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Embora essas três peças tenham sido escolhidas como foco de análise, a morte aparece

nelas como em outras. Como, por exemplo, em Na solidão dos campos de algodão, onde,
segundo Anne Ubersfeld, ao final da peça, a morte é sugerida na seguinte fala de um dos
personagens, o Dealer:

É o traficante/vendedor que fala [...]: ‘se você fugisse, eu te seguiria; se você caísse sob meus
golpes, eu permaneceria próximo a você até seu despertar; e se você decidisse não mais
despertar, eu permaneceria próximo de você, em seu sono, em sua inconsciência, além’. Aqui, o
traficante/vendedor revela sua verdadeira identidade: ele é o Anjo da Morte [...].
(UBERSFELD, 1999, p. 8 e 9, tradução minha)4
A vida de Koltès é fortemente marcada por experiências violentas e de exposição à morte,
em contextos específicos e que terão grande impacto em sua formação pessoal – por
exemplo, as mortes de árabes de origem argelina ocorridas em atentados na cidade de Metz,
durante o período da Guerra da Argélia, cujos corpos eram frequentemente lançados no rio
que corta a cidade5. É possível destacar ainda as experiências vividas pelo autor na África,
onde testemunhou eventos marcantes envolvendo a presença da morte. Por exemplo, ao
chegar à Nigéria, especificamente em Lagos, em sua primeira viagem ao continente
africano, segundo o próprio Koltès, sua primeira visão após descer do avião foi a de um
cadáver flutuando num rio próximo.

Roberto Zucco, última peça escrita pelo dramaturgo, foi explicitamente baseada em fatos
reais, na trajetória do serial killer Roberto Succo, de origem italiana, criminoso que
promoveu durante vários meses um estado permanente de medo e terror no interior da
França, cometendo assassinatos e estupros. Koltès viu um cartaz de “procura-se” com
a imagem do criminoso e, fascinado por aquele rosto e identificando-se com o bandido,
produziu uma obra que é frequentemente considerada como uma das suas obras-primas,
pela maneira como constrói a narrativa e aborda os crimes sangrentos cometidos pelo
protagonista – inspirado no criminoso real –, dando à trajetória do assassino uma dimensão
simbólica inusitada, onde a morte desempenha um papel central.

Nas palavras do dramaturgo:

A primeira vez que fui ao teatro, era muito tarde, eu tinha vinte e dois anos. Eu vi uma peça que
me tocou muito, uma peça que eu esqueci, mas com uma grande atriz, Maria Casarès. Ela tinha
me impressionado muito e, imediatamente, eu me pus a escrever. Eu comecei por uma peça a
partir da Infância de Gorki e eu a montei com alguns companheiros. 14 (Ibidem, p.9, tradução
minha)

O monólogo constitui outra das características estruturais marcantes da escrita koltesiana. A


experiência de viajar permanentemente a países cujas línguas não dominava ou ignorava
completamente parece ter estimulado Koltès a desenvolver esse recurso de escrita, o
monólogo, que caracteriza perfeitamente o estado de solidão experienciado pelo autor.
Sozinho em países desconhecidos, entre pessoas com as quais dificilmente poderia
comunicar-se verbalmente, restaria a Koltès entrar em diálogo permanente com o outro que
é si mesmo, o outro como figura idealizada cuja existência concretiza-se no momento em
que se torna destinatário de um discurso, um dos polos de uma relação dialógica. A escrita
desenvolvida nesse contexto nutre-se da experiência de solidão de um sujeito acompanhado
de si mesmo e de outros por ele imaginados, pelo viés da linguagem, sendo o monólogo o
seu melhor veículo de expressão.

O próprio Koltès afirmou:


Eu escrevo para o teatro porque é, sobretudo, a linguagem falada o que me interessa. O teatro,
eu o conheci muito tarde, eu não tive nenhuma formação dramática específica. Quando eu vi o
meu primeiro espetáculo com a idade de 22 anos, eu tive o sentimento que o principal era a
linguagem falada. [...] O que eu tento fazer – em síntese – é me servir da linguagem como de
um elemento da ação.30 (KOLTÈS apud DESCLÉS, 2011, p. 182, tradução minha)
O pesquisador e encenador francês Cyril Desclés, ao discutir possíveis hipóteses sobre a
gênese da escritura koltesiana, cita a seguinte declaração do autor: “Eu sou invadido pelas
palavras; eu poderia escrever três mil peças sem personagens, sem ação, sem situação, sem
ideias, tantas são as palavras que chegam e se encadeiam e borram tudo 31”. (KOLTÈS apud
DESCLÉS, 2011, p. 184, tradução minha).

2.6 Na solidão dos campos de algodão (1986)


No mesmo ano, Koltès cria ainda Na solidão dos campos de algodão (1986). Como aponta
Chéreau, essa peça também foi escrita a partir da experiência vivida por Koltès em Nova
York:
É, diz Chéreau, a situação completamente boba que ele tinha vivido uma noite, em Nova York,
em um hangar, o encontro com um homem que lhe disse: ‘eu tenho todo tipo de droga que você
quiser, heroína, cocaína, êxtase, craque’. Ao que K. respondeu: eu não quero nada. 44
(CHÉREAU apud UBERSFELD, 1999, p. 57, tradução minha).

Koltès em Nova York:


É, diz Chéreau, a situação completamente boba que ele tinha vivido uma noite, em Nova York,
em um hangar, o encontro com um homem que lhe disse: ‘eu tenho todo tipo de droga que você
quiser, heroína, cocaína, êxtase, craque’. Ao que K. respondeu: eu não quero nada. 44
(CHÉREAU apud UBERSFELD, 1999, p. 57, tradução minha).
44
Esta é a tônica da obra: um traficante ou dealer oferece ao cliente aquilo que ele acredita
que o segundo deseja, ainda que este afirme não desejar nada. Em torno desse mote central,
Koltès desenvolve um diálogo riquíssimo do ponto de vista da construção da linguagem,
explorando o esquema da argumentação e da resposta, para construir falas que são
monólogos de várias páginas, repletos de imagens e poesia. Mais uma vez, Chéreau montou
o texto de Koltès, apresentando três versões diferentes – a última delas em 1995, quando o
dramaturgo já havia falecido –, sendo Na solidão dos campos de algodão encenado também
pelo africano Moïse Touré, na Costa do Marfim. Posteriormente, a peça se tornou uma das
mais montadas do dramaturgo em todo o mundo.

Esse texto explora a problemática do desejo e da relação com o outro. Sobre isso, Chéreau
afirma: “O desejo em todas as suas formas, desejo do corpo do outro, desejo de posse, de
despossuir, desejo de saber e ao mesmo tempo de esquecer, desejo de acabar com todos os
desejos de uma vez por todas, consigo e com o outro, desejo de morte, enfim 45”.
(CHÉREAU apud UBERSFELD, 1999, p. 54, tradução minha)
Segundo

Importa ressaltar que o embate se dá inteiramente no plano da linguagem. Ambos os


personagens recorrem a estratégias discursivas diversas ao longo de suas falas, como a
estratégia de argumentação e contra-argumentação, a ponderação, o uso de imagens e
metáforas, agressões verbais, etc. A linguagem é plena de musicalidade graças ao uso das
repetições, de longas sentenças divididas em frases menores que, por vezes, constroem
rimas, dando ao texto uma estrutura rítmica muito própria e que fazem desse longo diálogo
um longo poema, em que a linguagem tem valor por si, por suas variadas possibilidades de
uso.
Esse texto investe na sonegação de informações: jamais é revelado qual seria o objeto que o
traficante/dealer teria a oferecer ao cliente, muito menos qual seria o desejo que o cliente
supostamente teria. Assim, ao fim do diálogo, como bem apontam Chéreau 58

e Ubersfeld, a temática principal que o texto revela é exatamente o desejo em si, a sua
existência e essência, o que ele representa no jogo de relações entre os sujeitos, na busca
por algo que sempre falta.

Sobre Succo, Koltès afirmou:


Succo tem uma trajetória de uma pureza incrível. Contrariamente aos assassinos em potencial –
e existem muitos assim –, ele não tem motivações repugnantes para assassinar [...] Basta-lhe um
pequeno descarrilamento e hop! Acabou. É o que me fascina. 55 (Ibidem, p. 155, tradução minha)

O dramaturgo parece ter conseguido transpor para o protagonista de seu texto as


características que ele enxergava no seu inspirador. Zucco parece agir sem que haja
qualquer mancha em seu itinerário mortal e amoral, nenhuma incoerência. Não há ódio,
descontrole, nada que permita julgá-lo moralmente. Ele apenas mata, como se a simples
vontade de alcançar a morte fosse a única força que o movimentasse.

O texto desenvolve-se em quadros independentes, com narrativas próprias, como se


constituíssem pequenos dramas dentro da peça.

O texto desenvolve-se em quadros independentes, com narrativas próprias, como se


constituíssem pequenos dramas dentro da peça. Para Ubersfeld (1999, p. 109-110), o texto é
uma espécie de “drama barroco”, dentro do qual convivem diversas formas de textos
teatrais, como por exemplo: o drama shakespeariano, com um grande número de
personagens que surgem e desaparecem rapidamente; ou ainda o drama romântico, cuja
narrativa gira em torno de um personagem único. Eu acrescentaria, ainda, os elementos de
comédia, diálogos que remetem ao absurdo de Beckett e Ionesco, bem como referências à
tragédia grega Medeia de Eurípides, em que a protagonista foge levada pelo Deus-Sol –
semelhante ao que ocorre a Zucco, que também desaparece da Terra como se 64

levado pelo Astro-Rei, ao fim do texto, remetendo ao deus mitológico Mitra, citado no texto
por meio de uma epígrafe.

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