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vivos e o dos mortos.

No Egito Antigo,
Santos animais Anúbis, o deus da morte, era representado
por um híbrido de
homem e cão. O touro Ápis, um dos animais
Desde a pré-história, os animais são objeto mais reverenciados entre os egípcios, era
de interpretações religiosas e rituais considerado um
mágicos semideus, vivia em um santuário, onde era
bajulado pelos sacerdotes e enfeitado com
Rodrigo Elias joias. Quando
morria, passava por um processo de
Não é de hoje que os animais são mumificação que durava cerca de 70 dias e
domesticados. Esta prática começou no era acompanhado por
período Neolítico, há cerca uma multidão em prantos até o seu
de 10 mil anos, e fez parte do que os sepultamento. No primeiro milênio a.C., as
historiadores e arqueólogos costumam oferendas de cães,
chamar de “Revolução gatos, falcões e outros animais mumificados
Neolítica”, que viu surgir a agricultura e a aos deuses se tornaram muito populares no
vida sedentária. Egito, como
Mas o início da submissão de alguns animais forma de comunicação com o mundo dos
aos homens não estava relacionado a fatores mortos.
econômicos
desse período: alimentação e trabalho. É Na Inglaterra do século XVI, as feiticeiras se
provável que tenha atendido a fins transformavam regularmente em gatos e
sobrenaturais. A morte corujas,
ritualística, comum em várias sociedades considerados demoníacos, segundo a
pré-históricas, requeria uma quantidade historiadora Laura de Mello e Souza. Essas
regular de animais, transformações não
só possível com o seu amansamento. eram gratuitas: serviam para disfarçar a
verdadeira identidade dessas malfeitoras.
Camponeses
Antes da domesticação, entretanto, os
homens já atribuíam significados contavam histórias de animais que causavam
sobrenaturais aos bichos. prejuízos, como roubo de galinhas e ovos.
Um gato
Várias culturas próximas a nós, modernas ou ladrão, ferido por alguém ao ser
antigas, enfatizam o caráter sagrado dos não surpreendido, se transformava, no dia
seguinte, em uma velha manca.
humanos. O
cristianismo, dentro da tradição judaica,
submete os animais ao homem desde a Cães e gatos ocupavam lugar central no
imaginário cristão pelo menos até o final do
Criação – Adão, ainda
no Éden, deu nome a cada uma das espécies século XVIII.
feitas por Deus, sublinhando assim o Animal maligno por excelência para o
europeu medieval e moderno, o felino
controle humano
sobre as bestas. O próprio filho do Criador, doméstico era
encarnado para os cristãos em Jesus, vem ao considerado poderosíssimo, além de
companheiro das bruxas e do próprio
mundo para
morrer em uma oblação, como “Cordeiro de Belzebu. Esta crença
Deus”. Aliás, o carneiro, animal domesticado justificava a crueldade contra os bichanos –
cortar a cauda ou as orelhas, queimar o pelo
há cerca de
10 mil anos no atual Iraque, tem papel ou aleijar um
importante nas culturas do Oriente Médio. gato poderia atenuar seu poder malévolo.

Entre as funções atribuídas aos animais, uma O cão também não era muito bem-visto na
das mais persistentes é a de mediação entre tradição cristã oficial até o século XVIII. O
Apocalipse
o mundo dos
considera esses animais impuros, o que
reitera uma antiga visão oriental que os homem. As divindades iorubanas, por sua
tomava como vez, são alimentadas
devoradores de carniça, conforme relata o com sangue de animais, atribuindo-se maior
historiador Keith Thomas. Expressões valor aos quadrúpedes do que aos bípedes. A
comuns na Época carne que
Moderna, como “vida de cão” e “ganancioso resulta do sacrifício é consumida pelos
como um cão”, revelam esta profunda devotos.
camada de
significados negativos atribuídos a este que Rodrigo Elias é professor das Faculdades
acompanha o homem há pelo menos 15 mil Integradas Simonsen, autor da dissertação
anos. Ser As letras da
chamado de “cão” ainda hoje não é um tradição (UFF, 2004) e o humano dos cães
elogio. Obelix e Eowen.

A situação do atual “melhor amigo do


homem” se modificou muito lentamente no
Ocidente cristão. A
população europeia, à revelia dos
ensinamentos religiosos, utilizava os cães em
diversas funções, mas
também convivia com eles no ambiente
doméstico sem fins utilitários, ou seja, por
estimação. Virtudes
como coragem, gratidão e, sobretudo,
fidelidade, foram definitivamente associadas
a esses caninos
ainda no século XVII. Na iconografia da
época, o cachorro aparece em cenas
familiares simbolizando a
fidelidade ao seu dono. A valorização do
animal acabou por se manifestar em
tradições religiosas.
Companheiros inseparáveis de São Lázaro e
São Roque, os cães recebem um jantar em
estados do
Norte e do Nordeste do Brasil, segundo o
folclorista Câmara Cascudo. Quando um
destes santos atende
às súplicas dos fiéis, curando feridas ou
qualquer tipo de dermatose, são os
cachorros que recebem o
pagamento da promessa.

No Brasil, verdadeira encruzilhada cultural,


houve convergência de tradições diversas. Às
vertentes
europeias combinaram-se outras, africanas e
ameríndias, igualmente ricas em significados
sobrenaturais atribuídos aos animais. Entre
os tupis da época do Descobrimento, por
exemplo, a carne
da onça-pintada era consumida de modo
ritual, porque acreditavam que qualidades
como força e
coragem poderiam ser transmitidas ao

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