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ANÁLISE DE TEXTO 1
Yan Michalski

Etapa prioritária em qualquer processo da criação teatral. Não basta uma


atitude emocional e de improvisação em relação ao texto. A análise
estrutural deve ser dominada como uma técnica suscetível de ser usada em
qualquer abordagem de qualquer tipo de peça.
Muita gente torce o nariz para o conceito de análise de texto, achando que
ela tem uma conotação acadêmica e corresponde a uma dissecação fria e
científica que ameaça matar a resposta subjetiva da pessoa ao texto. É claro
que existem em muitas peças aspectos que dificilmente podem ser
traduzidos verbalmente, mas isto não significa que uma peça viva num
mundo místico que desafia um exame lógico.
É importante que se chegue a uma verdadeira percepção do conteúdo e da
forma de uma peça, percepção da qual sairão os caminhos para a sua
transposição cênica. A palavra percepção significa ao mesmo tempo um
impulso emocional, do qual sairá em grande parte o voo criativo do diretor,
mas também uma consciência objetiva básica de como uma peça é feita.
Significa mais do que o impacto sentido na primeira leitura no sentido: “Gosto
desta peça. Ela me diz muita coisa. Mas não consigo especificar o que ela
me diz, e por quê”. Percepção significa um mergulho dentro da obra,
indispensável para a sua compreensão. O que o diretor vai encontrar na
peça depende em ampla medida da sua capacidade de desmontá-la
mentalmente e depois juntar de novo os seus pedaços, agora mais bem
compreendidos, individualmente e em conjunto. Em última análise,
percepção é a visão global que o diretor tem da obra depois da reação
emocional que a leitura lhe proporcionou e do exame intelectual detalhado
ao qual ele a submeteu. Se ele teve uma reação emocional forte, ou se ele
domina a técnica da análise, só poderá ter uma visão mais ampla da peça ao
fim deste processo do que tinha antes.

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Este texto é uma transcrição do original de Yan Michalski, escrito à máquina (sem ano definido) e
disponibilizado por professores de Teoria Teatral da UNIRIO. A transcrição para texto digitalizado foi feita
para utilização nas aulas de Dramaturgia: Análise do Texto Teatral, componente curricular do curso de
Licenciatura em Teatro do IFF Campos Centro. Os campos onde constam (***) demonstram impossibilidade
de leitura da palavra no texto original. Os campos (*palavra em itálico?), demonstram que o texto sugeria
determinada palavra mencionada, ainda que parcialmente danificada visualmente. Prof. Takna Formaggini
Bolsista Maria Carolina Pinto Moura. Campos dos Goytacazes, Outubro/2016.
Observação: essa versão foi modificada, para melhorar a visibilidade em telas pequenas.
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Temos de partir da premissa que uma peça não é vida, mas arte. Sendo uma
obra de arte, ela é artificial – um objeto fabricando que pode ter semelhança
com vida, mas que não é vida. Isto se aplica até aos textos mais naturalistas,
que mais se parecem a “a vida com ela é”. (Experiência de Stanislavski).
Análise de texto é, portanto, uma espécie de suporte para os sentimentos
que o diretor tem em relação à peça. Enquanto técnica, ela está vinculadas à
ideia de que direção não é um processo inteiramente intuitivo, mas um
processo de criação artística através do qual o diretor leva a matéria-prima –
a peça – das profundezas da intuição para a superfície da consciência. Isto
é, ele se torna consciente das características desta matéria-prima,
interessado que está em achar suas forças e fraquezas, seus pontos altos e
baixos, seus movimentos, ritmos internos, com vistas a uma adequada
realização cênica. Uma adequada análise de texto não garante sucesso,
coisa que não existe, mas pelo menos garante ao diretor uma familiarização
com o material em cima do qual está trabalhando.

DEFINIÇÕES
Vamos dividir o processo de análise de texto em sete áreas básicas:
circunstâncias dadas, diálogo, ação dramática, personagens, ideias,
andamentos, climas. Esta é uma divisão arbitrária, para efeitos de estudo e
discussão; mas teremos de lembrar sempre que nenhuma destas áreas
existe em estado estanque, e que muitas vezes elas se interpenetram de tal
modo que cada uma delas só vai tomar forma à luz do estudo de todas as
outras. Ainda para efeito de discussão, agrupamos estas sete áreas em três
grupos, cada um dos quais ocupará uma aula. Esta esquematização não é
arbitrária, pois circunstâncias dadas e diálogo constituem aquilo que
poderíamos chamar a moldura da peça; a ação dramática e os personagens
são a mola mestra da sua essência dramática; e as ideias, tempos e modos
decorrem, do ponto de vista teatral, da ação dramática.
Cada um destes rótulos representa um conceito. Simplesmente defini-los
não bastas para compreendê-los. Em qualquer trabalho teatral –
interpretação, direção, etc – a atividade criativa não consiste em definir
termos ou debater conceitos, mas em absorvê-los tão inteiramente que eles
se tornem quase espontaneamente reconhecíveis em qualquer texto
imaginável. Cada um deve procurar familiarizar-se com estes conceitos tão
intimamente que eles se tornem parte integrante do processo intuitivo do
nosso pensamento.
Na nossa exposição sobre as sete áreas, cada termo será inicialmente
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definido e a seguir desenvolvido como conceito; mas a compreensão só virá
através da aplicação destes conceitos a toda uma série de peças. O **** será
insuficiente para **** sistemática, mas achei útil fazer acompanhar a
exposição teórica de tentativas de aplicação dos conceitos a pelo menos
uma obra dramática.
Espero que isto seja suficiente para pelo menos dar-lhes uma técnica básica
capaz de ser utilizada por cada um no seu futuro trabalho teatral.
Ao referir-me às duas primeiras áreas, circunstâncias dadas e diálogo, falei
que elas representam a moldura da peça. Uma imagem mais clara seria
talvez a de um edifício, do qual as circunstâncias dadas seriam as
fundações, profundamente cravadas no solo, como se fossem raízes que
prendem a estrutura visível a um embasamento invisível; enquanto diálogo,
sendo justamente o que é mais imediatamente visível, uma espécie de casca
externa, seria a fachada do edifício.

CIRCUNSTÂNCIAS DADAS: O CENÁRIO DO/A DRAMATURGO/A

Este tempo refere-se a todo material de uma peça que define o ambiente, ou
seja, o “universo” da peça, dentro do qual a ação se desenrola. Este material
abrange: 1) fatores ambientais: condições específicas, local, época; 2) ação
anterior: informações sobre o que aconteceu antes da ação da peça; 3)
atitudes de polarização: posições adotadas pelos principais personagens em
relação ao ambiente em que vivem.
Há uma tentação natural em procurar as circunstancias dadas nas rubricas,
mas não é esta a melhor fonte de informação. As rubricas correspondem em
geral a uma visualização subjetiva de um possível espetáculo concebida pelo
autor, que pode não coincidir com as futuras opções do diretor.
Às vezes elas não são autoria original do autor, mas descrevem apenas, por
exemplo, o cenário usado na montagem original. Muito mais do que nas
rubricas, é no diálogo que devemos procurar informações sobre as
circunstancias dadas.
Quando a gente se acostuma a analisar peças, percebe que os autores
conscientemente ou não, criam uma espécie de “cenário implícito” através do
diálogo, fornecendo grande variedade de dados sobre o ambiente, sobre
objetos e lugares em que os personagens vivem, sobre o tempo que faz,
sobre o que aconteceu antes do início da peça, sobre os sentimentos
específicos dos personagens em relação ao seu universo. O dramaturgo
precisa transmitir a soma disso tudo à plateia com clareza e exatidão, pois
tudo o que acontece na peça baseia-se nessas circunstancias dadas.
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Os dois primeiros tópicos, fatores ambientais e ação anterior, são muito mais
objetivos e factuais do que o terceiro, atitudes de polarização, que já
depende de uma interpretação de quem está lendo e analisando. Mas é este,
provavelmente, o mais importante dos três. No teatro, fatos contam muito,
mas as atitudes das pessoas em relação a estes fatos costumam contar
mais ainda.

Fatores Ambientais: Todas as peças fornecem algum tipo de informação


sobre o local e a época em que decorre a ação dramática, bem como sobre
o meio ambiente. Quer sejam historicamente exatos ou não, estes dados
costumam banalizar todo o decorrer da ação. Devemos identificá-los e
anotá-los, isolando-os, por exemplo, dentro das seguintes categorias:
1. Localização geográfica – o local exato. Incluir clima, pois condições de
tempo repercutem sobre cenografia, comportamento e ação.
2. Data – ano, estação, hora e dia. A data tem uma significação especial.
3. Ambientação econômica – nível social, condições de riqueza ou
pobreza. Caso a ação se desenrole em mais de um nível, constatá-lo e
estudar os relacionamentos entre os diversos níveis.
4. Ambientação política – os relacionamentos específicos dos
personagens com a forma do governo debaixo da qual vivem. Muitas peças
têm um cenário político claramente definido, que afeta fortemente o
comportamento. Outras admitem tacitamente uma forma de governo que
implica determinadas repressões sobre os personagens. Não se deve
presumir que uma aparente omissão de tais dados quer dizer que eles sejam
de pouca importância. Devemos procurar deixas espalhadas pelo texto, pois
o autor pode ter partido do princípio de que quem lê o texto vai assimilar
essas circunstancias dadas a partir do contexto, mas o diretor não pode
partir de tal princípio. É mais do que provável que o autor terá deixado pelo
menos um discreto rastro, que nos cabe levantar.
5. Ambientação social – os hábitos e as instituições sociais que
predominam na vida dos personagens. Estes fatos são particularmente
valiosos, pois podem manifestar-se através das pressões que exercem sobre
os padrões de comportamento e, por conseguinte, podem resultar em
determinar conflitos que integrarão a ação dramática.
6. Ambientação religiosa – suas repercussões explícitas e implícitas.
Muito do que foi dito sobre ambientação política aplica-se também aqui. Ao
estudarmos as circunstancias dadas de uma peça, devemos conter
rigorosamente a nossa imaginação: todos os fatos devem estar
explicitamente contidos no texto e procurados como sugerido no item 4. Não
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devemos tentar inserir a nossa própria ideia do fato histórico em torno da
peça: se ele não está na peça, não existe. Um dramaturgo não está
escrevendo história, mas contando uma estória. Ele pode não conhecer bem
História, ou pode estar querendo deliberadamente modificar os fatos
históricos para os propósitos que está visando. Não devemos, na etapa da
análise de texto, corrigi-lo mas sim levantar os fatos como estão
consignados. A parte interpretativa da direção virá na etapa subsequente.

Ação Anterior: É preciso fazer uma nítida distinção entre ação presente –
aquilo que o espectador vê acontecer diante dos seus olhos e ação anterior
– aquilo que nos é dito que aconteceu antes que a ação presente comece.
Todas as peças começam “no meio” dos acontecimentos, assim, as
circunstancias dadas precisam abranger alguma narração de ações prévias,
de modo que a ação presente tenha uma base a partir da qual se vai
desenrolar. Algumas peças dependem muito pouco da ação anterior,
enquanto outras – as de Ibsen, por ex. – pedem muita narração de
acontecimentos do passado. As duas ações, anterior e presente, compõem
aquilo que designamos vagamente como a estória ou o enredo. Mas o diretor
trabalha sempre especificamente com a ação presente, embora muitas
vezes, um de seus grandes presentes seja o de como tornar as necessárias
narrações sobre o passado teatralmente dinâmicas. Nas peças modernas
baseadas em narrações psicológicas, o passado desempenha um papel
importantíssimo na explicação do presente, do mesmo modo como acontece
na psicanálise; ainda assim, a parte vital da peça para o espectador, é a que
mostra o que acontece diretamente diante dos seus olhos.
Precisamos, portanto, aprender a separar os dois tipos de ação. A ação
anterior, embora possa ocupar praticamente todo o primeiro ato e às vezes
mais até ser concluída, determina o ponto em que a ação presente
realmente começa. Uma vez feita essa distinção, ficará mais fácil, tentar
tornar a narração viva no palco, pois por si só ela é chata em comparação
com a ação direta. Um bom autor, porém, sabe facilitar as coisas, dando ao
personagem uma ação presente dentro do processo de narrar a ação
passada; ou seja, arranja as coisas de modo que o próprio ato de narrar
afete de algum modo a ação presente do personagem que estamos vendo.
Assim, o diretor não precisará manejar uma chata exposição, mas trabalhar
em cima de um ato de relembrar o passado dentro da excitação e do
engajamento ativo de uma ação presente que o vincula aos outros
personagens.
A técnica de separar estas duas áreas de ação é simples. Basta sublinhar no
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texto todas as falas que lembram o passado. Um texto de Ibsen vai conter
muitas falas deste tipo, especialmente no primeiro ato, mas também mais
adiante, sobretudo quando novos personagens são introduzidos. Se fizermos
uma lista destas ações anteriores na metade de uma folha de papel, na
ordem na qual elas aparecem, e inscrevermos na outra metade as ações
presentes ligadas às ações anteriores, veremos o relacionamento direto que
existe entre umas e outras.
Uma direção pode tornar o espetáculo dificilmente compreensível,
manejando inadequadamente as ações anteriores: alguns autores as
introduzem de modo tão sutil, que o espectador poderá perder essenciais
pontos de referência, se eles não forem valorizados na encenação. As peças
não falam por si mesmas: elas são ditas por atores e diretores que sabem
claramente sobre o que estão falando. Acrescenta-se a isto a notória
dispersão da percepção do espectador nos primeiros minutos do espetáculo.

Atitudes de Polarização: Cada personagem na peça, como na vida, é


condicionado pelo universo específico no qual está inserido e terá atitudes
específicas, ou pontos de vista específicos, em relação a esse universo.
Essas atitudes abrangem os seus preconceitos, suas simpatias, suas
opiniões acerca desse universo, dentro do qual ele é forçado a ter
relacionamentos com outros personagens e agir através de atos que
afetarão os outros bem como a ele mesmo.
O que entendemos por universo específico de um personagem? Ele está
condicionado, bem entendido, por fatores ambientais e ações anteriores,
mas situa-se num nível significante mais alto, pois começa a se definir
quando o personagem se relaciona com outros personagens e assim entra
forçosamente em conflito com eles. O universo específico é o universo dos
relacionamentos entre os personagens, com todas as suas implicações. Este
é o ambiente interno de uma peça. O ambiente que contém os conflitos e
problemas: o ambiente do relacionamento amoroso dentro e fora do
casamento, o ambiente das pressões familiares, que causam amor e ódio
entre mães e filhos, pais e filhos, etc. O ambiente das pressões políticas,
religiosas e sociais que obrigam as pessoas de uma maneira que às vezes
causam a destruição de suas famílias e do relacionamento com essas
famílias, ambiente do medo, do poder, do desprezo pelos outros, da
indiferença ou da cobiça das riquezas, da indiferença ou da paixão pela
religião. Qualquer personagem costuma ter atitudes fortes para com esse
universo específico.
Um detalhe importante: ao longo de uma peça, um personagem principal não
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costuma modificar-se enquanto personagem, mas as suas atitudes para com
o universo ambiental da peça, se modificam diante de pressões que vêm de
forças fora de seu controle, ou seja, os outros personagens que servem de
instrumentos para estas modificações. Ao enfrentar essas forças, ele precisa
ajustar-se a elas, e ao fazê-lo, certas características latentes dentro dele vêm
à tona e o obrigam a agir, características que tem estado presentes o tempo
todo, mas nunca haviam sido solicitadas e portanto reconhecidas como
traços marcantes do personagem. O desenrolar da ação da peça compõe-
se, portanto, de uma série de modificações nas atitudes dos personagens
principais para com seu ambiente interno.
Vale constatar também que não são todos os personagens de uma peça que
modificam suas atitudes de polarização, mas apenas os principais, e é este,
aliás, o fato que os torna principais. Os personagens secundários servem de
instrumentos nessas modificações, mas habitualmente não se modificam. Na
análise de texto, são sempre os personagens principais que mais nos
interessam, pois é através de seu estudo que poderemos melhor determinar
a força e a importância dos personagens secundários.
Na maioria das peças podemos constatar radicais modificações nas atitudes
dos personagens principais, comparando as posições que eles adotavam no
início e no fim. Podemos resumir filosoficamente estas modificações dizendo
que um personagem caminha da ignorância para o conhecimento: ele
enxerga o mundo em que vive, melhor e mais claramente, depois de ter
caracterizado os atos que constam da ação dramática do que antes. Por isso
é preciso identificar as atitudes para com o ambiente interno que existem
para cada personagem principal, no início da peça, de modo que o diretor
possa ver claramente os polos finais de cada personagem e ajudar os atores
a encontrá-los. A trajetória entre os polos iniciais e finais é, precisamente, a
ação dramática.
Determinando essas atitudes de polarização para cada um dos principais
personagens, o diretor é capaz de avaliar a extensão do que existe entre o
polo inicial e final, a dimensão dos personagens, e os efeitos explícitos que
as circunstancias dadas exercem sobre os personagens.
O que entendemos por início da peça é portanto, o conjunto das posições e
atitudes assumidas pelos personagens principais em relação ao universo
específico no qual se acham inseridos e dentro do qual irão atuar. Essas
posições vão determinar com precisão onde começa a ação presente. Na
maioria das peças (as anti-peças de Ionesco são uma exceção) os
personagens principais têm fortes atitudes de aprovação ou desaprovação
em relação ao ambiente em que se encontram. A trama que se segue, ou
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seja, a ação presente, provavelmente anulará ou enfraquecerá as suas
aprovações, ou transformará em desaprovação a aprovação, ou, pelo
menos, em aceitação. Se um personagem não acaba aceitando aquilo que
ele desaprovava no início, ele provavelmente morrerá ou se exilará ao longo
do processo de resistência às modificações que as forças antagônicas lhe
pretendem impor, tornando-se assim um herói trágico. Se um personagem
resiste obstinadamente a abrir mão daquilo que intensamente gostava no
início, vai sobreviver, mas será ridicularizado, tornando-se um bobo alegre
(Fidalgo). Mas o que quer que lhe aconteça, ou as atitudes que tinha no
início estarão substancialmente modificadas no final, ou então, no caso do
herói ridículo, ele continuará cegamente a sua trajetória, sem sequer
perceber que alguém procurou impor-lhe modificações.
No início da peça uma atitude é habitualmente mais geral que específica. Ela
foi assumida pelo personagem sem que ele esteja plenamente consciente
dela, embora a plateia esteja direta ou indiretamente informada dela pelo
autor. A ação da peça fará com que o personagem tome consciência do seu
universo específico, ao submetê-lo ao teste das suas atitudes através do
conflito direto com outros personagens. No início da ação presente, o
personagem normalmente começará a se dar conta de onde se encontra nos
seus relacionamentos com os outros, embora possa estar absolutamente
cego quanto às razões pelas quais se encontra ali. As atitudes dos
personagens deveriam, portanto, ser depoimentos de ordem geral, sem
ligação direta com a ação que vai seguir. Alguns exemplos:
Os homens são tolos e românticos e podem ser manipulados com bastante
facilidade. (Hedda Gabler)
O Rei é sagrado e ninguém pode contestar seu direito divino de ditar regras.
(Édipo)
Quando aprendermos a identificar o universo específico de uma peça, vamos
compreender os segredos dos seus esquemas internos, pois conheceremos
as forças ambientais que mantém os personagens principais em xeque no
início, e este conhecimento nos mostrará contra o quê eles precisam lutar
para superar essas forças a fim de chegar ao polo final. No trabalho de tentar
determinar as atitudes de polarização, é mais fácil achar o polo inicial para
cada personagem começando por anotar a posição de cada personagem no
desfecho e remontando para o início. O interesse da plateia estará focalizado
naquilo que aconteceu entre estes polos, ou seja, na ação dramática.
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DIÁLOGO: A FACHADA DO TEXTO

Obviamente, diálogo é conversação entre dois ou mais personagens numa


peça. Menos obviamente, sua função consiste em conter a ação dramática.
O diálogo é veículo da ação dramática, o fluxo sanguíneo da peça. Por outro
lado, embora o diálogo apareça originalmente com linhas impressas na
página, sua finalidade essencial é de ser ouvido mais do que lido. Ela é
linguagem falada e não escrita.
Diálogo é ação: Para começar a analisar o texto, é preciso entender a
complexidade do diálogo. Ele não é um mero intercâmbio verbal entre
personagens, mas um artificial, econômico e simbólico canal de interligação
de ações entre os personagens, através do qual eles impõem suas vontades
e necessidades uns aos outros. O diálogo é redigido em tempo presente,
porque sai da boca de pessoas que, como na vida real, só pensam em
termos no presente, e que falam uns com os outros para obter dos outros
aquilo que querem.
Diálogo é um processo de construção: A diz alguma coisa a B, e B
responde: isto faz com que A responda a B e B a A, estabelecendo-se um
ciclo. Independente de quão requintada seja a fala, de quão elaborada a
escolha das palavras, o objetivo é sempre o mesmo, obter resposta ou
reação da outra pessoa, como acontece na vida real. Deste modo, na própria
natureza do diálogo está inserida a ação. As palavras usadas para uso
externo podem tentar ocultar essa ação de modo mais elaborado, ou podem
ser muito diretas e não escondê-la em absoluto. O diálogo é a cobertura, a
vestimenta, da ação dramática. A primeira vista ele é * mas a sua função
básica é conter * da peça – o subtexto, a ação dramática.
Em verso ou prosa: As ações variam amplamente na escolha da linguagem
usada pelos personagens, escolha ditada pelas circunstâncias dadas, que
constroem o “cenário” que determina a maneira pela qual os personagens se
expressam, suas boas ou más maneiras. A maioria das peças modernas é
escrita em prosa, por causa da sua pretendida semelhança com a vida real,
mas continua sendo também escritas peças em versos, como se fazia
habitualmente no passado. O objetivo essencial é sempre o mesmo: conter a
ação dramática. Diálogo verificado não é apenas uma fachada decorativa,
mas uma maneira especial de transmitir sentimentos intensos e ações
elevadas. Pelo mesmo motivo, muitos dramaturgos escrevem numa pressa
rebuscada do que a usada na vida diária.
Diálogo é linguagem falada e ouvida: O diretor precisa aprender a ouvir o
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diálogo para além do sentido das palavras. Ele não é uma reprodução literal
dos sons que ouvimos na vida diária, mas reprodução de um contexto
emocional que o autor colocou nos personagens através de recursos
verbais. Em muitas peças contemporâneas, o potencial sonoro do diálogo
chega a ser um recurso de comunicação tão ou mais significante do que o
sentido restrito das palavras.
Estrutura das falas: O diálogo é uma construção artificial. Um autor
experiente tem tendência a deixar a frase mais importante para o final da
fala. Ela se torna assim um clímax da fala. É um detalhe que pode ajudar o
diretor a obter dos atores uma ênfase adequada nas inflexões. Para
inflexionar bem, é preciso um domínio pleno tanto do subtexto como do
texto.

AÇÃO DRAMÁTICA: A MOLA MESTRA DA PEÇA

Ação dramática é o choque de forças na peça – o conflito contínuo entre


personagens. Drama significa fazer, agir, portanto ação e personagens são a
mola mestra do teatro; personagens sendo entendidos como instrumentos
que executam a ação ou são afetados por ela no sentido de forçados a agir.
Enredo ou trama é a sequência dos incidentes e que suportam a ação. Ação
dramática e personagens são muito interligados, mas para efeito de
explicação vamos abordá-los separadamente.
Como já foi dito, uma peça é uma obra de arte, que pode ser desmontada e
examinada. Quem não sabe analisar a ação de uma peça vai basear-se
apenas nas ações emocionais. O diretor não pode trabalhar apenas em cima
do que se ele sente a respeito de uma peça, mas sim em cima dos
elementos objetivos que o autor colocou nela. A mola mestra de análise de
texto é entender a ação.

Características da ação dramática


Tempo presente: Ação dramática só existe no tempo presente. Os
personagens que participam da ação estão sempre num estado de “estou
fazendo” e não de “eu fiz”. É isto o que dá vitalidade à peça e faz com que
sintamos que ela está realizando aqui e agora. Quando duas pessoas se
encontram na peça, elas começam a fazer coisas uma à outra, e é isto o que
vamos ver na sequência do seu encontro. O uso de tempo passado não
existe na vida da peça: tudo que acontece, mesmo as maneiras pelas quais
a ação anterior é transmitida, deve ocorrer no presente. (Flashbacks).
Ação dramática x ação física: É importante, de saída, entender a diferença
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entre ação dramática e as ações físicas que o ator executa. Estas são uma
ilustração daquela, ilustrações escolhidas pelo autor ou diretor para mostrar
a ação dramática da melhor maneira possível. A gama das ações físicas –
sentar na cadeira, cruzar o palco, gesticular com mãos, etc., é infinita, mas
a ação dramática básica define-se dentro de limites estreitos. A arte do
ator, portanto, é o processo de ilustrar a ação dramática. A representação é
o de que maneira; a ação dramática é o quê.
Devemos enfatizar esta distinção, pois as más tradições do século 19
tenderam a confundir as ilustrações e marcações dos atores com as ações
propriamente ditas, e esta tradição ainda existe na ópera. A confusão
repercutiu sobre a formação do ator, com o resultado de, às vezes, deslocar
a atenção do diretor para efeitos superficiais mais do que para os impulsos e
forças essenciais que atuam na peça. Só com a identificação obstinada da
ação dramática será possível elaborar ações físicas que sejam
adequadamente ilustrativas desta.
Toda ação é recíproca: A ação é o choque de forças, as forças sendo
(geralmente) os personagens. Assim, toda ação gera uma reação, como uma
etapa intermediária do ajuste ou assimilação entre uma e outra. O ciclo
desenha-se assim: 1) A faz alguma coisa a B; 2) B sente a força da ação de
A (Assimilação) e decide como reagir; 3) B faz alguma coisa a A; 4) A sente a
força da ação de B (Assimilação) e decide como reagir. O ciclo está então
pronto a recomeçar, mas num nível novo e diferente. Este processo
recíproco continua até que 1) A ou B é destruído (ou a vontade que o
impulsionava é destruída); 2) uma força externa interrompe arbitrariamente
essa progressão (p. ex. com um fim de ato); ou 4) o autor arbitrariamente
fecha a ação.
Portanto, toda ação dramática é recíproca; nunca existe em mão única, mas
sempre com ida e volta. As pressões exercidas têm duas mãos. Uma parte
importante do ciclo reside no ajuste que cada personagem faz antes de
empreender uma nova ação; por isso, boa parte da arte do ator concentra-se
ao receber a ação do outro personagem e decidir o que deve fazer para
reagir.
Existem porém, tantas nuanças possíveis para o exercício das pressões
recíprocas que muitas vezes pode parecer que um personagem está *** que
a cena assume a aparência de ação em mão única. Mas trata-se de um certo
tom passivo e discreto dado aos ajustes. É possível que o sentido seja
invertido dentro de algum tempo, e o dominado passe a ser dominador. Em
muitas cenas A domina e B executa ações defensivas; depois B domina e A
executa ações defensivas. O clímax da cena acontece quando um dos dois
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consegue dominar o outro completamente. Mas depois disso existe sempre a
possibilidade de um novo encontro, pois a peça é em parte feita de ajustes o
dominado vai ter nova chance, e poderá emergir como força dominadora. A
peça progride, e o público continua interessado, enquanto A e B continuam
em conflito sobre quem vai dominar, impor sua vontade ao outro. Quando
esta pergunta é finalmente respondida, instala-se um estado de relativa
calma, e a peça chega ao desfecho. Mas, a não ser que ambas as forças
sejam destruídas, o final da peça pode sempre criar potenciais
circunstancias dadas para início de uma outra peça. Quando os personagens
têm estrutura suficiente, podem ser tomadas para uma nova série de
conflitos, como acontecia rotineiramente nas trilogias gregas. Todos os
desfechos são arbitrários, alguns são altamente arbitrários. Por isso, em vez
de dizer que uma ação dramática termina, melhor seria dizer que ela chega a
um estado de relativa calma, uma letargia provisória na qual aguarda a
manifestação de novas forças e pressões.
Divisão das ações (unidades cênicas): A ação total da peça divide-se em
seções grandes que normalmente são os atos. Os gregos, que encenavam
suas peças sem intervalo, pontuavam suas seções maiores com canções do
coro. Shakespeare frequentemente concluíra uma seção maior com um
refrão rimado, eventualmente seguido de um interlúdio musical. Hoje
costumamos fechar a cortina ou dar black-out, e o público vai esticar as
pernas durante 10 ou 15 minutos. Mas que haja intervalos formais ou não,
sabemos que todas as peças são artificialmente construídas, fracionadas em
partes menores: Abaixo dos atos, temos a divisão em cenas, que pode ser
explicitamente declarada ou não (ato I, cena 2), mas que sempre pode ser
estruturalmente localizada, e que é sempre arbitrária.
Os franceses costumam separar suas peças explicitamente em atos e cenas,
de uma maneira que facilita o trabalho de análise da estrutura. Toda vez que
uma personagem entre ou sai, ou um ciclo parcial de ação se fecha de outro
modo, declara-se o fim de uma cena.
Ao analisarmos o texto mais perto, veremos que, embora não exista um
símbolo impresso para isso, cada cena francesa pode ser ainda desdobrada:
toda vez que os personagens em confronto deslocam a linha do diálogo -
ação para um novo sentido, ou o foco dominante desloca-se de um para o
outro personagem, fecha-se uma unidade e começa outra. A palavra
unidade foi adotada por Stanislavski para dividir a ação dramática em
segmentos, às vezes minúsculos. Este esquema permite ao diretor ver
melhor a ação da peça do que o esquema francês de ato/cena pois ele pode
visualizar a ação global subdivida em dezenas de subunidades todas inter-
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relacionadas e articuladas em torno de uma espinha dorsal principal. As
grandes unidades (atos, cenas) são fáceis de detectar, mas as pequenas
são muito mais difíceis, pois variam de duas ou três falas seguidas de uma
marca significativa (atividade física silenciosa). O diretor experiente sabe o
impacto que exerce sobre o público uma encenação bem estruturada dessas
pequenas unidades, com a devida ênfase dada ao momento mais revelador
de cada uma.
Cada unidade tem o seu próprio objetivo, e cada personagem persegue um
alvo dentro da unidade. É a construção progressiva desses pequenos
objetivos unitários, que se juntam e acumulam em objetivos maiores, que
finalmente vai resultar na espinha dorsal global de personagem para a peça
inteira, e por extensão na espinha dorsal da própria peça.
O trabalho primordial do diretor consiste em ajudar os atores não só a
identificarem, fala por fala, a ação dramática da peça, mas também a
definirem seus objetivos dentro de cada unidade, o ator que ao longo da
peça, sabe em cada momento qual é o objetivo imediato perseguido pelo seu
personagem, e como ele se articula com o super-objetivo desse
personagem, terá resolvido metade dos seus problemas interpretativos. Na
base deste conceito esta a hipótese de que todas as ações são recíprocas, e
que faz parte da função do diretor assegurar que cada ator não se compõe
de ações individuais, mas de reação a ação alheias. Sem que A faça alguma
coisa a B e B faça alguma coisa a A, nada vai acontecer. A emoção só
surgirá na plateia, quando houver a sequência ações-reações, pois ela é um
produto da ação dramática e portanto, das pressões exercidas por um
personagem sobre o outro. Um ator que atua sozinho, sem receber feed-
back dos estímulos que os outros lhe fornecem, diferirá pouco de um show-
man que trabalha um teatro de variedades, sem receber ajuda do conflito
com os outros. Um monólogo numa boa peça não é um monólogo, mas um
confronto entre dois aspectos conflitantes de um mesmo personagem,
muitas vezes entre a sua fachada externa – aquilo que os outros o forçam a
ser e se caráter autentico – aquilo que ele sabe que precisa ser.
Identificar e rotular as ações: Uma vez que cada fala pretende ser uma
maneira de agir, de forçar, de exercer pressão, ela pode ser sintetizada por
um verbo no tempo presente, já que os verbos são de ações. Este é o
subtexto da fala. Podemos, por exemplo, consigná-los como segue: A se
envergonha – B ignora – A pede perdão – B amolece – A suplica – B rejeita,
etc...
Notem bem que o subtexto assim concebido não se confunde com um
resumo do que o personagem diz na fala, pois A pode muito bem querer
14
disfarçar a sua vergonha com palavras cheias de orgulho, embora seu
subtexto de ação seja precisamente o de sentir vergonha. Reparem como
cada uma das ações expressas em tempo presente, surgem do verbo que
procede, efetuando-se uma sequência de ações recíprocas. E reparem que
nenhum outro verbo de qualificação é utilizado.
Este processo de determinação de subtextos já é um processo interpretativo
na qual entra contribuição subjetiva de quem está analisando, e portanto não
pode ser feito só com recursos cerebrais, mas também com intuição e
sentimentos subjetivos. Mas uma vez que o diretor aprendeu a técnica de
definição dos subtextos e de sua tradução em forma de verbos, ele estará
dominando uma chave valiosíssima na sua comunicação com os atores, pois
ambos estarão falando a mesma linguagem: a dos verbos motivadores em
cima dos quais o ator pode representar. Caso contrário, ficaremos o sempre
vago “é assim que eu estou sentindo”, em vez do “é isso o que eu (o
personagem) estou fazendo”.
Vejamos de novo os exemplos de verbos acima citados. Este é o tipo de
verbos que devemos usar, porque eles podem ser representados. Há verbos
que simplesmente não podem ser representados. Todos os que são de
caráter muito geral ou abstrato, ou se referem à própria natureza do dialogo,
são de pouca utilidade como instrumentos de trabalho para o ator. Por
exemplo, perguntar, dizer, falar, questionar, interrogar, explicar, mostrar, ver,
perceber; ou amar, odiar, pensar. A pergunta que nós devemos colocar
sempre é: este verbo pode ser representado? Pode ser bem ilustrado?
Descobriremos que a busca deve ser por verbos específicos, porque a
representação é uma atividade específica, e não geral. Outra categoria de
verbos a evitar: as que pedem de modo obvio ilustrações diretas: correr,
pular, andar, rir. Às vezes podem servir, mas na maioria das vezes
conduzirão o ator a ilustrações superficiais e não a ações originais e
motivadoras que se deve procurar. Os melhores verbos são os que sugerem
ação direta, embora não obvia, pois contem pressões e emoções especiais.
As palavras a serem usadas são verbos. Acrescentemos iniciais dos
personagens, e nada mais, Preferir verbos transitivos, que mais facilmente
possuem potencial de ação.
Registrar a ação: Esquema de trabalho útil para diretor/a pouco experiente:
1. Dividir um curto segmento da peça (10 min. com 2 personagens) em
unidades.
2. Anotar em forma de verbos todas as ações em cada um dessas unidades
3. Fazer um resumo para cada unidade, um único verbo que sintetize a
ação de cada personagem dentro da unidade.
15
A faz a B e B faz a A. (Maria pede perdão e Jorge amolece).
Essa anotação é agora uma síntese para toda a unidade; é recíproco,
porque ambas as forças são mostradas. A conjunção e contribui para a
reciprocidade, pois liga os dois personagens, como se estivessem nas duas
extremidades de uma mesma corda.
4. Reunir os resumos de todas as unidades do segmento selecionado. Os
resumos são aquilo que o diretor pode reter na sua mente como objetivos a
serem alcançados. Se o resumo é bem feito e os verbos bem escolhidos, a
estrutura da peça poderá ser percebida. O diretor, assim, só vai comunicar
aquilo que percebeu com clareza, pois se a sua percepção não for clara,
tampouco será a dos atores e do público.
5. Outro truque útil: titular as unidades com uma frase com substantivo. É
uma outra maneira, embora não muito exata, de descrever o que acontece
numa unidade. A frase deve ser simples: A chegada; O compromisso
Assumido; o Anúncio do Novo Plano; O anúncio do Outro Plano; O Corpo-a-
Corpo; Tais frases completam utilmente os resumos de ações recíprocas, e
podem ajudar o diretor a encontrar as definições em forma de verbos.
Podem também ajudar o diretor a transmitir os objetivos de cada unidade
quando fala com os atores. Mas, embora úteis como acessórios de
comunicação, estas frases são por si só insuscetíveis de serem
representadas.
Tipos de ação: Não vamos tratar aqui dos diversos gêneros de ação –
trágica, cômica, melodramática, farsesca – pois tratariam problemas
complexos que confundiriam o esquematismo voluntário da proposta de
análise de texto. Estes conceitos virão num outro nível de análise, mais
tarde. Por enquanto, vale observar que do ponto de vista prático é melhor
treinar a manipulação do esquema em cima de textos sérios, que são
geralmente mais diretos. A ação dramática na comédia é normalmente mais
difícil de perceber, e apresenta muitos outros problemas.

OS PERSONAGENS: A SEGUNDA MOLA MESTRA

O personagem é soma de todas as ações dramáticas executadas por um


indivíduo no decorrer da peça. Podemos definir o personagem através de
uma síntese das suas ações. (trata-se aqui de personagem no sentido de
criação do autor, não ainda no sentido de composição de ator).
Personagem e Ação: Na Poética, Aristóteles, colocando a ação em primeiro
e personagem em segundo lugar, o segundo resulta do primeiro. Embora os
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autores não escrevam nesta ordem, o que seria arbitrário, no resultado final
é essencial uma vinculação íntima entre personagem e suas ações, sem o
qual, o personagem não terá vida. Um personagem não existe, se não
superficialmente, através de que ele diz que é ou pelo que os outros dizem
que ele é; ele existe através daquilo que as suas ações, sobretudo as
executadas sob pressão nos informa o que ele é. O personagem tem ação
por invólucro.
Simples impressões sobre o personagem, aquilo que sentimos que ele é,
não substituem a análise a que o diretor submete as ações do personagem.
Por outro lado, o ator pode descobrir o seu personagem passo a passo, no
processo de montar as suas peças avulsas, representando e vivendo os
diversos incidentes (*nos quais ele está?) envolvido. Por isso é sempre
melhor o (*diretor?) obrigar os atores a repetirem (*várias) vezes a
representação, enriquecendo-a sempre com novas sugestões, do que
perder tempo excessivo com discussões intelectuais.
Como o personagem se revela: O ator não pode construir o personagem
de uma só vez. É claro que na fase final dos ensaios ele deve ter visão
orgânica do personagem no seu todo; mas se ele procurar representar o
personagem inteiro de saída, vai ficar perdido. Um personagem toma forma
e se revela no decorrer da ação. Ele não muda: é “desembrulhado”. Os
materiais de que ele é feito estiveram sempre lá, latentes, mas só sob o
impacto do conflito, das pressões exercidas sobre ele e os outros, é que as
suas características ocultas se revelarão e virão à superfície. Como já vimos,
ação dramática é uma série de incidentes, um conduzindo o outro. A ação é,
portanto, uma autorrevelação, conduzida por uma espécie de inevitabilidade;
isto precisa ser dito, aquilo precisa surgir. Disso resulta que uma peça é
feita de descoberta e surpresas.
Algumas ações menores, outras maiores; e uma, em geral, é essencial.
Esses são os clímax da peça. Cada vez que o personagem enfrenta um
destes momentos, alguma coisa dentro dele surge para enfrentar as
circunstancias: um traço de caráter.
Os traços de caráter são portanto ilustrados numa série de clímax. O
espectador vai guardá-los na memória, pois, sobretudo se o autor é bom,
eles terão um relacionamento lógico com os traços que vão se revelar nos
clímax seguintes. Assim, a progressão para o espectador, o que realmente o
interessa, é a progressiva relação dos traços de caráter que finalmente se
juntam com clareza e força nos principais clímax, quando todas as
revelações prévias sobre o personagem se juntam numa ação maior e na
descoberta essencial do personagem. O espectador está ansioso por saber
17
como será o personagem quando totalmente revelado, que motivações
aparecerão em última análise como suas molas mestras. O que
normalmente se segue é um curto anticlímax, pois tudo que precisamos
saber é como será o personagem depois da sua colisão cara a cara com
as forças que ele procurou superar.
Personagens simples e complexos: A densidade de um personagem,
quão simples ou complexo ele possa ser, depende da quantidade da sua
participação na ação da peça, da qualidade e do tipo da sua participação
nela. Esta densidade é o que distingue os personagens principais dos
secundários ou coadjuvantes, que funcionam como instrumento para a
revelação dos principais. Conhecemos os personagens secundários muito
menos do que os principais, só conhecemos deles alguns traços, pois eles
têm menos oportunidade de se testar contra o pano de função da ação para
nos dizer quem são, já que a atenção é concentrada nos principais. Existe
um terceiro nível criado que quase não conhecemos, embora bons atores
lhes possam dar mais personalidade do que eles em princípio teriam. O
quarto nível pode ser um corpo coletivo, por ex. um coro, que não chegamos
a conhecer absolutamente em termos individuais, pois só vemos um
pensamento e sentimento coletivo.
A atenção está concentrada em todos os principais, mas habitualmente um
protagonista domina a ação. Como não há conflito sem duas forças, precisa-
se de um protagonista e de um antagonista, e a ação gira em torno destes
eixos, ou talvez três, quando há mais de um antagonista. O diretor precisa
determinar na análise de texto quem é o protagonista, quem é o principal
antagonista. Os personagens da tragédia grega em geral são simples,
porque as peças têm poucos incidentes para revelar traços de caráter; mas
essa simplicidade não os torna menos densos. Um personagem simples
pode exercer grande impacto sobre a plateia. Uma das contribuições do
realismo, além das circunstâncias dadas, foi o crescimento da complexidade
do desenvolvimento dos personagens, trazido por um grande número de
incidentes da peça. Mas essa complexidade psicológica pode ser fonte de
confusão, quando há tantos traços revelados que se tornam difíceis de
assimilar: bom diretor vai ordenar essa complexidade com clareza e
distribuição de ênfase, de modo a capacitar o público a assimilar os traços
essenciais, ficando os secundários relegados ao seu adequado lugar.
Técnicas de descrição dos personagens: Tomar notas sobre o
personagem é bom para assegurar que a análise do personagem seja
realizada por completo. Mas precisamos estar certos de que as
determinações sobre o que o personagem é, sejam feitas através de uma
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análise da ação, resistindo à tentação de partir das descrições que o autor
frequentemente insere na peça. Os tópicos abaixo partem da percepção da
ação dramática aplicada ao personagem.
Desejo (objetivos): determinar aquilo que o personagem mais almeja. Pode
ser uma posse material, mas é mais frequentemente um elemento intangível:
poder, domínio sobre os outros, amor de uma outra pessoa, integridade
moral, vitória sobre o medo, etc.
Força de vontade: é a força relativa de que o personagem dispõe para
alcançar seus desejos. Sua força interior é grande ou pequena? Ele é capaz
de ir até os seus limites, ou vai fazer concessões? A maioria das decisões
que tomamos na vida dependem da nossa força de vontade; nas peças de
teatro essas forças costumam ser clara e dinamicamente ilustradas.
Moral: o sistema de valores morais também condiciona fortemente a
possibilidade de o personagem alcançar seus objetivos. Quão honesto ele é
consigo mesmo e com os outros? Assume moralmente responsabilidades
para com os outros? Qual o código moral que rege o seu comportamento?
Qual o seu senso de integridade? Podemos, em função de sua postura oral,
considerá-lo um herói?
Aparência: como o personagem é fisicamente? Seus modos, sua postura.
Tal projeção de uma imagem, sendo apenas a fachada externa do
personagem, é superficial – o que a pessoa parece ser não nos permite dizer
o que ela é, mas pode ser valiosa para ajudar- nos a enquadrar o
personagem na sociedade em que ele vive. A imagem física que ele compõe
pode, também, estar intimamente ligada ao seu temperamento mental e
emocional. Pode ser útil, também, fazer uma lista de características físicas
do personagem aparentemente indicadas pelas circunstancias dadas,
embora possa perfeitamente optar justamente pelo contrário ao escolher o
elenco. Como ele se comporta nos vários contextos da peça: como anda,
como fica de pé, como fala, qual a qualidade de sua voz, etc. sua aparência
é afetada pela ocupação dos hábitos sociais? Pelos outros?
Resumir todas as categorias acima apenas com adjetivos.
Intensidade: este é o estado físico ou corporal do personagem, - o seu
nervosismo, no início da peça e de cada grupo de unidades interligadas.
Definindo este estado inicial, o diretor tem um ponto de partida para todos
crescendo e diminuindo do personagem que vão seguir. A intensidade é o
nível de emoção do personagem quando começa, pois se o ator pode dar a
partida num adequado nível de intensidade, tendo boa concentração e
consciência da ação, vai continuar estruturando o personagem a partir desse
nível.
19
A considerar, no estado físico do personagem: batidas do coração,
respiração, perspiração, tensão ou relaxamento muscular, sensações
estomacais. O nervosismo abrange tudo isso – vibração nervosa global,
percepção sensorial. Sendo estes estados pontos de partida, a forma da
peça pode ser tornada evidente a partir delas na representação.
Cada personagem começa com uma intensidade diferente, pois é
independente por definição e vai sentir-se diferentemente dos outros
personagens, que estarão num outro estado de nervosismo, embora em
outra situação. O trabalho do diretor consiste frequentemente em apontar
para os atores as diferenças nestes pontos de partida – os diferentes tênues
dos personagens. Para começar, o ator sente o nível de suas sensações
físicas; depois, enquanto representa a ação dramática, pode sentir a
validade deste ponto de partida. Como tudo que se seguirá vai partir daí, ele
se dará conta da importância dos pontos de partida adequados. A trilha da
ação pode assim ser assegurada.
Devemos lembrar que quando um ator enfrenta um novo personagem, este
lhe parecerá inicialmente estranho, porque é diferente dele mesmo. Para o
ator, abordar um novo personagem é como experimentar um casaco de uma
outra pessoa: é comprido demais, aperta, tem cheiro estranho. Neste
sentido, a intensidade é o novo casaco devidamente definido, pois o ator
saberá por que o casaco é estranho e o que fazer para que ele lhe caia bem.

IDEIAS, ANDAMENTOS, CLIMAS

No início comparamos circunstâncias dadas com fundação de um prédio e


diálogo com sua fachada. Ação dramática e personagens poderiam ser sua
estrutura, ou a energia elétrica que impulsiona o seu funcionamento. Agora
vamos colocar o telhado que abriga tudo o que está debaixo dele: a ideia.
IDEIA
A ideia de uma peça é um enunciado do seu significado, daquilo que "a peça
quer dizer". Essa ideia deriva do estudo dos personagens em ação, e
constitui uma interpretação da própria ação.
Intenção prévia ou resultado acidental da criação? Geralmente admitimos
que o autor parte originalmente de uma ideia que quer transmitir, e com
vistas à sua eficiente transmissão elabora os personagens e a ação. Este
costuma ser o caso com peças de tese, que assumem sua intenção didática
ou polêmica. Onde tal intenção não é assumida, é mais provável que o
processo de elaboração do texto tenha sido mais próximo de uma
20
improvisação. Por exemplo, o autor pode ter visualizado um personagem de
ficção enfrentando um outro personagem dentro de uma determinada
situação dramática, esclarecida por algum dado de circunstâncias dadas; e à
medida que vai trabalhando em cima dos personagens insuflando-lhes vida
própria, eles próprios vão determinando o fluxo da ação e, finalmente, a
ideia.
Qualquer que seja o processo, mais cedo ou mais tarde o autor vai precisar
decidir o que, afinal, os personagens estão fazendo de uma maneira
consistente, o que é que eles estão tentando descobrir. Em outras palavras,
começa a preocupar-se com unidade temática da ação, e fazem com que
essa ação seja sobre uma coisa, uma ideia. Talvez ele não chegue a
verbalizar explicitamente essa ideia central, porque acredita que criação
dramática é essencialmente subliminar, que o público deve (*receber?) a
ideia sentindo a ação, e não recebê-la como uma mensagem mastigada. Por
isso, a definição da ideia que dá unidade ao texto; é disso que dependerá,
em alto grau, a unidade e a coerência da sua encenação.
Identificação da ideia: A fonte principal na qual devemos procurar a ideia
são os personagens envolvidos nos incidentes da ação. Só após
analisarmos a ação completa, e os personagens na sua trajetória total, é que
poderemos definir corretamente a ideia, pois o clímax principal e o desfecho
nos dizem mais do que qualquer outro trecho o que a peça quer dizer.
Entretanto, existem fontes auxiliares, tais como o título ou uma declaração
filosófica no diálogo. O título é frequentemente uma representação simbólica
ou metafórica do sentido interior, uma imagem que o autor oferece de
depoimento que está tentando escrever. O Auto da Compadecida, Um Grito
Parado no Ar, Tempo de Espera, A Morte do Caixeiro Viajante, Seis
Personagens à procura de um Autor, nos dão uma dica certa sobre os
respectivos conteúdos, embora fosse perigoso tomá-los muito ao pé da letra,
simplificando excessivamente a essência conteudística. Já outros títulos
podem mudar-nos a conclusão: A Cantora Careca, Festa de Aniversário, Oh
que Belos Dias. Outros nos dizem alguma coisa, mas pouco: Hedda Gabler,
O Canto da Cotovia, Hamlet, O Pagador de Promessas. Mas se a análise
da ação foi feita corretamente, o título *** ao alcance *** uma metáfora que
poderá aproximá-lo *** ideia do autor. Depoimentos filosóficos podem
ocasionalmente ser identificados em diálogo, mas não são muito frequentes,
e podem até confundir, pois muitos autores, no seu desejo de se manter num
plano poético, evitam explicações óbvias do significado (Não assim Brecht).
A experiência do espectador abrange o prazer da descoberta do sentido, não
porque o autor pretende ser confuso ou hermético, mas porque quer atingir o
21
espectador no plano mais primitivo de percepção, a percepção emocional.
Para isso, declarações intelectuais são autoconscientes e óbvias demais, em
geral.
Então, o melhor meio de descobrir a ideia é perscrutar a ação dramática
do(s) personagem(s) principal. Onde está colocada a ênfase da ação, para
onde conduz? Porque o personagem principal escolhe no momento de
clímax esta, e não outra ação? Qual é o resultado dessa escolha? Haveria
outras opções para ele – quais? No momento da sua maior tensão em
sofrimento, o que é que lhe parece mais importante? Depois do clímax
principalmente, qual é o efeito da descoberta sobre ele e os outros? Estas e
muitas outras perguntas podem conduzir o diretor à ideia da peça. Quando
ele acha que a encontrou, deve anotar a ideia da maneira mais sintética e
voltar a checá-la contra a ação.
Pode ser conveniente formulá-la através de uma frase que combina a
presença do personagem e da ação: A peça é sobre um jovem princípio
que... Podemos muitas vezes achar a ideia da peça relembrando a ação,
tomando cuidado em relatá-la o mais exatamente possível, na ordem qual
ela se desenrola. O diretor deve desenvolver a capacidade de relatar a ação
de cada ato em 3 ou 4 frases. Tal resumo é um bom caminho para encorpar
o enfoque principal pelo qual o autor aborda a ação.
Finalmente, indicações sobre a ideia podem ser encontradas nos conceitos e
valores defendidos pelos personagens simpáticos, e combatidos pelos
personagens antipáticos. Ou ainda em recursos simbólicos ou metafóricos
outros que o título.
ANDAMENTO
Os andamentos são as diferentes velocidades da ação. Quando há um
arranjo em sequência dos andamentos e quando várias unidades
consecutivas apresentam nítidas variações de cadência, podemos identificar
a pulsação da peça – o seu ritmo.
Unidades e Suas Cadências: As peças são compostas de unidades de
ação que, embora inter-relacionadas, são diferentes em conteúdo e
objetivos; assim, cada unidade tem o seu tempo próprio, a sua batida
própria. O diretor deve conscientizar essa construção musical interna, não só
porque ela determina consideravelmente a individualidade da peça, mas
também porque indica um importante instrumento para manter a atenção do
público.
A sensibilidade musical é um dos mais importantes instrumentos do trabalho
do diretor. Nas partituras, há indicações do andamento, que através das
rubricas tais como largo, alegro, etc., quer através das precisas indicações
22
metronômicas. As peças não contém tal material. Só excepcionalmente o
autor dá uma informação sobre o andamento. É necessário que o diretor e
os atores sintam a batida natural do texto. Se o leitor tiver imaginação
dramática, também vai senti-las, vai sentir o fluxo. Mas mesmo um diretor
com bom ouvido precisa analisar o texto para tornar consciente, unidades
para conseguir a música de cada cena, de cada ato, e da peça inteira.
Exercícios rítmicos, por
ex. bater num tambor os tempos de cada unidade, pode ajudar.
O ritmo, efeito cumulativo dos andamentos parciais, é também
consideravelmente condicionado pelos climas da peça.
Silêncios: Jean-Louis Barrault disse: “Teatro é silêncio interrompido.” (*não
disse sons interrompidos...) ...por ocasionais momentos de silêncio, mas
apresentou a paradoxal formulação invertida. É certamente uma formulação
radical, mas que dá uma metáfora do conceito de teatro. Num certo sentido,
pode-se considerar que um ator começa com um vazio silencioso, e depois o
preenche com som. Mas se for dotado de bom ouvido, nunca vai preenchê-lo
completamente, vai apenas pontuá-lo.
Os silêncios que ele deixa são as pausas: A pausa é um intervalo
silencioso cujo efeito pode ser muito forte: o que não é dito pode ser tão
importante quanto o que é dito, e a duração da pausa é um dado muito
expressivo. O diretor, ao analisar o texto, deve marcar antecipadamente as
pausas, mesmo que venha a alterar essas marcações nos ensaios. Pelo
menos ele vai saber que os intervalos estão lá, que fazem parte da estrutura
rítmica, e que não podem ser ignorados sem colocar em risco o equilíbrio
dessa estrutura.
CLIMAS
Os climas são uma tradução das emoções ou sentimentos criados pelo
choque de forças na ação dramática. Quando vistas no seu conjunto,
definem o tom ou a atmosfera da peça. Impor o tom adequado ao seu
espetáculo é um dos principais objetivos do diretor.
Efeito sobre o público: A discussão deve começar da observação do
público, pois o conceito de clima pode ser melhor compreendido partindo de
como a plateia recebe a peça para então estudar a peça, enquanto (***) que
gera essa determinada recepção. O conceito de clima é particularmente
difícil de ser verbalizado e grande parte da sua criação só pode ser
concebida do palco, mas a compreensão intelectual da pureza dos climas e
do seu relacionamento com os outros elementos na análise de texto, ajudará
o diretor no seu trabalho.
Os climas são sentimentos básicos: as sensações de perturbação; excitação,
23
etc., que nos atingem quando assistimos ao espetáculo. Quando estamos na
plateia, recebemos o impacto da peça e abrimos mão da sua fria objetividade
e mergulhamos na realidade da peça, sentimos esta realidade e somos
comovidos por ela, basicamente pelos valores do clima que ele contém. Esta
manifestação emocional pode começar logo cedo, intensificar-se
gradualmente, chegar ao auge no clímax e ir-se acalmando dali pro final.
Todos nós sabemos que a graça da comunicação teatral está nesta
experiência de substituição. Acompanhar as sucessivas modificações do
clima não só mantém nossa atenção, mas pode no final deixar-nos
cansados, exaustos, alegres, em êxtase. Ficamos tão concentrados
experimentando através da empatia, os sentimentos gerados pelos
personagens em ação que mesmo sabendo perfeitamente que a peça é um
produto artificial, que não é vida real, mas só uma representação dela,
parece-nos que gastamos quase tanta energia física e emocional como
gostaríamos se os acontecimentos vistos fossem reais. Foi uma experiência
por transferência, mas que envolve nossos sentimentos, nosso sistema
nervoso. As duas experiências, uma ficcional, outra real, não se confundam,
e, no entanto, parecem ser uma só. Não nos sentimos logrados pela
experiência “fingida”, sabíamos de antemão que ela seria assim, e achamos
que participar de comportamento humano de pessoas colocadas em
situações e circunstancias talvez semelhantes às que seriam possíveis no
nosso próprio universo enriquece a nossa própria vida. Os climas da peça,
portanto, são o que emociona a plateia e a desloca assim para além dela
mesmo e dentro de uma experiência imaginária.
Ação dramática e climas: Podemos formar uma ideia mais clara do
trabalho do diretor em cima de climas, estabelecendo relações dos climas
com ação dramática. Assim concebemos a ação dramática em unidades,
podemos pensar dos climas de nosso modo. A peça aparecerá assim
composta de várias mudanças de clima, cada unidade tendo seu clima
específico.
Como vimos cada personagem inicia uma unidade numa certa intensidade
físico- nervosa – o estado nervoso do personagem neste determinado
momento. Se começar na intensidade certa, o que ele fizer aos outros
personagens e estes a ele vai modificar sua intensidade, tornando-o mais
relaxado ou tenso. Nossas modificações decorrem automaticamente das
modificações do clima. Os climas são resultados das cambiantes
intensidades dos personagens.
Tom: O tom do espetáculo é a soma, a síntese dos diversos climas parciais.
É o que o diretor procura como marca registrada do seu espetáculo. É
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através do tom que ele vai basicamente, transmitir o sentido da peça. A
maneira como o público vai receber a peça dependerá uma grande parte da
percepção dos climas e da articulação deles num tom global pelo diretor e,
por seu intermédio, pelos atores. Sendo um conceito subjetivo e emocional,
o tom deve ser sentido pelo diretor a partir das primeiras leituras que ele faz
da peça, mas ele deve ser capaz de não perder a clareza quanto ao tom que
está procurando criar após semanas de envolvimento em ensaios.
Análise dos valores do clima pelo diretor: Como registrar e montar essas
primeiras sensações relativas a climas pode parecer quase impossível, pois
se trata de reações pessoais, subjetivas e fluidas. Algumas técnicas poderão
ajudar a torná-las mais conscientes. Uma delas é a que usa adjetivos
climáticos, a outra usa metáforas.
Os climas sendo emoções e sentimentos, podem ser registrados num
processo semelhante ao trabalho do ator, uma vez que o objetivo do ator é
mostrar através de recursos visuais e sonoros o que o personagem está
sentindo. Na vida real alguém pode estar sendo submetido a grande pressão
emocional, mas exteriormente não demonstrar nada. No palco, o ator precisa
demonstrar o que está acontecendo. Sua linguagem para essa
demonstração está toda no domínio dos sentidos: tato, gosto, olfato,
audição, visão. Portanto, as palavras mais apropriadas para descrever
climas estão nas categorias dos sentidos. Por ex.:
Tato: rude, áspero, suave, duro, liso, frio, quente. Gosto: doce, ácido, frio,
quente, enjoativo, saboroso. Olfato: perfumado, fedorento, doce, áspero,
forte.
Audição: alto, baixo, rouco, suave, estridente.
Visão: palavras que expressam cores, tamanhos, formas, graduações de
claro e escuro.
Alinhavar alguns adjetivos deste tipo vai ajudar a relembrar climas sentidos
na leitura e falar sobre elas expressivamente.
Uma metáfora é uma imagem verbal através da qual uma palavra ou frase
que literalmente correspondem a um determinado objetivo ou ideia são
usadas no lugar de outro objeto ou ideia, para sugerir uma semelhança,
analogia ou correspondência entre uma e outra. Mais do que os adjetivos
climáticos, as metáforas permitem um jogo livre de imaginação e estimulam
a criatividade, pois procuramos achar imagens que se parecem com
sentimentos que estamos experimentando basta dizer: o clima nesta unidade
é como... e completar com uma imagem criada através do livre voo da
imaginação. Por ex.:
... uma mosca voando em torno da lâmpada (a unidade tem um clima
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nervoso, tremido, indeciso, etc.)
... um suco de limão (clima ácido, flui com líquido, cheira a bem mas deixa
gosto áspero na boca, etc.)
...uma britadeira (o clima é barulhento, martelado, perturbador);
Aprender a pensar em metáforas ajuda a trazer à superfície sentimentos
subjetivo do diretor. Mas o que transformará a metáfora em clima será a
ação do ator e do cenógrafo.
O ritmo é intimamente ligado à criação de climas e do tom. Não só a ação
dramática deve ser tratada com vistas à obtenção de climas e do tom, mas
também as circunstâncias dadas.
26

ANÁLISE DO TEXTO: BASE DA


COMUNICAÇÃO DO/A DIRETOR/A
Dever de casa: Por mais capaz e experiente que seja um diretor, ele terá de
fazer os seus deveres de casa – o estudo do texto. Com a prática diminui a
necessidade de registrar detalhadamente por escrito todos os dados
componentes da estrutura da peça, e o diretor poderá fazer parte deste
trabalho mentalmente a outra parte por escrito, mas sempre com o objetivo
de tornar suas ideias claras e desenvolver uma comunicação específica com
os seus atores e equipe. Já o diretor inexperiente deve dar duro na análise
escrita, para certificar-se que todos os aspectos foram cobertos.
O objetivo básico não é só de dissecar e entender a peça, mas também criar
um potencial de rica comunicação, baseada num encadeamento articulado
de ideias. Dirigir bem não é falar pelos cotovelos; é dar momentos certos,
sugestões adequadas e econômicas. O trabalho do ator é atuar, fisicamente;
não é o trabalho do estudante num seminário, onde é preciso falar muito. As
sugestões do diretor devem ser simples, diretas, honestas, econômicas,
objetivas. Ao mesmo tempo, devem ser imaginosas e imagísticas,
formuladas num código que tanto o diretor como os atores entendem.
O processo de ensaios é como uma escada: o diretor constrói um degrau,
em cima do qual o ator constrói um outro, a partir do qual o diretor construirá
um outro, etc., este processo recíproco de contribuições repetindo-se até o
fim. O diretor preparado terá sempre material para construir um novo degrau
que ajudará o ator, o mal preparado que confiar na sua inspiração, em vez
de responder perguntas vai sempre fazer perguntas aos seus confusos
atores. Ele precisa conduzir, não ser conduzido. Para isso, precisa conhecer
não só a pele da peça, mas também seus ossos, músculos e sangue.
27
Por que por escrito? Alguns acham perigoso o processo das anotações por
escrito, pensando que restringirá o seu voo como artistas. Um preconceito
absurdo. Depois de fazer algumas análises, vai-se perceber que acontece
exatamente o oposto, uma boa preparação é um processo de libertação. Ao
escrever as ideias, o criador vê abertura de novos caminhos. Se o cenógrafo
começasse a comprar direto os móveis e objetos e arrumá-los no palco, sem
ter registrado a sua ideia detalhadamente no papel de desenho, a construção
do cenário se tornaria uma loucura.
Sugestões de esquema: O trabalho de análise pode começar com qualquer
ponto, mas é melhor sistematizá-lo na ordem sugerida: a análise das
circunstancias dadas tende a dar impulso ao diálogo, o diálogo à ação
dramática, etc. Também a cada nova ideia que ocorre no decorrer do
processo, podemos checá-la contra o que já foi anotado. Se a ideia faz
lógica, vai encaixar-se facilmente, e o processo libertador vai mostrar o seu
fornecimento.

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