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Esta tradução foi publicada conforme acordo com Alfred A. Knopf, um selo de The Knopf Doubleday Group, uma divisão de Random House, Inc.
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida – em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, por fotocópia, gravação etc. –
nem apropriada ou estocada em sistemas de bancos de dados sem a expressa autorização da editora.
Texto fixado conforme as regras do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº 54, de 1995).
Título original: Born to run – A hidden tribe, superathletes, and the greatest race the world has never seen
Preparação: Vivien Hermes
Revisão: Ana Tereza Clemente
Design de capa: epizzo
Foto de capa: © 2002 Stephanie Hager
Diagramação: Crayon Editorial
Foto do autor: Michael Lionstar 1a edição, 2010
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVRO, RJ
M429n
Nascido para correr : a experiência de descobrir uma nova vida / Christopher McDougall ; tradução de Rosemarie Ziegelmaier. – São Paulo : Globo, 2010.
Tradução de: Born to run : a hidden tribe, superathletes, and greatest race the world has never seen
ISBN 978-85-250-6379-3
1. Corridas – Cooper Canyon, Região (México). 2. Indios Tarahumara Cooper Canyon, Region (México). 3. Corridas de longa distância – Cooper Canyon, Região (México). 4.
Corredores de longa distância Cooper Canyon, Região (México). I. Título.
1a edição, 2010
6a reimpressão, 2016
Muito bem, pensei mais tarde. Talvez Ángel quisesse nos afastar, mas no
Tocha Humana eu preciso confiar. O professor falou que talvez Caballo
tivesse ido para a cidade de Creel, porém era preciso seguilo rápido: se não
conseguíssemos encontrá-lo lá, não dava para saber para onde iria em
seguida. Algumas vezes, ele sumia por vários meses – e ninguém sabia para
onde ele irá ou quando voltará. Perdê-lo podia estragar nossa preciosa
chance.
E Ángel não havia mentido quanto a uma coisa, como pude descobrir
com a surpreendente força de minhas pernas: antes de começarmos nossa
longa caminhada pelo desfiladeiro, ele me deu um pote com algo que,
segundo disse, seria bastante útil.
“Você vai gostar”, garantiu.
Dei uma olhada. O pote estava cheio de um visgo pegajoso, que parecia
um pudim de arroz sem o arroz, repleto de bolhas escuras que lembravam
ovos de sapo em processo de eclosão. Se eu estivesse em qualquer outro
lugar, ia achar que era uma brincadeira de mau gosto – parecia que um
garoto havia feito limpeza em seu aquário e tentava ver se eu ia provar
aquela gororoba. Era um tipo de raiz fermentada misturada com água de rio
(o que significava que, se eu não morresse vítima do gosto daquilo, podia ser
exterminado pela ação das bactérias).
“Ótimo”, falei, olhando em volta para ver se achava um cacto no qual
jogar aquela coisa. “O que é isto?”
“Iskiate.”
O nome parecia familiar. Depois, lembrei que o ousado Lumholtz uma
vez bateu em uma casa tarahumara pedindo comida no meio de uma
expedição terrível. Estava diante da montanha que teria de escalar no dia
seguinte. Exausto e desanimado, não encontrava forças para encarar a
subida.
“Cheguei no final da tarde em uma caverna onde uma mulher preparava
essa bebida”, escreveu mais tarde o explorador. “Eu estava muito cansado e
sem saber como fazer para transpor a encosta da montanha para chegar ao
meu acampamento, cerca de seiscentos metros acima. Porém, depois de
aplacar minha fome e minha sede com um pouco de iskiate”, continuou,
“senti minhas forças voltarem e, para o meu espanto, escalei aquela altura
toda sem fazer muito esforço. Depois disso, passei a considerar a bebida uma
aliada nos momentos de dificuldade, tão fortalecedora e refrescante que
quase daria para chamá-la de descoberta.”
Red Bull feito em casa! Eu tinha de provar aquilo. “Vou deixar para
mais tarde”, expliquei a Ángel. Coloquei a bebida em um cantil com um
pouco de água que eu tinha purificado com pílulas de iodo e acrescentei
umas pílulas extras para garantir. Eu me sentia cansado, mas, ao contrário de
Lumholtz, não estava desesperado a ponto de correr o risco de sofrer de uma
diarreia crônica causada por bactérias que vivem na água.
Alguns meses depois, vim a saber que o iskiate também é chamado de
chia fresca. O preparo consiste em dissolver sementes de chia (Salvia
hispanica) em água, com um pouco de açúcar e sumo de lima. No que se
refere às propriedades nutricionais, uma colher de sopa de chia pode ser
comparada a uma vitamina preparada com salmão, espinafre e hormônios
humanos para o crescimento. Apesar de minúsculas, as sementes são ricas
em ômega 3, ômega 6, proteínas, cálcio, ferro, zinco, fibras e antioxidantes.
Se você tivesse de escolher apenas um alimento para levar a uma ilha
deserta, a melhor opção seria a chia – pelo menos se a sua preocupação fosse
fortalecer os músculos e reduzir o colesterol e os riscos de problemas
cardíacos. Depois de alguns meses de dieta à base dessa semente, talvez
conseguisse voltar para casa a nado. A chia já foi tão valorizada que os
astecas a reservavam para homenagear os deuses. Os líderes astecas
costumavam mastigar sementes quando se dirigiam ao campo de batalha, e
os índios norte-americanos hopis se abasteciam do recurso durante as épicas
corridas do Arizona até o oceano Pacífico. O estado mexicano de Chiapas
deve seu nome à semente, que já foi, ao lado do milho e do feijão, uma das
principais culturas comerciais da região. Apesar de sua condição de
supersemente, a chia é ridiculamente fácil de ser cultivada: se você quiser
mantê-la em um Cuca Verde, aqueles bonequinhos em que a planta cresce
como cabelo, está muito perto de poder preparar você mesmo a sua dose da
superbebida.
E que gosto danado tinha aquilo, conforme pude descobrir depois que
as pílulas de iodo dissolveram e eu consegui arriscar uns goles. Mesmo com
o gosto de remédio deixado pelo iodo, o iskiate desceu como um ponche de
frutas, com um agradável sabor cítrico. Talvez o entusiasmo daquela caçada
tenha contribuído também, mas, depois de alguns minutos, eu já me sentia
ótimo. Até a dor de cabeça massacrante que eu sentira a manhã inteira por
ter passado a noite sobre o chão gelado e sujo desapareceu.
Salvador continuava mantendo o ritmo intenso, caminhando até a borda
do cânion. Nós quase conseguimos, porém, quando ainda faltavam duas
horas de escalada, o sol havia sumido e o desfiladeiro mergulhado em
tamanha escuridão que tudo o que eu conseguia identificar eram vários tons
de preto. Pensamos em abrir os sacos de dormir e pernoitar ali mesmo, mas a
água e a comida haviam acabado e a temperatura caía brutalmente. Ou
podíamos tentar andar uns dois quilômetros mais, procurando captar a luz
que vinha da parte de cima do cânion para achar o caminho. Optamos por
seguir em frente – eu detestava a ideia de passar a noite numa trilha à beira
de um penhasco.
Estava tão escuro que eu precisava seguir Salvador e me orientar pelo
ruído de seus passos. Não tenho ideia de como ele conseguia achar o rumo
naquelas picadas íngremes sem cair morro abaixo. Porém, como ele havia
demonstrado que sabia se localizar quando achei que estávamos perdidos na
floresta, achei melhor ficar quieto, prestar atenção nos movimentos dele e...
Espere. Mas o que aconteceu com os ruídos dos passos dele?
“Salvador?”
Silêncio. Merda.
“Salvador!”
“¡No pases por aquí!”, avisou de algum lugar à minha frente.
“Mas qual o proble...”
“Calla.”
Eu silenciei e fiquei parado no escuro, tentando imaginar que diabos
estava acontecendo. Passaram-se alguns minutos e nenhum sinal de
Salvador. “Ele vai voltar”, eu disse para mim mesmo. “Se ele tivesse caído,
teria gritado. Eu teria ouvido algo, um barulho, alguma coisa. Mas que
droga, esse silêncio...”
“Bueno.” O som veio de algum lugar acima de mim, para a direita.
“Por aqui, mas venha devagar!” Virei lentamente para o lugar de onde vinha
a voz e me movi sem pressa. À minha esquerda, senti que o chão
simplesmente acabava. Não quero saber o quanto Salvador esteve perto de
despencar por aquele desfiladeiro.
Sem grandes pretensões, Ann corria mais quilômetros por dia do que vários
maratonistas “sérios”. Assim, em 1985, ela achou que era hora de se colocar
à prova ao lado de corredores “de verdade”. Uma opção era a Maratona de
Los Angeles, mas a corrida parecia muito tediosa (algo como reviver o
circuito de hamster da época da escola), já que o trajeto de três horas se
resumia a uma paisagem urbana. Ann queria uma corrida divertida e
inusitada, na qual pudesse se perder como fazia em suas excursões pelas
montanhas.
Mas isto parece ser bem interessante, pensou, enquanto folheava uma
revista de esportes. Como a Western States, a American River 50-Mile
Endurance Run era uma corrida de cavalos que não incluía mais os cavalos,
uma travessia perambulante sobre uma trilha de cerca de oitenta
quilômetros, usada no passado pelos desbravadores dos rincões perdidos do
país. O trajeto era quente, acidentado e perigoso – “Existem até plantas
venenosas na beira da trilha”, dizia
o alerta dado aos participantes, “sem falar nos cavalos soltos e nas
cascavéis. O melhor a fazer é dar passagem a ambos”. Deixando de lado as
picadas peçonhentas e os cascos selvagens, antes da chegada era preciso
enfrentar um desafio: depois de 75 quilômetros pelas trilhas, o corredor tinha
de encarar uma subida de trezentos metros antes dos cinco quilômetros
finais.
Só para lembrar: a primeira competição de Ann seria uma maratona
dupla, com risco de picadas de cobra e erupção de bolhas provocadas pelo
sol de rachar. No entanto, com certeza não haveria nenhum risco de tédio.
Como se podia esperar, a ultramaratona de Ann começou mal. O
termômetro apontava temperaturas compatíveis com as de uma sauna, e ela
era iniciante demais para achar que seria uma boa ideia levar uma garrafa de
água para enfrentar o calor de 42 graus. Ann sabia muito pouco sobre ritmo
de corrida (quanto tempo iria levar: sete horas? Dez? Treze?) e menos ainda
sobre táticas (como aqueles que pegavam leve montanha acima e depois
passavam por ela como se tivessem asas).
Apesar disso, conforme o nervosismo diminuiu, ela relaxou e retomou o
seu ritmo habitual. Ergueu a cabeça, sentiu o ar bater no rosto e começou a
recuperar a confiança de um gato selvagem. Por volta da milha de número
30 (quilômetro 48), dezenas de corredores se rendiam ao calor, sentindo-se
como o recheio de um bolo levado ao forno para assar. Apesar de
desidratada, Ann se sentia forte – a ponto de derrotar todas as outras
competidoras e de bater o recorde feminino, concluindo as duas maratonas
de ida e volta em sete horas e nove minutos.
Aquela vitória inesperada foi o início de uma carreira impressionante.
Ann foi a campeã feminina da Western States 100 (o equivalente das
corridas ao campeonato de futebol americano Super Bowl) catorze vezes, um
recorde que se estendeu por três décadas e faz de Lance Armstrong, com sete
vitórias na Volta da França, mera promessa bem intencionada. Isso porque
Lance nunca deu uma pedalada sem contar com uma equipe de especialistas
ao seu lado, monitorando o consumo calórico e soprando instruções em seu
ouvido, enquanto Ann tinha apenas o seu marido, Carl, que a esperava no
meio da trilha com um lenço umedecido e meio sanduíche de peru.
Ao contrário de Lance, que treinava arduamente para cada prova, Ann
não era uma “rata de competições”. De uma hora para outra, ela fez os
tempos de uma ultramaratonista mês sim, mês não durante quatro anos. Um
esforço desse tamanho deveria ter acabado com ela, porém Ann tinha a
capacidade de recuperação de um super-herói mutante – parecia se recuperar
enquanto corria, ficando mais resistente no decorrer da prova. Ganhava
velocidade a cada mês e acumulava recordes: venceu vinte corridas nesses
quatro anos, chegando em segundo lugar somente uma vez, quando
participou de uma competição de quase 97 quilômetros em meio a uma
daquelas gripes de derrubar.
Mas claro que havia um ponto fraco nessa fortaleza – tinha de haver! –,
embora ninguém soubesse qual era. Ann era como o homem forte do circo,
que enfrenta o mais valente de qualquer cidade em que chega: vencia as
provas em estradas e trilhas, em caminhos planos ou em montanhas
acidentadas, nos Estados Unidos, na Europa e na África. Quebrou recordes
mundias em competições de oitenta, cem e 160 quilômetros, e ainda
acumulou mais dez recordes em estradas e trilhas. Foi classificada para a
Olympic Marathon Trials, fez cem quilômetros em seis horas e 44 minutos e
venceu o World Ultra Title, antes de brilhar na Western States e na Leadville
Trail 100 no mesmo mês.
No entanto, um prêmio lhe escapava das mãos: durante anos, Ann
nunca conseguiu vencer uma corrida importante e com grande exposição.
Havia derrotado todos os homens e todas as mulheres quando competia em
provas menores, porém, quando se tratava das maiores demonstrações, pelo
menos um homem sempre a vencia por alguns minutos.
Mas isso foi até 1994, quando ela sentiu que a sua hora estava para
chegar.
Capítulo 12
O espanto geral começou assim que a poeirenta Chevy de Rick Fisher parou
diante da sede da corrida de Leadville e dois sujeitos envoltos em capas
brancas saíram do carro.
“Olá”, cumprimentou-os Ken Chlouber. “Os magos da velocidade
chegaram.” Ken esticou a mão e tentou lembrar como se dizia bem-vindo em
espanhol, saudação que o professor do colegial havia ensinado.
“Bien... Ben...”, tentou.
Um dos homens de capa sorriu e estendeu o braço. De repente, Fisher
se meteu no meio: “Não, assim não! Você não deve cumprimentar como se
quisesse controlá-los, ou terá problemas. Na cultura deles, esse é um erro
grave”.
Mas que droga, pensou Ken, sentindo o sangue subir. Você quer que eu
mostre o que é um erro grave? É só tentar encostar em meu braço de novo.
Com certeza, Fisher não havia tido problemas com saudações quando pediu
a Ken que arrumasse alojamento gratuito para aqueles homens. E agora, só
porque havia encontrado uns campeões e estava com o bolso cheio da grana
do patrocínio da Rockport, achava que tinha de ser tratado como rei? Ken já
estava quase engrossando a conversa quando se lembrou de algo que o fez
respirar, relaxar e recuperar a calma.
A Annie deve jogar duro, matutou Ken, ainda mais pelo jeito como a
imprensa está tratando tudo isso.
O tom das notícias havia mudado bastante desde que Ann confirmou a
sua presença na prova de Leadville. Em vez de perguntar se os tarahumaras
iriam ganhar, a mídia especulava se a equipe de Rick Fisher iria sofrer nova
humilhação. “Os tarahumaras consideram uma vergonha perder para uma
mulher”, repetiam as matérias sobre o assunto. Era um caso irresistível: a
tímida professora de ciências correndo pelas Montanhas Rochosas para
enfrentar índios mexicanos e mais alguns corredores, tanto homens como
mulheres, na tentativa de cruzar primeiro a linha de chegada.
No entanto, havia uma maneira de Fisher reduzir a pressão da mídia
sobre a equipe tarahumara: mantendo a boca fechada. Ninguém havia
mencionado o machismo da tribo até o próprio Fisher falar disso com os
repórteres. “Eles não perdem para mulheres”, contou. “E não querem que
isso comece a acontecer agora.” Era uma revelação fascinante, sobretudo
para os rarámuris, que não tinham ideia do que aquelas pessoas estavam
falando.
Na verdade a sociedade tarahumara é bastante igualitária: os homens
agem com cordialidade e respeito em relação às mulheres e muitas vezes são
vistos carregando crianças nas costas, como fazem suas companheiras. É
fato que as competições masculinas são separadas das femininas, porém isso
ocorre sobretudo por questões de logística: as jovens mães com filhos
pequenos não têm disponibilidade para passar dois dias correndo pelo
desfiladeiro. Precisam ficar perto de casa e, por isso, os trajetos são mais
curtos (para os padrões deles, um “trajeto curto” tem entre 65 e 95
quilômetros). As mulheres são respeitadas como excelentes corredoras e
diversas vezes atuam como cho’ kéame (mistura de capitão de equipe com
responsável pelas apostas) nas provas masculinas. Na comparação com os
norte-americanos fanáticos pelo campeonato nacional de futebol americano,
os homens tarahumaras estão mais para fãs do Lilith Fair, festival de música
que teve três edições no fim da década de 1990 e no qual apenas mulheres se
apresentavam.
Fisher já tinha passado vergonha quando toda a sua equipe debandou.
Agora, graças aos próprios erros, ele se via no meio de uma guerra dos sexos
transmitida pela televisão – e, pelo que tudo indicava, ele iria perder. O
melhor tempo de Ann em Leadville, dois anos antes, tinha sido apenas de
meia hora a mais em relação ao tempo de Victoriano e, desde então, a
corredora tinha melhorado muito. Bastava ver a prova Western States: de um
ano para o outro, seu tempo caiu em uma hora e meia. Ninguém duvidava do
que ela era capaz de fazer quando chegasse a Leadville disposta a ganhar.
Além disso, Ann parecia ter a sorte a seu favor: Victoriano e Cerrildo
não iriam participar desta vez (precisavam plantar milho e não tinham tempo
para uma corrida de pura diversão). Assim, Fisher havia perdido seus dois
melhores corredores. Ann já havia vencido a prova de Leadville duas vezes
e, ao contrário dos recém-chegados de Fisher, tinha a imensa vantagem de
conhecer cada canto do caminho. Naquela competição, bastava pegar uma
saída errada para vagar quilômetros no escuro antes de conseguir voltar à
trilha certa.
Ann também corria sem esforço em altas altitudes e sabia melhor do
que ninguém como avaliar e solucionar problemas logísticos num trajeto de
mais de 160 quilômetros de extensão. Na essência, uma ultramaratona pode
ser comparada a uma equação binária composta de centenas de perguntas
com respostas do tipo “sim ou não”: comer agora ou esperar? Apertar o
ritmo nesta subida ou ir devagar e economizar os quadris para as partes
planas? Parar para ver o que está incomodando dentro da meia ou seguir em
frente? Largas distâncias ampliam o problema (uma bolha pode virar uma
ferida, uma barra de cereais deixada para mais tarde pode comprometer a
capacidade de achar o caminho), o que significa que uma resposta errada
pode arruinar a corrida. Porém não para a dedicada Ann: quando se tratava
de escolhas difíceis, ela sempre acertava as respostas.
Em resumo, tudo bem que os tarahumaras fossem corredores amadores
peculiares, mas eles iriam enfrentar a maior autoridade do negócio desta vez
(literalmente falando, já que agora Ann contava com o patrocínio da Nike).
Os rarámuris haviam tido seus breves e aclamados momentos como
campeões da prova de Leadville, mas agora estavam na segunda classe.
E isso explicava os sujeitos com as capas de mago.
Desesperado para substituir os dois veteranos campeões, Fisher
acompanhou Patrocinio em uma escalada de mais de 2.700 metros até chegar
na cidade de Choguita. Ali, encontraram Martimano Cervantes, um mestre
do jogo de bola com 42 anos, e seu pupilo, Juan Herrera, de 25 anos.
Choguita se destaca pelo frio durante a noite e pelo sol massacrante durante
o dia e, por isso, os tarahumaras daquele lugar se protegem com ponchos de
lã que chegam até os pés
– mesmo durante as corridas. Conforme se deslocam pelas trilhas, as
capas voam e dão a impressão de que são magos surgindo de uma nuvem de
fumaça.
Martimano e Juan ficaram em dúvida. Nunca haviam saído da aldeia e
o tempo proposto parecia longo demais em meio aos homens brancos. Fisher
soube driblar cada argumento, tinha dinheiro no bolso e estava disposto a
negociar. O inverno havia sido muito seco e a primavera fora a pior da
região – os estoques de alimentos estavam bem baixos. “Venham participar
da corrida e eu darei à cidade uma tonelada de milho e meia tonelada de
feijão”, propôs Fisher.
Pensando bem, cinquenta sacos de milho não eram tanto assim para
uma aldeia inteira, mas era alimento garantido. Talvez com a presença de
outros, desse para encarar. Eles haviam contado a Fisher que tinham outros
corredores bastante rápidos, será que
eles também poderiam ir?
“Desta vez não”, respondeu Fisher. “Só vocês dois.”
Em segredo, o Pescador trabalhava em um pequeno projeto de
engenharia social: ao recrutar índios de aldeias diferentes, esperava acender
a competitividade entre eles. Quando começarem a competir entre si,
pensou, vão vencer a prova de Leadville naturalmente. Era um plano astuto,
porém totalmente errado. Se Fisher tivesse estudado melhor a cultura dos
tarahumaras, entenderia que as corridas não dividiam as aldeias, mas
funcionavam como um fator de unidade. Era uma forma de fazer os nativos
que viviam afastados estreitarem os laços de afinidade e camaradagem, além
de garantir que todos os moradores do desfiladeiro estavam em condições de
se defender em caso de emergência. É claro que se tratava de uma
competição, mas com o espírito de uma pelada de futebol disputada numa
manhã de sábado, antes do churrasco. Onde os tarahumaras viam um festival
da amizade, Fisher identificava um campo de batalha.
Homens contra mulheres, aldeia contra aldeia, organizador da corrida
contra capitão do time – poucos minutos depois de sua chegada a Leadville,
Fisher via tempestades se formando em três frentes. E ele resolveu tratar
tudo como um homem de negócios.
“Olá! Posso tirar uma foto com vocês?”, pediu um corredor da cidade
assim que viu os tarahumaras chegando.
“Claro que pode. Você tem vinte paus?”
“Para quê?”, perguntava o atônito participante.
Para compensar os crimes contra a humanidade e o fato de os homens
brancos terem explorado os tarahumaras e outras tribos indígenas durante
séculos, explicava Fisher. E, se a pessoa não concordasse, problema dela.
“Não estou nem aí para o pessoal do mundo das supermaratonas”, afirmava
Fisher. “Nem ligo para os ‘civilizados’. Quero mais é que os tarahumaras
chutem os traseiros brancos deles.”
Traseiro branco? Provavelmente passaram alguns segundos até que
Fisher se lembrasse da cor do próprio traseiro. E, afinal, para que ele tinha
vindo: uma corrida ou uma batalha?
Ninguém conseguia conversar com os corredores tarahumaras nem se
aproximar para desejar boa sorte sem que o Pescador se metesse no meio.
Até Ann Trason encontrou uma muralha de hostilidade quando chegou.
“Rick manteve os sujeitos isolados sem nenhuma necessidade”, queixou-se a
atleta mais tarde. “A gente não podia nem falar com eles.”
Os executivos da Rockport estavam perplexos. Tinham acabado de
lançar um tênis para corridas em lugares acidentados e toda a campanha de
marketing estava baseada na prova de Leadville (o modelo do tênis se
chamava Leadville Racer). Quando Rick entrou em contato para pedir
patrocínio (“Lembre-se de que foi ele quem nos procurou”, contou-me o
vice-presidente da Rockport, Tony Post), a empresa deixou claro que os
tarahumaras seriam parte importante da promoção. A Rockport abriria os
cofres e, em troca, os corredores rarámuris calçariam os sapatos amarelo-
ouro, agradariam as pessoas e apareceriam em algumas propagandas.
Combinado? “Combinadíssimo”, garantiu Fisher.
“Mas eu cheguei em Leadville e encontrei aquele sujeito estranho”,
continuou Tony Post. “Parecia genioso e sem controle, e essa era a
contradição. De um lado, aquelas pessoas realmente gentis, conduzidas pelo
que a cultura norte-americana tem de pior. Era como...” Post parou para
refletir e, no silêncio, dava quase para escutar o pensamento se formando em
sua cabeça. “Como se ele sentisse ciúme pela atenção dedicada aos
corredores tarahumaras.”
E assim, com disputas por todo lado, os tarahumaras tragavam seus
cigarros e ficavam afastados dos outros corredores, em frente ao tribunal da
cidade, local em que os ladrões de cavalos eram enforcados no passado. Em
meio a abraços, apertos de mão e clima de “que vença o melhor” partilhados
entre os demais integrantes da prova no período que antecedeu a corrida, os
tarahumaras pareciam sozinhos e alheios.
O belo sorriso de Manuel Luna desapareceu e seu rosto adquiriu a
dureza de uma rocha. Juan Herrera ajeitou o boné da Rockport e enfiou os
pés no tênis amarelo berrante novinho em folha, que custava 110 dólares e
tinha solado grosso. Martimano Cervantes envolveu-se em sua capa para
enfrentar a gelada noite das Montanhas Rochosas. Ann Trason apareceu na
frente de todos, soltou o corpo e observou a escuridão que os esperava.
Capítulo 13
“Quem ama mais seu corpo do que o controle do império pode ser dado
como custódia do império.”
Lao-tsé, Tao te ching, o livro do caminho e da virtude
“Isso foi há dez anos”, contou Caballo, concluindo o seu relato. “E, desde
então, estou aqui.”
Mamá tinha nos colocado para fora de seu “restaurante” algumas horas
antes para ir dormir. Caballo, falando sem parar, me levou pelas ruas
desertas de Creel até uma bodega instalada numa viela. Ficamos ali até
fechar também. Enquanto Caballo me contava o que havia acontecido de
1994 até aquele dia, já passavam das duas da manhã e a minha cabeça
girava. Ele havia falado mais do que eu podia esperar sobre a experiência
dos tarahumaras no universo norte-americano das ultramaratonas (e dado
boas dicas sobre como encontrar Rick Fisher, Joe Vigil e outros
personagens), mas, em todos esses relatos, não havia respondido à única
pergunta que eu havia feito.
“Quem é você?”
Era como se ele não tivesse feito nada na vida antes de correr pelos
bosques com Martimano – ou, pelo contrário, talvez tivesse realizado muitas
outras coisas sobre as quais não queria falar.
Sempre que eu tentava, ele desviava o assunto com uma piada ou uma
resposta evasiva ideal para encerrar a conversa (“Como eu me sustento?
Faço para os ricos o que eles não querem fazer”). E mudava de tema. A
opção era clara: eu podia bancar o chato e ficar insistindo ou deixar para lá e
ouvir ótimas histórias.
Fiquei sabendo que, depois da corrida de 1994, Rick Fisher adotou um
comportamento agressivo. Foram realizadas outras maratonas, em outros
lugares e com outros corredores tarahumaras, e não demorou para Fisher
reorganizar e passar de um distúrbio para outro, como um adolescente
encrenqueiro. Primeiro, a equipe dos tarahumaras foi afastada da Angeles
Crest 100-Mile Endurance Run, prova de mais de 160 quilômetros na
Califórnia, porque Fisher insistiu em se meter em partes da corrida
exclusivas para os atletas, e no meio da competição. “A última atitude que
eu queria tomar era desclassificar um corredor”, contou o diretor da prova,
“mas Rick não me deixou alternativa.”
Três corredores tarahumaras foram desclassificados depois de chegar
em primeiro, segundo e quarto lugar na prova Wasatch Front 100, em Utah,
porque Fisher tinha se recusado a pagar a taxa de inscrição. Em seguida,
veio a Western States, evento no qual Fisher causou confusão ao acusar os
voluntários da corrida de mudarem as marcas na trilha para confundir os
tarahumaras e (esse era o motivo real) roubar o sangue deles. Todos os
corredores da Western States tiravam uma amostra de sangue para um estudo
científico sobre resistência, porém Fisher (e apenas ele) achou que era um
“roubo” e explodiu. “O sangue dos tarahumaras é muito, muito raro”, teria
afirmado. “O mundo da medicina está louco para colocar as mãos nesse
sangue e usar para testes genéticos.”
Nesse momento, até os tarahumaras pareciam estar fartos do Pescador.
Não demoraram para notar que Fisher surgia sempre com uma cabine dupla
mais nova e mais moderna, enquanto tudo
o que eles ganhavam eram semanas solitárias longe de casa e alguns
sacos de milho em troca de centenas de quilômetros de corrida. Mais uma
vez, o contato com os chabochis rendia aos tarahumaras a sensação de que
tinham virado escravos. Era o fim da equipe. Eles abandonaram as provas –
e para sempre.
Micah True (ou qual fosse o seu nome verdadeiro) sentiu tamanha
afinidade com os índios e tanto desgosto com os colegas norte-americanos
que achou que deveria tentar ajeitar a situação. Depois de acompanhar
Martimano como pacer na corrida de Leadville de 1994, ele se dirigiu a uma
rádio na cidade de Boulder, no Colorado, e pediu doações de agasalhos.
Quando juntou um monte, arrumou as malas e partiu para as Barrancas del
Cobre.
Ele não tinha a menor ideia de para onde estava indo e apostava na
possibilidade de encontrar seu parceiro Martimano numa situação similar à
do explorador Ernest Shackleton ao voltar da Antártida. Percorreu desertos e
desfiladeiros, repetindo o nome de Martimano a todas as pessoas que
encontrava, até que, para o seu espanto – e o de Martimano –, finalmente
chegou ao alto da montanha de 3 mil metros de altura, bem no meio da
aldeia do amigo. Os tarahumaras acolheram o forasteiro com a sua
linguagem que dispensa palavras: mal falavam com ele, porém, quando
despertava a cada manhã, Caballo encontrava uma pilha de tortilhas
fresquinhas e pinole perto do local onde dormia.
“Os rarámuris não conhecem dinheiro, mas ninguém é pobre”, revelou
Caballo. “Nos Estados Unidos, se você pedir um copo d’água, é levado para
um abrigo de moradores de rua. Aqui, eles abrem a porta e oferecem comida.
Se perguntar se pode montar a sua barraca, eles concordam, porém
perguntam se você não prefere entrar e dormir lá dentro.”
Mas em Choguita fazia muito frio à noite, frio demais para um cara
magrelo vindo da Califórnia (ou de onde fosse). Por isso, depois de distribuir
todos os agasalhos recolhidos, Micah se despediu de Juan e Martimano e
seguiu o seu caminho, em busca de lugares mais quentes no meio das
profundezas do cânion. Andou sem rumo e sem prestar atenção nos grupos
de traficantes de drogas e foras da lei e escapou de doenças e da febre do
desfiladeiro até encontrar um canto de que gostou, bem na curva do rio.
Juntou algumas rochas para construir uma cabana e ergueu sua casa.
“Eu decidi que iria encontrar o melhor lugar do mundo para correr, e
esse lugar era ali”, me contou quando voltamos para o hotel naquela noite.
“A primeira vez que vi aquilo, fiquei de boca aberta. Sentia-me
entusiasmado, e não podia esperar para pegar a trilha. Estava tão
maravilhado, não sabia por onde começar. Mas o lugar era selvagem e eu
precisava ir com calma.”
Ele não tinha outra escolha, de toda maneira. O motivo pelo qual atuara
em Leadville como pacer, e não como corredor, era a fraqueza que suas
pernas começaram a manifestar depois que completara quarenta anos. “Eu
costumava ter problemas com machucados, sobretudo no calcanhar”, contou
Micah. Com os anos, recorreu a todos os recursos – faixas nos pés,
massagens e até calçados caros e confortáveis –, mas nada resolvia. Quando
chegou nas barrancas, decidiu abandonar a lógica e confiar no conhecimento
dos tarahumaras. Ele não estava ali para tentar descobrir os segredos da tribo
– tinha apenas ajustado o seu estilo e passado a desejar o melhor.
Abandonou os calçados de corrida e começou a usar sandálias. Adotou
pinole no café da manhã (tinha aprendido a preparar o alimento como se faz
mingau de aveia, com água e mel) e carregava uma pequena quantidade dele
em uma bolsa presa na cintura quando saía para percorrer o desfiladeiro.
Levou alguns tombos sérios e algumas vezes teve dificuldades para voltar
para a sua cabana andando com os dois pés. Era aí que apertava os dentes,
limpava os ferimentos com a água do rio gelado e enfrentava tudo com fibra.
“O sofrimento ajuda a dar humildade. A gente sabe o quanto dói apenas
quando sente na pele”, explicou. “Eu aprendi bem rápido que é preciso
respeitar a Sierra Madre, porque ela não tem dó da gente.”
Naquele terceiro ano, Caballo já percorria trilhas que somente os
tarahumaras conseguiam ver. Com dedicação, ele se lançava pelas encostas
mais longas, mais íngremes e mais sinuosas do que qualquer pista de esqui
destinada a profissionais do esporte. Corria por quilômetros em terrenos
acidentados, tentando manter o controle e confiando em seus reflexos já
adaptados ao ambiente local, porém ainda esperando ouvir aquele estalo
vindo de uma cartilagem no joelho, de um estiramento ou de uma lesão no
tendão de Aquiles, coisas que poderiam acontecer a qualquer momento.
Mas nunca aconteceram. Ele nunca se machucou. Depois de alguns
anos no desfiladeiro, Caballo estava mais forte, mais saudável e mais veloz
do que nunca. “Minha forma de encarar o ato de correr mudou desde que
cheguei aqui”, revelou. Para testar, resolveu encarar uma trilha pelas
montanhas que leva três dias para ser percorrida a cavalo – fez o percurso
em sete horas. Ele não sabia explicar muito bem como tudo aquilo havia
acontecido, qual a participação de fatores distintos, como as sandálias, o
pinole ea korima, mas...
“Ei, você pode me mostrar?”, pedi.
“Mostrar o quê?”
“Mostrar como é correr assim.”
Algo em seu sorriso fez com que eu me arrependesse daquele pedido.
Foi quando Caballo propôs: “Claro, vamos dar uma corrida. Você me
encontra aqui ao nascer do sol”.
“Ufa! Cheguei!”
Eu queria gritar, porém só pude falar bem baixinho. “Caballo”,
consegui dizer, mas ele já havia desaparecido no alto da colina. Marcamos o
encontro nas colinas que ficam atrás de Creel, em uma trilha rochosa e
cercada de pinheiros que cortava os bosques. Corremos menos de dez
minutos e eu já me sentia sem ar. Não que Caballo corresse rápido demais –
ele apenas parecia tão leve que dava a impressão de se locomover movido
pela força do pensamento, e não dos músculos.
Ele se virou e voltou. “Muito bem, cara. Esta é a primeira lição. Fique
bem atrás de mim.” Ele começou a correr, agora mais devagar, e eu tentava
acompanhar tudo o que ele fazia. Meus braços flutuavam até que minhas
mãos chegassem na linha da cintura, meus passos pareciam patadas no chão,
e minhas costas se alongaram tanto que quase pude ouvir as vértebras se
partindo.
“Não tente brigar com o terreno”, Caballo falou por cima do ombro.
“Aceite o que lhe for dado. Se você pode escolher entre dar um passo ou
dois entre as rochas, dê três.” De tanto tempo que havia passado em meio
àquelas trilhas, Caballo já tinha até dado apelidos para as pedras do
caminho: algumas eram as ayudantes, que ajudavam a dar impulso para
frente; outras pareciam fazer o mesmo, mas não ofereciam firmeza e podiam
se revelar “traidoras”, e outras ainda eram chamadas de chingoncitos,
pequenas malditas que estavam ali só para atrapalhar.
“A lição número dois”, avisou Caballo, referindo-se ao modo de correr,
“é pensar: fácil, leve, suave e rápido. Você começa com o ‘fácil’, porque só
de conseguir isso já é alguma coisa. Depois se concentre na leveza. Faça
tudo sem esforço, como se não ligasse para a altura da montanha ou a
distância que tem pela frente. Quando souber fazer isso tão bem que nem
perceber mais, lembre-se do quanto é suaaaaave. Não se preocupe com o
último aspecto porque, quando dominar os três primeiros, você será rápido.”
Fixei meus olhos nos pés de Caballo, calçados com sandálias, tentando
imitar seus passos peculiares e leves. Andei tanto tempo com a cabeça
voltada para baixo que nem percebi que tínhamos saído da floresta.
“Uau!”, exclamei.
O sol estava surgindo sobre as sierras. O aroma dos pinheiros
perfumava o ar, vindo das chaminés dos casebres nos limites da cidade. À
distância, pedras gigantescas, parecidas com as estátuas da Ilha da Páscoa,
surgiam do chão, e ao fundo se destacavam montanhas com vestígios
brancos de neve. Mesmo que eu não tivesse tentado correr, estaria sem
fôlego com tanta beleza.
“Eu não disse?”, arrematou Micah.
Droga! Eu tinha um palpite de que aquele acidente tinha sido por minha
culpa. Pouco antes de me despedir de Caballo em Creel, percebi que nossos
pés tinham tamanhos parecidos e resolvi lhe dar um par de tênis Nike
novinho que estava na mochila, em agradecimento. Ele fez um nó nos
cadarços e jogou sobre os ombros, achando que o presente seria oportuno se
as suas sandálias rasgassem. Ao contar sobre o acidente, ele foi educado
demais para apontar a causa, mas eu tinha certeza de que ele se referia aos
meus tênis quando falou que corria sobre um solado grosso quando se
machucou.
Nesse momento, eu me senti bastante culpado. Eu não estava ajudando
em nada. Primeiro, sem querer, tinha montado uma bomba-relógio ao
presenteá-lo com aqueles calçados e, depois, publiquei um artigo que serviu
para divulgar demais suas esquisitices, o que era ruim em termos de
relações-públicas. Caballo estava se matando para fazer as coisas
acontecerem e agora, depois de meses de esforço, o único que parecia
embarcar na proposta era eu: um corredor barato e desprezível, que estava
lhe causando problemas.
Caballo havia conseguido fugir da verdade apelando para o prazer de
suas corridas, contudo, quando se encontrou ferido e desolado em Urique, a
situação ficou clara. Não era possível viver do jeito que ele vivia sem
parecer um maluco, e ele agora pagava o preço por ter essa imagem:
ninguém o levava a sério. Ele nem sequer tinha certeza de que conseguiria
convencer os tarahumaras a confiar nele, e eles eram as pessoas que mais o
conheciam no mundo. Mas qual era o mistério? Por que ele perseguia um
sonho que todo mundo considerava uma piada?
Se ele não tivesse lesionado o tornozelo, eu teria esperado um longo
tempo pela resposta. No entanto, ele ainda estava se recuperando em Urique
quando recebeu uma mensagem de Deus. Pelo menos, do único deus ao qual
ele direcionava as suas orações.
Capítulo 19
“Sempre começo as corridas com objetivos ambiciosos, como se me
preparasse para fazer algo especial. Depois de certo ponto de deterioração
física, as metas são redimensionadas para basicamente minha posição atual
– o melhor que eu posso desejar é não vomitar sobre os meus próprios pés.”
Ephraim Romesberg, engenheiro nuclear e ultracorredor, na milha de
número 65 (quilômetro 105) da Ultramaratona de Badwater
Rei das trilhas, rei da estrada. Aquela “partida dupla” de 2005 tinha sido
uma das maiores performances da história das ultracorridas, e não poderia
ter vindo em melhor momento: bem quando Scott se tornava o maior astro
na modalidade, ela ganhava a condição de sexy. Tinha o Dean Karnazes, se
livrando da camisa para posar para capas de revista e contando a David
Letterman como ele pedia pizzas pelo celular no meio de uma prova de
quatrocentos quilômetros. Quanto a Pam Reed, quando Dean anunciou que
se preparava para correr 482 quilômetros, ela saiu na frente e correu 484,
aparecendo em seguida no programa de Letterman, isso sem falar no livro
que escreveu e em uma das melhores manchetes de revista (Outside
Magazine) já publicadas: “dona de casa desesperada ameaça supermodelo
masculino em evento esportivo radical”.
E onde estava Scott Jurek e toda a sua campanha de marketing? Algo
como um exercício na esteira, sem camisa, com vista para a Times Square –
ao estilo de Karnazes? “Quando o assunto são corridas de 160 quilômetros
ou mais sobre trilhas, ninguém na história chega perto dele. Se quiser
afirmar que ele é o maior ultracorredor de todos os tempos, não há nenhum
exagero”, garantiu o editor da UltraRunning, Don Allison. “Ele tem
condições de enfrentar qualquer um.”
Mas onde ele estava?
Bem longe. Em vez de promover sua imagem depois de um verão de
glórias, Scott e Leah sumiram no meio dos bosques para comemorar em paz.
Scott não ligava a mínima para programas de entrevista (o casal nem sequer
tinha tevê). O corredor havia lido os livros de Dean e Pam, além de todas as
matérias publicadas em revistas, que só lhe renderam enjoos. Aqueles
sujeitos estavam transformando aquele lindo esporte, uma grande
demonstração de talento, em um show de horrores.
Quando o casal finalmente voltou ao minúsculo apartamento, Scott
encontrou outro daqueles e-mails malucos que chegavam de vez em quando.
Ele recebia essas mensagens com certa frequência nos últimos dois anos,
mandadas por um homem que assinava com nomes variados: Caballo Loco,
Caballo Confuso, Caballo Blanco. Falavam sobre um convite, que bom se
ele pudesse ir, dar poder ao povo, blá-blá-blá... Normalmente, ele dava uma
lida rápida e deletava em seguida, mas desta vez um termo chamou-lhe a
atenção: Chingón.
Nossa, aquilo não era um palavrão em espanhol? Scott não entendia
muito do idioma, porém reconhecia as palavras feias só de ouvi-las. Será que
aquele “cavalo maluco” tinha resolvido começar a xingar? Scott releu a
mensagem, agora com mais atenção:
Falei para os rarámuris que meu amigo apache Ramón Chingón garante que derrota todo
mundo. Os tarahumaras são quase tão bons na corrida quanto os apaches, um pouco menos do
que os quimares. Mas a pergunta é: quem é mais chingón do que Ramón?
Não era fácil decifrar a mensagem de Caballo, mas, pelo que Scott
conseguiu entender, parecia que ele – Scott – era o próprio Ramón Chingón,
o maldito que chegaria para chutar o traseiro dos tarahumaras. Então, aquele
sujeito que ele nem conhecia estava tentando promover um embate entre os
tarahumaras e seus inimigos ancestrais, os apaches? E queria que Scott
fizesse o papel de vilão? Mas que loucura!
Scott apoiou o dedo na tecla para deletar, mas mudou de ideia. Por
outro lado... Não era bem isso o que estava determinado a fazer? Encontrar
os maiores corredores do mundo e derrotá-los? Algum dia, ninguém (nem
mesmo os ultracorredores) se lembraria dos nomes de Pam Reed ou Dean
Karnazes. Mas, se Scott fosse tão bom quanto achava que era (ou quanto
ousava ser), conseguiria correr como ninguém jamais havia corrido. Não
pensava no posto de melhor do mundo, mas de melhor de todos os tempos.
Porém, como todo campeão, ele estava diante de um dilema: podia
derrotar qualquer corredor vivo ou até os que já haviam morrido (ou que
estavam longe das corridas havia tempos). Todos os boxeadores de peso-
pesado escutam a mesma coisa: “Você é bom, mas jamais venceria Ali em
seus bons tempos”. Da mesma maneira, não importava quantos recordes
Scott batesse, sempre haveria uma pergunta sem resposta: o que teria
acontecido se ele tivesse participado de Leadville em 1994? Teria
conseguido derrotar Juan Herrera e a equipe tarahumara ou teria sido
perseguido como uma presa, como aconteceu com a bruja?
Os heróis do passado são intocáveis, eternamente protegidos pela sólida
porta do tempo – a não ser que algum forasteiro misterioso consiga, como
que por mágica, abrir a fechadura. Talvez Scott, graças a esse personagem
maluco, era o atleta que poderia fazer voltar o relógio do tempo e testar-se
contra os imortais.
E quem é mais chingón do que Ramón?
Capítulo 20
Nove meses depois, eu estava de volta à região da fronteira com
o México, correndo contra o tempo e sem nenhuma chance de errar. Era
uma tarde de sábado, 25 de fevereiro de 2006, e eu tinha 24 horas para
encontrar Caballo novamente.
Assim que recebeu a resposta de Scott Jurek, Caballo começou um
verdadeiro malabarismo de logística. Ele tinha uma única oportunidade
(minúscula), já que a corrida não poderia ser realizada durante a época da
colheita de outono, nem no chuvoso inverno e menos ainda sob o escaldante
calor do verão, quando muitos tarahumaras mudavam para cavernas mais
frias, situadas em locais mais altos do desfiladeiro. Caballo também não
podia marcar o evento para o Natal, a Semana Santa ou a época da Fiesta
Guadalupana, além de uma meia dúzia de finais de semana preferidos para a
realização de casamentos.
Finalmente, Caballo concluiu que uma data possível seria no domingo,
5 de março. Assim começavam as dificuldades: como ele não teria tempo
suficiente para ir de aldeia em aldeia anunciando a logística da corrida,
deveria determinar com precisão quando e onde os corredores tarahumaras
iriam se encontrar conosco antes da prova. Um erro de cálculo e tudo estaria
perdido – já era uma aposta acreditar que os tarahumaras iriam aparecer e, se
chegassem e não encontrassem mais ninguém, iriam embora sem hesitar.
Caballo se dedicou à programação e partiu desfiladeiro adentro para
avisar a todos, como me informou algumas semanas depois:
Hoje corri quase cinquenta quilômetros até a terra dos tarahumaras e depois voltei como um
mensageiro (é isso o que sou agora). A mensagem me alimentou mais do que o suprimento de
pinole que levo no bolso. Fiquei feliz ao encontrar Manuel Luna e Felipe Quimare no mesmo
dia. Quando conversei com eles, consegui ver entusiasmo até no rosto impassível (que lembra o
de Gerônimo) de Manuel.
“Mas por que não simples maratonas?, perguntei a Jenn quando a entrevistei
por telefone. “Você acha que consegue se classificar para os Jogos
Olímpicos?”
“Fala sério. O mínimo para a classificação é de duas horas e 48 minutos
– qualquer um faz esse tempo”, respondeu ela. Jenn era capaz de correr uma
maratona em menos de três horas usando biquíni e parando para uma cerveja
no quilômetro 37 – como veio a fazer apenas cinco dias depois de participar
da corrida de oitenta quilômetros pelas montanhas Blue Ridge.
“Mas e daí?”, ela continuou. “Eu odeio toda essa badalação em torno da
maratona. Qual é o mistério? Conheço uma garota que treina para as
classificatórias e está com todos os planos feitos para os próximos três anos!
Dia sim, dia não, ela treina velocidade. Se eu marcasse um treino às seis da
manhã, teria de ligar no meio da madrugada para falar que exagerei nas
margaritas e não tenho condições de ficar em pé.”
Jenn nunca teve um treinador nem seguiu um programa rígido. Jamais
usou um cronômetro. Ela apenas saía da cama todas as manhãs, comia um
hambúrguer vegetariano e corria na velocidade e pelo tempo que achasse
legal, o que em geral correspondia a 32 quilômetros. Em seguida, subia no
skate que havia comprado e seguia para as aulas na Universidade Old
Dominion, em que havia se matriculado pouco antes e tirava boas notas.
“Nunca falei sobre isso com ninguém para não parecer pretensiosa, mas
comecei a participar de ultramaratonas para me tornar uma pessoa melhor”,
contou Jenn. “Achei que, se conseguisse correr 160 quilômetros, chegaria a
um estado zen. Seria como o tal Buda trazendo paz e sorriso para o mundo...
Não foi o que aconteceu comigo, porque sou a mesma ‘tranqueira’ que
sempre fui, mas sempre fica aquela esperança de vir a ser a pessoa que você
quer ser, mais calma e melhor.”
E prosseguiu: “Quando saio para uma corrida longa, a única coisa que
me interessa é terminar a prova. É a única situação em que o meu cérebro
não fica zunindo o tempo todo... Tudo passa com tranquilidade. Naquele
momento, sou apenas eu e meu movimento. É isso o que adoro, me sentir
como um bárbaro correndo pelo mato”.
Ouvir o que ela dizia era ressoar as palavras de Caballo Blanco. “É
incrível como você parece com um cara que conheci no México”, falei. “Eu
vou encontrar com ele daqui a algumas semanas, para uma corrida que está
organizando com os tarahumaras.”
“Sério?”
“Pode ser que o Scott Jurek também apareça por lá.”
“Você está me zoando!”, duvidou a aspirante a Buda. “É sério? Meu
namorado e eu podemos ir? Ah, não, que droga... Vai ser na época das
provas... Vou tentar convencê-lo. Posso confirmar amanhã?”
Na manhã seguinte, recebi uma resposta de Jenn: “Minha mãe acha que
você é um serial killer que planeja nos assassinar no meio do deserto, ou
seja, vale totalmente a pena arriscar. Onde encontramos vocês?”.
Capítulo 23
Conseguimos chegar em Creel no final do dia, quando o ônibus parou num
ponto e, com certo alívio, ouvimos o barulho dos freios. Lá fora, pela janela,
vi o velho chapéu de palha de Caballo Blanco vindo em nossa direção no
meio da escuridão.
Eu não acreditava que havíamos atravessado o deserto de Chihuahua
com relativa suavidade. Em geral, as chances de cruzar a fronteira e pegar
quatro ônibus sem que nenhum deles quebre ou tenha atrasos de meio dia
equivaliam às possibilidades de vencer em alguma máquina de jogo em
Tijuana. Para qualquer trajeto por Chihuahua, é quase certo que o viajante
em algum momento ouviria o lema da região: “Nada funciona como o
planejado, mas no final dá certo”. E nossos planos, até então, pareciam
ocorrer sem acidentes, sem bebedeiras e sem ataques dos cartéis.
Bem, isso antes do encontro entre Caballo Blanco e Barefoot Ted.
“Minha vida é uma explosão controlada”, Ted gostava de afirmar. Ele vive
em Burbank, num lugar que lembra o apartamento “parque de diversões” do
personagem de Tom Hanks no filme Quero ser grande – repleto de carros
esportivos Spyder cor de chiclete, cavalos de carrossel, bicicletas de roda
alta ao estilo vitoriano, jipes antigos, cartazes de circo, piscina de água
salgada e banheira que serve de casa para uma tartaruga terrestre. Em vez de
garagem, o que se veem são duas tendas de circo imensas. Soltos para lá e
para cá ao redor da construção de um único andar, vagam cães, gatos, um
ganso, um pardal, 36 pombas e inúmeras galinhas asiáticas, com os pés
curiosamente cobertos de penas.
“Esqueci aquela palavra de Heidegger, que quer dizer que eu sou a
expressão desse lugar”, conta Ted, embora nada ali seja dele. Tudo que está
naquele “paraíso” pertence a seu primo Dan, um gênio autodidata da
mecânica, que criou sozinho o principal negócio de restauração de carrosséis
do planeta. “Dita Von Teese fez striptease usando um de nossos cavalos”,
revela Ted. “E Christina Aguilera levou um deles numa viagem.” Quando
Dan enfrentou um divórcio complicado alguns anos antes, Ted decidiu que o
primo precisava de companhia e apareceu em sua casa acompanhado da
mulher, da filha e de sua turma – e nunca mais foi embora. “Dan passa o dia
enfrentando problemas mecânicos, difíceis, e no fim da jornada tem graxa
nas mãos, parece sangue saindo das garras de uma ave de rapina”, conta.
“Por isso, somos indispensáveis. Ele seria um sociopata se eu não estivesse
por perto para conversar com ele.”
Ted achou utilidade para si mesmo ao criar uma pequena loja on-line de
bugigangas, que ele gerencia com um computador Macintosh instalado em
um dos aposentos da casa de Dan. Não dava muito dinheiro, porém permitia
a Ted reservar bastante tempo para treinar para as corridas de oitenta
quilômetros sobre bicicletas vitorianas e reforçar o preparo físico puxando a
mulher e a filha em um riquixá.
Caballo havia tido uma impressão totalmente equivocada da fortuna de
Ted, basicamente porque os e-mails de Barefoot vinham cheios de gráficos,
mais adequados para um possível investidor da Microsoft. Enquanto todos
nós procurávamos voos mais baratos para El Paso, por exemplo, Ted
pesquisava se havia uma pista de pouso na região da fronteira mexicana para
acomodar um avião particular. Não que ele tivesse um avião, porque mal
tinha um carro (ele se deslocava a bordo de um Fusca 1966 em tal estado de
decadência que não dava para se afastar muito de casa), mas com Ted era
assim, tudo fazia parte de sua estratégia. “Com esse carro, nunca viajo para
longe. Sou pobre por opção e acho isso muito libertador”, explica.
Quando era estudante na Faculdade Central de Artes e Design de
Pasadena, Ted namorou uma colega, Jenny Shimizu. Um dia, no
apartamento da namorada, ele conheceu dois novos amigos dela: Chase
Chen, um jovem artista chinês, e sua irmã, Joan. Nenhum dos irmãos Chen
falava bem inglês, então Ted se ofereceu para ser “embaixador cultural
pessoal” da dupla. A amizade rendeu frutos para todos: Ted passou a contar
com uma plateia dedicada a ouvir seu fluxo sinfônico de palavras, os irmãos
chineses tiveram contato com um imenso vocabulário novo, e Jenny
conseguiu uma pausa para o palavrório incansável de Ted.
Dentro de poucos anos, três nomes do quarteto teriam fama
internacional. Joan Chen se tornou estrela de Hollywood, citada até pela
revista People entre “as cinquenta pessoas mais lindas do planeta”. Chase
conquistou espaço como um aclamado pintor e se transformou no artista
asiático mais bem pago de sua geração. E Jenny Shimizu virou modelo e
uma das lésbicas mais famosas do mundo depois de seus relacionamentos
com celebridades como Madonna e Angelina Jolie (Ted não havia se dado
conta disso, apesar da tatuagem no braço direito de Jenny: uma mulher
sensual montada numa chave de boca).
Já no que se refere a Ted, bem...
Ele conseguiu entrar na lista das trinta pessoas que conseguem ficar
mais tempo sem respirar. “Meu tempo foi de cinco minutos e quinze
segundos”, conta. “Basta passar o verão todo praticando na piscina.” Mas se
dedicar a prender a respiração, convenhamos, é como ter uma amante
inconstante, e não demorou muito para Ted voltar a sua atenção para os
rankings de outra competição dirigida à arte de fazer mais esforço do que os
reles mortais. Dá para imaginar o sujeito, borbulhando em sonhos de glória
no fundo da piscina da casa do primo, quando quase todas as pessoas que ele
conhecia estavam pintando obras de arte, dividindo a cama com celebridades
e posando para a câmera de Bernardo Bertolucci.
A pior parte? Quando prendia a respiração, Ted se destacava pelo que
sabia fazer de melhor. De certo modo, foi isso que atraiu Lisa, sua futura
mulher. Os dois dividiam a mesma república, mas, como ela trabalhava na
segurança de um bar heavy metal e só chegava em casa às três da manhã, seu
contato com Ted se limitava a uma versão seca do cara no fundo da piscina:
depois do trabalho, ela chegava e o encontrava sentado diante da mesa da
cozinha, comendo arroz e feijão e com o nariz enterrado em livros de
filosofia francesa. A perseverança e a inteligência de Ted eram lendárias
entre os colegas de república: ele conseguia passar a manhã inteira pintando,
andar de skate a tarde toda e dedicar a noite para decorar verbos em japonês.
Ele oferecia a Lisa um prato quente de feijão e, então, com o ritmo frenético
finalmente reduzido, ele parava de ser o centro das atenções e deixava a
moça falar. De repente, ele tinha um insight e a estimulava a seguir em
frente. Poucos viram esse Ted, o que era uma grande perda para todos –
inclusive para ele próprio.
Chase Chen foi outro privilegiado a ver esse Ted. Seu olhar de artista
captou os raros instantes de quietude daquele furacão. Afinal, a
especialidade do pintor era observar a “dramática dança entre a luz do sol e a
sombra”. O que fascinava Chase não era a ação, mas a antecipação; não o
salto da bailarina, mas o instante anterior ao salto, quando a força está
concentrada e tudo é possível. Ele conseguia ver as mesmas coisas nos
momentos de quietude de Ted, o mesmo poder luminoso e as possibilidades
ilimitadas, e era isso o que colocava em seus desenhos. Durante anos, Chase
usou Ted como modelo – algumas de suas melhores obras, na realidade, são
retratos de Ted, Lisa e da bela filha do casal, Ona. Chase ficou tão encantado
pelo mundo que via refletido em Ted que dedicou um livro inteiro a retratos
do amigo e de sua família: Ted e Ona dentro do antigo Fusca, Ona debruçada
sobre um livro, Lisa sobre o ombro de Ona, o produto vivo da luz e da
sombra de seu pai.
Quando se aproximava dos quarenta anos, suas quatro décadas de dança
incansável tinham lhe rendido nada mais que um registro nas obras de arte
de outro sujeito e um lugar para dormir na casa do primo. E bem quando
parecia que ele tinha cruzado a ponte entre o grande potencial e o talento
pouco útil, aconteceu algo maravilhoso: Ted sentiu dores nas costas.
Em 2003, ele decidiu comemorar seus quarenta anos com um evento de
resistência física que chamou de “ironman anacrônico”. Seria um triatlo do
tipo ironman, uma prova que incluía três quilômetros de nado no mar, 180
quilômetros de percurso de bicicleta e 42 quilômetros de corrida. A
diferença estava no fato de que, por motivos que só Ted conhecia, todo o
equipamento usado deveria ser anterior à década de 1890. Ele já se sentia
quase totalmente preparado para o desafio: conseguia nadar com os pesados
trajes de banho antigos e tinha adquirido grande habilidade na bicicleta de
rodas altas. Mas a parte da corrida ainda o incomodava.
“Sempre que eu corria por uma hora, sentia uma dor nas costas que
quase me matava”, conta. “Era desanimador, não dava para pensar em
encarar uma maratona assim.” Porém a pior parte ainda estava por vir: se
não conseguia suportar dez quilômetros calçando os confortáveis tênis
modernos, qual não seria o padecimento quando acomodasse os pés nos
antigos calçados vitorianos? Os tênis de corrida haviam surgido quase na
mesma época das viagens espaciais – antes disso, nossos pais usavam
calçados planos feitos de borracha, e nossos avós ostentavam algo similar a
uma sapatilha de balé. Durante milhões de anos, os seres humanos correram
sem nenhum apoio para a curvatura do pé, nada que evitasse a pronação dos
músculos ou amortecesse o contato do calcanhar com o chão. Como eles
conseguiam correr assim era algo que Ted nem sequer imaginava. Mas uma
coisa de cada vez. Faltavam menos de seis meses para o seu aniversário e,
agora, a prioridade máxima era encontrar uma maneira (qualquer uma) de
correr 42 quilômetros. Depois de superar essa parte, ele poderia se preocupar
em começar a usar os calçados assassinos feitos de couro.
Se eu me dedicar, acabo achando um jeito, pensou Ted. “Por isso
comecei a pesquisar”, conta. A primeira medida foi se consul-tar com um
quiroprático e um cirurgião ortopedista, e ambos garantiram que não havia
nada de errado com ele. Alegaram que correr era mesmo uma atividade
perigosa e um dos perigos era justamente a consequência dos impactos dos
pés nas pernas e nas costas do atleta. Todavia os médicos também tinham
boas notícias: se Ted quisesse mesmo correr, ele provavelmente aplacaria o
problema recorrendo a um cartão de crédito generoso. Os especialistas
garantiram que, se ele estivesse munido de tênis modernos e de um bom
apoio para os calcanhares, as pernas contariam com o amortecimento
necessário para enfrentar uma maratona.
Ted gastou a fortuna que realmente não tinha comprando os calçados
mais caros que encontrou e ficou arrasado quando descobriu que não
ajudavam em nada. Em vez de culpar os médicos, porém, ele pôs a culpa nos
tênis: talvez ele precisasse de ainda mais amortecimento do que o setor de
pesquisa e desenvolvimento em injeção de ar da Nike tinha conseguido
elaborar em trinta anos. Por isso, respirou fundo e mandou trezentos dólares
para a Suíça, para comprar um par de Kangoo Jumps, o tênis com maior
amortecimento do mundo. O calçado lembra um patim projetado para ser
usado pelo Coiote que persegue o Papa-Léguas no desenho animado, mas,
em vez de rodas, apoia-se em um sistema de suspensão, que permite o atleta
saltitar por aí como se estivesse vagando na Lua.
Quando a encomenda chegou, seis semanas depois, Ted quase não
suportava a própria ansiedade. Ele deu alguns passos com o incrível calçado
e... Fantástico! Estava caminhando com algo que parecia a boca do Mick
Jagger preso nas solas. Acho que encontrei a solução, pensou, enquanto
percorria as ruas com a novidade. Ao chegar na esquina, porém, voltou a
sentir o incômodo nas costas. Aí não parou mais de xingar. “Depois de uma
hora correndo com os tais Kangoo Jumps! Percebi logo que pisei no chão...”,
explicou Ted. “Minhas ilusões sobre o que eu precisava haviam acabado.”
Furioso e frustrado, arrancou o calçado dos pés. Mal podia esperar a
hora de enfiar aquele tênis ridículo de volta na caixa e mandar para a Suíça
com alguns impropérios. Voltou para casa descalço, tão raivoso e
desapontado que precisou percorrer um longo trajeto para perceber o que
estava acontecendo: finalmente, suas costas não doíam. Não doíam nadinha.
“Ei, talvez eu devesse tentar correr a maratona descalço!”, concluiu.
Afinal, pés descalços não deixavam de ser um “figurino” adequado para a
época de 1890.
Assim, todos os dias, Ted calçava seu tênis e corria até a Hanson Dam,
um oásis de vegetação e lagos que ele considera “o último refúgio natural de
Los Angeles”. Ali, ele se livrava do calçado e corria pelas trilhas sem nada
nos pés. “Fiquei impressionado ao ver como era bom”, lembra. “O tênis me
fazia sentir dores, porém, assim que o tirava, meus pés pareciam peixes
voltando para a água. Finalmente, comecei a largar o calçado em casa.”
Mas por que as costas dele deixaram de doer quando passou a correr
com menos amortecimento? Ted pesquisou uma possível resposta e o
resultado era como olhar entre os arbustos de uma selva tropical e dar de
cara com uma tribo desconhecida. Ted encontrou uma comunidade
internacional de corredores descalços, adeptos de uma antiga sabedoria
própria, que adotavam nomes tribais e seguiam um sábio barbudo, chamado
de “Barefoot Ken Bob” Saxton. Felizmente, era uma tribo que gostava de
escrever.
Ted se dedicou a examinar os arquivos de Ken Bob e descobriu que
Leonardo da Vinci considerava os pés humanos, com seu incrível sistema de
suspensão e formado por um quarto de todos os ossos do corpo humano,
“uma obra-prima da engenharia e também uma obra de arte”. Ficou sabendo
sobre Abebe Bikila, maratonista etíope que correu descalço sobre as ruas de
pedra de Roma e venceu a maratona nas Olimpíadas de 1960, e sobre
Charlie Robbins, uma voz solitária no mundo da medicina que corria
descalço e afirmava que as corridas não machucavam os atletas, mas que o
uso de tênis poderia matar.
Acima de tudo, o que mais impressionou Ted foi o texto de Barefoot
Ken Bob, chamado “manifesto do dedão de fora”. Ele ficou encantado,
porque a mensagem parecia direcionada a ele. “Muitos de vocês podem
sofrer de problemas físicos decorrentes do hábito de correr”, avisava Ken
Bob:
O tênis bloqueia a dor, e não o impacto!
A dor nos ensina a correr do jeito certo!
A partir do momento em que você começar a correr descalço, irá mudar a sua forma de correr.
“Parem!”
Caballo estava falando com todos nós, e não apenas com Ted. Ele nos
fez parar de repente no meio de uma ponte precária, que cobria um canal de
esgotos.
“Preciso que todos vocês façam um juramento de sangue”, falou.
“Ergam a mão direita e repitam o que eu disser.”
Eric olhou para mim. “Mas o que é isso?”
“Não tenho ideia.”
“O juramento tem de ser feito aqui, antes de passarmos para o outro
lado”, insistiu Caballo. “Lá fica a saída, aqui é a entrada. Para entrar, é
preciso jurar antes.”
Nós nos olhamos, colocamos as mochilas no chão e erguemos as mãos.
“Se eu me machucar, me perder ou morrer”, começou Caballo.
“Se eu me machucar, me perder ou morrer”, repetimos.
“A culpa é toda minha.”
“A culpa é toda minha.”
“Ah... Amém.”
“Amém!”
Caballo nos levou até a minúscula casa onde ele e eu jantamos no dia
em que nos conhecemos. Nós nos esprememos na sala de estar de Mamá,
enquanto a filha dela juntava duas mesas. Luis e seu pai deram uma volta na
rua e apareceram com duas sacolas de cerveja. Jenn e Billy tomaram uns
goles de Tecate e começaram a se animar. Erguemos os copos e fizemos um
brinde com Caballo. Ele se virou para mim e retomou a conversa. Foi nesse
momento que o juramento feito na ponte começou a fazer sentido.
“Você se lembra do filho de Manuel Luna?”
“Marcelino?” É claro que eu me lembrava do Tocha Humana. Na minha
imaginação, eu antevia contratos entre a Nike e o garoto desde que o vira
correr na escola dos tarahumaras. “Ele vai participar?”
“Não”, respondeu Caballo. “Ele está morto. Bateram nele até matar. Foi
assassinado numa trilha. Ele estava com o pescoço aberto, machucado
embaixo do braço e a cabeça em frangalhos.”
“Mas, quem... O que aconteceu?!”, balbuciei.
“Esse negócio da droga que está rolando por aqui”, continuou Caballo.
“Talvez Marcelino tenha visto algo que não deveria ou, quem sabe, queriam
que ele levasse drogas para fora do desfiladeiro e ele se recusou. Ninguém
sabe direito. Manuel está arrasado. Ele ficou na minha casa quando veio
contar o que havia acontecido para os federales. Mas eles não vão fazer
nada, não existe lei por aqui.”
Eu me sentei, sem acreditar. Lembrei-me dos traficantes que tínhamos
visto naquele carro a caminho da escola tarahumara, um ano antes. Na minha
mente, veio a imagem dos índios jogando o carro na beira do desfiladeiro, os
traficantes procurando os cintos de segurança desesperados, enquanto o
veículo caía pela encosta e finalmente explodia numa imensa bola de fogo.
Eu não tinha ideia se os caras que vimos naquele dia estavam envolvidos na
morte de Marcelino, mas eu queria matar alguém.
Caballo continuava falando. Ele já havia se conformado com a morte de
Marcelino e retomava o assunto da corrida, animado. “Sei que Manuel Luna
não vai aparecer, porém acho que o Arnulfo pode vir. Talvez o Silvino
também.”
Durante o inverno, Caballo tinha se dedicado a arrumar al-guns prêmios
para os finalistas. Além de colocar dinheiro do próprio bolso, havia recebido
uma contribuição de Michael French, um triatleta do Texas que tinha ficado
rico com uma empresa de tecnologia da informação. French se interessara
pela corrida ao ler meu artigo na Runner’s World e, mesmo sem poder
participar, ofereceu dinheiro e milho para premiar os primeiros colocados.
“Desculpe”, soltei. “Você disse que o Arnulfo virá?”
“Sim”, confirmou Caballo.
Devia ser brincadeira. Arnulfo? Ele nem sequer quis falar comigo,
quanto mais participar da mesma corrida. Se ele nem saiu para um passeio
com um sujeito que tinha ido até a porta de sua casa, por que iria atravessar
montanhas para correr com um bando de gringos que nunca tinha visto na
vida? E Silvino, que eu havia conhecido na última vez em que estive ali?
Encontramos com ele por acaso em Creel, depois da minha corrida com
Caballo. Estava com a sua picape e usando calças jeans, compradas com o
prêmio que recebeu ao vencer uma maratona na Califórnia. De onde Caballo
havia tirado a ideia de que Silvino ia ligar para essa corrida? Eu havia
aprendido o bastante sobre os tarahumaras, e sobre aqueles dois corredores
em especial, para saber que não havia chance de que a família Quimare se
animasse a participar.
“Os atletas vitorianos eram fascinantes!” Sem ligar para a suspeita de
que talvez nenhum tarahumara aparecesse para a corrida, Ted continuava a
tagarelar. “Foi a primeira vez que alguém cruzou o Canal da Mancha. Vocês
já andaram numa bicicleta de rodas altas? O funcionamento é tão incrível
que...”
Meu Deus, que desastre. Caballo mexia a cabeça – era quase meia-noite
e o mero fato de estar cercado de gente lhe dava dor de cabeça. Jenn e Billy
haviam tomado várias cervejas Tecate e dormiam sobre a mesa. Eu me sentia
péssimo – seria capaz de apostar que Eric e Luis tinham percebido a tensão e
começavam a se preocupar. Mas esse não era o caso de Scott, que ficava ali
sentado com cara de quem se divertia. Ele tinha entendido tudo e não se
preocupava com nada.
“Bem, vou dormir”, avisou Caballo. Ele nos levou até um con-junto de
aposentos limpos e velhos nos arredores da cidade. Os quartos eram
pequenos como celas, porém muito limpos e decorados com galhos de
pinheiro em vasos. Caballo murmurou algo e sumiu. O restante do pessoal se
dividiu em duplas. Eric e eu ficamos com um quarto, Billy e Jenn foram para
outro.
“Beleza. Quem divide o quarto comigo?”, disse Ted, batendo as palmas
das mãos.
Silêncio.
“Muito bem”, falou Scott. “Mas você precisa me deixar dormir.”
Fechamos as portas e nos acomodamos embaixo das cobertas.
O silêncio caiu sobre Creel e a última coisa que Scott ouviu foi a voz de
Ted no meio do escuro: “Muito bem, cérebro”, cochichou. “Descanse. É
hora de ficar quieto.”
Capítulo 24
Toc, toc, toc.
O dia amanheceu com uma geada na janela e uma batida na porta.
“Ei”, falou alguém. “Vocês estão acordados?”
Levantei e me aproximei da porta, imaginando o que o casal da pesada
havia aprontado daquela vez. Luis e Scott estavam do lado de fora, soprando
as mãos fechadas em forma de concha. Era tão cedo que o céu ainda estava
mudando de cor.
“Vamos encarar uma corrida?”, perguntou Scott. “Caballo falou que
devemos pegar a estrada lá pelas oito horas, então é bom sairmos agora.”
“Ah, legal”, falei. “Da última vez, ele me levou por uma trilha bem
bacana. Vou ver se consigo achá-lo e...”
Uma janela se abriu ao lado e Jenn apareceu. “Ei, vocês estão se
preparando para correr? Tô dentro!” Na sequência, ela gritou para dentro do
quarto: “Billy, levanta a bunda da cama!”.
Tentei achar um short e um agasalho. Eric bocejou e saiu em busca do
tênis. “Cara, esse pessoal não está para brincadeira, hein?”, comentou. “E
onde está Caballo?”
“Não tenho ideia. Vou sair para procurar.”
Fui até o final das cabanas, achando que Caballo estaria o mais distante
possível dali. Olhei em todas as portas e nada. Havia apenas delas
entreaberta e, para ter certeza, dei um empurrão leve com a mão.
“O que foi?!”, grunhiu uma voz. Uma cortina se abriu e vi o rosto de
Caballo. Ele estava com os olhos vermelhos e cansados.
“Desculpe”, falei. “Você se resfriou ou algo do tipo?”
“Não, cara”, ele respondeu com dificuldade. “Estava apenas tentando
dormir.” Mal era o começo de toda a operação e ele estava tão estressado
que passou a noite toda se virando de um lado para outro, com dor de cabeça
provocada pela ansiedade. Para ele, bastava estar em Creel para se sentir
incomodado. Creel era um vilarejo simpático, que representava, porém, o
que ele mais detestava no mundo: as mentiras e a exploração.
O nome do local se devia a Enrique Creel, um figurão ladrão de terras
tão influente que a Revolução Mexicana praticamente foi esmagada por
causa dele. Além de arquitetar o projeto de reformulação agrária que
desalojou milhares de camponeses de Chihuahua de suas propriedades, ele
tinha o cuidado de se certificar pessoalmente de que qualquer aldeão ousado
fosse parar na prisão, atuando como líder de uma rede de espionagem a
serviço do ditador Porfírio Díaz.
Quando os rebeldes liderados por Pancho Villa chegaram na região
dispostos a capturá-lo, Creel partiu para o exílio em El Paso (e deixou para
trás seu filho, pelo qual os revolucionários cobraram um resgate de 1 milhão
de dólares). Quando o México voltou para sua “normalidade” de corrupção,
Enrique retornou e recuperou a glória de sempre. Triste homenagem a um
dos piores seres da região, a cidade dedicada a Enrique Creel agora
funcionava como base de operações para todas as desgraças que atingiam a
área das Barrancas del Cobre: mineração, desmatamento, cultivo de drogas e
circulação de ônibus cheios de turistas. Ficar ali levava Caballo à loucura –
para ele, era como se hospedar em uma pousada em meio a uma terra ainda
cultivada por escravos.
Acima de tudo, porém, ele não estava acostumado a se responsabilizar
por mais ninguém, a não ser ele mesmo. Agora que estávamos ali, seu peito
explodia de apreensão. Ele precisou de dez anos para ganhar a confiança dos
tarahumaras e tudo poderia ir por água abaixo em menos de dez minutos.
Caballo imaginava Barefoot Ted e Jenn falando nas orelhas dos atônitos
índios... Luis e seu pai apontando câmeras fotográficas para eles... Eric e eu
fazendo uma pergunta atrás da outra... Era um pesadelo.
“Não, cara. Não quero correr”, respondeu. E fechou a cortina.
Em seguida, nós sete – Scott, Luis, Eric, Jenn, Billy, Ted e eu –
partimos para a trilha cercada de árvores que Caballo tinha me mostrado da
outra vez. Saímos do aglomerado de árvores no momento em que o sol
aparecia ao fundo das imensas pedras, nos forçando a piscar conforme o dia
ganhava tons dourados. Havia resíduos de nevoeiro ao redor de nós.
“Que fantástico!”, exclamou Luis.
“Nunca tinha visto um lugar assim”, afirmou Billy. “Caballo está certo.
Eu adoraria morar aqui, vivendo com pouco e correndo pelas trilhas.”
“Ele já conseguiu fazer a sua cabeça?!”, alertou Luis. “Parece mais o
culto do Cavalo Branco.”
“Não foi ele, foi o lugar”, corrigiu Billy.
“Meu Querido Pônei”, zombou Jenn, “você parece um pouco com
Caballo.”
Em meio a essa brincadeira toda, Scott parecia sério observando
Barefoot Ted. A trilha sinuosa entrava numa parte de pedras, mas, mesmo
tendo de ir de pedra em pedra, Ted não reduzia o ritmo. “O que é isso em
seus pés?”, quis saber Jenn.
“Vibram FiveFingers”, respondeu Ted. “Não é demais? Sou o primeiro
atleta patrocinado pela marca!”
E era verdade. Ted era o primeiro corredor descalço profissional dos
Estados Unidos na era moderna. A sapatilha FiveFingers tinha sido projetada
como um calçado básico para uso de velejadores – o propósito era garantir
maior aderência em superfícies escorregadias, mas sem comprometer a
sensação de pés descalços. Era preciso olhar com atenção para enxergar o
calçado, que encaixava perfeitamente nas solas e ao redor de cada dedo,
tanto que mais parecia que Ted havia manchado partes dos pés com tinta
verde. Pouco antes da viagem para as Barrancas del Cobre, ele tinha visto
uma foto do produto na internet e encomendou um na hora. Não se sabe
como, ele trilhou um caminho que começou nas atendentes de telefone e
secretárias até conseguir cair na mesa do presidente da Vibram, que era
ninguém mais, ninguém menos que...
Tony Post! O ex-executivo da Rockport, que havia patrocinado a equipe
tarahumara em Leadville!
Tony ouviu o que Ted tinha a dizer, sem dar muito crédito. Não que ele
não apreciasse a ideia de confiar na força dos pés em vez de acessórios que
ofereciam um acolchoamento especial e controle de movimentos – uma vez,
o próprio Tony chegou a correr a Maratona de Boston com um par de tênis
Rockport para mostrar que bastava ter conforto e boa estrutura, sem nada
daquelas promessas de recursos antipronação e apoio de gel. Mas os tênis da
Rockport tinham pelo menos recorte para a curvatura e sola flexível,
enquanto a sapatilha FiveFingers não passava de uma sola de borracha com
uma tira de velcro. Mesmo assim, Tony ficou intrigado e resolveu tentar ele
mesmo. “Saí para um trajeto de menos de dois quilômetros”, conta, “e
acabei correndo onze. Nunca havia pensado na FiveFingers como um
calçado para corridas, porém, depois daquele dia, não imaginei outra
alternativa para correr.”
Quando chegou em casa, preparou um cheque para patrocinar a
participação de Barefoot Ted na Maratona de Boston.
O rosto de Caballo Blanco estava rosado de orgulho, e por isso tentei achar
algo legal para falar.
Tínhamos acabado de chegar a Batopilas, antiga cidade dedicada à
mineração, incrustada a quase 2.500 metros abaixo da boca do desfiladeiro.
Foi fundada há quatro séculos, quando os exploradores espanhóis
descobriram minério de prata em um rio de pedras, e desde então pouca
coisa mudou. Ainda se resume a uma minúscula fileira de casas próximas à
beira do rio, onde os burros são tão numerosos quanto os carros e o primeiro
telefone foi instalado quando o mundo já programava iPods.
Para chegar até a cidade, era preciso contar com um estômago bastante
resistente e uma incrível fé no ser humano que, no caso, dirigia aquele
ônibus. O único caminho para Batopilas é uma estrada ruim, que serpenteia
diante de um rochedo e desce mais de 2 mil metros em menos de dezesseis
quilômetros. Conforme o ônibus fazia as curvas fechadíssimas, segurávamos
a respiração e contemplávamos lá embaixo os restos dos veículos cujos
motoristas erraram
o cálculo em alguns centímetros. Dois anos depois de viver por lá,
Caballo também faria a sua contribuição para aquele cemitério de aço,
quando a picape que ele dirigia chegou até a borda da estrada e rolou morro
abaixo. Ele conseguiu escapar e ainda viu o carro explodir nas profundezas.
Mais tarde, alguns pedaços da carcaça foram levados para servir de amuletos
de boa sorte.
Quando o ônibus chegou nas imediações da cidade, nossos rostos
estavam recobertos com uma pintura feita de poeira e suor, como o de
Caballo na primeira vez em que o vi. “É ali!”, mostrou Caballo. “Aquela é a
minha casa.”
Olhamos em volta e a única coisa que vimos foram as ruínas de uma
antiga missão, do outro lado do rio. Não havia mais telhado e as paredes de
pedra caíam no desfiladeiro avermelhado de onde tinham vindo, parecendo
um castelo de areia que se dissolvia para virar areia novamente. Era perfeito:
Caballo tinha achado o lugar ideal para um fantasma. Eu só conseguia
imaginar como deveria ser assustador passar uma noite ali e ver a
monstruosa dança das sombras ao redor da barraca quando ele percorria as
ruínas, como Quasímodo.
“Realmente é um lugar... diferente”, falei.
“Não, cara”, respondeu ele. “É lá.” E apontou para atrás de nós, para
uma tímida trilha que sumia no meio dos cactos. Caballo começou a subir e
nós o seguimos, segurando em galhos para manter o equilíbrio conforme
abríamos caminho na trilha pedregosa.
“Droga, Caballo”, disse Luis. “Esta é a única estrada do mundo que
precisa de uma estação de apoio e de sinalização já no terceiro quilômetro.”
Depois de cerca de noventa metros, passamos por um matagal de
limeiras selvagens e achamos uma pequena cabana feita de barro. Caballo
havia construído o lugar com pedras tiradas do rio
– para isso, ele fez centenas de percursos de ida e volta por aquela trilha
traiçoeira, levando pedras nas mãos. Caballo achou aquele local mais
adequado para funcionar como moradia do que as ruínas da missão – dali de
sua fortaleza isolada e erguida à mão, ele conseguia observar todo o vale
sem ser visto.
Entramos na cabana e vimos que ali havia uma pequena cama de
campanha, uma pilha de sandálias em mau estado e três ou quatro livros
sobre Crazy Horse, ou Cavalo Louco, e outros nativos norte-americanos
numa estante perto de um lampião. Era isso mesmo: nada de eletricidade,
água encanada ou banheiro. Na parte de trás, Caballo havia tirado alguns
cactos e aberto uma pequena área para descansar depois de uma corrida,
fumar um pouco e ficar admirando aquela paisagem pré-histórica.
Independentemente de qual fosse a palavra de Heidegger que Barefoot Ted
tentava achar, ninguém no mundo expressava melhor o seu próprio lugar do
que Caballo e a sua cabana.
Ele, por sinal, estava ansioso para que todos comessem e o liberassem
para dormir um pouco. Nos próximos dias, iríamos consumir toda a energia
disponível, e ninguém havia descansado muito desde El Paso. Ele nos levou
pela trilha até uma estrada e depois a uma pequena venda que funcionava na
parte da frente de uma casa – bastava chamar pela janela e perguntar se o
dono do comércio, Mario, tinha o produto desejado. Na parte superior, Mario
alugou para nós alguns quartos pequenos, com um chuveiro no final do
corredor.
Caballo queria que deixássemos as bagagens e saíssemos em busca de
comida, porém Ted insistiu em tomar um banho rápido, para se livrar da
poeira da estrada.
Saiu berrando: “Meu Deus, o chuveiro tem fios soltos. Quase levei um
choque!”.
Eric olhou para mim. “Você acha que foi Caballo?”
“Homicídio justificável”, falei. “Nenhum júri condenaria ninguém.” A
tempestade entre Caballo Blanco e Barefoot Ted não havia diminuído nada
desde que tínhamos saído de Creel. Numa das paradas, Caballo desceu do
teto e abriu caminho até o fundo do ônibus, para escapar. “Aquele cara não
sabe o que é silêncio”, reclamou. “Ele é de Los Angeles, acha que todo
espaço precisa ser preenchido com barulho.”
Depois de nos acomodar na casa de Mario, Caballo nos levou a outra de
suas mamás. Nem foi preciso fazer o pedido: assim que chegamos, doña
Mila começou a servir tudo o que havia na geladeira. Não faltavam pratos de
guacamole, frijoles, fatias de cacto e to-mates temperados com um vinagre
estranho, arroz e uma cheirosa carne ensopada, preparada com fígado de
frango.
“Vamos levar”, falou Caballo. “Vamos precisar disto amanhã.” Avisou
que seria apenas uma pequena caminhada de aquecimento. Um passeio pela
montanha perto dali, para dar uma ideia do terreno que teríamos de enfrentar
na ida para a nossa pista de competição. Ele garantia que não era nada
demais e nos aconselhou a comer e ir dormir. Fiquei mais apreensivo com a
chegada de um velho norte-americano de cabelos brancos que se aproximou
de nós.
“Como vai a vida?”, perguntou para Caballo. Ele se chamava Bob
Francis. Tinha vindo a Batopilas pela primeira vez na década de 1960 e parte
dele sempre vivera ali. Mesmo com filhos e netos em San Diego, Bob ainda
passava a maior parte do ano vagando pelo desfiladeiro que cerca Batopilas,
às vezes guiando grupos de exploradores, outras vezes visitando Patricio
Luna, um amigo tarahumara, tio de Manuel Luna. Eles haviam se conhecido
trinta anos antes, quando Bob se perdeu no cânion. Patricio o encontrou,
deu-lhe comida e o levou para o abrigo de sua família para passar a noite.
Graças à longa amizade com Patricio, Bob era um dos poucos norte-
americanos que tinham visto uma tesgüinada – a animada festa dançante
realizada antes das corridas de bola. Nem Caballo contava com esse nível de
confiança com os tarahumaras e, depois de ouvir as histórias de Bob, não
estava certo de que queria participar.
“Sem mais nem menos, alguns tarahumaras dos quais eu era amigo
havia anos, homens que eu sabia serem tímidos mas bons amigos, estavam
ali na minha frente, batendo o peito contra mim, me insultando e chamando
para brigar”, contou Bob. “Enquanto isso, as mulheres deles iam para o mato
com outros sujeitos, enquanto as filhas crescidas eram derrubadas sem roupa
nenhuma. Eles mantêm as crianças longe de tudo isso – dá para entender o
porquê.”
Bob explicou que nessas festas tudo pode acontecer, porque depois se
coloca a culpa no peyote, na tequila e no tesgüino, a forte bebida feita de
milho. Por mais que essas festas exagerassem na animação, serviam para
uma função nobre e sábia: funcionavam como válvula de escape para as
emoções conflitivas. Como todos nós, os tarahumaras têm desejos secretos e
mágoas pessoais, mas, em uma sociedade na qual todos dependem da
confiança mútua e não existem formas de punição, é preciso haver uma
maneira de satisfazer vontades e acertar as contas. Há coisa melhor que uma
festa em que tudo é possível? Todo mundo se embriaga, perde o controle e,
depois de amargar uma ressaca violenta, esquece tudo e retoma a vida.
“Dava para ter casado ou sido assassinado umas vinte vezes antes do
final da noite”, contou Bob. “Mas eu fui esperto o bastante e despejei a cuia,
depois saí dali antes que o pior começasse.”
Se havia algum forasteiro que conhecia as barrancas tão bem quanto
Caballo era Bob – apesar da suave bebedeira dele e do humor um pouco
absurdo, achei melhor ficar de olho quando ele se aproximou de Ted.
“Amanhã não vai existir nem sinal desta droga”, disse, apontando para
a FiveFingers nos pés de Ted.
“Não vou calçar isto amanhã”, respondeu Ted.
“Agora você falou algo que faz sentido”, esclareceu Bob.
“Vou caminhar descalço mesmo”, acrescentou Ted.
Bob se voltou para Caballo e perguntou: “Ele só pode estar brincando,
né?”.
Caballo apenas sorriu.
Quando eu terminei o último trecho de meu trajeto, três dias depois, mal
conseguia andar. Fui mancando até o riacho e fiquei ali, fervendo de raiva e
tentando descobrir o que havia de errado comigo. Precisei de três dias para
correr o mesmo percurso da corrida de Caballo, e tudo o que consegui foi
uma lesão (ou talvez duas) no tendão de Aquiles e uma dor no calcanhar que
me fez pensar no mais temido flagelo que atinge os corredores: fascite
plantar.
Quando a terrível enfermidade crava os dentes no calcanhar de alguém,
o risco é conviver com ela para o resto da vida. Quem consulta qualquer
sistema de mensagens frequentado por corredo-res certamente encontra uma
enxurrada de gente implorando por uma cura – e uma quantidade semelhante
de soluções. Todo mundo sugere os mesmos remédios: uso de talas, meias
elásticas, tratamento com ultrassom, eletrochoque, cortisona ou aparelhos
ortóticos –, mas o fluxo de mensagens continua porque nenhuma “solução”
parece dar resultado de verdade.
Como Caballo conseguia encarar descidas mais extensas que o Grand
Canyon calçando sandálias velhas, enquanto eu não era capaz de passar
alguns meses sem um ferimento sério? Wilt Chamberlain, com 2,16 metros
de altura e 125 quilos, não teve problemas para enfrentar uma ultracorrida de
oitenta quilômetros quando já estava com sessenta anos, e isso depois que os
seus joelhos sobreviveram a uma existência inteira dentro das quadras de
basquete. E o marinheiro norueguês Mensen Ernst? Ele mal se lembrava de
como era caminhar em terra firme quando voltou a pisar nela em 1832, mas
conseguia correr tão bem que foi de Paris a Moscou correndo só para vencer
uma aposta. Fez uma média diária de 210 quilômetros durante duas semanas,
usando Deus sabe lá qual tipo de calçado e se deslocando sobre estradas que
só Deus para dizer como eram.
E Mensen estava apenas se divertindo um pouco antes de voltar para a
vida séria: em seguida, correu de Constantinopla até Calcutá, trotando 145
quilômetros por dia durante dois meses seguidos. Mas é claro que ele sentiu
os efeitos e teve de descansar três dias inteiros antes de começar a jornada
de 8.690 quilômetros de volta para casa. Como nunca sofreu de fascite
plantar? Ele não teria o problema nunca, porque suas pernas estavam em
excelente forma um ano depois, quando a disenteria o matou enquanto ele
tentava correr até chegar na nascente do rio Nilo.
Para todos os lugares que eu olhava, via estrelas das supercorridas
esbanjando talento. Em Maryland, a pouca distância de onde eu estava, uma
garota de treze anos chamada Mackenzie Riford participava feliz da corrida
jfk, com oitenta quilômetros de trajeto, ao lado de sua mãe (“Foi
divertido!”), enquanto Jack Kirk, que ficaria conhecido como o “demônio da
Dipsea”, ainda participava da terrível Dipsea Trail Race aos 96 anos. A
prova começa com uma escalada em uma encosta íngreme, o que significa
que um cara com a metade da idade dos eua tinha de encarar 671 degraus (o
equivalente à escadaria de uma construção de cinquenta andares) antes de
começar a correr na floresta. “Ninguém para de correr porque envelheceu”,
afirmou Jack Kirk. “Apenas envelhece porque parou de correr.”
Mas o que faltava para mim? Minha forma física estava pior do que
quando comecei a correr. Além de não ter condições de participar de uma
corrida com os tarahumaras, duvidava que meu pé tomado pela fascite
plantar conseguisse me levar até a linha de largada.
“Você é como todo mundo”, disse Eric. “Não sabe o que está fazendo.”
Algumas semanas depois de meu fracasso em Idaho, fui conversar com
Eric sobre uma matéria para uma revista. Ele era um treinador de esportes de
aventura que vivia em Jackson Hole, no Wyoming, e havia atuado como
diretor de fitness do Centro de Ciências da Saúde da Universidade do
Colorado. Eric era especialista em estudar os movimentos essenciais dos
esportes de resistência e encontrar as habilidades passíveis de serem
transferidas para outras atividades. Ele havia estudado o alpinismo para
descobrir técnicas de ombro úteis aos praticantes de caiaque e levado a suave
propulsão do esqui na neve para o mountain biking. O que ele realmente
procurava eram os princípios básicos da engenharia: Eric tem certeza de que
o próximo grande avanço em fitness não virá do treinamento nem da
tecnologia, mas da técnica – o atleta que evitar as lesões deixará os
competidores para trás.
Eric havia lido minha matéria sobre Caballo Blanco e os tarahumaras e
queria saber mais. “O que os tarahumaras fazem é a pura arte do corpo”,
disse. “Ninguém mais em todo o planeta conseguiu tanto no que se refere à
autopropulsão.” Eric havia ficado fascinado com a tribo desde que um atleta
treinado por ele para Leadville havia voltado com incríveis histórias sobre os
índios voadores, que pareciam flutuar em uma atmosfera druídica usando
sandálias e capas. Eric vasculhou bibliotecas em busca de livros sobre a tribo
mexicana, porém tudo o que achou foram textos antropológicos escritos nos
anos 1950 e um relato amador de um casal que viajou pelo México com seu
motorhome. Havia uma incrível lacuna na literatura esportiva: a corrida de
longa distância é um dos esportes com mais adeptos no mundo, mas
ninguém havia escrito nada sobre os maiores corredores do planeta.
“Todo mundo acha que sabe correr, mas é algo com tantos detalhes
como qualquer outra atividade”, explicou Eric. “Pergunte a maioria das
pessoas e elas vão dizer: ‘As pessoas correm cada uma do seu jeito’. Isso é
ridículo. Cada um nada do seu jeito, por acaso?” Para cada esporte é preciso
aprender os fundamentos – ninguém levanta e sai dando tacadas com o taco
de golfe, nem se aventura montanha abaixo sobre esquis sem antes ouvir
instruções de como deve fazer isso ou aquilo. Sem conhecimento, não dá
certo e os acidentes são inevitáveis.
“Com a corrida é a mesma coisa”, continuou. “Aprenda errado e nunca
saberá o quanto poderia ter sido bom nas pistas.” Ele me perguntou detalhes
sobre a corrida que eu havia visto na escola dos tarahumaras. (“A bolinha de
madeira”, ele refletiu. “O jeito como eles aprendem a correr jogando a
bolinha – aquilo não podia ser por acaso.”) E me fez uma proposta: ele me
prepararia para a corrida com os tarahumaras e eu o apresentaria a Caballo.
“Se a corrida acontecer, temos de estar lá”, afirmou. “Será a maior
ultramaratona de todos os tempos.”
“Mas eu não acredito que fui feito para correr oitenta quilômetros”,
argumentei.
“Todo mundo foi feito para correr”, corrigiu.
“Sempre que encaro uns quilômetros, saio todo quebrado.”
“Não vai acontecer dessa vez.”
“Você acha que devo recorrer à fisioterapia?”
“Esqueça isso.”
Eu tinha muitas dúvidas, mas a total confiança de Eric começava a me
contagiar. “Então é melhor perder alguns quilos para facilitar as coisas para
as minhas pernas.”
“Sua alimentação vai mudar por conta própria. Espere e você vai ver.”
“E quanto à ioga? Isso ajuda, não é?”
“Nada de ioga. Todos os corredores que resolvem fazer ioga saem
machucados.”
Estava ficando cada vez melhor. “Você realmente acha que eu
consigo?”
“Ouça bem. Sua margem de erro é zero, mas você consegue, sim”,
assegurou. Eu teria de esquecer tudo o que sabia sobre corridas e começar do
começo.
“Prepare-se para viajar no tempo”, ele continuou. “Você vai voltar às
origens.”
“Os tarahumaras não são grandes corredores”, disse Eric quando começamos
o nosso segundo mês de treinamentos. “Eles são gran-des atletas, o que é
bem diferente.” Os corredores são como operários de uma linha de
produção: especializam-se em uma tarefa – como correr a uma velocidade
constante – e repetem a operação até que o uso excessivo desgaste o
equipamento. Os atletas são como Tarzan: ele nada, luta, salta e percorre a
selva pendurado em cipós. É forte e cheio de energia. Ninguém sabe o que
Tarzan vai fazer em seguida, e é por isso que ele nunca se machuca.
“O corpo humano precisa de choques para ganhar resiliência”, explicou
Eric. Siga a mesma rotina todos os dia e seu sistema músculo-esquelético
rapidamente irá descobrir como se adaptar, entrando numa espécie de piloto
automático. Mas, se você o surpreender com novos desafios, como saltar
sobre um riacho, rastejar no chão ou correr até os pulmões quase
explodirem, diversos nervos e músculos terão de entrar em ação.
No caso dos tarahumaras, a vida cotidiana é assim. Eles pisam no
desconhecido cada vez que saem das cavernas, porque nunca sabem qual
velocidade terão de atingir para capturar um coelho, quanto peso terão de
carregar para levar lenha para casa, qual a dificuldade de escalar pedras
embaixo de uma tempestade de inverno. O primeiro desafio que encaram
quando crianças é sobreviver morando à beira do abismo: sua primeira e
duradoura diversão é o jogo com bola, que nada mais é do que um exercício
de incertezas. Não dá para jogar uma bola de madeira sobre um terreno
rochoso se você não souber parar, pular, correr e saltar obstáculos.
Antes de correr por longas distâncias, os tarahumaras ganham força. E
Eric me avisou que, se eu quisesse uma vida saudável, era melhor imitá-los.
Assim, em vez de alongar o corpo antes de uma corrida, eu tinha de fazer a
minha parte, o que incluía flexões e exercícios de cócoras. Dia sim, dia não,
Eric me orientava durante meia hora de atividades voltadas para o
fortalecimento, quase todas usando uma bola destinada a melhorar o meu
equilíbrio e ativar os músculos inativos. Quando eu terminava, era hora de ir
para as colinas. “Não há como enfrentar uma colina sem se esforçar”,
defendia o treinador. As subidas eram um exercício de choque e espanto, o
que me obrigava a concentrar na forma e a acertar a “embreagem” como um
ciclista na Volta da França. “As colinas são treinos de velocidade
disfarçados”, costumava dizer Frank Shorter.
Por volta das cinco horas da manhã, Mamá Tita já havia arrumado as
panquecas e o pinole quente sobre a mesa. Para essa refeição que antecedia a
corrida, Arnulfo e Silvino pediram que preparasse também pozole – um rico
caldo de carne com tomates e grãos de milho – e Tita, rápida como um
pássaro, apesar de ter dormido apenas três horas, aprontou o prato. Silvino
apareceu com um figurino especial para a corrida: uma linda túnica azul-
turquesa e uma saia zapete, com flores bordadas na bainha. “¡Guapo!”,
falou Caballo admirado, elogiando o visual.
Silvino abaixou a cabeça e comeu com vontade. Caballo andava pelo
quintal tomando café. Parecia incomodado. Ele passou a noite acordado,
planejando uma rota alternativa, depois de ter ouvido falar que alguns
plantadores da região pretendiam levar o gado por uma das trilhas. Quando
ele levantou e apareceu para o café da manhã, soube que o pai de Luis já
havia resolvido a situação junto com o velho Bob, o gringo companheiro de
Caballo nas andanças que vivia em Batopilas. Eles haviam encontrado
alguns vaqueros na tarde anterior, enquanto tiravam fotos da região, e
avisaram sobre a corrida. Agora, sem essa preocupação, Caballo procurava
outra. E não precisou se esforçar muito.
“Onde estão os garotos?”, perguntou.
Nenhuma resposta.
“É melhor eu ir ver”, ele disse. “Não quero que se matem sem tomar
café da manhã outra vez.”
Quando Caballo e eu saímos, ficamos surpresos ao ver que a cidade
estava ali, esperando para nos saudar. Enquanto estávamos dentro do
restaurante tomando café, os moradores haviam arrumado guirlandas de
flores e bandeirinhas de papel para enfeitar a rua, e uma banda de mariachis
com sombreros e roupas típicas começava a entoar músicas animadas.
Mulheres e crianças já dançavam pela rua, e o prefeito mirava em algum
lugar no céu, achando um jeito de disparar a arma sem acertar a decoração.
Olhei para o relógio e senti um aperto no peito: faltava meia hora para o
começo da prova. Como Caballo havia previsto, o percurso de 56
quilômetros até Urique já havia me deixado em frangalhos e, em trinta
minutos, eu faria tudo de novo e outros 24 quilômetros adicionais. Caballo
tinha caprichado na escolha do trajeto: iríamos subir e descer duzentos
metros em oitenta quilômetros, exatamente a mesma altitude vencida na
primeira metade da prova de Leadville. Caballo não era um admirador dos
organizadores dessa competição, mas, no que se refere à seleção de percurso,
não ficava nem um pouco atrás.
Caballo e eu subimos a colina até o pequeno hotel. Jenn e Billy ainda
estavam no quarto, discutindo se Billy deveria ou não levar uma garrafa de
água extra – que, por acaso, ele não sabia onde estava. Como eu tinha uma
de reserva que usava para levar café, corri até meu quarto, joguei o líquido
fora e dei a garrafa para o rapaz.
“Agora comam alguma coisa! E rápido!”, mandou Caballo. “O prefeito
vai disparar a largada às sete em ponto.”
Caballo e eu pegamos nossas coisas – um kit de hidratação com géis de
carboidrato e barras de cerais para mim, uma garrafa de água e um pouco de
pinole para ele – e voltamos pela colina. Ainda tínhamos quinze minutos.
Fomos até o restaurante de Tita e vimos que a animação de rua tinha virado
um minicarnaval. Luis e Ted dançavam com as senhoras mais velhas e
tentavam afastar o pai de Luis, que queria entrar na dança. Scott e Bob
Francis batiam palmas e cantavam com os mariachis. Os tarahumaras de
Urique trouxeram o seu próprio grupo de percussão, que marcava o tempo
na calçada com os bastões de madeira, chamados de palia.
Caballo estava encantado. Entrou na multidão e começou a imitar
Muhammad Ali, dando socos no ar. A plateia adorava e Mamá Tita mandava
beijos.
“¡Ándale! Vamos dançar o dia todo!”, Caballo berrou, com as mãos
diante da boca, formando um megafone. “Mas só se ninguém morrer. Aqui é
preciso tomar cuidado!” Ele se virou para os mariachis e fez um gesto para
que parassem. Chega de música. O show vai começar.
Caballo e o prefeito começaram a espantar quem estava dançando na
rua e a chamar os corredores para a linha de largada. Nós nos juntamos,
formando um emaranhado de rostos, corpos e roupas de todos os tipos. Os
tarahumaras de Urique vestiam shorts e tênis de corrida, mas também
levavam seus palias. Scott tirou a camiseta. Arnulfo e Silvino, vestidos com
trajes vistosos que haviam comprado especialmente para a corrida,
acomodavam-se perto de Scott – os “caçadores de cervo” não perderiam El
Venado de vista nem por um segundo. Em uma espécie de acordo tácito, nos
ajeitamos atrás de uma linha invisível no asfalto em mau estado e ficamos
atrás dela.
Meu peito estava rígido. Eric deu um jeito de se aproximar e disse:
“Olha, tenho más notícias para você. Você não vai vencer. Não importa o
que faça, vai passar o dia nisso. O melhor, então, é relaxar, seguir seu ritmo e
aproveitar. Tenha isto em mente: se parecer que está custando esforço, você
está se exigindo demais”.
“Mas posso esperar que eles tirem uma soneca e fazer a minha jogada”,
disse.
“Sem jogadas!”, avisou Eric. Ele não queria que aquela ideia passasse
pela minha cabeça nem de brincadeira. “Sua tarefa é voltar para casa
caminhando sobre os dois pés.”
Mamá Tita se aproximou de cada corredor, olhando nos olhos enquanto
apertava as nossas mãos. “Ten cuidado, cariño”, orientava.
“¡Diez!... ¡Nueve!...”
O prefeito tinha a ajuda da plateia na contagem regressiva.
“¡Ocho!... ¡Siete!...”
“Onde estão os garotos?”, berrou Caballo.
Olhei ao redor. Nenhum sinal de Jenn e Billy.
“Faça ele parar!”, gritei em resposta.
Caballo recusou com a cabeça e se arrumou para a posição de largada.
Tinha esperado anos e arriscado a sua vida por este momento – não iria
postergá-lo por ninguém no mundo.
“Brujita!”, apontavam alguns guardas que estavam atrás de nós.
Jenn e Billy chegaram correndo pela colina quando a população já
estava no cuatro. Billy vestia calças de surfista e estava sem camisa,
enquanto Jenn apareceu com shorts pretos de lycra e um top de corrida da
mesma cor, com os cabelos presos em dois rabos laterais, como Pippi
Meialonga. Distraída com seu fã-clube militar, Jenn jogou a mochila com
comida e meias reservas para o lado errado da rua, espantando os presentes,
que se abriram conforme a mochila sumiu. Saí correndo atrás, peguei a
mochila e passei ao pessoal de apoio bem na hora que o prefeito apertou o
gatilho.
Bum!
Scott pulou e deu seu grito, Jenn urrou e Caballo berrou. Os
tarahumaras se limitaram a correr. A equipe de Urique partiu em bando,
desaparecendo na trilha de terra no meio das sombras pré-amanhecer.
Caballo havia avisado que os tarahumaras pegariam pesado, mas aquilo era
demais. Scott veio logo atrás, com Arnulfo e Silvino em seus calcanhares.
Eu corria devagar, deixando a multidão passar, até ficar em último lugar.
Seria legal ter companhia, porém, naquele momento da corrida, eu me sentia
mais seguro sozinho. O pior erro que poderia cometer seria atrapalhar o
ritmo de alguém.
Os primeiros três quilômetros eram um trecho plano na saída da cidade,
numa trilha de terra que levava até o rio. Os tarahumaras de Urique foram os
primeiros a chegar na água, mas, em vez de entrar e seguir em frente para
uma travessia de 46 metros em águas rasas, pararam de repente e começaram
a vasculhar a margem, olhando as rochas bem de perto.
Mas que diabos...?, perguntava-se Bob Francis, que havia saído na
frente com o pai de Luis para fazer fotos de um ponto do outro lado do rio.
Ele viu quando os tarahumaras de Urique pegaram as sacolas plásticas que
tinham escondido entre as pedras na noite anterior. Com os bastões de
madeira embaixo do braço, colocaram os pés dentro das sacolas, amarraram
e começaram a cruzar o rio, demonstrando o que acontece quando a nova
tecnologia substitui algo que funcionou bem por 10 mil anos: com medo de
molhar os preciosos tênis ganhos do Exército da Salvação, eles atravessaram
o leito com um equipamento totalmente caseiro.
“Deus do céu! Nunca vi nada igual”, disse Bob.
Os tarahumaras de Urique ainda estavam passando as rochas
escorregadias quando Scott chegou na beira do rio. Entrou direto na água,
Arnulfo e Silvino vindo logo atrás. Os tarahumaras pisaram no outro lado da
margem, tiraram os sacos plásticos dos pés e os guardaram dentro dos shorts
para usar novamente em outra ocasião. Começaram a subir a íngreme duna,
com Scott bem perto e areia voando para todos os lados. Quando os
tarahumaras de Urique chegaram na trilha de terra que levava ao alto da
montanha, Scott e os Quimare estavam juntos.
Enquanto isso, Jenn começava a ter problemas. Ela, Billy e Luis haviam
atravessado o rio junto com os demais tarahumaras, mas, quando chegaram
na duna, a mão esquerda da corredora a incomodava. Os ultracorredores
costumam prender garrafas de água com alças e tiras nas mãos, para facilitar
o uso. Jenn havia dado a Billy uma de suas garrafas e improvisado uma
segunda para si mesma: prendeu uma garrafa de água mineral com uma faixa
ao redor da mão. Ao abrir caminho pela duna, a invenção caseira se revelou
incômoda. Era um problema pequeno, porém ela teria de conviver com ele
por todos os minutos das próximas oito horas. Jenn deveria manter aquilo?
Ou seria melhor se arriscar a correr pelo desfiladeiro levando uma
quantidade insuficiente de água?
Jenn tentou ajeitar a faixa. Ela sabia que a única esperança na
competição com os tarahumaras seria ir com tudo. Se ela arriscasse e fosse
firme, beleza. Mas, se perdesse uma corrida como aquela porque apostara na
segurança, não se perdoaria nunca. Jenn se livrou da garrafa e imediamente
se sentiu melhor – mais ousada até, o que a levou à proxima decisão
importante. Eles estavam no meio do primeiro “moedor de carne”: uma
colina íngreme de cinco quilômetros e com pouca sombra. Quando o sol
apertasse, ela teria menos chances de se aproximar dos tarahumaras
“comedores de sol”.
“Droga!”, pensou alto Jenn. Vou aproveitar para ir agora enquanto
ainda está fresco. Depois de poucos passos, ela se afastava do grupo. “Até
mais tarde, colegas”, disse ao passar.
Os tarahumaras deram início à caçada. Dois veteranos, Sebastiano e
Herbolisto, passaram na frente dela, enquanto outros três a cercaram. Jenn
achou uma brecha e saiu correndo, ganhando distância. Na mesma hora, os
tarahumaras voltaram a tentar cercá-la. Amantes da paz na vida cotidiana,
aquela tribo não estava para brincadeiras na hora da competição.
“Eu odeio dizer isso, mas Jenn não vai aguentar”, disse Luis para Billy
quando os dois a viram escapar pela terceira vez. Eles haviam percorrido
apenas cinco dos oitenta quilômetros da prova, e ela já estava disputando
centímetro por centímetro com um grupo de cinco tarahumaras. “Ninguém
corre desse jeito se quiser terminar a prova.”
“Ela sempre consegue dar um jeito”, garantiu Billy.
“Acho que não desta vez”, retrucou Luis. “Não contra esses caras.”
Graças à engenhosidade do planejamento de Caballo, todos nós
poderíamos assistir àquela disputa em tempo real. Ele havia armado um
trajeto em formato de Y, com a linha de largada bem no meio. Dessa
maneira, os moradores poderiam ver a corrida várias vezes, nas diversas idas
e vindas dos participantes, e cada competidor poderia saber qual distância o
separava dos líderes da prova. Esse desenho também apresentava outra
vantagem inesperada: naquele exato momento, Caballo tinha vários motivos
para suspeitar dos tarahumaras de Urique.
Caballo estava quatrocentos metros atrás – assim, tinha uma visão
perfeita de Scott e dos “caçadores de cervo” conforme eles reduziam a
distância em relação ao grupo de Urique na colina, do outro lado do rio.
Quando viu que eles vinham em sua direção depois de fazer a primeira meia-
volta, ficou impressionado: em um trecho de apenas seis quilômetros, o
grupo de Urique havia aberto uma vantagem de quatro minutos. Aqueles
nativos, além de deixar para trás os dois melhores corredores da etnia,
também tinham superado o maior destaque na subida de montanhas de toda a
história das ultramaratonas no Ocidente.
“Não, não pode ser. Droga!”, resmungou Caballo, que corria em um
grupo com Barefoot Ted, Eric e Manuel Luna. Quando chegaram no ponto
de meia-volta da milha de número 5 (quilômetro 8) na pequena aldeia
tarahumara de Guadalupe Coronado, Caballo e Manuel começaram a fazer
perguntas a alguns índios que assistiam à prova. Não demorou muito para
descobrirem o que havia acontecido: os tarahumaras de Urique estavam
seguindo trilhas secundárias e cortando caminho. Mais do que raiva, Caballo
sentiu um pouco de pena. Os corredores de Urique perderam a antiga forma
de correr e sua confiança também, concluiu. Eles não eram mais o povo
corredor: apenas tentavam desesperadamente não fazer feio perto das
sombras do que foram no passado.
Caballo perdoou o grupo como amigo, mas não na condição de diretor
da prova. E anunciou: a equipe de Urique estava desclassificada.
“Apenas termine a prova”, eu dizia para mim mesmo. “Nada mais. Basta
terminar a prova.”
Antes de encarar a subida para Los Alisos, parei para tentar me
controlar. Enfiei a cabeça na água do rio e a deixei ali por uns instantes,
desejando que aquilo me esfriasse e o fluxo de oxigênio me colocasse de
volta na realidade. Eu havia acabado de chegar na metade do trajeto e levado
cerca de quatro horas. Quatro horas, para uma maratona em terreno difícil,
sob o calor do deserto! Eu estava adiantado, começava a me sentir
competitivo. Como deve estar a situação de Barefoot Ted? Ele pode ter se
machucado nestas pedras. E Porfilio parecia estar com dificuldades....
Felizmente, o contato com a água havia ajudado. Descobri
o motivo por que eu me sentia bem mais forte aquele dia do que em
todo o trajeto de Batopilas: estava correndo como os bosquímanos do
Kalahari. Eu não tentava ultrapassar o antílope, e sim mantê-lo à vista. O que
havia me matado durante o percurso de Batopilas era tentar acompanhar o
ritmo de Caballo e dos outros. Agora, a minha luta era contra a corrida, e não
contra os corredores.
Antes que a ambição aumentasse demais, era hora de tentar outra tática
dos bosquímanos: fazer uma avaliação cuidadosa da situação. Nesse
momento, percebi que a minha situação era pior do que eu achava. Estava
com sede, com fome e com menos de meia garrafa de água. Eu não havia
urinado em mais de uma hora, o que não era bom sinal considerando a
quantidade de água que estava tomando. Se não me reidratasse logo, e
mandasse algumas calorias para o estômago, teria sérios problemas para
enfrentar a montanha-russa que era aquela sequência de colinas. Quando
cheguei no rio, enchi a minha garrafa com água e joguei dentro algumas
pílulas de iodo. Esperei meia hora para purificar, enquanto bebi o restante de
minha água limpa e comi uma ProBar – barra de cereais com uvas-passas,
tâmara, aveia e até arroz integral.
Boa medida. “Melhor se precaver”, avisou Eric ao passar por mim no
outro lado do rio. “Lá em cima é pior do que você se lembra.” Eric admitiu
que as colinas eram tão duras que ele chegou a pensar em desistir. Uma
notícia ruim como essa poderia parecer um soco no estômago, porém Eric
acreditava que a pior coisa que se pode dar a um corredor é falsa esperança.
O que deixa um competidor tenso é o inesperado, mas, se ele sabe o que o
espera, pode relaxar e se concentrar no esforço.
Eric não exagerou. Por mais de uma hora eu subi e desci as colinas,
convencido de que estava perdido e iria desaparecer no meio do nada. Só
havia uma trilha e eu estava nela – mas onde diabos estava o pomar de
toranjas de Los Alisos? Era para estar a apenas uns seis quilômetros do rio,
porém eu tinha a impressão de ter corrido dezesseis quilômetros e não via
nada. Finalmente, quando as minhas coxas ardiam e quase não me
obedeciam mais, a ponto de eu suspeitar que iria entrar em colapso, vi
alguns pés de toranja numa colina lá na frente. Subi e voltei a descer rumo a
um grupo de tarahumaras de Urique. Eles tinham ficado sabendo da
desclassificação e decidiram descansar na sombra antes de caminhar de volta
à cidade.
“No hay problema”, um deles me disse. “Eu estava cansado demais
para continuar na prova.” E me passou um velho pote de alumínio. Avancei
no recipiente coletivo de pinole, sem me preocupar com o risco de giardíase.
Estava refrescante e deliciosamente granulado. Engoli um bocado, depois
outro, e olhei para o percurso que havia acabado de fazer. Lá longe, o rio era
um risquinho sumindo na paisagem. Eu não conseguia acreditar que havia
corrido tudo aquilo. Ou que ia fazer tudo isso de novo.
“Você tem de ouvir isso”, disse Barefoot Ted, pegando-me pelo braço.
Droga. O sujeito me achou quando eu estava tentando escapar da
loucura que havia se transformado aquela festa na rua e ir mancando até o
hotel, para cair de exaustão. Eu já tinha ouvido todos os comentários pós-
corrida de Ted, inclusive as suas observações sobre os altos teores de
nutrientes presentes na urina humana e a incrível capacidade desse líquido
como branqueador dental. Nada do que ele falasse poderia ser mais tentador
que me esticar para dormir num sofá-cama. Mas não era Ted o autor dos
relatos desta vez: era Caballo.
Barefoot Ted me levou de volta para o quintal de Mamá Tita, onde
Caballo entretia Scott, Billy e mais alguns ouvintes fascinados. “Vocês
nunca acordaram numa sala de emergência”, dizia, “e se perguntaram se
queriam mesmo acordar?” Com isso, ele anunciou uma história que eu havia
esperado quase dois anos para ouvir. Não precisei de muito tempo para
entender por que ele havia escolhido aquele momento. No amanhecer
seguinte, cada um seguiria seu caminho para casa. Caballo não queria que
esquecêssemos o que havíamos partilhado e, por isso, pela primeira vez, ele
revelou quem era.
Seu nome de batismo era Michael Randall Hickman. O pai era sargento da
artilharia no Corpo de Fuzileiros Navais e, por causa de sua ocupação, com
frequência a família mudava de endereço na Costa Oeste norte-americana.
Como um errante magrelo que sempre precisava se defender ao chegar numa
escola nova, o jovem Mike tinha como prioridade máxima descobrir onde
funcionava a Associação Atlética da Polícia mais perto da nova casa e se
matricular nas aulas de boxe.
Os garotos musculosos sorriam e batiam as luvas ao ver o esquisitão
com cabelos de hippie se dirigir ao ringue, mas os sorrisos sumiam assim
que o longo braço esquerdo do recém-chegado começava a estalar diante de
seus olhos. Mike Hickman era um garoto sensível e detestava machucar os
outros, porém isso não o impediu de se tornar muito bom naquilo. “Os meus
preferidos eram os sujeitos grandes e musculosos, porque eles perdiam para
mim”, lembra Caballo. “Mas, na primeira vez em que eu derrubei um,
comecei a chorar. Por um tempão, depois disso, não quis derrubar ninguém.”
Depois de terminar os estudos, Mike seguiu para a Universidade do
Condado de Humboldt, na Califórnia, com o objetivo de estudar religiões
orientais e a história dos nativos norte-americanos. Para pagar a
universidade, ele começou a lutar em lugares desconhecidos, apresentando-
se como Gypsy Cowboy, “caubói cigano”. Como não tinha medo de se
exibir em ginásios que raramente viam um rosto de pele branca, muito
menos um sujeito vegetariano que ficava defendendo a paz no mundo e os
sucos orgânicos, logo Cowboy estava fazendo certo sucesso.
Conquistou a atenção de empresários mexicanos, que adoravam chamá-
lo de lado para fazer propostas de carreira:“Oye, compay. Vamos começar
um chisme, espalhar um boato de que você é um amador de alto nível vindo
dos rincões do leste. Os gringos vão adorar. Todos os gabachos dali vão
apostar até os filhos em sua vitória”.
Gypsy Cowboy não se importava: “Para mim, está ótimo”.
“Dê um jeito de não ser derrubado antes do quarto round”, avisavam –
ou terceiro, ou sétimo, seja lá qual fosse o round combinado. Cowboy
conseguia se garantir contra os enormes pesos-pesados apenas escapando
dos golpes até chegar a hora de atingir a lona, mas, quando os adversários
eram ágeis latinos de peso médio, ele tinha de lutar para salvar a vida.
“Algumas vezes eles tinham de me tirar sangrando de lá”, revelou.
Mesmo depois de terminar o curso, ele continuou lutando. “Viajei o
país todo lutando, tomando socos, dando outros, às vezes perdendo, às vezes
ganhando. Mas, basicamente, o que eu fazia era apresentar um bom show e
aprender como lutar sem sair lascado.”
Depois de anos sobrevivendo no submundo das lutas, Cowboy juntou
suas economias e partiu para Maui, no Havaí. Ali, fugiu dos resorts e rumou
para o leste, para a parte úmida e escura da ilha, onde ficavam os santuários
escondidos de Hana. Ele queria achar um sentido para a sua vida. Acabou
encontrando Smitty, um eremita que vivia numa caverna isolada. Smitty
levou Mike a uma caverna e começou a lhe mostrar os locais sagrados e
desconhecidos de Maui.
“Smitty foi o cara que me apresentou a arte de correr”, contou Caballo.
Às vezes, eles saíam no meio da noite para correr os 32 quilômetros da trilha
Kaupo até a Casa do Sol, no topo do monte Haleakala, a 3 mil metros de
altitude. Ficavam ali, quietos, enquanto os primeiros raios da manhã
inundavam o Pacífico, e aí voltavam correndo, alimentando-se apenas de
mamões que colhiam dos pés. Aos poucos, o briguento Mike Hickman
desapareceu. Estava nascendo Micah True, um nome inspirado no “espírito
destemido e corajoso” do fiel profeta do Antigo Testamento, Micaías, e
também na lealdade de um velho vira-latas chamado True Dog. “Nem
sempre vivi de acordo com o exemplo de True Dog, porém é algo que pode
servir como objetivo.”
Durante uma de suas corridas pela floresta em busca de inspiração, o
então renascido Micah True encontrou uma linda moça de Seattle que estava
passando férias ali. Eles não podiam ser mais diferentes – Melinda era uma
estudante de psicologia, filha de um rico investidor, enquanto Micah
praticamente era um homem das cavernas –, mas os dois se apaixonaram.
Depois de um ano no meio do nada, Micah resolveu que era a hora de voltar
para o mundo.