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TERCEIRA JORNADA

GRUDAR O ESPECTADOR NA POLTRONA: A "SITUAÇÃO"

Há um ensaio de Sartre, infelizmente sem tradução em italiano,


intitulado Teatro popular, teatro de situação. Em teatro, o que significa
"situação"? Significa a estrutura básica que permite fazer evoluir a trama
narrativa, envolvendo o público por meio da tensão resultante e que o toma
participante das reviravoltas do espetáculo. Não fui muito claro? Será que
sofismei um pouco? Vocês entenderão melhor, possivelmente, se eu disser
que situação é o mecanismo existente na narrativa pelo qual o espectador é
capturado e grudado à poltrona. Com uma definição mais crua, mas bastan­
te eficaz, Blasetti dizia: "É o parafuso que sai do assento e atarraxa o
espectador pelo traseiro". Em Hamlet existem, no mínimo, quinze situa­
ções, uma sucedendo a outra. A seguir, vamos ver algumas delas.
A primeira situação: o espectro surge e, com voz de arroto profun­
do, começa a inquirir Hamlet, gritando-lhe: "Sou o espírito do seu pai
puto da vida. Fui assassinado! E pasme, foi o seu tio. Que, além disso,
surrupiou-me a esposa". É possível acreditarmos em tal homem? Sabe­
mos que os mortos eventualmente endoidecem. De qualquer maneira,
Hamlet decide investigar. Outra situação: o irmão de Ofélia - a jovem
apaixonada por Hamlet - está partindo. Vai estudar ein Paris. Durante a
situação de despedida, Polonius, o pai de Ofélia, expõe a situação geral da
tragédia: ficamos sabendo então acerca da situação que envolve a ligação
sentimental entre o jovem príncipe e Ofélia. Porém, logo em seguida, é­
nos apresentada outra situação: Hamlet pede para que um grupo de come­
diantes represente a história de um crime similar diante do seu tio-rei. Ele
quer tentar, por intermédio desses atores, criar uma situação de tensão
"psicodramática", que poderá fazer explodir a tampa do crânio do assas­
sino. O fratricida, possivelmente, não irá resistir a tamanho maquiavelismo.
Nova situação: o tio desconfia firmemente que Hamlet está sus­
peitando dele. Por sua vez, Hamlet percebe isso e, para não se expor,
finge estar louco. Interpreta o papel do demente devaneante. Assim,
implica com a mãe, trata Ofélia a chutes e pontapés, a qual por sua vez
- outra situação de ligação - começa a agir como louca, porém de
verdade. Realmente, Ofélia é a única que não consegue entender em que
diabo de situação está metida. E assim a trama vai evoluindo, num cres­
cendo diabólico: cadáveres, reviravoltas de direção e situações e, como
desfecho, o massacre da última cena, que é o ponto agudo de convergên­
cia de todas as coordenadas e de todas as mudanças de situações, mo­
mento de liberação da catarse final.
Assisti à apresentação dessa tragédia por uma companhia de pés­
rapados. Apesar disso, como confirmação da genialidade dessa máquina
de situações que é o Hamlet, testemunho que permaneci firmemente
enganchado à história. Mesmo conhecendo o texto de cor, eu era enlaça­
do pelas situações, que me permitiam superar o incômodo causado pela
algazarra amadorística.

JULIETA, A LOUCA!

Se não houvesse uma situação básica em Romeu e Julieta, os monó­


logos e os diálogos dos dois amantes não fariam o menor sentido. Por
exemplo, quando Julieta em seu monólogo diz: "Oh, Romeu, por que és tu
Romeu? Muda o teu nome. O que é Romeu? É um braço, uma parte de ti,
um pé, uma mão?". Eis aí, se uma jovem qualquer, alguém de quem nada
sabemos, falasse esses versos... imaginem, a cortina se abre, uma jovem

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atriz surge, debruça-se no balcão e começa: "Oh, Romeu, Romeu, por que
és tu Romeu? Muda o teu nome". Os espectadores vão se olhar entre si,
embasbacados: "Tá maluca?". Mas devido à situação que nos foi proposta
anteriormente pelo autor... o conflito familiar... aqueles versos nos parecem
poéticos, nos sensibilizam. São dois seres apaixonados impedidos de se
unirem por causa das respectiva's famílias, as quais encontram-se em pé de
guerra - um primo de Julieta foi morto há pouco justamente por Romeu, e
também Mercúcio, amigo fraternal de Romeu, foi traspassado. A partir de
tudo isso, gera-se uma tremenda confusão, com armadilhas, equívocos, sub­
terfúgios, etc., enfim, todo um jogo de situações que determina o sentido e
o significado dos diálogos, ressaltando o jogo teatral e a moral.
Retomando uma outra frase de Sartre, direi que "sem situações,
inexiste teatro". Agora, vamos analisar algumas tragédias gregas. Medéia
sustenta-se sobre uma seqüência incrível de situações: ela abandona o
pai por amor ao argonauta, o trai, mata o irmão, casa-se com Jasão -
ladrão de velocinos de ouro - , que, por sua vez, abandona-a por uma
outra mulher, Creúsa. Humilhada, Medéia vinga-se. Elimina a nova
amante, queima vivo o pai de Creúsa e, não suficientemente satisfeita,
degola os próprios filhos. Do mesmo modo, em Filoctetes há uma con­
tínua sucessão de situações: uma serpente canalha pica Filoctetes na
perna, que gangrena. Ele é abandonado em uma ilha, Ulisses surrupia­
lhe o arco, o filho de Aquiles entra em crise. O mesmo raciocínio é
válido para todas as outras tragédias, desde Fedra até as Troianas. No
teatro cômico romano encontramos inclusive um número excessivo de
situações: duplicidade e troca de identidade, disfarces, transvestimentos,
mudanças de papéis, equívocos, paradoxos, reviravoltas ... Evidentemente,
todas situações que são elementos estruturais da comédia ...

COM EDUARDO,* ATROPELADOS POR UM CARRO

Quando falamos de um texto ou de um espetáculo, a primeira


coisa a que nos referimos é a situação. Certa vez, encontrava-me em

* Eduardo de Filippo, autor, diretor e ator italiano. (N. T.)

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Trieste e passeava pela cidade com Eduardo. Em um certo momento,
estávamos tão excitados em contar, um ao outro, histórias de teatro que,
por um triz, não fomos atropelados por um carro. A história do teatro
italiano teria se enriquecido de uma situação esplêndida. Porém, com
um salto agilíssimo, nos desviamos do carro. Dirigindo-se ao motorista
do automóvel, obcecado em ceifar a vida de homens de teatro, Eduardo
exclamou: "Ei! Você está atrás do grande golpe?".
Vocês têm idéia do motivo de nossa desorientação? É porque nós
nos recordávamos de uma das mais belas situações do teatro napolitano.
Alguns de vocês já devem ter ouvido falar da "cantata dos pastores", um
gênero de espetáculo que se desenvolveu na segunda metade do século
XVII, derivado da Commedia deli' Arte e do teatro popular. A situação­
chave é aquela em que os diabos procuram fazer cair em suas armadi­
lhas a Nossa Senhora e os santos. Os personagens motores do espetácu­
lo, porém, são dois imorais, dois vagabundos picarescos, Razzullo e
Sarchiapone. Uma dupla de mort 'e famme* que se enredam em todo
gênero de rolos para sobreviver. Fingindo-se de carregadores, oferecem
ajuda para uma camponesa transportar cestas cheias de alimentos até o
mercado, onde as comercializaria. No meio do caminho, tentam roubar
toda carga, sendo perseguidos e alcançados pelo marido da mulher, que
deseja enchê-los de bordoadas. Nunca conseguem se dar bem.
Posteriormente, ocupados em revirar um latão de lixo próximo de
uma taverna, representam uma refeição "pantagruélica". Roem espinhas
de peixe, enumeram os sabores deliciosos de todos aqueles restos, insul­
tam o cozinheiro já que ele não preparou algo com suficiente esmero e
sabedoria, discutem as várias técnicas da cozinha refinada. Mais tarde,
quando estão passeando pelo Vomero deparam-se com a chegada de
uma mulher. É a Nossa Senhora - personagem fixo nas cantatas dos
pastores - vestida como a Virgem de Pompéia. Na tradição popular, esta
é a verdadeira Nossa Senhora: adornada com cascatas de colares e jóias,
penduricalhos, ex-votos e notas pregadas na roupa com alfinetes. Ela
movimenta-se com sensível embaraço, como se estivesse longe de seu
hábitat Ao esbarrar com Razzullo e Sarchiapone, diz: "Perdão, mas

* Expressão em dialeto napolitano; traduz-se por: mortos de fome. (N. T.)

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como eu faço para ir à Palestina?". Os dois imorais se entreolham: onde
fica a Palestina? E, equivocadamente, pensam que se situa do outro lado
da baía de Nápoles. Oferecem-se para ajudá-la: "Nós podemos levá-la,
bela senhora...". Roubam um barco e põem a Nossa Senhora dentro dele.
Quando estão no meio da baía, o vento refresca, o mar começa a engros­
sar, há uma tempestade em formação. Sem saber remar, apesar de terem
se fingido de pescadores, quase viram o barco. O vento toma-se mais
forte, as ondas ficam assustadoras. Razzullo e Sarchiapone, aterroriza­
dos, põem-se de joelhos e começam a rezar à Nossa Senhora. Ela está aí,
mas eles a invocam dando-lhe as costas: "Nossa Senhora santíssima,
ajude-nos!". Ela comove-se com as súplicas daqueles charlatões e reali­
za um milagre. Isso é fichinha para ela... nada mais do que estender o
seu véu, que se infla instantaneamente, elevando o barco e fazendo-o
escorregar pelo ar, sobrevoando as ondas... "Nossa Senhora santíssima,
obrigada por este belíssimo milagre". Não passa pela cabeça de nenhum
dos dois que aquela "forasteira" possa ser a própria Nossa Senhora. Em
seguida, os três ainda permanecem no barco, mas em um mar liso, em
plena bonança.
Porém, eis que no horizonte surge um barco com muitas velas. É
uma embarcação de piratas, que logo os capturam. Os dois vagabundos
tentam negociar pela Nossa Senhora: "É nossa, de nossa propriedade,
nós podemos vendê-la a vocês. Dêem-nos uma porcentagem sobre o seu
resgate e também nos deixem salva a vida". Ao invés disso, os piratas
afeiçoam-se pela Nossa Senhora, encantados com a sua doçura - no
mínimo - desarmante, decidindo cortar a cabeça dos dois homens. Eles
são forçados a ficar de quatro, com a cabeça inclinada. Logo, eles cla­
mam: "Oh, Nossa Senhora, ajude-nos, santíssima virgem!". Em vão.
Trac ! A machadinha cai, as cabeças saem rolando. Ambos, embora deca­
pitados, correm atrás das respectivas cabeças, pegam-nas e as ajeitam
sobre o pescoço. Só que se enganam: um colocou a cabeça do outro.
Razzullo, barrigudo, está com uma cabeça magra e minúscula, enquanto
Sarchiapone ostenta uma cabeça rechonchuda e exagerada sobre um
corpo delgado e definhado.
Os dois imorais e a Nossa Senhora finalmente chegam à Palestina,
onde se separam: "Bom dia, senhora, até logo e obrigado". Razzullo e

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Sarchiapone perambulam à procura de alguém para engabelar. Escutam
que há um estábulo onde nasceu um redentor. Avistam uma infinidade de
pessoas dirigindo-se até lá. Todos levam oferendas para depositar aos pés
da sagrada família. Os dois entreolham-se e exclamam em uníssono: "O
quê...!? Só se formos dois idiotas para não aproveitar a situação. Existe
um estábulo abandonado um pouco mais adiante; vamos criar um presé­
pio por nossa própria conta". "Certo - galhofa Razzullo -, eu faço o papel
da mãe e você faz o pai do redentor... e vamos dizer que ele nasceu aqui."
Um deles se caracteriza de mulher, o outro se disfarça de José, com barba
postiça e todo o resto. Roubam uma ovelha, enrolando-a em um retalho de
tecido cortado em faixas. Colocam-na em um berço e põem-se de joelhos
para rezar. Aos pastores que passam, gritam descaradamente: "Somos nós
os redentores! Ei! Venham, o presépio é aqui!". Alguns caem na conversa
fiada e deixam sua oferenda. Porém, acontece o imprevisto: o estábulo é
invadido por guardas armados. São os soldados de Herodes, que recebe­
ram a ordem de cortar a cabeça do menino santo. Dirigem-se até o berço,
tiram a ovelha embrulhada e - zás! - cortam-lhe a cabeça. Partem satisfei­
tos. Os dois imorais, ainda disfarçados, desatam a chorar, gritando: "O
nosso patrimônio... Olha só o que estes esbirros bastardos fizeram... rou­
baram até mesmo os cestos com as oferendas!". Naquele mesmo instante,
diante do estábulo, passam a Nossa Senhora, José, o menino e o burro.
Estão em fuga para o Egito. A dupla dirige a palavra à Nossa Senhora:
"Por favor, senhora, nos ajude. Se soubesse da desgraça que nos aconte­
ceu!". Nem agora eles a reconhecem. A Nossa Senhora comove-se com a
história de Razzullo e Sarchiapone, deixando-lhes a maior parte das
oferendas carregadas no burro. "Que boa senhora! Quem será ela? Esque­
cemos de perguntar. Em todo caso, rezaremos para ela uma oração à
Nossa Senhora." Como dois cegos, em todo o desenrolar da história, nun­
ca se aperceberam do prodígio que estavam vivendo.

TRÊS MÍMICOS CEGOS

Espero que até aqui, ao contrário de Razzullo e Sarchiapone,


nenhum detalhe tenha escapado de vocês que acompanharam o desenro-

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lar dos acontecimentos, especialmente a respeito das técnicas envolvi­
das nas contínuas reviravoltas existentes na narrativa. É a situação que
dá sustentação a essa história. Porém, neste momento, desejo fazer uma
demonstração prática, ao vivo, com a ajuda de três rapazes com alguma
experiência em mímica.

Ora, vamos, coragem, não importa se estão nos primeiros passos. Ótimo,
bravo... Vocês três... Subam. Agora, vou fazer cada um realizar um mesmo
movimento. Irei lhes indicar do que se trata, porém sem revelar-lhes a situ­
ação por trás da história. Ou seja, vocês vão mimar às cegas. Ora pois,
imaginem ... É o seguinte: vindos do fundo do palco, vocês entrarão em cena
denotando desespero. Ao mesmo tempo, circunspectos e tensos. Olharão ao
redor; aí existe um muro, ali uma porta. Tentarão empurrar essa porta e abri­
la. (Sugere agarrar a maçaneta e mima empurrar a porta com o ombro).
Mas ela está fechada. Não há nada a fazer. Então vocês vão tentar subir no
muro, esperando poder ver algo que está do outro lado. Mas é impossível,
pois o muro é muito alto. Afastam-se e dirigem-se para o outro lado do
palco, assim... (Realiza todas as passagens, desenhando com precisão cada
parede, objeto ou espaço que encontra) ... Tentarão abrir uma porta do outro
lado... Um, dois, nada. Ela também está travada. Angustiados, indicando
sempre uma tensão dramática, irão até o fundo, olharão para a direita e para
a esquerda, com esperança de descobrir alguém ou alguma coisa: "Não, não
há nada!". Viram-se, e finalmente: uma esperança! "Sim, ali está a salvação!
É maravilhoso!" Observam... Mas algo lhes perturba, aliás, aniquila-os, fa­
zendo-os cair de joelhos... Igual a esta minha posição, totalmente agachados.
A ação termina aqui. Está claro? Então, vamos fazer juntos. (Apanha pela
mão um dos jovens atores) Mimarei com você, vem comigo, vamos fazer ao
mesmo tempo. Entramos correndo, desesperados... o desespero estampado
no rosto e no gesto. Eis aí a porta. Vai, tente abri-la, agarre a maçaneta.
Empurre. Pois bem, não há nada a fazer. A porta não abre. Espere, aqui
existe um muro, indique-o, apoiando-se nele por meio das mãos espalmadas.
Finja tentar subir nele. Alongue-se, opa, opa, nada, é impossível, vamos cair
fora daqui, devagar, opa, opa, olhe antes. Um momento, desculpe-me, espe­
re, tateie antes, pois é possível que esteja aberta, sem precisar empurrar.
Você não tem condições de saber previamente que a porta está trancada; se
se jogar sobre ela, der golpes com o ombro, e ela estiver aberta, você vai
acabar rolando no chão. Vá lá para o fundo... hein? Existe outra porta sim,
mas, desculpe, você antes deve desenhar a maçaneta, portanto não pode
chegar com a mão fechada. Abra a mão, assim... Isso..•. Agarre, pegue a

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maçaneta, e depois empurre. Empurre com todo o corpo, até o máximo de
desequilíbrio. Vai. Assim, bom, depois largue a maçaneta. Não desse jeito,
assim você a arranca de um só golpe. Esqueceu-se de que a estava segurando
na mão? Veja, você deve fazer assim ... Não, ei, saiu de novo na sua mão! ...
Se você se afastar sem abrir a mão, você vai arrancá-la, não é mesmo?
Então: um, dois, três, vai! Isso, nada acontece (afasta-se da parede imaginá­
ria), não abre, dê um golpe com o ombro, mime subir, trepar, não, segure-se
assim, mime descer, pronto, não dá, fora! Vai! Opa, por ali, talvez lá exista
alguma coisa; venha, venha, vire-se agora, finja ver alguma coisa que lhe
surpreende e diga: "Ah, finalmente!". Espere, antes você deve dar a entender
ao público que vislumbrou uma pessoa ou uma coisa que estava procurando
desesperadamente. Certo? Então, faça desse jeito (realiza uma breve pano­
râmica com o olhar e pára), o público vai intuir: "Ah, ele viu alguma coi­
sa!". Agora vai. Isso, vá ao encontro... pare! "Meu Deus, que decepção!"
Caia agachado, de joelhos, ficando nesta posição por um instante, desespe­
rado. (Dirige-se ao segundo rapaz) Agora é sua vez. Vai. Sim, igual, exata­
mente igual. (Repete a demonstração com os outros dois mímicos). Vamos
exagerar algumas passagens interessantes. (O primeiro rapaz afastou-se da
primeira parede da direita. Dario o impede) Não, não, agora eu preciso de
espaço. Desculpe, um momento. Ao mover-se, você deve se preocupar em
desenhar um espaço cenográfico virtual. Isto é, indicar a existência de duas
paredes paralelas, uma aqui e outra acolá, porque se você indicá-la no cen­
tro, quando for atravessar o palco, vai bater com a cabeça nela. Não é mes­
mo? Ei, o que está fazendo? ... Onde está desenhando a maçaneta? ... (O
rapaz indicou uma maçaneta enorme em uma porta altíssima). Mas que tipo
de portas vocês têm em Roma?! Isso, muito bem. Agora, tente pular por
cima do muro. Vire-se... não! Olhe lá, lá, sorria, sorria... e agora mude,
assuma um ar desesperado ... desesperado! (Os três rapazes aprenderam a
seqüência da pantomima. Dario acompanha-os até as coxias). Agora vocês
vão para lá, atrás do palco. Vocês não devem escutar em absoluto o que vou
contar para o público. Aliás, por favor, tranquem-se lá embaixo, dentro dos
camarins. Sim, assim que estiver pronto, eu chamo. (Os rapazes saem).

OS OLHOS DA SITUAÇÃO

Agora vou desvendar-lhes a situação. Eles irão representar dentro deste


esquema preestabelecido, sem ter conhecimento do drama que está por

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trás, isto é, da situação. Ei-las: são três situações diferentJ:!s. A primeira:
um homem brigou em um bar e deu uma facada no seu amigo - as facadas
sempre são dadas nos amigos. Foge, perseguido por todos os outros com­
panheiros, desejosos de lhe dar uma lição. Escapa, procura uma saída,
encontra todas as portas fechadas, depois se vira e, por fim, vê a saída, que
está lá embaixo, toda livre: o campo! Mas, no mesmo instante, os amigos
postam-se diante dele, fechando-lhe todas as possibilidades de fuga. Estão
armados e avançam sobre ele. Está perdido. Não tem outra alternativa a
não ser cair agachado e aceitar o castigo.
A segunda situação: é uma relação amorosa. Uma mulher abandonou um
homem depois de uma briga terrível. Abatido, o homem está à procura dela,
pois continua apaixonado. Deseja se reconciliar. Empurra todas as portas.
Não a encontra. Finalmente, parece que a vislumbrou ao longe... Não, não é
ela... Espere... Sim, é ela sim... é ela! Mas está na companhia de outro
homem, lançando-se apaixonadamente em seus braços. É como se ele tives­
se levado uma tremenda paulada: alquebrado, cai agachado.
Terceira situação: é um sujeito atormentado por exigências corporais pre­
mentes. Procura desesperadamente um local afastado onde possa se aliviar.
Procura portas de um possível banheiro, encontrando-as todas trancadas.
O restante é de fácil compreensão, não existindo necessidade de fornecer
outras dicas... Em certo momento, corre, corre ... mas não consegue mais se
conter, e, rendido, deixa tudo se esvair... agachado... na liberação.
Agora vamos chamar os nossos mímicos. (Os três rapazes retornam ao
palco). Estão prontos? Venham, acomodem-se. Tomara que vocês não te­
nham ficado ouvindo. (Risadas e murmúrios do público. Os três entreo­
lham-se, perplexos). Não, não é nenhuma piada. Estamos fazendo um tra­
balho; é um jogo, mas é sério. Pois bem, vamos, você começa. (Convida
um dos mímicos). Repetirei os tempos: antes a seqüência de empurrar a
porta... (Para o público) A situação oculta é a primeira, lembram-se... A
briga no bar. Vamos começar então! (Ação do primeiro ator. Risadas e
aplausos do público). Perfeito, excelente atitude de aniquilamento... a ân­
sia e a prostração final. Muito bem. Agora você. Isso, você mesmo. Vai,
vai. (Para o público, quase à parte) Ele faz a situação do apaixonado.
(Ação do segundo mímico). Perfeito. (Ação do terceiro ator). Atenção, é a
da urgência trágica. (Durante a representação, o público explode em gran­
des gargalhadas e aplausos. Quando o rapaz desconsolado agacha-se,
inconscientemente, para defecar... irrompe um imenso fragor). A partir
disso, fica claro que a situação é determinante no significado absoluto da
ação mímica, alterando completamente o sentido de todos os gestos, de
patéticos a trágicos, de sutilmente humorísticos a grotescos e obscenos.

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Para três execuções idênticas, alcançamos três resultados teatrais comple­
tamente distintos. O raciocínio está claro?

COM TRUQUE E PREPARAÇÃO: A MONTAGEM

Ainda com referência ao problema da situação, podemos afirmar


que sua importância é todavia maior no cinema. O grande diretor austro­
teutônico Pabst, e também o russo Eisenstein, consideravam essa questão
tão relevante que, por meio de alguns documentários didáticos, demons­
traram como a montagem de seqüências de diferentes situações determina
significados e sentidos ainda mais diferenciados do que no teatro.
Como veículo para sua demonstração, Pabst filmou a imagem de
um homem, num enquadramento que o mostrava, ao lado de uma janela,
no ato de se barbear. Em certo instante, a navalha escapa de sua mão e
ele corta o rosto, se medica, põe um curativo, volta a se ensaboar, termi­
na de se barbear. Lava-se, pega uma tigela de sopa e, sempre ao lado
daquela janela, afunda a colher dentro da tigela e toma a sopa. Até que,
enojado, joga tudo fora. Em contraplano: no prédio em frente, há uma
jovem se penteando, indo de um lado para o outro, aparecendo e desapa­
recendo atrás de uma janela, às vezes vestindo trajes sumários e, até
mesmo, em certo momento, mostrando-se praticamente nua. Ela volta a
se vestir e termina de se pentear. Olha então ao redor. Fecha a janela.
Outra seqüência é a da praça, onde está acontecendo um deus­
nos-acuda. Há uma múltidão de manifestantes, a polícia éhega a cavalo,
acontece uma carga da cavalaria, atiram. Vê-se muita gente caída no
chão, a polícia é enfrentada por um grupo que atira pedras. Uma ação de
violência e de reação. Essas seqüências são montadas por Pabst de três
maneiras diferentes. Na primeira, o homem está se barbeando e percebe
a jovem no prédio em frente. O homem fica, ao mesmo tempo, fascinado
e perturbado. Não querendo deixar escapar nenhuma das imagens pican­
tes, fere-se com a navalha, medica-se e regressa à janela . Como pretexto
para permanecer ao lado dela, pega a tigela e começa a comer. Mais do
que em tomar a sopa, parece interessado em devorar a jovem, que se
exibe e o provoca intencionalmente. Lisonjeada pela atenção conquista-

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da, ela realiza os seus meneios com ainda mais calor, para depois desa­
parecer repentinamente e, por fim, fechar a janela. Desprezado, o ho­
mem atira a tigela fora, raivosamente.
Outra seqüência. Da j anela, a jovem observa o que acontece na
praça. Inicialmente, denota indiferença, olha distraidamente. Eis que -
em contraplano - chega a polícia. O seu olhar assume uma expressão de
angústia. A tensão facial amplia-se. Fica atônita após observar uma ex­
plosão, seguida de uma carga da cavalaria, sem se aperceber de que está
praticamente nua. Sua atenção está toda concentrada nos acontecimen­
tos da praça. Penteia-se mecanicamente, ausente daquilo que faz, parti­
cipando somente do que os seus olhos vêem.
Terceira situação. Enquanto barbeia-se, o homem observa a pra­
ça. A carga da cavalaria o atordoa de tal maneira que ele corta o rosto
com a navalha. Come a contragosto, pára diversas vezes, tem dificulda­
de em engolir a sopa. Em certo momento, larga a tigela, pois aquilo que
ele vê na praça evidentemente causa-lhe repugnância.
Pabst colocou no projetor essas três seqüências e mostrou-as a
seus alunos. Quando a projeção terminou, perguntou-lhes : "De acordo
com vocês, os atores tiveram melhor desempenho em que seqüência? Na
primeira, na segunda . . . ?". Cada uma das respostas foi diferente: "O ho­
mem me pareceu mais envolvido quando vê a ação policial pela janela,
e se corta com a navalha . . .". E outro aluno: "Não, de jeito nenhum. Ele
pareceu-me mais crível na seqüência com a moça". Mais um: "Gostei da
moça quando se exibe para seduzir o homem . . . Muito sutil e comedida;
algo melodramática em excesso na cena em que acompanha a ação po­
licial". Pabst escuta as diversas opiniões. Em seguida, desliga o equipa­
mento, desmonta os carretéis e mostra os negativos. Os alunos dão-se
conta de que os negativos são sempre os mesmos, apenas copiados e
montados em diferentes seqüências. A moça ao lado da j anela, assim
como o comportamento diverso do homem nas duas montagens, origi­
nam-se de uma única película. Não havia participação direta, eram to­
madas cinematográficas nas quais as intenções e as tensões dramáticas
não possuíam uma referência particular. Os diversos significados foram
determinados pelas diferentes aproximações e montagens dos mesmos
trechos do filme: o homem se barbeando em conj�nção com a moça

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desalinhada, a moça desalinhada em alternância com a ação policial.
São essas combinações que determinam a ilusão dos diferentes signifi­
cados e das variantes no comportamento dos atores. Trechos de histórias
diferentes, sem nenhuma ligação aparente, adquirem um sentido lógico
devido à montagem. Por outro lado, a história do cinema apresenta inú­
meras anedotas acerca dos expedientes usados pelos diretores para obte­
rem imagens críveis.

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