Você está na página 1de 5

Reconhecimento facial: prós e contras da tecnologia que veio para

ficar
Mesmo com pouco debate e regulamentação, tecnologias de reconhecimento facial já são usadas
em massa no mundo inteiro — e se intensificam em meio à pandemia do novo coronavírus

“Sempre aqueles olhos observando a pessoa e a voz a envolvê-la. Dormindo ou acordado,


trabalhando ou comendo, dentro ou fora de casa, no banho ou na cama — não havia saída”,
escreveu George Orwell no livro 1984, que completou 71 anos no último dia 8 de junho. Em
2020, talvez não estejamos exatamente no mundo distópico do Big Brother criado pelo escritor
inglês, mas nunca corremos tanto risco de nos aproximarmos dele.

Um mapeamento da Surfshark, empresa que desenvolve ferramentas de proteção de privacidade


na internet, revela que 98 países atualmente usam tecnologias de reconhecimento facial em
algum tipo de vigilância pública. Divulgado em maio, o levantamento foi feito baseado em
dados de 194 países e aponta que, além dos que já utilizam, 12 aprovam, mas ainda não
implementaram esse tipo de tecnologia; 13 consideram aplicá-la; 68 não usam e três a proíbem.
Criada nos anos 1960, a tecnologia que usa computadores e algoritmos para reconhecer rostos
humanos ganhou escala há pelo menos uma década, muito graças ao avanço das redes sociais e
da internet. Com milhares de pessoas disponibilizando voluntariamente suas fotos na internet,
existe hoje um banco de dados com bilhões de imagens que servem para treinar redes de
inteligência artificial a detectar e reconhecer rostos.

As possibilidades são inúmeras, e você certamente já se deparou com alguma delas no dia a dia
— segundo o levantamento da Surfshark, 92% dos países na América do Sul usam
reconhecimento facial, a maior porcentagem entre os continentes. Do seu filtro favorito no
Instagram ao desbloqueio de celulares, até a identificação em aeroportos (o Brasil está entre os
países que têm um sistema automatizado de leitura de passaportes), o reconhecimento facial é
usado em algum nível. Há também casos mais “avançados”, como o do homem chinês que foi
sequestrado quando criança e, graças à tecnologia de reconhecimento facial utilizada nas buscas,
reencontrou os pais depois de 32 anos; ou do carnaval de Salvador de 2020, no qual câmeras de
segurança identificaram e ajudaram a capturar 42 foragidos da Justiça.

“Passamos de uma fase de detecção, que era o que tínhamos com as câmeras digitais antigas que
viam um sorriso e tiravam a foto, para a de reconhecimento propriamente dito, de saber de quem
é aquele rosto”, explica o especialista em tecnologias emergentes Diogo Cortiz, professor da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Isso está muito atrelado à
inteligência artificial aplicada ao processamento e tratamento de imagens.”

Adeus, privacidade

Na pandemia do novo coronavírus, nem os rostos mascarados frearam o avanço da tecnologia


— pelo contrário: países como China e Rússia apostaram nela para rastrear pessoas que
“furaram” a quarentena, e começaram a treinar os algoritmos para identificar indivíduos
potencialmente infectados com base na temperatura corporal. As ferramentas também têm sido
apontadas como alternativas que não exigem contato físico para a autenticação e identificação
em um mundo que busca medidas para frear o contágio. A expectativa é que esse mercado,
estimado em US$ 3,2 bilhões em 2019, alcance US$ 7 bilhões em 2024, segundo análise da
empresa de pesquisa indiana MarketsandMarkets. Dele, participam empresas como o Facebook
— que passou a usar, em 2019, a tecnologia com todos os seus mais de 2 bilhões de usuários
para facilitar a identificação e marcação em fotos —, além de Apple, Google, Amazon e
Microsoft. O problema é que existe uma linha tênue entre o reconhecimento facial “benigno” e
o perigo que a sociedade se torne aquela imaginada por Orwell, sem mais privacidade, “com
exceção dos poucos centímetros que cada um possui dentro do crânio”, nas palavras do escritor.
Como garantir que a tecnologia não será usada para perseguição política, como temiam os
manifestantes nos protestos contra o governo chinês em Hong Kong em 2019? Ou para avaliar
os efeitos de uma publicidade, como foi feito pelo metrô de São Paulo em 2018?

Neste mês, um aplicativo russo envolvido em polêmicas sobre roubo de dados voltou a fazer
sucesso entre brasileiros, incluindo celebridades. Em 2019, o FaceApp — que usa inteligência
artificial para modificar selfies, “mudando” o sexo da pessoa ou sua idade — foi alvo de
investigação do FBI, nos EUA, que classificou o aplicativo como uma “ameaça”. Mas a
Wireless Lab, empresa responsável pelo app, afirmou em posicionamento divulgado na época
que não “vende ou compartilha os dados com terceiros”.

“A tecnologia traz benefícios, mas também muitos desafios de governança e comportamento”,


diz Cortiz. A pesquisadora em democracia e tecnologia Thayane Guimarães, do Instituto de
Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS), alerta para a ausência de regulamentação. “O
principal problema é a falta de uma legislação específica que garanta as liberdades individuais e
a transparência no uso da tecnologia e proteção de dados pessoais.” A desconfiança sobre o que
pode e o que não pode ser feito é grande. Na Europa, 80% das pessoas não gostam da ideia de
compartilhar os dados de seus rostos com autoridades. Para o professor da PUC-SP, a falta de
regulamentações voltadas para o reconhecimento facial pode gerar uma sensação de que “se não
está proibido, é porque está permitido”.

Antes de a pandemia se transformar na principal pauta de debates atuais, as discussões sobre a


tecnologia estavam aquecidas. Em outubro de 2019, ao menos 40 festivais de música, entre eles
Lollapalooza, Coachella e SXSW, iniciaram um movimento contra o uso de reconhecimento
facial nos eventos. Em janeiro deste ano, a cidade de Cambridge, berço de uma das instituições
de tecnologia mais importantes do mundo, o Massachusetts Institute of Technology (MIT), e da
Universidade Harvard, proibiu a tecnologia para vigilância municipal. Outras cidades norte-
americanas e hubs de tecnologia, como São Francisco e Oakland, também adotaram medidas
semelhantes.

Vigilância enviesada

Além do debate central sobre a privacidade, há dúvidas em relação à precisão dos sistemas,
ainda que a tecnologia venha evoluindo. Em 2018, o Instituto Nacional de Padronizações e
Tecnologia do Departamento do Comércio dos EUA (NIST, na sigla em inglês) testou 127
algoritmos de 45 desenvolvedores e descobriu que, quando havia imagens de alta qualidade para
comparação, os melhores algoritmos só falharam em 0,2% das vezes, um resultado 20 vezes
melhor do que no teste semelhante feito em 2014. Mas há diferenças significativas entre
ambientes controlados e as “praças públicas”: uma coisa é o celular reconhecer o rosto do dono,
outra é aquele mesmo rosto ser identificado em uma multidão de dezenas ou centenas de
pessoas. Essa tecnologia também permanece suscetível a uma programação humana que pode
ser bastante enviesada. Em um experimento muito citado para mostrar que as minorias podem
ser prejudicadas, a ONG norte-americana American Civil Liberties Union revelou que o
programa de reconhecimento facial da Amazon erroneamente identificou 28 membros do
Congresso dos EUA como criminosos cadastrados em uma base de fotos pública. Quase 40%
dos resultados errados envolveram pessoas negras — algo desproporcional, já que somente 20%
dos congressistas são negros. No MIT, pesquisadores identificaram que algoritmos para
identificar o gênero com base no rosto classificaram mulheres de pele escura como homens em
quase 35% das vezes. Para os homens com pele clara, a taxa de erro era menor que 1%. “O
número de falsos positivos muito alto gera constrangimentos e apreensões, e pode aprofundar o
racismo já muito presente na nossa sociedade”, diz Guimarães. A pesquisadora lembra que, no
caso brasileiro, há ainda o agravante de que por serem produzidos principalmente na Europa, na
Ásia e nos Estados Unidos, os algoritmos passaram por “treinamentos” que muitas vezes não
correspondem às nossas características físicas ou hábitos.

“A gente sabe que não tem mais como dar 20 passos atrás e impedir completamente a
implementação do reconhecimento facial”, pondera Guimarães. “Mas é importante sempre se
perguntar e pensar nas gerações futuras, ter noção de que uma medida que a gente tome hoje
pode fazer com que os nossos filhos não vivam mais sem ter suas emoções monitoradas.” Ou,
pior, que esse futuro seja como o descrito por George Orwell: igual a imagem de uma bota
prensando um rosto humano para sempre.

Fonte: < https://revistagalileu.globo.com/Tecnologia/noticia/2020/06/reconhecimento-facial-pros-e-contras-da-tecnologia-que-veio-


para-ficar.html >

Outras fontes:
https://olhardigital.com.br/noticia/reconhecimento-facial-o-que-se-pode-esperar-dele/84009

https://www.impacta.edu.br/blog/voce-sabe-como-funciona-o-reconhecimento-facial/

TEXTO II

O Reconhecimento Facial e a LGPD


Em maio de 2019, o jornal New York Times publicou uma notícia que chama a atenção para o
intenso debate que está ocorrendo no mundo em torno do uso da tecnologia de reconhecimento facial
na segurança.

De acordo com a notícia, a cidade de São Francisco, por meio de seu conselho de supervisão (Board
of Supervisors), decidiu proibir o uso do reconhecimento facial por sua polícia. É a primeira grande
cidade americana que toma esta decisão, mas, há leis similares em discussão em outras cidades.

A decisão foi tomada com base nos temores que o uso abusivo da tecnologia comprometesse a
privacidade dos cidadãos. O balanço entre privacidade e segurança é delicado e isto traz maior
responsabilidade aos desenvolvedores de soluções e aos seus usuários.
No Brasil, a demanda da sociedade por proteção da privacidade deu origem a “Lei Geral de Proteção
de Dados”. A lei 13.709/2018 define os papéis, direitos e responsabilidades no tratamento dos dados
pessoais de pessoas naturais.

Entre as definições da lei, está a de que dados pessoais são aqueles que permitem identificar a
pessoa. Classifica também os dados biométricos como dados pessoais sensíveis.

Os dados usados para o reconhecimento facial, o template, mesmo que não permitam reconstituir o
rosto original entram nesta categoria. Com o seu uso é possível identificar a pessoa. A propósito,
registros de acesso e outras informações associadas aos indivíduos reconhecidos são dados
protegidos pela lei também.

Naturalmente, resguardando o interesse público, a lei trata exceções aos seus dispositivos em casos
especiais, como o da segurança pública. Principalmente as questões de consentimento, acesso aos
dados e alterações têm tratamento diferenciado.

Excetuando-se estes casos previstos na lei, o tratamento de dados exige o consentimento explícito da
pessoa natural que identificam, denominado titular dos dados, bem como prevê que ela também tem
direitos de acesso aos dados, de solicitar atualizações, de eliminação e até de revogação de
consentimento fornecido anteriormente.

A pessoa natural ou jurídica responsável pelas decisões de tratamento, denominado controlador pela
lei, deve providenciar as medidas técnicas, administrativas e jurídicas para que estes direitos
sejam exercidos. Além de ser responsável pela segurança dos dados e a prevenção dos riscos que
possam ocorrer aos seus titulares em consequência de vazamentos ou uso ilegítimo.

Na lei estão previstas sanções, que incluem multa de 2% do faturamento, limitada a R$ 50 milhões e
bloqueio do uso dos dados. A aplicação das sanções pelas autoridades, como no caso de outras leis,
dependerá naturalmente da infração e das condições em que vier a ocorrer.

O nível de adequação aos requisitos da lei, com a aplicação das medidas de proteção cabíveis, e o
grau respeito aos direitos dos titulares com certeza serão fatores de peso nesta decisão.

A terceirização de serviços de tratamento, é prevista na lei, na forma do operador do tratamento de


dados. As responsabilidades do controlador e do operador são definidas na lei e ambos podem
responder solidariamente em casos de infrações.

Importante ressaltar que as sanções administrativas, estipuladas na Lei Geral de Proteção de Dados,
podem não ser as únicas. Dependendo do incidente e de suas consequências, podem haver também
medidas no âmbito civil e penal, decorrentes de que a Constituição Federal, o Código Civil e o
Código Penal contêm em seus artigos dispositivos de proteção à privacidade.

A previsão para a entrada em vigor, no momento em que este artigo está sendo escrito, é agosto de
2020. A medida provisória 869, que altera dispositivos da lei 13.709/2018, está em tramitação nesta
data.
Como dissemos acima, os dados biométricos em geral são sensíveis, inclusive os utilizados para o
reconhecimento facial, exigindo assim uma atenção maior na proteção, prevenção aos riscos e
tratamento de eventuais incidentes.

Assim, é de fundamental importância que as empresas fornecedoras de soluções de reconhecimento


facial e as empresas de segurança usuárias destas soluções conheçam a Lei Geral de Proteção de
Dados e se adequem a ela.

Por Eng. Carlos Alberto Iglesia Bernardo, Professor na Fundação Vanzolini do Curso LGPD na Prática. Consultor
em Segurança da Informação. Sócio na IT Secure Consulting e na Alzahra Comunicação.

Notas Complementares:

Artigo do The New York Times: San Francisco Bans Facial Recognition
Technology: https://www.nytimes.com/2019/05/14/us/facial-recognition-ban-san-francisco.html

Lei 13.709/2018: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Lei/L13709.htm

Fonte: < https://vanzolini.org.br/weblog/2019/06/25/o-reconhecimento-facial-e-lgpd/>

Você também pode gostar