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O delírio e seu estatuto de metáfora nas psicoses

Andrea Siqueira

O estudo das psicoses é o fio condutor no ensino de Lacan. Miller sublinha que
isso se deve ao fato “dos loucos demonstrarem – exatamente no registro da
linguagem – a exterioridade do inconsciente”. Foi através dos estudos dos
fenômenos elementares e do automatismo mental, desenvolvidos pelo psiquiatra
Gaëtan Gatian de Clérambault, e do estruturalismo linguístico que Lacan compõe
sua teoria sobre a psicose.
Entretanto, antes de falar sobre o automatismo mental, é importante fazer um
retorno a Kraepelin, quem primeiro postulou a existência dos fenômenos
elementares. Ele distinguia dois grupos de fenômenos nas psicoses, os fenômenos
elementares e o delírio propriamente dito. Os fenômenos elementares seriam a
expressão primitiva dos fatores determinantes da psicose, enquanto o delírio se
constituiria secundariamente a partir das reações afetivas secundárias.
Eram essencialmente três, cada um caracterizando três tipos de delírios crônicos
na classificação clássica dos delírios. As alucinações caracterizariam as psicoses
alucinatórias crônicas, as interpretações caracterizariam a paranoia e as fabulações
caracterizariam as parafrenias.
Todos os fenômenos elementares conhecidos, todas as formas de alucinação,
interpretação e fabulação conhecidas numa estrutura reúnem-se no fenômeno do
automatismo mental. Clérambault ensina que no automatismo mental encontram-
se, não somente os fenômenos elementares conhecidos, mas tudo que escapa à
iniciativa do sujeito. Isso significa dizer que seria como se o sujeito se espiasse
pensando, ele não reconhece os pensamentos como pertencentes a si mesmo.
Lacan considera que o delírio tem a mesma estrutura que se manifesta no fenômeno
elementar. A construção delirante de Schreber pode ser relacionada à intrusão de
um pensamento que precede a eclosão dos fenômenos e do qual dependerá da a
evolução posterior do delírio, ou seja, “como deve ser belo ser mulher e submeter-
se ao ato da cópula”, tal pensamento o acometera certo dia de maneira inesperada
na transição vigília-sono.

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Nota-se aí diversas características do fenômeno elementar: a passividade, o não
reconhecimento como emissor, o caráter intrusivo e espontâneo do pensamento, o
enigma que se apresenta, a indignação provocada tal como numa injúria, o esforço
de réplica que o obriga a responder a essa injunção.
Assim, o automatismo mental surge, inicialmente, através da síndrome de
automatismo basal ou pequeno automatismo, também denominada, síndrome da
passividade. Em seu início apresenta um caráter absolutamente neutro. Não tem
nenhum sentido e nenhuma tonalidade afetiva particular para o sujeito. Não é
temático, posto que se limita a jogos sobre elementos do pensamento o que torna
impossível prever o tipo de delírio futuro.
A subjetividade dos distúrbios é frequentemente reconhecida e o doente sabe
que isso vem dele mesmo. Esses fenômenos surgem no início das psicoses antes
da formação do delírio. Vale salientar, que no início do automatismo mental, esses
fenômenos não são sensoriais e não fazem nenhum sentido para o sujeito. Muitas
vezes, causam-lhe surpresa ou o divertem. Não se percebem como destinatário
deles. Em seguida, a tendência à verbalização vai aumentando. O pensamento que
inicialmente é indiferenciado, pouco a pouco passa a ser auditivo, as vozes se
constituem, passando a ser temáticas.
Em resumo, o automatismo mental começa de maneira insidiosa, por
mecanismos sutis, abstratos no início – no sentido que são da ordem do
pensamento – e, paulatinamente se acercam da forma verbal. Nesta passagem, do
pequeno automatismo para o grande automatismo, ocorre a alucinose.
Na alucinose já existiria a exteriorização sensorial, mas, ainda, sem os aspectos
idéicos e afetivos. As vozes já são ouvidas fora do sujeito, porém não se dirigem a
ele; não são mensagens voltadas para o sujeito. Este é o período em que surge o
eco do pensamento.
O automatismo mental seria o elemento inicial das psicoses alucinatórias
crônicas. O delírio é visto como uma reação da personalidade do doente aos
fenômenos do automatismo mental e vão constituir os dogmas. Os delírios
dogmáticos são construídos, em geral, com um profundo egocentrismo, o sujeito é

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o ponto de convergência de todas as linhas do universo e exploram as concepções
mais variadas, tais como: religiosas, supersticiosas, míticas, eróticas, entre outras.
A partir dessa sistematização, Clérambault inverteu a concepção de psicose,
segundo a qual era a ideia que dominava a psicose. Para ele, o delírio não cria as
alucinações, ao contrário, são as alucinações que vão criar o delírio, a ideia. Os
delírios secundários podem se construir segundo as atitudes do sujeito. Isto significa
dizer que, por uma mesma síndrome de automatismo mental, um doente fará por
interpretação um delírio de desconfiança, um outro fará por imaginação um delírio
megalomaníaco, outros farão delírios místicos ou eróticos, ou tudo isso junto,
conclui Clérambault.
É sabido que o pensamento de Schreber, ser uma mulher no ato da cópula,
é mais ou menos contemporâneo da sua nomeação como presidente da Corte de
Apelação de Leipzig, ao qual normalmente atribui-se os motivos para o
desencadeamento de sua psicose, pois faltariam elementos simbólicos para o
exercício dessa função. A temática delirante de Schreber, de fato, estabelece um
elo entre aquele primeiro pensamento e a forma final do delírio, que segundo o
relatório do próprio médico, foi sendo construído ao longo de mais de dez anos e
estava baseada na missão de redimir o mundo.
O que se observa, é que o delírio seria uma elaboração de saber em torno
do fenômeno elementar da psicose como um desdobramento do que se apresenta,
desde o princípio, como uma significação imposta.
Na teoria lacaniana, os fenômenos elementares se aproximam dos significantes,
estão incluídos no campo da linguagem, e na relação do sujeito com o Outro. O
fenômeno elementar é visto como paradigma do evento psicótico, a comprovação
da existência da forclusão primitiva que presentifica o Real. É um querer dizer algo,
mesmo que não se saiba o quê, remete ao colapso da realidade referida ao discurso
estabelecido pela emergência de um signo de gozo que não encontra lugar na
cadeia discursiva.
Assim, todo estudo que tenha como objetivo formular algo sobre o delírio deve
partir da realidade psíquica do sujeito e não da verdade que se aplicaria a uma
proposição sobre a realidade. Um delírio é sempre verdadeiro, tem sua própria

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articulação significante, é uma fala fora do discurso, pois não se apoia em um laço
social e que circula em torno de um objeto que fascina, aterroriza, captura o próprio
sujeito da representação. Cabe ao clínico encontrar os traços significantes do objeto
em torno do qual o delírio se edifica. Um delírio é uma estrutura argumentativa que
se constrói a partir de um enunciado primário que diz respeito à presença de um
signo de gozo no mundo. O que está implicado nessa autorreferencia da fala
delirante é o fato dela não necessitar do consentimento do outro social e de não
está propensa a nenhuma mediação dialética, a nenhuma subtração do gozo.
Dessa forma, o estranhamento é o primeiro efeito que causa a fala do psicótico
no outro. O que é dito não faz signo, não é compreendido, podendo ser visto como
algo que escapa a qualquer antecipação. É uma ruptura de algo previsível, na
medida em que toda a comunidade discursiva define o que pode e o que não pode
ser dito. Mas a linguagem, para o delirante, não está organizada pela subtração de
gozo, ao contrário, o delirante encontra-se convicto da presença de gozo no mundo.
Este efeito de estranhamento ocorre diante da perplexidade provocada pela
ruptura do que é familiar, conhecido. O psicótico não é afetado negativamente por
seu dizer delirante e não rejeita o que diz. Ele se vê diante de um objeto que inunda
o seu campo perceptivo que traz a força da certeza delirante, pois a palavra não
suprime a coisa que a representa, a palavra é a coisa.
O sujeito na psicose surge como sendo outros que não ele mesmo, o que ele
fala não é dito por ele, falam por ele, são as “vozes” que estão falando. “Vozes” que
às vezes têm uma identidade e uma história. Assim, na fala do psicótico, vários
outros sujeitos, dissociados, comparecem, mas não se estranham. Neste sentido, o
sujeito que fala, regido por várias “vozes”, é empurrado de um lugar para outro, não
de um lugar de estranhamento, mas de um lugar à deriva na cadeia de significantes.
A palavra perde o sentido e passa a ter um caráter persecutório e tirânico. Assim,
num primeiro momento, existiria uma dúvida e uma hesitação em relação ao que se
está percebendo, como foi visto na teoria de Clérambault. Lacan refere que, neste
momento de crise, o imaginário se desprenderia do simbólico e promoveria uma
reorganização imaginária dos significantes com todas as suas consequências, ou
seja, seria neste ponto que surgiria, por exemplo, a certeza psicótica de que tudo o

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que ocorre, todos os fenômenos, estariam relacionados a ele. Todos os saberes
seriam crepusculados e todos os significantes da injunção passariam a ser
escutados através das alucinações auditivas. Nesse sentido, a alucinação e o delírio
seriam uma consequência da forclusão. O símbolo supõe a ausência daquilo que é
simbolizado, e o psicótico, não teria significantizado a problemática da falta, uma
vez que permaneceria cativo do imaginário materno, em um mundo absoluto, no
qual não haveria uma separação organizadora entre o Eu e o Outro. Por isso, na
psicose a linguagem fala sozinha, é o Outro que impõe suas leis.
Tendo em vista essa relação com o Outro na psicose, Lacan propõe a alucinação
como uma identificação que vem de fora do sujeito. Assim, na alucinação auditiva
algo exterior se impõe ao sujeito e na alucinação verbal é o próprio verbo que é
alucinado, é um fenômeno do pensamento que ocorre pela forclusão de um
significante. É importante salientar que na alucinação o objeto de investimento é o
próprio sujeito alucinado. São os objetos relacionados ao olhar e a voz que voltam,
por exemplo, o sujeito se sente espiado ou vozes falam dele.
Diante desses fenômenos estranhos, o sujeito psicótico começa a se questionar,
e nesse momento surgiria o delírio. O delírio é uma atividade interpretativa do
inconsciente, que traz novas articulações, como tentativa de que haja significação.
Sendo assim, o ato delirante não seria simplesmente uma falta de controle, mas
uma tentativa de uma nova significação diante dos significantes que surgiram na
injunção. Dessa forma, a metáfora delirante viria estabilizar a relação entre
significantes e significados, através da promoção de um remanejamento de todo
aparelho significante.
Esse remanejamento estará intimamente ligado à presença real do objeto do
qual o psicótico não se separou. O objeto precioso do Eu visado pelo Outro na
paranoia ou nos delírios de grandeza; o objeto depreciado na melancolia; o objeto
reencontrado de excitação da mania, o objeto imprescindível ao Outro na
erotomania; o objeto usurpador nos delírios de reivindicação; o objeto mal e invasivo
que perturba o corpo na esquizofrenia.
Lacan assinala que o delírio de Schreber adquiriu o estatuto de metáfora, uma
metáfora delirante, condensada em torno da ideia de “ser a mulher de Deus”. Nesse

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caso, essa metáfora foi uma solução provisória que não impediu um novo
desencadeamento da psicose. O trabalho delirante visa localizar e cifrar o gozo
excessivo através de um saber. A solução encontrada por Schreber, assumir uma
atitude feminina para com Deus, foi a base que onde se construiu o seu delírio e se
reduziu essa exigência de gozo. O que permitiu que, através de intensa elaboração
delirante, pudesse se encontrar adaptado à realidade em que vive ao mesmo tempo
que mantém preservado o seu delírio.
É interessante observar que a loucura, as pequenas loucuras do dia a dia, possui
muita originalidade: o significado das palavras é muito peculiar e particular. Seria
como se os sujeitos falassem uma língua individual, que só eles compreendem. É
na loucura que a linguagem mostra sua singularidade mais absoluta. É na loucura
que surge o Um a Um.

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