada de quebras bancd- rias foram causa importante do colapso do sistema financeiro internacional e da Grande Depressiio (Kindleberger, 1986, p. 8-9). Nas ultimas décadas do século XX a economia internacional enfrentava os perigos decorrentes do relativo declinio da hegemonia norte-americana. O problema da divida internacional, 0 aumento do protecionismo comercial e outras dificuldades podiam desencadear uma crise da qual os Estados Unidos e seus parceiros econdmicos facilmente poderiam perder o controle. E esse fracasso da administragao de crises pode- ria uma vez mais derrubar, na escala mundial, a ordem econémica liberal.

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