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ACTA UNIVERSITATIS PALACKIANAE OLOMUCENSIS

FACULTAS PHILOSOPHICA PHILOLOGICA 74

A CRÍTICA GENÉTICA E OS MANUSCRITOS AMADIANOS

Mari Ângela Reis de Sousa

A imagem de um manuscrito se assemelha


a um espelho onde vários feixes
significativos se cruzam na
ilusão/verdade da criação.

S.S.O.

POR QUE TRABALHAR COM MANUSCRITOS NA ERA DO COMPUTADOR?

Foi baseando-me nesta pergunta, feita várias vezes e de várias maneiras, que resolvi
começar a escrever este trabalho.
Nesse último século, o homem produziu uma série de inventos: para auxiliar a medicina,
para facilitar a sua própria vida, para ser mais feliz até. Chegamos a um final de milênio em
que é possível recompor partes do corpo humano com próteses, curar doenças antes não
curáveis, contestar certas verdades históricas; é possível mesmo trazer o mundo para dentro
da sala de nossa casa, via INTERNET. O momento é de pluralidade e as expectativas para
o futuro aumentaram substancialmente. Basta pensarmos que os próximos dez anos trarão
inventos e benefícios ainda desconhecidos ou mesmo sequer pensados pela grande maioria
da população planetária. O mundo se pergunta o que estará acontecendo na passagem do
milênio. E viver no limiar do século XXI, é viver mesmo um momento privilegiado.
Porém, para que chegássemos ao ponto de evolução em que chegamos, passamos por um
longo processo histórico. Tivemos um passado, durante o qual o homem, lidando com
necessidades cada vez maiores, se desenvolveu, desenvolvendo também o mundo, numa
circularidade constante. Para tanto, houve um ponto de partida; foi preciso surgir uma
primeira teoria, a qual foi aceita e desenvolvida por uns e/ou refutada por outros para dar
origem à uma outra ad infinitum. E assim se faz a história científica, social, cultural, etc.
Pergunta-se, então: e se o homem não tivesse registrado as suas descobertas e/ou a ele
mesmo como, hoje, poderia conhecer o seu passado? Como retomar uma teoria para
desencadear o processo ora citado, senão através desses registros feitos pelos seus
antecessores? É lançando mão dessa documentação arquivada que esse homem busca
satisfazer às suas curiosidades e angústias, características tão peculiares ao ser humano.

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Assim como possui um registro do passado, de alguma maneira, esse homem de hoje
procura se registrar para o futuro, também através de seus documentos, numa tentativa,
talvez, de perpetuação. Podemos visualizar então, com esse resgate, o fio interligado no
qual se baseia a história. Assim, nesse final de milênio, em meio à já citada pluralidade,
emerge uma preocupação que vem de há muito: preservação da memória. É possível
acompanharmos atualmente o fascinante projeto de recuperação, melhor, de reconstrução
da Biblioteca de Alexandria; é possível acompanharmos, também em nosso país, uma
preocupação em preservar e conservar documentos; acompanhamos a dedicação de grupos
e grupos de pesquisadores, conscientes, desenvolvendo várias pesquisas com a documentação
histórica e literária sistematizada (aquelas fontes primárias disponíveis para pesquisas nos
acervos), multiplicando assim o número dessa documentação. São grupos de pessoas que
vêm desenvolvendo um trabalho interdisciplinar: podemos observar profissionais das
Letras, do Cinema e da Música trabalhando em conjunto com os organizadores de arquivos,
por exemplo. E é propício que se diga, a idéia tradicional de arquivo como simples local de
armazenamento e do arquivista como simples armazenador foi definitivamente posta
abaixo. Hoje, arquivo é concebido como memória e os arquivistas tentam organizá-lo de
modo a facilitar o desenvolvimento de pesquisas, das quais ele próprio participa.
Foi como profissional das letras que travei conhecimento dessas idéias e foi também
assim que me envolvi num trabalho de organização de arquivos, mais especificamente, de
organização de manuscritos literários – trabalho interdisciplinar, portanto de acordo com os
atuais parâmetros – e assim me deparei com inúmeras descobertas, absolutamente fantásti-
cas, sobre uma das quais discorrerei ao longo deste escrito.
Desde que comecei esse trabalho de organização de manuscritos, me dei conta, por
exemplo, do quanto é laboriosa a escritura de um texto literário: é um fazer e refazer
constante. A idéia de que a feitura de um texto seria somente inspiração foi de uma vez por
todas destruída em mim. Um texto, até chegar ao seu momento definitivo, passa por um
processo outro que não o de simples inspiração, Mas por que mesmo se desencadeia esse
processo?
Duas respostas são plausíveis: É sabido que um autor, antes de iniciar o processo de
escritura de um texto, tem uma primeira intuição, uma idéia que lhe chega ao pensamento,
tendo antes passado pelos sentidos, num processo semiótico, até chegar a um ponto em que
ele precisa escrevê-la. Assim, uma explicação possível pode ser encontrada na teoria
freudiana, a qual nos mostra o Id dividido em dois sentidos: um, latente e outro, reprimido;
seria exatamente neste segundo sentido o lugar onde encontraríamos o terreno propício que
desencadeia o processo de criação. Essa idéia pode vir através de uma imagem, de algo
ouvido pelo autor, de uma sensação, de um aroma, etc. O fato é que ela vem. Ora, do ponto
de percepção até o momento em que o autor repassa a idéia para a folha em branco, há um
longo processo. Portanto, poderíamos dizer que o autor modifica, faz e refaz o seu texto
com o propósito de traduzir em palavras e preencher essa folha em branco com a coisa, em
algum momento, percebida e maturada por ele.
A outra resposta, absolutamente imbricada com esta, é que a coisa percebida, a que se
transforma em idéia, vai ser escrita para alguém, por conseguinte, podemos afirmar que
existe a presença de um leitor no processo criativo, que também vai determinar o fazer
e refazer de um texto. O autor é seu primeiro leitor e censor e, como tal, vai buscar a melhor

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forma de dizer o que percebeu, vai buscar a melhor forma de dizer a sua intuição primeira
para alguém que, ao ler o seu texto, deverá, pelo menos, aproximar-se dessa intuição.
Dessas elocubrações sobre o fazer literário, tomei conhecimento através da disciplina
Crítica Genética, a qual tenta entender como se dá esse processo de escritura de um texto,
ou seja, tenta flagrar o texto no seu devir. À ela interessa os titubeios, as certezas e incertezas
do autor, no momento da criação, na sua incessante busca de como dizer para um ‘outro’
o que realmente percebeu num primeiro momento de intuição.
O autor foi, durante muito tempo, tido como sujeito soberano. Dele eram cobrados
a origem do poema, seu sentido, a ligação com o biográfico, o que seria real ou fictício, etc.
Com a Crítica Genética, vai se reconstituir um universo intelectual, uma psicologia da
criação literária, levando-se em consideração que o escritor não é uma divindade senhora
de sua vontade, não é um soberano. Há uma vontade que não a sua. Há a vontade do texto.
Um texto se impõe e não se repete, por isso, cada rasura escreve um novo texto. O artista
tem que lutar com os signos linguísticos para que, da sua combinação ideal, consiga
escrever o texto, para ele também considerado ‘ideal’, nunca definitivo. É uma tentativa de
dar conta do processo de criação, através de objetos concretos – os manuscritos –, nos quais
são deixadas pistas como as rasuras, por exemplo, as quais vão auxiliar na compreensão
desse processo. Poderíamos fazer uma comparação entre um analista e o sonho de um
analisando, de um lado; e os manuscritos e o geneticista, do outro. Através das palavras
ditas pelo analisando, o analista vai tentar estabelecer uma ordem ao que, à primeira vista,
parece ser um caos babélico, sem nexo algum, mas que, na verdade é um caos determinístico.
Da mesma forma, através dos manuscritos, o geneticista vai tentar entender e explicar,
numa certa ordem, o que, também à primeira vista, parece ser um caos, a saber, o texto no
seu devenir, iluminado pelas rasuras.
Tecendo alguns comentários sobre os manuscritos literários do escritor Jorge Amado,
tentarei trazer um pouco do seu processo de criação. Tentarei mostrar de que maneira esse
autor trabalha para dizer algo por ele percebido ao seu público leitor. O autor em questão se
mostra um apaixonado pelo que faz e pelo ambiente de trabalho que lhe proporciona
assunto para escrever. Por isso, mesmo não estando Bahia, escreve sobre vários temas
relacionados à sua terra. Os seus leitores comuns, aqueles que têm acesso apenas à sua obra
publicada, não podem imaginar o quanto esse homem, que aos 85 anos ainda está na ativa,
trabalha no processo de escritura de um texto. Não imaginam o quanto ele rasura, renega
e retoma, reescreve, insere, corta, desloca, imprimindo aos manuscritos a marca do sofrimento
(que ocorre no processo) daquele que precisa ‘dizer’.
O autor é tão envolvido no processo de escritura e, de antemão, já tem tanta certeza de
que não irá ficar satisfeito com um primeiro jato de escrita, que chega a reproduzir os fólios
em carbono (recurso mais antigo), cópia xerox e, atualmente, na impressora do computa-
dor, com o propósito de retrabalhá-los, num constante refazer. Ou o autor procede a uma
rasura imediata (as que são feitas na própria máquina (durante muito tempo seu instrumen-
to básico de trabalho), ou ele retira o fólio da máquina e se mune de canetas ou lápis de
várias cores e tons, mostrando que seu texto passa por várias lições; ele deixa uma fenda,
a qual pode nos levar a fazer inferências sobre como se organiza o seu pensamento no
momento da criação. A sensação que se tem é a de que ele não gostaria de que nada do que
imaginou para determinada obra ficasse de fora; ele quer dizer e dizer tudo. E esse é um

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indício do literato, ele sempre pretende dizer um todo. Nenhum rascunho, nenhuma
anotação, nenhum pensamento que surja no momento do processo deveria escapar. Pode-se
até imaginá-lo espalhando sobre sua mesa de trabalho vários fólios, testemunhos do
refazimento de um mesmo trecho, para que possa abarcar esse todo. No caso de O sumiço
da santa, por exemplo, Amado fez dezessete versões do primeiro capítulo até que conseguiu
chegar ao texto final. Mas essas versões trazem trechos comuns entre si; alguns cortados
e retomados, outros mantidos. Também no caso de Tocaia Grande, são diversas as versões
de um mesmo trecho e/ou capítulo.
Esses romances, O sumiço da santa e Tieta do Agreste (levando-se em conta a quantidade
de manuscritos presentes na FCJA) se mostram como as obras nas quais o autor parece ter
mais sofrido no trabalho de parto. Só de versões são 6 (seis), fora os pequenos trechos de
capítulos avulsos e/ou sub-capítulos classificados como Diversos e que não permitem
determinar, em curto espaço de tempo, em que momento do processo foram trabalhados.
Como já supracitado, houve todo um trabalho de organização dos manuscritos literários
amadianos, durante a qual surgiram descobertas bastante interessantes. Um exemplo: Assim
como outros escritores, Jorge Amado parece se inspirar num texto para a feitura de outro, ou
melhor, parece que em algum momento da criação (não-linear), o autor tem outras intuições;
muitas vezes, elas não cabem na feitura daquele texto, então ele parte para a escritura de um
outro. Seria uma espécie de intertexto interno, ou intratexto. Assim, o geneticista que tem
acesso aos manuscritos é remetido, a todo o instante, de um texto para outro. Isso aconteceu
a Autran Dourado, a Guimarães Rosa (este declarou que, no momento de escritura de uma das
novelas de Corpo de Baile, teve a idéia de escrever Grande Sertão: Veredas e seguiu
escrevendo os dois textos concomitantemente) e assim aconteceu a Jorge Amado.
Tudo indica que, no momento de feitura de Bóris, o vermelho (inédito), o autor teve
a intuição para escrever O sumiço da santa; interrompeu a escritura de Bóris e escreveu
todo ‘O sumiço’. Posteriormente, retomou Bóris, mas, infelizmente não conseguiu terminá-
lo, embora afirme que ‘não faltará’ antes de concluir o romance.
No prefácio do livro A descoberta da América pelos Turcos, o autor chama atenção para
certas semelhanças entre Fadul Abdala (Tocaia Grande) e Jamil Bichara (A descoberta),
entre Aruza (Tocaia Grande) e Adma (A descoberta). Ele afirma que tais semelhanças se
dão por conta de ser ele (como dizem os críticos) um autor que se repete. Porém, há que se
dizer que, no âmbito dos estudos genéticos, essa semelhança entre personagens é mais que
repetição ou coincidência.
Os leitores que têm acesso somente à obra publicada de Jorge Amado, jamais saberiam
que a donzela Aruza (Tocaia Grande) se chamava Adma; que uma das dedicatórias era
‘Para Zélia de léo em léo’ (sic) e muito menos poderiam se dar conta dos motivos dessas
modificações.
Portanto, após essa criteriosa organização dos manuscritos dos dois romances foi
iniciado um trabalho de gênese propriamente dito. Mas, a(s) explicação (ões) desses fatos
é assunto para ser tratado com bastante calma e por um longo período de tempo. É necessário
passar pela etapa de comparação de versões para que se possa detectar as modificações,
após o que, tentar-se-á teorizar sobre elas, enfocando a questão específica de Tocaia
Grande ter dado origem a A descoberta da América pelos Turcos.

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A Crítica Genética surge como um novo olhar sobre os manuscritos, mas, são diversos
e desiguais os estudos desenvolvidos com eles. Um manuscrito pode revelar ou desvelar
inúmeras coisas, além de um processo criativo: o modo de pensar de um povo, um precisar
de datas, a escrita de determinado momento da história, memória enfim. Cada vez que me
debruço sobre um deles tenho a sensação de que alguém se revolve em algum lugar, em
algum momento, presente ou não. Alguém que, através daquele documento, se encontra
comigo e quer falar. Apuro os olhos para ouvir e confesso que realmente ouço o que
o documento me diz, pois sei que ele não se fez por si só; há uma presença viva daquele que
escreveu e daquilo ou daqueles sobre os quais se escreveu. Portanto, documento é vida
adormecida que precisa ser despertada. Cabe a nós, pesquisadores da área, sermos a válvula
propulsora, cujo objetivo é perseguir a preservação de uma memória, o crescimento
cultural de um povo, o despertar de outros homens para a importância do trabalho que
desenvolvemos.
Portanto, devemos despertar os nossos semelhantes com as nossas pesquisas que,
acredito, devem ser feitas com suor para que divulguemos, também com a ajuda do nosso
próprio corpo, os nossos resultados. Devemos despertar os nossos semelhantes com as
nossas edições genéticas, as nossas edições críticas, os nossos levantamentos históricos.
Devemos buscar crescer, nós mesmos, e nos apurarmos para vermos e ouvirmos cada vez
mais o que o nosso objeto nos diz, nos envolvendo com a nossa própria alma no que
fazemos. Desta forma, estaremos retribuindo a vida o privilégio de podermos estar presen-
tes na passagem e no início de mais um milênio.

KRITIKA GENEZE LITERÁRNÍHO DÍLA A RUKOPISY JORGE AMADA

Resumé

Autorka èlánku se zamýšlí nad všeobecnými otázkami týkajícími se problematiky kritiky


geneze v souèasnosti. V druhé èásti textu se zabývá nìkterými aspekty tvùrèího procesu
brazilského spisovatele Jorge Amada.

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THE CRITICISM OF THE CREATION OF A LITERARY WORK
AND THE MANUSCRIPTS OF JORGE AMADO

Summary

The author of this article deals with general questions related to the problems of the
criticism of the creation of a literary work in modern times. In the second part of the text she
concentrates on some aspects of the creative process of the Brazilian writer Jorge Amado.

Mari Ângela Reis de Sousa


Faculdade de Letras
Universidade Federal da Bahia
SALVADOR, BA
Brasil

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