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Mesmo com pouco debate e regulamentação, tecnologias de reconhecimento facial já são usadas
em massa no mundo inteiro — e se intensificam em meio à pandemia do novo coronavírus
As possibilidades são inúmeras, e você certamente já se deparou com alguma delas no dia a dia
— segundo o levantamento da Surfshark, 92% dos países na América do Sul usam
reconhecimento facial, a maior porcentagem entre os continentes. Do seu filtro favorito no
Instagram ao desbloqueio de celulares, até a identificação em aeroportos (o Brasil está entre os
países que têm um sistema automatizado de leitura de passaportes), o reconhecimento facial é
usado em algum nível. Há também casos mais “avançados”, como o do homem chinês que foi
sequestrado quando criança e, graças à tecnologia de reconhecimento facial utilizada nas buscas,
reencontrou os pais depois de 32 anos; ou do carnaval de Salvador de 2020, no qual câmeras de
segurança identificaram e ajudaram a capturar 42 foragidos da Justiça.
“Passamos de uma fase de detecção, que era o que tínhamos com as câmeras digitais antigas que
viam um sorriso e tiravam a foto, para a de reconhecimento propriamente dito, de saber de quem
é aquele rosto”, explica o especialista em tecnologias emergentes Diogo Cortiz, professor da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Isso está muito atrelado à
inteligência artificial aplicada ao processamento e tratamento de imagens.”
Adeus, privacidade
Neste mês, um aplicativo russo envolvido em polêmicas sobre roubo de dados voltou a fazer
sucesso entre brasileiros, incluindo celebridades. Em 2019, o FaceApp — que usa inteligência
artificial para modificar selfies, “mudando” o sexo da pessoa ou sua idade — foi alvo de
investigação do FBI, nos EUA, que classificou o aplicativo como uma “ameaça”. Mas a
Wireless Lab, empresa responsável pelo app, afirmou em posicionamento divulgado na época
que não “vende ou compartilha os dados com terceiros”.
Vigilância enviesada
Além do debate central sobre a privacidade, há dúvidas em relação à precisão dos sistemas,
ainda que a tecnologia venha evoluindo. Em 2018, o Instituto Nacional de Padronizações e
Tecnologia do Departamento do Comércio dos EUA (NIST, na sigla em inglês) testou 127
algoritmos de 45 desenvolvedores e descobriu que, quando havia imagens de alta qualidade para
comparação, os melhores algoritmos só falharam em 0,2% das vezes, um resultado 20 vezes
melhor do que no teste semelhante feito em 2014. Mas há diferenças significativas entre
ambientes controlados e as “praças públicas”: uma coisa é o celular reconhecer o rosto do dono,
outra é aquele mesmo rosto ser identificado em uma multidão de dezenas ou centenas de
pessoas. Essa tecnologia também permanece suscetível a uma programação humana que pode
ser bastante enviesada. Em um experimento muito citado para mostrar que as minorias podem
ser prejudicadas, a ONG norte-americana American Civil Liberties Union revelou que o
programa de reconhecimento facial da Amazon erroneamente identificou 28 membros do
Congresso dos EUA como criminosos cadastrados em uma base de fotos pública. Quase 40%
dos resultados errados envolveram pessoas negras — algo desproporcional, já que somente 20%
dos congressistas são negros. No MIT, pesquisadores identificaram que algoritmos para
identificar o gênero com base no rosto classificaram mulheres de pele escura como homens em
quase 35% das vezes. Para os homens com pele clara, a taxa de erro era menor que 1%. “O
número de falsos positivos muito alto gera constrangimentos e apreensões, e pode aprofundar o
racismo já muito presente na nossa sociedade”, diz Guimarães. A pesquisadora lembra que, no
caso brasileiro, há ainda o agravante de que por serem produzidos principalmente na Europa, na
Ásia e nos Estados Unidos, os algoritmos passaram por “treinamentos” que muitas vezes não
correspondem às nossas características físicas ou hábitos.
“A gente sabe que não tem mais como dar 20 passos atrás e impedir completamente a
implementação do reconhecimento facial”, pondera Guimarães. “Mas é importante sempre se
perguntar e pensar nas gerações futuras, ter noção de que uma medida que a gente tome hoje
pode fazer com que os nossos filhos não vivam mais sem ter suas emoções monitoradas.” Ou,
pior, que esse futuro seja como o descrito por George Orwell: igual a imagem de uma bota
prensando um rosto humano para sempre.
Outras fontes:
https://olhardigital.com.br/noticia/reconhecimento-facial-o-que-se-pode-esperar-dele/84009
https://www.impacta.edu.br/blog/voce-sabe-como-funciona-o-reconhecimento-facial/
TEXTO II
De acordo com a notícia, a cidade de São Francisco, por meio de seu conselho de supervisão (Board
of Supervisors), decidiu proibir o uso do reconhecimento facial por sua polícia. É a primeira grande
cidade americana que toma esta decisão, mas, há leis similares em discussão em outras cidades.
A decisão foi tomada com base nos temores que o uso abusivo da tecnologia comprometesse a
privacidade dos cidadãos. O balanço entre privacidade e segurança é delicado e isto traz maior
responsabilidade aos desenvolvedores de soluções e aos seus usuários.
No Brasil, a demanda da sociedade por proteção da privacidade deu origem a “Lei Geral de Proteção
de Dados”. A lei 13.709/2018 define os papéis, direitos e responsabilidades no tratamento dos dados
pessoais de pessoas naturais.
Entre as definições da lei, está a de que dados pessoais são aqueles que permitem identificar a
pessoa. Classifica também os dados biométricos como dados pessoais sensíveis.
Os dados usados para o reconhecimento facial, o template, mesmo que não permitam reconstituir o
rosto original entram nesta categoria. Com o seu uso é possível identificar a pessoa. A propósito,
registros de acesso e outras informações associadas aos indivíduos reconhecidos são dados
protegidos pela lei também.
Naturalmente, resguardando o interesse público, a lei trata exceções aos seus dispositivos em casos
especiais, como o da segurança pública. Principalmente as questões de consentimento, acesso aos
dados e alterações têm tratamento diferenciado.
Excetuando-se estes casos previstos na lei, o tratamento de dados exige o consentimento explícito da
pessoa natural que identificam, denominado titular dos dados, bem como prevê que ela também tem
direitos de acesso aos dados, de solicitar atualizações, de eliminação e até de revogação de
consentimento fornecido anteriormente.
A pessoa natural ou jurídica responsável pelas decisões de tratamento, denominado controlador pela
lei, deve providenciar as medidas técnicas, administrativas e jurídicas para que estes direitos
sejam exercidos. Além de ser responsável pela segurança dos dados e a prevenção dos riscos que
possam ocorrer aos seus titulares em consequência de vazamentos ou uso ilegítimo.
Na lei estão previstas sanções, que incluem multa de 2% do faturamento, limitada a R$ 50 milhões e
bloqueio do uso dos dados. A aplicação das sanções pelas autoridades, como no caso de outras leis,
dependerá naturalmente da infração e das condições em que vier a ocorrer.
O nível de adequação aos requisitos da lei, com a aplicação das medidas de proteção cabíveis, e o
grau respeito aos direitos dos titulares com certeza serão fatores de peso nesta decisão.
Importante ressaltar que as sanções administrativas, estipuladas na Lei Geral de Proteção de Dados,
podem não ser as únicas. Dependendo do incidente e de suas consequências, podem haver também
medidas no âmbito civil e penal, decorrentes de que a Constituição Federal, o Código Civil e o
Código Penal contêm em seus artigos dispositivos de proteção à privacidade.
A previsão para a entrada em vigor, no momento em que este artigo está sendo escrito, é agosto de
2020. A medida provisória 869, que altera dispositivos da lei 13.709/2018, está em tramitação nesta
data.
Como dissemos acima, os dados biométricos em geral são sensíveis, inclusive os utilizados para o
reconhecimento facial, exigindo assim uma atenção maior na proteção, prevenção aos riscos e
tratamento de eventuais incidentes.
Por Eng. Carlos Alberto Iglesia Bernardo, Professor na Fundação Vanzolini do Curso LGPD na Prática. Consultor
em Segurança da Informação. Sócio na IT Secure Consulting e na Alzahra Comunicação.
Notas Complementares:
Artigo do The New York Times: San Francisco Bans Facial Recognition
Technology: https://www.nytimes.com/2019/05/14/us/facial-recognition-ban-san-francisco.html