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Marcionismo

HISTÓRIA GERAL
O Marcionismo, ou heresia marcionita, foi uma seita que surgiu no século II,
com Marcião de Sinope, e tinha por característica principal a rejeição ao
Velho Testamento.

Escultura em relevo de Marcião mostrando seu cânone para os seus seguidores

É sabido que o processo de expansão do cristianismo começou ainda


no século I, tendo dois núcleos fundamentais: o judaico-cristão,
praticamente circunscrito ao Oriente Médio, e o paulino e petrino
(referente aos apóstolos Paulo e Pedro), de cunho mais universalista,
que se direcionou para além do Oriente Médio e da Anatólia (atual
Turquia), abrangendo todo o mundo helenístico e, sobretudo, o
coração do Império Romano. As cartas apostólicas (de Pedro, Paulo,
Tiago, Judas e João), os Evangelhos Canônicos e os chamados Atos
dos Apóstolos são os principais documentos dessa época, chamada por
alguns autores de Era Apostólica.
No contexto que sobreveio a essa era, a partir do século II, a Igreja
Cristã Primitiva teve de lidar com as primeiras divergências no
interior das interpretações canônicas. Essas divergências, ou
dissidências, passaram a receber o nome de heresias (termo que
provém do grego e significa “escolha” ou “opção deliberada”). Uma
das mais famosas heresias foi a de Marcião de Sinope, que ficou
conhecida como marcionismo ou heresia marcionita.
Marcião (85 a 150 d.C.), assim como a grande maioria dos cristãos
daquela época, recebeu enorme influência das culturas que o
circundavam, desde o judaísmo até a filosofia grega (e o helenismo),
passando por outros sistemas culturais, como o persa. Essa última
civilização, por meio do zoroastrismo (seita religiosa fundada pelo
profeta Zoroastro, ou Zaratustra), também ofereceu ao cristianismo
elementos para a compreensão teológica, que se deu por contraste,
haja vista que, no sistema de Zaratustra, havia dois deuses, um bom e
outro mau.
Dos quatro evangelhos canônicos, o único que não é sinótico, isto é,
que não oferece uma sinopse (uma trajetória compactada e
cronológica) da vida de Cristo, é o evangelho de João. O evangelista
João, segundo alguns estudiosos, como Eric Voegelin, teve grande
influência do pensamento religioso persa e, de forma ou de outra,
acabou oferecendo fundamentos para doutrinas heréticas, como a de
Marcião e de outros gnósticos. Nas palavras de Voegelin:
[…] o Evangelho de João, embora posterior ao de Lucas e Mateus, nada adianta
sobre o nascimento e a juventude de Jesus, mas organiza a aparição de Criso num
drama cósmico. Num simbolismo claramente persa, o Logos estava com Deus e era
ele mesmo divino; o Logos é o princípio da vida e a luz do homem. 'A luz brilha nas
trevas mas as trevas não a apreenderam'. O mundo é uma luta entre as substâncias
da Luz das Trevas. [1]
Os dois deuses do zoroastrismo, Ormuzd e Ahriman, estão em disputa,
como seres da Luz e das Trevas, respectivamente, isto é, como um
deus da bondade e da verdade e outro da maldade e da mentira. Na
compreensão de João, apesar de ser estritamente cristológica e nada
herética, há muito da nomenclatura do zoroastrismo. Cristo é a
encarnação da Luz, mas não é o vencedor definitivo das Trevas. Além
disso, o termo satanás, ou satã, é de origem persa e significa o
“acusador”, podendo ser identificado com Ahriman, o “príncipe deste
mundo”. O Logos divino, segundo João, enviaria ainda, após a
Ressurreição, a última manifestação da Luz, o chamado Paráclito, o
Advogado ou Auxiliador.
Todo esse sistema teológico complexo montado por João influenciou
decisivamente as primeiras gerações de pais da Igreja, mas também
heréticos, como Marcião. Marcião, influenciado por João e pela
tradição persa, acabou desenvolvendo a tese de que o Deus do Antigo
Testamento não poderia ser o mesmo que Cristo, não poderia estar
associado de nenhum modo à pessoa deste, haja vista que este era o
Deus do Bem, enquanto aquele, do Mal.
Essa perspectiva marcionita resultou na negação completa e absoluta
do Antigo Testamento. Marcião elaborou seu próprio cânone sem
conexão com as Escrituras judaicas. A esse respeito, Vogelin assinala:
Quanto às escrituras, Marcião rejeitou inteiramente o Antigo Testamento e criou um
Cânone das escrituras, que consiste em um novo Evangelho, que ele mesmo compôs
purgando o Evangelho de Lucas de seus elementos judaicos e as dez epístolas de
Paulo. O cânone marcionita transformou-se no modelo de construção do cânone da
Grande Igreja: o Evangelho e as epístolas de Paulo substituíram a lei dos profetas. [2]
O sistema de Marcião agregou uma grande legião de seguidores, mas
acabou, com o tempo, sendo combatido por futuros doutores da Igreja,
que assinalaram a conexão entre o Antigo e o Novo Testamento.
NOTAS
[1] VOEGELIN, Eric. História das Ideias Políticas (vol. I):
Helenismo, Roma e Cristianismo Primitivo. São Paulo: É Realizações,
2012. p. 237.
[2] Idem. p. 239.

Por Me. Cláudio Fernandes

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