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Repertório, Salvador, nº 23, p.203-210, 2014.

DIÁLOGOS TRANSVERSAIS:
ENTREVISTA COM ARIANO
SUASSUNA*
Alex Beigui
Yuri Magalhães1

Yuri: Primeiramente, a minha dissertação trata zer algumas perguntas que possam contribuir para
da influência do épico e do trágico no Romance d’A a minha pesquisa de mestrado, a ser defendida lá na
Pedra do Reino. E eu vim aqui, justamente, para fa- UFRN. Então, para começar, em sua obra, nós po-
demos perceber inúmeras citações. O Romance d’A
Pedra do Reino possui alguma influência das epopeias
*
Entrevista realizada no dia 19 de agosto de 2013, na de Homero e Virgílio? Ou de outras obras? Como
residência do autor, no bairro Casa Forte, em Recife/PE. ocorre esse processo de apropriação de outros tex-
tos da tradição, em seu processo de escritura?
1
Alex Beigui é ator, dramaturgo e professor da Universidade Ariano: Olhe, acho que tem uma presença, aliás,
Federal do Rio Grande do Norte. Mestre em Artes Cênicas
pela UFBA, com doutorado em Letras, na área de Drama-
evidente, de Homero, é muito evidente. De Virgílio,
turgia Comparada (USP). Yuri Magalhães é ator, diretor e menos, porque eu gosto mais de Homero do que
professor de Teatro. Licenciado em Teatro e Mestre em Artes de Virgílio. Aliás, se tem de Homero tem que ter
Cênicas, pela UFRN. Atualmente, trabalha como professor na de Virgílio, porque Virgílio é um seguidor fiel de
Universidade Regional do Cariri, em Juazeiro do Norte (CE).
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Homero, não é? Eu acho que ele até se sentiu mal pros cariocas? Você veja; ele abriu os portos, em
com isso, no fim da vida, porque ele pediu para não primeiro lugar. Segundo lugar; fundou o Banco do
publicar o livro dele, mas publicaram! Não o obede- Brasil. As instituições que ele fundou estão todas
ceram, e olhe o que fizeram com ele. Porque a Enei- aí. Fundou a Biblioteca Nacional, doou inclusive,
da é um mito, inclusive pra nós latino-americanos, e a biblioteca nacional está lá! Foi D. João VI que
brasileiros em especial, tem um sentido muito hon- doou, não sei se doou ou fundou. O Jardim Botâ-
roso. Eu não sei se você viu, por acaso, o filme que nico... não é? Quer dizer, ele, para o Brasil, foi uma
Carla Camurati fez sobre o rei D. João VI... figura de importância crucial! Pois bem, então eu,
Alex: D. João VI, seria o “Carlota Joaquina”? que sou uma pessoa muito atenta a essas coisas,
Ariano: De Carla Camurati. desde muito moço... é claro que na Pedra do Reino
Yuri: Sim, vi. tudo isso está sendo colocado num ponto de vista
Ariano: Pois bem, ela me chamou pra ver o fil- irônico; o épico na Pedra do Reino está tratado com
me, eu vi, e disse a ela: Olha, você foi muito injusta um ponto de vista irônico, mas tem um lastro de
com D. João VI, porque D. João VI é apresentado, verdade e entusiasmo em minha obra que é meu.
aliás, é uma coisa quase que geral, como uma figu- (Risos)
ra ridícula, não é? Como uma figura ridícula, sujo, Alex: Porque, na verdade, fica muito evidente a
comilão. Olhe, ele até poderia ser isso tudo, mas ele questão da epopeia no romance, então é um livro
foi uma figura extraordinária. E ele desempenhou híbrido, não é?
um papel. Eu disse até a Carla Camurati (eu não Ariano: É, é verdade.
devia nem ter dito por que terminou sendo uma Alex: Então, fica muito claro isso. Mas a tragici-
grosseria com ela), eu disse: Olhe, só houve ou- dade, porque há elementos trágicos...
tro exemplo na história, semelhante, de um rei que, Ariano: Há, perfeito.
derrotado, se deslocou, com toda a sua corte, para Alex: Então essa tragicidade, ela não é tão evi-
outro lugar e fundou um novo país, foi Eneias, é dente, eu acho que pela própria proposta de ser um
por isso que a gente diz A Eneida, Eneias com romance, isso é...
Anquises. No caso aí, Dom Pedro foi e Eneias, e Ariano: A tragicidade. Veja bem, eu procurei
Anquises era o D. João VI. Eles se transportaram. colocar o que existe de trágico no personagem que
Troia sendo derrotada, eles se transportaram para a é o padrinho de Quaderna, Dom Pedro Sebastião.
península itálica e fundaram Roma. D. João VI fez Ele é um personagem trágico, não é? Quaderna
isso, e eles fizeram isso. Agora, Eneias e Anquises não é, porque ele sai pelo cômico.
tiveram a sorte de encontrar Virgílio, e D. João VI Yuri: Ele entraria, então, nessa perspectiva, do
encontrou você!2 (Risos) Daí ela me disse: Mas eu “bode expiatório” da tragédia grega?
estive em Portugal, e a opinião unânime lá é contra Ariano: O quê?
D. João VI. Eu digo: E você é portuguesa? Porque Yuri: Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto, ele
essa é a opinião dos portugueses, porque eles não entraria na perspectiva do pharmacós, do “bode
o perdoam pela independência do Brasil, e foi ele expiatório” da tragédia grega?
quem fez! Foi D. João VI que fez a independência Ariano: O Dom Pedro Sebastião?
do Brasil, Portugal até hoje não se conforma por Yuri: Isso.
ter perdido o Brasil, mudou o Brasil! Eu também, Ariano: Não... eu acho que não necessariamen-
se fosse português, teria uma raiva danada de D. te o bode expiatório, porque... você veja: o bode
João VI. E você pegou essa opinião dos portugue- expiatório era mais uma figura ritual e religiosa,
ses e fez sua! E, principalmente você, que é carioca, não é? Porque representava Dioniso, que era o
porque eu acho que pro Brasil ainda pode ser que deus do teatro, não é? Era o animal sagrado de
como pros portugueses ele seja o D. João VI, mas Dioniso, o bode. “Bode” em grego é tragos, o nome
tragédia vem de tragos que significa “bode”, por-
que era o prêmio (inclusive)... era o prêmio dado
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Referindo-se à Carla Camurati, diretora do filme “Carlota ao dramaturgo que ganhava o concurso literário,
Joaquina”. digamos assim, que acontecia concomitantemente
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com as olimpíadas, não é isso? Eles faziam os jogos lado intuitivo-criativo, mas tem um lado também
olímpicos, e nos jogos olímpicos se encenavam as de extrema consciência. O lado “Ariano crítico”,
trilogias, as tetralogias, se encenavam as peças e o “Ariano professor”, a biografia do Ariano, na ver-
prêmio era um bode em homenagem a Dioniso. dade, que é muito forte, entra na obra?
Então, era um animal sagrado, não é? Agora, pode Ariano: Entra. Olhe, eu vou lhe dizer, na ver-
ter uma alusão a isso, pelo fato de que eu criei no dade já tem relatos por aí. Na verdade, A Pedra do
Dom Pedro Sebastião uma figura paterna. Eu não Reino surgiu de dois fracassos meus. Eu, nos anos
sei se você prestou atenção a isso, mas, muito mais de 1950, tentei escrever uma biografia do meu pai.
do que o próprio pai de Quaderna, Justino Qua- Mas eu não consegui levar adiante, aquilo era como
derna, o pai (verdadeiro pai), que ele admira, o pai se eu estivesse mexendo numa ferida nunca cicatri-
que ele protege, é o Dom Pedro Sebastião, não é? zada, não consegui. Aí eu tive o primeiro fracasso,
De padrinho. Não é à toa que padrinho é o subs- que eu não consegui fazer essa biografia. Depois
tituto do pai. Então, se você prestar bem atenção, eu tentei fazer um longo poema épico sobre ele,
a figura trágica na Pedra do Reino é o pai substituto que se chamaria Cantar do Potro Castanho, mas eu
de Quaderna... porque o Quaderna tem uma face também não conseguia. A poesia dava um distan-
ambivalente. Ele tem um lado que é trágico, sério, ciamento maior mesmo, mas, mesmo assim, eu
e tem um lado palhaço; um lado irônico, um lado não conseguia. Então, eu deixei pra lá, e disse: “Eu
cômico. Você sabe que, de todos os tipos de riso, não vou tentar mais nada nessa vida não.” Aí, em
o humorístico se caracteriza por ser essa fusão de 1958, depois de eu ter deixado isso pra lá, comecei
doloroso e risível. Quaderna é um personagem não a querer escrever um romance que terminaria sen-
propriamente cômico, ele não é somente cômico, do o Romance d’A Pedra do Reino. E se eu perceber;
ele é humorístico, que ele tem um lado cômico e a Pedra do Reino terminou sendo o substituto ficcio-
um lado doloroso. nal do romance, da biografia e do romance, e do
Alex: E ele é profano, não é? Ariano. poema que eu não tinha conseguido escrever. Eu
Ariano: Sim, profundamente, até no ponto de só percebi depois. Depois eu fiz várias versões, eu
vista religioso, ele funda um novo... um catolicismo faço sempre várias versões depois que eu escrevo.
próprio, não é? Onde ele possa estar saindo. Eu Numa das versões, que eu dei por terminado, que
divido sempre o romance em dois hemisférios: o eu pensei que estava terminado, veio uma irmã que
hemisfério rei e o hemisfério palhaço. Então Qua- eu tenho chamada Germana, cuja opinião eu levo
derna funde isso muito bem, não é? No hemisfério muito a sério, aí ela disse pra mim assim: “Ariano,
rei, quando ele está exercitando o hemisfério rei você percebeu que a morte do padrinho de Qua-
dele, ele é o filho do rei assassinado, que é Dom derna é a morte de João Dantas?” Eu lembro que
Pedro Sebastião, o rei degolado, ele é o persona- era um fato pessoal ligado à minha família. Aí eu fui
gem que é sujeito ao sofrimento, como todos nós. olhar: “E é mesmo!”. João Dantas foi encontrado
Mas ele, do lado palhaço, ele tem essa saída, ele sai morto com a garganta cortada no dia 06 de Outu-
pelo riso. bro de 1930, na detenção aqui do Recife, que é hoje
Yuri: Nós sabemos que os personagens trági- a Casa da Cultura, num aposento elevado e estava
cos como Agamênon, Electra, Édipo, Antígona... trancado por fora, então, aí eu vi que era mesmo.
eles possuem uma linhagem trágica. Essa linhagem Inconscientemente, eu tinha recriado a morte de
trágica da tragédia grega influenciou na escrita, na João Dantas na Pedra do Reino, como fato ficcional,
linhagem trágica de Quaderna? mas tinha uma origem (inclusive) autobiográfica
Ariano: Eu acho que sim, você veja que ele minha, muito forte! Então, depois que ela me disse
mesmo faz a narração que seria, por exemplo; ele é isso, eu acentuei um pouco a semelhança, dei para
uma espécie de “Orestes”, não é? E Orestes é filho planejar racionalmente de propósito, de maneira
de um rei assassinado como Quaderna, e como eu. que terminou o seguinte: não é que os Garcia-Bar-
(Risos) retto seja os Dantas Vilar, não é que os Quaderna
Alex: Na Pedra do Reino, tem aí um escritor que seja os Suassuna, eles são uma recriação exagerada,
domina a estética completamente, então tem um meio caricatural, das duas famílias. Como também
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os dois personagens que representam a esquerda e tinha pista nenhuma! Nem vela dobrada, nem alfi-
a direita, Clemente e Samuel, são criados a partir de nete novo, nem disco mortífero...” isso tudo é das
dois tios meus, que exerceram uma influência for- minhas leituras de infância.
tíssima na minha formação de escritor; meu tio Jo- Yuri: Então é uma ironia com essas leituras que
aquim Dantas forneceu elementos para “Samuel” o senhor possui...
de direita, e meu tio Manuel Dantas Vilar forneceu Ariano: Não, é uma ironia com o fato. E outra
elementos pra “Clemente”, que era de esquerda. coisa, eu tentando dar um tom... eu procuro dar um
Yuri: Eu percebo que o senhor acrescenta uma tom cômico àquele fato que pra mim foi terrível,
ironia. Existe uma ironia muito forte nesse crime, não é? A morte de João Dantas é um negócio hor-
que não é solucionado no Romance d’A Pedra do Rei- rível, inclusive foi a causa da morte do meu pai. E aí
no, porque acaba o livro, mas não se sabe como. eu faço uma brincadeira... vocês são paraibanos?
Talvez essa seja a grande ironia da obra, ou uma Alex: Eu sou paraibano.
das grandes ironias da obra, que é esse crime sem Ariano: E ele?
solução, que eu acho que é uma questão que o se- Yuri: Eu sou carioca e cresci em Natal. Eu sou
nhor trouxe para (talvez) uma questão real... natalense de criação.
Ariano: Olhe, veja bem. Eu, quando menino, eu Ariano: Então, é... eu estava falando na morte
li muito, quando menino mesmo, adolescente! Eu de João Dantas...
li muitos romances policiais e muitos romances de Yuri: Na morte de João Dantas que acabou re-
aventuras. Tem um romance, dois de aventuras... sultando na morte de seu pai.
dois não, três ou quatro... porque eu li muito Ale- Ariano: Sim, o nosso conterrâneo,3 Bráulio Ta-
xandre Dumas nessa época, eu tenho uma admira- vares, é um grande especialista. Eu escrevi lá na
ção por ele (ainda hoje) enorme, eu não admito que Pedra do Reino, eu escrevi para tirar uma brincadeira
seja considerado um escritor de segunda mão não! comigo mesmo, nunca pensei que alguém enten-
Eu tenho uma admiração por ele enorme. E existe desse aquilo quando ele disse... aí, Bráulio Tava-
um discípulo dele que eu admiro muito também, res foi em cima! Ele disse pra mim, e ele escre-
uma figura muito curiosa, um escritor chamado veu até: “Aquilo é uma situação típica de romance
Rafael Sabatini, não sei se você já ouviu falar nele. policial que se chama crime de quarto fechado”.
Ele era uma figura curiosa, porque ele era filho de E ele tinha lido, e por acaso ele conhecia os dois
uma mulher inglesa, a mãe dele era inglesa e o pai livros de Edgar Wallace que eu estava brincando
era italiano, e ele nasceu em Portugal, certo? Ele com ele, era... chama-se A Pista do Alfinete Novo e a
tentou escrever esse livro, que eu tenho uma ad- Pista da Vela Dobrada, mas eu disse: “Não tem pis-
miração enorme, uma verdadeira obsessão, é Sca- ta nenhuma! Não tem pista do alfinete novo, não
ramuccia. E eu gosto muito também de Memórias de tem vela dobrada!” Eu nunca pensei que alguém
Um Médico de Alexandre Dumas, e muito mais... dos identificasse, ele identificou e foi lá. A Pista da Vela
Três Mosqueteiros... Pois bem, eu li muito na infância Dobrada é um crime em que o sujeito é encontra-
e na adolescência esses dois escritores de aventuras, do morto dentro do quarto, com a tranca de ferro
e li muito dois escritores de romances policiais: Co- por dentro. No meu é por dentro, a diferença é
nan Doyle, o autor de Sherlock Holmes e um autor que lá tinha a vela dobrada no chão, era a única
chamado Edgar Wallace, um inglês, pois bem, se coisa que tinha, e na de Quaderna nem isso! Não
você tiver curiosidade de sair por aí vá pelo livro; tinha alfinete, não tinha nada. Sabe como teria sido
tem um momento que o corregedor interrogando a morte lá do nosso, lá do da Pista da Vela Dobrada?
Quaderna sobre a morte do tio, que ele suspeita O assassino matou, o camarada dele queria matar,
que foi o Quaderna... aí ele começa dizer, quando deixou lá ele deitado na cama, ele tava dentro do
perguntam: “Não olhe, o meu crime é insolúvel e quarto, não é? Aí ele pega a tranca de ferro que vai
não tem pista, nenhuma foi encontrada, com pista cair “aqui” no gancho, não é? Ele deixa encostada
é fácil, pista é pra esses romancezinhos estrangeiros
aí, o meu não tem pista não, e aconteceu o fato.”
Aí ele diz: “Mas não tinha pista nenhuma?”... “Não Do autor e do professor Alex Beigui.
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uma vela acima da tranca, sai, tranca a porta com uma maneira, sem peneira, e valorizar o... porque
chave por fora e acende a vela, ou seja, aí a vela Quaderna vem, de certa forma, com a ironia, mas
vai desmanchando, desmanchando, quando a vela vem colocar valores que passam às vezes desper-
acaba de desmanchar, a tranca cai. Aí eu me baseei cebidos da classe, vamos dizer “privilegiada”, que
nessa brincadeira. tenta copiar esses modelos de fora, não é?
Yuri: Em determinada parte do Romance d’ A Ariano: É, agora, você veja bem: há uma ma-
Pedra do Reino, Quaderna revela que em sua infância neira diferente quando ele encara, quando você fala
se envergonhava de seus antepassados, em razão desses modelos que vêm de fora... ele tem uma ma-
desses inúmeros assassinatos, como o massacre da neira diferente de encarar os modelos mais ligados
Pedra do Reino e tudo mais... daí, já na fase adulta, ao capitalismo e dos outros que vêm da aristocra-
Quaderna passa a enxergar o passado trágico da cia. Ele não leva a sério, não é? Ele... eu não sei
família como um “pormenor” que apenas realça a se você se lembra, mas tem um trecho onde ele lê
sua extirpe nobre... quando ele está sozinho, ele está em cima do laje-
Ariano: É até honroso! (Risos) E ele compara do, e ele lê uns trechos escritos por Antônio Con-
com um rei de fora né? Ele diz: “Olhe, o rei Feli- selheiro, e ali tem uma denúncia muito forte contra
pe, o Belo, da França, falsificava dinheiro...” aí ele o capitalismo e contra o seu campeão do mundo,
diz: “Falsificação de dinheiro é um crime chinfrim que é os Estados Unidos, não é? Ali ele fala com
comparado com degolar uma pessoa...”; do ponto raiva mesmo. Ele quer levar na graça, e ele leva.
de vista régio e monárquico, ele quer é embelezar Yuri: Tem um trecho no romance que tem uma
esse fato horroroso né, aí ele compara com o rei cegueira que acomete Quaderna, que ele é metafo-
de fora. ricamente cego por dois gaviões... e Quaderna tam-
Yuri: Daí nós sabemos que na tragédia grega, bém se define como “decifrador” e “charadista”.
na Antiguidade Clássica, o “fim trágico” enobrece, Poderíamos identificar uma influência do Édipo Rei
então esse entendimento influencia o pensamento nessa perspectiva?
de Quaderna? Ariano: Sim! Do Édipo Rei e de Homero tam-
Ariano: Influencia. Agora, você veja bem... ele bém! O fato de Homero ser cego. Ele faz questão
apenas dá o conceito grego de trágico, ele dá, e dá de ser cego também, para não ficar abaixo de Ho-
como se nada desse passado desonroso dele divi- mero. E ele tem isso de Édipo também. Eu não sei
disse, o que ele faz por meio do humor às vezes, se você se lembra, mas ele tem uma página chara-
não é? (Risos) E ele levando a sério! dística no jornal do Comendador Basílio Monteiro,
Yuri: Então essa questão da nobreza do herói que se chama Édipo! Ele chega a dizer: “Camões
trágico... Quaderna também se... era inferior a Homero porque era cego só de um
Ariano: Ah claro! Do ponto de vista dele, ele olho”. (Risos) Se ele fosse dos dois, seria como
é uma pessoa altamente nobre, não é? Altamen- Homero... (Risos).
te nobre! E o pai dele também, não é? Ele exalta Yuri: Quaderna então... ele é uma representa-
todas essas coisas para poder se engrandecer a si ção, uma personificação da transição da epopeia
mesmo. para o romance? Uma vez que ele decide escrever
Alex: Essa questão, por exemplo... falei um um romance em vez de uma epopeia?
pouco da crítica, da biografia pessoal, mas tem Ariano: Sim, também! E há também uma espé-
uma biografia histórica também, não é, Suassuna? cie de fusão de uma visão do herói trágico para o
Vários episódios históricos estão na Pedra do Rei- herói picaresco.
no... guerras, batalhas... e aí tem uma questão que é Yuri: Lukács fala que o epopeieta descreve a
esses fatos históricos que são ficcionalizados, mas realidade externa a si, enquanto o escritor do ro-
a referência é muito forte, principalmente pro Nor- mance preenche a realidade com sua subjetividade.
deste. E aí eu queria perguntar sobre... a ironia não Então, esse excesso de subjetividade seria um fator
é só da personagem. Tem uma ironia também da que o inibiria de escrever uma epopeia?
questão do contexto social brasileiro, em relação a Ariano: Não... Sim, talvez. Digamos uma epo-
esse movimento de absorver as ideias de fora, de peia em verso. Mas, quando ele define, não sei se
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você se lembra, ele, com a ajuda de um dicioná- livro escrito de um sopro só? Não, ou sim?
rio, define o romance. Aí ele procurou juntar tudo Ariano: A Pedra do Reino foi muito... eu passei
debaixo do nome do romance, ele acha que o ro- doze anos escrevendo. A princípio, Quaderna nem
mance é ótimo porque ele pode mentir a vontade! existia, certo? O personagem principal era Sinésio,
(Risos) Dentro do romance, ele pode colocar todos o Alumioso. Então, eu comecei a escrever, de re-
os gêneros. pente eu comecei a notar que havia alguma coisa
Yuri: O Lukács fala também que o romance é de falso e que eu não sabia o que era, aí eu parei e
um jeito de escrever sem se arriscar. Daí o Quader- comecei a refletir. Aí eu vi que era a minha pessoa.
na fala que ele poderia reconstruir um reino atra- Eu não devia ser o narrador, eu não devia contar a
vés da literatura, sem se envolver em “matanças e estória, certo? Não queria contar... tinha que existir
morrências”. um personagem para contar. Aí, eu criei um per-
Ariano: Olha, eu não conheço o Lukács, eu sonagem, mas a princípio ele era só um narrador,
nunca li o Lukács, não. Inclusive porque me joga- e continuava como personagem principal o outro,
vam muito na cara e às vezes eu batia ele, eu não o Rapaz-do-Cavalo-Branco... mas aí ele começou
sabia, eu nunca li Lukács não. Agora, pelo que você a crescer de ponta a ponta, aí eu tentando empur-
está me dizendo aí, eu até devia ter lido. rar ele lá pra baixo e ele subia, depois da terceira
Yuri: E Lukács, ele fala justamente do roman- ou quarta vez eu tentei e não consegui eu disse:
ce, em que o autor escreve e ele não se envolve “Omi, fique!”. E ele se tornou o personagem prin-
em muitos riscos. E Quaderna, ele fala que é uma cipal, certo? Porque eu vi que, através dele, além
forma de reconstruir seu reino sem se envolver em de contar a estória eu podia contribuir pra ele...
“matanças e morrências”, não é? porque Quaderna não sou eu, mas tem muita coisa
Ariano: É, sem arriscar o pescoço. minha... inclusive eu tiro com isso, o dia do aniver-
Yuri: É, então coincidiu muito com esse pensa- sário dele é o mesmo dia do meu (risos), por acaso
mento do Lukács. é o mesmo dia do Périplo, do Ulisses, do Jorge que
Ariano: Tá bom, tá ótimo! é Bloom, não é?
Alex: Eu queria perguntar sobre essa questão Alex: O Bloomsday.
do processo de escritura. Do seu processo de es- Ariano: É, o 16 de junho.
critura. A questão da criatividade e do imaginário, Yuri: Em Os Sete Contra Tebas, de Ésquilo, nós
como é que ele se opera. Porque, quando a gente podemos observar a disputa de Etéocles e Polini-
pega o livro da Pedra do Reino, a gente percebe uma ces, após o exílio de Édipo. Então, após a morte de
influência textual de vários momentos; tanto da Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto, nós temos
tragédia quanto da época clássica, quanto do ar- uma disputa entre Sinésio e Arésio. Nós poderíamos
morial, do movimento armorial, que tem influência identificar uma influência dos Sete Contra Tebas?
da Idade Média, enfim... tem todo processo ali de... Ariano: Muito, perfeitamente. Parabéns pela
cultura popular, uma discussão sobre cultura popu- argúcia! Tem um parentesco muito... inclusive,
lar, o enfrentamento da cultura erudita, do contexto a Orestíada é um livro que me toca muito, e Ésqui-
social... e o Quaderna, ele, um pouco, parece com lo é um dramaturgo que me toca muito, Ésquilo
o Macunaíma, numa outra perspectiva. No sentido e Sófocles, mas Ésquilo sobretudo por causa de
de que a pedra é o muiraquitã, que o Macunaíma Orestes, por causa daquilo que eu lhe disse. Olhe,
procura, Quaderna foi procurar as pedras do reino pra mim são três graus de afastamento... você tem
que ele achava que nem existiam, mas quando ele Orestes, inclusive Orestes tem um amigo, não é?
chega lá, ele vê que existe, e que é até uma decep- Pilades. Orestes e Pilades...
ção porque ele acha que as pedras eram... Yuri: Lino Pedra Verde seria o Pilades?
Ariano: (Risos) É, ele acha até obscenas, as pe- Ariano: Não, não, ele é da família. Então você
dras... tem Orestes... e você tem Hamlet e Horácio, filho,
Alex: E são fálicas, não é? Então, nesse processo como Orestes, de um rei assassinado. Não é? E
todo há um... O senhor falou que não leu Lukács, você tem Ariano Suassuna (Risos), filho de um rei
mas há uma investigação com anotações ou é um assassinado.
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Yuri: Tem muitas similitudes. Alex: Mas vai fazendo.


Ariano: É, há um parentesco por aí... Dadas as Ariano: Vai fazendo! Você viu a adaptação da
devidas proporções. E isso vai ficar mais claro nes- Pedra do Reino pra televisão?
se livro que eu estou escrevendo, na Pedra do Reino Yuri: Tenho o DVD.
não está muito claro não, porque Ariano Suassuna Ariano: Tem? Você presta atenção... eu escrevi
não está presente. aquele final de propósito, e lá...
Yuri: E ainda na perspectiva esquiliana, temos Yuri: Eles mudaram o final...
também Os Persas... que na Pedra do Reino tem uma Ariano: Mudaram não, fui eu! Não sei se você...
menção à Guerra de Princesa, então essas Guerras por que aquilo só se revelava no terceiro romance.
Médicas que, de certa forma, influenciaram a escri- No terceiro depoimento que ele narra, no quarto...
ta de Ésquilo... ele abre a camisa e mostra os ferimentos que ele
Ariano: Eu me lembrei assim, não tão cons- recebeu durante a vida toda, o que faz “Margarida”
cientemente, tal qual Homero, eu sabia que nas se desmanchar de amor por ele, está entendendo?
epopeias tinha isso, certo? Então eu fiz da Guerra Ele tá fazendo o depoimento pelo motivo de que
de Princesa a Guerra da Pedra do Reino. ele quer conquistar Margarida... aquilo ele está se
Yuri: Assim como em Os Persas há um funda- mostrando pra Margarida, não é? Pois bem, aí, no
mento histórico, na Pedra do Reino também há um fim, ele mostra uma face real dele, uma coisa que
fundamento histórico, que é a Guerra de Prince- ele nunca faz, ele mostra o que ele passou durante
sa... a vida toda. E não é de homem frouxo não! (Risos)
Ariano: Sim, perfeitamente. Ele está cheio de ferimentos.
Yuri: Seria outra característica de Ésquilo que Yuri: Diferentemente do herói trágico grego,
detectei na sua obra. ele não segue uma linha reta em si...
Ariano: É. E eu não dei um título de rei a João Ariano: Não.
Pessoa, porque eu queria dar a catarse a ele. (Ri- Yuri: Então ele contrapõe a esse herói trágico
sos) essa perspectiva? Seria um herói antitrágico, ou he-
Yuri: Então, vejamos, a ausência de uma linea- rói trágico? Qual seria a melhor nomenclatura para
ridade na obra é uma contraposição intencional à tentar defini-lo?
unidade aristotélica? Ariano: Não, ele é. Digamos... ele é um herói
Ariano: Não, olhe, eu sou um admirador das trágico, que se traveste de herói cômico, pra esca-
unidades aristotélicas... Não sei se você se lembra, par da prisão. E outra coisa que eu revelo na minis-
mas a Pedra do Reino, em si, ela dura um dia. série: foi ele quem se denunciou a si próprio, por-
Yuri: Então é um tempo de sol... que ele não quer ser considerado inferior, a ideia
Ariano: É uma unidade de tempo. É o tempo dele tinha sido essa. Ele diz: “Olha, o importante
de narração, porque o tempo de narração dele ao sou eu, tanto assim que estou sendo procurado!”
corregedor passa-se num dia só. Quando ele sai do Mentira, foi ele que mandou a carta denunciando
depoimento ao corregedor, a noite está começan- ele mesmo!
do a cair. Yuri: Inclusive na obra não tem...
Yuri: E nós percebemos, assim, que, Quader- Ariano: Ele é o mártir da literatura! (Risos)
na, como o herói grego, ele tem uma... O herói Yuri: Já na TV que ele revela. Na obra não... na
grego trágico tem um destemor, uma desmedida. obra não fica claro quem foi.
Quaderna tem uma grande vontade que é a de re- Ariano: Ah, sim! Porque a obra teria uma conti-
construir esse reino, mas ele não quer arriscar sua nuidade que não teve, não é? Eu avancei o final da
integridade física... terceira para a adaptação da TV.
Ariano: ... Agora, você veja bem: ele, de vez em Alex: Ela, a obra, é dividida em folhetos. Não
quando fala isso, que ele não tem coragem, mas você é isso? Que me lembra um pouco a divisão... toda
se lembre que o livro é um apelo que ele está fa- uma influência assim da divisão de obras narrativas,
zendo no processo, ele quer aparecer como pacífico, por exemplo: se a gente pegar A Divina Comédia,
certo? Então, ele não queria nem fazer nada disso... enfim... o Fausto... tem uma divisão, os folhetos...
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Repertório, Salvador, nº 23, p.203-210, 2014.2

Ariano: A Divina Comédia sempre exerceu um do ponto de vista literário, ficcional etc. Ele repre-
fascínio enorme sobre mim, viu? Inclusive pelo se- senta essa visão estreita do real que jamais poderia
guinte: vocês acabam de me falar que a Pedra do abarcar Quaderna. É o que chamamos a literatura
Reino não é uma tragédia grega, não é, ela vem, de o “antagonista”, não é? Quaderna é o protago-
mas não é. Vocês já viram que na Divina Comédia nista, e o corregedor é o antagonista. Praticamente
acontece a mesma coisa? A Divina Comédia é uma é o “espelho” ao contrário.
epopeia completamente singular! Começa que o Yuri: Então, uma pergunta para finalizar, vol-
personagem é o narrador, isso é uma característica tando já para o Lukács. Ele fala que a epopéia, a
da poesia lírica, não é? Você vê, a pessoa que fa- Ilíada e a Odisséia, eles imprimem uma totalidade do
zia poesia lírica era “eu”... Eu cantarei meu amor tão mundo grego. Então, a Nordestíada, que seria escrita
docemente, por uns termos em si tão concertados... não é? pelo Quaderna, caindo pelo viés irônico, seria uma
Alma minha gentil, que te partiste... naquela triste e leda... forma de Quaderna imprimir uma totalidade da re-
é um poeta lírico! O narrador principal é o ator gião nordeste nessa perspectiva?
principal... Ariano: Sim, é uma tentativa de fazer da sua pá-
Alex: Que é acompanhado na Divina Comédia tria um lugar sagrado, como a Grécia pra Homero,
por um poeta... como a península itálica pra Virgílio, Florença, na
Ariano: Na Divina Comédia, o autor é o narrador. Toscana, pra Dante, é a tentativa de fazer seu tropos
O narrador é o personagem... isso é uma qualidade heróico.
da poesia lírica! Yuri: Esse caráter nacional é muito forte, a epo-
Yuri: É Virgílio quem o acompanha. peia, e ele traz para a epopeia nordestina o caráter
Ariano: É, mas Virgílio sendo ele mesmo! O heróico do nordeste.
poeta! Ele começa... Eu o encontrei por uma estrada Ariano: Exatamente. Ele, além de achar que o
escura... eu! Quer dizer... e é o Dante que anda pelo nordeste é o coração do Brasil, ele acha que o ser-
inferno, pelo purgatório, e pelo paraíso. Virgílio o tão é o nervo e o dorso do nordeste, certo?
acompanha até o purgatório. Yuri: Bom, eu acho que é só...
Yuri: Podemos entender esse juiz-corregedor Alex: Queria agradecer, Ariano...
como uma personificação do julgamento da polis? Ariano: Não, eu que estou muito satisfeito. Não
Ariano: Sim, podemos sim, exatamente! Com por estar na frente de vocês, não. Pela primeira vez
todos os equívocos que isso acarreta, não é? O cor- me fizeram perguntas novas e diferentes (Risos).
regedor não entende Quaderna, não alcança nada Eu já não aguento mais não! (Risos) O Alexandre
do que ele fala, não é? Ele quer enquadrar Quader- fala brincando que ele vai providenciar um grava-
na nos autos de um processo comum, e não pode... dor... “resposta um, resposta dois.... e aí... aperta aí
Mas ele é isso! Tanto do ponto de vista político... o botão um!” (Risos) Eu não aguento mais não!

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